Agua Doce - História do Algarve através da água

Page 1

Água Doce

História do Algarve através da água The History of the Algarve through the Water

INEZ PONCE DENTINHO




Titulo Original / Original Title Água Doce - História do Algarve através da água Fresh Water - The History of the Algarve through the water Autora / Authour Inez Ponce Dentinho Editora / Publisher IFT Publisher www.ift-publisher.com director@ift-publisher.com Director Estêvão Teixeira Sponsor / Sponsor Águas do Algarve SA Grupo Águas de Portugal Créditos Fotográficos / Photographic Credits Pág. 232 Fotógrafo Convidado / Guest photographer Alexandre Almeida Revisão e Tradução / Copy Desk IFT Publisher Coordenação de Design / Design Coordination Antonio Fernandes Design Gráfico / Designer Luís Vasconcelos Impressão e Acabamento / Printer Printer Portuguesa ISBN 978-989-97601-2-7 Depósito Legal 390135/15 © Copyright Editora IFT Publisher, 2015

 Roda de poço, Livramento, EN-Estrada Nacional 125.  Well at Livramento, next to the EN 125 road.

Açude junto à fonte da Benémola, Querença.  Weir near the Benémola fountain, Querença


Água Doce

História do Algarve através da água Fresh Water - The History of the Algarve through the Water

INEZ PONCE DENTINHO


6|

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 7

História do Algarve através da água


Índice Index

Índice Prefácio Apresentação Introdução

8 9 13 14

Index Foreword Presentation Introduction

II – O desenho da Água

18

II – Sketch of Water

II – A força da Água 32 II – The Strength of Water A civilização da água 34 - The civilization of water O império da água 50 - The empire of water Águas mouras 62 - Moorish waters A reconquista da água 76 - The reconquest of water Águas internacionais 82 - International waters Do poço à torneira 92 - From the well to the tap Da torneira ao golfe 106 - From the tap to the golf course O futuro da água 124 - The Future of water III – Tectos de Água 130 III – Ceilings of Water IV – Estradas de Água Arade – o refúgio de Silves Gilão – o mundo em Tavira Guadiana – a porta do Mediterrâneo

138 146 160 172

IV – Roads of Water - Arade – the refuge of silves - Gilão – the world inside Tavira - Guadiana – the doorway to the Mediterranean

V – Palavras de Água 186 V – Words of Water VI – Trabalhos de Água 190 VI – Water Labours VII – Águas Santas 214 VII – Holy Waters Included Anexos Bibliografia 230 - Bibliography Créditos fotográficos 232 - Photographic Credits Notas 233 - Footnotes Agradecimentos 237 Acknowledgments

Algarvia.  Algarve woman. 

8|

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 9

História do Algarve através da água


Prefá cio A

os que viram para além do imediato e para além daquilo que a vista alcança!

A memória dos homens não pode ser curta! E a dos Algarvios certamente não o é! Quantos de nós ainda recordamos o Algarve do início da segunda metade do Séc. XX como Região marcadamente rural em que a riqueza regional advinha das atividades agrícolas da campina de Faro, do Barrocal e das atividades piscatórias e industrias conserveiras. Nessa época a procura de água, era essencialmente para uso doméstico da população residente com consumos per capita muito baixos e para a agricultura de regadio extensivo e semi-intensivo sendo essa procura satisfeita por recurso a origens de água maioritariamente subterrâneas. No entanto também muitos de nós recordamos o início da transformação do Algarve em destino turístico nacional e internacional, nos anos 50 e 60 do século passado, com uma intensificação crescente da componente urbana para fins turísticos concentrada essencialmente no litoral algarvio com características de praia, que passou a ser a imagem de marca da Região Algarve, de tal forma que a atividade turística passou a ser atividade económica determinante em termos de emprego e de criação de riqueza regional. Essa transformação social, económica e das características do urbanismo da Região alterou o paradigma das necessidades e dos consumos de água no Algarve. Perante o advento do turismo, adveio igualmente o fenómeno da sazonalidade dos consumos, concentrada em três - quatro meses por ano com capitações três - quatro vezes superior a media dos consumos per capita da população residente. A resposta dos Municípios à procura crescente de água para consumo humano para fins turísticos consistiu nas soluções municipais com intensificação do recurso a captações subterrâneas de tal forma que levou a que, nos anos 80, se tenha assistido a sobre-exploração dos aquíferos com as inerentes consequências em termos de quantidade e qualidade de água disponibilizada para consumo. Nesse tempo os turistas nacionais e estrangeiros queixavam-se da qualidade e da falta de água no Algarve e os municípios do Litoral Algarvio passavam a época balnear sob a pressão e angústia decorrente do risco da falta de água para consumo da população e de não conseguirem satisfazer a procura crescente por parte das atividades associadas ao Turismo que, no entretanto, se tinha transformado na atividade económica por excelência da Região do Algarve.

10 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Foreword who gazed over the here and Fornowallandthosebeyond that which the eye can see! The memory of men can’t be short! And the memory of the people of the Algarve certainly isn’t! How many among us still remember the Algarve from the beginning of mid-20th century as an inherently rural Region where the regional riches came mainly from the agricultural activity of Faro’s plains and the Barrocal and from fishing and canning activities? In that time, water was sought essentially for the domestic use of residing population, with a very low per capita consumption, and for an extensive and semi-intensive irrigation culture, satisfying that demand mainly through the usage of underground water sources. However, many among us also remember the beginning of Algarve’s transformation into a national and international tourist destination in the 1950’s and 60’s, with a growing intensification of the urban component for domestic ends, gathered mainly along the beaches of the coastline, which ended up being a hallmark of the Algarve Region, such that tourism became the most important economic activity on what concerns employment and the creation of regional wealth. This transformation of society, economy and urban characteristics in the Region changed the model of necessity and consumption of water in the Algarve. With the growth of tourism, the phenomenon of seasonal consumption also appeared, concentrated on 3 to 4 months every year, with capitations 3 to 4 times larger than the average per capita consumption of the residing population. That was the time when national and foreign tourists started complaining over the quality and shortage of water in the Algarve, and the mayors of seashore towns went through every Summer under constant pressure and fear of lack of water for the population’s consumption and not being able to satisfy the growing demand from tourist related activities, which had become the main economic activity in the Region of the Algarve. It’s among this context of pressure over water availability for human consumption and touristic ends, which compromised not only the quality of life of the residing population but also the potential growth of tourism and consequently the development of the regional economy, that the town mayors and the members of government chose a new approach, innovative for that time, for handling the troublesome management of water in the Region.


Perante esse quadro de pressão sobre a disponibilidade de água os Presidentes das Camaras Municipais e os Membros do Governo de então optam por uma abordagem inovadora, à época, da problemática da gestão da água na Região. À perspetiva tradicional das soluções municipais contrapõem a criação, em 1995, de dois Sistemas Multimunicipais (Barlavento e Sotavento), a serem geridos por duas empresas com capitais da Águas de Portugal e das Camaras Municipais (Águas do Barlavento, SA e Águas do Sotavento, SA), em regime de concessão por um período de trinta anos e que, cinco anos depois, haveriam de fundir-se no Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água do Algarve (SMAAA), tendo como empresa gestora a Águas do Algarve, SA. Ao transferirem a responsabilidade da gestão da água, tradicionalmente municipal, para uma empresa de âmbito regional, e ao optarem por um SM, os então Presidentes das Camaras Municipais e Membros do Governo deram corpo a alteração do paradigma da gestão do abastecimento de água “em alta” no Algarve de tal forma que o modelo adotado haveria de ser replicado nas décadas seguintes noutras regiões do País. Mas, se o crescimento do turismo exerceu uma forte pressão na procura de água não e menos verdade que daí decorreu um impacto igualmente forte nos aumentos dos volumes e características dos efluentes, associados já não a cidades medias e a um povoamento disperso de cariz rural, mas antes a aglomerados urbano- turísticos de razoável dimensão e localizados na sensível zona do litoral/praia, sem que as parcas instalações de tratamento de efluentes existentes estivessem preparadas para tratar um afluxo de efluentes gerados por uma população que no Verão chega a ser o triplo da população residente no Inverno. É o tempo em que era notícia muito publicitada quando algumas praias conseguiam obter o galardão “bandeira azul” enquanto sinónimo da qualidade das praias para prática balnear. É também o tempo em que o nível de cumprimento das normas legais pelas instalações de tratamento se situava nos 30%! E seria possível fomentar o turismo de praia ambientalmente sustentável com efluentes a serem lançados para o mar sem tratamento ou com tratamento deficiente? E como reagiram as Camaras Municipais? Adotando soluções municipais ou, pelo contrário procuraram, conjuntamente com o Governo, uma solução global para o Algarve? A opção dos Presidentes das Camaras Municipais e dos Membros do Governo foi, mais uma vez, a opção pela criação, em 2000, de um Sistema Multimunicipal de Saneamento do Algarve ( SMSA) tendo cometido a sua gestão à Aguas do Algarve, SA em alternativa à solução de continuidade dos sistemas municipais existentes. A Águas do Algarve é, pois, a herdeira dos SMA do Sotavento e do Barlavento Algarvio, tendo-os transformado no SMAAA, e enriquecido com o SMSA criando assim o primeiro grande SM integrado no domínio do Abastecimento e

The Municipalities and the Government opposed the traditional perspective of the municipal solutions with the creation, in 1995, of two Multi-municipal systems (Sotavento and Barlavento), being managed by two companies with capital from Águas de Portugal and from the municipalities (Águas do Barlavento, SA and Águas do Sotavento, SA), with a concession of thirty years, being merged together five years later into the Multi Municipal System of Water Supply to the Algarve, with Águas do Algarve, SA as its managing company. By transferring responsibility of traditionally municipal water management to a company of regional reach, and by choosing a multimunicipal system instead of the classical municipal solutions still being used throughout the country and payed by a single fare for all the Region, the Mayors of the time and Members of Government gave body to a change in water management under high demand in the Algarve and even at a national level, in such a way that this model of management ended up being replicated in the following decades throughout the country. But if the growth of tourism made great pressure on water demand, it’s also true that it also had a huge impact in the growth of volume and characteristics of the effluents, no longer associated with medium-sized towns and a scattered rural population, but instead to urban touristic clusters of reasonable dimension, located in the sensible coastal beach areas, with the existing water treatment plants being unable to handle the waste coming from a population that, during the Summer, is three times greater than during the Winter. This is the time when the attribution of a “blue flag” certificate to a beach in the Algarve made headlines, as it assured its quality for beachgoers. It’s also the time when the legal fulfillment level in water treatment plants stood around 30%! Would it be possible to nurture sustainable beach going tourism with poorly treated (or untreated at all) waste water being dumped into the sea? Obviously not! How did the Municipalities react? By adopting municipal solutions or, on the contrary, seeking a global solution for the Algarve? The choice of the Mayors and Members of Government was, once more, the creation, in 2000, of a multimunicipal system of water treatment in the Algarve, under the management of Águas do Algarve, SA, as an alternative to the continued solution of existing municipal systems. Águas do Algarve is, therefore, heir to the multi-municipal systems of water supply to the Algarve’s Sotavento and Barlavento, transforming them into a multi-municipal system of water supply to the Algarve, enriched with a multi-municipal system of water treatment, creating the first great multimunicipal system which merges supply and

Água Doce | 11

História do Algarve através da água


do Saneamento de águas residuais. É essa integração numa perspetiva múltipla, compreendendo a componente sectorial, a componente territorial e ainda a componente gestão do recurso água que dão o caracter e identidade diferenciadora a Águas do Algarve, comparativamente com outras empresas e sistemas do sector das águas em Portugal. Se por um lado, a Águas do Algarve integra as vertentes abastecimento de água e saneamento de águas residuais assumindo, assim, com propriedade, o conceito de ciclo urbano da água “em alta”, por outro lado o facto de os SM abrangerem os 16 municípios Algarvios do Barlavento ao Sotavento, do Litoral à Serra Algarvia passando pelo Barrocal, dão à Águas do Algarve uma dimensão regional sem paralelo no País.

treatment of water. This integration under a multiple perspective, comprising the sectorial, territorial and water management components, gives Águas do Algarve its character and identity, when compared to other water management companies in Portugal. Indeed, if Águas do Algarve integrates both supply and treatment of water, therefore assuming the concept of a high demand urban water cycle, on the other hand the fact that the Multi-Municipal Systems range the 16 municipalities of the Algarve, from Sotavento to Barlavento, from the coast to the Barrocal and all the way to the mountains, gives Águas do Algarve a regional dimension which is unmatched in Portugal.

Os SMAAA e SMSA são um exemplo concreto dum projeto integrado de natureza empresarial bem sucedido, centrado na gestão do recurso água nas componentes abastecimento e saneamento de aguas residuais “em alta”. Mas é também um projeto de parceria e de coesão regional, porquanto envolvendo uma empresa de âmbito nacional no caso a AdP, SGPS e os Municípios do Algarve, desde os de pequena dimensão demográfica e de povoamento disperso do interior, aos grandes com elevada concentração urbana do Litoral, mas em que a todos é assegurada a mesma qualidade e fiabilidade do serviço de abastecimento de água e de tratamento de águas residuais e a uma mesma tarifa.

And if this sectorial and territorial integration is clear, the integration of management of water resources should be also highlighted, as the supply is assured in the Sotavento and the Barlavento by both surface and underground water sources, in an interconnected and complementary way, which strengthens the feature of integrated management of water resources, which is also a differentiating feature of Águas do Algarve.

O Algarve pode, pois, orgulhar-se de ter sido a Região que no País liderou a criação de um SMAAA e de um SMSA “em alta” com maior nível de integração sectorial e territorial e com um invejável grau de sustentabilidade, social, ambiental e económica e financeira que faz do Sistema um referencial em termos Nacionais. Aos que estiveram na sua génese e que foram capazes de conceber o Sistema e aos que ao longo dos 14 anos de existência permitiram e conseguiram fazer dele o Sistema eficaz, eficiente e sustentável que hoje conhecemos, queremos agradecer e prestar a nossa homenagem. Sem eles o Algarve seria hoje muito diferente em termos não só de qualidade ambiental mas também da própria qualidade de vida da população, e a Águas do Algarve não seria a empresa de referência e de que todos nos orgulhamos.

O Presidente do Conselho de Administração Joaquim Marques Ferreira

The multi-municipal systems of supply and treatment of the Algarve are indeed a concrete example of an integrated and successful project of corporate nature, centered around the management of supply and treatment of water resources under high demand. But it’s also a project of partnership and regional cohesion, involving a national company (Águas de Portugal, SGPS) and all municipalities of the Algarve, of the Barlavento and of the Sotavento, from the small scattered population towns of the interior to the large cities with high population density of the coastline, with the same quality and reliability of water supply and treatment service being assured at the same price. In this area, the Algarve can be proud of being the first region in the country to create a high demand multi-municipal system of water supply and treatment, with the highest level of sectorial and territorial integration and a enviable degree of social, environmental, economic and financial sustainability, making our system a reference in national terms. We wish to thank and commemorate everyone involved in its birth and all those who, during its 14 years of existence, have allowed it to become the effective, efficient and sustainable system we know now, for without them the Algarve would be very different today, not only in what concerns environmental quality but also the population’s quality of life itself, and Águas do Algarve wouldn’t surely be the company of reference in this region we all can be proud of.

Chairman of the Board of Administration Joaquim Marques Ferreira

Résumé 12 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Apresentação

Presentation

É

nítida a importância social e ambiental do serviço prestado ao público pela Empresa Águas do Algarve SA. A saúde e o bem-estar das populações dependem da qualidade desta actuação, do mesmo modo que a agricultura, o turismo e todas as actividades da economia algarvia têm uma ligação vital à gestão do primeiro elemento da natureza. Para além das dimensões social e ambiental, a empresa Águas do Algarve quer dar um contributo cultural à Comunidade. Fá-lo sob a forma de homenagem a todos os que, desde os primórdios da ocupação humana do Algarve, tiveram a responsabilidade de garantir o acesso do precioso líquido às populações. A água é um bem essencial. Mas hoje a ligação das pessoas com este elemento é uma intimidade desfeita. A garantia de um abastecimento contínuo e de qualidade dão uma segurança inédita aos algarvios. A torneira transformou a água num bem tão acessível como distante. Mas as facilidades do progresso não podem esconder trabalhos, cuidados e ensinamentos de séculos de relação dos Povos do Algarve com a água doce. Nesse sentido, este livro é um tributo a todos os que, antes da empresa Águas do Algarve, tiveram tamanha sabedoria e responsabilidade.

Teresa Cristina Fernandes Comunicação – Aguas do Algarve

T

he social and environmental importance of the public service conducted by Águas do Algarve is very clear. The health and well-being of populations depend on the quality of this service, the same as agriculture, tourism and all the activities of Algarve’s economy have a vital connection to the management of nature’s first element. In addition to its social and environmental dimensions, Águas do Algarve wants to give a cultural contribution to the community. It does so by paying homage to all those who, since the beginning of the human occupation of the the Algarve, had the responsibility of assuring access of this precious liquid to the populations. Water is an essential asset, but today the connection of the people with this element is one of undone intimacy. The assurance of continuous supply and quality gives an allnew security to the people of the Algarve. The tap turned water into an asset as accessible as it is distant. But the convenience of progress can’t hide the work, the care and the lessons of centuries of Algarve’s relation with fresh water. With that in mind, this book is a tribute to all those who, before Águas do Algarve existed, gathered such wisdom and responsibility.

Teresa Cristina Fernandes Communication - Águas do Algarve

Água Doce | 13

História do Algarve através da água


14 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Introdução

Introduction

«A água foi condenada no princípio do mundo a correr sempre; Como todas as coisas também ela tinha fala» Ernesto Estácio da Veiga Romanceiro do Algarve

E

ste livro fala da relação dos povos do Algarve com a água doce, ao longo dos séculos. Fala também dos lugares deste Reino que se mantém vivos e inamovíveis como se a força de uma ecologia social ligasse o homem à vocação do sítio, através da água. Olhamos a tecnologia, a política, a poesia, a arquitectura, o direito, os transportes, o urbanismo, a saúde, os costumes e os trabalhos de água sem procurar um registo académico ou técnico. Escorremos como a água que toca vários trilhos sem neles se deter. Da Idade do Ferro à Idade do Golfe, esta é uma viagem à história do Algarve contada pelo estado líquido. Conheça as conquistas e declínios das cidades que os rios favoreceram como estradas e fortalezas; saiba os nomes que a água emprestou às terras; leia os mitos e poesia que alimentou, bem como os milagres que provocou. Veja que sustentos a água oferece e como os tectos cativam a bênção das chuvas. Assista à democratização da água no século XX e aos desafios que o mundo do progresso trás a este casamento antigo de povos com águas doces. Inez Ponce Dentinho.

“In the beginning, Water was doomed to run forever. Like all things, she, too, was able to speak.” Ernesto Estácio da Veiga Algarve’s Traditional Ballad

T

his book speaks of the relation of the people of Algarve with fresh water, throughout the centuries. It also speaks of the places in this Kingdom that stay alive and unmovable, as if the strength of some kind of social ecology was able to link Man to a place’s vocation through water. We look at technology, politics, poetry, architecture, law, transportation, city planning, health, customs and water works without looking for academical nor technical records. We flow like the streams that touch endless trails, never stopping in any one of them. From the Iron Age to the Golfing Age, this is a journey through Algarve’s history, told through liquid state.

Learn about the conquests and decline of cities that rivers favored as roads and fortresses; learn the names that the lands borrowed from water; read about the myths and poetry that water nurtured, as well as the miracles it caused. See the sustenance which comes from it and how rooftopcan capture the rain’s blessing. Witness the democratization of water’s usage during the 20th century, and the challenges our advanced world can bring to this age-old marriage of people and fresh water. Inez Ponce Dentinho.

 Ribeira seca, Malhão.  Dry river, Malhão.

Água Doce | 15

História do Algarve através da água


16 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


NO PRINCÍPIO ERA A ÁGUA Neste mapa do Algarve, pintado em 1813, descobre-se melhor o desenho da água, ainda livre das linhas de caminho-de-ferro ou das auto-estradas que multiplicam veios na cartografia generalista actual. Trata-se de uma das cartas mais antigas do Reino dos Algarves reunidas por Filipe Folque no século XIX. Na página 83, no capítulo dos Descobrimentos, mostramos o primeiro mapa de Portugal, com o Reino dos Algarves que data do século XVI. Estranhamente, segundo o grande depósito da cartografia nacional na Direcção Geral do Território, não chega aos nossos dias qualquer registo cartográfico original dos povos que, sucessivamente, demandaram o Algarve. Fenícios, Lígures, Gregos, Celtas, Cartagineses, Romanos, Godos e Árabes aqui se orientaram com cartas talvez desfeitas pelo tempo ou arquivadas na origem sem copias no nosso destino.

AT THE BEGINNING, THERE WAS WATER In this map of the Algarve, painted in 1813, you can better find the drawing of water, still free from the railways and the highways that multiply their veins through the general cartography of today. This is one of the oldest charts of the Kingdom of the Algarves, gathered by Filipe Folque in the 19th century. On page 83, in the chapter about the Discoveries, we show the first map of Portugal, with the Kingdom of the Algarves, dating from the 16th century. Strangely, according to the great depository of the national cartography at the General Directorate of Land Planning, there are no charts remaining from the peoples that, in succession, sought the Algarve. Phoenicians, Ligures, Greeks, Celts, Carthaginians, Romans, Goths and Arabs oriented themselves with charts which perhaps were torn apart by time or archived at the origin, leaving no copies at our destination.

Água Doce | 17

História do Algarve através da água


O desenho

18 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


da água Onde nasce e por onde passa a água do Algarve? Onde prefere esconderse? A carta hidrográfica dá-nos um zoom da superfície. Os cientistas mostram-nos os corredores das águas profundas.

Sketch of Water

Where does Algarve’s water spring from, and which places does it cross? Where does it like to hide? The hydrographic charts zoom us in on the surface. The scientists show us the passage ways of deep waters.

 Queda de água na Serra de Monchique.  Waterfall at the Monchique mountain range.

Água Doce | 19

História do Algarve através da água


«... E vejo agora o Reino dos Algarves, Vedado por montanhas E abismos de água azul...» Teixeira de Pascoais

20 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


 Barragem do Arade.  Dam of Arade.

A

água desenha o Reino do Algarve. Separam-no do Alentejo a ribeira de Odeceixe, junto ao Atlântico, a ribeira do Vascão até ao encontro com o Guadiana que, por sua vez, desgarra o Algarve da Andaluzia, impondo a fronteira. Apenas uma nesga, a Norte, não é contorno líquido neste Reino de Portugal – o único, de tão bem desenhado. O resto é água e sal, mar. Tudo neste interior de quatro esquinas de água se arruma em três longos degraus que se estendem, do Barlavento vicentino ao Sotavento raiano, e descem até às praias formando, sucessivamente, a Serra, o Barrocal e o Litoral.

W

ater draws the Kingdom of the Algarve. Separating it from the Alentejo are the river of Odeceixe, near the Atlantic, the river of Vascão until it meets the Guadiana, which in turn parts the Algarve away from Andalusia, imposing the border. Just a little crack, up North, does not form a liquid outline in this Kingdom of Portugal - the only one of its kind, as it’s sketched so good. The rest is water and salt, sea.

Água Doce | 21

História do Algarve através da água


O comportamento da água neste Reino obedece a regras claras que alternam uma geografia, impiedosa e clemente, como descreve Raul Proença. «As montanhas que fecham o Algarve à influência directa do Alentejo, o mar que o envolve a oeste e ao sul, a acção contundente das perturbações atmosféricas saarense, mediterrânica e do centro da Península são energias que se associam para lhe dar uma fisionomia climática especial. À pluviosidade semiestépica opõe-se a sua vegetação opulenta. O oceano manda-lhe em humidade o que nega em precipitação. Com estios de extrema secura, consegue ser ao mesmo tempo pomar e horta, seara e vinhedo, floresta e cultura arvense». (1)

Tudo quanto é verde seca Advindo o rigor do Verão Vem a Primavera renova (e) só a mocidade é que não. (2)

Everything in this interior formed by four corners of water is arranged in three long steps, which spread from the Vicentian Barlavento (upwind) to the borders of the Sotavento (downwind) and descend to the beaches, forming, in succession the Barrocal, beyond the mountains, the slopes of the mountain range, and the coastline. The behavior of water in this Kingdom obeys a clear set of rules, that alternate an unforgiving and merciful geography, in the words of Raul Proença. “The mountains which close the Algarve from the direct influence of the Alentejo, the sea which involves it the west and, to south, the decisive action of the atmospheric upheavals that spring from the Sahara, the Mediterranean and the center of the Peninsula, are energies that work together in shaping its unique climactic physiognomy. To the almost steppic pluviosity, a lush vegetation opposes. The ocean gifts in humidity what it denies in rainfall. With summers of extreme drought, it can be simultaneously an orchard and a garden, open field and vineyard, place of cultivation of forests and trees.” (1)

Everything which is green dries up When the summer’s severity falls Spring comes and makes anew Except the young ones. (2)

Na estrada de Silves para Portimão.  Arade seen from the road between Silves and Portimão. 

22 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Água da Fonte Santa, Serra de Odelouca.  Water from the “Fonte Santa” (Holy Fountain), Odelouca Mountains. 


Água Doce | 23

História do Algarve através da água


24 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Algarve, serras mansas, onduladas, Aos poucos aplanando-se em campinas... Praias de areia e rochas arrendadas... Verdes sapais e manchas de salinas... Matos floridos, árvores variadas, Farroba, figo, amêndoas e citrinas... Terras vermelhas, hortas afogadas N’águas doces de noras e de minas... E o mar, mais pronto a calmas que a furores, Às traineiras levando aos pescadores Peixes brilhando em raras pedrarias! E o céu, tonto de sol, pintado a cores De inverosímeis, múltiplos fulgores! Jardim das mil e uma fantasias... António Balté

Água Doce | 25

História do Algarve através da água


 Carta hidrográfica da região: aqui vemos a rede de águas, escondida

26 |

nas ravinas da serra ou perdida no emaranhado turístico do Algarve.

Hydrographic map of the region: here we can see the water net headed in the mountains or lost in the touristic network of the Algarve.

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 27

História do Algarve através da água


O engenheiro agrónomo Reis Cunha, fez um estudo sobre o clima do Algarve que sintetiza o ambiente das nossas águas: “Nas vertentes da serra do Caldeirão – e o topónimo confirma - nascem quase todos os veios de água que fertilizam o Sul do Alentejo, pelo Mira, a sector central e o Sotavento algarvios. A serra de Monchique dá origem aos ribeiros que alimentam o Barlavento e a baía de Lagos. Nesta, o Arade forma-se a partir da confluência de águas dos dois maciços: a ribeira de Arade que nasce no Caldeirão e o Alferce que irrompe de Monchique. De aqui descarregam ainda mais directamente e com certo volume sobre o litoral o Alvor e o Aram desde a linha de separação dos xistos com a foiaite. Pode dizer-se que os grandes colectores de água algarvios são o Guadiana, a Ria de Faro e o Arade. Enquanto no Barlavento dominam as pequenas bacias hidrográficas, à excepção das que desaguam no mar definindo pequenas praias recortadas, no Sotavento confluem sobre o Guadiana e na chamada Ria de Faro a maior parte dos veios que nascem respectivamente no maciço do Caldeirão e nas serras de Alportel e Monte Figo. (...) A observação dos cursos de água desta zona permite definir com clareza a região da Ria de Faro, bem demarcada desde as alturas de Alportel pelas ribeiras de Aljibre e Quarteira a Poente e pela ribeira de Alportel até Tavira estendendo-se até Monte Gordo. Entre estas duas linhas, aos cursos de água descem no sentido Norte – Sul até ao mar, divagando todas elas segundo a linha da costa sobre as ilhas da Barreta, de Armona e de Tavira que constituem a primeira frente ao Atlântico. Na região de Lagos – Portimão verifica-se a importante confluência de quatro cursos de água: ribeira de Bensafrim, Odeaxere, Arão, Alvor e Arade. No Barlavento, os três (84) principais cursos de água tomam sempre a orientação SE – NW (ribeira de Seixe, Aljezur e Carrapateira) definindo pequenas enseadas sobre arribas. No Sotavento, os cursos seguem a direcção Poente – Nascente até afluírem ao Guadiana. Os veios de água das zonas dos xistos são mais ravinados do que nas outras regiões devido a um rápido escoamento superficial, enquanto para o Sul os cursos de água revelam um maior contributo de água de infiltração. (...)

28 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The agronomist Reis Cunha, did a study on the climate of the Algarve that synthesizes the environment of our waters: “The slopes of the Caldeirão mountain range - as its toponym confirms - are the birthplace of almost all veins of water which fertilize the Southern Alentejo, through the Mira, and the Algarve’s central sector and the Sotavento (downwind). The Monchique mountain range gives origin to the rivers which feed the Barlavento (upwind) and the bay of Lagos. Here, the Arade is formed through the confluence of waters from two masses: the creek of Arade, which is born in the Caldeirão and the Alferce, which springs from Monchique. From here, they flow even more directly, and with considerable volume over the coast, the Alvor and the Aram, from the line of separation of shale with foiaite. One can say that the great water collectors of the Algarve are the Guadiana, the Ria of Faro and the Arade. While in the Barlavento the small hydrographic basins prevail, with the exception of the ones that drain to the sea and define small outlined beaches, in the Sotavento most part of the branches of water that spring from the Caldeirão massive, as well as the mountains of Alportel and Monte Figo, merge on to the Guadiana and to the via of Faro (…) The observation of water courses in this area allows the clear definition of the region of the Ria of Faro, well outlined from Alportel by the rivers of Ajibre and Quarteira, to the west, and by the River of Alportel up to Tavira, stretching up to Monte Gordo. Between these two lines, the streams descend from North to South down to the sea, all of them splitting along the coastline, over the islands of Barreta, Armona and Tavira, which make for the front line of the Atlantic.


A Barlavento, as linhas de água, ainda que submetidas ao regime geral, encontram a sua principal origem nas grandes altitudes de Monchique e nas águas subterrâneas próprias da sua especial formação geológica. As da zona do Caldeirão parecem sofrer de bifurcação proveniente quer do aceso SW dos ventos mareiros que sobem os talvegues do Arade, e que portanto se orientam para Alcoutim, quer pela depressão do sector central de São Marcos da Serra de NW SE alargando para SE o contributo pluviométrico desta elevação.”

In the region of Lagos - Portimão an important confluence of four streams of water takes place: the river of Bensafrim, Odiáxere, Arão, Alvor and Arade. In the Barlavento, the three main streams of water always adopt a Southeast - Northwest orientation (Seixe River, Aljezur and Carrapateira), defining small inlets over sea cliffs. In the Sotavento, the streams head from West to East until they merge with the Guadiana. The brooks of the shale area are more sloped than other regions because of a faster draining at the surface, while to the South, the watercourses reveal a bigger contribution of infiltration waters. (…) In the Barlavento, the waterlines, even if submitted to the general regime, find their main origin up in the heights of Monchique and the subterranean waters, typical of their own special geological composition. The ones at the Caldeirão zone appear to be affected by a bifurcation, coming from both the SW access of Sea windows which climb up the Arade through lines, thus heading towards Alcoutim, and the depression of the central sector of São Marcos da Serra from Northwest to the Southeast, widening to the Southeast the rainfall contribution of this elevation. ”

Água Doce | 29

História do Algarve através da água


Endless waters In the 1960’s, three landscape architects did the survey of wells, tanks and fountains before proposing any other design for the Landscape Management of Algarve. Their eyes were of water. “In the general distribution of water origin in the Algarve’s soil, the places for existent fountains and wells were determined. It was verified that they are abundant mainly in high altitude terrain, in Monchique and specially Caldeirão, and go along with the distribution of the four rainiest months. In the lowest areas and in the hemibasin of the Guadiana, few exist. The location of the two centers of highest density thus corresponds to the clusters of higher intensity of rainfall. However, and even if the Caldeirão area has less rainfall than Monchique, it’s there that the highest concentration of fountains and springs is registered. Beyond these two cores, fountains are scattered throughout the territory, in parallel to the distribution of rainfall, even if it offers a certain lack of continuity when compared to Monchique. It looks as though this difference of intensity could correlate with the existence of underground water, which reveals itself through the rain’s contribution.

On the other hand, the distribution of wells in the Region complements the distribution of fountains and springs mentioned before. The presence of wells is much more dense in the Sotavento (downwind) than in the Barlavento (upwind), against the reverse distribution of rainfall. This could relate with the dominance of surface draining in the Barlavento and percolated water in the Sotavento.

If we examine the distribution of wells, with or without water gathering devices, we verify that wells without a water wheel are more closely related to the water destined for direct consumption, therefore associated with rural population and the poorest terrains with extensive cattle farming, while wells with such devices are distributed through the plains, with higher intensification of cultures, thus allowing irrigation by gravity, the most used method to this day in agriculture exploration. We verify that the distribution of tanks at the surface of Algarve is denser in the Barlavento, which confirms the dominance, in that area, of surface draining and the need to adopt artificial solutions for storing water, with its steep terrain also allowing irrigation by gravity. This aspect seems to reinforce the broad criteria that recommends the domain of storage reservoirs in the Barlavento. Also the distribution of canals - which, in the Algarve, comes along with the distribution of tanks - highlights this same concept and allows to assess, confronted with topography, the longitudinal profile of their respective watercourses, since these devices are associated mainly with flow continuity. Therefore, with time, Man has searched his physical surroundings for the primary resources necessary for living, and this exploration, in the mentioned case of hydric resources, was conducted in a variety of ways, depending on the form of the land, the nature of the soil and the climate”. Landscape architects Viana Barreto, Castello Branco, Ponce Dentinho Preliminary Study of Landscape Management of the Algarve, 1965 General Office for Urban Planning

 Desenho do Arqº Álvaro Ponce Dentinho, Estudo

30 |

Preliminar de Ordenamento Paisagístico do Algarve. Drawing by architect Álvaro Ponce Dentinho, Preliminary Study of Landscape Management of the Algarve.

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Águas Mil Na década de 60, três Arquitectos Paisagistas fizeram o levantamento de nascentes, poços, tanques e fontes, antes de proporem qualquer outro desenho para o Ordenamento do Algarve. Tiveram olhos de água. «Na distribuição geral das origens da água no solo algarvio, determinaram-se os locais das fontes e nascentes existentes. Verificou-se que são sobretudo abundantes nos terrenos de maior altitude, em Monchique e especialmente no Caldeirão, e acompanham a distribuição do pentamestre chuvoso. Nas áreas mais baixas e na hemibacia do Guadiana poucas existem. A situação dos dois núcleos de mais elevada densidade corresponde portanto aos dois pólos de maior intensidade de queda pluviométrica. No entanto, e apesar de ao pólo do Caldeirão corresponder uma menor pluviosidade do que em Monchique, é aí que se regista a maior densidade de fontes e nascentes. Para lá destes dois núcleos, as fontes (85) dispersam-se pelo território paralelamente à distribuição das chuvas, ainda que ofereça uma certa descontinuidade em relação a Monchique.

Verifica-se que a distribuição dos tanques na superfície do Algarve é mais densa a Barlavento, o que confirma a dominância nessa zona do escoamento superficial e a necessidade de adopção de soluções artificiosas para o armazenamento, permitindo também o dobrado do relevo a rega por gravidade. Este aspecto parece reforçar o critério de que, em linhas gerais, é de recomendar o predomínio de albufeiras de armazenamento a Barlavento. Também a distribuição das azenhas – que é complementar no território algarvio à distribuição dos tanques – realça o mesmo conceito e permite julgar em confronto com o da topografia, os perfis longitudinais dos cursos de água respectivos, uma vez que a estes engenhos se associa sobretudo uma continuidade de caudal. Assim, no decorrer do tempo, o homem buscou no meio físico os recursos primários necessários à sua vida. E esta exploração, no caso agora descrito dos recursos hídricos, foi conduzida de diversas maneiras consoante o relevo, a natureza do solo e o clima». Arq. Paisagistas Viana Barreto, Castello Branco, Ponce Dentinho Estudo Preliminar de Ordenamento Paisagístico do Algarve, 1965 Direcção Geral dos Serviços de Urbanização

Parece portanto que esta diferença de intensidades deverá poder correlacionar-se com a existência de águas subterrâneas que se revelam pelo contributo pluviométrico. Por outro lado, a distribuição dos poços na Província complementa a distribuição de fontes e nascentes anteriormente apontada. É muito mais densa a presença de poços no Sotavento do que no Barlavento, em distribuição inversa da pluviometria. Este facto poderá relacionar-se com o predomínio de escoamento superficial a Barlavento e de água de percolação a Sotavento. Se se examinar a distribuição dos poços, com e sem engenho, verifica-se que os poços sem nora se relacionam mais intimamente com a água destinada a uso directo, associado portanto à demografia rural e aos terrenos mais pobres de pecuária extensiva, enquanto os poços com engenho se distribuem em terras planas e de maior intensificação cultural, de forma a permitir a rega por gravidade, mais usada até aqui na exploração hortícola.

Água Doce | 31

História do Algarve através da água


A forรงa

A forรงa da รกgua

32 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


da água

The Strength of Water

O Algarve é parte de um «Mediterrâneo maior». Comunga a identidade desta Civilização criada em torno da escassez da água. Aqui lemos como, ao longo dos séculos, se deu a relação dos povos do Algarve com o primeiro elemento.

The Algarve is part of a “larger Mediterranean”. It communes the identity of this Civilization, created around the scarcity of water. Here we can read as, through the centuries, the relationship of the peoples of the Algarve and the first element took place.

 Bomba de água de Monchique.  Water pump in Monchique.

Água Doce | 33

História do Algarve através da água


A civilização da água

The civilization of water

Nas margens do Mediterrâneo, a água surge como matriz das Civilizações do Sul chegadas até nós.

O

t the margins of the Mediterranean, water appears as the matrix of the Southern Civilizations who reached us. The world is organized in a specific territory of rare rainfall, with dried up soils, where water is precious. All Civilization has something to do with the way water has been managed and kept, a feature we don’t see, for example, in Northern Europe.

«Os que vivem nas regiões privilegiadas da Europa Média e Setentrional, onde chuvas frequentes e regularmente distribuídas mantém a terra fresca e irrigada, não compreendem a luta sem tréguas, e por vezes trágica, do habitante das terras secas, por esse elemento precioso. Portugal está ainda, em parte, compreendido na zona seca da Terra» (6). Se não fosse a grande superfície de evaporação do Mar Mediterrâneo, por influência do Saara os desertos avançariam pela Europa, como acontece na Ásia.

“The ones who live in the privileged regions of Middle and Northern Europe, where frequent and evenly distributed rainfall keeps the earth moist and fresh, don’t understand the relentless and sometimes tragic war of the inhabitants of the dry lands for this precious element. Portugal is still, in part, comprised inside the dry zone of Earth.”(6). Were it not for the great evaporation surface of the Mediterranean Sea, the Sahara would have influenced the march of deserts throughout Europe, as it happens in Asia.

A água faz parte da civilização mediterrânica como elemento definidor do espaço que ocupa e pela importância que desempenha na sociedade, desde as épocas mais arcaicas do nomadismo.

Water is part of the mediterranean civilization for its role in defining the space it occupies and the importance it has in society, ever since the most ancient eras of the nomads.

Numa conversa longa, entre as muralhas de Mértola, o arqueólogo Cláudio Torres, nosso narrador ao longo do livro, diz como foi sendo construída uma imensa ritualidade ligada à água nas civilizações com a matriz mediterrânea.

In a long conversation we had among the walls of Mértola, the archeologist Cláudio Torres, a narrator of ours throughout this book, tells us how, during the centuries, civilizations born of a Mediterranean cradle have built an immense rituality connected to water.

mundo organiza-se num território específico de chuva rara, com solos ressequidos em que a água é preciosa. Toda a Civilização tem a ver com a forma como a água foi sendo gerida e guardada o que não se verifica, por exemplo, no Norte da Europa.

«No Cristianismo, o Baptismo tem a ver com a água como forma de entrar, de ser sacralizado, de entrar num mundo em que a água tudo abençoa, tudo resolve. Mesmo a história do Baptismo tem a ver com a forma como a água foi captada. A imagem que temos do deserto, com os poços num território gigantesco dos desertos, o sítio da água são os pontos de vida. Andam-se centenas de quilómetros para se chegar a um buraco onde há água e se constrói o oásis, sinónimo de Paraíso».

34 |

A

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

“During Christianity, Baptism is connected to water as a form of entry, of being sacred, of entering a world where water blesses all and solves all things. Even the story of Baptism has to do with the way the water was captured. That picture we make of a great desert, with some wells among a gigantic deserted territory - the places where water resides are life spots. You walk hundreds of miles just to reach a hole


 Camponesa de Lagos, Homem de Alte, Poço antigo em Faro.  Lagos Country Woman, Man from Alte, old well in Faro.

Água Doce | 35

História do Algarve através da água


 Poço recuperado pelo Oceanic Millenium Golf Course, Vilamoura  Water Well, restored by the Oceanic Millenium Golf Course, Vilamoura.

As três religiões do Livro – judaísmo, cristianismo e islamismo – surgiram à volta do charco do Mediterrâneo. Têm a ver com a promessa do Paraíso. Nos textos sagrados, «o Paraíso é uma espécie de oásis, um sítio com muita água, com flores, plantas, árvores, com o verde contraposto ao castanho. O oásis é o que marca o sítio do paraíso no imaginário, onde há vida, o ponto de abrigo do nómada. Aquele que anda, que leva o seu rebanho, o seu gado à procura de comida até encontrar um ponto verde, de pastagem que é a vida do nómada». Primeiro através do gado selvagem, solto, depois com a sedentarização, começam a organizar-se espaços para a agricultura e para o consumo em que a água é fundamental. «O seu uso perde-se nos tempos mais remotos», dizem Jorge Dias e Fernando Galhano(7), «numa maça de armas de pedra da I dinastia egípcia está representado um faraó a trabalhar numa canalização. Nesta mesma época foi aberto um canal de 600 km». No entanto, a construção de diques e canais é ainda mais

36 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

where there’s water, and an Oasis is built, synonymous with Paradise”. Actually, the three religions of the Book - Judaism, Christianity and Islam - all appeared precisely around the Mediterranean “pond”, and all have something to do with a promise of paradise. In the sacred texts, “Paradise is a kind of oasis, a place with abundant water, flowers, plants, trees, a hue of green opposed to brown. The oasis marks the place of paradise in the imagination, a place where there is life, a shelter of nomads. The one who moves forward, herds his flock and his cattle in the search of food, until it finds a green spot of pasture - that’s the life of the nomad”. First through wild, loose cattle, then through sedentarization, areas begin to take shape for agriculture and consumption, where water is fundamental. “The origin of its use is lost in the dawn of time”, according to Jorge Dias and Fernando Galhano (7), “in a stone club from the first Egyptian dinasty we can see the represen-


Rio Seco. Dry riverbed.

antiga. O Egipto terá recebido parte da sabedoria hidráulica das regiões asiáticas no Norte da Mesopotâmia. Kaj Biket Smith pensa que a Síria Setentrional será o primeiro lugar da terra onde o Homem aproveitou a água para regar artificialmente «a julgar pelas suas condições naturais, propícias ao desenvolvimento da técnica do regadio, clima seco e abundância de ribeiros de montanha».(8) O Algarve é uma faixa litoral que, nos primórdios, viveu mais da pesca do que da agricultura. «São águas riquíssimas de peixe, para mais numa costa cheia de entradas, de enseadas e buracos onde a água amansava e o peixe vinha desovar. Toda a urbanização urbana litoral mais antiga no Algarve tem a ver com a pesca no mar avançado, onde se misturam as águas, doce e salgada. Em épocas de muitas chuvas criam-se lagos e laguinhos, numa mescla», prossegue Cláudio Torres. É o peixe que marca esta fase semi nómada do Homem no Algarve, ainda como recolector. Só a partir da Idade do Bronze, 4000 a.C., 5000 a.C., começa a haver no Algarve uma certa fixação agrícola mas é principalmente com o neolítico que se dá a sedentarização. A riqueza de terra é propiciada pelas nascentes das encostas da zona acidentada - com mais água por razões geológicas - que escorrem para o mar. Há uma série de pequeninos barrancos que vão enchendo e enriquecendo. «A serra, não sendo muito alta, é longa, de Este-Oeste. As encostas, que foram mais ricas do que são hoje, com uma vegetação mais densa, alimentaram sempre em água a zona costeira, principalmente através de minas, ou seja, de nascentes que escorrem e vão remorjando com água fresca a zona litoral». (9) Temos assim no Algarve uma civilização agrícola no neolítico, 4000 a.C. ou 3000 a.C., com sedentarização, terras cultivadas e alguns povoamentos de gente fixa em zonas litorais ligadas à pesca, à agricultura e à criação de gado na zona da encosta, que começa a ter boas pastagens. Organiza-se o pastoreio, queima-se o mato e depois nasce o bom pasto. Também há cultivo de sequeiro, como o trigo, que é muito antigo nestas zonas. A fixação do povoamento divide-se, desde sempre, em períodos de Verão / Inverno, de acordo com a cadência das águas doces e salgadas: «No Verão, o mar estava mais manso, dedicavam-se à pesca; e, no Inverno, mais ao interior, onde a água era aproveitada nas zonas mais chegadas à serra do Barrocal, não tanto em poços mas em minas – poços horizontais em que se procura a água nas encostas da serra». (10) Nas zonas serranas, dentro da montanha, surgem os vales ricos, sempre com água mediterrânica: com secura durante o Verão.

tation of a pharaoh working in a set of pipes. More or less during the same time, a 600 kilometer canal was opened”. However, the construction of dams and canals is even more ancient. Egypt had received part of wisdom about hydraulics in the asian regions of North Mesopotamia. Kaj Biket Smith thinks that North Syria could have been the first place on Earth where Man used water to irrigate artificially, “judging by the natural conditions, prone to the development of watering techniques, the dry climate and the abundance of mountain streams”. (8) The Algarve is a coastline that, in the beginning, has lived even more off fishing than agriculture. “These are waters teeming with fish, even more so in the bays, the coves and the holes where water calmed down and fish came to lay their eggs. All ancient urban civilizations of the Algarve have something to do with fishing in open waters, where sweet and salt water mix. In times of heavy rainfall, lakes and ponds are blended together”, Cláudio Torres adds. It’s fish that marks this semi-nomadic phase of Man in the Algarve, still under the quality of gatherer. Only after the start of the Bronze Age, from 4000 B.C. to 5000 B.C., we have some agricultural fixation in the Algarve, but it’s mostly during the neolithic that settlement takes place. The riches of the earth are brought by the springs that flow from the sloped areas containing more water, for geological reasons - which find their way to the sea. There are a series of tiny ravines that keep getting filled and thus getting richer. “Even if the mountain range does not rise too high, it’s very long, running from East to the West. The slopes, once more fertile than today, with a more lush vegetation, have always provided water to the coastal areas, mainly through flowing water mines and springs, sprinkling the coastline with fresh water”. (9) We therefore have in the Algarve a sedentary agricultural neolithical civilization around 4000 B.C. to 3000 B.C., with cultivated lands and some coastal settlements of people linked to fishing, agriculture and, in the sloped area,

Água Doce | 37

História do Algarve através da água


O rio secou Subi leve Ă nascente que falece. Descesse, e era o mar. LuĂ­sa Neto Jorge

38 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 39

História do Algarve através da água


Todo o povoamento da serra do Algarve é feito em função de pontos de água tal como acontece, de forma exagerada, no outro lado do Mediterrâneo, na zona saariana.

the breeding of cattle, which starts finding good pastures. The lands are sorted out, bushes are burned and fresh pasture grows. There’s also the practice of dry cultivation, which is very ancient in these areas.

Repete-se aqui a cultura do poço que tem duas funções: ir buscar água quando ela falta e armazenar. O poço é também um depósito que guarda a água para o Verão. Por isso, muitas vezes, na zona mais seca da planície, o poço tem uma boca mais larga para ser um depósito que guarda mais água. O poço estreito da serra recolhe em nascentes. Normalmente os poços esgotam-se nos verões mais secos mas alguns têm nascentes sempre fortes. É à volta destes que se organiza o povoamento mais firme. «O povoamento denso da serra tem sempre boa água», refere Cláudio Torres. Pode falar-se de uma tecnologia ancestral de captação de águas no Algarve com poços ligados ao abastecimento que, para regarem as hortas, dispunham de vários instrumentos para puxar a água.

The establishment of settlements has always been divided in periods of Summer / Winter, following the beat of the sweet and salt waters: “In the Summer, the sea was more tame and the people dedicated themselves to fishing; in the Winter, they moved inland, where water was used in the zones closer to the Barrocal mountain range, not so much inside wells but in mines - horizontal shafts where you can search for water in the slopes of the range”. (10)

Outro complemento fundamental de água no Mediterrâneo - e que no Algarve é muito intenso - é o depósito, puro e simples, a cisterna. Consiste num buraco feito na terra, bem argamassado, estanque se possível, que guarda as águas das chuvas. Toda a estrutura urbana das casas é feita em função da recolha de águas nas zonas mais calcárias, mais áridas, onde os poços têm pouca água. Os telhados são organizados de maneira a recolher água para o interior, tudo corre através de algerozes, estruturas feitas em alvenaria que chamam a água dos tectos para a cisterna. «Hoje isso acabou mas não havia casa que não tivesse obrigatoriamente a sua cisterna para guardar a água, vital para a sobrevivência da família e para a rega, organizada para pequenas hortas mas, principalmente, para a alimentação familiar». (11) Vemos, por isso, um casamento, entre o Homem e a água, mais sensível em todo o perímetro seco do Mediterrâneo. «Não será a natureza uma das “chaves” da explicação da civilização?», interroga-se Orlando Ribeiro. (12) Até que ponto o Algarve beneficiou das vantagens da «polis» grega - unidade participativa dos cidadãos - ou na «urbs orbis» romana - centro de poder exercido sobre uma vasta área urbanizada? E da civilização do regadio comunitário muçulmano? Historiadores, geógrafos e antropólogos vêm o Algarve como um «Mediterrâneo maior» (Fernand Braudel), «a última Riviera mediterrânea» ou o «pré-mediterrâneo». Presta-se a uma mistura de elementos de civilização «por ser uma região aberta a influências mediterrâneas e por isso desenvolvida e organizada quando o resto do país permanecia perdido no

40 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

In the highlands, inside the mountains, the rich valleys appear, always bathed by mediterranean water: dry during the Summer. The people’s presence in the Algarve mountain range is done according to the location of water points, just as it’s done, in an exaggerated manner, on the other side of the Mediterranean, in the Sahara region. The culture of the well is replicated here, and has two functions: to reach for water when it’s lacking and also to store it. The well is also a deposit for keeping water during the Summer. Thus, in the drier areas of the plains, it has a larger opening, in order to act as a depository for storing a greater amount of water. The narrow shafts found in the range retreat up to their source. Normally, the wells dry up during dry summers, but some of them have strong springs that flow all year long. These are the places where the presence of people is more significant. “The dense population of the range always has good water”, Cláudio Torres tells us. We can speak of an ancestral technology of water catchment in the Algarve, with most wells linked to a supply source, which used a series of instruments for irrigating cultures. Another fundamental complement for water in the Mediterranean, very intensely used in the Algarve, is a plain deposit - a cistern. It consists of a pit drilled inside the earth, well lined with mortar and, if possible, impervious, which stores rain water. All urban structure of


Chão junto à Barragem do Arade. Soil near the Dam of Arade.

isolamento e na barbárie; pela abundância dos restos romanos, que deixam supor uma vida económica elevada nesse tempo; pela existência de centros importantes na época muçulmana, alguns com autonomia política (...); pela vida própria, que provém tanto das montanhas que o isolam de Portugal (até ao século XVII pelo menos se encontra rasto da oposição ou justaposição dos dois reinos; como da costa que o torna solidário dessa espécie de pré-mediterrâneo constituído pelo golfo luso-hispano-marroquino; e ainda pelo papel relevante que os seus portos desempenharam na expansão portuguesa e nas relações marítimas distantes», adianta Orlando Ribeiro (13). O movimento de influências externas e internas, que a situação geoestratégica do Algarve favoreceu, não impediu que, internamente, a água fosse determinante na arrumação das populações dentro do território.

homes is done according to their capability to keep waters in the more dry and limy areas, where the wells have few water. Rooftops are organized so that they can conduct water to the interior, flowing through gutters - structures built out of masonry - which call the water from the ceilings to the cistern. “Today that practice is over, but there wasn’t a single home that didn’t possess its own cistern for keeping water, which was vital not only for the family’s survival but also for the irrigation of the food gardens, essential for household feeding”.(11) We therefore witness a bond between Man and water, even more sensible around the dry perimeter of the Mediterranean. “Isn’t nature one of the “keys” for explaining civilization?”, Orlando Ribeiro wonders. (12) To what extent did Algarve availed itself of the advantages brought by the Greek “polis” the citizens’ participative unit - or the Roman “urbs orbis” - a center of power exercised over a vast urban area? And the communal irrigation civilization of the muslims?

 Bica na Serra do Caldeirão ou Mu.  Water tap at the Caldeirão or Mu mountain range.

Historians, geographers and anthropologists see the Algarve as a “larger Mediterranean” (Fernand Braudel), “the last mediterranean Riviera” or the “pre-mediterranean”. It’s prone to a mixture of civilizational elements, as “it’s an open region for mediterranean influences, and therefore developed and organized, while the rest of the country remained lost in isolation and barbarism; for the existence of roman remains, that let us suppose there was a rich economic life during those times ; for the existence of important centers in the muslim era, some with political autonomy (…); for the life of its own, coming from the mountains that isolate the region from Portugal (until at least the 17th century, we find evidence of the opposition and overlapping of the two kingdoms); as well as the coast, that makes it a part of that sort of pre-mediterranean, formed by the lusitanian-hispanic-moroccan gulf; and also for the relevant role that its ports played in the portuguese expansion and the far-reaching sea relations”, Orlando Ribeiro states (13).

Água Doce | 41

História do Algarve através da água


42 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


A luz mais que pura Sobre a terra seca Eu quero o canto o ar a anémona a medusa O recorte das pedras sobre o mar Um homem sobe o monte desenhando A tarde transparente das aranhas A luz mais que pura Quebra a sua lança

Sophia de Mello Breyner Andersen Algarve

Água Doce | 43

História do Algarve através da água


Algarvia.  Algarve woman. 

As bacias hidrográficas são «a unidade inicial ocupada pelo homem. Porém, esta forma elementar de relevo não poderá considerar-se isoladamente, visto manter relação que a própria distribuição pluviométrica ocasiona, com as bacias confinantes. Aliás, a necessidade de troca e contacto levou também, no processo de ocupação, a tribo do vale a galgar o festo para comunicação ou defesa contra o grupo adjacente. Portanto, ao limite nítido que a bacia define, apôs-se o limite fluido das hemibacias confinantes» explicam os Paisagistas, Viana Barreto, Castello Branco e Ponce Dentinho no primeiro Plano de Ordenamento do Algarve, em 1965. (14) E precisam: «O homem escolheu, desde sempre, percursos idênticos, até por mais suaves e racionais, verificando-se não serem alheios a estas linhas os itinerários religiosos, militares e comerciais». Também Orlando Ribeiro tinha estudado, nos anos 40 do século XX, o comportamento da ocupação do território na Província do Algarve, numa época em que a disposição da água ainda moldava a geografia humana. Com efeito, sem as obras de captação, distribuição e tratamento, a água era a primeira e última razão para a distribuição de algarvios ao longo da serra, do barrocal e do litoral. E, nessa altura, o geógrafo referia «a serra, onde há grandes extensões quase despovoadas, que nenhuma estrada atravessa, solidões abandonadas ao mato ou ao bosque de sobreiros, ou queimadas periodicamente para o amanho de cereais» (15). Só a água permitia a quebra da regra do vazio serrano na serra de Monchique e no graben de Aljezur. Na primeira, «o melhor solo e a grande riqueza de águas» convida à morada permanente de maior número de algarvios onde, «a população exameia e parece descer ao longo dos barrancos, regados com água da serra mesmo em terreno de xisto». No graben de Aljezur, «melhor terra, com muito regadio, constitui uma estreita faixa de povoamento, desde um pouco a Leste de Bordeira a Odeceixe, que contrasta com as áreas, quase despovoadas, de Espinhaço do Cão ou do litoral», segundo o mesmo estudo de Orlando Ribeiro. As pedras ensinam-nos o caminho desses povos. Apesar de os cataclismos naturais e políticos, chega aos nossos dias um desenho arqueológico muito completo. «Conhecem-se mais de 1700 sítios arqueológicos na região, ainda que muitos deles já tenham sido destruídos ou não apresentem potencial assinalável para a investigação e/ou valorização. A maior parte destes vestígios situam-se no litoral e, por razões óbvias, tem sido no litoral que a destruição do Património arqueológico se tem feito sentir mais. No barrocal e na serra as investigações da última década têm posto em evidência um património arqueológico igualmente

44 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

But the movement of external and internal influence that the geostrategic situation of the Algarve favored, didn’t stop the water from being absolutely decisive in the internal arrangement of populations along the territory. The hydrographic basins are “the first unit occupied by man. However, this primordial form of terrain elevation cannot be ascertained individually, as the adjacent basins are closely related to it, through the distribution of rainfall. Also, during the process of occupation, the necessity of exchange and contact has made the tribes of the valley to overcome the natural line of the “Fêsto” for communication and defense against their adjacent group. Therefore, to the clear borders defined by the basin, the fluid limit of the hemibasins next to it is opposed”, according to the explanation of the landscaping architects Viana Barreto, Castello Branco and Ponce Dentinho in the first Plan for Landscape Management of the Algarve in 1965. (14) They also underline: “Man always chose identical paths, even if they are more soft and rational. We found that the itineraries adopted for religious, military or commercial purposes are not foreign to these paths.”. Orlando Ribeiro had also studied, during the 1940’s, the behavior of the occupation of land in the Algarve Province, in a time where water distribution was still molded human geography. In fact, without the works undertaken for its capture, distribution and treatment, water was the first and only reason for the distribution of inhabitants throughout the mountain range, the barrocal and coastline. At the time, the geographer wrote about “the range, where large areas exist almost without no population whatsoever, no roads go through it, loneliness at the mercy of the woods and the cork tree forests, or periodically burned for the harvesting of cereal” (15). Only water allowed for the breaking of the rules of the highland emptiness in the Monchique mountain range and the Aljezur graben (gap) . In the first one, “the better soil and the abundance of water” invites the permanent settlement of a larger number of inhabitants,


Água Doce | 45

História do Algarve através da água


46 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Casal algarvio. Algarve couple.

abundante, pertencendo sobretudo à época islâmica», segundo o último Plano de Ordenamento do Algarve, realizado em 2004. (16) Em comparação com o resto do País, a investigação científica arqueológica no Algarve teve o início muito cedo. Os primeiros trabalhos começaram no final do século XIX, com Estácio da Veiga que faria a Carta Arqueológica do Algarve em 1878, e a organização do museu arqueológico do Algarve, em 1880. O levantamento dos sinais civilizacionais dá-nos a história da relação dos povos com a água e respectivos sistemas de captação, manutenção e distribuição que nos chegam de vestígios que o tempo, as mudanças naturais e o homem não apagaram.

where “the population swarms and appears to descend along the slopes, sprayed with mountain water, even over a soil of shale”. In the Aljezur graben, “a better soil with a lot of irrigation, forms a narrow strip of dwellers, from a bit to the east of Bordeira to Odeceixe, contrasting with the almost deserted areas of Espinhaço de Cão or the coast”, accordion to the same study by Orlando Ribeiro. The rocks teach us about the path of these peoples. Despite the natural and political cataclysms, a complete archeological outlook reached our days. “More than 1700 archeological sites are known in the region, even if a lot of them have already been destroyed or don’t present a relevant potential for investigation and recovery. Most of them are located in the coast, and, for obvious reasons, it’s been along the shore that the destruction of the archeological heritage has been felt more greatly. In the barrocal and the range, the investigations conducted during the last decade have highlighted an equally abundant archeological heritage, which belong mainly to the islamic era”, according to the last Plan for Landscape Management of the Algarve, which was put together in 2004. (16) In comparison to the rest of the country, the archeological scientific investigation in the Algarve started very soon. The first works began at the end of the 19th century, with Estácio da Veiga, who would eventually make the Archeological chart of the Algarve in 1878, and the organization of the archeological museum of the Algarve in 1880. The survey of civilizational signs gives us the story of the people’s relationship with water and the systems used by them for its capture, storage and distribution, coming to us through remains that time, natural transformations and Man itself weren’t able to erase.

 Olho de mó, Algoz. Millstone “eye”, Algoz.

Água Doce | 47

História do Algarve através da água


“A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética. Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação. Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.”

Sophia de Mello Breyner Andersen

48 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Pote algarvio.  Algarve pot.

Água Doce | 49

História do Algarve através da água


O Império da água

The empire of water

O Império romano construía uma espécie de rede pública de distribuição de água para fixar as populações que o serviam.

N

as aldeias mais chegadas à serra a água era colectiva. Os poços da colectividade mantinham a água limpa para usar na alimentação. A água para irrigar era mais rara. Implicava uma estrutura curiosa, comum a todo o Mediterrâneo e que também existiu no Algarve: um sistema colectivo de controlo dos canais de água e dos acessos desde a mina, onde a água era recolhida numa alberga, um depósito que podia ser feito em pedra ou em terra, de onde saía um canal principal. Daí começava a haver separações para as terras de cada um.

he Roman empire was building a sort of public network for distributing water, in order to settle the populations that served it. In the villages located more closely to the mountain range, it was a collective asset. The wells of the collectivity kept it clean for food. Water for irrigation was more difficult and rare. It implied a curious structure, common to the whole of the Mediterranean, which also existed in the Algarve: a collective system for the control of canals and tappings from the mines, where water was collected in an alberga, a deposit that could be made out of stone or dirt, of which a main canal emerged. From it, separate divisions headed for each land.

«Era uma espécie de árvore, com um tronco comum, que depois se ia separando em pequenos veios controlados para a rega. Isso implicava uma estrutura comunitária com poderes colectivos da aldeia com um nome próprio - aquele que trata das águas que sabe e controla a hora em que corre para um e depois corre para o outro», explica Cláudio Torres.

“It was a kind of tree, a common branch, that was then separated in small controlled veins for irrigation. This implied a community structure in the village with collective powers and a name of its own - the one who takes care of the waters knows and controls the hour when it flows to each area”, Cláudio Torres explains.

Havia pontos onde a água corria numa espécie de sistema de abastecimento público de águas com fontanários. Mas era diferente do que acontece no Norte de Portugal onde qualquer aldeia tem a sua bica que apanha água de uma nascente. No Sul não há água a correr dessa forma. As fontes do Sul, habitualmente, são de mergulho: têm uma nascente mas não há água a correr com desperdício, fica guardada, vai-se buscar com um cântaro e leva-se para casa onde, por sua vez, existe também uma cisterna que capta as chuvas.

There were places where water flowed in a kind of supply system with public fountains. But it was different from what happens up North, where every village has its own tap stand, which is connected to an underground spring. In the South, water doesn’t flow that way. The fountains in the South are usually submerged: they have a spring, but it doesn’t flow wastefully. Water is stored and collected with a clay pitcher that is taken home, where at the same time there is a cistern that also stores water from rainfall.

Desde a urbanização – que se lançou no tempo do Império romano - que houve cisternas. «É difícil datá-las de antes dos romanos porque não havia urbanização e não se encontra uma prova anterior. É na altura romana mas, principalmente, na época islâmica que surgem as cisternas como grande tanque de recolha de água», precisa o arqueólogo. Para além da água que é recolhida na cisterna, cada casa tinha uma grande talha, um poço de barro, para guardar a

50 |

T

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Ever since the beginning of urban development - which was started during the Roman Empire - there always have been cisterns. “It’s difficult to date them before the romans, as there was no urbanism and no previous evidence can be found. It’s during the roman


Água Doce | 51

História do Algarve através da água


 Mosaicos romanos, Estação Arqueológica do Cerro da Villa. Roman mosaic, Cerro da Villa Archeological Station.

água da casa. Ficava num pequeno compartimento próprio, geralmente com lugar para dois potes de barro especiais, vidrados da parte de cima e, na parte de baixo, por vidrar, porosos, para permitir que a água escorresse e se mantivesse mais fresca, pela evaporação. Tinham uma boca, com tampa, e retirava-se a água por cima, com uma concha ou um caço, como se diz no Sul. Era um produto raro, precioso, muito cuidado. Essa peça, sobretudo na época islâmica, é o ponto-chave da casa, no pátio interior, com um quarto especial para a água. Existe até nas casas mais pequenas e mais pobres, sem sistema de recolha de telhados para comportarem a recolha numa cisterna. A talha ocupava um dos compartimentos mais importantes da casa, construído só para ela. Cláudio Torres fez o levantamento de um sofisticado sistema colectivo de captação de águas. «Nas prospecções que fizemos, encontrámos nas ruas de uma classe média pobre, sem cisterna. Resolviam a coisa com cisternas feitas pelas ruas calcetadas da vila velha que, de vez em quando, tinham uma grelha, uma pedra com furos que retinha a água que escorria das chuvas. Os buracos das pedras estavam tapados com rolhas de cortiça. Quando vinha a enxurrada, a água lavava as ruas e ficava suja. Quando estava limpa, tiravam-se as rolhas e a água ia para as cisternas comuns que abasteciam a casa de baixo». As pessoas aproveitavam todas as ruas inclinadas para recolherem todos os pingos que caíam e iam para uma cisterna comum. Também dentro da cisterna se cuidava a qualidade da água deitando um pouco de cal que assim mantinha a água limpa e não deixava que a bicharada se alimentasse e crescesse. Havia também o hábito de ter, dentro da cisterna, um ou dois peixes que iam comendo larvas, mosquitos e outros insectos, com uma técnica muito avançada para manter a água limpa e sempre útil para ser consumida. Não se pode dizer ainda que se tratava de um sistema de saneamento básico mas de um sistema de recolha de águas. As fontes secavam no Verão e, assim, construíam cisternas locais em vez de irem buscar a água ao rio, o que saía caro porque era preciso pagar aos aguadeiros que - com os burros, cangas e cântaros - a transportavam de longe.

52 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

period, but mainly during the islamic era, that cisterns appear as great tanks for collecting water”, the archeologist outlines. In addition to the water stored in the cistern, each house had a talha, a large clay vase, for storing it at home. It was kept in a small compartment dedicated to it, usually with space for two special clay pots, glazed at the top and porous in the bottom, to allow for water to run and keep cool, through evaporation. They had an opening with a lid, and the water was taken from the top, with a scoop or a caço, as it is called in the South. It was a rare product, precious and well taken care of. That piece, specially in the islamic age, is the key point of the house, located in the inner patio, with a special room for water that existed even in the smaller and poorer houses, which didn’t have a system in the ceilings for conducting rain water to the cistern. The talha occupied one of the most important compartments in the house, built specially for it. Cláudio Torres was responsible for conducting a survey of a sophisticated collective system of water catchment. “In the excavations we made, we found it on the streets where the lower middle class houses were located, the ones without a cistern. They worked it out with cisterns built through the cobblestone streets of the old village, which intermittently had a grid - a stone with holes that retained the water that flowed from rainfall. The holes in those stones were covered with cork caps. When the flood came, water cleaned the streets and became dirty. When it was clean, the caps were removed and the water entered the common cisterns that supplied the house below”. The people profited from the steep streets for collecting every drop that fell from the sky into a common reservoir. Inside it, the quality of the water was taken care of, by inserting a bit of quicklime that kept it clean and didn’t allow bugs to feed on it and grow inside. There was also a habit of keeping inside the cistern one or two fishes that ate worms, mosquitos and other insects, a very advanced technique for keeping the water clean and always ready for consumption.


Os romanos organizaram a cidade monumental, onde se mostra o poder, o Império. É uma polis com edifícios enormes, o anfiteatro, os grandes banhos - a água faz parte das cerimónias do poder que pedem muita água. Por vezes, é preciso ir buscá-la longe, a quilómetros de distância, para que venha em aquedutos caríssimos, feitos para alimentar o espectáculo do poder. No Algarve não há cidades monumentais - como Sevilha, Córdova, Mérida e outras – mas dá-se o mesmo fenómeno de captação de águas em quantidade para as Villas. Uma Villa é um palácio rural de um senhor abastado, um pequeno paraíso. A água é fundamental para manter os jardins e para refrescar o espaço. «Na verdade, a Villa, com os tanques interiores, piscinas, pavimentos com mosaicos, precisa de muita água. Há uma série de aquedutos no Algarve que serviam várias grandes Villas senhoriais que tinham o controlo da água nas terras ricas da costa». (17) Os Romanos tinham a actividade de pesca, perto do mar e, também, a água doce que vinha da serra para edifícios de banhos. A água vinha menos para a cidade porque não havia necessidades monumentais, como acontecia em Mérida, onde enormes aquedutos iam buscar a água longe. Através de séculos, os algarvios conviveram com estes vestígios hidráulicos que seriam quase apagados do mapa pela violência das guerras e dos terramotos. A referência científica começou a ser registada no último quartel do século XIX, em 1876, quando se pôs a descoberto a antiga Ossonoba da mítica catedral que, já no século III, em pleno domínio romano, enviava os seus bispos aos concílios de Espanha. E lá estava, bem perto do templo, um opulento edifício balnear com 51 compartimentos, casas de habitação, oficinas, arruamentos e canalizações no que ficou conhecido como as ruínas de Milreu. «Há muitos compartimentos ou tinas de diferentes formas, quadradas, redondas, semicirculares. São forradas de mosaicos (peixes, desenhos geométricos) e desce-se para lá também por escadas forradas de mosaicos. (...) Na parte superior das termas há um poço fundo, antigo; e à entrada das mesmas uma edificação de tijolo a que Estácio Veiga chamava Basílica. Quando as piscinas estavam todas revestidas de 14 mosaico, hoje na máxima parte barbaramente destruído, deviam produzir aspecto muito agradável», identifica Santos Rocha. Do tempo do Império, descobre-se um elaborado sistema de distribuição da água que acompanhou as várias fases de evo-

We can’t speak yet of a basic sanitation system but it was indeed a system for collecting water. Sources dried up during the Summer and therefore local cisterns were built, instead of getting water in the river, which was expensive, since it was necessary to pay watermen that - through donkeys, yokes and pots - brought it from afar. The Romans created the concept of monumental cities, where Power and the Empire are showcased. It’s a polis with huge buildings, an amphitheatre and great baths - water is a part of the power ceremonials, which require a great amount of it. Sometimes you have to bring it from miles away, so that it’s transported in very expensive aqueducts, built for nurturing the spectacle of power. In the Algarve there are no monumental cities - like Seville, Cordoba, Merida, among others - but the same phenomenon of water collection takes place, in the Villas. A Villa is a rural palace of a wealthy lord, a small piece of paradise. Water is fundamental for maintaining the gardens and refreshing the area. “In fact, the Villa, with its interior tanks, pools and tiled pavements, needs a lot of water. There are a series of aqueducts in the Algarve that served the great manors, which held control of the water in the rich lands of the coast”. They kept their fishing activity near the sea and the fresh water that came from the highlands also served some bathing facilities. Water didn’t come so much to the city because there were no monumental needs, like it happened in Merida, where huge aqueducts brought the water from far away. The Algarvios lived close to these hydraulic remains throughout the centuries. They were almost completely wiped out by wars and earthquakes. As we mentioned, scientific reference began to be recorded in the last quarter of the 19th century, in 1876, when the old city of Ossonoba was uncovered with its mythical cathedral, that in the 3rd century, during the full might of the roman power, sent its bishops for the councils in Spain. Right near the temple, there was a lush bathing facility with 51 compartments, homes for living, workshops,

Água Doce | 53

História do Algarve através da água


 

Ilustrações do Arqº José António Cavaco sobre a vida no Cerro da Villa. Drawings by architect José António Cavaco about life at Cerro da Villa.

GLOSSÁRIO DA ÁGUA ROMANA:

GLOSSARY OF ROMAN WATER

Apodyterium – Balneários Caldarium – Sala dos banhos quentes Frigidarium – Sala de banhos frios Laconicum – Sala circular aquecida para banhos a vapor Natatio – Tanque de água fria parecido com as piscinas actuais Peristylium – Pátio de colunas com um tanque ao centro Praefurnium – Fornalhas de aquecimento da água e do ar Tepidarium – Sala de banhos e água tépida Thermae – Local dos banhos públicos

Apodyterium – Baths Caldarium – Hot baths room Frigidarium – Cold baths room Laconicum – Heated circular room for steam baths Natatio – Cold water tank similar to today’s pools Peristylium – Patio with columns with a tank at the center Praefurnium – Furnaces for heating water and air Tepidarium – Room for baths and tepid water Thermae – Public baths

54 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 55

História do Algarve através da água


lução arquitectónica. Quintela Cardoso Mascarenhas dá como exemplo deste requinte a existência de um pequeno tanque de decantação com um ralo de bronze destinado a reter os detritos. O tanque, tal como outros reservatórios, apresenta nas arestas interiores um ressalto semi convexo para evitar o fendimento e facilitar a limpeza. No perímetro do Cerro da Villa, por exemplo, encontra-se ainda uma variedade de canais a céu aberto «com derivações, tanques, desarenadores e ralos» para usos diversos, em diferentes locais. Pela pesquisa realizada, pensa-se que a barragem esteve em funcionamento desde a época romana até tempos recentes. As mós, azenhas e outros materiais encontrados são quase actuais. Tudo se encontra hoje soterrado e ajardinado. Apenas a água subsiste, alimentando dois bonitos lagos do Laguna Golf Course de Vilamoura. A justificação para a construção destas barragens prende-se com as dificuldades de evacuação das cheias, permitindo deste modo fazer-se o controlo das águas e o seu aproveitamento. Estas estruturas hidráulicas garantiam o abastecimento doméstico e possibilitavam culturas de regadio.

streets and plumbings, forming what became known as the ruins of Milreu. “There are a lot of compartments and bathtubs of different shapes, square, round, semicircular. They are lined with mosaics (forming fish and geometric figures) and you go down to them through stairs also decorated with mosaic. (…) In the upper part of the baths there is an old and deep well; at their doorstep, there is a brick construction that Estácio Veiga called “Basilica”. When the pools were all lined with mosaic, today mostly destroyed in a barbaric way, they must have looked amazing”, as Santos Rocha identifies. Ever since the times of the Empire, an elaborate system for water distribution has followed the multiple phases of architectural evolution. Quintela Cardoso Mascarenhas points as an example of this kind of sophistication the existence of a small decanter tank with a small bronze grate for retaining debris. The tank, like other reservoirs, presents along its interior edges a slightly convex border for avoiding cracks and easing up the cleansing. In the perimeter of the Cerro da Villa, for example, a variety of open-air canals can still be found, “with ramifications, tanks, grit chambers and drains” for multiple uses, in different places. According to the research conducted, it is thought that the dam was working from the roman age until more recent times. The grinding wheels, the mills and other found materials are almost like the ones we find today. These days, everything is buried and landscaped. Only the water remains, feeding two beautiful ponds in Vilamoura’s Laguna Golf Course. The excuse for building these two dams relates with the difficulties of evacuation of floods, thus allowing control of the waters, giving them a useful purpose. These hydraulic structures guaranteed domestic supply as well as making irrigation cultures possible.

 Sistema romano de aquecimento da água numa Villa. Roman system for heating water in a Villa.

56 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Among other ancient scribes, Pliny praises the artichokes and the lettuce which flourished thanks to the roman watering technique built by the romans in the Iberian Peninsula. In later Antiquity, Saint Isidore of Seville, delight-


Plínio, entre outros escritores antigos, gaba as alcachofras e as alfaces e que a rega construída pelos romanos na Península Ibérica fazia florescer. Já na Antiguidade tardia, Santo Isidoro de Sevilha refere-se, deliciado, às «couves, nabos, rabanetes, aipos, alfaces, alhos, feijão verde, pepino, abóboras e espargos, e determinado tipo de uvas, destinados ao consumo urbano». Também as mudanças geográficas e geológicas que ocorreram ao longo dos tempos apagaram os sinais da presença da relação dos antigos com a água. De acordo com a investigadora Maria José Cadete, nas zonas alagadiças, com profundidade e vegetação densa, junto à Marina de Vilamoura, não é possível estudar o único tanque decorativo romano, forrado a mosaico policromático com motivos marítimos, por se encontrar submerso, neste caso pela erosão no litoral. Apesar do desgaste dos séculos, Quintela Cardoso Mascarenhas consegue localizar a presença romana no domínio da água algarvia pelo menos através de oito das 15 barragens erigidas pelo Império no território que hoje é Portugal. No Algarve registam-se barragens romanas em Alcoutim, Vila Real de Santo António, duas em Lagos, Vale Tisnado (Loulé), Silves e Lagoa. Importa ressaltar que as barragens para desviar a água de uma corrente para um canal são muito difundidas pelos romanos mas, como técnica, datam de um tempo muito anterior ao Império. «Constituem o dispositivo hidráulico mais simples de se fazer e é uma invenção pré-histórica. Muçulmanos e cristãos conheciam a técnica que estava amplamente difundida pelo Império romano assim como pela antiga Arábia», situa o investigador da Universidade de Princeton, Thomas Glick (18). A construção de Barragens é apenas um dos aspectos da tecnologia difundida pelos romanos. «Ao contrário do que muitas vezes se supõe, os romanos não exploraram apenas as águas de pé, deixando aos Árabes a introdução do poço e dos sistemas de elevação das águas profundas: os vestígios de poços romanos são frequentes», acrescenta Jorge Alarcão, no «Domínio Romano em Portugal». (19)

ed, mentions the “cabbages, turnips, radishes, celery, lettuce, garlic, needle beans, cucumbers, pumpkins, asparagus and a certain type of grapes destined for urban consumption”. The geographic and geological changes that occurred through the centuries also erased the signs of the presence of the ancients’ relation with water. According to the researcher Maria José Cadete, in the deep and densely vegetated floodplains next to Vilamoura’s Marina, it isn’t possible to study the single roman decorative tank remaining, lined with polychromic mosaic with sea motifs, as it is submerged, in this case, by the erosion that took place in the area. Despite the deterioration of the centuries, Quintela Cardoso Mascarenhas managed to locate the roman presence in the domain of Algarve’s water at least through eight of the 48 dams built by the Empire in the area which forms present-day Portugal. In the Algarve, we can find roman dams in Alcoutim, Vila Real de Santo António, two in Lagos, Vale Tisnado (Loulé), Silves and Lagoa. It’s important to note that dams used for diverting water from a current to a canal are widespread by the romans but, as a technique, they very much predate the Empire. “They constitute the hydraulic device which is simplest to achieve and they are a pre-historic invention. Muslims and Christians knew the technique, which was vastly widespread throughout the Roman Empire, as well as ancient Arabia”, places Thomas Glick, researcher for Princeton University. The building of dams is just one of the aspects of the technology spread by the romans. “Unlike common belief, romans didn’t simply explore the waters near the shore, leaving to the Arabs the invention of the well and the systems for elevating deep waters: the remains of roman wells are frequent”, adds Jorge Alarcão, in “Roman Domain in Portugal”. (19)

Água Doce | 57

História do Algarve através da água


ď‚ Poço e triclinium romanos no Cerro da Villa. Roman well and triclinium at Cerro da Villa.

During centuries, the aqueduct of Vale Tisnado served the farmers of Quarteira. The scientists registered its greatness. Today, only some notes for cultural tourism remain. The dam of Vale Tisnado, in Quarteira, was the largest roman dam known south of the Tagus and was provided with a sophisticated technique for water control. Besides domestic and thermal usage, this enormous structure could also satisfy other needs like supplying fountains and gardens, agricultural explorations, and infrastructures for transformation industry, like fish, dyes and iron working.

What to do with the ruins? How to honor the memory and vocation of places, along with their usage from one era to the next?

58 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The great dam was destined to store the water of a small tributary from the left bank of the Quarteira river and other local springs, serving the Cerro da Villa and its thermal units. As such, there was a small aqueduct of about two kilometers with drains in Opus Signinum, covered by a dome made of bricks and pieces of ceramics. In that dome - according to a work by Maria JosĂŠ Cadete, (108) fragments were found which could be dated from mid-1st century to late 2nd century. The length of the wall was around 220 meters, with a basin of 37,5 square kilometers, supplied by rainwater and springs.


Durante séculos, o aqueduto do Vale Tesnado serviu lavradores da Quarteira. Cientistas registaram a sua grandeza. Hoje sobram apontamentos para turismo cultural.

O que fazer com as ruínas? Como honrar a memória e a vocação dos sítios a par do uso de cada tempo?

A barragem do Vale Tesnado, era o maior dique romano de que há conhecimento ao sul do Tejo e estava munida de uma sofisticada técnica de controlo das águas. Para além dos usos domésticos e termais, esta grande estrutura podia ainda satisfazer outras necessidades como a alimentação de fontes e jardins, culturas agrícolas e infra-estruturas de transformação como o pescado, a tinturaria e a metalurgia. A grande barragem destinava-se a armazenar a água de um pequeno afluente da margem esquerda da Ribeira de Quarteira e de outras nascentes locais, servindo o Cerro da Villa e as suas unidades termais. Havia então um pequeno aqueduto de cerca de dois quilómetros com a canalização em opus Signinum, coberta por uma abóbada feita de tijoleiras e pedaços de cerâmica. Nessa abóbada - segundo um trabalho de Maria José Cadete, (108) foram então encontrados fragmentos datáveis de meados do século I a finais do século II. O comprimento do muro rondava os 220 metros, com uma bacia de 37,5 km2 alimentada por águas das chuvas e por nascentes.

Água Doce | 59

História do Algarve através da água


According to Quintela Cardoso Mascarenhas, the dam had “a bottom outlet, which consisted in a domed chamber, with a block which could be lifted up to 120 degrees, ending in two cylindric tubes, punctured by pegs made of wood and pinus sp. The device for making water enter the dam was also recognized - walls and threshold of opus incertum, where stone blocks were inserted. The two walls had slots for installing a floodgate. The sand remover was located downstream of the water catchment. From there the aqueduct was developed as an underground canal, with a brick dome, measuring 1600 meters all the way to Cerro da Villa.” The connection of the dam with the Villa was made by gravity, through a system of water entrapment adopted by the romans. The discharge structure was built as a draining canal of flood waters, thus establishing a safety device for people and possessions. The dam was probably the work of rich farmers in the region, and later a property of the portuguese kingdom. Records exist of the economical importance of these lands through the centuries, with reference to their lease during the kingdoms of D. Dinis and D. Afonso IV. Later, D. Afonso V and D. João II gave privilege to these farmers of Reguengo da Quarteira. But scientific interest came too late for it to be saved, even if it was possible to do a survey of what existed. The water conducting canal was fairly preserved when, in 1987, the archeologist Martins de Matos conducted the works for salvaging the existing remains. His team tried to identify the roman monument after the destruction caused on the upper part of the dam by a bulldozer, which uncovered some structures. Already in the 60’s, part of the aqueduct had been destroyed for opening a path, and since then researchers Ferrajota and Afonso do Paço fought a battle in vain for its classification and preservation. In 1987, a photographic record of the structure was taken, along with various surveys and the reconnaissance of the aqueduct from the dam to the Cerro. But, “with the movements of land for building golf courses and closed condominiums, there are practically no remains of this archeological site, thus erased by the action of Man”. (109) The magazine Al-’Ulyà published part of this work. In it we can ascertain, through the geographical charts of Portugal from 1951 to 1979 (only 28 years), the enormous difference in the configuration of waterlines, the usage of terrain and even the toponymy. “In the chart of 1951, an agricultural reality (of the primary economic sector) can still be identified, in

60 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

which the property was divided in plots and donated to small farmers for various explorations, generally irrigation agriculture, as that place has a lot of water. It’s said that about 600 families worked the land. In this chart, we must consider the reference to the Olival and the river of Vale Tisnado, the Vala Nova and of the Marmeleiros, the River of Quarteira and the Cerro da Vila. One must also note that all of these lines of water were gathered to form a connection to the sea. They were open especially during the winter, during the high tides. In the chart of 1979, the reality is quite a different one. The river of Vale Tisnado was deflected and routed towards the Lago Azul [Blue Lake]. Many parts of this canal have been progressively covered, and the part which is still is open contains no water at all”.(110) But sometimes, Tourism also saves heritage. The Archeological Station of Cerro da Villa, for example, would hardly be saved, classified and exhibited if, under the pressure of archeologists, the opportunity for cultural sightseeing didn’t appear. “During the wave of heritage destruction, brought upon by the real estate avalanche of the second half of the 20th century, the Archeological Station of the Cerro da Villa is a notable exception, contributing for understanding the presence of the roman civilization in the Algarve. It was created, protected and exhibited according to the sensibility and shared wishes of promoters such as the Municipality of Loulé, the IPPAR and the Institute for Tourism. By reading these ruins, we can today be transported to what probably was the opulent life of the rich merchants of the 1st century A.D. The Lusotur SA museum exhibits the place were large-scale fish preservation took place, producing a delicacy which was much loved in Rome. The pomp of the Villa and the scale of the public baths are signs of a bigger greatness which spreads itself through a series of secondary constructions, all of them comprising the catchment, transportation and treatment of water. (see glossary at pages 54 and 55).. ”. Says the archeologist Cláudio Torres, who turned Mértola into a more attractive place after his investigations about the paleochristian and islamic eras. “Much of the development of the country’s interior, related with issues about border history, are zones which will have a possible future through the development of a certain type of tourism, which is not the tourism of the sun and the beach. That will always exist and have its own logic. But the cultural tourism of the interior regions of the country will create devices of development, because of their specificity”.


Segundo Quintela Cardoso Mascarenhas, a barragem tinha «uma descarga de fundo, constituída por uma câmara abobadada, notando-se à direita um bloco basculado de 120º, terminando por dois tubos cilíndricos obturados por rolhões de madeira e de pinus sp. Reconheceu-se disposição para a tomada de água na barragem que era constituída por muros e soleira de opus incertum, onde se inseriam blocos de pedra, os dois muros providos de ranhuras para a instalação de uma comporta. O desarenador situava-se a jusante da tomada de água, local a partir do qual se desenvolvia o aqueduto, canal subterrâneo, com abóbada de tijoleira, com uma extensão de cerca de 1600 metros até ao local do Cerro da Vila». A ligação da barragem com a Villa dava-se por gravidade segundo um sistema de represamento de águas adoptado pelos romanos. A estrutura de descarga foi feita como canal de escoamento das águas das cheias constituindo, assim, um meio de segurança para pessoas e bens. Terá sido obra de ricos lavradores romanos na região e, mais tarde, propriedade da Coroa portuguesa. Há registos da importância económica destas terras, ao longo dos séculos, com referências a aforamentos nos reinados de D. Dinis e de D. Afonso IV. Mais tarde, D. Afonso V e D. João II dão cartas de privilégio a estes lavradores do Reguengo da Quarteira. Mas o interesse científico foi tardio para sua preservação, apesar de se ter conseguido o levantamento do que existia. O canal adutor de águas ainda estava bem conservado quando, em 1987, o arqueólogo Martins de Matos conduziu os trabalhos de salvamento dos vestígios existentes. A sua equipa tentou identificar o monumento romano depois da destruição causada na parte superior da barragem por uma máquina escavadora que destapou algumas estruturas. Já nos anos 60, parte do aqueduto tinha sido destruído para a abertura de um caminho e, desde então, os investigadores Ferrajota e Afonso do Paço travaram ingloriamente a batalha para a sua classificação e preservação. Em 1987 foi então feito um levantamento fotográfico da estrutura, sondagens várias e o reconhecimento do aqueduto da barragem até ao Cerro. Mas «com os trabalhos de terraplanagem para construir campos de golfe e condomínios fechados, não restam praticamente vestígios deste sítio arqueológico que deste modo desapareceu pela acção do homem». (109)

A revista Al-Ulyà publicou parte deste trabalho. Ali se verifica também, pelas cartas geográficas de Portugal de 1951 e 1979, a diferença abissal que, apenas em

28 anos, se pode registar na configuração das linhas de água, no uso dos solos e, até, na toponímia. «Na carta de 1951 temos ainda identificada uma realidade agrícola (sector económico primário) em que a propriedade era dividida em talhões, cedidos a pequenos agricultores para explorações diversas, em geral agricultura de regadio, por no lugar existir muita água. Fala-se que seriam cerca de 600 rendeiros que trabalhavam a terra com as suas famílias. Nesta carta há a considerar as referências ao Olival e à Ribeira do Vale Tisnado, à Vala Nova e dos Marmeleiros, à Ribeira de Quarteira e ao Cerro da Vila. É ainda de referir que todas estas linhas de água se juntavam para formar a ligação ao mar. Estavam abertas em especial no Inverno, na época das marés altas. Na carta de 1979, a realidade é já outra bem diferente. A Ribeira do Vale Tisnado foi desviada e encaminhada para o Lago Azul. Muitos troços do canal da têm sido progressivamente tapados e a parte em que ainda se encontra a céu aberto, não tem água». (110) Mas, por vezes, é o Turismo que salva o património. A Estação Arqueológica do Cerro da Villa, por exemplo, dificilmente teria sido poupada, classificada e exposta se, à pressão dos arqueólogos, não tivesse sucedido a oportunidade do turismo cultural. Na maré de destruição patrimonial, propiciada pela avalanche imobiliária da 2ª metade do século XX, a Estação Arqueológica do Cerro da Villa constitui uma excepção notável que contribui para a compreensão da presença da civilização romana no Algarve. Foi criada, classificada e exposta dada a sensibilidade e conjugação de vontades dos promotores, da Câmara de Loulé, do IPPAR e do Instituto de Apoio ao Turismo. Ao ler estas ruínas, hoje podemos transportar-nos ao que seria a vida opulenta dos ricos mercadores romanos do século I d.C.. O museu da Lusotur SA exibe o local de produção em grande escala de conservas de peixe, iguaria muito apreciada em Roma. O fausto da Villa e a escala dos balneários públicos são sinais de uma grandeza maior que se distribui por uma série de construções secundárias, todas elas pressupondo a captação, transporte e tratamento de águas. Diz o arqueólogo Cláudio Torres, que tornou Mértola mais atractiva depois das suas investigações sobre o período paleocristão e islâmico. «Muito do desenvolvimento do interior do nosso País, relacionadas com questões da história das fronteiras, são zonas que vão ter futuro possível através de um desenvolvimento de um certo tipo de turismo, que não é o turismo de sol e praia. Esse haverá sempre e tem a sua lógica. Mas o turismo cultural das regiões do interior vai criar mecanismos de desenvolvimento pela sua especificidade».

Água Doce | 61

História do Algarve através da água


Águas mouras

Nora abandonada, Quarteira.  Abandoned waterwheel, Quarteira. 

Moorish waters

O que distinguirá, afinal, as duas grandes civilizações - romana e islâmica - no que toca à gestão da água no Algarve?

N

ão é fácil distingui-las porque o mundo Mediterrâneo é o mesmo. As duas civilizações intrincam-se perfeitamente uma na outra, têm origens comuns. Mas cada poder que se institui também institui as suas técnicas e organização. O mundo árabe é diferente do romano. Em época islâmica, há uma abertura enorme do Mediterrâneo que incorpora novas civilizações”, responde Cláudio Torres. Com a islamização dá-se a entrada da influência da Pérsia e da Índia. Entram tecnologias e hábitos desses povos que vão influenciar o mundo Mediterrâneo. As tropas que fazem as conquistas trazem pequeníssimas influências. «Os soldados, habitualmente, nunca trazem nada de novo. Matam. Quem trás, depois, são os comerciantes» (20). A principal influência é a da troca. Em suma: na época muçulmana, o mundo abre-se ao Oriente. Os romanos estavam mais circunscritos ao Mediterrâneo. «Deu-se a implantação de técnicas hidráulicas orientais originando um novo estilo de agricultura a que os escritores medievais árabes de agronomia chamaram de filãha hindyya ou agricultura indiana», reforça Glick. (21) Os novos produtos não poderiam crescer sem a introdução de um sistema de rega revolucionário que passasse a manter vivas as plantas durante a secura do Verão. Esses cultivos de regadio incluíam o arroz, a cana do açúcar, limões e melancias, entre outros. O arqueólogo Cláudio Torres chega a considerar a entrada, em profundidade, de muitas novidades agrícolas - legumes e frutas que antes não existiam

62 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

W

hat will, after all, establish the difference between the two great civilizations - roman and islamic - in the chapter of water management in the Algarve? “They are not easy to tell apart because they exist under the same Mediterranean world. The two civilizations are perfectly intertwined into one another and share common origins. Even so, each established power also sets its own techniques and organization. The arab world is different from the roman. In the islamic era, there is a huge opening of the Mediterranean sea, incorporating new civilizations”, answers Cláudio Torres.

The spread of Islam marks the entrance of Persian and Indian influence. Technologies and habits from those peoples also come with them, and influence the whole of the mediterranean world. The troops that proceed to conquer the land bring little to no influence at all. “The soldiers usually never bring anything new with them. They just kill. The ones who bring it afterwards are the merchants”(20). The main influence is that of the exchange. In short: during the muslim age, the world opens up to the East. The romans were always confined to the Mediterranean. “The implantation of eastern hydraulic techniques took place, giving birth to a new style of agriculture, to which medieval arab agronomy writers called filãha hindyya or indian agriculture”, Glick stresses. (21)


Água Doce | 63

História do Algarve através da água


- como um dos aspectos mais interessantes da época islâmica. Produtos que, como se disse, só puderam ser introduzidos por causa do novo sistema de irrigação e de uma série de estruturas inovadoras.

The new products wouldn’t be able to grow without the introduction of a revolutionary watering system that was able to keep plants alive during the dryness of the Summer.

Assim, pode dizer-se que a agricultura romana era de grande produção, para levar para as cidades. É por isso que, a partir do século III na Península e no Norte de África, as grandes Vilas romanas são enormes máquinas agrícolas para produzirem trigo, vinho e azeite. São quase monoculturas, extensivas, para exportar, para alimentarem as grandes cidades e os interesses dos monopólios que estavam organizados com o Império.

These water-intensive cultivations include rice, sugar cane, lemons and watermelons, among others. Archeologist Cláudio Torres even considers the profound introduction of many agricultural novelties - vegetables and fruit that didn’t exist before - as one of the most interesting apects of the islamic age. Products that, as referred, were only able to be introduced because of the new irrigation system and a series of innovative structures.

Na época islâmica dá-se uma pulverização à escala local. Política e militarmente, foram tentados vários impérios que falharam. Em alternativa, vão-se criando pequenas e múltiplas cidades que são a célula de produção agrícola no mundo islâmico. Na época romana, a cidade é um espectáculo, o grande monumento, com algum povoamento mas a população vive dispersa nas aldeias. Na islâmica, organiza-se uma espécie de Cidade Estado, com tradição mediterrânica, mais próxima daquilo que era a velha Polis grega – uma cidade com um território dependente. Consiste num espaço, em degraus que tem hortas riquíssimas e que controla as suas águas. Depois vem uma zona de sequeiro, para cereais, à qual se segue uma zona de mato, para a lenha. Finalmente, surge uma zona de pastoreio. E isto faz uma célula em que a cidade é a chave. O camponês trata das hortas, ali à volta, mas vive na cidade. Isto supôs a proliferação e organização das hortas. «A horta não exporta. Hoje podemos mandar alfaces para Amesterdão. Mas, na época, a horta e o pomar eram para consumo, constituíam a base alimentar das cidades» (22). Não se ganhava dinheiro a exportar. Só se leva de ali o que dá o sequeiro: trigo, vinho, amêndoa e azeite que podem ser comercializados a grandes distâncias. Apesar de as técnicas hidráulicas do Sul de Portugal virem da Antiguidade pré-clássica e clássica, os árabes acrescentariam uma intensidade de cultivo permitida por um novo sistema de rega de regadio. As técnicas variam com os períodos históricos e, também, com as características climáticas, hidrológicas e topográficas com engenhos que aproveitam a gravidade como transporte e a habilidade de artifícios para elevar a água. A falta de água era um estímulo para a inovação tecnológica como demonstra a multiplicidade de inventos hidráulicos difundidos.

«Tanto os muçulmanos como os cristãos (da Reconquista) tiveram dificuldades em manter em funcionamento os sistemas

64 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Therefore, we can say that roman agriculture was one of large production, for taking into cities and the monopoly interests that had their arrangements with the Empire. In the Islamic Era, a kind of local-scale pulverization takes place. Politically and militarily, a multitude of empires was tried. They all failed. As an alternative, small multiple cities are created, which form the agricultural production cell in the islamic world. In the roman age, the city is a showcase, a great monument, with some inhabitants, but with the majority of the population scattered throughout the villages. During the age of islam, a kind of city-state is born, with a mediterranean tradition, closer to what the old greek Polis was - a city with a surrounding territory depending on it. It consists of a space, of steps, with immensely rich vegetable gardens, with total control of its waters. It’s followed by an area of dry farming for cereals, succeeded by a forested area, for gathering firewood. Finally, there’s a zone of grazing for livestock. This forms a cell, in which the city is the key. The peasants take care of the farms. “The farm didn’t export anything. Today we can send lettuce to Amsterdam, but back then the farms and orchards were destined for local consumption, forming the basic food structure of the cities” (22). No money was earned from exporting. Only the dried up goods are taken away: wheat, wine, almonds and olive oil, which can be traded and sold very far away.


Húmido canto chega deste rio que foi lugar de festa e de viagem: ainda se ouve um canto nesta margem, um alaúde, um baile, a dança leve. Chega do mar um vento luminoso que toca a pedra ruiva do castelo: trás o gosto da amêndoa, da laranja, das rosas bravas , soltas sobre a terra. O Garb Al-Andaluz mostra as ruínas: nos poços, nas cisternas de arenito corre ainda o perfume nos vestidos esvoaçando leves sobre os corpos. Quem dera ouvir, agora, Ibne-Amar a ciciar os versos da paixão! Quem dera, em Silves, ver Al-Muthamid a oferecer-lhe a rosa do perdão!

Firmino Mendes

Água Doce | 65

História do Algarve através da água


urbanos romanos de condução de águas», refere ainda Thomas Glick, no estudo sobre a tecnologia na Espanha Medieval. Alguns arcos de aquedutos que, no século X, passaram a ser usados como muros de casas, são o testemunho mudo da perda da validade tecnológica romana. O historiador de Princeton diz ainda que, assim como os romanos combinaram canais e aquedutos, os muçulmanos souberam combinar diferentes mecanismos hidráulicos para formarem sistemas de abastecimento adequados. A «História das barragens» de Smith exemplifica um destes sistemas, em Córdova, «uma enorme barragem em ziguezague, que punha em marcha uma série de moinhos, de onde sobressaía num extremo que elevava a água e a depositava num aqueduto que a transportava para a cidade». Existe uma variedade enorme destes sistemas combinados de tal modo que as opiniões se dividem na sua classificação. Nem todos os poços minados podem ser considerados como galerias ou canais mas deixemos essa discussão para os especialistas sobre os sistemas de captação e transporte de águas no Mediterrâneo medieval. Basicamente, recomendava-se a construção dos poços junto aos rios para que a água fosse continuamente filtrada. Esta construção deveria ser feita em Agosto quando o fluxo da água é mais débil. Ibne al‟Awwãm revela que se pode dobrar o volume de captação de água através da construção de quatro de poços adjacentes, na mesma linha freática, com profundidades escalonadas. A variedade de noras também esgota as páginas dos manuais, conforme a região e as características do terreno. As cisternas, como se viu, resolviam parte do problema da in-

66 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Even though the hydraulic techniques of Southern Portugal come from pre-classic and classic Antiquity, the Arabs would add a new cultivation intensity, only made possible by a new watering system. The techniques vary with historical periods and also with climactic, hydrologic and topographic features, with devices that use gravity as transportation and clever means for elevating water. The scarcity of water stimulated technological innovation, as the widespread multiplicity of hydraulic inventions shows us. “Both muslims and christians (of the reconquest) had a hard time keeping the water conducting systems built by the romans from breaking down”, says Thomas Glick in the study about technology in Medieval Spain. Some aqueduct arches that in the 10th century, started being used as walls for houses are the silent witness of the loss of validity of roman technology. The Princeton historian also adds that, as well as the romans combined canals and aqueducts, muslims learned how to combine different hydraulic mechanisms for forming adequate supply systems. The “History of the Dams” by Smith exemplifies one of these systems, in Cordoba: “a huge dam built in a zig-zag, which set a series of mills in motion, with an end sticking out, on which water was elevated and depos-


Silves vista do rio Arade. Silves seen from the Arade

certeza das chuvas, organizando o abastecimento da água durante todo o ano. E existe uma grande variedade de cisternas em toda a bacia do Mediterrâneo. As mais cuidadas são, naturalmente, as que se dedicavam ao consumo humano nas casas e nas cidades. As primeiras chuvas serviam para a limpeza de todo o sistema: «Convinha que as primeiras águas limpassem de toda a sujidade essas superfícies», explica Teresa Gamito (23). Estas cisternas recebiam apenas as águas limpas captadas nos telhados, varandas e eirados. «Somente as chuvas seguintes canalizadas através de uma ampulheta, e daí para a cisterna. Até aos anos cinquenta do século XX, estas cisternas eram esvaziadas de dois em dois anos, cuidadosamente limpas, lavadas e caiadas» (24). A cal era um elemento de purificação indispensável, conforme relato anterior. Havia também as cisternas destinadas ao trabalho dos campos e que tinham associadas um ou mais eirados para a captação da água. Estes eram aproveitados as campanhas agrícolas, como a separação dos grãos ou a secagem dos frutos. Na Caramujeira, em Lagoa, ainda se pode observar uma destas cisternas agrícolas «mas o mais vulgar era o uso das noras captando as águas das correntes subterrâneas servindo a agricultura e as casas dos lavradores». (25)

No Algarve destaca-se como grande obra civilizacional islâmica ligada à água, a Cisterna da Moura, no centro da esplanada do Castelo de Silves. A estrutura tem dez metros de altura e cerca de 820 metros de sup, de abóbora abaulada e cinco naves de arcos de volta inteira sustentados por quatro ordens de colunas. Ainda em 1880, quando cheia, podia abastecer de água toda a população da cidade durante um ano. Para além do imperativo de defesa estratégico, a arqueóloga Teresa Gamito detecta na cisterna da Rua do Castelo uma ligação da água ao espírito: «sendo a localização da mesquita tão próxima da cisterna esta estaria, por certo, associada àquela, uma vez que os rituais islâmicos exigem a proximidade de um reservatório de água, ou mesmo de uma fonte, para as suas ablações antes das orações». A arqueóloga sugere que, à semelhança do que acontecia nas grandes cidades do al-Andalus, teria existido em Silves uma grande roda elevatória que extraía a água do Arade elevando-a para as grandes cisternas da cidade. «O próprio poço, patente no Museu Municipal de Arqueologia, é disso prova». Ali perto, também a Cisterna dos Cães, um poço de 60 metros

Cisterna da Moura no Castelo de Silves.  Moorish cistern at Silves’ Castle. 

ited in an aqueduct which carried it towards the city”. There is a huge variety of these combined systems, so many that they can be looked upon as galleries or canals, but let’s leave that discussion for specialists about collection systems and water transportation in the medieval Mediterranean. Basically, it was advised that the construction of the wells was made near rivers so that the water was continuously filtered. This work should be made in August, when the water flow was thinner. Ibne al’Awwãm reveals that you can double the rate of water intake through the construction of four adjacent wells, in the same groundwater line, at different depths. The variety of noras (water wheels) fills the pages of books on the subject, as they changed with region and features of terrain. The cisterns, as we saw, solved part of the problem that came with the uncertainty of rainfall, organizing the supply of water during the whole year. There is a great variety of cisterns throughout the whole Mediterranean basin. The more carefully prepared are, naturally, the ones which were dedicated to human consumption in the homes and at the cities. The first rains were useful for cleaning the whole system: “It was preferable that the first waters cleaned all smudge from those surfaces”, Teresa Gamito explains (23). These cisterns only gathered clean water collected in rooftops, balconies and terraces. “Only the following rain was drained through a hourglass. Until the 1950’s, these cisterns were emptied every two years, carefully cleaned, washed and whitewashed”. (24). Lime was an indispensable purifying element, according to this previous report. There were also cisterns aimed for working the fields, which had one terrace or more for water gathering. These were used in agricultural production, for separating grain or for drying fruit. In Caramujeira, Lagoa, one can still observe one of these agricultural cisterns “but the usage of water wheels was most common, catching water from underground currents and serving agriculture and the farmers’ houses”. (25)

Água Doce | 67

História do Algarve através da água


68 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Chegaram os cruzados e o silêncio Tocou o fundo de água da cisterna.

Firmino Mendes

Água Doce | 69

História do Algarve através da água


de profundidade, se impõe como monumento ao domínio muçulmano sobre a água. O Guia de Portugal define-a como uma «mina habilmente cavada pelos mouros no sentido vertical para lhes garantir o abastecimento de água em caso de cerco. Em quase toda a área do castelo se encontram construções subterrâneas cuja entrada consiste numa pequena abertura ao nível do solo: são os silos ou matmoras, espécie de celeiros muito usados pelos árabes. A todos estes silos, poços e cisternas se prendem lendas de mouras e de todos os pontos das muralhas o olhar se perde sobre os campos e montanhas que rodeiam Silves» (26).

O Algarve é fértil em lendas em torno da água. No Castelo de Alcoutim, praça-forte que defende o rio Guadiana, uma bonita agarena chora o cristão, seu namorado, morto pelo guerreiro mouro, seu Pai.

 Vista de Sanlúcar do Guadiana a partir de Alcoutim Sanlúcar of Guadiana seem from Alcoutim.

In the Algarve, one of the most notable Islamic civilizational works in the field of water is the Cisterna da Moura (the Moorish Maiden’s cistern), at the center of Silves’ Castle compound. the structure is 10 meters high and has about 820 meters of domed area with five complete turn arches, supported by four rows of columns. In 1880, when full, it could still supply the whole population of the city for a year. In addition to the mandatory strategic defense usage, the archeologist Teresa Gamito detects in the cistern of Castelo Street a connection of the water to the spirit: “as the mosque is so close to the cistern, the two should be probably connected, since the islamic rituals demand the proximity of a water reservoir or even a spring, for the ablations before prayer”. The archeologist suggests that, the same way happened in the great cities of the Al-Andalus, Silves must have had a great elevation wheel, which extracted water from the Arade river, transporting it to the large cisterns in the city. “The well itself, which can be seen in the Municipal Museum of Archeology, is proof of that”. Nearby, the Cisterna dos Cães (Dogs’ Cistern), a 60-meter deep well, stands as a monument to the muslim domain over water. The Guide of Portugal defines it as a “mine cleverly excavated by the muslims in a vertical direction for guaranteeing water supply in the case of a siege. Through almost the whole of the castle’s area there are underground constructions whose entrance consists of a small gap at ground level: these are the silos, or matmoras, a kind of barn widely used by the Arabs. All these silos, pits and cisterns are linked to legends of Moorish Maidens and from any place on the walls our gaze loses itself over the fields and mountains that surround Silves”. (26) The whole of the Algarve is rich in legends that revolve around the theme of water. In the Castle of Alcoutim, once a stronghold that defended the Guadiana river, a beautiful muslim girl weeps over her christian lover, killed by the moorish warrior, her Father. At the Cássima Fountain of Loulé, a tragic story

70 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Na Fonte Cássima de Loulé, dá-se a história trágica de três mouras náiades formosíssimas. As noites de luar lamentam a sua desdita. Mais além, outra linda moura surge das águas da cisterna árabe, na manhã de São João (o Baptista, também ligado à água), como Vénus da espuma das ondas... Daí que o Povo diga que «a água dorme em todas as noites e na de S. João está benta». (Ver capítulo Águas Santas) No período islâmico também havia uma estrutura comunitária rural para reger as questões da água. «Nas aldeias do Algarve, há provas documentais da época islâmica em que o poder da aldeia surge representado pelos velhos, pelos homens bons, reunidos em assembleia que tem o poder absoluto da aldeia. Este poder é o mais importante que precede o feudalismo que, por sua vez, irá dividir as terras por uma série de senhores. As comunidades estão lá mas passam a ser subordinadas ao dono da terra, do território, ao grande senhor que é o dono de tudo e de quem dependem completamente». (27) Nesta altura, o poder ainda não é feudal - é o poder da cidade. As aldeias pagam o tributo à cidade. Por isso chamamos tributária a esta sociedade islâmica, repartida em cidades, cada uma com o seu território, onde há comunidades e cada comunidade tem o seu poder próprio. São os velhos que têm o poder da aldeia e que decidem quanto se paga de imposto à cidade. «Quando vem o cobrador de impostos, é com eles que vai falar e são eles que resolvem os conflitos, principalmente os conflitos de água que é o que sempre acontece: um quer ficar com água mais tempo ou que faz um buraco e rouba a água central, etc.». (28) O controlo da água é o controlo político mais importante da terra.

is told of three strikingly beautiful moorish Naiads. The moonlit nights bemoan their downfall. Further still, another beautiful moorish maiden appears from the waters of the arab cistern in the morning of St. John (the Baptist, also related to water), like Venus from the waves… That’s why it’s a local saying that “water sleeps every night and in the night of St. John, it is holy”. (See the chapter Águas Santas) In the Islamic era, there was also a rural community structure for ruling over the affairs of water. “In the villages of the Algarve, there is written evidence from the islamic age, where the village’s power is represented by the elderly citizens, the good men, gathered in a council which hold absolute power over the village. This power is the most important before feudalism which, in turn, will divide the land over a series of Lords. The communities exist, but they are now under the rule of a higher figure, a great lord that owns everything and from whom they are completely dependent on”. (27) During the muslim period, power is not yet feudal - it belongs to the city. Villages pay tribute to it. That’s why we name this islamic society as tributary, separated in cities, each with its own territory, where there are communities and each one has its own power. The elders hold the power in the village and decide who much tax the city will collect. “When the tax collector comes, he talks to them and they are the ones how solve all conflicts, mainly the ones around water, with happens all the time: someone wants to keep water for a longer time, or drills a hole for stealing from the main cistern, etc.”. (28) Control of the water is the most important political control of the land.

Água Doce | 71

História do Algarve através da água


Fairy-making water The enchanted Moorish maidens inhabit fountains, wells, rivers, caves, sources, dolmens, hill forts and ruins. It is said that they live in a wonderful, labyrinthic world, deep inside the earth, with tunnels that cross mountains and lead to palaces of gold and crystal. They can only leave that kingdom – the “moirama” – during magical hours like midnight, midday, at sunrise or in the night of St. John. At that time, they abandon their serpent form and appear as fair-haired beautiful women, which spread figs and golden coins over mats in the fields, early in the morning. The 24th of June has roots in the ancient pagan festivities of Summer’s solstice. The fires symbolize the sun, the greatest fertilizer of them all. This is the night of the calendar which is most adequate for sortilege and divination in matters of love. In that day, all spells are broken.

72 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The flowers and the dew, collected between midnight and sunrise, cure diseases. As did the water drunk from seven fountains, before the break of dawn. With its treasures, the enchanted moorish maidens try to seduce unaware men so that they break their spells, turning them into beautiful girls. These men must submit to challenges of strength but, most of all, courage. They can’t be afraid of the serpent or the bull that embraces them. If they win, they break the spell. If they fail, they double it. There are many recipes for breaking spells. Some deal with the water which binds us to this book, like catching a humming bird which comes to sing for us at the eve of St. John’s day, or sprinkling the the soil where the maiden stands with water from dough done in the night of St. John. Or even to eat fritters which were made with river water at the eve of that day.


 Fonte da Benémola, Querença. Benémola Fountain, Querença.

Água que gera fadas As mouras encantadas habitam em fontes, poços, rios, grutas, minas, antas, castros e ruínas. Diz-se que vivem num mundo maravilhoso e labiríntico, nas entranhas da terra, com túneis que atravessam montanhas e desembocam em palácios de ouro e cristal. Só podem sair desse reino - a moirama - em horas mágicas como a meia-noite, o meio-dia e o nascer do sol e na noite de S. João. Nessa altura, deixam a forma de serpentes e surgem como mulheres bonitas, com cabelos de ouro, que estendem no campo, sobre esteiras, figos e moedas de ouro, de manhã cedo. O 24 de Junho tem raízes nos antigos festejos pagãos do solstício de Verão. As fogueiras simbolizam o sol, fecundador por excelência. Esta é a noite do calendário mais propícia a sortilégios e adivinhações nas coisas do amor. Nessa data, todos os encantos se quebram. As flores e o orvalho, colhidos entre a meia-noite e o nascer do sol, curam as enfermidades. E é a água bebida de sete fontes, antes do romper da aurora. Com os seus tesouros, as mouras encantadas tentam seduzir os homens para que estes, incautos, quebrem o seu encanto, transformando-as em bonitas raparigas. Estes devem submeter-se a provas de força e, sobretudo, de coragem. Não podem ter medo da serpente ou do touro que o abraça. Se vencerem, quebram o encantamento. Se falharem, redobram-no. Há várias receitas para a quebra do encantamento. Algumas lidam com a água, que nos prende a este livro. Apanhar um rouxinol que vier cantar em noite de véspera de S. João na árvore fronteira ao tanque onde está a moura encantada. Ou regar o terreno onde está a moura com água de massa fabricada na noite de S. João. Ou, ainda, comer filhoses amassadas com água do rio na véspera desse dia.

Em muitas lendas, as mouras encantadas assumem a figura de bonitas princesas, filhas de reis mouros. Ficaram encantadas por não terem com seguido fugir durante a Reconquista Cristã. O Povo diz que, quando os mouros se viram obrigados a sair do Algarve, deixaram-nas para trás para guardar os tesouros que, um dia, viriam buscar. Ouro, prata e pedras preciosas surgem disfarçados de coisas banais como carvão, tijolos, figos ou bugalhos. Quem os encontra, despreza-os sem suspeitar do encanto. Ou, como vimos, conquista-os provando ser merecedor da riqueza que tem nas mãos por se mostrar paciente, discreto, honesto e corajoso. A conquista do tesouro passa, assim, por provações de ordem moral e espiritual. A capacidade de compromisso, o controlo dos impulsos e o cumprimento das regras são premiadas. O tesouro escondido simboliza a riqueza fácil parece que acaba com a vida dura de quem trabalha a terra. Mas a dificuldade em conquistá-lo, desvaloriza a riqueza sem trabalho e, pelo contrário, enaltece a honra e o esforço para aceder ao tesouro. Mas a origem das mouras encantadas é anterior à Reconquista Cristã. Elas parecem substituir antigas divindades locais, habitantes de fontes, rios, pedras, chamadas donas, ninfas ou fadas. Conhecidas depois por mouras, moirinhas ou bichas mouras, surgem sob a forma de leões, touros ou serpentes, por vezes meio mulheres, meio cobras. No Algarve, chamam-lhes Cássima, Fátima, Floripes, Zuleima, Alíria, Tomasina, entre outros nomes. Fonte: Mouras encantadas e Tesouros Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela

Água Doce | 73

História do Algarve através da água


Troça a fonte no jardim do sol a pique O calor silenciou a tarde e apenas a cal e o mármore se erguem da terra ardente Sob um arco de sombra na mesquita o muezim chama si a paz dos vivos

João Pedro Mésseder

Arcos contemporâneos no Castelo de Silves.  Contemporary arches at the Silves’ Castle.

74 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 75

História do Algarve através da água


A reconquista da água The reconquest of water

T A Reconquista Cristã não destruiu as estruturas hidráulicas que encontrou da civilização muçulmana.

N

este capítulo, os vencedores foram, sucessivamente, assimilados pelos vencidos mostrando que o respeito pela água é superior ao das vidas, dos credos ou das culturas ali encontradas. A partir da Reconquista Cristã, é feudalizada toda a região do Sul que antes estava dividida em Cidades. Com os seus territórios foi senhorializada e distribuída principalmente pela Ordem de Santiago. Com a feudalização e a introdução de grandes senhorios, surgem novamente as grandes vinhas e searas para recomeçar a fazer dinheiro. A escala árabe da célula agrícola adapta-se ao novo tempo. Retoma-se o Algarve como abastecedor de um espaço maior que será, de novo, imperial, como na era romana. No regresso dos cristãos, há duas regiões em Portugal que se tornam parecidas: a zona de Sintra e parte do Oeste e o Algarve. É a zona em que os senhorios poupam a população porque precisam dela para trabalhar. Isto deve-se à água, às boas terras e às hortas. Lisboa, e outras cidades, foram conquistadas violentamente. Mas no Algarve e no Oeste os novos senhores não tocaram na parte da população camponesa que tratava das hortas e dos pomares em terras riquíssimas. Tem fruta e legumes em abundância. (A laranja doce só entrará no século XVI, trazida da China pelos portugueses, por isso conhecida no Mediterrâneo como Portocalle).

76 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

he Christian Reconquest didn’t destroy the hydraulic structures it found from the muslim civilization. In this chapter, the winners were gradually assimilated by the losers, thus showing that respect for water is greater than respect for lives, creeds or other cultures found in that place. From the Christian Reconquest, all the southern region which before was divided by cities is feudalized and becomes under the rule of a lord, distributed mostly among the members of the Order of Santiago. With the feudalization and the introduction of great lords, vineyards appear again, as well the great fields of wheat, seeking profit from them once again. The arab dimensions of the agricultural cells adapt themselves to these new times. Algarve is once again the supplier of a larger area, which will be once more Imperial, like in the roman age. With the return of the christians, two regions in Portugal become alike: the area of Sintra and some of the Western regions, and the Algarve. This is due to water, fertile lands and food gardens. This is the area where the lords spared the population, since they needed them as work force.

Lisbon, and the other cities, were conquered violently. But in the Algarve and the West, the new lord didn’t harm the part of the peasant population responsible for taking care of orchards and cultures in these rich lands. Therefore, they have fruits and vegetables in abundance (the sweet orange will only appear in the 16th century, brought from China by the Portuguese, and because of that is known in the Mediterranean as Portocalle).


 Poço e torre de igreja, Cacela Velha. Well and church tower, Cacela Velha.

Água Doce | 77

História do Algarve através da água


O Algarve e a região saloia salvam-se por razões económicas. Saloio vem de uma palavra árabe – sahrauii – que quer dizer de fora da cidade, e essa população também ali ficou com hortas e pomares que, até ao século XIX e XX, abasteceram a principal cidade do País. Sendo uma região que fica atrás da serra, ao lado de Lisboa, também ficou resguardada por razões militares. O caso do Algarve foi talvez mais interessante porque havia uma produção intensa de fruta, principalmente de figos e amêndoas, que era exportada por um importante circuito que levava estes produtos para o Norte da Europa. Os novos conquistadores apoderaram-se imediatamente desse mercado para o qual tinham de manter a mão-de-obra especializada na técnica da secagem da passa e do figo. O negócio poupou a população. Evitou fugas e expulsões. É por isso que o Algarve, ao contrário de outras regiões do País, mantém a população autóctone de sempre. Da Idade Média ao século XX, parte da construção de barragens consistiu na reconstrução das estruturas anteriores. «Muitas técnicas medievais mantiveram-se intactas e sem mudanças até aos tempos modernos derivado à estrutura inflexível da organização gremial tradicional», lembra Glick (29). Existe uma espécie de eleição ecológica feita por sufrágio directo e universal pela disposição das bacias hidrográficas. «É característico das barragens de desvio que os lugares onde estão situadas, uma vez estabelecidos, tendem a ser permanentes, mudando-se a sua utilização em consonância com as actividades económicas e as habilidades tecnológicas dos sucessivos ocupantes». (30) Durante séculos, valorizou-se muitíssimo a adesão rigorosa a técnicas com provas dadas. Qualquer alteração poderia comprometer a sobrevivência do agregado familiar ou urbano. A interrupção de ocupações estrangeiras e a centralidade do Império Ultramarino em Lisboa afastou influências externas no interior algarvio, também no domínio da água. Por isso, José Rasquilho Raposo (31) diz que «no século XVI no Algarve, o regadio que os árabes tinham deixado degradou-se e não funcionava a 100%. Mesmo assim o Algarve produzia bastantes citrinos, frutos secos, legumes, azeite e vinho». Assiste-se, de facto, a um estancamento tecnológico que preserva os núcleos de ruralidade e a sua cultura até ao século XX. A ocupação do território mantém um desenho intacto que coincide com o período português do Algarve. Durante séculos, ia buscar-se água com um burro, com uma carroça, a pé ou, mais tarde, de bicicleta.

78 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The Algarve and the region of the “Saloios” (meaning “country people” but also “hillbillies”, if used depreciatively), in middle-western Portugal, were saved by economic reasons. The word “Saloio” comes from an arab word - sahrauii - which means “from out of town”, and indeed the population remained there, with their orchards and farms, which, until the 19th and 20th century, supplied the country’s most important city. Since it was a region located behind the mountain range, near Lisbon, it was also protected for military reasons. In the Algarve this was even more interesting for there was an intensive production of fruit, specially figs and almonds, which was exported by an important circuit that took these products to the North of Europe. The new conquerors immediately took hold of this market, for which they had to keep their labour force, specialized in the technique of drying up raisins and figs. This business spared the population, and avoided their escape or expulsion. That’s why the Algarve, unlike other regions of the country, kept its native population. From the Middle Ages to the 20th century, part of the construction of dams consisted of reconstructing previous structures. “A lot of medieval techniques were kept intact and unchanged until modern times, due to the unmovable structure of the traditional union organization”, Glick reminds us. (29) There’s a kind of ecological election done by direct and universal suffrage, through the location of hydrographic basins. “It’s a characteristic of weirs that, once established, the places where they are located tend to be permanent, with the only changing aspect being their usage according to economic activities and the technological abilities of the successive occupants.” (30)


«Outrora a rega era feita a partir dos moinhos, das noras e da água da ribeira», diz um agricultor da Quinta Nova das Taipas, Aljezur, «antes de haver os motores, tinham um moinho americano – moinho a vento com latas. Este tirava água da ribeira, que enchia um tanque e, com a ajuda da enxada, abriam os regos com os quais levavam a água às culturas. Actualmente utilizam os motores e o processo de rega inscreve-se no círculo: motores, poço e tanque». (32) Nas linhas de água, ao longo dos tempos, foram construídas inúmeras azenhas com represas que não só abasteciam as populações como lhes moíam os cereais e regavam os campos agrícolas. A liturgia da Igreja acompanhou a preocupação do seu Povo com a organização cíclica e pontual de preces e cortejos para que não faltesse o precioso líquido. Por exemplo, ainda hoje se realiza, todos os anos em Abril, no Concelho de Loulé, a procissão de Nossa Senhora Mãe Soberana rogando pela abundância das chuvas.

During centuries, the rigorous following of techniques with proven success was much valued. Any change to this could put the survival of the family or the population in jeopardy. The interruption of foreign occupation, as well as the central characteristics of the Overseas Empire in Lisbon, moved external influence away from the Algarve’s interior, also in what concerned water. That’s why José Rasquilho Raposo (31) says that “in the 16th century, the watering structures that the arabs had left was degraded and no longer worked at 100%. Even so, the Algarve still produced a lot of citrus fruits, dry fruits, vegetables, olive oil and wine”. There is indeed a technological stagnation which preserved the rural centers and their culture up until the 20th century. The occupation of the territory keeps a whole scheme intact, which coincides with Algarve’s Portuguese Period. For centuries, water was collected with donkeys, wagons, on foot or, later, by bicycle. “Once, irrigation was made from wells, water wheels and river water”, says a farmer from the Quinta Nova das Taipas, in Aljezur, “before there were engines, they had an american mill - a windmill with cans. It extracted water from the river, filled a tank, and with the help of a hoe, they opened up trenches by which they directed water towards the cultivated areas. Today they use engines and the watering process is inserted in a circle: engines, well and tank”. (32) During the ages, a number of water mills with dams were built on waterlines, not only supplying population but also grinding cereal and watering agricultural fields. The church’s liturgy kept up with the concern of its people with the cyclic and punctual organization of prayers and processions so that the precious liquid didn’t run out. Still today, every year, in April, the procession of Our Sovereign Mother Lady is organized in the city of Loulé, praying for the abundance of rain.

Água Doce | 79

História do Algarve através da água


 Poço particular junto ao castelo de Silves, anos 40. Private well near the Silves castle, 1940’s.

80 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Deus meu! A nora transborda de água doce num jardim cujos ramos estão cobertos de frutos já maduros. As pombas contam-lhe as suas penas e ela responde repetindo notas musicais. Perece um namorado incurável que volteia no lugar dos antigos encontros chorando e perguntando por quem se afastou. E como se tivessem sido estreitos os canais para conter as lágrimas fenderam os seus flancos como pálpebras.

Sade Aljair

Água Doce | 81

História do Algarve através da água


Águas Internacionais International waters

As Descobertas Quinhentistas mantêm a ocupação indígena apesar de haver alterações internas nos núcleos urbanos. Lagos e Faro impõem-se a Silves. Tavira será depois valorizada.

U

ma vez mais, o Reino do Algarve assume uma importância autónoma, dentro do centralismo real que monopolizou a epopeia marítima em Lisboa. «O Algarve nunca pertenceu ao resto. Foi sempre um território aparte, por razões geo-históricas da cordilheira. Embora não seja uma serra alta, é difícil de atravessar. O único caminho que ligava o Algarve ao Norte era o Guadiana, a única estrada de ligação ao Alentejo. O Atlântico não é fácil. Só está aberto alguns meses por ano. É por isso que o cantinho de Lagos tem tanta importância marítima. Não por causa da escola. Toda a navegação mediterrânica chegava ali e parava. Tinha de esperar que o tempo mudasse. Mas o vento não mudava. É dominante de Noroeste na maior parte do tempo e só de vez em quando é que muda», conta Cláudio Torres.

Assim, por vezes durante meses, toda a navegação, centenas de barcos paravam ali próximos daquela zona dos portos de Sagres, antes de dobrarem o cabo. Ali onde, como diz Fernando Pessoa, «o mar com fim será grego ou romano, o mar sem fim é português» (33). Aquilo era uma espécie de alfobre de tecnologias do Mediterrâneo. Por outras palavras, uma Universidade do Mar, lugar para «um saber de experiências feito». A água doce algarvia saciava esta academia. Por perto estava a Serra de Monchique e uma certa pastagem de onde vinha o abastecimento de gado. A navegação mediterrânica era ali abastecida e, partir daí, seguia para o Norte ou para África. A zona de concentração de barcos na espera das rotas para o Norte e para o Sul era importante.

82 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

T

he Portuguese Discoveries of the 1500’s maintain the indigenous occupation, despite internal changes in the city centers. Lagos and Faro overcome Silves. Tavira would rise later. Once again, the Kingdom of the Algarve assumes an autonomous importance, inside the royal centralism that monopolized the seafaring saga in Lisbon. “The Algarve never really belonged to the rest. It was always a separated territory, by geo-historic reasons: the mountain range. Even if not that high, is always difficult to go across. The only way linking the Algarve to the North was the Guadiana, the only road connecting it to the Alentejo. Through the Atlantic it’s not easy, too. It’s only open a few months per year. That’s why Lagos’ little corner has so much seagoing importance. Not because of the [nautical] school. All mediterranean navigation reached that place and stopped there, waiting for the weather to change. But the wind didn’t change. It comes mainly from the Northwest, most of the time, and only changes now and again.”, Cláudio Torres tells us. This way, sometimes during the course of months, the whole navigation of hundreds of ships, stopped in the area, near the harbors of Sagres, before going around the cape. There, where, as Fernando Pessoa says “the limited sea can be Roman or Greek, but the endless sea is Portuguese”. (33). It was a kind of melting pot of mediterranean technology. In other words, a University of the Sea, a place for a “knowledge made of experience”.


 Primeiro mapa de Portugal, segundo a Direcção Geral do Território. Desenhado por Fernando Álvares Seco (1561 – 1585), ali se vê Portugal deitado numa época em que o Algarve conheceu uma nova era de internacionalização. First map of Portugal drawn by Álvares Seco (1561 – 1585). You can see Portugal “lying down”, during an age when the Algarve knew a new era of internationalization.

Por outro lado, até ao século XX, o Algarve foi uma das zonas mais ricas de pesca do mundo, só com paralelo no Peru, no Pacífico. Era a boca de entrada do Mar, o funil principal com os cardumes de atum, esturjão, e outros peixes. Desde a época romana que ali se fazia a recolha. Foi sempre uma zona significativa para a pesca, o encontro de tecnologia de navegação e novas formas de construir navios.

Algarve’s water soothed this academy. Nearby was the Monchique mountain range and a kind of pasture where the cattle supply came from. Mediterranean navigation was supplied there and then went on to the North or towards Africa. The zone where the ships waited, in the Northwards or Southern-bound routes, was important.

Água Doce | 83

História do Algarve através da água


84 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Sé vista das muralhas de Silves. Church seen from the wals of Silves.

«É ali que surge a mais antiga denominação de barco, barca, a mais antiga inscrição com esta palavra da época romana, século I e II d. C.. Ali dá-se um encontro continuado de tecnologias navais do Norte da Europa com o Mediterrâneo. A zona da Biscaia também é importante mas ligada ao Mar do Norte. Mas podemos distinguir arqueologicamente se é um barco do Norte ou se se trata de um barco do Mediterrâneo» explica o nosso narrador, Cláudio Torres. As duas tecnologias convergem, precisamente aqui no Algarve, onde têm que dar a volta. E qual o papel da água doce algarvia neste tempo em que, como diz Pessoa, se viu «a terra inteira, de repente, surgir redonda do azul profundo»?

Para o Algarve, mais importante do que os Descobrimentos é o avanço para Marrocos e para África. A conquista da série de praças de armas no Norte de África vai abrir e dar um enorme enriquecimento à região do Guadiana. É por este rio que desce o trigo que vem do Alentejo e da Andaluzia e vai abastecer as praças de armas. (ver capítulo Estradas de Água) Nos séculos XV e XVI, há, assim, uma grande abertura por causa do abastecimento do chamado Algarve norte-africano. Com o abandono destas Praças, na viragem do século XVI para o século XVII, verificar-se-á uma quebra económica brutal, com o retrocesso e empobrecimento evidente do Algarve que só será retomado, lentamente, muito mais tarde.

In addition, up until the 20th century, the Algarve was one of the richest fishing areas in the world, only comparable to Peru, in the Pacific Ocean. It was an way in to the Sea, a major funnel with shoals of tuna, sturgeon and other fish. This was the place where they were collected, ever since the roman era. It was always a significant area for fishing, as it was the meeting point of navigation technology and new kinds of ship building. “It’s there where we found the oldest denomination of “boat” [barco, barca], on an inscription bearing this word dating from the 1st and 2nd centuries A.D. This place is witness to a continuous exchange of naval technology from Northern Europe and the Mediterranean. The Biscay area is also important, but more connected to the Northern Sea. We can archeologically tell if it’s a Northern boat or a Mediterranean one.”, explains our narrator, Cláudio Torres. The two technologies converge, precisely, here in the Algarve, where they have to turn around. And what is the role of the Algarve’s fresh water during this time, when, as Pessoa says, “the whole Earth was suddenly seen, emerging, round, from the deep blue”? Even more important for the Algarve than the Portuguese discoveries is the move forward towards Morocco and the African continent. The conquest of a series of fortresses in Northern Africa would open and greatly enrich the Guadiana region. Through this river, the wheat descends, coming from the Alentejo and Andalucia, supplying those strongholds (see chapter: Roads of Water). In the 15th and 16th century, there is, therefore, a great opening due to the supply of the so-called northern african Algarve. With the abandonment of these fortresses, in the turn of the 16th to the 17th century, a brutal economic downfall will take place, with an evident downturn and impoverishment in the region that will only bounce back, slowly, much later.

Água Doce | 85

História do Algarve através da água


86 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


 Pormenor de nora no buraco 9 do Oceanic Laguna Golf Course, Vilamoura. Detail of waterwheel at the 9th hole of the Oceanic Laguna Golf Course, Vilamoura.

À nora Senhora do regadio mourisco, vinda do Oriente, a Nora algarvia chega ao século XX pronta para ser rendida por novas descobertas. “Há no Algarve vários sítios com o nome Nora. Quem não os conhece, para além do nome simples, também a Nora Branca, a Nora Alta, a Nora Velha, a Altura da Nora ou ainda, em diminutivo, a Norinha? Estes nomes tiveram origem no velho engenho utilizado para a irrigação dos solos. A sua utilização perdeu-se no decurso dos séculos, desde as civilizações mais remotas, com modelos diversos, do mais rudimentar ao mais complexo.

Pode dizer-se que já lá vai o tempo em que a agricultura de regadio era feita com a água tirada das noras. São muito poucas as que ainda estão em actividade.

As construções são redondas porque o conceito primitivo assim as concebeu, não se conhecendo alterações, nem existindo na região outros formatos. As noras existentes no Algarve, cuja origem é dos Babilónios e Egípcios, foram os instrumentos fixos mais úteis e rentáveis à antiga agricultura de regadio. (...) Os seus introdutores no (89) Ocidente foram os árabes que, apesar do pouco espírito que tinham como criadores, sabiam adquirir com facilidade os conhecimentos adquiridos noutras civilizações.

Com o aparecimento da electricidade, a água das noras começou a ser tirada por motores. Para além disso, as técnicas avançaram de dia para dia e os furos, praticamente, assumiram o seu lugar.

Talvez se lembre da mula ou do burro, de nome a Castanha, a Bonita, a Menina, a Carocha ou o Jerico, horas e horas à roda com os olhos vendados, com uns entrolhos de palha de empreita, convencido do percurso a realizar.

Podemos então dizer que as noras passaram da agricultura à cultura». Adérito Fernandes Vaz «Algarve. Reflexos Etnográficos de uma Região» Secretaria de Estado da Cultura, 1994

Após a abertura de um largo poço, faz-se uma elevação em terra, cercada de empedrado ou de pedra e argamassa. Realizada a parte da construção civil, seguia-se a construção do engenho. Seguindo-se a encomenda dos alcatruzes de barro, trabalho de olaria, do tabuleiro e alcatruzes de zinco, trabalho do latoeiro, os eixos, as rodas dentadas e os engenhos de ferro, trabalho dos ferreiros. Posteriormente, seguia-se a montagem que implicava, por parte da pessoa que o fazia, o conhecimento da matéria e experiência na técnica da montagem, para que o girar das rodas fosse acertado com a respectiva tramela, pronta para travar e aguentar todo o peso da água quando parasse com os alcatruzes cheios de água.

Água Doce | 87

História do Algarve através da água


Nora, património etnográfico de Loulé. Waterwheel, from the etnographical heritage of Loulé

À nora*

* (colloquial expression meaning “lost”, or “clueless” - “Nora” means “water wheel”)

Mistress of the moorish irrigation, coming from the East, the Algarve’s waterwheel reaches the 20th century ready to be relieved by new discoveries. "In the Algarve there are various places called Nora. Who doesn’t know them, and also in addition to the simple name, the Nora Branca, the Nora Alta, the Nora Velha, the Altura da Nora and also, as a diminutive, the Norinha? All of these names originated in this old contraption used for irrigating fields. Its usage is lost through the centuries, ever since the most remote civilizations, with diverse models, from the simplest to the most complex. Constructions are round because their primitive conception shaped them like so, with no notable existing alteration of shapes in the region. The waterwheels existent in the Algarve, whose origin dates back to the Babylonians and the Egyptians, were the most useful and rentable fixed instruments for the old irrigation culture. (…) The ones who introduced it in the western world were the arabs, who, despite the lack of spirit they had as creators, knew how to easily acquire knowledge from other civilizations. After opening up a large well, an elevation of dirt is made, surrounded by stones or rocks with mortar. Once the civil construction part is done, the construction of the device would follow. After that, clay pitchers were ordered to potters, zinc trays and buckets were made by tinsmen, and the blacksmiths fabricated the axis, the cogs and the iron devices. The assembly of all of these elements followed, which required, from the person who did it, knowledge of the subject and experience in this operation, so that the spinning of the wheels was accurate with the lock, ready to stop and hold the entire weight of water when the buckets came to a halt, filled with water.

88 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Once can say that the time of waterwheel watering is long gone, but a few still remain active. Maybe you remember the mule and the donkey, named Castanha, Bonita, Menina, Carocha or Jericho, walking in circles for hours, with their eyes covered by straw blindfolds, convincing them of their way? With the appearance of electricity, water from the waterwheel began being extracted using engines. Besides, techniques have evolved from day to day and water holes have practically replaced them. We can thus state that water wheels have passed from agriculture to plain culture”. Adérito Fernandes Vaz “Algarve. Ethnographic Reflexes of a Region” Secretary of State of Culture, 1994


Entretanto, não há maior prazer Do que, na placidez das duas horas, Ouvir e ver, entre o piar das noras, No largo tanque, as bicas a correr! Cesário Verde

Água da Fonte Santa, Serra de Odelouca. Water from the Holy Fountain, Odelouca Mountain range.

Água Doce | 89

História do Algarve através da água


90 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 91

História do Algarve através da água


92 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Do poço à torneira Introdução do saneamento básico no Algarve. Introduction of basic sanitation in Algarve.

From the well to the tap

A industrialização, a descoberta de novas fontes de energia e o progresso das sociedades impuseram a canalização e o tratamento das águas a todo o mundo civilizado.

F

oi um processo, de cima para baixo, exigido pelas elites locais e imposto à maioria da população, rendida aos hábitos ancestrais de colectas de água. Teve início nos finais do século XIX nas capitais dos países do Mundo Ocidental e, só depois, já no século XX, em regiões limítrofes destes países, assim como no Algarve. O acompanhamento das obras públicas para abastecimento de água nem sempre andou à velocidade do desenvolvimento da região. A industrialização do século XIX pedia abastecimentos regulares e o surto do turismo, na segunda metade do século XX, veio agravar drasticamente problema. Mas, este dossier não se estreou com o «ciclo de sucesso das águas quentes do Sul, na década de 60».

Já em 1927, o Guia de Portugal dizia que «a escassez da água, na época seca, embora não falte para beber, escasseia para os usos restantes». E mais adiantava que a água das cisternas, explorada por particulares, era «vendida no Verão a preços inverosímeis: chegam a pedir 50 centavos por uma bilha de dez litros escassos, o que eleva o custo do metro cúbico à bagatela de cinquenta escuros!»(34). Nessa altura, como sempre, a tudo se deitava mão para suprir a falta de água: «No sítio denominado Olhos de Água, e nas cercanias imediatas da praia, existem nascentes submarinas de água doce rebentando com tal ímpeto que os barcos dos pescadores são afastados da sua rota ao passarem no local. Pensou-se em tempos no aproveitamento desses caudais para resolver o problema (...) do abastecimento de água em Albufeira. A captação não chegou contudo a fazer-se e a vila ainda hoje continua sujeita ao regime arcaico das cisternas, pitoresco embora, mas incapaz de permitir um desenvolvimento sério». (35)

T

he industrial revolution, the unveiling of new power sources and the progress of societies in general, imposed plumbing and water treatment to the whole of the civilized world. It was a process which evolved from top to bottom, demanded by the local elite and imposed to the majority of the population, which had surrendered to the ancestral ways of collecting water. It began in late 19th century, in the capital cities of the Western World, and only later, already into the 20th century, on the outskirts of these countries, as well as the Algarve.

The maintenance of public works for water supply has not always kept up with the pace of the region’s development. The Industrialization in the 19th century demanded regular supply, and the outburst of tourism, on the second half of the 20th century, fuelled this problem drastically. But as we said, this issue didn’t start with the cycle of success of the warm bathing waters in the South. Already in 1927, the Guide of Portugal stated that “even though it doesn’t endanger consumption, the scarcity of water, during the dry season, prevents its usage for other purposes”. It also remarked that the water from the cisterns, exploited by private owners, was “sold during the Summer at ludicrous prices: they even price a canister of only 10 liters at 50 centavos, what elevates the cost of a cubic meter to a “petty” 50 escudos!” (34). In that time, as always, people resorted to just about everything to make up for the lack of water: “In the place called Olhos de Água (Eyes of Water), and in the immediate outskirts of the beach, there are fresh water springs located

Água Doce | 93

História do Algarve através da água


Lavadouro público, Algoz. Public wash house, Algoz.

under the sea, bursting with such a force that the fishers’ boats are pushed away of their course when they pass by. Once, the usage of these flows was considered for solving the problem (…) of water supply in Albufeira. Catchment didn’t come to happen, however, and even today the village is still under the ancient regime of the cisterns. Colorful, no doubt, but unable to allow serious development”. (35)

 Desenho de lavadouro público, Loulé. Drawing of public wash house, Loulé.

A qualidade das águas sempre foi um dos assuntos mais sérios para a sobrevivência dos povos. Mesmo assim, ainda no século XX havia dificuldades básicas no trabalho dos técnicos que controlavam este pilar da saúde pública. Em 1914, a (24) Imprensa da Universidade de Coimbra publica as notas do engenheiro químico Geraldino Brites sobre os trabalhos realizados em Loulé sobre «Febres Infecciosas». «Estas análises não podiam deixar de ser incompletas, dadas as insuficiências laboratoriais com que luctávamos, e a falta de tempo que impedia a multiplicação das determinações. Todas foram feitas num pequeno laboratório que instalámos em Loulé muito insuficiente para as minuciosas pesquisas que exige o estudo químico duma água. É devido a essa pobreza laboratorial que não pudemos determinar o resíduo e os fosfatos; faltava-nos a cápsula de platina». (36) Ainda assim, no ano em que a Europa conhecia a Grande Guerra, estes heróicos cientistas prosseguiram os estudos vitais para a saúde da população algarvia, usando o processo do seu Mestre Charles Lepierre, do Congresso Internacional de Química havido em França no ido ano de 1896, para a determinação do grau hidrotimétrico. As amostras foram colhidas nos pontos mais diversos do Concelho, sendo as mais numerosas em Loulé. Pela seguinte descrição pode ter-se a noção dos pontos de distribuição de água colectivos nesta zona, ainda no início do século XX: «As águas designadas por Bicas Novas e Bicas Velhas foram analisadas duas vezes cada uma, por serem aquelas que fornecem a maior parte da vila. Dois dos poços situados fora da vila, o da praia de Quarteira e o do Sr Barroso, são situados à beira

94 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Water quality has always been one of the most serious factors for assuring survival to the people. Even so, still in the 20th century, there were basic difficulties in the efforts of the technicians controlling this cornerstone of public health. In 1914, the Press Office of the University of Coimbra published the notes of the chemical engineer Geraldino Brites about the works conducted in Loulé about “Infectious Fevers”. “These analyses will always be incomplete, due to the laboratory deficiencies we struggled upon, and the lack of time that prevented the multiplication of determinations. They were all achieved in a small lab we installed in Loulé, very insufficient for the thorough research that the chemical study of water demands. It’s due to this poverty of resources that we couldn’t determine the residue and phosphates: we lacked a platinum capsule”. (36) Even so, in the year of the Great War in Europe, these heroic scientists carried on vital studies for the health of Algarve’s population, using the process of their Master Charles Lepierre, from the International Chemistry Congress that occurred in France in the past year of 1896, for determining hydrotimetric levels. The samples were collected from diverse places all over the municipality, with the most numerous from Loulé. From the following description, we can assess collective water distribution points in this area, even before the beginning of the 20th century: “Waters that go by the name of Bicas Novas (New Taps) and Bicas Velhas (Old Taps) were analyzed two times each, as they were the ones which supplied the largest part of the village. Two of the wells located outside the settlement, the one at Quarteira beach and the one of Mr. Barroso, are located near the sea; the first stands on the sand, the second a few hundred meters inland. The sample from the Fonte


mar; o primeiro mesmo no areal, o segundo a algumas centenas de metros acima. A amostra da fonte Grande foi colhida, não no ponto em que a água emerge com violência da rocha, mas uma centena de metros abaixo, nas bicas que servem para abastecimento da povoação de Alte». (37) Segue-se um quadro com a descrição de quinze poços, duas fontes e quatro bicas, a data da colheita, com o referido grau hidrotimétrico, o cálcio, os sulfatos, o magnésio, o cloro, os nitratos, matéria orgânica e outros componentes.

Ciência e sabedoria popular convergiam, com frequência, no mesmo juízo sobre as águas. Por diversas vezes Brites reconhece no Povo discernimento para separar águas: «Nos poços urbanos fizemos dois grupos: um formado por poços que fornecem água considerada salobra, mesmo pelos leigos no assunto. São águas de forte percentagem de cálcio e de magnésio e ainda de cloretos, inúteis para os usos domésticos e algumas vezes mesmo para a cultura. A observação popular consagrou para estas águas a expressão: «tão salgadas que até matam as plantas»». (38) Num dos grupos de análises na água de 3 bicas, 15 poços e 2 fontes, apenas uma é considerada pura e duas potáveis. Das restantes 17, 14 são suspeitas e 3 merecem 25 mesmo a categoria de «má». Brites descreve a qualidade das águas, freguesia por freguesia, com a minúcia de quem sabe que está a lidar com o mais precioso líquido. Refere, por exemplo, que parte da então vila de Loulé e a Campina de Cima «assentam numa poderosa toalha subterrânea, certamente a mesma que, alguns quilómetros acima, forma a abundantíssima Fonte de Apra». (39)

Grande (big fountain) was collected, not in the point where water emerges with violence from the rocks, but a hundred meters below that, in the taps that are used for supplying the population of Alte”. (37)

After that, we can see a chart with the description of 15 wells, two fountains and four taps, they collection date, hydrotimetric levels, calcium, sulphates, magnesium, chlorine, nitrates , organic matter and other components. Science and popular wisdom frequently judged water the same way. Many times, Brites recognizes in the People the discernment for parting the waters: “We outlined two groups among the urban wells: one was formed by wells that supply water which is considered brackish, even by the laymen. These are waters with a high percentage of calcium and magnesium and also chlorides, which are useless for domestic use and even for cultivation. Popular evaluation attributed a saying to these waters: “So salty they even kill plants”. (38) In one of the groups of analyses to the water collected from 3 taps, 15 wells and 2 fountains, only one is considered pure and two of them potable. From the rest of them, 14 are suspect and 3 even go by the classification of “bad”. Brites describes the quality of water, parish

Água Doce | 95

História do Algarve através da água


Estes Cadernos das Febres Infecciosas de 1914 são uma referência preciosa para o conhecimento do que foi a captação individual e colectiva de água em certas regiões do Algarve, antes da canalização. Estudos equivalentes precederam a democratização do acesso à água um pouco por todo o Algarve. De acordo com este trabalho, vê-se que as pessoas viviam perto dos poços numa época em que a água não lhes chegava por outro sistema de distribuição seguro. A Exposição «Nos alvores do século XX», do Museu de Portimão, dedica um capítulo ao dificílimo problema da água nesta época: «O abastecimento de água na então vila de Portimão e arredores, nos princípios do século XX, constituía um dos mais graves problemas locais. Os aguadeiros tiveram um papel importante na distribuição da água às populações antes da chegada da água canalizada. A distribuição fazia-se em carros de transporte, com cântaros de barro ou zinco, outros andavam pelas ruas montados em burros e forneciam água a copos. A presença do aguadeiro era sempre uma constante nas festividades da Vila Nova, sobretudo nos mercados e feiras, onde se ouvia sempre o pregão: Água fresquinha, quem quer água fresquinha!?». (40) Na verdade, a água era fresquinha mas nem sempre potável (ver caixa). A rede pública foi sendo construída por aproximações sucessivas. Os notáveis da terra pressionavam as entidades oficiais às obras que, como quase sempre, sentiam um impulso ao ritmo dos ciclos políticos. Por exemplo, o primeiro contrato provisório para o abastecimento de água foi assinado em 1873, entre a Câmara Municipal e os cidadãos Leonardo Pinheiro da Cunha Carneiro e Eduardo Augusto Kopke. Mas não viria a ser cumprido. Apenas 16 anos depois, em 1889, surge em Portimão a empresa de abastecimento de água «Sarrea, Prado e Condita». E só dez anos mais tarde se iniciaram os trabalhos de captação de águas na Mexilhoeira Grande que seria canalizada para o reservatório da Boavista e outros cinco reservatórios na Vila. Os serviços de abastecimento são municipalizados em 1915 quando existem seis marcos fontanários em Portimão - 42 anos depois! «Os fontanários ou “bicas”, todas do mesmo modelo mas com singularizações locais, foram a primeira forma de as autarquias proverem água canalizada aos aglomerados», explica Fernando Varanda (41). E adianta: «O lugar colectivo da água, como se viu, é normalmente no perímetro do aglomerado, de onde a água é carregada, por vezes em carrinhos próprios para cântaros. As bicas, por seu lado, podem estar em qualquer lugar, mas encontram-se frequentemente agregadas ao forno, num espaço central». (ver Trabalhos de Água)

96 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

by parish, with the accuracy of someone who knows he’s dealing with a most precious liquid. He refers, for example, that part of the village of Loulé and the Campina de Cima “are sitting on a powerful underground skirt, certainly the same one that, some kilometers above, forms the much abundant Fountain of Apra”. (39) These books about Infectious Fevers, written in 1914, are a priceless reference for knowing how individual and collective tapping of water was done on certain regions of the Algarve, before the use of plumbing. Equivalent studies preceded the democratization of access to water more or less all over the Algarve. According to this work, one can see that people lived near the wells, in an age where water didn’t have any other safe way of reaching them. The Exhibition “At the dawn of the 20th Century”, at the Museum of Portimão, dedicates one of its chapters to the troublesome problem of water during this period: “The supply of water on the then village of Portimão and its outskirts, was one of the most serious local problems at the beginning of the 20th century. Watermen had an important role in the distribution of water to the population before the arrival of tap water. Distribution was made in transportation carts, with clay or zinc pitchers. Others went about the streets riding donkeys and sold water by the cup. The presence of watermen was constant in the festivities of the Vila Nova (New Village), mostly in markets and fairs, where you could always hear someone shouting: Fresh water, who wants fresh water?!”. (40) To speak the truth, water could indeed be fresh but not always potable (see textbox). The public network was being built by successive approaches. The local prominent people were constantly lobbying for the works to be conducted, which, as always, has impulses depending on the beat of the political cycles. For example, the first temporary contract for the supply of water was signed in 1873, between the City Hall and the citizens Leonardo Pinheiro da Cunha Carneiro and Eduardo Augusto Kopke. But it wouldn’t come to pass. Only 16 years later, in 1889, a water supply company appears in Portimão by the name “Sarrea,


 Relatório de gerência da empreza de abastecimento d’aguas, 1915, Portimão. Management report of the “empreza de abastecimento d’aguas” (water supply company), 1915, Portimão.

Prado e Condita”. Only ten years later, works were started for capturing waters in Mexilhoeira Grande, which would be then drained towards the Boavista reservoir and other five reservoirs in the Village. Supply systems became municipal in 1915, when six tap stands existed in Portimão - 42 years later! “The tap stands, or “bicas”, all of the same model but with local singularities, were the first way local governments were able to provide tap water to clusters of population”, Fernando Varanda explains (41). And he adds: “The collective place of water, as we see, is normally inside the populated perimeter, where water is carried, sometimes, in carts designed for pots. The “Bicas”, on the other hand, can be everywhere, but are located frequently near the oven, in a central place”. (see: Water Works)

The first works for the public water network were a revolutionary step for the welfare of the local population, but they were far from guaranteeing healthy sustenance for everyone. Even less so, they didn’t predict the revolution that would follow with the cycle of tourism, half a century later. At the beginning of the 20th century, only the local people and part of the elite of the Alentejo took upon the beaches of the south as a bathing destination.

As primeiras obras de rede pública de águas foram revolucionárias para o bem-estar da população local mas estavam longe de garantir o sustento saudável de todos. Ainda menos, previam a revolução que se seguiria com o ciclo do turismo, meio século depois. No início do século XX, apenas os locais e parte da elite alentejana tomavam as praias do Sul como destino balnear. Em meados dos Anos 20, desaconselhava-se mesmo a visita ao Algarve nos meses de Verão: «A estação ideal do turismo em quase todo o Algarve é o Inverno, pela menor poeira das estradas, a temperatura mais amena, a maior verdura da vegetação e o perfume das amendoeiras floridas. Mas na serra deve talvez preferir-se a Primavera, pois é então que ela se cobre de estevas, de tojos, de giestas e de rododendros em flor, enquanto o Verão deve ser apenas reservado à parte extrema do Barlavento, mais atlântico, como dissemos, pelas suas características gerais de clima». (42) (ver Águas Santas)

In the middle of the 1920’s, visits to the Algarve were not even recommended during the summer months: “The ideal season for tourism in almost all of the Algarve is winter, for the reduced dust on the roads, the milder temperature, the greener vegetation and the perfume of flowering almond trees. Up on the hills, one should come during Spring, when it’s covered with rock roses, whins, brooms and blooming azaleas, while the summer must be reserved to the extreme parts of the Barlavento (upwind) region, more Atlantic, as we mentioned before, due to the general characteristics of their climate”. (42) (see: Holy Waters)

Água Doce | 97

História do Algarve através da água


The urgency of the public network in 1914 In 1914, a chemical engineer coming from Lisbon to the Algarve to study the quality of water is shocked and raises the alert for the urgency of plumbing and treatment of water in his Journals of Infectious Diseases. “There isn’t a shred of vigilance over the disposals of the homes. Much of the sewage from building drains to the gutter. At sundays and feast days, hundreds of donkeys, mules and asses are seen in the streets with lower traffic, forming long lines. When their owners retreat to the field, these improvised stables become impassable. Hens, ducks and pigs stroll carelessly through the streets, the latter ones usually in great herds, revolving the ground and digging it up for lying down. It’s also frequent to see them attached to ropes near the entrance of the houses. Dogs, so abundant that we suppose that there isn’t a single family that doesn’t have at least one, also contribute to this work of filth. Cars of manure are transported in broad daylight, and even if the municipal law forbids it (chapter 11 of the 64th article), it’s the same municipal services who break it, carrying through the streets of the village, for collecting animal waste, the foulest of carriages, consisting of a big box of wood sitting over two wheels which isn’t washed a single time for months and plagues the air at a great distance, forcing every passerby unfortunate enough to come across it, to flee at the sight of it. Wine casks are washed on public ways, with the foul wine remains being disposed right there, giving it an hideous aspect and deeply disturbing the neighbors (…) Pigs are killed in the middle of the street and they are burned right there (…) from every point of view it’s necessary for water to be supplied on a large scale, so that plumbing doesn’t simply wait for rainfall”. (…) One can’t simply have drains; we got to have water, a lot of water. Loulé has it. There isn’t perhaps a single municipality as rich in this resource as this village.

98 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Aguadeiro do campo, Loulé. Country waterman, Loulé.

(…) Water, whose qualities are directly dependent of the nature and the composition of the terrains it crosses, deserves thorough care, which can’t be considered when there is an absolute ignorance of the value of hygiene in preventing disease and protecting the individual and the society. The hygienic quality of water is much ignored in this municipality. Its freshness is much more considered, rather than its purity. It comprehensible that this happens. Freshness of water which is drunk by the heat of summer provokes a feeling of well being that boiled or filtered water isn’t able to give. The municipality is supplied through fountains and wells. Fountains are rare and wells supply almost the whole population. Loulé, an urban center, must set the example in water catchment. We’ll consider the village by itself. It is supplied almost entirely from its fountain and the so called Bicas Novas (New Taps), located at the end of the Rua da Praça (Square Street). In both of them, any passerby can carelessly approach the tap, put his mouth in it and drink copiously: children play with the water; grown ups wash their face in it every morning. Water is transported to the houses in pitchers, by servants of the families or by men which dedicate themselves to that profession. A series of pots are placed in small handcarts or in a long car with a pavement, shaped like a grid, in whose holes the pots fit in, carrying water to the consumers. The pots are used until they break and none of them are cleaned at any time. They cross the streets of the village, sometimes under clouds of dust, uncovered, taking in everything suspended in the air. If anyone asks them for water, they don’t hesitate on allowing the person to tilt one of the pots and drink from it, with their mouth applied to the bottleneck. Children amuse themselves by throwing filth into them. When it arrives at the consumers’ homes, water is passed to other pots.


A urgência da rede pública em Loulé, 1914 Em 1914, um engenheiro químico de Lisboa, chegado ao Algarve para estudar a qualidade da água, fica chocado e dá o alerta para a urgência da canalização e tratamento das águas nos seus Cadernos de Febres Infecciosas. «Não há a menor vigilância sobre os despejos das habitações. Muitas canalizações de prédios vão desaguar nas valetas. Aos domingos e dias de festa, centenas de jumentos, mulas e machos se vêem nas ruas de menor trânsito, em longas filas. Quando os seus donos retiram para o campo os improvisados estábulos ficam intransitáveis.

Galinhas, patos e porcos vagueiam impunemente pelas ruas, estes por vezes em grandes varas, revolvendo o solo e escavando-o para se deitarem. É também frequente vê-los presos por uma corda à porta das casas. Os cães, tão abundantes, que supomos que não há família alguma que não tenha pelo menos um, concorrem para esta obra de imundice Transportam-se em pleno dia carros de estrume e apesar da câmara no seu código (11º do art 64º) proibir esse transporte, é ela própria que infringe o regulamento fazendo transitar pelas ruas da vila, com o fim de colher os dejectos, uma imundíssima carroça, grande caixa de madeira assente em duas rodas, que em numerosíssimos meses de serviço, não é lavada uma única vez e que empesta o ar a grande distância, obrigando a fugir todos os transeuntes que têm a infelicidade de a encontrar.

Água Doce | 99

História do Algarve através da água


 Fonte dos Amores, Loulé. “Fonte dos Amores” (Fountain of Love), Loulé.

After all these incidents, which anyone can witness, it’s easy to predict the microbial composition of that water, even if we assume it came out of the tap at its most purest. The so called fountains are totally uncovered wells of higher or lower borders where water springs from, which is extracted by the immersion of buckets people bring from home. It’s easy to figure out what happens then. In some dirty corner of the country house or the cottage, with more than improbable cleanliness, sits the tin bucket, with its iron arches and its dangling rope. This rope is frequently seen scraping the ground, thrown here and there. If it’s necessary to get water, the transporter carries the pots and the bucket to the fountain. If you come from the countryside, a donkey carries 2 or 4 pots, with the bucket and the rope on top of them. During the trip, the rope falls over and is dragged through the ground many times. When they reach the well, the bucket is dipped in the water the number of times necessary to fill the pots. While he pulls the filled bucket, the rope once more is dragged on the ground next to the well, where we find a mixture of water, mud, animal excrement and urine, all squashed by the feet of people and animals. In the successive trips to the well, the rope carries particles of this filth, in addition to what is carried by the hands during the harsh rubbing of it while it goes down. To sum it up, the dirty rope goes to the well to be washed! If the well has few water, the buckets stir the bottom of it, and even if it’s turbid, that doesn’t stop it from being taken home for storage.

100 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

After the last pot has been filled, it’s very frequent to see the transporter drinking water from the bucket, as well as the ass. The remainder goes back into the well! If the border is low, people stand over it and the feet drag into the water what they collected from roads and paths. As they are entirely uncovered, every kind of dust contributes to its contamination. If this goes on inside the village, what happens at the rest of the municipality? It’s very easy to tell. (…) Therefore it seems to us that, from the chemical analysis, before being conjugated with the bacteriological, we can conclude that the waters of the village are spoiled and dangerous. In the wells, the infection is aggravated by the direct contamination of the buckets and stirring of the filth at the bottom. (…) we must consider that the waters of Loulé, especially the ones at the village, are damaging in normal conditions and dangerous in case there’s an epidemic. In a great work of hygienic renewal of the village, it’s important to sanitize the area the best we can, the homes, the ground; to watch closely all the area which supplies the skirts; to completely abolish the process of immersion of buckets in the walls, covering them adequately and adapting pumps to them; to make the walls of the wells impervious down to the level of the waterbed and the surrounding terrain, in an area of at least two meters; to move the cesspits, the manure deposits and the stables away from the neighborhoods."


Em plena via pública lavam-se pipas, lançando nela as borras do vinho, dando-lhe um aspecto repelente, e incomodando altamente a vizinhança (...) Na rua matam-se os porcos e ali mesmo são chamuscados. (...) de todos os pontos de vista é necessário que a água seja largamente fornecida e que a canalização não esteja à espera das águas pluviais». (...) Não basta haver canos; é preciso haver água, muita água. Loulé tem-na. Não há talvez no concelho nenhuma zona tão rica como aquela em que está edificada a vila. (...) A água, cujas qualidades estão em dependência directa da natureza e composição dos terrenos que atravessa, merece minuciosos cuidados que só lhe não concedem onde não é conhecido o valor da higiene na prevenção da doença e na prevenção do indivíduo e da sociedade.

As qualidades higiénicas da água são muito desprezadas no concelho. É muito mais apreciada a sua frescura que a pureza. Compreende-se que assim seja. A frescura da água bebida pelos calores do estio provoca uma sensação de bem-estar que a água fervida ou filtrada não pode dar. O concelho abastece-se de bicas e de poços. As bicas são raras e são os poços, a que dão o nome de fontes, que fornecem quase toda a população. Loulé, centro urbano, deve dar o exemplo na captação da água. Vamos considerar a vila por si só. Fornece-se quase inteiramente do chafariz e das chamadas Bicas Novas, situadas no fundo da Rua da Praça. Tanto num como noutras, qualquer transeunte sem o menor escrúpulo se aproxima da bica, junta os lábios ao cano e bebe largamente: crianças brincam com a água; adultos lavam ali o rosto pela manhã.

Aguadeiro do Campo, Faro. Country waterman, Faro.

Água Doce | 101

História do Algarve através da água


Havia no quintal um poço a corda ia correndo na roldana e o balde batia na água com um som vazio era preciso bater de novo até encher Subi-lo com água que nem plantas poderiam beber a ria vinha até ali outrora água salgada e doce misturara-se ambígua no ar da casa sob os tectos distantes tal como a primavera floria as malvas e aumentava os dias

Gastão Cruz

102 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


A água é transportada para as habitações em cântaros ou por pessoal das famílias ou por homens que se entregam a essa profissão. Uma série de cântaros colocados em pequenos carros de mão ou num longo carro, cujo pavimento tem a forma de grade nos intervalos da qual entram os cântaros, leva a água a casa dos consumidores.

Nas sucessivas incursões para o poço a corda vai transportando partículas deste magma, além do que arrasta das mãos no áspero roçar provocado pela descida do balde, isto é, a corda suja-se fora e vai lavar-se na água do poço! Se este tem pouca água, os 92 baldes agitam o fundo, e por mais turva que fique nem por isso deixa de ir para casa para depositar.

Os cântaros são usados até que se partam e neles não é feita a menor limpeza. Atravessam as ruas da vila, por vezes sob nuvens de poeira, sem tampa, recebendo tudo o que anda suspenso no ar. Se alguém lhes pede água, não hesitam em autorizar que o transeunte tombe um dos cântaros e beba aplicando a boca às bordas do gargalo. As crianças divertem-se atirando imundícies para dentro.

É frequentíssimo observar que o balde, depois de encher o último cântaro, dá de beber à portadora, ao macho e o resto... volta para dentro do poço! Se a borda é baixa, colocam-se de pé sobre esta e os pés carregam para a água o que levaram das estradas e caminhos.

Chegada a casa dos consumidores a água é passada para outros cântaros. Depois de todos estes incidentes, que qualquer observador pode comprovar, é fácil prever qual será a composição microbiana daquela água, mesmo partindo da hipótese de que saiu da bica puríssima. As chamadas fontes são poços de bordas mais ou menos altas, inteiramente descobertos ou pequenos tanques onde a água nasce. Esta é tirada pela imersão de baldes que casa um trás de casa. É fácil imaginar o que sucede. Num canto qualquer, no poial da casa de campo ou da vila, de limpeza mais que duvidosa, está o balde de lata, com arcos de ferro, com a sua corda pendente. Esta passeia frequentes vezes pelo chão, impelida ora para aqui, ora para acolá. Se é preciso ir buscar água a portadora transporta para a fonte os cântaros e o balde. Se é do campo, coloca sobre o jumento 2 ou 4 cântaros põe em cima o balde e a corda. No trajecto a corda cai várias vezes roçando mais ou menos tempo pelo chão. Chegados ao poço o balde mergulha o número de vezes preciso para encher os cântaros. Enquanto puxa o balde cheio, a corda arrasta pelo chão contíguo ao poço, onde existe um magma de água, lama, excremento de animais e urina, tudo amassado pelos pés das pessoas e dos animais.

Poço em Querença Well, Querença

Como são inteiramente descobertos todas as poeiras contribuem para a sua contaminação. Se tudo isto se passa na vila, o que será no resto do concelho? É facílimo de prever. (...) Portanto parece-nos que da análise química, antes de conjugada com a bacteriológica, se pode concluir que as águas da vila são inquinadas e perigosas. Nos poços a inquinação é agravada pela contaminação directa pela imersão dos baldes e pelo levantamento do magma acumulado no fundo. (...) devemos considerar as águas louletanas, especialmente as da vila, como prejudiciais nas condições ordinárias e perigosas na ocasião de epidemias. Numa grande obra da renovação higiénica da vila impõe-se, sanear, o mais possível, toda a sua área, as habitações, o solo; vigiar cuidadosamente toda a zona que alimenta as toalhas; abolir por completo o processo de imersão de baldes nos poços, cobrindo-os adequadamente e adaptando-lhes bombas; impermeabilizar a parede dos poços até ao nível da toalha aquífera e o terreno circunvizinho num raio pelo menos de dois metros; afastar da sua vizinhança as fossas, as estrumeiras e os estábulos”.

Açude junto à fonte da Benémola, Querença. Weir near the Benémola fountain, Querença.

Água Doce | 103

História do Algarve através da água


104 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 105

História do Algarve através da água


Da torneira ao golfe From tap to golfing

O grande boom do turismo estival algarvio dar-se-ia na década de 60, alterando radicalmente as leis da oferta e da procura, também nos recursos hídricos.

S

e o deformarmos (o Algarve), por causa do turismo, nunca mais o recomporemos...», dizia, num tom profético, o Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, no Despacho de 3 de Abril de 1965 para o Planeamento algarvio. (43) O estudo, já citado, é uma fonte de referência também pelo momento em que se realizou, antes da transformação radical do Algarve. Em plena década de 60, já se podia intuir a atracção dos chamados destinos de águas quentes, como o Algarve, em contraponto ao declínio das águas frias, na costa Atlântica a Norte de Lisboa. Anteriormente, a Póvoa de Varzim, a Granja, a Figueira da Foz, a Ericeira ou a Praia Grande não tinham rival, poupando os veraneantes aos rigores do calor estival. Hoje é a vez de o turismo das águas quentes sentir a concorrência dos longínquos e acessíveis destinos exóticos. Os três arquitectos paisagistas – Viana Barreto, Castello Branco e Ponce Dentinho - anteviram a revolução que o ciclo do turismo traria ao Algarve e deram o alerta: «Exotismos sem fundamento e intervenções incontroladas geram novos processos de evolução, por vezes irreversíveis, donde podem provir a “desertificação”, o aniquilamento, a morte da paisagem». (44) A água, fonte de vida e de civilização, esteve na preocupação central: «A irregularidade do regime hidráulico torna mais sensíveis as linhas de água a todas as fontes de poluição, daqui provindo o especial cuidado que deverá exercer-se para as evitar. Também as formas da fauna e da flora que encontram na continuidade biológica de um curso de água a garantia da evolução do seu ciclo, não deverão ser alteradas por intromissões inconsideradas. Assim se poderá garantir que os aluviões litorais mantenham as características de atracção que actualmente ainda possuem». (45)

106 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

T

he great boom of summer tourism in the Algarve would come in the 60’s, radically changing the laws of supply and demand, also on what comes to water resources. “If we deform (the Algarve) because of tourism, it will never be the same again…”, said, in a prophetic tone, the President of the Council, António de Oliveira Salazar, in a Dispatch dated from April the 3rd, 1965, for the planning of the Algarve. (43) The study, already cited here, is a source of reference, also because of the moment when it was made, just before the radical transformation that took place in the Algarve. Deep into the 1960’s, one can already sense the attraction for warm water destinations, like the Algarve, as opposed to the decline of the cool waters of the Atlantic coast, north of Lisbon. Previously, Póvoa de Varzim, Granja, Figueira da Foz, Ericeira or the Praia Grande (near Sintra) were unmatched, sparing the vacationers to the harsh summer heat. These days, it’s the turn for warm water locations to feel the competition of far and inaccessible exotic destinations. The three landscaping architects - Viana Barreto, Castello Branco and Ponce Dentinho - predicted the revolution that the cycle of tourism would bring to the Algarve and raised the alert: “Unfounded exoticisms and uncontrolled interventions generate new, and sometimes irreversible, processes of evolution, from which “desertification”, annihilation and the death of landscape could come”. (44)

Poço recuperado no buraco 9  do Oceanic Laguna Golf Course, Vilamoura.  Restored well near the 9th hole of the Oceanic  Laguna Golf Course, Vilamoura. 


Água Doce | 107

História do Algarve através da água


A ter sido escutado, este documento teria porventura evitado a desordem urbanística da «Província do Sul», nas décadas seguintes. «Obstruções por construção, mesmo provenientes de albufeiras, deverão ter em conta a respiração dos vales e a sua necessidade de revestimento vegetal. A forma como se desenham longitudinalmente as linhas de água que atravessam o Algarve, constitui inspiração para outras obras de retenção de água, factor que neste caso é considerado limitante. Esta observação ditará portanto conformação de cortinas de compartimentação, distribuição de povoamentos, técnicas de lavoura e outros tipos de ocupação do solo no seu desenvolvimento». Recomenda-se assim: «o ordenamento do litoral deverá iniciar-se a montante das primeiras ramificações das principais linhas de água. Esta constitui elemento imprescindível de todo o desenvolvimento. Portanto tudo aquilo que afecte o seu aproveitamento ou restrinja as possibilidades de captação é contrário ao verdadeiro progresso da província». (46)

Os aldeamentos e os campos de golfe alteraram a paisagem anterior emprestando novos usos e riquezas ao povo do Algarve. Nem sempre acautelaram os equilíbrios naturais ou o património. Maria José Cadete regressa ao caso do aqueduto do Vale Tisnado: «Ainda existe alguma parte do paredão da época romana, ela está submersa e não é detectável nem mesmo pelas organizações locais. Os lagos foram adequados ao uso, (cenário dos campos de golfe) diminuindo substancialmente de dimensão e neles faz-se mergulho apenas para recuperar as bolas de golfe, sendo os seus fundos lisos. Como as quotas mudaram, algumas em cinco metros, pensamos que pouco ou quase nada existe e que as coordenadas são imprecisas. No futuro jamais voltarão a aparecer tais arqueológicos». (47) Nem todos os achados arqueológicos podem ficar eternamente a céu aberto. (ver caixa: O aqueduto perdido) Na comunidade científica é comum ouvir-se que as descobertas podem ser classificadas e, depois, novamente cobertas. Se lhe for reconhecido um valor patrimonial relevante, deverá, pelo contrário, constituir um pólo monumental de interesse público. O complemento ao turismo sol/praia está nos novos incentivos à valorização patrimonial. Há uma procura crescente no âmbito do turismo cultural. Nos últimos anos tem vindo a registar-se uma tendência para se dar uma maior atenção à valorização de sítios arqueológicos por parte do Poder Central e Local. A acção dos privados nesta matéria, não sendo ausente é, por vezes, desenquadrada das acções promovidas pelos órgãos do poder.

108 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Water as a source of life and civilization was the main concern: “The irregularity of the hydraulic regime makes waterlines more sensible to all sources of pollution. This means special care shall be taken in order to avoid them. Also, the forms of fauna and flora that can find the guarantee of their cycle’s evolution in the biological continuity of a course of water must not be changed by inconsiderate intrusion. This way, we’ll be able to guarantee that the coastline alluvials can keep the attraction features they still possess”. (45) If heard, this document could have prevented the urban disorder that came to happen in this “southern province” during the following decades. “Obstructions due to construction, even if they come from reservoirs and dams, shall consider the valley’s respiration and its need to have plant covering. The length-wise design of the waterlines that cross the Algarve inspires other works for retaining water, a factor which may be limiting. This observation will dictate the need for conforming compartment curtains, the distribution of settlements, harvesting techniques and other types of soil occupation in its development.”. This way it recommends: “the planning of the coastline area should start ahead of the first ramification of the main waterlines. This constitutes an indispensable element for all development. Therefore, everything that affects its development or restrains capturing possibilities is opposed to real progress in this province”. (46) In order to counteract the seasonality of tourism, the tourist villages and the golf courses adjacent to them altered the previous landscape, lending new uses and riches to the people of the Algarve, but not always taking care of natural balance or heritage. Maria José Cadete returns to the case of the Vale Tisnado aqueduct: “A part of the roman wall still remains - it’s submerged and is not noticeable not even by local organizations. Lakes were adapted for using as scenery for golf courses, and significantly reduced in size. One only dives in them for recovering golf balls and their depths are plain. Due to the alteration


Barragem de Odelouca.  Dam of Odelouca. 

«O que me interessa a mim é uma utopia do mundo islâmico que é o mundo das regiões. Este é um período da descentralização. O que me interessa muito hoje é o mundo rural que tem a ver com este fenómeno da crise da continuidade e com o saber em relação à água junto das velhas nascentes e dos velhos poços. Importa tentar evitar, por exemplo, que se façam os furos demasiados profundos que rebentem completamente toda uma estrutura geológica e vai buscar a bacias a água nunca mais é reposta» responde Cláudio Torres. Nas investigações da Quarteira, «identificaram-se, com a precisão possível, as linhas de água e os poços (...). Verificámos que ainda existe o velho poço de Vale Tisnado, situado a montante da barragem, junto ao Old Course Golf e à Ribeira, que no passado abastecia de água potável as populações de Vale Judeu. Encontrámos ainda outros poços, de diferentes épocas, inclusive dentro do perímetro dos jardins das moradias, muitos outros foram tapados e entulhados já não sendo viável a sua localização. Quanto às várias valas correspondentes à Ribeira de Vale Tisnado e seus afluentes, no passado apenas com caudais sazonais, presentemente mesmo na época do Inverno já não corre água. Apesar de estarmos perante áreas consideradas protegidas, as urbanizações taparam grande parte das valas». (48) As novas estruturas de abastecimento de água caducaram, quase totalmente, as técnicas e equipamentos anteriores. Se os primeiros motores tinham dispensado a força das mulas, o saneamento básico secou o uso de poços, noras, fontes e minas de água insegura, dispensando, gradual e subitamente, os seculares aguadeiros e os equipamentos que os mantinham. O progresso e o desenvolvimento recentes nem sempre terão sido nefastos. Os trabalhos de captação, tratamento e distribuição de águas e a construção da rede de saneamento básico levados a cabo sobretudo depois da nova ordem constitucional que consagrou e endinheirou o Poder Local - trouxeram melhorias substanciais às populações. Fidelizaram locais habitados no território e tornaram constante a chegada de turistas, ao longo de todo o ano. Os povos do Algarve conhecem, assim, uma nova invasão de residentes, sobretudo estrangeiros, que procuram um Inverno ameno para o Inverno das suas vidas. «Há agora também os chamados neo-rurais», explica Macário Correia, «que procuram a 10 ou 15 quilómetros da costa, o silêncio, a paisagem e a tradição». A mudança de usos e costumes e a rede de águas constantes provocaram, pela primeira vez, uma relação artificial - para não dizer um divórcio - entre cada algarvio e o seu sustento

of the quotas, some around five meters, we think few to nothing remains and coordinates are imprecise. Such archeological findings will never appear again in the future”. (47) Not every archeological findings can remain outdoors forever. (see box: the lost aqueduct) In the scientific community it’s common to hear that discoveries can be subject to classification and then once again covered. If they are found to have a relevant patrimonial value, they should, on the contrary, constitute a monumental center of public interest. The complement to the tourist combination of sun & beach can be found in the new incentives to the valorization of heritage. There is growing demand in the domain of cultural tourism. Through the last years, one can notice a tendency for an increase in value of archeological sites by both local and central power. The action of private owners in this area, if not completely absent, is sometimes out of line with the actions promoted by the powers that be. “What interests me is an utopia of the islamic world, consisting on a world made of regions. This is a period of decentralization. What really interests me today is the rural world, which has something to do with this phenomenon of continuity crisis and the wisdom about water near the old springs and wells. It’s important to try to prevent, for example the drilling of holes that go too deep, completely knocking out the whole geological structure. If we collect water from basins, they will never be replenished again”, answers Cláudio Torres. During investigations in Quarteira, “the waterlines and wells were identified with the most possible accuracy. (…) We verified that the old Vale Tisnado well still exists, located upriver from the dam, near the Old Course Golf and the Ribeira, which once supplied the population of Vale Judeu with drinking water. We found another two wells, from different eras, even inside the perimeter of the gardens of private houses. Many others were covered and put underground, and it’s

Água Doce | 109

História do Algarve através da água


110 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 111

História do Algarve através da água


líquido. A pulverização de campos de golfe e a construção de moradias dispersas ou de urbanizações com uma lógica arquitectónica endógena, apagaram a anterior ordem natural das coisas.

Existem dois Algarves: o que sobra e o que se impôs. Sem transição aparente. Hoje, apenas os velhos repetem os lugares dos seus antepassados como morada. Estamos talvez perante a última geração da serra, tal como a conhecemos desde os primórdios. Também no Algarve, o progresso impõe a chamada desertificação do interior - prefiro chamar-lhe despovoamento - provocando a morte súbita de uma ocupação ancestral. O turismo fez descer os mais novos da Serra para o litoral, reforçando a tendência que sempre expulsou os últimos filhos das terras mais pobres para o Sul, ou para fora. Novas técnicas hidráulicas, beneficiadas pela revolução das fontes de energia, pulverizaram o acesso à água, sobretudo no Barrocal e no Litoral. Pedro Prista explica estes movimentos: «No Alto Barrocal a maior parte do regadio é feito em pequenas hortas vizinhas da casa, a partir de poços e, hoje também furos artesianos, sendo a água tirada ou à nora ou com cegonhas e hoje, quase generalizadamente, com bombas e motores, os quais estimularam muito a abertura de novos poços e de furos, tornando mais vincada ainda a regra de posse individual da água e a regra de uma horta junto à casa». (49) Esta prática reforça o princípio de autonomia de cada um no seu terreno. Ou nem tanto. «Paralelamente, junto aos rios ou em zonas privilegiadas de solo e de água, as terras melhores para “hortar” levam à utilização de águas em comum»(50). Dá como exemplo de hortas regadas com águas tiradas de uma nora de companhia, em ferro fundido, do tipo de eixo curto baixo, construída sobre um poço aberto junto a uma nascente. «A partir dos anos oitenta (do século XX) multiplicam-se as pequenas barragens para irrigação e fornecimento de água ao gado durante a estiagem» (51). A esta vaga não terá sido estranho o apoio da comparticipação financeira proporcionado pela entrada na Comunidade Europeia. «A bombagem electromecânica em furos generalizou-se no último quartel do século XX, servindo quer necessidades agrícolas quer o abastecimento colectivo dos aglomerados», segundo Fernando Varanda. (52) Há uma diferente sedimentação de povos no Algarve. A gente da serra tem sido sempre a mesma; a do litoral, mais mutante. Todas as zonas serranas do mundo são de difícil acesso e,

112 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

no longer possible to locate them. As to the various trenches related to the river of Vale Tisnado and its branches, they once had seasonal flows but now, even during Winter, water no longer runs through them. Even inside an area which is considered under protection, housing development has covered the majority of trenches”. (48) The new structures for water supply rendered almost every previous techniques and devices obsolete. If the first engines dispensed with the strength of mules, basic sanitation dried up the usage of wells, water wheels, fountains and mines of unsafe water, dispensing, both gradually and suddenly, the centuries-old watermen and the equipment they maintained. Recent progress and development wasn’t always harmful. The works for capturing, treatment and distribution of water and the construction of a basic sanitation network undertaken mainly after a new constitutional order gave more importance and money to local power - brought substantial improvement to the population. They ensured the constant inhabitation of various places in the territory and made possible the constant flow of tourists all year round. Therefore, the people of the Algarve get to know a renewed invasion of inhabitants, mostly foreigners, who seek warm winters for the Winter of their lives. “Now we also see the so called neo-rurals”, explains Macário Correia, “who seek, 10 to 15 kilometers from the coast, the silence, the landscape, the tradition”. The change in customs and habits and the constant water network triggered, for the first time, an artificial relationship - not to mention a divorce - between each and every “Algarvio” and his liquid sustenance. The spraying of golf courses and the construction of scattered country houses or housing lots with their own architectural logic erased the previous natural order of events. Like previous invasions, there are now two Algarves: the one which is left and the one which was imposed. With no apparent transition. Today, only the elderly repeat the places of their ancestors as their address. We are probably before the last generation of the mountain range as we know


portanto, de maior conservadorismo. Cláudio Torres especifica o caso da serra do Algarve: «São populações que se defendem melhor, que se escondem e que se abrigam com mais facilidade. Organizam-se em comunidades fortes e de defesa. A serra do Algarve, como todas as outras, mas especificamente aquela, está com o mar à vista mas é de difícil acesso porque os caminhos se complicam por barrancos profundos, muito apertados. Por isso, só o Guadiana é a via de passagem ao Norte para além de algumas vias difíceis, de pé posto, que vão em direcção ao Alentejo com burricos e cavalos». Nas zonas de planície acontecem o atravessamento, as conquistas, as guerras novas, o grande comércio. Nas zonas de montanha estão as pequenas comunidades que estão agarradas à sua terra e que estão escondidas. Hoje, fazendo uma prospecção, encontramos na serra do Algarve praticamente o mesmo povoamento, as mesmas pessoas desde a Idade do Ferro, desde 4000, 5000 anos a.C.. «Já estavam ali, naquele local, a utilizar aquele mesmo poço. Essa é que é a parte importante da serra. São as parcelas mais pobres». (53) Na verdade, passamos a serra e quase não se vêem as hortas. Avistamos encostas áridas com comunidades que vivem principalmente da pastorícia mas organizam, no fundo dos vales, uma estrutura invisível de manutenção da água de uma forma inteligentíssima. «Os barranquinhos que constroem têm água chupada apenas uma vez por ano. Depois secam. Os poços são feitos, muitas vezes, no leito dos barrancos com as paredes levantadas. Quando vêm as enxurradas, o poço está feito do tamanho certo», conta Cláudio Torres. Outras vezes, o tanque é mais pequeno e são os camponeses que desviam a água, levantam um muro lateral junto da encosta e levam terra para o leito antigo no dorso de burros. Fazem os campinhos no antigo leito do rio e cultivam-nos há séculos, servindo-se do mesmo poço, da mesma água. Nem todos ficam. «Semeei salsa no rio Hortelã na outra banda Não se pode ter amoras Da sorte que o mundo anda». (54) Com efeito, estes campinhos são pobres, limitados para um tipo de produto que acaba. As famílias têm de ser curtas. Dos sete ou oito filhos, vai ficar apenas um ou dois na terra, os outros têm de sair para a pesca, para o comércio, para a emigração, para o turismo. Não têm tradição de retorno. «Não têm como voltar porque aquilo não chega. Quem fica, habitualmente, é uma filha. As filhas deslocam-se menos.

it. Also in the Algarve, progress imposes a so called desertification of the interior - I prefer to call it depopulation - causing the sudden death of an ancestral occupation. Tourism made the youngsters come down from the mountains to the shore, strengthening the tendency which always expelled the last sons of the poorest lands to the South, or out of the country. New hydraulic techniques, which benefit from the energy source revolution, pulverized access to water, mainly in the Barrocal and the Coast. Pedro Prista explains these movements: “In the High Barrocal, most of the irrigation is done in small vegetable gardens next to the houses, from wells and also today bore holes, with the water coming from water wheels or with the help of “cegonhas” (shadoofs), and today’s almost widespread use of pumps and engines, which greatly stimulated the opening of new shafts and pits, strengthening even more the rule of individual water possession and the existence of a kitchen garden near the house”. (49) This practice reinforces the principle of autonomy where each one has his own land. Or maybe not. “At the same time, near the rivers or in the privileged zones of soil and water, the best lands for gardening lead to the common usage of water.” (50). He points the example of gardens irrigated with the help of a common water wheel, made of cast iron, with a low and short axis, built over a well which was opened near a source. “From the 1980’s, small dams for irrigation start multiplying, and the associated supply of water to cattle during the summer” (51). This tendency is not foreign to the contribution brought by the access to the European Union. “Electromechanical pumping through holes became common in the last quarter of the 20th century, serving not only agricultural needs but also the collective supply of populations”, according to Fernando Varanda (52). There is a difference in the consolidation of people in the Algarve. The people of the hills have been the same as ever; the ones who live near the shore have been more changeable.

Água Doce | 113

História do Algarve através da água


Os homens saem, vão à aventura», explica Cláudio Torres. «Já não tenho Pai nem Mãe Nem nesta terra parentes Sou filha das ervas verdes Neta das águas correntes». (55) Esta é a história do mundo serrano: os filhos têm de ir à procura de riqueza, de civilização, do desconhecido. A mulher fica naquele sistema de fazer casamento num povoado vizinho, num esquema fechado, construindo uma série de estruturas na serra muito interessante que começou, recentemente, a ser estudada pela antropóloga Cristiana Bastos. Pelos levantamentos realizados há cerca de 20 anos, constatou, de forma curiosa, que aquela população não estava até então abandonada. Mantinha-se e sobrevivia e ia-se renovando constantemente quase até aos nossos dias. Só agora começa a haver uma degradação, com o abandono dos mais velhos. Mas é um fenómeno muito recente. Portanto, pela prospecção arqueológica vamos encontrar os mesmos locais desde a Idade do Ferro. «O mesmo sítio, a mesma água e a mesma sorte. É fantástico», conclui Cláudio Torres. Apesar da importância da pesca e do impacto das rotas marítimas internacionais que escalavam no Algarve, durante milénios a maioria da população era rural. «O Algarve viveu de costas para o litoral», diz Artur Duarte Ribeiro, ex-Administrador da empresa Águas do Algarve, referindo-se aos principais meios de subsistência dos povos do Algarve. Nesse sentido, as heranças beneficiavam os filhos mais velhos com as terras ricas do Barrocal deixando as do litoral para os mais novos. Até aos anos 50, 60 do século XX, no litoral estavam as zonas mais desfavorecidas de infra-estruturas de qualidade no que toca ao saneamento e à captação, tratamento e distribuição de água. A súbita febre do turismo balnear provocou um crescimento desmesurado. Ao enriquecimento abrupto não correspondeu um investimento compatível. No início do desenvolvimento turístico, cada Concelho, cada Freguesia ou pólo turístico fez uma multiplicação de furos para captação de água. «No Sul de Espanha as captações foram de tal ordem que os aquíferos ficaram comprometidos por muitas gerações. Hoje precisam de recorrer a um sistema de dessalinização muito dispendioso para garantir o fornecimento de água em grandes quantidades», explica Artur Duarte Ribeiro. Em Portugal o caso não foi tão grave. Os aquíferos não ficaram comprometidos nas próximas gerações mas, nas últimas décadas do século XX, deu-se a intrusão na salina ao ter

114 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Every steep area in the world is difficult to access, which explains a greater conservatism. Cláudio Torres specifies the case of Algarve’s mountain range: “These are populations that defend themselves better, hide and take shelter more easily. They are organized in strong defense communities. The Algarve’s highlands, like all others but specifically those, are able to look upon the sea but accessing them is difficult, because the paths complicate themselves through deep and very narrow slopes. Therefore, only the Guadiana can serve as a passageway to the North, in addition to some difficult roads, almost shortcuts, which lead to the Alentejo by donkey and horse”. In the plain areas, all kinds of events happen: the conquests, the new wars, the great trade. In the mountains sit the small communities, attached to their land, hidden away. If we look closer today, we find in Algarve’s mountain range practically the same kind of people since the iron age, from 4000, 5000 years B.C. “They were already there, using that same well. That’s the important thing about the range. Those are the poorest plots of land.” (53) To say the truth, we overcome the mountains and we almost don’t see the food gardens. We contemplate arid hillsides with communities that live mainly from animal farming but organize, at the bottom of the valleys, a most clever invisible structure of water maintenance. “The small hills they build contain water which is “sucked” only once a year. Then they dry up. The wells are built, many times, at the foot of the slopes, with their walls raised above the ground. When the floods come, the well has the right size”, Cláudio Torres tells us. Other times, the tank is smaller and the peasants themselves draw the water, by raising a side wall near the mountainside, transporting earth to the old riverbed on the back of donkeys. They build their “campinhos” (small gardens) near the ancient riverbed and cultivate them for centuries, using the same well, the same water. Not all of them stay. “I sowed parsley at the river


And mint on the other shore Blackberries you can’t have Such is the way the world has gone”. (54) Indeed, these “campinhos” are poor and limited to a type of product that frequently runs out. Families have to be small. From seven or eight children, only one or two will stay behind, the others must part ways for fishing, trade, emigration, tourism. They have no tradition of coming back. “They have no way of returning, because there simply isn’t enough. The one who stays, usually, is a daughter. Daughters move less. Men go out, adventure themselves”, explains Cláudio Torres. “I no longer have Father nor Mother Or any kind of relatives in this place I am the daughter of the green weeds Grandchild of the flowing waters.” (55)

 Etar de Tavira Tavira treatment plant

havido um volume excessivo de captações capaz de abastecer a invasão sazonal. A água perdeu qualidade, tornou-se salobra e, ainda hoje, parte da população – mesmo a mais humilde - mantém o hábito de comprar água engarrafada. «Um garrafão de cinco litros custa mais do que um camião cisterna dos bombeiros com 20 metros cúbicos de água em excelentes condições». (56) Não terá sido fácil reverter a situação. Apesar de haver um Plano Geral de Aproveitamentos Hidráulicos do Algarve desde 1973, a conquista do Poder Local, depois da Revolução, a par dos benefícios que trouxe às populações, emprestou uma lógica circunscrita ao horizonte autárquico – e por isso pulverizada – à gestão da captação, tratamento e distribuição de águas e na rede de saneamento básico. Esta filosofia

The stories of the world of the range are these: the sons must go and seek wealth, civilization, the unknown. Women stick to the system of marrying in a nearby settlement, in a closed scheme, building a very interesting series of structures in the mountain range that has started, recently, to be studied by the anthropologist Cristiana Bastos. According to surveys conducted twenty years ago, she found that, curiously, the population wasn’t at all abandoned. It kept surviving and renewing itself almost up to our days. Only now a kind of decay starts taking place, with the older ones going away. But it’s a very recent phenomenon. Therefore, from the archeological survey we’ll be able to find the same place ever since the Iron Age. “The same place, the same water, the same fate. It’s amazing”, Cláudio Torres concludes. Despite the importance of fishing and the impact of international sea routes that made a stop in the Algarve, the population had been rural for millennia. “The Algarve has lived with its back turned to the sea”, Artur Duarte Ribeiro, ex-CEO of Águas do Algarve tells us, referring to the main means of survival of the people in the Algarve. That way, heirlooms benefited the oldest sons with the

Água Doce | 115

História do Algarve através da água


 Barragem do Arade. Dam of Arade.

rich lands in the Barrocal, leaving the coast to the youngest. Until the 1950’s and 60’s, the lands near the shore had the least favoured areas for quality infrastructure on what comes to sanitation and water catchment, treatment and distribution. The sudden burst of summer tourism triggered an enormous growth. But sudden enrichment wasn’t matched by investment. At the beginning of the development of tourism, each Municipality, each Parish and each tourist cluster proceeded to drill a multiplicity of holes for reaching water. “In Southern Spain, catchment was so great that the aquifers were compromised for many generations. Today, they have to resort to a very expensive desalinization system in order to guarantee a large supply of water.”, Artur Duarte Ribeiro explains. In Portugal, it wasn’t that serious. Aquifers aren’t compromised for the next generations but, in the last decades of the 20th century, an intrusion to the salt banks took place due to an excessive amount of catchment, for supplying the seasonal invasion. Water lost quality, turned salty and even today, most of the population - even the poor - keeps the habit of buying bottled water. “A 5 liter jug is more expensive than a firemen’s tanker truck filled with 20 cubic meters of excellent water.” (56) It wasn’t easy to revert this situation. Even though there was a General Plan for Hydraulic Development in the Algarve since 1973, the consecration of local power, after the Revolution, along with the benefits it brought to the population, carried with it a specific logic, enclosed in the narrow horizons of local governments - and therefore non-existent for the management of intake, treatment and distribution of water and the basic sanitation network. This philosophy wasn’t adequately surveilled or anticipated in time by the Central Power or the European Funds. Therefore, until 1995, there were 16 different entities for water management; more than 170 public points of water abstraction; treatment processes that were obsolete and

116 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


não terá sido vigiada nem contrariada atempadamente pelo Poder Central nem pelos Fundos de Bruxelas. Assim, até 1995 havia 16 entidades gestoras de água; mais de 170 captações públicas; processos de tratamento obsoletos e de difícil controlo; sobre exploração dos aquíferos que secavam com frequência ou permitiam a intrusão da cunha salina; excesso de cloretos e nitratos na água que mostrava elevada incrustação de carbonatos. Em suma: a multiplicação dos furos, a contaminação da água e o incremento exponencial do turismo construíram uma equação explosiva que comprometia seriamente o equilíbrio da Região. No final do século passado, o Estado Central assumiu então a responsabilidade de captar, tratar e distribuir água verdadeiramente potável pelas populações. Já em Agosto de 2000 criou a empresa Águas do Algarve por fusão das sociedades das Águas do Sotavento Algarvio SA e das Águas do Barlavento Algarvio SA. «Estes dois sistemas multimunicipais desenvolviam-se sobretudo ao longo da estrada nacional nº 125, junto aos pólos de turismo. A Serra e o Barrocal, onde os municípios não tinham meios para levar a cabo o saneamento e a distribuição de água, praticamente não existiam». (57)

Com a criação das Águas do Algarve, em 2000, foi lançado um sistema multimunicipal em todo o Algarve que modernizou a questão da água. Foi possível reduzir o número de Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) no litoral, com equipamento ambientalmente válido, e racionalizar também o número e funcionalidade das Estações de Tratamento de Águas (ETA), poupando nos custos finais. Pediu-se às abastadas autarquias do litoral solidariedade com o interior algarvio - que foi concedida - na orientação dos meios financeiros para a conclusão de uma rede abrangente de distribuição e saneamento. Hoje, são mais de 500 quilómetros de rede de água que cobrem todo o Algarve..

Numa região onde o turismo é a principal actividade económica, a conquista do saneamento básico era quase tão importante como a da distribuição da água. Na verdade, a conclusão desta obra aumentou o número de bandeiras azuis nas praias do Algarve e fez com que o grau de cumprimento das estações tivesse passado de 36%, em 1995, para 90%, em 2010. Para breve estará a construção da ETAR de Faro Nascente que abrangerá parte dos municípios de Olhão, Faro e Bras de Alportel.

difficult to control; an over-exploration of the aquifers, which dried up frequently and allowed the intrusion of salt banks; an overflow of chlorides and nitrates in the water, which showed a high incrustation of carbonates. In essence: the widespread drilling, the contamination of water and the exponential increase in tourism built an explosive equation, which seriously compromised the region’s balance. At the end of the last century, the Government assumed the responsibility of capturing, treating and distributing drinking water of quality to populations. In August 2000, it created the company Águas do Algarve by merging the two societies Águas do Barlavento Algarvio S.A. and Águas do Sotavento Algarvio S.A. “These two multi-municipal systems were developed mainly along the 125 road, near the tourist centers. The mountain range and the Barrocal, where the municipalities had no means to undertake sanitation and distribution of water, practically did not exist”. (57) With the creation of Águas do Algarve, in 2000, a multi-municipal system was launched throughout the region, modernizing the whole water issue. It was possible to reduce the number of Wastewater Treatment Plants near the coast with environmentally valid equipment and to also rationalize the number and functionality of the Drinking Water Treatment Plants, with savings in final costs. The wealthy cities in the coast were asked for solidarity with the Algarve’s interior - which was granted - for the orientation of financial means for the conclusion of a comprehensive network of distribution and sanitation. Today, more than 500 kilometers of water network are spread all over the Algarve, with only a few regions of Alte, Salir, Querença and Benafim out of it, but where sanitation is already concluded. In a region where tourism is the main economic activity, the overall attainment of basic sanitation was almost as important as the distribution of water. In fact, the conclusion of this enterprise caused an increase of blue flags

Água Doce | 117

História do Algarve através da água


 Etar de Faro Faro treatment plant

 Etar de Faro Faro treatment plant

118 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Faltava travar as batalhas da quantidade da captação e da qualidade da água. Os anos de seca 2004 e 2005 exibiram, de novo, os gravíssimos problemas de abastecimento de água com uma quebra significativa da capacidade do aquífero. Nesses anos, foi necessário recorrer à bombagem do volume morto das albufeiras - aquele fundo de água dos reservatórios que fica abaixo do nível das últimas comportas. E, apesar de se tratar de uma água excepcionalmente enlameada, foi possível levar a cada torneira água potável de qualidade tendo as Águas do Algarve obtido o prémio de melhor água, conferido pelo impiedoso júri da ESAR, Entidade Reguladora de Águas e Resíduos, entre várias entidades. As quatro Estações de Tratamento de Água (ETA), nas Fontainhas (Portimão), Alcantarilha (Silves), Tavira e Beliche (Castro Marim) transformam o líquido numa bebida saudável que sai dali em adutores para os diferentes reservatórios municipais. Mas o susto da falta de água nesses anos foi ao ponto de ter sido considerada a possibilidade de entrar na dispendiosa via da dessalinização para resolver o abastecimento, sem comprometer definitivamente o aquífero, (como aconteceu no Sul de Espanha) nem o desenvolvimento do turismo. Não foi necessário. Desde então, tem havido anos de chuvas abundantes que repuseram os níveis anteriores à seca. O Algarve refez os índices mas barragens da Bravura (Lagos/ Monchique), do Funcho e Arade (Silves) e de Odeleite e Beliche (Castro Marim). Mas o alarme tinha sido dado tornando imperativa a construção da Barragem de Odelouca que, em articulação com as infra-estruturas do sistema multimunicipal existentes, assegurou finalmente o fornecimento contínuo e regular de água para consumo humano na Região do Algarve, evitando os constrangimentos dos anos de seca. A água deste extraordinário depósito é encaminhada para o túnel de oito quilómetros, desde a margem esquerda da ribeira de Odelouca até à margem direita do rio Arade, 200 metros a jusante da barragem do Funcho. Aqui há um canal adutor que transporta a água até à ETA de Alcantarilha onde é submetida a um processo de tratamento para que possa ser distribuída pelo Algarve. Na verdade, os seus 134 milhões de metros quadrados de capacidade de armazenamento de água servem sustentadamente o desenvolvimento regional dos 35 municípios do Barlavento, Albufeira, Aljezur, Lagoa, Lagos, parte do Concelho de Loulé, Monchique, Portimão, Silves e Vila do Bispo.

(a certificate of water quality) in Algarve’s beaches, and caused the fulfillment rate of stations to go up from 36% in 1995 to 90% in 2010. Soon, Faro and Olhão will surrender their municipal stations for a single one, skilled and able for treatment in the whole of the Algarve’s Center-Eastern region. Now, the only battles left are for the quality and catchment of drinking water. The drought years of 2004 and 2005 once again exposed the very serious problems of water supply, with a significant drop in the aquifer’s capacity. In that time, it was necessary to pump the “dead” volume in the reservoirs - the bottom water, which stays below the level of the last floodgates. And even though it had an exceptional amount of mud, it was still possible to bring quality drinking water to each and every tap, as Águas do Algarve earned the prize for best water, awarded by the merciless jury of the ESAR, the Regulation Entity for Water and Residue, among other organizations. The four Drinking Water Treatment Stations (ETA) in Fontainhas (Portimão), Alcantarilha (Silves), Tavira and Beliche (Castro Marim) transform the liquid into a healthy drink that goes away in adductors towards the various municipal reservoirs. Nevertheless, the water scare during those years was such that the expensive possibility of desalinization was contemplated for solving the problem of supply without definitely compromising the aquifer, (like it happened in Southern Spain) or the development of tourism. It wasn’t necessary. Since then, years of abundant rain restored the levels prior to the drought. The Algarve rebuilt its quotas in the dams of Bravura (Lagos / Monchique), Funcho and Arade (Silves), Odeleite and Beliche (Castro Marim). But the alarm had been sounded, making it imperative to build the Dam of Odelouca, which, articulated with the already existent infrastructures of the multimunicipal system, finally assured the regular and continuous supply of water for human consumption in the Region of Algarve, avoiding the constraints of the drought years.

Água Doce | 119

História do Algarve através da água


 Etar de Vilamoura Vilamoura treatment plant

The water of this amazing depository is channeled to an 8 kilometer-long tunnel since the left bank of the Odelouca river until the right bank of the Arade, 200 meters downstream of the Dam of Funcho. Here, an adductor canal carries it to the ETA in Alcantarilha, where it’s submitted to a treatment process so that it can be distributed throughout the Algarve. In fact, its 134 million square meters of water storage capacity sustain the regional development of the Barlavento municipalities of Albufeira, Aljezur, Lagoa, Lagos, part of Loulé, Monchique, Portimão, Silves and Vila do Bispo. The water of Odelouca also makes it possible, if needed, to reinforce the supply of the Sotavento, through a Reversible Pumping Station, covering S. Brás de Alportel, Faro, Olhão, Tavira, Castro Marim, Alcoutim and Vila Real de Santo António. In conclusion: even in severely dry years, the Algarve is now guaranteed the integral quality and quantity of water.

A água de Odelouca permite ainda, em caso de necessidade, reforçar o abastecimento do Sotavento através de uma Estação Elevatória Reversível para suprir S. Brás de Alportel, Faro, Olhão, Tavira, Castro Marim, Alcoutim e Vila Real de Santo António. Conclusão:

Mesmo nos anos de seca consecutivos, o Algarve passou a estar integralmente garantido em quantidade e qualidade de água. Em dez anos, ultrapassou as dificuldades na captação, tratamento e distribuição da água, bem como no saneamento básico, graças ao apoio substancial dos fundos da União Europeia, através do trabalho das Águas do Algarve. É com indisfarçável orgulho que, na sede desta empresa no casco antigo de Faro, se exibem vitrinas e relatórios com os prémios de excelência e quadros de topo na classificação da qualidade da água, em relação a todo o País. A Águas do Algarve entrou também no campo da produção de energia hídrica e foto voltaica para melhor garantir um siste-

120 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

In ten years, the region has overcome the difficulties in catchment, treatment and distribution, as well as basic sanitation, thanks to the substantial support of European funds, as well as the work of Águas do Algarve. It is with undisguised pride that, in the headquarters of the company in Faro’s historical center, displays and reports are exhibited, showcasing excellence prizes and top rates for classification of water quality when compared to the rest of the country. Águas do Algarve has also entered the field of hydric and solar energy production for better guaranteeing self sufficiency in the Region. Today, the old salty water was replaced by the world’s only certified product, which doesn’t need to be bottled. It also pioneered the elaboration of a Safety Plan (2006), as it was already recommended so much by organizations like the WHO (World Health Organization). Its lab is certified in over 100 parameters, conducting, throughout the year, over 10 thousand analyses. Emergency Contingency Plans anticipate ac-


 Barragem do Arade. Dam of Arade

ma auto-suficiente na Região. Hoje, a velha água salobra deu lugar ao único produto do mundo certificado, sem engarrafamento. Foi igualmente pioneira em Portugal na elaboração de um Plano de Segurança (2006), tão recomendado por entidades como a Organização Mundial de Saúde. O seu laboratório é acreditado em mais de cem parâmetros realizando, ao longo do ano, mais de dez mil análises. Planos de Emergência de Contingência antecipam o que fazer nas situações imprevisíveis com alternativas estudadas. Uma sala de painéis de controlo monitoriza, em múltiplos computadores, o exacto estado dos 500 quilómetros de tubos que, acompanhados a fibra óptica, abrem e fecham comportas à velocidade de uma tecla. Parece um cenário de um filme futurista, com aplicação no presente, honrando as sofisticadas técnicas de captação, distribuição e tratamento de águas das civilizações romana e islâmica. Cláudio Torres lembra: «As talhas enormes (da era islâmica), vidradas por cima, porosas por baixo, eram, por vezes, decoradas com frases escritas que barakah, que quer dizer bênção. Pede-se que Deus abençoe aquela água e que evite que se estrague, que possa apodrecer ou degradar». Cuidados, sabedoria e preces mantêm-se. Porque a água é o bem essencial. Mas hoje a relação do Povo com a água é de uma intimidade desfeita. A torneira tornou o precioso líquido num bem tão acessível como distante.

tion in unpredictable situations, with studied alternatives. A control panel room monitors, through a myriad of computers, the exact state of the 500 kilometers of pipes which, surveilled by optic fiber, open and close floodgates at the touch of a button. It looks like the setting of some kind of science fiction movie, applied to the present, honoring the sophisticated techniques of gathering, distribution and treatment of water practiced by the roman and islamic civilizations. Cláudio Torres remembers: “The enormous pots (from the islamic age), glazed on top and porous In the bottom, were sometimes decorated with written sentences like “barakah”, which means blessing. They were asking God to bless that water and to avoid its spoiling, rottening or decay”. The care, the wisdom and the prayer are still in practice today. Because water is an essential good. But today the People’s relationship with water is one of shattered intimacy. A simple water tap turned this precious liquid into a resource so much accessible as it is distant.

Água Doce | 121

História do Algarve através da água


O novo referendo ao velho depósito O grande depósito de água deixou de ser necessário e desequilibrava as vistas no alto de Tavira. Quiseram removê-lo. Mas o Povo protestou dando origem a um dos primeiros Referendos Locais realizados em Portugal em 1999. O depósito resiste. Neste olhar sobre a relação dos povos do Algarve com a água doce torna-se obrigatório referir o famoso episódio do depósito de Tavira que, a 13 de Junho de 1999, conduziu à figura do Referendo Local. Previsto no artigo 240 da Constituição desde 1976, este instituto nunca tinha sido usado havendo apenas, dias antes, o de Serreais, em Viana do Castelo, a propósito da construção de um pavilhão polidesportivo.

Depósito de água que  se manteve em Tavira. Water deposit remaining in Tavira

Diz a Lei Orgânica que regulamenta o Referendo Local (nº4/2000 de 24 de Agosto) que este «só pode ter por objecto questões de relevante interesse local». Pois foi o que a população das nove freguesias do Concelho de Tavira considerou sobre o abatimento do seu antigo reservatório de água. Inestético, imponente e desnecessário, o Presidente da Câmara Municipal, Macário Correia, propôs a remoção daquela estrutura que estaria a desequilibrar o bonito horizonte do casario de Tavira, no Alto de Santa Maria. Logo se ergueu um alvoroço na Cidade. A memória, o hábito e, talvez, a gratidão do Povo pela água que saciara Tavira ao longo de várias décadas justificou a polémica e a inovadora consulta popular. O resultado confirmou os argumentos dos que consideraram o cilindro elevado como um monumento «de reconhecido valor patrimonial».

The new referendum to the old tank The great water tank was no longer necessary and upset the views from the top of Tavira. They wanted to take it away. But the People protested, giving way to one of the first local referendums ever conducted in portugal, in 1999. The reservoir endured. In this look about the relationship of the people of the Algarve with fresh water, we’re obliged to make a reference to the famous deposit of Tavira which, on the 13th of June 1999, led on to a local referendum. Predicted in the article 240 of the Constitution since 1976, this institution had never been used, with the exception, days before, of Serreais, in Viana do Castelo, where it was conducted for voting the construction of a sporting pavilion.

The Organic Law which regulated the Local Referendum (number 4/2000 of 24 of August) states that “it could only be conducted about a relevant issue of local interest”. That was the thought of the population of the nine parishes of the Tavira municipality about the demolition of their old water reservoir. As it was awkward, imposing and unnecessary, the Mayor proposed the removal of this structure, which was disturbing the elegance of Tavira’s skyline, on the top of the Hill of Santa Maria. Great bustle was raised in the city. The memory, the habit and perhaps the gratitude of the people for the water that quenched Tavira through many decades justified the controversy and the innovative popular inquiry, confirming the arguments of those who considered the elevated cylinder a monument “of recognized asset value”. .

122 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 123

História do Algarve através da água


O futuro da água  Etar de Faro Faro treatment plant

The future of water

Historiadores e ambientalistas, habituados ao estudo de fenómenos cíclicos, não vêm com optimismo o desenvolvimento turístico de há meio século a esta parte, no Algarve.

H

«E

“A lot of environmental and economic variables were considered which led to the disappearance of courses of water, such as infrastructures connected to water, the transformation of an agricultural vocation which was replaced by a large scale and high density industry of tourism. All these factors, among many others, are responsible for the current situation and, facing a global context, for a future of great uncertainty. Will the past repeat itself?”, asks Maria José Cadete. (58) And she doesn’t have good predictions, too: “After we’ve studied the variable of water, we’re left

quacionaram-se muitas variáveis ambientais e económicas que levaram a que tenham desaparecido cursos de água, infra-estruturas ligadas à água, a transformação de uma vocação agrícola que deu lugar à indústria do turismo em larga escala e de forte densidade. Todos estes factores e muitos outros são responsáveis pela situação actual e, face a um contexto de âmbito global, por um futuro com grande margem de incerteza. Será que o passado se repete?», interroga-se Maria José Cadete. (58) E não faz bons vaticínios: «Estudada que foi a variável água, fica-nos a ideia de como grandes consumos no presente dum recurso escasso, podem levar ao seu esgotamento e arrastar todo um desenvolvimento cheio de fragilidade».

124 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

istorians and environmentalists, used to studying cyclic phenomena, don’t share a positive outlook on the burst of Algarve’s touristic and real estate development of the last half century.


O novo Plano Director, já aprovado, prevê a duplicação da densidade populacional nos próximos dez anos. O esgotamento dos sistemas leva à sua auto destruição e o luxo, como sistema em que se baseia a competitiva oferta de lazer, exige fortes necessidades de água. As facilidades e garantias do abastecimento contínuo, conquistadas plenamente apenas no início do século XXI, não desmotivam o interesse científico sobre os equilíbrios sustentados do ecossistema algarvio. Em 2009, por exemplo, Sónia Guerreiro Tomé, orientada por Pedro Prista do ISCTE, publicou uma tese de mestrado intitulada «A Água Dá, a Água Tira: Gestão Social dos Extremos da Água (seca e torrencialidade) no Barrocal Algarvio». Nesse trabalho académico, procura conhecer e aprofundar o modo como se gerem as flutuações pluviométricas em prol de uma agricultura tradicional de sequeiro e regadio, numa zona clássica de regime torrencial. Faz a análise da gestão social da água de rega de uso comum tentando compreender dimensões económicas, jurídicas, relacionais, simbólicas e outras na sociedade do Alto Barrocal das Freguesias de Querença, Tôr e Salir do Concelho de Loulé, sobretudo do ponto de vista do agricultor. Apesar dos progressos realizados na captação, tratamento e distribuição de água a que fizemos referência, este estudo alerta para as incógnitas que o futuro pode trazer sobre os recursos hídricos: «Manter activo o uso comum da água no fundo dos vales, zonas tradicionalmente privilegiadas do ponto de vista dos recursos hídricos, pode significar para as gentes do Barrocal o acautelar de um recurso indispensável a um futuro que se afigura incerto. Incerto do ponto de vista do recurso água». (59) Estudar o impacto do que fazemos a jusante é tão importante como prever o seu impacto no futuro. Lá tem lugar tudo que se construiu a montante, tudo o que provocámos antes.

Quando falamos da relação dos povos do Algarve com a água doce, não podemos ignorar a revolução que o Alqueva provocou na província do Sul. Planeada durante décadas será talvez cedo para medir todas as suas consequências nos comportamentos hídricos a jusante. Barragens como a de Odelouca ou a do Alqueva sustentam hoje caudais compatíveis com o luxo ajardinado dos aldeamentos e campos de golfe que proliferam por todo o litoral.

with the notion that large amounts of present consumption of a scarce resource can lead to its exhaustion and drag with it a whole development which is actually quite fragile”. The new Master Plan for the region, already approved, predicts that the population density will double in the next ten years. The exhaustion of systems leads to its self destruction, and luxury, like the system on which a competitive leisure offer is based, demands a strong need for water. The easiness and the guarantees of continuous supply, conquered fully only in the beginning of the 21st century, don’t take motivation away from the scientific interest about the sustained balance of Algarve’s ecosystem. In 2009, for instance, Sónia Guerreiro Tomé, guided by Pedro Prista, from ISCTE, published a thesis for her master’s degree titled “What Water Gives, the Water Takes Away: Social Management of Extreme Water Conditions (drought and flooding) in Algarve’s Barrocal”. In this academic work, she seeks to learn and deepen the way rainfall fluctuations are managed for the benefit of traditional dry and irrigation agriculture, in an area prone to flooding. She makes an analysis of the social management of common-usage water for irrigation, trying to understand the economic, legal, relational and symbolic dimensions, among others, of the society of the High Barrocal in the parishes of Querença, Tôr and Salir, in the municipality of Loulé, mainly from the point of view of the farmers. Despite the mentioned advances in catchment, treatment and distribution of water, this study raises the alarm for the unknown factors the future may bring over hydric resources: “Keeping the common usage of water in the valleys, zones which are traditionally privileged from a point of view of hydric resources, can mean, for the peoples of the Barrocal, the cautious management of an indispensable resource into a future which looks uncertain. Uncertain from a water point of view.” (59) To study the impact of what we do downstream is as important as trying to predict

Água Doce | 125

História do Algarve através da água


«Defendemos o Alqueva apesar do desastre que foi o apagamento de muitos marcos nacionais porque a água é vital. Por várias razões: estamos convencidos de que, no futuro, vai ser necessário desenvolver a agricultura. A população vai aumentando e, para comer, tem de ter terra limpa e esta tem de ter água», diz Cláudio Torres. «O tempo da terra limpa de químicos, e de outras porcarias, obriga ao retomar do ciclo da hortofruticultura que usa muita água e que foi sempre fundamental na zona do Mediterrâneo. Esta água será preciosa. Saber salvar e aproveitar outra vez a água e pô-la a funcionar é fundamental. Aí é que entra, com dificuldade, a moda do golfe e outras, que é um gasto brutal de água boa. Mas águas já poluídas ou sujas podem ser perfeitamente refeitas e reutilizadas, por exemplo, no golfe. Este desenvolvimento pode ser compatível se as águas recicladas em vez de serem deitadas fora ou abandonadas possam ser reutilizadas para o golfe onde não deve ser gasta a água limpa fundamental para a agricultura». Artur Duarte Ribeiro sustenta que é possível introduzir um sistema de reutilização de águas no Algarve garantindo, assim, a sustentabilidade entre a escassez do líquido e o uso abun-

126 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

its impact in the future. In it, there’s a place for everything we built upstream, everything we triggered before. And when we talk about the relation of the Peoples of the Algarve with fresh water, we can’t ignore the revolution that a structural work like Alqueva causes in this southern province. Planned for decades, it may be a bit early to measure all its consequences in hydric behavior downstream. Today, dams like Odelouca and Alqueva sustain flows which are compatible with the gardened luxury of tourist villages and golf courses, which appear all over the coastline. “We support the project of Alqueva despite the disaster of the disappearance of many national landmarks, only because water is vital. For various reasons: we are convinced that, in the future, we’ll have to develop agriculture. Population is getting more numerous and in order to assure food for all, the land must be clean and have water”, says Cláudio Torres.


dante que a ofertar turística impõe. Os estudos estão feitos, a vontade existe e a sua aplicação no terreno depende apenas do financiamento. O empenho de uma verdadeira política ambiental europeia no Sul do Velho Continente libertaria fundos para co-financiar um sistema que pede um investimento avultado, a curto prazo. Mas, segundo o administrador das Águas do Algarve, também os privados que iriam beneficiar deste projecto de reutilização de águas, deveriam participar nos seus custos uma vez que as empresas públicas não podem ser empresas de capital de risco, isto é: não podem entrar em investimentos avultados sem o benefício do seu lucro e, sobretudo, correndo as incertezas do negócio alheio. Hoje, como ontem, a água domina a sobrevivência das sociedades.

Falta cumprir um sonho antigo da equipa das Águas do Algarve: o projecto de reutilização de águas tratadas pelas ETAR para a agricultura ou rega de jardins e campos de golfe. Na verdade, os hábitos actuais e a procura turística provocam uma exigência comparável às das antigas cidades espectáculo do Império Romano: pedem muita água.

 Barragem de Odeleite Dam of Odeleite

“The times of the land free of chemicals and other kinds of rubbish, will necessarily force us to revisit the horticultural cycle, which employs a lot of water and was always fundamental in the mediterranean region. Water will be precious. To know how to salvage, reuse and make it work is fundamental. That’s when the golfing trend starts, which comes with a brutal expense of clean water. But the water which were already polluted and dirty can be perfectly used again, for example, to irrigate golf courses. This development can be compatible if, instead of being dumped and abandoned, recycled waters are used for golfing, where clean water, essential for agriculture, should not be spent.” Artur Duarte Ribeiro sustains that it is possible to introduce a system for the reutilization of water in the Algarve, thus guaranteeing sustainability between scarcity of the liquid and the abundant use that tourist offer imposes. The studies are done, the will to do it exists and its pratical implementation only depends on financing. The commitment of a true european environmental policy in the South of the Old Continent would liberate funds to co-finance a system that asks for vast short-term investment. But according to the CEO of Águas do Algarve, private investors, who would also benefit from this project for reusing water, could participate in its costs, since public companies can’t gamble away their money i.e. proceeding with large investments without the guarantee of profit and, more importantly, threading the uncertain path of businesses that don’t belong to them. Today, like yesterday, water dominates the survival of societies. An old dream by the team of Águas do Algarve is still to be accomplished: the project of reusing the clean waters coming out of the wastewater treatment plants for agriculture and irrigation of gardens and golf courses. Indeed, today’s habits and tourism caused a necessity much alike the one witnessed in the old monumental cities of the Roman Empire: they demand a lot of water.

Água Doce | 127

História do Algarve através da água


Quinta do Lago and the “Descabeçados” Before its time and against the tide, André Jordan was a pioneer of touristic development in the Algarve. In 1970, when the real estate rampage was the law in Southern planning, Jordan set himself to transform the Quinta dos Descabeçados into a tourism project which he called Quinta do Lago. He did it with a planning that managed to respect scale, environment and profit into something which is defined today as environmental, architectural and economical substainability. Jordan prefers to say that he only guided himself by “sense and sensibility”, turning the Quinta do Lago into a singular reality among simultaneous experiments, like Quarteira, Albufeira, Armação de Pêra or Praia da Rocha. The project was anchored in the construction of a golf course and the proximity of a deserted beach, and it set as condition an environmental approach that privileged the rational usage of water, the blending into the drawings of the landscape and the maintenance of the pine tree scenery, so characteristic of this region of the Algarve. The appreciation of nature and the integration of the Ria Formosa were a priority, with the work of the landscape architect Nuno Lecoq being focused in that priority, almost unheard of in the Algarve. At the beginning of the 1970’s, foreign journalists already were proclaiming that place as the beginning of a new era of golf course design in Europe. But the Carnation Revolution ended up suspending the

128 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

project, between 1975 and 1982, turning the Quinta into a “sleeping beauty”, as the very few residents described it. The return of the Jordan family happened in 1982 and only after that did the Quinta do Lago develop into a forerunner in the management of this environment / business combination. In such a way that the majority of the Regulations for Construction and Condominium, which were realized throughout the rest of the country in similar projects, follow its matrix. Every care was few, mainly in what concerns management of the water that binds us to this book. Thinking about the quality of the water, the Quinta do Lago built a sewage treatment plant which would end up being requested by the municipality for the usage of the Almancil community. Domestic waste water started having industrial and service residue as well, with a degree of pollution that inhibits the recycling of water for watering gardens and golf courses, where the standards for water quality are very high. In this aspect, the quantity of water also required special control procedures. The efforts for saving this precious liquid led to alterations for its usage in smaller circuits, which led to this investment being quickly recovered. “It isn’t worth it to manage without including sustainability. This isn’t about being a philantropist or a benefactor. Good environmental management results in cost reduction”, tells us Gilberto Jordan, the present CEO of the group. “It’s not always easy. Sometimes we have to act against the interest of house owners, which are our clients, to prevent drilling on their terrains, for example. On the other hand, english owners have a visual pattern of consumption with a lot of grass and flowers, which they wish to replicate at the Quinta do Lago. This demands a lots of water and fertilizer. But our Rules explained to them which indigenous species prevent the waste of water and are more in accordance to the mediterranian ambience”, Gilberto Jordan concludes.


 Quinta do Lago Quinta do Lago.

A Quinta do Lago e os descabeçados Antes do tempo e contra a maré, André Jordan foi pioneiro no desenvolvimento turístico de qualidade do Algarve. Em 1970, quando a voragem imobiliária fazia a Lei no ordenamento do Sul, Jordan propôs-se transformar a Quinta dos Descabeçados num projecto de Turismo a que chamou Quinta do Lago. Fê-lo com uma planificação que conseguiu respeitar a escala, o ambiente e o lucro. Naquilo que hoje se define como sustentabilidade ambiental, arquitectónica e económica. Jordan prefere dizer que se guiou apenas com «bom senso e sensibilidade» tornando a Quinta do Lago numa realidade singular entre experiências simultâneas, como a da Quarteira, de Albufeira, de Armação de Pera ou da Praia da Rocha. O projecto tinha como âncoras a construção de um golf e a proximidade da praia deserta. E assumia como condição uma exigência ambiental que privilegiava o uso racional da água, a inserção no desenho da paisagem e a manutenção do cenário de pinheiros mansos, característico desta região do Algarve. A valorização da natureza e a integração da Ria Formosa foram prioritários, tendo o arquitecto paisagista Nuno Lecoq trabalhado nesse imperativo quase inédito no Algarve. No início dos Anos 70, jornalistas estrangeiros já proclamavam o lugar como o princípio de uma nova era no desenho dos campos de golf da Europa. Mas a Revolução dos Cravos viria a suspender o projecto, entre 1975 e 1982, tornando a Quinta numa «Bela Adormecida» como lhe chamaram os pouquíssimos

residentes. O regresso dos Jordan dá-se em 1982 e, só depois, a Quinta do Lago se torna verdadeiramente percursora na gestão do binómio ambiente/negócios. De tal modo que a maioria dos Regulamentos de Construção e de Condomínio, que se fizeram no resto do País em projectos congéneres, seguem a sua matriz. Todos os cuidados foram poucos, sobretudo no que toca à gestão da água que nos prende neste livro. Pensando na qualidade da água, a Quinta do Lago construiu uma ETAR que viria a ser requisitada pela autarquia para uso da comunidade de Almancil. As águas de uso doméstico passaram então a ter resíduos de uso industrial e de serviços com um grau de poluição que inibe o reaproveitamento da água para a rega de jardins e campos de golfe, onde a exigência da qualidade da água é muito elevada. E, neste sentido, também a quantidade da água mereceu cuidados especiais de controlo. A poupança do precioso líquido levou a alterações para uso de circuitos menores tendo o investimento sido rapidamente recuperado. «Não vale a pena gerir sem incorporar a sustentabilidade. Não se trata de ser benemérito ou filantropo. A boa gestão ambiental resulta na diminuição de custos» explica Gilberto Jordan, actual CEO do grupo. «Nem sempre é fácil. Por vezes temos de agir contra os interesses dos proprietários, que são nossos clientes, para travar a construção de furos nos seus terrenos, por exemplo. Por outro lado, os proprietários ingleses têm um padrão de consumo visual com muita relva e flores, que queriam repetir na Quinta do Lago. Isso pedia bastante água e quilos de fertilizantes. Mas o nosso Regulamento explicava-lhes quais as espécies autóctones que evitavam o desperdício de água e eram mais de acordo com o ambiente mediterrânico», conclui Gilberto Jordan.

Água Doce | 129

História do Algarve através da água


Tectos

Ceilings of water

A marca da água na arquitectura estuda-se na cobertura das casas. O valor da açoteia ou a forma do telhado não esgotam, no entanto, um sistema íman que, dentro de casa, recolhe água para os meses de seca.

Water’s mark in architecture is studied through a house’s rooftop. The value of the terrace or the shape of the roof don’t deplete, however, a magnet system which, inside the home, collects water for the dry months.

130 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Esquina, Olhão. Corner, Olhão.


de água

Água Doce | 131

História do Algarve através da água


Chega aos nossos dias a frase arquitectónica algarvia marcada pela platibanda, o terraço, o algeroz, a cisterna e a tapada.

U

m reservatório conservava a água desde as primeiras chuvas, durante o ano inteiro. «A platibanda é uma característica recente, do século XIX», precisa o arquitecto João Vieira Caldas, numa curta-metragem da Exposição «Cidade e Mundos Rurais – Tavira e as sociedades agrárias», do Museu de Tavira. Mas tudo o mais – terraço, algeroz, cisterna e tapada - perde-se na origem dos tempos como marca de água da arquitectura do Algarve. Para cada detalhe há uma discussão científica. O geógrafo Orlando Ribeiro lança várias interrogações gerais: «Que significam os tipos de cobertura encontrados no Algarve? A sua variedade, única no território português, é apenas um símbolo de influências de civilização que aqui se vieram sobrepor e combinar, ou representa, de algum modo também, um processo de selecção e de ajustamento ao ambiente?». (60)

Para maiores dúvidas, acrescenta: «Nenhuma das nossas províncias mostra, como o Algarve, a variedade na cobertura das casas. Predomina, como em toda a parte, o telhado de duas águas, com telha de canudo nas construções antigas e rurais e telha de Marselha nas construções recentes e urbanas; mas no litoral oeste e na serra domina o telhado de uma só água; Olhão sobressai pelo recorte «cubista» dos seus terraços sobrepostos; Tavira, pelos seus múltiplos telhados, sempre de quatro águas e bastante inclinados, que cobrem não a casa toda mas cada um dos seus compartimentos». Os Telhados de uma só água não estão ligados a uma captação específica da água. Alguns autores, como Giese, atribuem uma origem berbere à casa elementar de telhado de uma água por se encontrarem noutros destinos por estes ocupados. Mas, ainda segundo Orlando Ribeiro, as coberturas de uma só água reportam também a zonas sem grande regeneração de arvoredos onde não abundam os troncos longos e direitos necessários à construção e sustentação desta forma de telhado. «Talvez por isso esta casa é mais vulgar na serra do que na planície». «Qualquer pedreiro ou mestre-de-obras de Tavira distingue, no remate das casas, os seguintes tipos: açoteia, platibanda, telhado de esteira e telhado de tesouro. A platibanda vulgarizou-se e tanto oculta um terraço como qualquer forma de telhado; o telhado de esteira tem duas águas, com revestimento interno de caniço, de onde lhe vem o nome; o telhado de tesouro é de quatro águas, bastante inclinado e

132 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

T

he traditional architectural style of the platibanda (a kind of vertical frontispiece on top of the façade), the terrace, the gutter, the cistern and the woods reached our days. A reservoir kept water since the first rains, during the whole year. “The platibanda is a recent feature, from the 19th century”, the architect João Vieira Caldas precises, in a short film of the exhibition “City and Rural Worlds - Tavira and the Agrarian Societies”, in the Museum of tavira. But everything else - the terrace, the gutter, the cistern and the woods - is lost in the dawn of time as a watermark of Algarve’s architecture. For each detail there’s a scientific discussion. The geographer Orlando Ribeiro launches a series of general questions: “What do the various types of roof found in the Algarve mean? Their variety, unique in the Portuguese territory, is just a symbol of civilizational influences that came here to overlap and combine, or do they represent, also in a way, a selection process of environmental adjustment?”. (60) For additional doubts, he adds: “None of our provinces feature, like the Algarve, such variety in the covering of houses. The gable roof is predominant, as it is everywhere, with its straw tiles in the old rural construction and the tile of Marseilles in the more recent urban constructions; but in the western coast and the mountain range, a single leaned roof is more widespread; Olhão stands out for the “cubist” outline of its overlapping terraces; Tavira, for its multiple roofs, always featuring a pyramidal and steep design which covers not only the whole house but each and every one of its compartments”. Single-leaned roofs are not connected to a specific way of gathering water. Some authors, like Giese, attribute a berber origin to the elementary house with a lean roof, since they can be found in other places once occupied by them. But yet, according to Orlando Ribeiro, these kinds of roofs report also to zones without much regeneration of forest, where long and straight tree trunks, necessary for their construction and support, are not abundant. “Maybe that’s why this house


 Platibandas de Olhão e Cacela Velha.  “Platibandas” (frontispieces) in Olhão and Cacela Velha.

Água Doce | 133

História do Algarve através da água


toma a forma de uma pirâmide aguçada. (...) Como na área da cidade são frequentes as fontes e poços e apenas existe uma cisterna, os telhados múltiplos não têm qualquer função na recolha de água e não correspondem portanto a nenhum fim utilitário». (62) Também em relação às típicas açoteias - que pensávamos que asseguravam a captação das águas nas várias civilizações que as constroem - os autores dividem-se sobre a sua origem e funcionalidade. Na verdade, a açoteia está largamente representada na construção rural, não como forma única de cobertura, mas como parte dela, como um dos elementos que compõem a casa. Geralmente, é um terraço coberto de ladrilho, rodeado tardiamente por uma platibanda baixa e utilizado principalmente para secar figos e alfarrobas. «No ladrilho das açoteias secam-se figos e alfarrobas e, em cordas, a roupa e os oleados usados pelos pescadores; mas nunca se seca peixe – às vezes apenas polvo, pendurado e aberto em arames. A açoteia e o mirante usam-se para arrumos e neles se encontra tudo o que prejudicaria o arranjo das modestas e pequenas habitações» explica Orlando Ribeiro. No Maciço Calcário Estremenho e nos relevos, também calcários, junto de Ancião e Alvaiázere, raras são as casas (ou grupos de casas) sem cisterna; a chuva é recolhida de telhados de duas águas e pouco inclinados (o tipo mais corrente em Portugal) por meio de caldeiras e a açoteia é totalmente desconhecida. Ficamos a saber que apenas nalguns lugares do Algarve se usa a açoteia como superfície de recolha da chuva para as cisternas, o que aliás se compreende pela sua área reduzida. As cisternas são providas de uma superfície um pouco inclinada e mantida cuidadosamente limpa e caiada ou recolhem as águas dos telhados.

134 |

is more common in the mountain range than the plains”. “Any mason or master builder in Tavira can tell, from their edge, the following types of roof: “açoteia” (terrace), platibanda, straw roof and treasure roof. The platibanda became common and can hide not only a terrace but also any other form of roof; the straw roof has two sides, lined in the interior with straws, from which it takes its name; the treasure roof has four sides, is very steep and takes the shape of a sharp pyramid. (…) Like in the city area, fountains and wells are frequent and there is only a cistern, so the multiple roofs aren’t used at all for collecting water and therefore don’t work as an utility”. (62) Also related to the typical rooftops - which, we thought, assured the catchment of water in the various civilizations who built them the authors are divided about their origin and functionality. In fact, the terrace is featured largely in rural construction, not as the only form of cover, but making part of it, as one of the elements that form the house. Generally, it’s a terrace covered with tiles, later surrounded by a low platibanda and used mainly to dry figs and carobs.

De onde vem esta ideia de que a açoteia é uma espécie de funil captador de águas que, pela osmose arquitectónica, nos deverá ter chegado na era islâmica?

“Over the tiles of the açoteias, figs and carobs are dried and, dangling from ropes, the clothing and the coats of the fishermen; but it’s never used to dry fish - sometimes only octopus, hung and spread out with wire. The açoteia and the “mirante” (view point) are used for storing, and on them we can find everything that would hinder the small space of such modest homes”, Orlando Ribeiro explains.

«Ouvi dizer a um velho marítimo de Olhão que elas (açoteias) vieram de Marrocos» escreve Leite de Vasconcelos, no volume VI da Etnografia Portuguesa (1975). É tão forte a tradição muçulmana das açoteias – também atribuída por W. Giese – que, depois de Faro ter sido incendiada pelos ingleses, em 1596 e arruinada pelos terramotos de 1722 e 1755, se encontram múltiplos vestígios destas construções. Isto pode significar que as demolições não foram totais ou que a reconstrução seguiu o plano tradicional. Provavelmente significa uma coisa e outra.

In the Limestone Massive of the Estremadura and on the equally lime-rich hills near Ancião and Alvaiázere, few are the houses (or groups of houses) that don’t possess a cistern; rain is collected from two-sided rooftops with low inclination (the most common type of roof in Portugal) using boilers and the açoteia is completely unknown. We learn that only in a few places in the Algarve, the açoteia is used as a surface for collecting rainwater towards

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


 Telhados de tesoura, Tavira.  Scissored roofs, Tavira.

cisterns, which is logical due to their reduced area. Cisterns have a small inclined surface, which is kept carefully cleaned and whitewashed, for storing water from the roof. So where did this idea come that the açoteia acted as a kind of funnel for collecting water that, by some kind of architectural osmosis, came to us straight from the islamic age? “I heard an old seaman in Olhão tell that they (the açoteias) came from Morocco” Leite de Vasconcelos wrote in the 6th chapter of the Portuguese Etnography (1975). The muslim tradition of these types of terraces - also attributed by W. Giese - is so strong that, even after Faro was burned down by the English in 1596 and ruined by the earthquakes of 1722 and 1755, multiple remains of these constructions still remain. This could mean that demolitions weren’t total or reconstruction followed the traditional plan. Probably, it means both.

Não serão anteriores à época de ocupação islâmica uma vez que os romanos usaram apenas o telhado como forma de cobertura. «Creio que se pode aceitar a origem moura das açoteias de Olhão, uma vez que as encontramos em outros lugares do Algarve. O clima não contrariou a introdução de uma forma de cultura originária de regiões áridas e propagada pela expansão islâmica», diz Orlando Ribeiro sobre a tese de W. Giese. Cita ainda o exemplo das Alpujarras, uma montanha chuvosa no Sul de Espanha, entre a Serra Nevada e as serras Contraviesa e Gador, onde a força da tradição muçulmana explica a persistência do terraço. Foi ali que se estabeleceram os últimos refúgios mouros na Península. Dentro de uma margem larga de condições naturais, parece ser a civilização islâmica a principal responsável pela difusão das açoteias. E as relações frequentes de Olhão com portos muçulmanos e mediterrâneos poderão ter ajudado, por imitação, a manter uma forma de construção existente na tradição local. Sabe-se também que, nos novíssimos resorts e nos chamados «aldeamentos», a açoteia e a chaminé algarvias, forradas de cal branca se perpetuaram. Não com a antiga valência da captação de águas ou de secagem de figos e alfarroba, ou pela exigência de um forno de pão e fumeiro, mas antes como uma estética comercial de destino turístico – a valiosa trade-mark.

They can’t predate the islamic occupation era, since the romans only used roofs as a form of cover. “I think we can accept the moorish origin of Olhão’s açoteias, since we find them in other places in the Algarve. The climate did not counter the introduction of a form of culture which had its origin in the arid regions and was scattered by the islamic expansion”, Orlando Ribeiro states about the thesis of W. Giese. Additionaly he cites the example of the Alpujarras, a rainy mountain in Southern Spain, between Sierra Nevada and the Contraviesa and Gador hills, where the strength of muslim tradition explains the persistence of the terrace. It was there that the last moorish refuges in the peninsula existed. Among a wide array of natural conditions, the islamic civilization seems mainly responsible for the widespread usage of açoteias. The frequent exchanges with Olhão with the muslim and mediterranean ports could have helped, by sheer imitation, to maintain a type of construction rooted in local tradition.

Água Doce | 135

História do Algarve através da água


Independentemente dos detalhes estéticos de cada época, importa reter a importância da construção no combate à escassez da água. Entre os árabes, Raul Proença destaca a captação da água pelas incontornáveis noras e poços: «uma casa que expende de brancura com as suas chaminés esguias uma açoteia mourisca erguida à luz das estrelas, uma reixa apertada que tamisa e morigeira; uma nora que rega um horto ou um pomar, um pátio interior com o seu poço de roldana, uma palmeira que se recorta sobre o azul pálido do céu». É a nora, considerada como uma variável fixa da casa algarvia.

We also know that in the newest resorts and the tourist house clusters, both the açoteia and the typical chimneys of the Algarve, covered with quicklime, have been perpetuated, not with the old function of water capturing or for drying of figs and carobs, nor by the necessary existence of an oven for bread and smoked goods, but instead as a commercial aestethic option for tourism purposes - the much valued concept of trademark.

«Na horta atrás da casa laranjeiras figueiras e uma romãzeira junto à nora».

Independently from the estethic details of each era, it matters to understand the importance of construction in fighting water scarcity. Among the arabs, Raul Proença highlights water catchment for the undeniably important water wheels and wells: “A house that expands whiteness with its elegant chimneys, a moorish açoteia, built under the starlight, a narrow plank which sieves and keeps working; a water wheel that sprinkles a garden and an orchard, an inner patio with its pulley well, a palm tree lined up against the pale blue of the sky”. It’s the water wheel, seen as the fixed variable of the Algarve home.

Gastão da Cruz A arquitectura tradicional do barrocal algarvio através dos seus montes típicos mas também de todo um vasto sistema de construções rurais onde assentava o modo de vida das populações, teima em permanecer à margem das preocupações patrimoniais. Uma referência particular é dada aos sistemas de captação e de distribuição de águas - constituídos por poços, noras, cisternas, azenhas, canhas e condutas subterrâneas, barragens de derivação e canais de irrigação - que, constituindo uma imagem de referência na paisagem campesina algarvia, afirmam-se como elementos essenciais à compreensão da identidade que, desde tempos remotos, foi cunhando o espaço rural algarvio.

“In the garden behind the house orange trees fig trees and a pomegranate tree by the water wheel”. Gastão da Cruz The traditional architecture of Algarve’s Barrocal, through its typical hills but also through a vast rural construction system where an entire lifestyle relied upon, keeps being ignored by heritage concerns. A particular reference is made to the catchment systems and water distribution - formed by wells, water wheels, cisterns, canals, waterways and underground conducts, weirs and irrigation canals - which, as a picture of reference in the peasant landscape of the Algarve, assert themselves as essential elements for the understanding of the identity which, since the beginning of time, has been shaping the rural space in the region.

136 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


 Açoteia de Olhão.  “Açoteia” (Terrace) in Olhão.

Água Doce | 137

História do Algarve através da água


Estradas Roads of water

Quem fez as grandes cidades do Algarve foram os rios que as serviram. O Arade e o Gilão ditaram o esplendor de Silves e Tavira. Alcoutim e Castro Marim tudo devem ao Guadiana.

The great cities of Algarve were built by the rivers which served them. The Arade and the Gilão dictated the splendor of Silves and Tavira. Alcoutim and Castro Marim owe everything to the Guadiana.

138 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Rio Guadiana. Guadiana River.


de água

Água Doce | 139

História do Algarve através da água


140 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


 Ribeira do Alvor e Arade Alvor and Arade rivers

Planta oitocentista de Tavira Tavira’s map, 19th century

Água Doce | 141

História do Algarve através da água


 Foz do Guadiana. Foz do Guadiana.

A força e o declínio dos rios foram decisivos na ascensão e queda das mais importantes cidades do Algarve.

P

ara Manuel de Terán, entre as Cidades de Silves e Tavira, «a mais sugestiva é Tavira, poupada pelo terramoto de 1755, que arruinou Lagos e danificou bastante todas as outras; as rixas das janelas, os telhados de beiral revirado que recordam o perfil de pagodes chineses, o apinhado das casas, as ruas claras e silenciosas, os pátios do interior das habitações, as cúpulas das igrejas, criam-lhe um ambiente quase oriental, mais evocativo talvez do que em nenhuma outra cidade portuguesa, que só a importância do seu antigo porto permite explicar».

142 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

T

he strength and decline of the rivers were decisive in the rise and fall of the most important cities in the Algarve. For Manuel de Terán, between the cities of Silves and Tavira, “the most suggestive is Tavira, spared by the Earthquake of 1755, which ruined Lagos and caused serious damage to all others; the lath windows, the roofs with their edge turned upwards, reminding the outline of chinese pagodas, the way houses are stacked together, the clear and silent streets, the indoor patios and the domes of churches, all of this creates an almost eastern feeling, more reminiscent than perhaps any other portuguese city, which can only be explained by the importance of its old harbor”.


Várias causas se apontam ao posterior declínio de Tavira: o abandono das praças de África, com que se fazia o principal tráfico ou mercadores e homens ricos que se mudaram para Sevilha atraídos pelo comércio com as Índias ocidentais. O investigador espanhol acrescenta, como razões para a queda da Cidade: as «vexações a que pouco escrupulosos oficiais da alfândega sujeitavam os negociantes estrangeiros, «de maneira a que os que isto experimentam vão escandalizados e jurando de lhe não tornar mais a entrar pela barra dentro», ao contrário do que se faz no porto espanhol mais próximo Aiamonte, onde carregariam os mesmos produtos que no Algarve». (64) Seria interessante verificar se a união dos dois reinos peninsulares não terá desviado o movimento marítimo a favor dos portos da Andaluzia, precipitando a decadência dos algarvios no século XVII. Com efeito, nas vésperas do domínio filipino D. Sebastião tinha levantado uma torre e fortaleza à entrada da barra, para defesa das «naus grossas» que entrassem dentro dela. Aos rebates contra piratas acudiam os moradores com frequência, pelo que lhes foram concedidos privilégios, uma vez que, sem soldo algum, asseguravam a defesa da costa. E, já depois da Restauração, o papel dos portos algarvios era modestíssimo no conjunto do comércio marítimo português. Segundo uma avaliação de 1685, cabia a Lisboa 77% do valor das importações e 75% das exportações do País. Aos portos algarvios, considerados conjuntamente, (Faro, Tavira, Vila Nova de Portimão e Lagos) apenas 3,2%. O restante tráfico repartia-se por Viana, Porto, Aveiro, Buarcos e Setúbal. Certo é que o factor determinante foi o assoreamento do Arade, primeiro, e do Gilão, mais tarde, tornando as Silves e Tavira inacessíveis ao comércio de grande escala que lhes dera grandeza, em períodos diferentes.

Ribeira de Odeceixe. Odeceixe River. 

Various causes are pointed out for the later decay of Tavira: the abandonment of the African strongholds, old passageways of merchants and rich men, which moved to Seville, attracted by the trade with the West Indies. As for the reasons for the fall of the city, the spanish researcher adds: “the humiliations exercised by the unscrupulous customs officials towards foreign traders, “such that everyone who experienced them fled in shock, swearing never to enter these waters again”, as opposed to what was done in the nearest spanish port of Ayamonte, where they shipped the same products as those from Algarve”. (64) It would be interesting to check if the union of the two peninsular kingdoms didn’t deviate seafaring movements to the advantage of the ports of Andalucia, triggering the decadence of the “Algarvios” during the 17th century. Indeed, on the eve of the Philippine domain, D. Sebastião had raised a tower and a fortress right at the entrance of the port, for defending it against the “thick carracks” that could enter them. Pirates were fought off frequently by local people, and for their efforts they were given a series of privileges, since they, without any kind of compensation, insured defense of the shore. Also, after the Restoration, the role of the ports in the Algarve was very modest when we look at the portuguese sea trade of the time. According to an evaluation done in 1685, Lisbon had 77% of the import value and 75% of the whole country’s exports. The ports in the Algarve, all put together (Faro, Tavira, Vila Nova de Portimão and Lagos) only had 3,2%. The remaining trade was distributed through Viana, Porto, Aveiro, Buarcos and Setúbal. A key factor was the sedimentation of, first, the Arade, and, later, the Gilão, turning Silves and Tavira inaccessible to large scale trade which had given them greatness, on different periods.

Água Doce | 143

História do Algarve através da água


144 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Este é o rio e estes os seus bosques: Um corpo de que a alma é a brisa dos jardins Parece espada se a brisa dorme à superfície E cota de malha, Se os ventos sobre ele se perturbam.

Kâmil

Água Doce | 145

História do Algarve através da água


Arade, o refúgio de Silves

Arade, the refuge of silves

 Rio Arade protege e serve Silves.  The Arade river protects and serves Silves.

146 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


O nome Arade vem da língua fenícia, Arvad, que significa refúgio. Silves tinha, assim, uma vantagem defensiva ímpar no período muçulmano da História do Algarve.

O

Arade «é mais um braço de mar que se entranha pela terra» até ao encontro com as ribeiras de Odelouca e Boina e outras menores. A influência das marés permitiu, durante séculos, o acesso de grandes embarcações até cerca de 15 quilómetros da costa transformando-se assim na via que mais contribuiu para o escoamento da riqueza da região. Peixe, sal, frutos, cereais e madeiras constituíam a mercadoria mais transaccionada. Contrariando um pouco o parecer do espanhol Terán, penso que o caso mais radical de ascensão e queda das cidades banhadas pelos rios algarvios talvez seja o de Silves sendo certo que as mudanças políticas da era dos Descobrimentos e a violência de quatro grande terramotos contribuíram para a decadência da cidade tanto quanto o assoreamento do rio. De fundação presumivelmente fenícia, Silves obteve protagonismo sobretudo nos séculos XI e XII. Foi rainha e capital de Al-faghar onde abundavam famílias nobres e letrados. Era então cidade florescente, que os poetas cantavam como uma mansão de luxo e de prazer, e habitada pelos árabes de Yemen e não pelos berberes que constituíram a gente sarracena que veio povoar a península. Assim a descrevia o geógrafo medieval al Idrisi: «Quem, no fim do século XII visitasse Silves ou Xelb, dir-se-ia transportado a uma cidade oriental. De entre as várias raças que tinham vindo à Península, foram árabes do Iémen que principalmente a povoaram... Contava cerca de 30 mil habitantes, era opulenta em tesouros e formosa em construções. Davam-lhe a primazia entre as cidades da Espanha árabe. Vestida de palácios coroados pelos terraços de mármore, cortada de ruas com bazares recheados de preciosidades orientais, cercada de pomares viçosos e jardins, Xelb era a pérola de Chenchir, onde os pródigos da Mauritânia vinham gozar com as mulheres formosas, de puro-sangue árabe, os seus ócios luxuosos. Era ao mesmo tempo uma praça terrivelmente fortificada». Silva Lopes reforça a importância vital do rio Arade na pujança agrícola e comercial de Silves: «Na época muçulmana, pelo seu porto saía muita madeira das montanhas próximas e provavelmente também figos secos, reputados pelo excelente sabor.

T

he name Arade stems from the phoenician language: Arvad, which means refuge. Thus Silves had an unmatched defensive advantage in this period of Algarve’s history. The Arade “is more like an arm of sea, ingraining itself into the land”, until it reaches the river of Odelouca and Boina, among much smaller others. The influence of tides allowed, for centuries, the access of great ships up to 15 km inland, thus turning itself into the most important passageway for the wealth of the region. Fish, salt, fruit, cereal and wood formed the bulk of the traded merchandise. Going a bit against the consideration of the spaniard Terán, I think the most radical case of rise and fall of cities bathed by Algarve rivers is perhaps Silves, even if it’s true that the political changes of the Discovery age and the violence of four great earthquakes contributed to the decadence of the city as well as much as the river’s loss of depth. Probably founded by Phoenicians, Silves gained relevance mainly in the 11th and 12th centuries. The city towered among others, and was the capital of Al-faghar, where noble families and literate people swarmed. It was a flourishing city, that poets praised as a place of luxury and pleasure, inhabited by arabs of Yemen and not by the Berbers, which formed the fabric of saracen people which came to populate the peninsula The medieval geographer al Idrisi described it like this: “Anyone who, at the end of the 12th century, visited Silves, or Xelb (as it was known), would think they were transported to an oriental city. Among the various races that visited the peninsula, the Yemen arabs populated it the most… It had about 30 thousand inhabitants, was lush with treasure and fair in its constructions. It was chief among the cities of arabic Spain. Dressed with palaces crowned by marble terraces, crossed by streets of bazaars, filled with eastern delicacies, surrounded by vigorous orchards and gardens, Xelb was the gem of Chenchir, where the Mauritanian prodigals came and had fun with the fair maidens, of Arabic pure blood,

Água Doce | 147

História do Algarve através da água


 Actual troço do Arade assoreado. Presently silted-up segment of the Arad.

Oliveira Martins, pelo seu lado, não poupa elogios às glórias que o Arade proporcionou deixando-se navegar até à Cidade que o rio melhor defendia de incursões inimigas. As margens vulnerabilizavam as ofensivas dos invasores, a montante e a jusante, permitindo a chegada de reforços distantes, cruzados ou árabes, conforme a origem do ataque. Lyster Franco e Raul Proença nomeiam os movimentos militares mais consequentes da mudança de mãos, entre muçulmanos e cristãos, sempre com o Arade como veículo de tropas, armaria e mantimentos. Particularmente violenta terá sido a tentativa de conquista nórdica, em 966: «O Arade é palco de grandiosa batalha e as suas gentes assistem e participam no combate contra 28 navios normandos que, com os seus 2500 homens, vinham praticando actos de pirataria no litoral muçulmano. Uma esquadra saiu de Sevilha e, indo ao seu encontro, impediu-lhe a saída do Arade. Com a participação de guerreiros, que nas margens do rio atacavam também os invasores, os normandos foram derrotados e os seus navios afundados». (64)

Tomada e saqueada em 1060, por Fernando I de Castela, foi retomada pelos Mouros, que novamente a tornaram a perder no reinado de D. Sancho I, após dilatado cerco, com o auxílio de uma armada de cruzados, vinda do Norte a caminho da Terra Santa comandada pelo marechal de Barbante. E essa é a batalha mais sangrenta de que há registo no rio refúgio: «Os 3500 flamengos, germanos e ingleses que faziam parte da tripulação dos 36 navios subiram o Arade e fundearam à vista de Silves. A população teria que defender-se sozinha, ou com a ajuda que os povos vizinhos lhe pudessem prestar,

148 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

and their luxurious leisure. It was, at the same time, a thoroughly fortified stronghold”. Silva Lopes reinforces the vital importance of the Arade river in the agricultural and commercial power of Silves: “During the Muslim age, a lot of wood came out from the nearby mountains, and also, probably, dry figs, notable for their excellent taste. Oliveira Martins isn’t modest in praising the glories that were brought by the Arade, letting itself be sailed up to the city, which that same river better defended from enemy incursions. The banks made the invader’s charges vulnerable, both upstream and downstream, allowing for the arrival of distant reinforcements of crusaders or arabs, depending on the origin of the attack. Lyster Franco and Raul Proença named the most important military movements which made Silves change hands between Muslims and Christians, pointing the Arade as a constant the vessel of troops, armour and supplies. Particularly violent was the Nordic People’s attempt to conquer it, in 966: “The Arade is the stage of an immense battle, as its people witness and take part in the fight against 28 Norman ships which, boarded by 2500 men, were practicing acts of piracy all over


pois a maior parte do seu exército tinha partido para África a fim de participar também nas lutas político-religiosas que alastravam por todo o mundo árabe. O rio iria tingir-se de sangue. A carnificina durante os quarenta e cinco dias de luta, até à entrega da cidade, e mesmo após ela, foi horrível sendo uma mancha negra na conquista do “Algarve aos mouros”. Descrições dos próprios cruzados e cronistas da época relataram os actos de vandalismo cometidos nessa luta pelos “selvagens” mercenários a soldo dos cristãos. Saquearam e mataram mais de metade da população (15 mil homens, mulheres e crianças) e, embora D. Sancho tentasse evitar essa fúria devastadora, só depois de arrasarem os palácios, as muralhas, o castelo e as três mesquitas é que regressaram aos seus navios. (...) Estávamos em 19 de Setembro de 1189, quando partiram a caminho da Terra Santa, deixando atrás de si um rio ensanguentado, a mais linda e importante cidade do Algarb arrasada». (65) A fortificação de Silves chegava ao Alvor, como relata o diário de um dos cruzados nórdicos que participou nessa conquista de 1189. «No terceiro, depois do meio-dia, avistámos o castelo d’Alvor, situado sobre o mar que os nossos tinhão expugnado». Os ataques a Silves sempre tiveram uma forte componente naval, uma vez mais, porque só tinha a cidade quem tivesse o rio. D. Sancho mandou-a povoar. Ordenou a purificação da principal mesquita, que erigiu em catedral, e nomeou primeiro bispo o seu confessor D. Nicolau, cónego regrante de Santo Agostinho. Deixou-a guarnecida de tropa escolhida sob o comando de D. Rodrigo Sanches com o título de Anadel ou Fronteiro Mor. «Tão forte era a sua situação que, embora no centro de um país inimigo, pôde conservar durante três anos sobre os seus muros o pavilhão das quinas. Para arrancá-la aos portugueses foi mister que passasse o estreito de miramolim de Marrocos à frente de um poderoso exército». Em Julho de 1191, Almançor reconquista-a novamente e, já sem a grandeza de outros tempos, mantém-se no poder dos muçulmanos até 1250. Silves resistiu assim, violentamente, às campanhas muçulmanas e cristãs até que D. Afonso II a tomou, enfim, arruinada e deserta. «Chegaram os cruzados e o silêncio Tocou o fundo de água da cisterna»,

the muslim shoreline. A squad left Seville and intercepted them, preventing their exit from the Arade. With the help of warriors, who on the banks of the river also attacked invaders, the Normans were defeated and their ships scuttled” (64) Captured and sacked in 1060 by Ferdinand I of Castilla, the city was retaken by the Moors, which lost it again during the reign of D. Sancho I, after a prolonged siege, with the help of a fleet of crusaders, commandeered by the Marshall of Barbante, which came from the North on his way towards the Holy Land. This is the bloodiest battle ever recorded in the “shelter river”: “The 3500 Flemish, German and British, who were part of the crew of 36 ships, went up the Arade and anchored at the sight of Silves. The population would have to fend for themselves or with the help of neighboring peoples, since most of their army had gone to Africa, to fight the political religious struggles that spread throughout the whole of the Arab world. The river would end up tainted in blood. The carnage of the 45-day fight, until the city’s surrender and even after that, was dreadful, and forever a dark chapter in “Algarve’s reconquest from the Moors”. Descriptions from the crusaders themselves and chroniclers from that time retold the acts of vandalism perpetrated during the fight by the “savage” mercenaries payed by the christians. They ransacked and killed over half of the population (15 thousand men, women and children) and, even though D. Sancho tried to avoid such devastating fury, only after they tore down palaces, walls, castle and three mosques did they go back to their ships. (…) It was September, 19th, 1189 when they left, headed for the Holy Land, leaving behind them a river of blood and the most beautiful and important city of the Algarb razed to the ground”. (65) The fortification of Silves went all the way to the Alvor, as we can read from the diary of

Firmino Mendes.

Água Doce | 149

História do Algarve através da água


ď‚ Ponte sobre o Arade. Bridge over the Arade.

150 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Em atravessando o rio, morri! Jamais outra verdade foi mais lúcida! Morrerei, por atravesso pelo meu pé a última ponte que me separa da minha boa vontade. (...) Atravesso a pé. Deixo Caronte surpreso. De Portimão a Ferragudo imagino a minha história como um desenho animado construído em sucessivas analepses. Atravesso a pé e ando em frente, mas a minha história moira roda ao contrário e somos, assim mesmo, eu e a memória, uma bela mandala imaterial.

Pedro Miranda Albuquerque

Água Doce | 151

História do Algarve através da água


A cisterna do Castelo de Silves podia matar a sede a mais de mil homens cercados durante um ano e serviu a cidade alta até aos anos 80 do século XX. É agora uma escala, oca e iluminada, de turismo cultural. Mas lá se diz que, ainda hoje, nas noites de São João, à meia-noite, aparece uma moura encantada navegando sobre as águas do Aljibe, num barco de prata, com remos de ouro, entoando cânticos do seu povo enquanto espera a chegada de um príncipe mouro que pronuncie as palavras certas para o seu desencantamento. Na época portuguesa, a pujança de Silves manteve-se apenas enquanto o rio o permitiu ou os responsáveis políticos quiseram. Novo fôlego teria a cidade em meados da era Afonsina com foral, bispo e capital do governo das armas do Algarve. Mas, já na Dinastia de Avis, D. Afonso V dar-lhe-ia um golpe brutal com a transferência da primazia político-militar para Lagos, antes da saída da sede do bispado para Faro, em 1577, quando a população estava reduzida a 140 habitantes, maioritariamente paupérrima.

one of the nordic crusaders that took part in the conquest of 1189. “During the third day, at noon, we saw the castle of Alvor, over the same sea our people had fought over”. Attacks on Silves always had a strong naval component, as control over the city required first control over the river. In July 1191, Almanzor conquers it again, and even without the greatness of other times, the city stays under muslim rule up until 1250. D. Sancho ordered it occupied. He also ordered the purification of the main mosque, which was erected as a cathedral, and named his confessor, D. Nicolau, as bishop, ruling canon of Saint Augustine. He left the city garrisoned with selected troops that stayed under the command of D. Rodrigo Sanches, which attained the title of Annadel or Master Frontiersman. “His situation was so solid that, even if he was at the center of a hostile country, he was able to keep the portuguese flag hoisted over the wall for three years. To yank it out from the portuguese grip, the muslims had to bring a Miramolin (great leader) leading a mighty army, across the strait from Morocco.” This way, Silves resisted violently to muslim and christian campaigns until 1242, time when D. Afonso II finally took it, ruined and deserted. “The crusaders came and silence Touched the very bottom of the cistern’s water” Firmino Mendes

 Actividade piscatória no Arade, no séc. XX.  Arade fishing activity, in the 20th century.

152 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The castle’s cistern - which could quench the thirst of over a thousand men sieged for more than a year, served the high city until the 1980’s - it’s now a hollow and lit up cultural tourist point of interest. But it’s said that, even today, in the night of St. John, at midnight, an enchanted moorish maiden appears there, sailing the waters of the Aljibe, on a silver boat with golden oars, singing chants of her people, while she waits the arrival of a moorish prince that is able to pronounce the right words to break her spell.


Aquela que tinha sido rainha do Garb, fora traída pelos senhores do poder central e pelo senhor seu rio, cada vez mais assoreado, que impediu a navegação e reduziu o comércio, enriquecendo Portimão, na foz do Arade. Quatro terríveis terramotos, em épocas diferentes (1353, 1719, 1722 e 1755), foram o golpe de misericórdia para a que tinha merecido a «primazia entre as cidades da Espanha árabe», «opulenta em tesouros e formosa em construções». De acordo com o Guia de Portugal, «o último destes cataclismos não deixou de pé mais do que dez casas!». «Húmido canto chega deste rio Que foi lugar de festa e de viagem: Ainda se ouve um canto nesta margem, Um alaúde, um baile, a dança leve». Firmino Mendes Uma linha de fortalezas continuaria a defender, ao longo do Arade, a barra de Portimão e a cidade de Silves. Logo na foz, foi construída na margem direita do rio – em plena Dinastia Filipina (1626) - a fortaleza de Santa Catarina para combater a pirataria turca, berbere e europeia. Essa margem facilitava o aprovisionamento de víveres e munições para a guarnição. Mas, segundo Valdemar Coutinho, «logo nos primeiros anos da sua entrada em funcionamento se concluiu que as canhoeiras estavam muito elevadas e não estorvavam os barcos que passavam rentes ao sopé do morro, por isso, construiu-se a fortaleza de S. João», (de Ferragudo, na margem esquerda do Arade). (66) Mais acima, já os árabes contavam com o castelo de Estombar para melhor prevenirem um ataque à capital, pelo rio. Sobram sinais da importância geoestratégica de Silves que lhe era dada sobretudo pela linha defensiva que o Arade constituía. Multiplicam-se achados arqueológicos de uma séria presença militar que vem desde o período romano-godo ao século XVII. No início do século XX, o Guia de Portugal recomenda ao banhista da Rocha que aproveite a sua estada no Algarve para conhecer os pontos mais importantes da província, numa excursão a Silves pelo rio, através das «águas quase mortas». «Deve-se subi-lo no começo da enchente e descê-lo no princípio da vazante. Lembra um pouco o Mondego. É o mesmo curso sinuoso e a mesma paisagem branda, silenciosa e triste, por entre margens baixas, onde as tamargueiras e as salicórnias se debruçam sobre as águas, e gaivotas e maçaricos reais

During the portuguese era, the might of Silves was kept only while the river, as well as political interest, allowed it. New breath would come in the middle of Afonsine age, with a foral (a royal grant), a bishop and consecration as military capital of the Algarve. However, already into the Avis dynasty, D. Afonso V would strike a hard blow with the passage of political and military primacy to Lagos, before the bishop moved to Faro, in 1577, when the population of Silves was reduced to 140 mostly very poor inhabitants. The city that was the queen of the Garb was betrayed by the lords of central power and by its lord, the river, which became more and more shallow and rendered navigation impossible, reducing trade and making Portimão, which sat at the mouth of the river Arade, immensely rich. Four terrible earthquakes, in different times (1353, 1719, 1722 and 1755) were the coup de grâce to a city which had earned the title of “ruler among the cities of Arab spain”, “lush with treasure and fair in its constructions”. According to the Guide of Portugal, “the last of these cataclysms didn’t leave more than 10 houses standing!”. “A damp chant comes from this river Once a place for feasts and travels: You can still hear the singing at its shore, A lute, a ball, the weightless dance”. Firmino Mendes A line of fortresses would keep defending, along the Arade, the port of Portimão and the city of Silves. The fortress of Santa Catarina was built on the right bank of the river, over the mouth of the Arade, at the height of the Philippine Dinasty (1626) for fighting off turkish, berber and european piracy. That side of the river eased the supply of provisions and ammunition for the garrison. But, according to Valdemar Coutinho, “right on the first years of its use it was clear that the cannon slots had been raised too high, and didn’t hinder the boats that passed close to the foot of the hill, thus the fortress of St. John was built” [in Ferragudo, on the left bank of the Arade].” (66)

Água Doce | 153

História do Algarve através da água


levantam o voo lento indo chapinhar mais longe, no remanso das águas quase mortas. No horizonte de colinas baixas, a vegetação pobre veste escassamente o terreno ponteado de rochas. Aquando o rio se alarga em pequenos lagos plácidos, abrem-se, junto aos pontos secos, delgados rebordos de areais macios. A 9 quilómetros, o ilhéu do Rosário (duns 100 m, de comprimento por 50 de largura), a ao lado de um belo cerro da Atalaia (86 metros de altura) que desce até ao Vale da Lama por onde corre a estrada entre Portimão e Silves. Não tarda que se veja a cidade patentear-se a nossos olhos, como uma romã que se abrisse de bagos vermelhos». (67) Nesta mesma época, o rio era fonte de riqueza e de recreio. No museu de Portimão (2011), a exposição «Portimão nos alvores do século XX, 1900 – 1925» (68), exibe «O rio como festa». Nela se relatam as famosas batalhas das flores que consistiam num desfile de barcos alegóricos cuja receita das inscrições revertia para acções de solidariedade. «Como estava anunciado, teve lugar no dia 18, pelas 4 horas da tarde, na ria de Portimão a “batalha náutica de flores”. Apresentavam-se muitos barcos lindamente ornamentados, sobressaindo entre eles o do Sr. Quadros, Capitão do posto, que ganhou o primeiro prémio, e o do Sr Mello Garrido, que simulava um cisne e o segundo estava ricamente ornamentado ao gosto chinos. (...) Em todos eles tomaram logar encantadoras meninas, vestidas com trajos próprios para divertimentos de tal natureza que fazia realçar ainda a sua beleza. A tarde estava encantadora, o rio parecia um lago, e, cheio de barcos com os seus enfeites, produzia um deslumbrante effeito. Durante a batalha estava tocando no rio a philarmonica da villa denominada «Paga Zé» lindas peças do seu vasto reportório», lê-se no Jornal do Algarve de 25 de Setembro de 1910, a escassos dez dias da Revolução da República. Hoje a subida do rio até Silves está condicionada às marés e a barcos de calado reduzido.

Further upstream, the arabs already counted on the castle of Estômbar for better preventing an attack to the capital from the river. Signs remain of the geostrategic importance of Silves, which came mainly from the natural line of defense formed by the Arade. There’s a multitude of archeological findings of significant military presence coming from the roman gothic period up until the 17th century. Those were different times. At the beginning of the 20th century, the Guide of Portugal recommended the bathers of Praia da Rocha to take the opportunity to get to know the most important place in the region, by sailing to Silves through a river of “almost dead waters”. “One must start sailing upstream at the beginning of high tide and come back when the waters start falling. It reminds the Mondego. It’s the same winding path and the same calm, silent and sad landscape, through low banks, where heaths and salicornias lunge over the waters, gulls and dowitchers take a slow flight, paddling a bit further away, at the backwater of almost dead waters. On the horizon of low hills, the poor vegetation sparsely dresses the ground, dotted with rocks. When the river widens in small placid lakes, narrow edges of soft sand open up near the dry spots. 9 kilometers away, the islet of Rosário (about 100 meters long by 50 meters wide), sits by the small hill of Atalaia (86 meters high), which goes down to the Vale da Lama, where the road between Portimão and Silves goes through. It isn’t long before the city evidences itself before our eyes, like a pomegranate that opens up with red berries”. (67)

During this time, the river was a place of wealth and recreation. At the museum of Portimão, the exhibition “Portimão at the dawn of the 20th century, 1900 - 1925” (68) shows “the river as a feast”. In it the famous “Battles of Flowers” are narrated, a parade of decorated ships whose entry fee revenue reverted for charity.

154 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


“As it was announced, the “Nautical Battle of the Flowers” took place on the 18th, around 4 in the afternoon, at the ria of Portimão. A lot of beautifully decorated ships were present, standing out among them the one by Mr. Quadros, Captain of the Post, which earned first prize, and the one by Mr. Mello Garrido, which simulated a swan. The second of them was richly ornamented according to the chinese taste. (…) Inside them, beautiful young women took their place, dressed with garments appropriate for such joyous events, that their beauty was even more outstanding. The afternoon was enchanting, the river seemed like a lake and, filled with boats and their decorations, created a dazzling effect. During the battle, the village’s philharmonic orchestra, called “Paga-Zé” played beautiful pieces of its vast repertoire”, one can read in the Jornal do Algarve (local newspaper) of the 25th September, 1910, a mere ten days before the Republican Revolution.

 Actividade de estiva no Arade, no séc. XX.  Stowage activity in the Arade, in the 20th century.

Today, sailing the river up to Silves is only possible by boats of reduced draught and depending on the tides.

Água Doce | 155

História do Algarve através da água


Só os castelos árabes com fontes e jardins me levam ao teu lado e algumas praias sós, algum sossego a sul limpo abandonado. Ainda hoje choro com versos de Ibn Ammàr o mesmo justiçado por Al-Mu’tamid, o rei de Sevilha poeta amante amado. Subindo o rio Arade, a caminho de Silves cidade iluminada uma barca repete o caminho apagado da purificação.

Firmino Mendes

156 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Postal antigo de Silves.  Ancient view of Silves. 

Água Doce | 157

História do Algarve através da água


Júlio Dantas goes up the Arade Júlio Dantas delights himself in the trip, up the river, from Praia da Rocha to Silves, at the turning of 19th to 20th centuries. “We boarded at the dock of Fialho, where a lugger was being loaded with scrap metal. The boatman picked one of the oars, I grabbed the other one and the canoe, favored by the tide, turned its bow from Portimão and started going up the river, which glimmered under the sun like a large sheet of glass. Straight ahead, on the left bank, the white streets of Ferragudo peeked at us; and the old Philippine castle of Arade, today the home of the poet Joaquim Coelho de Carvalho, outlined against the golden coast the black profile of its foothills. It must have been 10 o’clock, fish was rife, and everywhere the factories hoisted their flags, summoning women to work. While we undertook the healthy effort of rowing, my lungs filled to their most deep blisters with fresh and lively morning air. Minutes later, we passed in front of the ruins of the waterfront convent of S. Francisco of Portimão, whose walls, darkened by the fire and licked by the silvery foam of the river, now act as shelter, under the care of the Fialho cabaneers, of nets, cables, harpoons and hooks from the tuna of the Cajados and the Castelos. Shortly afterwards, we reached the village, one of the most busy in the Algarve, with its church spires and the College building from the 1700’s dominating the shining streets; we passed under the magnificent bridge connecting Portimão to Mexilhoeirinha; we then saw, to the west, inside a gorge in the mountains,

158 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

the white bells of Estombar. The wind started blowing. A slight waterfall, bristling and rebuking the river, made us move next to the bank, now spiked with reeds and green weeds, with oxen feeding themselves on the salty grass. Further ahead, the slamming of oars in the water made the grass burst with flocks of scared Godwits, screaming in the water. We started to see, at the top of the hills, large, steep stones, with fig trees and rock roses blooming out of their cracks. The rock reminded us that we weren’t too far from Fóia and Picota. Half an hour went by, and to our left, cliffs opened up in deep caves - the legendary “hole of the old chestnut lady”, entrance of a supposed underground path to Monchique. As we passed by, two crows and a kestrel flew away, their feathers hissing as they cut through the air. The religious silence of Nature was only disturbed by the creaking of the oar’s supports and the splashing of water ahead of the canoe. We went on, soundly paddling, and we reached Senhora do Rosário, an islet appearing in the middle of the river, holding up the mouth of the Odelouca, crowned with the ruins of a romanic hermitage, relic of a port where, not until long ago, one could still see the iron moorings which held, in 1189, the docked galleys of the german crusaders. After going around a hill of red, muddy earth, hirsute with carob trees, we entered the river of Silves. At that moment, the landscape loses some of its majesty, but gains a peaceful and fruitful beauty. The river narrows down to an area of plains near the river, on the left bank, and first we see watermills, then gardens full of flowered pomegranate trees; at the edge of the water we see again the blooming of grass and bulrush”.


 Postal antigo com animação no Arade.  Old postcard with an event in the Arade.

Júlio Dantas sobe o Arade Júlio Dantas, delicia-se com a viagem, rio acima, da Praia da Rocha até Silves, na esquina dos séculos XIX e XX. «Embarcámos no cais do Fialho, onde estava um lugre a carregar de sucata. O barqueiro aferrou um dos remos, eu o outro, e a canoa, ao favor da maré, fez a proa de Portimão, e lá foi subindo o rio, que lampejava ao sol como uma grande chapa de vidro. Em frente, na margem esquerda, espreitava-nos o casario branco de Ferragudo; e o velho castelo filipino de Arade, hoje residência do poeta Joaquim Coelho de Carvalho, recortava de encontro à costa doirada, o perfil negro dos seus contrafortes. Deviam ser dez horas, tinha havido peixe, e por toda a parte as fábricas içavam as bandeiras chamando as mulheres para o trabalho. No salutar esforço de remar, os pulmões enchiam-se-me, até as mais profundezas vesículas, de ar fresco e vivo da manhã. Minutos depois, passávamos diante das ruínas do convento ribeirinho de S. Francisco de Portimão, cujas paredes, enegrecidas pelo incêndio e lambidas pela babugem de prata do rio, abrigam agora, ao cuidado dos cabaneiros do Fialho, redes, cabos, arpões e arrincas das armações do atum dos Cajados e dos Castelos. Daí a pouco, alcançávamos a vila, uma das mais movimentadas do Algarve, com as torres da matriz e o edifício setecentista do Colégio dominando a sua casaria coruscante; passámos debaixo da ponte magnífica que liga Portimão à Mexilhoeirinha; avistámos, para oeste, numa garganta de

montes, as sineiras brancas de Estombar. Levantou-se vento. Um ligeiro cachão, arrepiado e increpando o rio, obrigou-nos a caminhar encostados à margem, já eriçada agora de juncos e de morraçais verdes, em cuja erva salgada apascoavam bois. Mais adiante, a chapoada dos remos na água fez levantar a morraça revoadas de maçaricos espantados, na água gritando. Começámos a ver surgir nas lombas dos montes, fraguedos abruptos de cujas fendas brotavam figueiras e estevas. Era a rocha a lembrar-nos que não estávamos muito longe da Fóia e da Picota. Meia hora andada, tínhamos à mão esquerda uns penhascos abertos em caverna profunda, - o lendário “buraco da velha das castanhas”, entrada de um pretendido caminho subterrâneo para Monchique. Quando passámos, levantaram voo dois corvos e um peneireiro, cujos remígios silvaram cortando o ar. O silêncio religioso da Natureza era apenas perturbado pelo ranger dos toletes e pelo chofar da água avante da canoa. Uma arrancada mais, a bom pulso, - e chagámos à Senhora do Rosário, ilhota que surge a meio do rio, a entestar com a foz de Odelouca, coroada das ruínas duma ermida românica, relíquia de uma barra onde ainda há pouco tempo, se viam as argolas de ferro que deram amarração, em 1189, às galés dos cruzados alemães. Dobrado um morro de terra vermelha e barrenta, hirsuto de alfarrobeiras, entrámos no rio de Silves. Nessa altura, a paisagem perde talvez em majestade, mas ganha em fecunda e tranquila beleza. O rio estreita em várzea, na margem esquerda, aparecem primeiro azenhas, depois hortas cheias de romãzeiras floridas; brotam de novo à flor da água as murraças e os juncos».

Água Doce | 159

História do Algarve através da água


Gilão, o mundo em Tavira

Gilão, the world inside tavira

 O Rio Gilão liga Tavira ao mar.  The Gilão river connects Tavira to the sea.

160 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


O que fez de Tavira um dos primeiros portos do Algarve, do País e do Mediterrâneo?

T

al como a maior parte das cidades/porto portuguesas, Tavira é uma terra de estuário. Da serra algarvia desce a ribeira de Séqua, tomando depois o nome de rio Gilão, que apenas se torna largo na parte invadida pela maré. Desemboca num canal entre sapais e uma restinga de areia que se tem deslocado lentamente para leste. O braço de mar, entre a restinga e o continente, foi navegável até Faro e por ele se fazia, no fim da Idade Média, parte do tráfico entre os dois principais portos do Algarve. No limite da navegação, a dois quilómetros da foz, tem assento a cidade, em terrenos calcários de encosta que descaem suavemente para as aluviões do rio e das águas interiores. A montante, o relevo eleva-se, as margens tornam-se escarpadas e impraticáveis. Jaime Cortesão, na História do Regime Republicano, considera que, «até ao início dos Descobrimentos (Tavira) foi, entre os portos algarvios, o de maior movimento para o estrangeiro: fornecia 96 marinheiros do conto, a quem o Rei concede, em 1282, privilégios iguais aos dos marinheiros de Lisboa. Em 1359, esses privilégios eram confirmados conjuntamente a Lisboa, Setúbal e Tavira». Notícia indirecta da intensa actividade marítima de Tavira lê-se na queixa da comunidade dos Judeus (1370), segundo a qual estes eram indevidamente «obrigados a fazer vigias e rondas, a amassar o biscoito, a carregar trigo, azeites, madeira, ferro e remos, a amassar cal e pão, fazer cordas e sebo». (69)

Os Judeus de Tavira eram proprietários de vinhas e lagares fazendo vinho pela maior parte exportado para o estrangeiro. «Figos e Passas e vinhos» e também «esparto», são mencionados como os principais produtos que se carregavam em Tavira e Faro.

«Na primeira metade do século XV, o porto de Tavira mantinha relações comerciais com Bruges sem dúvida para exportação das suas frutas e vinhos que, em capítulos de 1447, a vila dizia serem a sua principal produção agrícola» (70) Muitos comerciantes de Flandres aí vinham comprar figos e uvas. «A rogo dos povos de Tavira, Faro e Loulé, concedeu-se nas cortes de 1455, um seguro aos navios ingleses, franceses, alemães, biscainhos e galegos que viessem ao Algarve carregar

W

hat turned Tavira into one of the first ports in the Algarve, the country and the Mediterranean? Like most of portuguese port cities, Tavira is an estuary town. From the Algarve’s mountain range flows the brook of Séqua, then taking the name Gilão, which only widens in the part invaded by tidal water. It leads to a canal between swamps and a dash of sand which, has been slowly moving east. The length of sea between the sandbank and the continent was navigable up to Faro. At the end of the Middle Ages, part of the traffic between the two main ports of the Algarve went through it. At the edge of navigational waters, two kilometers away from the river mouth, sits the city, over sloped beds of limestone which gently subside towards the alluvial areas of both river and interior waters. Upstream, the hills heighten, and the banks become sloped and impractical. In his History of the Republican Regime, Jaime Cortesão considers that “up until the beginning of the Discoveries, (Tavira) was, among the ports of the Algarve, the one which had the most movement towards foreign countries: it supplied 96 “conto” (knighted) fishermen, to whom the King granted, in 1282, privileges equal to the ones given to Lisbon’s fishermen. In 1359, these privileges were jointly confirmed to Lisbon, Setúbal and Tavira”. An indirect piece of news of the intense seafaring activity in Tavira can be collected from the complaint the Jews made in their commune (1370), about them being “forced to guard and watch, to knead biscuits, to haul wheat, olive oil, wood, iron and oars, knead bread and quicklime, to do ropes and grease”. (69)

Tavira’s Jews were owners of wineries and wine presses, exporting their wine mainly abroad. “Figs and Raisins and wine” and also “esparto” (a fibrous plant similar to wicker) are mentioned as the main products being shipped from Tavira and Faro.

Água Doce | 161

História do Algarve através da água


 Mercado de Tavira visto do rio.  Tavira market seen from the river.

vinhos, frutos e outras mercadorias, não podendo ser tomados em represálias contra outros da mesma origem. (...) A exportação de frutos era considerável». (71)

Já antes ali desembarcara D. João I depois da conquista de Ceuta. Como referido em capítulo anterior, pela proximidade de Marrocos, os povos do Algarve começam a desempenhar papel relevante na guerra das praças de África, acudindo-lhes com socorros durante os cercos e juntando as armadas que aí se destinavam. A Tavira aportariam os Reis, por várias vezes, quando passavam aos «lugares de além» ou de lá vinham, seguindo à distância, e prontos a enviar socorros, os episódios da luta naval. «Vários privilégios foram concedidos aos seus moradores em atenção aos serviços prestados, em que expunham suas pessoas e gastavam sua fazenda; assim, em 1446, o de que a vila não fosse doada a ninguém, pertencendo directamente à coroa como terra realenga». (72) Em 1506, o de os escudeiros passarem a gozar do foro de cavaleiros, e os peões e o povo do foro daqueles, privilégios não concedidos a Faro.

Em 1562 os mareantes de Lagos, Faro e em especial Tavira acudiram ao cerco de Mazagão, com homens pagos pelos seus compromissos ou associações. Em 1579 poderiam, de três em três anos, mandar às ilhas de S. Tomé ou Cabo Verde um navio em busca da mesma mercadoria – escravos - para utilizarem na cidade. Com estas relações marítimas, o comércio tornara-se tão florescente que a feira de 49 dias, concedida em 1491, foi prolongada por três meses em 1579 e confirmada ainda em 1647.

162 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

“In the first half of the 15th century, the port of Tavira kept commercial relations with Bruges, undoubtedly for exporting its fruits and vines, which, during some parts of 1447, and according to the town, was its main agricultural production”. (70) Many Flemish traders went there to buy figs and grapes. “After a plea from the peoples of Tavira, Faro and Loulé, the Courts of 1455 conceded insurance to British, French, German, Biscay and Galician ships that came to the Algarve to be supplied with wines, fruits and other merchandise, not being able to be used as reprisal against others of the same origin. (…) The export of fruits was considerable”. (71) Before that, D. João I had already disembarked there after the conquest of Ceuta. As mentioned in a previous chapter, the proximity to Morocco gave the peoples of the Algarve a significant role at the war for the African strongholds, giving them help during sieges and massing the armadas that were headed that way. The Kings would dock in Tavira several times, when they were headed to the “out there places” or when they came back, following, at a distance, and ready to assist if necessary, the episodes of naval warfare. “Various privileges were conceded to its inhabitants regarding the services provided, to which their people were exposed and by their own means; therefore, in 1446, any parts of the village that weren’t


Barcos em Cacela. Boats in Cacela. 

«Em 1520 D. Manuel elevou Tavira a cidade por ir cada vez em maior aumento e ser muito povoada de fidalgos e outras gentes de merecimento, e que estão aparelhadas sempre que nos servirem com armas, homens e cavalos e navios» (73). A importância do porto está patente nas suas armas: uma ponte com dois castelos e um navio à vela passando por baixo dessa ponte.

donated to no one, were to belong directly to the Crown as royal land”. (72) In 1506, squires achieved the rank of knights, and their previous rank was awarded to pawns and people related to them, privileges that weren’t granted in Faro.

O rendimento da alfândega, em 1506, coloca Tavira como primeiro porto do Algarve e muito acima dos seis restantes. (400 900 réis num total de 588 700 (86%). Seguiam-se Portimão com 89 000 e Faro com 52 600. Lagos, apenas com 37 600, estava em franco declínio em relação aos primeiros tempos dos Descobrimentos).

In 1562 the seamen of Lagos, Faro and particularly Tavira aided the siege of Mazagan, with men payed by them and their associations. In 1579, they could, every three years, send a ship to the S. Tomé and Cabo Verde islands for gathering the same merchandise slaves - for using in the city. With these seagoing relations, trade flourished in such a way that their 49-day fair, established in 1491, was prolonged for three months in 1579 and still confirmed in 1647.

«Em 1527 Tavira obteve isenção da dízima do pão importado. Como em outros portos portugueses, seria essa a principal mercadoria que os navios estrangeiros traziam quando aqui carregavam sal, fruta e vinho». (74) Para não dificultar a exportação da fruta proibia-se o carregamento de sal nos portos do Algarve de Setembro a Dezembro.

 Ponte ferroviária sobre o Gilão.  Railway bridge over the Gilão

Água Doce | 163

História do Algarve através da água


O rio Gilão já não trás a festa nos barcos nem a força das torrentes palpitantes O mar amainou, aproximou-se das casas espraiou-se em viveiros de amêijoas. De um tempo medieval de agitação ficou o sal, a quietude branca das salinas.

Firmino Mendes

164 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 165

História do Algarve através da água


O esplendor comercial e agrícola de Tavira chamava gente da Serra, do Barrocal e de outras cidades algarvias. Segundo o numeramento de 1527 havia na vila 1567 fogos (mais de seis mil habitantes) ao passo que Lagos contava 1310 e Faro 873; Loulé, a única aglomeração importante no interior, somava 536. Silves, «num sítio alagadiço e pestilento e por isso em grande decadência», apenas 271, «com o porto concorrido por Portimão, a Sé em ruínas, o bispo e o cabido desejosos de se mudarem para Faro e envolvidos em querelas com a cidade». Nada recordava aí, a não ser a enorme extensão do termo pela serra, a antiga próspera aglomeração muçulmana. Depois de Évora que, embora menos populosa que o Porto, se podia considerar a segunda cidade do país, de Santarém e de Elvas, ocupava Tavira o sexto lugar no conjunto das povoações portuguesas. «Havendo respeito à dita cidade ser a mais principal do reino do Algarve e de ser tão grande povoação como é». Contavam-se na cidade 22 famílias nobres, segundo os «assentos» da câmara de 1605 a 1666. Rara era a família que não participasse com vereadores, na administração municipal. «E aqui em diante começou a nobreza de Tavira, uma a abater-se, outra a aniquilar-se», acompanhando provavelmente o declínio do porto». (75) Através destes privilégios presume-se a ascensão social num porto importante de burguesia comercial e marítima. Nas alegações feitas ao Conselho da Fazenda, em 1662, para ter feira franca - direito que os de Faro impugnavam - alude-se à importância do porto de Tavira, onde invernavam as galés de Portugal armadas contra os corsários e mouros de onde, por várias vezes, partiram socorros para as praças de Marrocos e até para Faro, quando incendiada pelos ingleses em 1596. Aí se diz que «era tão rica e populosa em tempos mais antigos que tinha mais de 70 embarcações de alto bordo, e outros tantos cercos de sardinha – e hoje por se perder e fechar a barra arruinou-se o comércio e a cidade ficou de todo acabada». No começo do século XVI já o porto era demandado com alguma dificuldade e, onde antes entravam embarcações de 100 tonéis, apenas passavam 70 «por cujo respeito já não vão a ela os navios que costumavam vir os navios à carregação de sua fruta; atribui-se a tal mudança aos muitos moinhos feitos na foz do rio, não se consentindo que construíssem mais». Haverá exagero posto que, no ano seguinte (1507), uma provisão régia impedia que se fizessem casas ao longo da ribeira e mandava reservar este espaço às construções navais. Estas eram tão importantes e tão consideráveis que, por causa delas, nas devastações nas matas do concelho, foi proibido cortar mais árvores.

166 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

“In 1520, D. Manuel elevated Tavira to the rank of city, since it kept growing so much and was greatly inhabited by noblemen and other worthy people, and also for their readiness to supply us with weapons, men, horses and ships” (73). The importance of the port is visible in its coat of arms: a bridge with two castles and a sailing ship going under that bridge. The customs income, in 1506, places Tavira as the first port of the Algarve and much ahead of the other six. (400900 “réis” from a total of 588700 (86%). Portimão followed, with 89000 and Faro with 52600. Lagos, only with 37600 was in serious decline when compared to the first years of the Discoveries). “In 1527 Tavira obtained exemption from the “dízima” (a 10% tax) over imported bread. As in other portuguese ports, that would be the main merchandise that foreign ships would bring, when they hauled salt, fruit and wine”. (74) So that fruit export wasn’t too difficult, salt shipping was forbidden in the ports of Algarve from September to December. The commercial and agricultural splendor of Tavira summoned people from the Range, the Barrocal and other cities in the Algarve. According to the census of 1527, there were 1567 houses in the town (over six thousand inhabitants), while Lagos counted 1310 and Faro 873; Loulé, the only important settlement inland, counted 536. Silves, “sitting on a swampy and pestilent place and therefore under great decadence”, only had 271, “with its port under competition of Portimão, the Cathedral in ruins, the bishop and the canon anxious to move to Faro and involved with quarrels with the town”. Except for the large outskirts spreading through the hills, back then, nothing reminded us the prosperous muslim agglomeration of past times. After Évora, which, even if less populous than Porto, could be considered the second city in the country, and after Santarém and Elvas, Tavira occupied sixth place in the rank of portuguese cities. “In accordance to the city’s


 Ria Formosa junto a Cacela a Velha.  Ria Formosa near Cacela Velha.

O assoreamento do rio Gilão concluiu o desgaste que a peste de 1645 e o terramoto de 1755 deram a Tavira. Foi também lá que, em 1833, se deu o desembarque das tropas liberais. «Ao assoreamento da barra e à colmatagem mais forte do rio, abrigado pela restinga, se deve, sem dúvida, o declínio do porto de Tavira; e ainda ao aumento da tonelagem das embarcações no século XVII, pois os 70 navios de alto bordo, lembrados em 1662, são referidos a «tempos mais antigos», admite o espanhol Manuel Terán. (76) Valdemar Coutinho, no seu estudo, refere a linha defensiva do rio Gilão, que a Cidade requeria. De Cabanas, na foz, se avista a Fortaleza de São João de Tavira, junto ao mar, construída em 1656 e reedificada em 1793, com as funções que o Alvor tinha em relação a Silves. Anteriormente, já D. Sebastião mandara edificar o Forte do Rato, no que era uma ilha, para protecção da barra de Tavira. «Com muros de alvenaria e cantarias, dispõe de três baluartes e uma entrada a meio do muro voltada a norte», precisa Valdemar Coutinho. (77) Mas é na Cidade que o rio tem a maior fortaleza - o Castelo de Tavira. Aí se encontram ainda vestígios do período islâmico «nalgumas pedras em espinha na base do muro, a nascente e em taipa na base da torre octogonal e no interior da torre que ladeia a entrada». No topo, pode observar-se «os restos das torres que faziam parte da muralha urbana islâmica», e como «o Castelo foi levantado numa muralha sobranceira ao rio». (78)

status as leader in the kingdom of Algarve and its large population size”. There were 22 noble families in the city, according to the city hall’s “seats” from 1605 to 1666. Few were the families that didn’t have a councillor in city management. “Henceforth, Tavira nobility started falling on one side and annihilating itself on the other, probably keeping up with the port’s decline”. (75) Through these privileges, social ascension is presumed in an important port of the commercial and seagoing bourgeoisie. In the allegations done to the Fiscal Council (Conselho da Fazenda), in 1662, for having a fair which was exempt of taxes - a right which as contested by the people of Faro - there was reference to the importance of the port of Tavira, where the armed galleys of Portugal for fighting moors and buccaneers hibernated and from where, many times, aids were launched for the strongholds in Morocco and Faro, when it was burned down by the english in 1596. There, it’s said that “the city was so rich and populated in olden days that it had more than 70 large-sized vessels and the same number of seines - and today, because the port was lost and closed, trade was ruined and the city was definitively finished”. At the beginning of the 16th century the harbor was already accessed with some difficulty. Where before 100-ton ships went through easily, now only ships of 70 tons passed. “Because of this, ships that came to be loaded with its fruit no longer reached it; to blame are the many water mills built at the mouth of the river. Their further construction is forbidden”. This was exaggerated, such that, in the following year (1507), a regal provision prevented the construction of houses along the river and had this space reserved for naval construction. This was so important and considerable that, because of them, the devastation on the nearby woods caused the prohibition of cutting down more trees.

Água Doce | 167

História do Algarve através da água


 Ponte romana sobre o rio Gilão, Tavira.  Roman bridge over the Gilão river, Tavira.

The sedimentation of the Gilão river completed the wear and tear that the plague of 1645 and the earthquake of 1755 gave Tavira. It was also there that in 1833 the liberal troops disembarked. “The decline of the port of Tavira is undoubtedly a work of the sedimentation of the river mouth, sheltered by the sand bank, and also because of the increase of the tonnage of ships in the 17th century, since the 70 large-size ships, remembered in 1662, are refered in connection to “older days”, Manuel Terán admits. (76)

A defesa do Gilão contava ainda com um Torrão de Lastro mesmo à entrada da barra para evitar as incursões vindas do mar mas «já desapareceu, como as torres da Abóbora, na ilha de Tavira, a dos Três Irmãos, em Santa Luzia, a grande e a pequena nas proximidades da cidade». (79) Mais a poente, perto de Pedras d’El Rei, diferente destino teve a velha Torre de vigia de Aires, reconstruída há pouco tempo. Com construção circular atribuída originalmente ao período árabe teria amplo uso no período português.

«A expressão “anda mouro na costa” era uma realidade frequente, a partir da segunda metade do século XVI. Por isso, se levantaram muitas torres de vigia ao longo da costa, que avisavam as populações pelo fumo, durante o dia, e pelo fogo, à noite». (80) Na iminência de ataques de corsários, além das atalaias dos arredores da cidade, entrava de vigia uma barca na boca da barra.

168 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

In his study, Valdemar Coutinho recollects the defensive line of the Gilão river, which the city required. From Cabanas, at the river mouth, one can see the Fortress of São João of Tavira, by the sea, built in 1656 and rebuilt in 1793, doing the same job Alvor had for Silves. Before that, D. Sebastião already had built the Rato Fortress on what used to be an island, for protecting the harbor of Tavira. “With brick walls and square stones, it has three ramparts and an entrance at the middle of the wall, facing north”, Valdemar Coutinho identifies. (77) But it’s inside the City that the river has its largest fortress - the Castle of Tavira. There we can still find remains of the Islamic period “in some spine layout stones at the foot of the wall, facing east, and in dried mud at the base of the octagonal tower as well as the interior of the tower which sides the entrance”. At the top, one can watch the “remains of the towers that once were a part of the islamic urban wall”, and the way how “the Castle was built on a wall overlooking the river”. (78) The defense of the Gilão also counted with a Ballast Turret right near the port entrance for avoiding incursions from the sea, but “it has disappeared, like the towers of Abóbora, at the island of Tavira, the Três Irmãos (Three Brothers) tower in Santa Luzia, the large and the small ones in the outskirts of the city”. (79) To the west, near Pedras d’El Rei, the Aires tower, recently rebuilt, had a different fate. With a circular construction originally attributed


Barco na ria formosa. Boat in ria formosa.

Orlando Ribeiro compara a importante função de Tavira à de Caminha: «Tavira sofreu o destino de outros portos de estuário e as suas ruas adormecidas, onde se surpreendem os restos de uma prosperidade cujas fontes há muito se estancaram, não deixam de recordar Caminha, o porto que no outro extremo da costa portuguesa teve, pelas mesmas causas, idêntico destino. A fábrica de tapeçarias da lã e seda, fundada em 1776, entra no quadro das medidas de fomento de Pombal e destinou-se provavelmente a insuflar vida nova num organismo debilitado; mas pouco durou e nenhum resultado produziu». (81) O sítio de Tavira conjuga assim a dupla vantagem de passo de um rio e de porto abrigado e é de crer que desempenhasse papel de relevo na génese da aglomeração. No início do século XX, recomendava-se aos turistas uma excursão pelo rio, aos Moinhos da Rocha e ao Pego do Inferno, a montante da ponte, até onde era navegável, a uma distância de seis quilómetros da cidade. «Um passeio delicioso por entre salgueiros, canaviais, hortas e serranias. No local (de destino) há uma queda de água e grutas com estalactites e estalagmites». (82) Hoje, interrompido além da foz por uma barra difícil, o Gilão dá acesso a pequenas embarcações que o podem subir pelo espaço de dois quilómetros apenas.

to the arab era, it would be widely used during the portuguese times. “The expression “anda mouro na costa” (“there are moors on the shore”, meaning “someone’s lurking around”) was a frequent reality from the second part of the 16th century. Therefore, a lot of watchtowers were raised along the shore, which warned population by the use of smoke, during the day, and fire, during the night”. (80) When pirate attacks where imminent, in addition to the watchtowers around the city, a watch barge would stand at the mouth of the river. Orlando Ribeiro compares the Tavira’s important function to that of Caminha: “Tavira suffered the fate of other estuary ports, and its sleeping streets, where one can still surprise some remains of prosperity, the sources of which have long been exhausted, remind us of Caminha, a port which, on the other end of the portuguese coast, had the very same fate, for the same reasons. The wool and silk tapestry factory, founded in 1776, was integrated in the context of Pombal’s foster program and was probably destined to the inflate new life into a failing organism; but it didn’t last for long and produced no results”. (81) Therefore, the site of Tavira merges the double advantage of being both a riverbed and sheltered harbor and it probably had a major role at the beginning of settlement in this area. At the beginning of the 20th century, tourists were recommended to take a trip up the river, up to the Moinhos da Rocha and the Pêgo do Inferno, upstream until the navigable area, six kilometers from the city. “A sweet stroll through willows, cane fields, gardens and mountain ranges. At the [arrival] place there’s a waterfall and grottos with stalactites and stalagmites”. (82) Today, cut beyond the base level by a difficult backshore, the Gilão only gives access to small boats that can sail upstream for only two kilometers.

Água Doce | 169

História do Algarve através da água


Envolto na djelaba casta, embrenhado em prados matutinos, o poeta suspira por Cacela. Os amores de Ibne Ammar são os laranjais da guerra e as hidráulicas recuperadas de Schanta Marya de Harum. Diz o poeta: - Ó flores perfumadas dos pomares comunicai sapiência ao palácio das varandas até que os cavalos de Clipes corram o corso sem pisar as papoilas nos terrenos.

170 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Diz o poeta: - Quero um barco veloz para levar a Cacela as novas dos figos verdes, o óleo de amêndoas doces, os junquilhos de Março. Os de Cacela, os bravos respondem-lhe, levantando muros largos: - Poeta, homem da lua, pastor de coisas vãs, que nos queres trazer num barco, Mas que valha ao nosso cadi? - Não prometas dar frutos e mel a homens Esfomeados como nós! - Não prometas dar flores simples do campo às virgens conhecidas de Cacela! - Poeta, guarda o alaúde e o adufe para as tuas músicas sábias roubadas aos pássaros fogosos.

Pedro Miranda Albuquerque – Ibne Ammar

Água Doce | 171

História do Algarve através da água


Guadiana, a porta do Mediterrâneo

Carta oitocentista da foz do Guadiana.  Ancient map of Guadiana River.

Guadiana, doorway to the mediterranean

T O Guadiana é o único rio internacional do Algarve. Nasce em Espanha - cerca de 800 quilómetros antes de entrar na região - e é navegável de Vila Real de Santo António até Mértola, para lá da fronteira do Algarve.

F

oi a única entrada natural dos múltiplos povos que demandaram o sul ocidental da Península Ibérica sobretudo rumo aos cereais, ao azeite, ao vinho, ao miolo de amêndoa e aos minérios do interior de Portugal e de Espanha. A navegabilidade do rio até Mértola colocou as comunidades agro-pastoris do interior do Alentejo e do Algarve nas rotas comerciais mediterrânico-atlânticas. (53) Os romanos chamaram-lhe Fluminus Anae, rio dos patos. Os árabes mudaram a primeira palavra por Uadi (rio) dando origem a Uadi Anae - Guadiana. Depois da ocupação cristã do Algarve, no século XIII e da Andaluzia, no séc. XV, o Guadiana consolidou-se como fronteira de Portugal e Espanha onde as fortalezas de Castro Marim, Alcoutim e Mértola, entregues às Ordens militares de Cristo e de Santiago, asseguravam o povoamento e a defesa dos territórios e garantiam a segurança na circulação fluvial.

172 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

he Guadiana is Algarve’s only international river. It’s born in Spain - about 800 kilometers before reaching this region - and is navigable from Vila Real de Santo António to Mértola, beyond Algarve’s border. It was the only natural entryway of the multiple peoples that seeked the southwest of the iberian Peninsula to get cereal, olive oil, wine, almond and ore from the interior of Portugal and Spain. The river’s navigability up to Mértola placed the agricultural and farming communities of the Alentejo and the Algarve’s interior among the mediterranean-atlantic commercial routes. The romans called it Fluminus Anae, river of ducks. The arabs changed the first word to Uadi (river), thus creating the name Uadi Anae - Guadiana. After the christian occupation of the Algarve, during the 13th century and Andalucia, in the 15th century, Guadiana was consolidated as border between Portugal and Spain, where the fortresses of Castro Marim, Alcoutim and Mértola, assigned to the military Orders of Christ and Santiago, assured its population and the defense of adjacent territories, while guaranteeing safety to river traffic.


A linha de defesa do Guadiana, tal como a do Arade e do Gilão, começava junto ao mar. Nela Valdemar Coutinho identifica um primeiro ponto em Cacela a Velha, no Atlântico, onde uma fortaleza «construída no cimo de uma pequena falésia sobre a ria formosa» constitui «um dos dispositivos de defesa da embocadura do rio Guadiana». (83) Ali se encontram ainda parte de um muro e de uma torre do complexo defensivo islâmico sendo que a fortaleza resulta de uma reconstrução dos finais do século XVIII. Vista da praia, pode observar-se a imponência dos muros «sobre a arriba do mar» - como referiu o geógrafo árabe Idrisi - «com guaritas nos ângulos voltados à ria». Mais perto da foz do Guadiana, ainda sem entrar no rio, Monte Gordo dispunha, no século XVIII, de uma bateria que funcionava em articulação com as do Cabeço e Torre Velha, a

Guadiana’s line of defense, like the ones at Arade and Gilão, started by the sea. In it, Valdemar Coutinho identifies a first point in Cacela Velha, facing the Atlantic, where a fortress was “built on top a small sea cliff overlooking the Ria Formosa” making it “one of the defense devices of the mouth of the Guadiana”. (83) There, we can still find parts of a wall and tower from the islamic defense complex. The fortress itself is fruit of its reconstruction at the end of the 18th century. Seen from the beach, one can witness the imposing walls “over the sea cliff” - according to the arab geographer Idrisi - “with sentries on the angles facing the ria”.

Água Doce | 173

História do Algarve através da água


Ocidente. Mesmo na esquina portuguesa do mar com o rio, havia ainda a fortaleza de Santo António de Arenilha, da qual sobram apenas uns blocos dispersos. Do mesmo modo se perderam no tempo as baterias do Medo Alto e do Pinheiro na linha defensiva da foz do Guadiana. Esta acção dissuasiva encontrava, mais a norte, a imponente muralha e castelo de Castro Marim conhecido por «Castelo dos Mouros», dada a origem, mas de construção portuguesa, consolidada no tempo de Afonso III e D. Dinis. Mesmo ali ao lado, o Forte de S. Sebastião é um sinal da perenidade da importância dos lugares no que toca à geoestratégia. Na verdade, a guerra da Restauração devolveu uma urgência defensiva à margem direita do Guadiana levando à construção deste forte no último quartel do século XVII. «Dispunha de três baluartes, de ponte levadiça no acesso à parte superior e de um revelim, junto da ermida se Santo António. A estratégia defensiva da vila foi completada por uma muralha que unia as duas fortificações, da qual ainda restam alguns vestígios». (84) No troço algarvio, o Guadiana contava ainda com a protecção do castelo de Alcoutim, desde o tempo de D. Dinis. Também esta praça precisou de reforços durante as guerras da Independência, três Séculos mais tarde. O mesmo autor realça a importância do alto nordeste do castelo «acrescentado no século XVII, quando eram grandes as rivalidades portuguesas e espanholas devido à Restauração da Independência de Portugal, em 1640». Esta era uma zona sensível desde o tempo dos mouros. Um pouco acima ficava o Castelo Velho, da era islâmica, do qual ainda são visíveis restos de torres, da muralha, da cisterna e de algumas habitações da população que ali controlava a passagem dos barcos no Guadiana.

O rio era a melhor estrada do sul beneficiando os povos das margens e da foz, ao longo dos séculos. O porto de Vila Real de Santo António, em meados do Século XX, ainda era descrito como um dos portos magníficos que constitui um meio natural de escoamento para a produção de todo o sul do País, muito frequentado por navios que iam ao Pomarão buscar minério e àquela vila boa conserva. O troço algarvio do rio era, de facto, uma importante estrada comercial até meados do século XX. «O meu Pai e a minha Mãe eram de aqui (Alcoutim). Havia uns barcos, uns vapores grandes, que iam para Vila Real e Mértola. Não havia carros. Andávamos de barco. Íamos

174 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Nearer the base level of Guadiana, still before entering the river, Monte Gordo had, in the 18th century, a battery which worked in articulation with the ones at Cabeço and Torre Velha, to the West. Right at the portuguese corner of sea and river, there was the fortress of Santo António de Arenilha, of which only some scattered stones remain. The same can be said of the Medo Alto and Pinheiro batteries, at the defensive line of Guadiana’s river mouth, both also lost in time. This dissuasive action found, up north, the imposing wall and castle of Castro Marim, known as the “Moorish Castle” because of its origin, but built by the portuguese during the reigns of D. Afonso III and D. Dinis. Right next to it, the Fortress of S. Sebastião is a sign of the everlasting importance of some places, when it comes to geostrategic importance. In fact, the war of the Restoration brought back a defensive urgency to the Guadiana’s right river bank, leading to this stronghold’s construction at the last quarter of the 18th century. “It had three ramparts, with a drawbridge at the access to the upper part and a ravelin, near the chapel of St. António. The village’s defense strategy was completed by a wall uniting the two fortifications, of which some remains can still be found”. (84) In its Algarve section, the Guadiana also counted on the protection of the castle of Alcoutim, since the time of D. Dinis. This stronghold also needed reinforcements during the wars of Independence, three centuries later. The same author highlights the importance of the castle’s high northeast side “added in the 17th century, when portuguese and spanish rivalry was great, due to Portugal’s Restoration of Independence in 1640”. This was a sensitive area since moorish times. A little above it was the Castelo Velho, from the islamic age, of which we can still see some remains of towers, the wall, the cistern and houses for the population that controlled the passage of ships through the Guadiana. The river was the best road in the south, benefitting the people that lived on its banks and at


 Actividade portuária da foz do Guadiana no séc. XX. Port activity in the mouth of Guadiana in the 20th century.

 Barcos no Guadiana. Barcos no Guadiana.

the river mouth, throughout the centuries. The port of Vila Real de Santo António was, in the middle of the 20th century, still described as one of the magnificent harbors that acted as natural means for draining production from the entire south of the country, much attended by ships that went to Pomarão to seek ore and quality canned goods. The part of the river located in the Algarve was, indeed, an important commercial route up until mid-20th century. “My parents were from here (Alcoutim). There were a few boats, some big steamer ships, headed for Vila Real and Mértola. There were no cars. We took the board. We went to work in Spain, catching watermelon and pears”, says Henrique Baltazar, in a testimony collected by the Museum of the River. (85) Between 1859 and 1860, the company that owned the mine of S. Domingos had a settlement in Pomarão, with warehouses, mineral deposits, a rail terminal and two quays, where ore ships docked, propelled by sail or steam engines, which sailed up the river from the mouth of the Guadiana. They left that place loaded with ore (pyrites), which was then transported by rail from S. Domingos to CUF, in Barreiro and to England, from Vila Real de Santo António. Movement in the harbor was very high for a while. In 1864, 563 ships were accounted for at Pomarão for ore shipping. It was considered a commercial port located at the very edge of Guadiana’s navigability, with access to ships up to four meters in draft. Today, near Pomarão, at the right bank of the river, a small tile panel remains, illustrating the english people at the mines of S. Domingos, which were eventually shut down during the 1960’s. On the left bank, once the master of the harbor and of all mineral movement, a small village watches, powerless, the gradual decay of the river as a road of the South. The new international bridge is there, allowing bigger hurries and towering above all, payed for with european funds which promise cohesion in the Old Continent. But the wide strips of the immense overpass do much more for

Água Doce | 175

História do Algarve através da água


trabalhar em Espanha na apanha da melancia e à pêra», diz Henrique Baltazar, num testemunho recolhido pelo Museu do Rio. (85) Entre 1859 e 1860, a empresa proprietária da mina de São Domingos mandou levantar no Pomarão uma povoação, com armazéns, depósitos de mineral, terminal ferroviário e dois cais de embarque, onde atracavam os navios mineraleiros, à vela e a vapor, que subiam o Guadiana desde a foz. De ali partiam carregados com o minério (pirites) que vinha por via-férrea da mina de S. Domingos para a CUF, no Barreiro, e para Inglaterra, por Vila Real de Santo António. O movimento do porto chegou a ser elevado. Em 1864 apresentaram-se no Pomarão 563 navios para embarque de minério. Era considerado como um porto comercial situado no limite de navegabilidade do Guadiana, com acesso a embarcações até cerca de quatro metros de calado. Hoje, junto ao Pomarão, na margem direita do rio, sobra um pequeno painel de azulejos alusivo aos ingleses da mina de S. Domingos encerrada na década de 60 do século XX. Na margem esquerda, senhora do porto e de todo o movimento mineral, resta uma pequena aldeia que assiste, impotente, ao adormecimento do rio como estrada do Sul. Lá está, altiva, permitindo maiores pressas, a nova ponte internacional, paga com dinheiros europeus que prometem coesão no Velho  Barcos do Guadiana, Laranjeiras.  Boats in Guadiana, Laranjeiras.

176 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

the speed of visitors than for the dreams of the small village. Down by the river, it’s still possible to take a stroll on foot over the railroad branch that once brought riches to S. Domingos. It’s a pleasant walk, alongside a creek which stems from the Guadiana. The rails and wooden sleepers were pulled away and finally, around the first corner of the mountain, we see the small bridge that would allow to continue the path that strengthened Guadiana’s usage. In mid-20th century, steamers were still frequently seen sailing down the river, and few were the days when a passenger route from Mértola wasn’t available. Miguel Sousa Tavares, in his saga of Rio das Flores (River of Flowers), tells how the matriarch of the novel, Maria da Glória, had lost her parents on one of those bends of the watery road that was the Guadiana until not so long ago: “when she was just fifteen years of age, her parents were dead, on a return trip from Lisbon, at the wreck of the barge that brought them from Vila Real de Santo António, in the Algarve, to Mértola,


Continente. Mas as largas faixas do imenso viaduto mais favorecem a velocidade dos visitantes do que iluminam os sonhos da pequena aldeia. (55 ) Cá em baixo, junto ao rio, ainda é possível percorrer a pé o antigo ramal de caminho-de-ferro que aqui trazia a riqueza de S. Domingos. É um passeio agradável ao longo de um riacho afluente do Guadiana, de onde foram arrancados os carris, os garrotes de madeira e, finalmente, ao virar da primeira esquina da montanha, a pequena ponte que permitiria prosseguir o caminho que potenciou o uso do Guadiana. Ainda em meados do século XX eram frequentes os vapores que desciam o rio e raros foram os dias em que se não efectuou uma carreira a partir de Mértola. Miguel Sousa Tavares, na saga do Rio das Flores, conta como a matriarca do romance, Maria da Glória, perdera os pais numa dessas curvas algarvias da estrada de água que foi o Guadiana, até há poucos anos:

«...quando, tinha apenas quinze anos de idade, os pais lhe morreram, numa viagem de regresso de Lisboa, no naufrágio da barca que os trazia de Vila Real de Santo António, no Algarve, para Mértola e que foi apanhada num pego do rio, junto à confluência do Guadiana com o Vascão. Aí, entre os altos penhascos solitários do rio, onde apenas o moleiro, lá em baixo junto à água, e as águias planando lá no alto em busca de caça habitavam, e aonde ela se deslocara na companhia dos irmãos para depositar flores na sepultura líquida dos pais, Maria da Glória percebera que, daí em diante, a sua vida e a sua fortuna iriam depender apenas da sorte». (86) Rio de riquezas e desmandos. Todas as terras da sua margem direita, de Mértola a Vila Real de Santo António, recordam com placas e lágrimas antigas, a terrível cheia diluviana de 1876. Marcam nas praças e ruas principais a altura das águas e o número de mortos. Foram as maiores de que há registo. Com efeito, nas épocas invernosas de muitas e prolongadas chuvas, havia enormes cheias. O volume das águas transbordava para além do leito inundando áreas de cultivo e habitações das margens. Em Alcoutim podem consultar-se placas de mármore com as datas e alturas que atingiram não só as cheias de 1876 mas, também, as de 1895, 1912 e 1947. Nestas alturas, o rio deixava de ser navegável até voltar ao curso normal.

caught on the deep end of the river, near the place where it merges with the Vascão. There, among high lonely river peaks, where the only inhabitants were the miller, down by the water, and the eagles, gliding up high searching for their prey, where she went with her brothers to lay flowers on their parents’ watery grave, Maria da Glória understood that, from there on out, her life and her fortune would depend only on chance”. (86) A river of riches and downfall. All the lands at the right bank, from Mértola to Vila Real de Santo António, remind us, through plaques and old tears, the terrible diluvian flood of 1876. Squares and main streets mark the height of water and the number of victims. They were the biggest ever recorded. Indeed, during wintery times of prolonged and heavy rain, there were enormous floods. Water volume overflowed beyond the flooded riverbed, submerging agricultural areas and homes near the river bank. In Alcoutim, it’s possible to see marble plaques with dates and water heights of not only the 1876 floods but also the ones of 1895, 1912 and 1947. During these times, the river ceased to be navigable until it went back to normal levels. Anyone who goes down the Algarvean Guadiana, can find, in succession, Alcoutim, Moinho das Laranjeiras, Laranjeiras, Guerreiros do Rio, Álamo, Foz de Odeleite, Almada d’Ouro, Castro Marim and Vila Real de Santo António. These are lands with a much better perspective of the world than the majority of settlements from the mountain range or the Barrocal, thanks to the international river that went through them. That’s why they’re worthy of mention in this book of fresh waters. First, Alcoutim is a place occupied ever since the Iron Age, preferred by both romans and arabs, for the position of the hill which allows for observation both upstream and downstream. It was reconquered by D. Sancho II in 1240 and repopulated by D. Dinis, which granted it a charter for the strategic importance against the adverse Sanlúcar del Guadiana. Here the Peace of Alcoutim would be

Água Doce | 177

História do Algarve através da água


Quem desce o Guadiana algarvio encontra, sucessivamente, Alcoutim, Moinho das Laranjeiras, Laranjeiras, Guerreiros do Rio, Álamo, Foz de Odeleite, Almada d’ Ouro, Castro Marim e Vila Real de Santo António. São terras com mais mundo do que a maioria das povoações da Serra ou do Barrocal, graças ao rio internacional que as atravessa. Por isso merecem menção neste livro de águas doces. À cabeça, Alcoutim é lugar ocupado desde a Idade do Ferro, preferido por romanos e árabes, dada a posição do morro que permite a observação a montante e a jusante do rio. Foi reconquistada por D. Sancho II, em 1240, e repovoada por D. Dinis que lhe concedeu foral pela importância estratégica frente ao adverso Sanlúcar del Guadiana. Aqui seria assinada a Paz de Alcoutim entre D. Fernando I e D. Henrique de Castela (1369). O castelo, adaptado à artilharia do século XVII, é sinal da prioridade defensiva dada pelo rio ao território em plena guerra da Restauração. No século XX, em 1965, ainda foi pelo Guadiana que aqui chegou o Presidente da República, Américo Tomás, no navio hidrográfico «João de Lisboa», para inaugurar a ligação da luz eléctrica na vila. Segue-se, rio abaixo, o Moinho das Laranjeiras, pequeno porto por onde os camponeses escoavam os produtos excedentes da curta agricultura. Figos secos, amêndoas, tremoços, romãs, marmelos, queijos, galinhas, azeitonas e outros tantos, levados pelo barco do correio para a praça de Vila Real de Santo António.

178 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

signed between D. Fernando I and D. Henrique of Castela (1369). The castle, adapted for artillery since the 17th century, is a sign of the defensive priority given by the river to the territory during the height of the Restoration war. During the 20th century, in 1965, it was still through the Guadiana that the President Americo Tomás arrived in the hydrographic ship João de Lisboa for inaugurating the arrival of electricity to the village. Further down the river is Moinho das Laranjeiras, a small port through which peasants sold products left over from an agriculture of a very small scale. Dry figs, almonds, lupin beans, pomegranates, quinces, cheese, chickens, olives and many others, transported on the mail boat to the fair of Vila Real de Santo António. Next to it are the Laranjeiras, a famous place of contraband, where the matters of the river went on, with the shipping of coal and quicklime - products which were vital during centuries. There, stones were turned to quicklime at the ovens of Laranjeiras, Ponta and Granacinha. The next harbor is Guerreiros do Rio, where the Museum of the River is located today,


 Barcos no Guadiana.  Boats in Guadiana.

Logo depois, as Laranjeiras, famoso ponto de contrabando, onde se repetiam as lides do rio transportando também carvão e cal, produtos vitais durante séculos. Ali se transformava a pedra em cal nos fornos das Laranjeiras, do Pontal e da Granacinha. O porto seguinte é Guerreiros do Rio, onde hoje se situa o Museu do Rio, construído nas instalações da antiga Escola Primária. Aqui viviam, até à primeira metade do século XX, cerca de cem famílias, algumas ocupadas com a limpeza e conservação das redes dos barcos do Guadiana e na preparação de palangres e outras artes de pesca. A Escola trazia o movimento das crianças das aldeias vizinhas a Guerreiros do Rio também conhecido pelos bailes mais divertidos da região. José Murta Pereira recupera umas quadras que evocam essas farras antigas: Guerreiros do rio Monte pequeno e airoso Tem o seu baile brioso P'ra manter a tradição Não é fadado Por ser terra pequenina Não olhem à sua sina Nem paró seu coração (57) Na nossa pequena orquestra Tocando sempre a miúdo É para os Guerreiros do rio Passar o dia d’ Entrudo. Mas o baile é pequenino Mas é bom é do melhor Tocador é o Sabino, tocador é o Firmino Seja lá ele quem for. (87) Depois da Revolução, construíram uma nova escola na parte alta de Guerreiros do Rio, com o conforto e condições próprios de uma democracia da Europa Ocidental. Hoje está fechada por falta de alunos. Sinais dos tempos. Sempre na margem direita do rio - porque na da esquerda não há bom vento - segue-se a aldeia do Álamo situada no cimo e nas vertentes de uma pequena colina. Este lugar terá sido preferido pelos antigos. Assim o indicam as ruínas de um paredão com cerca de 40 metros de comprimento e seis reforços, formando uma pequena barragem para reter as águas das chuvas aproveitando o acento da inclinação . Mais a Sul, Foz de Odeleite pontua a junção da ribeira assim chamada com o Guadiana. Era talvez a aldeia mais isolada do rio pelos quilómetros que a separam da aldeia de Odeleite, no interior, e de Guerreiros do Rio, a Norte, e por estar na extrema dos concelhos de Alcoutim e Castro Marim. A sua

built on the old Elementary School facilities. Up until the first half of the 20th century, over 100 families lived here, some of them charged with the cleaning and maintenance of Guadiana’s ships fishing nets and the preparation of longline fishermen and other fishing arts. The School brought the movement of children from nearby villages to Guerreiros do Rio, which was also known for hosting the most amusing balls in the region. José Murta recollects some rhymes which evoke those parties of yore: Guerreiros do Rio A small and fair hill Has its proud ball To keep up with tradition It isn’t destined to much Such a small land it is Don’t look at its fate Not its heart Our small orchestra Is always playing on So that Guerreiros do Rio Can celebrate its Carnival day But the ball is very small It’s good, it’s the best Sabino plays, Firmino plays Whoever he might be. (87) After the Revolution, a new school was built at the high part of Guerreiros do Rio, with all the accommodations and comfort worthy of a western europe democracy. Today, it’s closed because of the lack of students. A sign of the times. Always on the right bank of the river - because of the “bad winds” of the left one - we follow the village of Álamo, located at the top and at the side of a small hill. This place was always preferred by the ancients. Sign of it are the ruins of a large wall, with 40 meters in length and six reinforcements, forming a small dam for retaining rain water, taking advantage from the steep inclination. Further down South, Foz de Odeleite punctuates the place where the brook bearing its name merges on with the Guadiana. It was perhaps the most isolated place in the river,

Água Doce | 179

História do Algarve através da água


longínqua vizinha a Sul é a aldeia de Almada d’ Ouro, um pouco afastada da margem do Guadiana. Por isso, aqui o povo dedica-se mais à lavoura do que à vida do rio. Mas, segundo José Murta Pereira, esta Almada não deixava de ter três barcos de carga, todos de vela latina, para escoamento dos produtos agrícolas e abastecimento da aldeia. Havia ainda os botes da guarnição da Guarda-Fiscal entre outros para a pesca da fisca e palangres, nas horas de folga. Rio abaixo, chegamos finalmente à importante sentinela do Reino que foi Castro Marim, a três quilómetros da foz. Considerada em tempos como a primeira praça de guerra do Algarve, também está um pouco afastada do rio, ligada por canais. Surge, imponente, com um castelo mandado erguer por D. Afonso III, mais tarde reparado por D. João IV. Lá dentro está o Castelo Velho, construído pelos mouros com quatro torreões e duas portas. (58) A importância geoestratégica de Castro Marim suplanta as características de todas as outras povoações do Guadiana, salvo Mértola, já no Alentejo, e Alcoutim em menor escala.

Se Mértola foi sede da Ordem de Santiago, Castro Marim seria sede da Ordem de Cristo, antes de Tomar. Paredes meias com as muralhas da era islâmica, é possível encontrar no mesmo Castelo as ruínas da antiga Igreja de São Tiago, testemunho empedernido da vocação de um dos lugares mais importantes para a defesa de Portugal. Na foz, corolário do teclado de portos do Guadiana, surge Vila Real de Santo António. Na quarta esquina de água algarvia - depois da ponta de Sagres e das ribeiras de Odeceixe e do Vascão - transparecem todas as actividades do rio desde que o Marquês de Pombal decidiu construir aqui uma vila à imagem do seu desenho iluminado. «Quando D. José subiu ao trono, em 1750, a margem portuguesa do Guadiana, de Castro Marim ao pontal da barra, e toda a costa desde a foz daquele rio à povoação de Monte Gordo, estava completamente deserta» (88). Só em 1774 o Marquês decidiu fundar ali uma grande povoação, feita em cinco meses, segundo o plano de reconstrução da Capital depois do terramoto de 1755. No entanto, a vila das largas ruas, cortadas em esquadria, honraria o nome de Santo António por ali ter havido outra povoação de Santo António de Arenilha que, cem anos antes, tinha sido tragada pelas ondas.

180 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

because of the kilometers separating it from the village of Odeleite, further inland, and Guerreiros do Rio up North, as it was at the extremity of the municipalities of Alcoutim and Castro Marim. Its far away neighbor to the South is the island of Almada d’Ouro, a little far from the banks of the Guadiana. That’s why the people in this place are more dedicated to agriculture than the life of the river. But, according to José Murta Pereira, this Almada wasn’t without its three cargo boats, all using lateen sails, for disposing fruits and vegetables and supplying the village. There were also small boats, used by the Guard among others, for gaff and longline fishing, during spare time. Down the river, we finally arrive to the important sentinel of the Kingdom that was Castro Marim, three kilometers away from the mouth of the river. Once considered the first stronghold in the Algarve, it’s also sitting a bit away from the river, connected to it through canals. It appears, majestically, as a castle whose construction was ordered by D. Afonso III, and later repaired by D. João IV. Inside it lies the Castelo Velho (“old castle”), built by the Moors with four towers and two gates. The geostrategic importance of Castro Marim overcomes the features of any other town in the Guadiana, with the exception of Mértola, already in the Alentejo, and Alcoutim, even if on a smaller scale. If Mértola was the headquarters of the Order of Santiago, Castro Marim would be the seat of the Order of Christ, before Tomar. Side by side with the walls of the Muslim Age, it’s possible to find, inside that very same castle, the ruins of the old Church of São Tiago, an adamant testimony of the vocation of one of the most important places for the defense of Portugal. At the river mouth, crowning the “keyboard” of Guadiana’s ports, is Vila Real de Santo António. At the fourth corner of Algarvean water - after the tip of Sagres and the rivers of Odeceixe and Vascão - all activities of the river are visible, since the Marquis of Pombal decided to build a town in this place, according to his own illuminated design. “When D. José ascended to the throne, in 1750, the portu-


 Fortaleza de Castro Marim.  Fortress of Castro Marim.

Compete-nos pensar no que o rio Guadiana fez a Vila Real de Santo António, sem ignorar a riqueza que lhe vem do mar onde o excesso de peixe permitiu, no século XIX, o florescimento da indústria conserveira. A agressividade das intempéries invernosas no mar favorecia actividades de doca seca nesta estação. A Vila era lugar para estaleiros de construção e manutenção de barcos tradicionais também procurados pelos homens do rio. «Vila Real, com o seu cais de atracagem para vários tipos de barcos, não só de pesca local, como de outros, que subiam e desciam o Guadiana no transporte de mercadorias, passageiros e ainda navios de grande tonelagem que ali acostavam para carregar cortiça proveniente da serra algarvia, ovinos, caprinos e sal das muitas salinas existentes no sapal de Castro Marim. (...) Neste cais também era frequente ver dragas, batelões e rebocadores, que constantemente procediam à dragagem na entrada da barra, quando nesta, por acção das correntes marítimas e fluviais se formavam grandes bancos de areia e que tinha de ser removidos para facilitar aos pilotos de barra a entrada, sem riscos, dos navios em águas territoriais». (89)

guese bank of the Guadiana, from Castro Marim, to the very end of the backwater, and all the coast from the river’s base line to the town of Monte Gordo, was completely deserted.” (88) Only in 1774 did the Marquis decide to found a great city there, built in five months, according to Lisbon’s plan of reconstruction after the earthquake of 1755. However, the city with wide streets, cut off squarely, would honor the name of Santo António for that was the place were a former village existed, Santo António de Arenilha, which, one hundred years earlier, had been swallowed by the waves.

Água Doce | 181

História do Algarve através da água


Curva do Guadiana,  entre Alcoutim e as Laranjeiras.  Curve of the Guadiana, between  Alcoutim and Laranjeiras. 

 Salinas junto a Castro Marim.  Salt fields of Castro Marim.

Hoje o Guadiana continua navegável até Mértola. Alguns roteiros turísticos exploram vagarosamente as margens e as memórias do rio. É uma viagem recomendável para quem gosta de casar e descoberta da natureza com a história; e o desporto com a boa mesa.

It’s up to us to reflect upon the contribution of Guadiana to Vila Real de Santo António, never ignoring the riches coming from the sea, whose abundance of fish allowed for the flourishing of the canning industry during the 19th century. The harshness of winter-time weather conditions out on the sea favored dry-dock activities during this season, with the city as a place of shipyards for building and maintaining traditional boats, also sought after by men of the river. “Vila Real, with its mooring dock for various types of boats, not only for fishing but also for bringing merchandise and people up and down the Guadiana, and also heavy ships that came to dock there for bringing cork coming from the Algarve’s mountain range, sheep, goats and salt from the many salt fields existent at the Castro Marim marshlands. (…) In this dock you could also frequently see dredgers, barges and towing ships, which constantly swept the floor at the entrance of the backshore, when great sand banks were formed there by the action of the river and sea currents, which had to be dredged away for allowing pilots a safe entrance in territorial waters”. (89) Today, it’s still possible to sail to Mértola. Some scenic tours slowly explore the river’s banks and memories. It’s a recommended trip for anyone who likes to marry the discovery of nature with history, and sports with great food.

182 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 183

História do Algarve através da água


Raúl Brandão down the Guadiana Diary of Raul Brandão at the end of the 19th century. “And the boat goes on and the hills follow us, enclosing the river in a series of somewhat sleepy lakes, full of a wild and melancholic enchantment. Sometimes it looks like we’re going to touch the enormous barrier in from of us, but the steamer turns away, looking for the canal, and we enter another lake, surrounded by slopes cut almost vertically against the waters. Another turn, another lake, this one wider, luminous and blue, its margins opening up to reveal a cultivated and rustic little corner - a house, some trees and three feet of the greenest of grasses. We go down, and this panoramic parade, a bit severe but large, diverse and full of light, keeps renewing itself before our eyes. It’s a formidable cone, standing out from the other hills, it’s Alcoutim in a bright backdrop of almond trees, with S. Lucas do Guadiana on the opposite bank; it’s above all the marvelous life of the waters, soaked of every shade from the blue and the hills, and stirs, shimmers and changes every time, with an amazing sensibility.

184 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

The mountains now turn into green hills. The cultivated lands become more frequent in our side of the river and sometimes on the spanish side. When the mountain doesn’t end vertically, we can always see in the strip by the water some feet of olive trees, the dark carob tree and the low vines, spreading up to the water. We are at Torno da Pinta, which is one of the most beautiful elbows of the Guadiana. From here on out the river bends are less sharp and start distinguishing themselves from the inert bronze of the Alcoutim mountains. The villages appear very close to one another, Álamos, Laranjeiras, Guerreiros, always on our side - and the river becomes wide and luminous. The sky has turned white, losing the glaze of the Alentejo. The heat becomes more intense. Another settlement, the Foz, in the confluence of the river of Odeleite, and almost right in front of us, a great watery surface among lands that have been increasingly coming down, on one side lonely and covered in rags, on the other more human and tender. We can feel the turning of the sea on our face. The whole river shivers in scales of light, even the great indecisive green plains. At the left, the voluptuous whiteness of Castro Marim starts blinding us, crammed between two swells with its old darkened castle. But Vila Real already flickers and appears at the low and confused line, submerged, lost in the fog and drowned in the sun”.


Raul Brandão desce o Guadiana Diário de Bordo de Raul Brandão no final do século XIX. «E o barco segue e os montes seguem-nos encerrando o rio numa espécie de lagos dormentes, cheios de um encanto melancólico e selvático. Às vezes afigurasse-nos que vamos tocar naquela tremenda barreira lá do fundo, mas o vapor dá uma volta à procura do canal, e entramos noutro lago rodeado de encostas cortadas quase a pique sobre as águas. Outra volta, outro lago, este mais amplo, luminoso e azul, cujas margens se entreabrem para nos desvendar um cantinho cultivado e rústico – uma casa, algumas árvores e três palmos de erva muito verde. Desce-se, e o desfile panorâmico, um pouco severo mas amplo, variado e cheio de luz, vai-se renovando sempre diante dos nossos olhos. É um cone formidável que se destaca dos outros montes, é Alcoutim num fundo risonho de amendoeiras, com S. Lucas do Guadiana na margem oposta; é sobretudo a vida maravilhosa das águas, que se embebe de todos os tons do azul e dos montes e que estremece reluz e se modifica a todos os momentos, com uma sensibilidade extraordinária.

Os montes agora transformam-se em colinas verdes. Repetem-se com mais frequência as terras cultivadas na nossa margem e às vezes na da Espanha. Quando o monte não acaba a pique, vêem-se sempre na faixa à beira da água alguns pés de oliveira, a negra alfarrobeira e a vinha baixa que se estende até à água. Estamos no Torno da Pinta, que é um dos mais lindos cotovelos do Guadiana. De aqui em diante as curvas do rio são menos acentuadas e começam a distinguir-se os bronzes imóveis da serra de Alcoutim. As povoações surgem muito próximas, Alamos, laranjeiras Guerreiros, sempre na nossa margem – e o rio ganha uma amplidão luminosa. O céu esbranquiçou perdendo o esmalte do Alentejo. O calor aperta mais. Outra povoação, a Foz, na confluência da ribeira de Odeleite, e quase logo na nossa frente uma grande superfície líquida entre terras que foram sucessivamente baixando, dum lado solitárias e envoltas em farrapos, do outro mais humanas e mais ternas. Sente-se já no rosto a viração do mar. Todo o rio estremece em escamas de luz até os grandes plainos verdes e indecisos. À esquerda começa a ofuscar-nos a brancura voluptuosa de Castro Marim, apertada entre dois morros e com o seu velho castelo enegrecido. Mas já Vila Real tremeluz e aparece na linha baixa e confusa, mergulhada na água, perdida na neblina e afogada em sol».

Água Doce | 185

História do Algarve através da água


Palavras

Words of water (Hydrotoponyms)

Hydrotoponyms are all around the Algarve, Os hidrotopónimos povoam o making liars out of those Algarve desmentindo quem ali vê who only see its salty sea apenas mar salgado e terra seca. De and dry earth. From Lagos Lagos a Guerreiros do Rio, uma série (Lakes) to Guerreiros inacabada de lugares invoca, com do Rio (Warriors of the um nome latino ou árabe, a água River), an unfinished series doce nas terras do extremo Sul. of names invokes, the freshest water of the lands on the extreme South.

Odelouca quer dizer rio louco.  Odelouca means crazy river.

186 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


de água

Água Doce | 187

História do Algarve através da água


«No Garb realça o azul deuses morenos À doçura dos figos submetidos. Vieram gregos. Ficaram sarracenos. Nardos enfolham seus nomes esquecidos».

“At the Garb, a shade of blue highlights the tanned gods, Under the sweetness of the submissive figs. Greeks came. Turned saracen. Nards envelop their forgotten names”.

Natália Correia Natália Correia

Dos nomes reza a história dos sítios. Aos hidrotopónimos do Algarve chega-se pela raiz latina, mais reconhecível na língua portuguesa, e pela raiz árabe.

P

or serem mais escondidos ou inesperados, procurámos descobrir os nomes que devem a sua razão de ser à água no período muçulmano. Maria Alice Fernandes, da Universidade do Algarve, estudou esta origem num dos capítulos da obra de Valdemar Coutinho (90). Ali se encontra a razão de alguns termos. Abercas, no Concelho de Alcoutim, é o plural românico de alberca, do árabe al-birkâ, que significa piscina, lagoa, sinónimo de albufeira. Esta última também vem do árabe, al-buhairâ, com grande uso no sentido de lago ou lagoa. Outro nome que os leigos não reconheceriam como hidrotopónimo é Almancil, no Concelho de Loulé, do árabe al-mançil, corrente de água, conduta de água, leito de curso de água. No castelhano Almancil assume significado diferente, ligado a estalagem ou mudança de cavalos. Todos os nomes que decorrem do apelido árabe wadi – que significa rio, curso de água – e que, em português, toma as formas de Ode ou Odi, podem ser considerados hidrotopónimos. Daqui surge o baptismo de múltiplos caminhos de água e de aldeias junto às margens dos rios como Guadiana, Odeceixe, Odelouca ou Odiáxere. Também para Alvor, do árabe al-bur, se atribui o significado «o poço», entre outros relacionados com terrenos incultos. Aceca, em Tavira, corresponde a levada, e acéquia, do árabe as-saqiâ, canal de rega. Já Açude - nome de múltiplas terras dos concelhos de Vila do Bispo e Loulé passando por Monchique e Albufeira – vem do árabe as-sudd, que significa represa de água ou dique. Do mesmo modo Alcântara, em Lagos, ou o seu diminutivo Alcantarilha, em Silves, quer dizer al-qan Tara - ponte, viaduto, aqueduto. Ainda ligado ao estado líquido no Algarve temos o lugar e a ribeira de Algibre, em Loulé que significa al-jibb ou al-jubb,

188 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

A

place’s history comes from its name. The arab root and the latin origin, more recognizable in portuguese, lead us to Algarve’s hydrotoponyms. Because they are more hidden or unexpected, we tried to find the names that owe their existence to water during the Muslim age. Maria Alice Fernandes, from the University of the Algarve, studied this origin in one of the chapters of Valdemar Coutinho’s work. The reason for some of these names existence is found there. Albercas, in the municipality of Alcoutim, is the romanic plural of Alberca, from the arab name Al-birkâ, which means pool or lake, of the same meaning as “albufeira”. This last name also comes from the Arab name of al-buhairâ, a widely used term for lake or lagoon. Another name which laymen wouldn’t recognize as a hydrotoponym is Almancil, in Loulé, from the Arab “AlMançil”, meaning “current of water”, “water way” or “river bed”. In the spanish language, Almancil has another meaning, more connected to “inn” or “stable”. Every name that comes from the arab surname wadi - which means river, course of water - and which, in portuguese, assumes the form of “Ode” or “Odi”, can be considered hydrotoponyms. From here comes the baptism of multiple water ways and villages near the margins of rivers, like Guadiana, Odeceixe, Odelouca and Odiáxere. To Alvor, from the arab name “al-bur”, we can also link the meaning of its name to “well”, among others related to uncultivated lands. Asseca, in Tavira, corresponds to “acéquia”, meaning “irrigation canal” from the arab word “assaqiâ”. Açude, the name of various lands of the Vila do Bispo and Loulé areas,


 Tavira. Tavira.

cisterna ou poço. Também Azenha, que baptiza cerca de 25 topónimos, simples ou compostos, ao longo do Algarve, quer dizer as-saniâ, nora, roda de irrigação. Outro nome, repetido 19 vezes nas terras algarvias, é nora, ou annau-râ em árabe, cujo significado identificamos. É engraçado comparar as interpretações que ligam, Boliqueime a «abú al Qaim», «Pai do notável», ou a «bú al-Kaim» ou ainda «bur Qaim», «poço de Qaim», mais tarde poço abundante. Por conveniência de estudo e imparcialidade política, preferimos aqui o segundo significado - poço abundante.

in addition to Monchique and Albufeira, come from the arab as-sudd, which means water dam or dike. Alcântara, in Lagos or its diminutive Alcantarilha, in Silves, both mean al-qan Tara - bridge, overpass, aqueduct. Still connected to the liquid state in the Algarve, we have the village and brook of Algibre, in Loulé, from “al-jibb” or “al-jubb”, meaning “cistern” or “well”. Also Azenha, which is the name of 25 different places throughout the algarve, stems from “assaniâ” - “waterwheel” or “irrigation wheel”. Another name, repeated 19 times in the lands of the Algarve is “nora”, or “annau’râ” in arab, which means “waterwheel” as well. It’s funny to compare the interpretations that connect Boliqueime to “Abú al Qaim”, “Father of the Great One” or “bú al-Kaim”, or even “bur Qaim”, meaning “well of Qaim”, which later also meant “abundant well”. For the study’s convenience and for the sake of political impartiality, we prefer its second meaning - “abundant well”.

Água Doce | 189

História do Algarve através da água


Trabalhos

Water Labours

Pescadores, lavadeiras, guarda-rios, barqueiros, biólogos, aguadeiros, contrabandistas, moleiros, guardasfiscais, cesteiros, engenheiros hidráulicos, oleiros - todos estes trabalhos se deixam molhar pela água doce algarvia. Percorremos estes ofícios, alguns já desaparecidos pela força do progresso.

Fishers, washer women, kingfishers, boatmen, biologists, watermen, smugglers, millers, guards, basket makers, hydraulic engineers, potters - all these workers let themselves be sprinkled by the fresh water of the algarve. We went through all these trades, some already gone, pushed aside by progress.

Apanha de marisco em Tavira.  Picking shellfish in Tavira. 

190 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


de Água

Água Doce | 191

História do Algarve através da água


LAVADEIRAS Alegres, as lavadeiras, Todas elas lindas moças, Laboriosas e presenteiras, Dão vida ao barranco das Choças Muitas destas lavadeiras, Este era seu ganha-pão, Trabalho árduo, canseiras, Tempos difíceis os de então». Descalças e dentro de água, Junto à pedra de lavar, Sem se lhes ouvir, uma mágoa O dia inteiro a esfregar. A roupa de suas senhoras, Que iam a Vila Real buscar, As heróicas lavadeiras, Bravas máquinas de lavar! Manuel Vicente Lopes Palma (91)

192 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

Lavadeiras de Lagos; no lavadouro público de S. João e no Tanque público; lavadeiras no Arade. Washer women of Lagos: in the S. João wash house and at the public tank; washer women in the Arade


Água Doce | 193

História do Algarve através da água


Era ali, no largo do Terreiro, junto do velho chafariz municipal, onde a Tia Rita vendia água, que o nosso pequeno mundo começava.

Bentes Francês

Aguadeira de Estoi. Waterwoman of Estoi.

194 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 195

História do Algarve através da água


Aguadeiro António Crisógono dos Santos; aguadeiros de Lagos, Loulé, Almancil e Portimão. Waterman António Crisógono dos Santos. Watermen of Lagos, Loulé, Almancil and Portimão.

AGUADEIROS «Onde não há nascentes, fazem-se cisternas ou vai-se pelas águas em burros, que a transportam em bilhas de barro, com a forma de ânforas a que se tivesse cortado o bico. Um carro de oito bilhas vê-se com frequência distribuindo água pelas estradas e caminhos rurais». Geraldino Brites

WATERMEN “In the places without a springs, cisterns are made or water is brought on donkeys, which carry it in clay jugs, shaped like amphorae with their beak cut out. An eight-jug car is seen frequently handing out water through the roads and rural tracks”. Geraldino Brites 196 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 197

História do Algarve através da água


Pescadores da Praia do Burgau, Lagos; Monte Gordo; Faro Fishermen at Burgau beach, Lagos; Monte Gordo; Faro

PESCADORES

FISHERMEN

Sendo o mar do Algarve um banco de peixe dos mais concorridos do mundo, nem por isso os rios que nele desaguam ficaram sem pescadores, ao longo dos tempos. Há vestígios arqueológicos que denunciam esta actividade desde os primórdios sobretudo nos maiores rios como o Arade e o Guadiana.

The sea of the Algarve is a bank of fish, one of the most sought after in the world. Still, through the years, the rivers that flow towards it didn’t run out of fishermen. There are archeological remains that denounce this activity since the beginning, mainly in major rivers like the Arade and the Guadiana.

Neste último, através de artes de pesca artesanais que chegam aos nossos dias, era possível apanhar eirós, enguias, muges, tainhas, liças, barbos e picões. Subiam também o Baixo Guadiana, por influência das águas da maré, corvinas, corvinatas, borregatas, robalos e camarões do rio. Quando havia grandes correntes provocadas pelas chuvas, viam-se surgir no troço algarvio do rio múltiplas espécies como carpas, percas, pardelhas e gambísias empurradas pela força das águas. Havia ainda os peixes de água salgada que subiam o rio para desovar. Entre estes, destacavam-se a lampreia, o sável, a saboga e o machinho. Este levantamento, realizado por José Murta Pereira, refere ainda a existência abundante de Esturjão ou Solho-rei até à primeira metade do século XVIII. «A partir daí não há memória da sua presença nestas águas». O autor diz ainda que a carne do Esturjão era salgada ou fumada e «fazia as delícias dos consumidores. Ainda dos seus ovos se preparava o tão famoso caviar, de que muito se fala, mas poucos a ele têm acesso». (92)

198 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

In the latter, using fishing techniques that reached our days, it was possible to catch eels, mullets, barbs and saugers. Also up the Low Guadiana, influenced by tidal waters, went croakers, borregatas, sea bass and river shrimp. When great currents were provoked by rainfall, multiple species appeared at the Algarvean section of the river, such as snooks, perches, roaches and gambisiae, pushed by the might of the wears. There was also salt water fish, which came up to the river to lay its eggs. Among these were the lampreys, allis shads, twit shads and “machinhos”. This survey, conducted by José Murta Pereira, also refers the abundant existence of sturgeon and sole fish until the first half of the 18th century. “From then on, there is no longer a memory of their presence in these waters”. The author also tells us that the Sturgeon’s flesh was salty or smoked and “was the de-


Este homem do Guadiana lembra-se de ver, nos anos 50, grupos de golfinhos subindo e descendo o rio à procura de cardumes para a sua alimentação. «Tive, na minha adolescência, o prazer e a felicidade de os observar nas suas missões de rotina chegando uma noite, entre o Freixo e o Forno da Cal, a ver-me envolvido por eles, o que na altura não foi nada agradável». Hoje já não é possível repetir esta experiência. Também Francisco Amaral, Presidente da Câmara de Alcoutim, se mostra nostálgico dos tempos em que os pescadores de Mértola, Penha de Água e do Pomarão vinham passar temporadas a Alcoutim. «Eram noites no cais a ouvi-los “bater ao peixe”. Sim, nesse tempo não havia poluição e havia muito peixe», escreve no prefácio do mesmo livro. «Nas tradicionais festas de Alcoutim, a canoagem de então era bastante mais difícil. Regatas com os barcos dos pescadores, quase casas ambulantes puxadas por remos, que às vezes se partiam. Tanta vida, meu Deus!». (93)

light of people who consumed it. From their eggs the famous caviar was made, which so many people talk about, but so few can access”. (92) This inhabitant of the guadiana remembers seeing, in the 50’s, a group of dolphins going up and down the river, looking after schools of fish for food. “I had, in my adolescence, the joy and happiness of seeing them conducting their routine missions. One night, between Freixo and Forno da Cal, I was even surrounded by them, which, at the time, wasn’t a pleasant experience at all”. Today, such experience is no longer possible. Francisco Amaral, President of Alcoutim, is also nostalgic of the times when the fishermen from Mértola, Penha de Água and Pomarão came to spend a few days in Alcoutim. “Every night we could hear them “pounding fish” at the dock. Yes, at the time there was no pollution and fish was abundant”, he writes on the foreword of that same book. “Back then, during the traditional feasts of Alcoutim, canoeing was much more difficult. Boat races with fisher boats, almost movable houses pulled by oars, that sometimes even broke. My god, so much life there was!”. (93)

Água Doce | 199

História do Algarve através da água


CONTRABANDISTAS

SMUGGLERS

O contrabando faz parte da história do Guadiana desde que o rio é fronteira. Testemunhos recolhidos pelo Museu do Rio, em Guerreiros do Rio, contam estas histórias com os temores e rigores que as envolviam. Soam num tom de aventura e realismo difíceis de reproduzir nos nossos dias.

Contraband is part of the Guadiana’s history ever since the river started acting as a border. Testimonies collected by the Museum of the river, in Guerreiros do Rio, retell these stories with all the fears and hardships that involved them. They’re told in a tone of adventure and realism that is hard to reproduce these days.

«Era uma vida muito terrível a vida do contrabando», conta um contrabandista reformado. Tinha com ele cinco ou seis homens. A travessia do rio para Espanha fazia-se à noite, «e quantas vezes a nado», para fugir à atalaia dos guardas-fiscais. Eram muitas horas a pé, água gélida e uma carga nas costas de mais de 30 quilos por homem. «Chegávamos a estar dois e três dias sem comer, escondidos num barranco». Andavam para mais de 20 quilómetros, entre corta-mato e rio, sempre de noite. Por vezes, ficavam escondidos dois ou três dias. Roubavam galinhas, porcos e coelhos para se alimentarem. Nos sacos levavam de tudo um pouco: farinha, café, tabaco, sabão, ouro, animais e homens que emigravam clandestinamente. Chegavam a formar grupos de 25 pessoas, entre os 18 e os 50 anos, para procurarem outra vida fora de Portugal. Também seguiam mulheres sobretudo viúvas ou abandonadas, pela fronteira seca. A Guerra Civil espanhola de, 1936 a 1939, favoreceu o negócio. Não havia nada em Espanha. «Só tinham fome e mortos. Começámos a carregar para lá comida». Gilberto Francisco diz que se dedicavam ao contrabando porque «o campo não dava nada. Ganhava 400 ou 500 escudos só numa viagem. O que eles (camponeses) não ganhavam em três meses. A bravura superava o medo». Em Espanha, eram confundidos com os portugueses que lá viviam e trabalhavam. Conheciam novas mulheres, andavam mais à vontade.

200 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

“Life of contraband was terrible”, a retired smuggler tells us. He took with him five or six men. The crossing of the river was done by night, “and many times by swimming”, to escape the gaze of the police. Many hours were passed on foot and in ice cold water, carrying a load on the shoulders of over 30 kilograms per man. “We sometimes didn’t eat for three or two days, hidden away on a slope”. They walked over 20 kilometers, cross country and cross river, always by night. Sometimes they remained hidden for two or three days. They stole chickens, pigs and rabbits for food. In their bags they took a bit of everything: flour, coffee, tobacco soap, gold, animals and men which fled the country illegally. They sometimes formed groups of 25 people, between 18 and 50 years of age, which sought another life out of Portugal. Many women, mostly widowed and abandoned, also went through the dry frontier. The Civil War in Spain, from 1936 to 1939 was good for business. There wasn’t anything available at the neighboring country. “All they had was famine and dead people. We started carrying food over there”. Gilberto Francisco says they only dedicated themselves to contraband because “the land didn’t give us anything. I earned 400 to 500 escudos on a single trip, more than what they [the peasants] made in three months. Bravery overcame fear”. In Spain they were mistaken by Portuguese that went there to live and work. They encountered new women and moved more at ease.


 Estátua do Contrabandista, Alcoutim. Statue of the smuggler, Alcoutim.

QUADRAS AO CONTRABANDISTA «Estava uma noite de breu, Não se via uma estrela no céu, Porém, o contrabandista, Prossegue o seu fim sem vista. Caminhando por atalhos, Foi o cabo dos trabalhos, Nessa aventura tamanha, Atingir terras de Espanha. Aos ombros leva o seu fardo, Cumprindo o seu triste fado, Por atalhos impensáveis, Veredas intransitáveis Mas eis que uma bala certeira, Antes de chegar à fronteira, Atravessa a escuridão,

E o seu corpo tomba no chão. Não passou de um grande susto, Mesmo assim levantou-se a custo, Ficou ferido numa mão, Lá estava a perfuração. Só e naquela aflição, Serviu-se da imaginação, Sem a calma perder, Para a situação resolver. Abundantemente a sangrar, Para o seu sangue estancar, Sem uma solução capaz, A camisa em tiras faz. A casa vai regressar, Para oportunamente tentar, O seu objectivo atingir, Nunca pensou desistir... (94»

Água Doce | 201

História do Algarve através da água


Estátua do Guarda Fiscal, Alcoutim. Statue of the fiscal guard, Alcoutim.

GUARDAS-FISCAIS «O perigo maior era o dos carabineiros espanhóis. Eles atiravam para matar», conta um ex-guarda-fiscal da fronteira do Guadiana. Na verdade, de acordo com os 65 testemunhos do Museu do Rio, as lutas com as autoridades levavam, por vezes, à morte dos contrabandistas. «Aqui no nosso sítio (Alcoutim) mataram dois ou três homens ali no rio. Por acaso tive sorte: nunca fui preso ou apanhado», conta um dos fora-da-lei, José Joaquim Gonçalves. Uma sorte que contava com a distracção de alguns guardas: «Causei grandes prejuízos ao Estado português. Nunca fiz nenhuma apreensão. Quando a gente está sozinho, pode tomar essa decisão. Quando se está acompanhado, já não pode. Eles faziam isto para combater a miséria».

202 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

FISCAL GUARDS “The biggest danger came from the spanish riflemen. They shot to kill”, tells us an exfiscal guard from the frontier of the Guadiana. Indeed, according to the testimonies at the River Museum, clashes with authority sometimes led to the death of smugglers. “Here in our place (Alcoutim) they shot two or three men down there, in the river. I was lucky: I was never caught or arrested”, tells one of the outlaws, José Joaquim Gonçalves. Such luck came also from some guards’ distraction: “I inflicted much damage to the Portuguese State. I never apprehended anything. When you’re alone, you can make this decision. When you’re with somebody, you can’t. They did this to fight poverty”.


  Grupo de contrabandistas espanhóis capturados no Guadiana. Group of spanish smugglers captured in the Guadiana.

Nem sempre assim era. Um dos contrabandistas apanhado por guardas portugueses conta: «Chegámos a andar à pancada. Levaram-me para um quartel. Deram-me umas bofetadas». Depois fugiu, sem maiores consequências. O nosso País tinha mais postos da guarda do que Espanha. De três em três quilómetros, havia um ponto de vigia para a fronteira fluvial do Guadiana, colocado estrategicamente nas curvas do rio com maior visibilidade. Usavam-se ainda lanchas ruidosas que não tinham muita utilidade porque, segundo os relatos dos contrabandistas, anunciavam o perigo à distância. Quando as coisas corriam bem para as autoridades, como garante o contrabandista Gilberto Francisco, os guardas ficavam com uma parte das cargas que conseguiam apanhar. «Havia muitos que alinhavam. Os próprios chefes eram corruptos e não se sabia», conclui, generalizando.

It wasn’t always like this. One of the smugglers caught by the portuguese authorities tells us: “We even had fistfights. They took me to one of their barracks. They slapped me a bit”. He then escaped, with no major consequences. Portugal had more guard posts than Spain. Every three kilometers, there was a watchpoint towards Guadiana’s river border, placed strategically on the river bends, which had more visibility. Noisy motorboats were used, which weren’t very useful in fact, because, according to smugglers’ stories, they announced danger at a distance. When things went well for the authorities, as one of those smugglers, Gilberto Francisco, tells us, guards kept a part of the cargo they were able to catch. “There were a lot of guards that went along with it. Their own bosses were corrupt and this wasn’t known”, he concluded, generalizing. After the spanish riflemen, the most feared guards were those who had once been smugglers and, seeking stability, decided to become fiscal guards. They knew the grounds all too well, their business, their habits and hiding places. They reached contraband a lot easier. Today, Law has erased the water work of the Fiscal Guards, but the river border didn’t cease to be overseen. The crossed information between different security forces writes new stories, connected to the smuggling of cattle, people, drugs, weapons and money. Something to feed the daily news.

Depois dos carabineiros espanhóis, os guardas mais temidos eram os que tinham sido contrabandistas e que, em busca de estabilidade, decidiam passar a guardas-fiscais. Conheciam bem demais o território, o negócio, os hábitos e os esconderijos. Apanhavam o contrabando com maior facilidade. Hoje a Lei apagou do mapa o trabalho de água dos Guardas-fiscais mas a fronteira fluvial não deixa de ser fiscalizada. Informações cruzadas entre as diferentes forças de segurança escrevem novas histórias ligadas ao contrabando de gado, pessoas, droga, armas e dinheiros. Matéria para notícias do dia.

Água Doce | 203

História do Algarve através da água


Casal com trajes de moleiros. Couple dressed in miller attire.

204 |

MOLEIROS

MILLERS

O Baixo Guadiana tinha a maior importância para as populações ribeirinhas. A montante do Pomarão, já no Alentejo, «foram aproveitados os vaus, construindo neles açudes e instalando azenhas e moinhos movidos pela força das águas correntes», refere José Murta Pereira. (95) Estes engenhos eram muitíssimo úteis porque resolviam uma das carências das populações, fornecendo farinha para o pão, base alimentar da região que depois se misturava com azeitonas, banha, chouriço, queijo, caldo de peixe, toucinho, torresmos, sardinhas ou tomate.

The Low Guadiana was most important to the riverside population. Upstream from the Pomarão, already in the region of the Alentejo, “fords were taken advantage of for building dikes and installing canals and water mills driven by the strength of running waters”, José Murta Pereira refers. (95) These engines were very useful, since they solved one of the populations’ needs, supplying flour for bread, one the main basis of food in the region, which then was mixed with olives, grease, blood sausage, cheese, fish broth, ham, bacon, sardines or tomato.

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Moinho de água na Serra de Monchique. Watermill at the Monchique mountain range.

Os moleiros trabalhavam quase ininterruptamente. Mas, «desde a Penha d’Água (a sul de Mértola) até Castro Marim, devido ao grande caudal do rio, não era possível a instalação de moinhos e azenhas, razão pela qual foram seleccionados os afluentes dentro desse percurso para a instalação de moinhos de água (Ribeiras do Vascão, Cadavais, Foupana, Odeleite e Beliche)». (96) Estes, por sua vez, não dispunham de caudal suficiente para a laboração durante o Verão recorrendo as populações a moinhos de vento. «Era trabalhar de dia e de noite, sempre. Ganhava-se mais que trabalhando aí noutra vida, mas trabalhava-se muito. Lidar com os sacos, carregar carga... Chegavam-se a juntar seis, sete animais – vinha tudo em animais, não havia transportes, não havia carros, não havia nada... Tudo carregado em cima de animais. Carregava-se ali sacos de quarenta, cinquenta quilos cada um, e sempre vinham pessoas mais velhotas que não podiam carregar e tinha de ser o moleiro a carregar. (...) O moleiro cobrava a maquia, usava uma medidazinha, que eles tiravam ali de um saco duas ou três medidas de cada saco, e ficava a maquia. O moleiro não tinha ordenado, tinha um terço dos lucros daquilo e tinha ainda uma arroba de farinha por semana, que era a amassadura. Por causa disso é que diziam que o moleiro não passava fome». (97)

Millers worked almost continuously. But “because of the river’s large flow, the installation of water mills and canals wasn’t possible from Penha d’Água (south of Mértola) to Castro Marim. Because of this, tributaries inside that part of the river were selected for building water mills (the rivers of Vascão, Cadavais, Foupana, Odeleite and Beliche)”. (96) These, on the other hand, didn’t sustain a strong enough flow for working during the Summer, when the locals resourced to windmills. “It was constant work, day and night. One could earn more doing this than something else, but you worked like hell. Dealing with bags, hauling cargo… You sometimes gathered, six or seven animals - everything was carried by animals, there was no transportation, no cars, nothing at all… Everything was hauled on the back of beasts of burden. You loaded bags of forty, fifty kilograms each and there were always some old people that weren’t able to carry them and the miller had to do that job, too. (…) The miller charged a fee, used a small box for measuring, they took two or three measures from the bag and the fee was covered. The miller had no wage, he kept a third of the profits from that and kept an arroba (around 15 kilograms) of “amassadura” for himself, which was a kind of dough. Because of this, it was said that millers never starved”. (97)

Água Doce | 205

História do Algarve através da água


206 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


O moinho destacava, Como uma flor desbotada, Na garganta azul do rio, Que o luar punha nevada. - Pálida flor de infortúnio, Por todos abandonada... A água, quando o tocava, Tinha a voz mais magoada, Vestia, as rendas de espuma, Sua base esverdeada... O luar que ama as ruínas, Lançava-lhe, na esplanada, As girândolas de prata Da sua luz desmaiada... Se alguma vela passava, Do moinho ia afastada... Já não tinha nem um ninho, Nem uma asa poisada: As aves fugiam dele, Em o vendo, à debandada. Não o roçara jamais Nenhuma trança doirada, Mas tinha o oiro da lenda Dentro de si encerrada;

João Lúcio Água Doce | 207

História do Algarve através da água


208 |

GUARDA RIOS

RIVER GUARDS

O Guarda-rios era uma figura importante na organização do espaço e dos modos nos povos do Algarve que sobreviveu até meados do século XX. «Andava de burro, de pasta metálica com vara e cantão», lembra Macário Correia, «tinha a missão de verificar a legalidade das extracções de águas, observava as margens, a desobstrução de pontões. Em suma: administrava as águas públicas, as pontes, os poços, as regas, a partilha das águas». Por curiosidade, existe também um pequeno pássaro com o mesmo nome de guarda-rios ou pica-peixe.

The River Guard was a key figure in the organization of space and habits in the peoples of the Algarve. They survived until mid-20th century. “He rode a donkey, along with a metallic briefcase carrying a wooden pole”, remembers Macário Correia, “he had the mission of checking the legality of water extraction, watched over the banks and cleared the wharfs. Basically, he ruled over public waters, bridges, wells, irrigation and the sharing of the waters”. As a slice of trivia, there is also a small bird bearing the same name of “river guard” or “kingfisher”.

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Barco no rio Guadiana. Boat at river Guadiana.

MESTRE CONTRUTOR DE MOINHOS «As mós tinham de ser picadas depois de moer o trigo. Que o trigo alisava a mó, e tinha de se tirar o liso, com a picadeira. Eram picadas quase todos os dias. O moleiro tirava a mó nem de dez em dez minutos, e em cada hora e meia picava e punha-a a funcionar. Aquilo era rápido: tinha uma picadeira assim larga, com o feitio de um sacho mas mais larga, e depois picava. Ia dando as pancadas ali, certas, e rodando à medida que ia ficando picado. Cada madeira tinha a sua aplicação: o azinho para a roda dos dentes, para o carrete e os fuselos e para o lobete. Tem de ser na madeira mais forte porque gasta muito. Nos de vento, o eucalipto para as varas da roupa e o pinheiro para o pião que aguenta mais a água». (98) Custódio Campos

MASTER BUILDER OF MILLS “Grinding stones had to be punctured after milling the grain, as the process softened the surface and made the stone lose its roughness. They were punctured almost every day. The miller took out the stone every ten minutes, and every hour and a half he punctured it and put it to work again. It was a fast process, he had a large pick, shaped like a mattock, only wider, and then he proceeded to pick it. He hammered it very accurately and rolled it as it was minced. Each kind of wood had its unique role: oak for the axis, the spindle and the cogs. They had to be made out of a strong wood, because they were subject to much wear and tear. On the windmills, eucalyptus was used for the sail structure and pine for the spindle, as it was more resistant to water”. (98) Custódio Campos Água Doce | 209

História do Algarve através da água


BARQUEIROS

BOATMEN

«O meu Pai fazia viagens para Mértola e para o Pomarão com palha, cevada, aveia, farinha. Depois, a mina parou, os navios deixaram de navegar e o rio parou. Morreu. Os barcos aí no rio era quase como os carros agora são na estrada. Isto (pastoreio) agora não é a minha profissão. Não tenho mais nada a dizer. Toda esta gente tinha um bocadinho de campo mas a vida profissional era a de barqueiro. A juventude debandou. Não há trabalho para eles. Anda cada um para seu lado. Quando vejo o rio alegro-me. Fui aqui criado. Quando vou para o interior e não vejo água, desgosto-me. Sou como o peixe que morre fora de água». (99)

“My father travelled to Mértola and Pomarão with straw, barley, oat, flour. Then, the mine stopped, ships stopped sailing and the river stopped. It died. Boats in that river came and went like cars on a highway. This I’m doing now [herding] is not my real job. I have nothing else to say. All these people had a plot of land, but their professional life was as boatmen. The youngsters ran away. There isn’t any work for them. Each went their own way. When I see the river, I am happy. I was raised here. When I go inland and I don’t see water, I get sad. I’m like a fish that dies out of water”. (99)

Sebastião Teixeira, Barqueiro da Foz de Odeleite.

Sebastião Teixeira, Barqueiro da Foz de Odeleite.

210 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


CESTEIROS «A cana, matéria-prima dos cestos, dá-se junto aos pontos de água. É lá que floresce a arte dos cesteiros, também no Algarve. «Na orla fluvial do Guadiana e seus afluentes, a cana existia com abundância e era muito utilizada pelo homem na confecção artesanal de cestaria nas povoações marginais ao rio, em particular na aldeia de Odeleite. Foi talvez a indústria cesteira a maior fonte de rendimento para muitas famílias desta aldeia». (100) «Vários modelos e tamanhos, com e sem tampa, serviam para arrecadar peixe para salga e venda e produtos das hortas e dos pomares. Eram embalagens indispensáveis para a vida económica local. As canas aproveitavam-se ainda para construir os típicos telheiros de caniço que favoreciam a desejada sombra, junto às casas, e dentro das casas, nos verões tórridos do Garb. As canas «eram aplicadas uma a uma e ligadas entre si com fio de sisal às canas mestras, cruzadas com os caniços e sobre os garrotes de madeira (aos quais eram fixadas com pregos de dez em dez unidades e as suas pontas apoiadas nas partes superiores das paredes). Terminada esta fase, seguia-se a colocação das telhas uma a uma sobre o caniço, pelo mestre com a ajuda do servente, tornando por conseguinte as casas mais confortáveis e frescas durante o Verão». (101)

BASKET MAKERS ‘‘Cane, the raw matter for baskets, grows near water. The art of the basket makers flourished in those places, and also in the Algarve. “In the fluvial rim of the Guadiana and his tributaries, cane grew abundantly and was very much used by man for the handmade manufacturing of baskets near the river, particularly near the village of Odeleite. The basket making industry was possibly the biggest source of income for a lot of families in this village.” (100) ‘‘Lots of different kinds of baskets, varying in size and shape, were used for storing fish for salting and selling products from the gardens and orchards. They were indispensable packages for the local economic life. Canes were also used for building the typical straw roofs which allowed much needed shade, near and inside the houses, during the scorching summers of the Garb. Canes “were applied one by one, and connected between them to the master canes with a string made of sisal. They were then crossed with straws, above the wooden beams (to which they were attached with nails every ten units, and their ends supported by the upper parts of the walls). When this was finished, tiles were placed, one by one, over the straw, by the master builder with his assistant’s help, thus making houses more comfortable and fresh during the Summer”. (101) José Murta Pereira

José Murta Pereira

Água Doce | 211

História do Algarve através da água


OLEIROS «A olaria tem, no Algarve, a mais larga utilização, nos utensílios domésticos, nas bilhas com que se vai buscar água à fonte distante, nos alcatruzes das noras ou nos covos, em tudo semelhantes com que se apanham polvos». (102)

POTTERYMEN

Orlando Ribeiro

«In the Algarve, pottery has a large use in domestic instruments, in recipients used for collecting water in distant fountains, in zinc trays and buckets, similar to the ones used to catch octopuses.». (102) Orlando Ribeiro

212 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 213

História do Algarve através da água


Holy waters (Water as a source of health)

Águas

A água que cura, fonte de milagres, sede da esperança para enfermos, moribundos ou enfastiados foi uma constante no Algarve, sobretudo em Monchique. As fontes santas multiplicam-se com o sabor de lendas que, por vezes, se tornam realidade.

Water which cures, fountain of miracles, source of hope for the sick, dying or weary, was constant in the Algarve, mainly in Monchique. But the holy fountains multiply themselves to the taste of legends, which, sometimes, become reality.

Serra de Monchique. Monchique mountain range.

214 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Santas Água Doce | 215

História do Algarve através da água


«E aquelas fadas Que têm as ribeiras de verde pintadas»

“And those fairies Which have their rivers painted in green”

Gil Vicente

Gil Vicente

I No Algarve, o culto da água, sobretudo nas fontes curativas ou nos poços termais, foi alimentado continuamente pela devoção popular, do neolítico aos nossos dias.

A

s sucessivas crenças e religiões toleraram-no e incorporaram-no nos ritos. A simbologia recorrente conjuga sinónimos de imortalidade, sabedoria e universo feminino, relação com a árvore, as águas correntes e as pedras desde a Idade do Ferro. Paulo Pereira, no «Espírito da Terra», identifica ritos em torno da água, desde os primórdios. Na Idade do Bronze e do Ferro, era comum fazer ofertas de tesouros aos rios com deposições de peças de armaria, de ourivesaria ou joalharia «com carácter sacrificial ou de homenagem a um defunto». Com a romanização, deu-se a instituição de fontes sagradas e «invocações e votos às ninfas ou às fontanae em epígrafes». (103)

Os concílios visigodos, relatados na obra de San Martín Dumiense, dão conta de como o culto das águas e das fontes se desenvolveu na Península Ibérica. «Estes testemunhos referem-se muito provavelmente aos cultos indígenas», explica José Maria Blásquez, em «Religiones en la España Antígua», «a epigrafia conservou os nomes de grande número de divindades relacionadas com as fontes, as águas ou os rios, em que o sincretismo é claro». No tempo da ocupação árabe, as fontes passam a ser lugar «onde as mouras encantadas se penteiam ou seduzem os viandantes, substituindo-se às ninfas pagãs». As mouras aparecem à beira das fontes a pentear cabelos de ouro com pentes de ouro.

216 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

n the Algarve, the cult of water, mainly in the healing fountains or in thermal wells, was constantly fuelled by popular devotion, from the neolithic to our days. Successive beliefs and religions tolerated it and incorporated it in their rituals. The recurring symbology conjugates synonyms for immortality, wisdom and female universe, related with trees, running waters and stones ever since the Iron Age.

Paulo Pereira, in his book “The Spirit of the Land”, identifies rituals around water, since the dawn of time. At the Bronze and Iron ages, it was common to make offerings of treasure to rivers, with depositions of armor and jewelry pieces “of sacrificial nature, or for honoring the dead”. With the Romanization, the institution of sacred fountains took place, as well as “invocations and vows to the nymphs or fontanae in epigraphs”. (103) The visigothic councils, described in the work of San Martín Dumiense, gives us a picture of how the cult of water and fountains developed in the Iberian Peninsula. “These testimonies probably refer to the indigenous cults”, explains José Maria Blásquez, in “Religiones en la España Antígua”, “epigraphy conserved the names of a great number of deities related to fountains, waters and rivers, where syncretism is clear”. At the time of the arab occupation, fountains become a place where “enchanted moors comb their hair or seduce travelers, as a substitute of the pagan nymphs”. Moorish girls appear near the fountains, combing hairs of gold with golden combs.


Lá pela noite adiante Um lindo cantar se ouvia; Deitou os olhos ao largo, Viu lá estar uma donzela Penteando o seu cabelo Em um tanque de água fria.

Across the distant night A beautiful chant was heard; He looked into the distance, And saw a maiden sitting there Combing her hair By a tank of cold water.

Romanceiro Geral, Teófilo Braga

Portuguese Ballads, Teófilo Braga

Consiglieri Pedroso considera as mouras encantadas como «divindades ou génios femininos das águas, como guardadoras de tesouros encantados, como fiandeiras e construtoras de monumentos, e como génios maléficos» que habitam as fontes, os rios, os poços, as rochas, as grutas e os monumentos antigos. O carácter mágico das lendas mouras acaba por prolongar, no âmbito do imaginário, o papel oracular das fontes ou rios, «ou seja, perpetua o papel dos deuses ou deusas, e das ninfas, mas agora num quadro cristão», diz Paulo Pereira.

Consiglieri Pedroso consider enchanted moors to be “deities or female genies of the waters, keepers of enchanted treasures, thread spinners and builders of monuments, but also evil genies”, which inhabit fountains, wells, rivers, rocks, caves and old monuments. The magic nature of the moorish legends ends up extending, through the realm of imagination, the oracular role of fountains and rivers, “in other words, it perpetuates the role of gods, goddesses and nymphs, but now under a christian frame of mind”, Paulo Pereira says.

Na verdade, depois da Reconquista dá-se a cristianização dos topónimos que invoca santos com particularidades ligadas à água, como São João Baptista ou à Virgem Maria, a quem «cabe o papel de sobreposição às divindades antigas, quase sempre de carácter salutífero». Diz o Povo que a água dorme todas as noites mas na de S. João (Baptista) está benta. Diz ainda que na meia-noite ou na manhã do mesmo São João «goza de muitas virtudes». É uma noite em que tudo parece possível. José Leite de Vasconcelos sublinha o «exemplo de superstição, no que se tem introduzido em dia de São João Bautista, que se colham as hervas, e levem a agua da fonte para casa, ou se lave a gente e os animais nela, antes do Sol nascer». (104) As fontes algarvias são pontos de encontro e de distribuição que curam males do corpo e do coração. A água viva, que brota da terra, goza de um prestígio sagrado. Moisés Espírito Santo, na Religião Popular Portuguesa, escreve: «Por toda a parte se assinala a existência de fontes sagradas, de “águas santas” vindas das “entranhas da terra” ou do “coração das rochas” e, em todos os casos, se trata de nascentes perenes. (...) as virtudes das águas raramente são definidas, o que se compreende; o seu poder não é medicinal mas simbólico. (...) As fontes sagradas destinam-se ao consumo privado, e mesmo por vezes secreto, mas, em certos momentos, o seu prestígio pode originar ritos grandiosos, como os “banhos santos” do dia de São Bartolomeu».

In truth, after the Reconquest, the christianization of toponyms takes place, invoking saints with aspects related to water, like Saint John the Baptist, or the Virgin Mary, to whom “the role of overlaying the old deities is assigned, almost always with a healing nature”. A common people’s saying is that water sleeps every night, but during the night of St. John (the Baptist) it is holy. It’s also said that at midnight or in the morning of St. John “it enjoys many virtues”. It’s a night when everything seems possible. José Leite de Vasconcelos underlines an “example of superstition that has been introduced during the day of St. John the Baptist, which implies cutting the weeds, and bringing the water from the fountain to the home, and washing the people and the animals in it before the Sun rises”. (104) The fountains of the Algarve act as points of meeting and distribution which heal diseases of the body and the heart. The lively water, which springs from the ground, enjoys a sacred prestige. In Popular Portuguese Religion, Moisés Espírito Santo writes: “The existence of sacred fountains of “holy waters”, coming

Água Doce | 217

História do Algarve através da água


Também no Tratado de História das Religiões, Mircea Eliade aborda o tema das fontes miraculosas e oraculares e a forma como muitas valências religiosas da água correspondem, ao longo dos séculos, a variadíssimos cultos e ritos ligados às fontes, aos rios e às ribeiras. Cultos que se devem ao valor sagrado da água «como elemento cosmogónico, mas também à epifania local, manifestação da presença sagrada em certo curso de água ou em certa fonte. Estas epifanias locais são independentes da estrutura religiosa sobreposta. A água corre, é “viva”, agita-se; inspira, cura, profetiza. Em si mesmos, a fonte ou o rio manifestam o poder, a vida, a perenidade; eles são e são vivos». Próximo de Loulé, a caminho de Quarteira, encontra-se a Fonte Santa onde, há séculos, o povo acorre para cuidar da pele e do reumatismo, nas noites de São João (o Baptista). Os citados cadernos de Geraldino Brites sobre Febres Infecciosas (1914), registam as propriedades científicas das águas da Fonte Santa: «Na zona da beira-mar modifica-se a composição química da água assim como a constituição do solo. É nesta zona que se encontra uma nascente que goza da fama de mineromedicinal, panaceia para todas as doenças de pele, e como tal chamada de Fonte Santa. Apenas pudemos apreciar que se tratava duma nascente de temperatura constante e débito bastante considerável, emergindo dos arenitos e argilas cretaicas». No mesmo concelho, na Freguesia de Querença, as águas férreas que brotam de Benémola dão boas provas contra as doenças de estômago e de intestinos. Já no primeiro quartel do século XX, o Guia de Portugal aponta São Marcos da Serra como «um sítio áspero e agreste da serra do Caldeirão, cheio de cabeços e ravinas, mas muito procurado como estação de repouso pela gente pouco abastada de província. As águas são inferiores mas nas proximidades há magníficas águas férreas».

218 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

from the “entrails of the earth” or from “the heart of rocks”, is reported everywhere, and all of them are eternal springs. (…) the virtues of the waters are rarely defined, which can be understood; their power is not medicinal but symbolic. (…) The sacred fountains are destined to private use, and sometimes even secret, but sometimes their prestige can originate grand rituals, like the “holy baths” on St. Bartholomew’s day”. Also in the Treaty of the History of Religion, Mircea Eliade covers the theme of miraculous and oracular fountains, and the way many religious abilities attributed to water correspond, throughout the centuries, to a wide array of cults and rites connected to the fountains, rivers and brooks. Cults which exist only because of the sacred value of water “as a cosmogonic element, but also to local epiphany, a manifestation of sacred presence on certain courses of water and fountains. These local epiphanies are independent from their overlaying religious structure. Water flows, it’s “alive”, it stirs; inspires, cures, prophesizes. by themselves, fountains or rivers manifest power, life, perennity; they exist and they’re alive”. Near Loulé, on the way to Quarteira, we can find the Fonte Santa (Holy Fountain), where, for centuries, people have come to treat skin and rheumatism, in the nights of St. John (the Baptist). The cited notebooks of Geraldino Brites about Infectious Disease (1914), register the scientific properties of the Holy Fountains’s waters: “At the area near the shore, the chemical composition of the water, as well the constitution of the ground is modified. It’s in this place that we can find a spring which enjoys considerable mineral and medicinal fame, a panacea for every kind of skin disease, and as such, named Holy Fountain. We could simply assess that it was a spring with constant temperature and considerable flow rate, emerging from the sandstone and cretaceous clay”.


Água da Fonte Santa, Serra de Odelouca. Water of the Holy Fountain, Serra de Odelouca.

In the same municipality, at the parish of Querença, the ferrous waters that spring from Benémola are very effective against diseases of the stomach and intestines. Already in the first quarter of the 20th century, the Guide of Portugal marks São Marcos da Serra as a “rough and unwelcoming place in the Caldeirão Mountain Range, full with hills and ravines, but very sought after as a resting station by the modest people of the countryside. The waters are of inferior quality, but around the area there are magnificent ferrous waters”.

Água Doce | 219

História do Algarve através da água


Canta, como sombra, uma cidade que já não existe; e os seus versos dirigem-se à mulher mais bela do mundo, de quem não ficaram outras memórias nem retratos. Mas as suas palavras talvez cheguem para que adivinhemos o paraíso: palácios onde a água corria nos pátios, e o quarto onde a amada descobria o rosto, perante o espelho, resistindo à tarde que a empurrava para a varanda, e os risos cúmplices do namoro, fingindo ignorar esse poeta que a persegue, como gazela, tentando prendê-la à página. Ali branco no branco e preto no preto, liberta da efemeridade da vida, a vou encontrar: sem nome nem idade, flor eterna no jardim sem inverno dos amantes.

Nuno Júdice sobre Ben Ammar

220 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Vista de Silves. View of Silves.

Água Doce | 221

História do Algarve através da água


Monte Chique [chic mountain]

Knowledge over the properties of some water for treating illnesses of the body and the spirit comes from, at least, the time of the Roman Empire. We reach this conclusion from the finding in Monchique of various bronze coins from the high roman empire, which are today showed at the Museum of Faro, besides other building remains. “The romans (…) under whose domination the Algarve was a part of the pacense Convent, headquartered in Beja, left it filled with remains: thermal facilities, mosaics, columns, gravestones…”, Raul Proença notes. But we don’t have more information related to the thermal station until later 15th century, when D. João II came here to seek relief from his sufferings and spent some time in Monchique. In 1495, the King promoted a series of improvements in the place for better enjoying the famed benefits of the baths. “His highness was delighted as he enjoyed the feasts of the mountains’ herdsmen, celebrated in his honor, and there he set the local fist fighters in combat against Aires Teles, who won. Before he left, the King donated an unoccupied plot of land at the Fóia mountain, which had great forests of cork trees and rhododendrons”, Garcia de Resende tells us. The bathing facilities were modest, almost conventual. Records from 1592, 1731 and 1780 report improvements undertook by the bishops of the Algarve. Bath houses, an infirmary, named as “hospital” and access roads were built. Mud baths were also available since the 18th century, together with other normal houses of baths. From 1834, the facilities exit the jurisdiction of the diocese and are incorporated among the assets of the State. New infirmaries are built for men and women, sheltering sick people for longer periods of time.

222 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water

At the small museum located in the Central Hotel of the Thermal Village, there’s a stone engraved with a posthumous acknowledgement to the king D. Pedro V: “1862 - Stone for upholding the soul of the virtuous and illustrious King, Sir D. Pedro the 5th, as by subscription and from the ground up, this infirmary and its dependencies were built, for serving the poor and the sickly, to be opened at the day of St. Elizabeth (Sancta Isabel) of each year, and immediately after each opening will the management of the hospital celebrate a mass for honoring the forever beloved king”. A postal and telegraph office is opened in 1890 and seven years later, the King D. Carlos travels to Caldas de Monchique to conduct a visit, recorded for future memory. Once more, Man intervened in nature for better using it to his advantage. “Small rivers were deviated from their course, canals feed the large reservoirs, and dams allow irrigation at will. Everything there reflects cleanliness and comfort. Flowered trees bearing fruit, red, white and pink camellias, yellowish elms, the silver foliage of olive trees, lemon trees filled with golden fruits, Agave fig trees, opuntias, flowering broad bean fields, the joyful green hue of new wheat, all of this gives this small, gracious mountain town a light scenery of Spring”. (105) Caldas de Monchique were the setting for the summer vacations of rich families of the Low Alentejo, the Algarve and the spanish neighbors of Ayamonte, Huelva and Isla Cristina, averaging 120 patients, between June 1st and September 30th. “Hypossaline (at a temperature of 32,5º C at the most thermal fountain), and also silicious and bicarbonated waters have a stream of 500 thousand liters in 24 hours and are administered in immersion baths, showers, massages, spraying and steam baths. They’re very much recommended for treating dyspepsia, rheumatism and dry skin disease.” (106) Crammed in a tight mountain ravine, these waters of the Western Algarve were surrounded by a bucolic setting which favored leisure pilgrimages and excitingly romanticized descriptions by Júlio Lourenço Pinto: “Still today, that small valley, so humble and reserved, is filled of freshness and gracious intimacy. The river still flows there in little waterfalls under the treetops of poplar and alders, with their slopes completely covered of green ferns. Further away, after a big slope, there’s the Fonte Férrea [Ferrous Foun-


Postal antigo das Caldas de Monchique, Fonte Férrea.  Old postcard from Caldas de Monchique, Fonte Férrea (Ferrous Fountain).

Monte Chique O conhecimento sobre propriedades de algumas águas para o tratamento de males do corpo e do espírito vem, pelo menos, do tempo do Império Romano. É o que se depreende do achado em Monchique de várias moedas de bronze do alto império romano, que hoje estão no Museu de Faro, para além de vestígios de construções. «Os romanos (...) sob cuja dominação o Algarve fez parte do Convento pacense, com sede em Beja, deixaram-no juncado de vestígios: termas, mosaicos, colunas, cipos...», regista Raul Proença. Mas não se dispõe de mais informação relativa à estância termal até ao final do século XV quando D. João II veio às termas procurar alívio para os seus padecimentos e passou um tempo em Monchique. Em 1495 o Rei promoveu melhoramentos na estância para poder desfrutar dos afamados benefícios dos banhos. «El rei assistiu com prazer às festas dos vaqueiros da serra, feitas em sua honra, e ali fez lutar contra os lutadores da terra a Aires Teles, que ganhou as fogaças. Antes de partir fez El Rei doação ao povo de Monchique dum baldio na serra da Fóia, que então era povoada de grandes matas de sobreiros e adelfeiras», conta Garcia de Resende. Os estabelecimentos balneares eram modestos, quase conventuais. As inscrições de 1592, 1731 e 1780 dão conta dos melhoramentos levados a cabo pelos bispos do Algarve. Ali foram construídas casas de banhos, uma enfermaria, chamada de hospital, e vias de acesso. Os banhos de lodo tiveram casa a partir do século XVIII a par de outras casas de banho ordinário. A partir de 1834, o estabelecimento sai da dependência da diocese e é incorporado nos bens nacionais. Novas enfermarias são construídas para homens e mulheres albergando doentes durante temporadas mais alargadas.

No pequeno núcleo museológico do Hotel Central da Vila Termal, lá está uma pedra gravada com um agradecimento póstumo ao Rei D. Pedro V: «1862 – Lápide sufragando a alma do virtuoso e illustrado monarcha o snr D. Pedro 5º se levantou por subscrição e desde os alicerces, esta enfermaria e seus accessorios, para uzo dos pobres enfermos será aberta no dia de Sancta Isabel de cada anno, e no immediato á abertura fará a administração do hospital celebrar missa pela alma do sempre amado Rei». Uma estação de telégrafo-postal é inaugurada em 1890 e, sete anos, depois o Rei D. Carlos desloca-se às Caldas de Monchique numa visita com registo para a memória futura. Uma vez mais, o homem interveio na natureza para melhor dela se servir. «Os ribeiros foram desviados do seu curso, os canais alimentam grandes reservatórios e as represas permitem irrigar à descrição. Tudo ali respira o asseio e o conforto. As árvores de fruto em flor, as camélias vermelhas, brancas e cor-de-rosa, os ulmeiros amarelentos, a folhagem cor de prata das oliveiras, os limoeiros carregados de frutos de ouro, as figueiras agaves, opuntia, favais em flor, o verde alegre dos trigos novos, tudo isto faz a esta graciosa vila montezinha um ligeiro décor de Primavera». (105)

As Caldas de Monchique faziam a época estival das famílias abastadas do Baixo Alentejo, do Algarve e dos espanhóis de Aiamonte, Huelva e Isla Cristina, numa média de 120 aquistas, entre 1 de Junho e 30 de Setembro. «As águas (temperatura na fonte mais termalizada 32º, 5 C), hipossalinas, e bicarbonatadas sódicas e siliciosas, têm um caudal de 500 mil litros em 24 horas e são administradas em banhos de imersão, duches, massagens, pulverizações e banhos de vapor. São sobretudo recomendadas nas dispepsias, nos reumatismos e nas doenças secas da pele». (106) Água Doce | 223

História do Algarve através da água


224 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Água Doce | 225

História do Algarve através da água


tain]. Going through a wide track, which goes along the left bank of the river, we find the watermills, a very picturesque place, with its dikes and its small brick arched bridge, its banana trees and decorative yams, its verdant terraces sprinkled with flowers and the legions of pine trees which, taking by storm the steep hills downstream, give this place a kind of melancholic poetry.” (107) Up North, by the way of the date tanks, after climbing two long stairwells, is located the Fonte dos Amores (Fountain of Love), a poetic corner with its rustic benches. The 20th century would propel the waters of Monchique even further, with improvements on the catchment and the opening of a bottling workshop, “one of the most modern of the country”, (1956). Today, the thermal complex belongs to the Oriente Foundation, which completely restored it. A small village, peaceful and welcoming, recovers the splendor of the Algarvean Sintra, with the renewal of the bathing complex, the hospital building by the springs and the hotels from the 1800’s, which, this way, found a new life. The thermal facilities are now called “SPA’s” and the hotels, “resorts”. But the water is the same. Pure, blessed, refreshing. A mine of health.

226 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Torneira, Poço Novo, Corcitos. Water tap, Poço Novo (New Well), Corcitos.

Entaladas numa apertada ravina da serra, estas águas do Algarve Ocidental estavam envoltas num ambiente bucólico que favorecia peregrinações lúdicas e os relatos empolgadamente romanceados de Júlio Lourenço Pinto: «Ainda hoje esse pequeno vale, tão humilde e recolhido, é cheio de frescura e de graciosa intimidade. A ribeira corre ali em pequeninas quedas de água sob a copa de choupos e amieiros, e com os taludes inteiramente atapetados de avencas e fetos verdes. Mais adiante, descida uma grande ladeira, a Fonte férrea. Seguindo numa ampla vereda sobranceira à margem esquerda da ribeira, encontram-se os moinhos, sítio também bastante pitoresco com as suas azenhas e a sua pequena ponte de alvenaria em arcada, as suas bananeiras e os seus grupos de inhames ornamentais, os seus socalcos verdejantes salpicados de flores e as legiões de pinheiros que tomando de assalto os alcantilados cerros de jusante, dão ao local uma poesia melancólica». (107) A Norte, pelo Caminho dos tanques, depois de se subir duas longas escadarias, surge a Fonte dos Amores, poético recanto com bancos rústicos. O século XX irá levar as águas de Monchique mais longe com melhorias na captação dá-se a inauguração de uma oficina de engarrafamento, «das mais modernas do País» (1956). Hoje o complexo termal pertence à Fundação Oriente que o remodelou integralmente. Uma pequena aldeia pacata e aprazível recupera o esplendor da Sintra algarvia com a renovação do complexo balneário, do edifício do hospital, junto às nascentes, e dos hotéis oitocentistas que descobrem uma nova vida.

Às termas chama-se SPA e aos alojamentos, resorts. Mas a água é a mesma. Puríssima, bendita, retemperadora. Uma mina de saúde.

Água Doce | 227

História do Algarve através da água


«Nas cidades do sul há violência e há excesso, de semente. Estalam os rios e foge a água. O corpo, encortiçado, racha. Lendas vêm de há séculos assoreando as margens. E quando à boca de um poço vamos provar o nosso eco, águas puras irrompem, noutra língua.

Luísa Neto Jorge

228 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Poço da Estação Arqueológica do Cerro da Vila, Vilamoura. Well at the Cerro da Vila archeological station, Vilamoura.

Água Doce | 229

História do Algarve através da água


BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAPHY

• Adérito Vaz Fernandes, «Algarve, reflexos etnográficos de uma região», Secretaria de Estado da Cultura, 1994 • Adosinda Providencia Torgal e Madalena Torgal Ferreira, «Algarve todo o mar – colectânea», Dom Quixote, 2005 • Ataíde de Oliveira, Monografia de Vila Real de Santo António, 1908, Faro • Cláudio Torres e Santiago Macias, «O legado islâmico em Portugal», Círculo de Leitores • Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no século XV, Lisboa 1903, Edições Rolim • Damião Faria e Castro – Política e moral civil, Lisboa, 1949 • Fernando Pessoa «Mensagem», Ática Poesia, Babel, 13ª edição, 2010 • Fernando Varanda, «Mértola no Alengarve, Tradição e mudança no espaço construído», Assírio e Alvim, 2002 • Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV • Geraldino Brites, «Febres infecciosas – Notas sobre o Concelho de Loulé», Imprensa da Universidade de Coimbra, 1914 • Jaime Cortesão, na História do Regime Republicano em Portugal, Lisboa, 1930 • Jorge Alarcão, «O domínio romano em Portugal», Publicações Europa América, 1994 • Jorge Dias e Fernando Galhano, «Aparelhos de elevar água de rega», Publicações D. Quixote, 1986 • José Maria Blásquez, «Religiones en la España Antígua», Ediciones Cátedra, 1991 • José Murta Pereira, «Navegando Rumo ao Sul – Réplicas de barcos do Baixo Guadiana», 2009, Museu do Rio, Guerreiros do Rio, Alcoutim • José Rasquilho Raposo, «História da Rega em Portugal», Instituto da Água, 1994 • José Leite Vasconcelos, «Tradições populares de Portugal», INCM, 1882 • Manuel Gomes Guerreiro, «O Homem na perspectiva ecológica», Fundação para o Desenvolvimento da Universidade do Algarve, 1999 • Manuel de Terán, «Geografia de España y Portugal», Tomo V, Barcelona, 1955 • Maria Alice Fernandes, Universidade do Algarve, «Dinâmica Defensiva da Costa Algarvia, do período islâmico ao século XVIII», Instituto de Cultura Ibero Atlântica – Portimão, 2011 • Maria da Graça Maia Marques, «O Algarve, da Antiguidade aos nossos dias», Edições Colibri, Abril 1999 • Maria Isabel del Val Valdiviesco, Olatz Villanueva Zubizarreta, «Musulmanes y Cristianos frente al Agua en las Ciudades Medievales», Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2008 • Miguel Reimão Costa e Vítor Ribeiro, «Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional – contributo para o estudo da arquitectura vernácula da região oriental da serra do Caldeirão», GTAA – Sotavento, 2007 • Miguel Sousa Tavares, «Rio das Flores», Oficina do Livro, 2007 • Mircea Eliade, «Tratado de História das Religiões», Edições Asa, 1992 • Moisés Espírito Santo, «A Religião Popular Portuguesa», Lisboa, Assírio e Alvim,1990 • Orlando Ribeiro, «Geografia e Civilização», Livros Horizonte, 1972 • Orlando Ribeiro e Norberto Cardigos, «Geografia da População em Portugal», Centro de Estudos Geográficos, Lisboa, 1946 • Paulo Pereira, «Espírito da Terra», Círculo de Leitores, 2005 • Pedro Prista, «Águas tiradas e águas a rojo – autonomia e cooperação nas hortas do alto barrocal algarvio», Centro de Estudos de Etnologia, INIC, 1989 • Robert Chodat, Excursions botaniques en Espagne e au Portugal, 1909

230 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


• Sónia Guerreiro Tomé, Tese de Mestrado «A Água Dá, a Água Tira: Gestão Social dos Extremos da Água (seca e torrencialidade) no Barrocal Algarvio», ISCTE, 2009 • Thomas Glick, «Islamic and Christian Spanish in the early Middle Ages», Princeton University Press, 1979 • Valdemar Coutinho, «Dinâmica Defensiva da Costa Algarvia, do período islâmico ao século XVIII», Instituto de Cultura Ibero Atlântica – Portimão, 2011

REVISTAS MAGAZINES • Maria José Cadete, «Al „Ulyà», Revista do Arquivo Municipal de Loulé, nº 11, 2006 • Teresa Gamito, Revista Monumentos nº 23, Revista, «A cisterna árabe e a sua possível ligação à mesquita maior da cidade».

CATÁLOGOS E EXPOSIÇÕES CATALOGS AND EXHIBITIONS

• José Gameiro, Alberto Piscareta, Jaime Palhinha, «Rio Arade, navegá-lo é preciso», Comissão Instaladora do Museu de Portimão, 1989 • Jorge Queirós e Marta Santos, Catálogo da Exposição «Cidade e Mundos Rurais – Tavira e as sociedades agrárias», Catálogo do Museu Municipal de Tavira, 2010 • José Gameiro, Exposição «Portimão nos alvores do século XX, 1900 – 1925», Museu de Portimão, 2011 • Exposição «Passeios Patrimónios da Terra» coordenada por Cláudia Silveira e Marta Santos, Museu Municipal de Tavira, Novembro 2009 • D. Salvador Algarra, «El agua en la agricultura de Al-Andaluz», Catálogo da Exposição, Alcabaza de Almería, 1995

CONSULTA GERAL GENERAL CONSULTATION

• Dizeres populares, Museu Regional do Algarve, Faro, 2011 • «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», Editorial Enciclopédia, 1936 • «Guia de Portugal», Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1927 • Monografia poética, Câmara Municipal de Castro Marim, 2004 • «Plano de Ordenamento Paisagístico do Algarve – Estudo Preliminar», António Viana Barreto, Albano Castello Branco e Álvaro Ponce Dentinho, Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, 1965 • «Protalgarve, um território com futuro», Plano Regional de Ordenamento do Território, CCDR Algarve, 2004 • Testemunhos do Museu do Rio, Guerreiros do Rio, Câmara Municipal de Alcoutim

Água Doce | 231

História do Algarve através da água


CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: PHOTOGRAPHIC CREDITS

• ÁGUAS DO ALGARVE – Pág. 26/27; Pág. 115; Pág. 118; Pág. 120; Pág. 124; • ALEXANDRE ALMEIDA – Capa; pág. 2/3; Pág. 6/7; Pág. 14; Pág. 21; Pág. 23; Pág. 24; Pág. 36; Pág.42; Pág. 47; Pág. 51; Pág. 58/59; Pág. 63; Pág. 66; Pág. 68/69; Pág. 70; Pág. 72; Pág. 75; Pág. 77; Pág. 85; Pág. 86; Pág. 90/91; Pág. 95; Pág. 102; Pág. 104/105; Pág. 107; Pág. 110/111; Pág. 121; Pág. 123; Pág. 126; Pág. 133; Pág. 135; Pág. 137; Pág. 144/145; Pág. 146; Pág. 148; Pág. 162; Pág. 163; Pág. 164/165; Pág. 167; Pág. 168; Pág. 176; Pág. 178; Pág. 182; Pág. 183; Pág. 187; Pág. 189; Pág. 191; Pág. 201; Pág. 202; Pág. 208/209; Pág. 219; Pág. 226; Pág. 229; Pág. 238/239; • ÁLVARO SANTIAGO PONCE DENTINHO – Pág. 30 • ANDRÉ JORDAN - Pág. 128 • ARQUIVO HISTÓRICO DO MUSEU DE PORTIMÃO – Pág. 97; Pág. 152; Pág. 155; Pág. 196/197; Pág. 224/225; • CAMARA MUNICIPAL DE LAGOS – Pág. 99; Pág. 192/193; Pág. 196/197; • CÂMARA MUNICIPAL DE LOULÉ – Pág. 89; Pág. 94; Pág. 100; Pág. 196/197; • CÂMARA MUNICIPAL DE MONCHIQUE – Pág. 18; Pág. 32; Pág. 41; Pág. 206; Pág. 215; • CÂMARA MUNICIPAL DE SILVES – Pág. 80; Pág. 94; Pág. 157; Pág. 158; • DIRECÇÃO GERAL DO TERRITÓRIO – Pág. 16/17; Pág. 83; Pág. 140/141; Pág. 173; • DIREITOS RESERVADOS (DR) – ; Pág. 39; Pág. 49; Pág. 92; Pág. 116; Pág. 131; Pág. 139; Pág. 150; Pág. 160; Pág. 170; Pág. 175; Pág. 210; Pág. 211; Pág. 213; Pág. 203; Pág. 204; • HELDER DE AZEVEDO / MUSEU REGIONAL DO ALGARVE – Capa; Pág. 9; Pág. 35; Pág. 45; Pág. 46; Pág. 101; Pág. 142; Pág. 181; Pág. 192/193; Pág. 195; Pág. 198; Pág. 199; Pág. 221; • JOSÉ ANTÓNIO CAVACO / ESTAÇÃO ARQUEOLÓGICA CERRO DA VILA – Pág. 54; Pág. 55/56;

232 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


NOTAS FOOTNOTES

(1)

Guia de Portugal, Biblioteca Nacional, 1927

(2)

Quadra popular, Museu Regional do Algarve

(3)

Orlando Ribeiro, Geografia e Civilização, Livros Horizonte, 1972

(4)

Pedro Prista, «Águas tiradas e águas a rojo – autonomia e cooperação nas hortas do alto barrocal

algarvio», Estudos em homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira, Centro de Estudos de Etnologia, INIC,

1989 (5)

António Viana Barreto, Albano Castelo Branco, Álvaro Ponce Dentinho, Estudo Preliminar do

Ordenamento Paisagístico do Algarve, Direcção Geral dos Serviços de Urbanização, 1965

(6)

Jorge Dias e Fernando Galhano, em «Aparelhos de elevar a água de rega – Contribuição para o Estudo

do Regadio em Portugal», Publicações D. Quixote, 1986

(7)

Obra citada

(8)

Kaj Biket Smith, Geschichte der Kutur, Zurique, 1946

(9)

Cláudio Torres

(10)

Idem

(11) Ibidem (12) Orlando Ribeiro, «Atitude e Explicação em Geografia Humana» (13) Idem (14) Viana Barreto, Castello Branco, Ponce Dentinho, obra citada (15) Orlando Ribeiro, obra citada (16) Plano Regional de Ordenamento do Território realizado pela CCDR, em 2004. O Protalgarve junta

os trabalhos dos investigadores do Departamento de História, Arqueologia e Património (DHAP) da

Universidade do Algarve .

(17) Cláudio Torres (18) Thomas Glick, «Islamic and Christian Spanish in the early Middle Ages», Princeton University Press, 1979 (19) Jorge Alarcão, «O domínio romano em Portugal», Publicações Europa América, 1994 (20) Cláudio Torres (21) Thomas Glick, obra citada (22) Cláudio Torres (23) Teresa Gamito, Revista Monumentos nº 23, Revista, «A cisterna árabe e a sua possível ligação à

mesquita maior da cidade»

(24) Teresa Gamito, obra citada (25) Idem (26) «Guia de Portugal», Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1927 (27) Cláudio Torres (28) Idem (29) Thomas Glick, obra citada (30) Idem (31) José Rasquilho Raposo, «História da Rega em Portugal», Instituto da Água, 1994 (32) Testemunho recolhido pelo Museu Regional do Algarve. (33) Fernando Pessoa, Mensagem, Ática Poesia, 13ª edição, 2010 (34) Guia de Portugal, obra citada (35) Idem

Água Doce | 233

História do Algarve através da água


(36) Geraldino Brites, «Febres infecciosas – Notas sobre o Concelho de Loulé», Imprensa da Universidade

de Coimbra, 1914

(37) Idem (38) Ibidem (39) Ibidem (40) José Gameiro, Exposição «Portimão nos alvores do século XX, 1900/1925», Museu de Portimão, 2011 (41) Fernando Varanda, «Mértola no Alengarve, Tradição e mudança no espaço construído», Assírio e

Alvim, 2002

(42) Guia de Portugal, obra citada (43) Viana Barreto, Castello Branco, Ponce Dentinho, obra citada (44) Idem (45) Ibidem (46) Ibidem (47) Maria José Cadete, «Al„Ulyà», Revista do Arquivo Municipal de Loulé, nº 11, 2006 (48) Idem (49) Pedro Prista, «Águas tiradas e águas a rojo – autonomia e cooperação nas hortas do alto barrocal

algarvio», Centro de Estudos de Etnologia, INIC, 1989

(50) Idem (51) Fernando Varanda, obra citada . (52) Idem (53) Cláudio Torres . (54) Quadra Popular, Museu Regional do Algarve, Faro (55) Idem (56) Artur Duarte Ribeiro (57) Idem (58) Maria José Cadete, obra citada (59) Sónia Guerreiro Tomé, Tese de mestrado «A Água Dá, a Água Tira: Gestão Social dos Extremos da

Água (seca e torrencialidade) no Barrocal Algarvio», orientada por Pedro Prista, ISCTE, 2009

(60) Orlando Ribeiro, Geografia e Civilização, Livros Horizonte, 1972 (61) Idem (62) Ibidem (63) Manuel de Terán, «Geografia de España y Portugal», Tomo V, Barcelona, 1955 (64) José Gameiro, Alberto Piscareta, Jaime Palhinha, «Rio Arade, navegá-lo é preciso», Comissão

Instaladora do Museu de Portimão, 1989

(65)

Idem

(66) Valdemar Coutinho, «Dinâmica Defensiva da Costa Algarvia, do período islâmico ao século XVIII»,

Instituto de Cultura Ibero Atlântica – Portimão, 2011

(67) Guia de Portugal, obra citada (68) José Gameiro, Exposição «Portimão nos alvores do século XX, 1900/1925», Museu de Portimão, 2011 (69)

Jaime Cortesão, na História do Regime Republicano em Portugal, Lisboa, 1930

(70) Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no século XV, Lisboa 1903, Edições Rolim (71) Idem (72) Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV – Imprensa

Nacional, 1885 – 1934, Lisboa

(73) Idem

234 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


(74) Ibidem (75) Damião Faria e Castro – Política e moral civil, Lisboa 1949 (76) Manuel Téran, obra citada (77) Valdemar Coutinho, obra citada (78) Idem (79) Ibidem (80) Orlando Ribeiro, obra citada (81) Guia de Portugal, obra citada (82) Valdemar Coutinho, obra citada (83) Idem (84) Ibidem (85) Testemunhos do Museu do Rio, Guerreiros do Rio, Câmara Municipal de Alcoutim (86) Miguel Sousa Tavares, «O Rio das Flores», Oficina do Livro, 2007 (87) Marcha do Rancho Folclore de Guerreiros do Rio (88) Ataíde de Oliveira, Monografia de Vila Real de Santo António, (1908) (89) José Murta Pereira, «Navegando Rumo ao Sul – Réplicas de barcos do Baixo Guadiana», 2009, Museu

do Rio, Guerreiros do Rio, Alcoutim

(90) Maria Alice Fernandes, Universidade do Algarve, obra citada de Valdemar Coutinho (91) Memórias da minha aldeia, Monografia poética - Câmara Municipal de Castro Marim, 2004 (92) José Murta Pereira, obra citada (93) Idem (94) Monografia poética - Câmara Municipal de Castro Marim, 2004 (95) José Murta Pereira, obra citada (96) Idem (97)

Testemunho do moleiro de Tavira, Custódio Campos, recolhido para a Exposição «Passeios

Patrimónios da Terra» coordenada por Cláudia Silveira e Marta Santos, Museu Municipal de Tavira,

Novembro 2009

(98) Idem (99) Sebastião Teixeira, antigo barqueiro de Foz de Odeleite, Castro Marim, Depoimento recolhido pelo

Museu do Rio, Alcoutim.

(100) José Murta Pereira, obra citada (101) Idem - no 2º parágrafo (102) Orlando Ribeiro, «Geografia e Civilização», Livros Horizonte, 1972 (103) Paulo Pereira, «Espírito da Terra», Círculo de Leitores, 2005 (104) José Leite Vasconcelos, «Tradições populares de Portugal», INCM, 1882 (105) Robert Chodat, Excursions botaniques en Espagne e au Portugal, 1909 (106) Guia de Portugal, obra citada (107) Idem (108) Maria José Cadete, obra citada (109) Idem (110) Ibidem (111) Geraldino Brites, «Febres infecciosas – Notas sobre o Concelho de Loulé», Imprensa da Universidade de Coimbra, 1914

Água Doce | 235

História do Algarve através da água


236 |

Fresh Water

The History of the Algarve through the Water


Agradecimentos

Água da fonte da Benémola, Querença.  Water from the Benémola fountain, Querença.

Acknowledgments

A

gradeço a Cláudio Torres, a Macário Correia e a Artur Duarte Ribeiro as boas conversas que comigo tiveram na preparação desta investigação. As linhas de pesquisa bibliográfica e, sobretudo, o olhar inspirado e conhecedor que têm sobre a relação do homem com a água no Algarve abriram-me perspectivas que procurei seguir. A generosidade e competência das pessoas que me receberam no Arquivo Municipal de Loulé, no Centro de Estudos Islâmicos, em Mértola, no Museu do Rio, em Alcoutim, no Museu Municipal de Faro e no Museu Regional do Algarve, no Centro de Documentação e Arquivo Histórico do Museu de Portimão, na Divisão do Património Histórico Arqueológico e Museus de Silves, no Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, no Museu Municipal de Tavira, Lusotur – Estação Arqueológica do Cerro da Vila, na Biblioteca Orlando Ribeiro, em Lisboa, ou na Vila Termal das Caldas de Monchique tornam-me devedora dessa atenção. Rigorosamente em todos estes lugares o atendimento foi inexcedível. Agradeço à empresa Águas do Algarve e à editora IFT Publisher a autonomia e a confiança que me deram para realizar este trabalho. No Funchal, a António Fernandes e Luís Vasconcelos o talento e a paciência com que desenharam o livro e o arrumaram nas páginas, tantas vezes, com o Atlântico entre nós. Devo ao fotógrafo, Alexandre Almeida, o excelente ângulo e a qualidade da maioria das fotografias de um livro que, se não for lido, será assim visto com gosto. Bom gosto. E agradeço, por fim, a meu Pai, Álvaro Santiago Ponce Dentinho, co-autor do primeiro Estudo de Ordenamento Paisagístico do Algarve, cujo olhar e testemunho me obrigam a uma exigência que não sei igualar. Inez Ponce Dentinho

I

thank Cláudio Torres, Macário Correia and Artur Duarte Ribeiro for the great conversations we had when I was preparing this investigation. The lines of bibliographical research and, mostly, the inspired and knowledgeable vision they have over Man’s relation with water in the Algarve, have opened up perspectives that I followed as well as I could. The generosity and competence of the people that greeted me at Loulé’s Municipal Archives, at the Center for Islamic Studies, at Mértola, at the Museu do Rio (Museum of the River), at Alcoutim, at Faro’s Municipal Museum and the Regional Museum of Algarve, at the Documentation Center and Historical Archive of the Museum of Portimão, at the Division of the Historical and Archeological Heritage and Museums of Silves, at the Center for Research and Information of Cacela’s Heritage, at Tavira’s Municipal Museum, at the Orlando Ribeiro Library, in Lisbon or in the Thermal Village of Caldas de Monchique, have made me forever in debt of their attention. In every single one of those places, their service was unmatched. I thank the company Águas do Algarve and IFT Publisher for the autonomy and belief they had in me so that this work could be accomplished. In Funchal, I thank António Fernandes and Luís Vasconcelos the talented and patient work in designing the pages of this book, so many times with the Atlantic between us. I’m in debt to the photographer Alexandre Almeida, for the excellent angle and quality of most of the pictures in this book, which, if not read, can be look upon with taste. Good taste. Finally, I thank my Father, Álvaro Santiago Ponce Dentinho, co-author of the first Study of Landscape Management done in the Algarve, whose vision and testimony oblige me to aim for a kind of excellence I’m not quite sure how to match. Inez Ponce Dentinho

Água Doce | 237

História do Algarve através da água


Fresh Water

The History of the Algarve through the Water




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.