Revista Bertheriano (Abr/Mai/Jun 2021) - Português

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Em agosto de 1964, o Papa Paulo IV brindou o povo de Deus com uma bela, oportuna e exigente reflexão sobre a presença e a missão da Igreja no mundo (Ecclesiam Suam). E afirmava, de forma lapidar:

“a Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio. Antes de convertermos o mundo, e precisamente para o convertermos, é necessário que nos acerquemos e lhe falemos”.

Mais recentemente, o Papa Francisco retomou essa questão no horizonte do desafio de construir a fraternidade entre os povos, mediante o diálogo e a amizade social (Fratelli Tutti). “A falta de diálogo supõe que ninguém está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar”, constata o Pontífice.

“A paz social é laboriosa, artesanal. O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro”, escreve o Papa em forma de provocação pedagógica.

Durante o período da quaresma, mas não só, os cristãos do Brasil foram convidados pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs a refletir e dialogar, em nossas comunidades cristãs e demais espaços eclesiais, sobre a fraternidade e o diálogo como compromissos de amor (Campanha da Fraternidade Ecumênica). No pano de fundo desse tema está o clima de intolerância frente às manifestações culturais, sociais, eclesiais e pessoais que trazem a marca da diferença ou da alternativa em relação àquilo que é considerado padrão.

“Não há nada que justifique a inimizade e a eliminação da diversidade humana. Não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero. A fé em Jesus Cristo nos compromete a derrubarmos os muros das divisões”. Estas são apenas algumas afirmações programáticas desta campanha ecumênica.

Esta edição da Revista Bertheriano assumiu o desafio de abordar a relevante questão do diálogo como tema-gerador de suas páginas. Os diversos autores – que são, antes de tudo, pessoas do “mundo da vida” – desenvolveram suas contribuições nesta perspectiva. Esperamos com isso “temperar” o diálogo e a fraternidade, diferentes pratos do nosso dia a dia familiar, comunitário, eclesial e social.

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Expediente

Essa é uma publicação da: Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família

Responsáveis Conselho Provincial

Pe. Itacir Brassiani, msf

Coordenador Provincial

Pe. Domingos de Sá Filho, msf

Vice Provincial

Ir. Irio Luiz Conti, msf

Conselheiro Provincial

Pe. Lotário José Niederle, msf Conselheiro Provincial

Contato e Pedidos

Produção:

Edição

Aline Oliveira

Revisão de texto Andriele Pereira

Editoração

Editora Acadêmica do Brasil

Capa e diagramação

Tuany Pereira

Província dos Missionários da Sagrada Família (Brasil Meridional)

Rua da Floresta, 1043 - Bairro Petrópolis

Cx. Postal 3056 - CEP: 99051-260

Passo Fundo - RS - Brasil

Fone: (54) 3313-2107

E-mail: secretaria@msagradafamilia.com.br

Site: www.misafala.org

Impressão e tiragem

Passografic / 1.800 exemplares

2 Editorial Editorial
Sumário 02 Editorial
Missão no Mundo
Missão no Brasil
03
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Igreja
Central
Espiritualidade
Missionários
Testemunhos
Colabore
Por Pe. Itacir Brassiani, msf Passo Fundo/RS

Aventuras e travessias missionárias que já duram 55 anos!

O Pe. Elmar Luiz Sauer, recém-chegado à Bolívia, partilha sua caminhada missionária.

Nestas linhas, quero partilhar algumas memórias, sentimentos e impressões que vivi há poucas semanas. São anotações feitas em três diferentes momentos: em Passo Fundo/RS, enquanto, do alto dos meus 67 anos, me preparava para partir para uma nova missão; no dia seguinte à minha chegada na Bolívia (22 de fevereiro); e após alguns dias de observação e ensaios de atuação junto ao povo boliviano (4 de março).

3 Missão no mundo
4 Missão no Mundo
Por Pe. Elmar Luiz Sauer, msf Santa Cruz de la Sierra/Bolívia

Educar aprendendo, aprender educando

Quando o assunto é formação em terras de missão, é primordial não perder a sensibilidade da escuta e do aprendizado. Mesmo que o formador tenha muitos anos de experiência na tarefa, ou esteja apenas iniciando, como é o caso dos formadores que estão atualmente no aspirantado em Nampula, sempre é preciso sentar com os formandos e escutar.

Os formandos chegam, como não poderia ser diferente, com uma carga cultural e histórica muito forte. E não temos o direito de querer alterar ou rechaçar essa riqueza que trazem consigo. O que precisamos fazer é usar esta riqueza e conjugar com os planos formativos propostos pela Congregação.

Este é um grande desafio, pois, para fazer esta conjugação é preciso conhecer muito bem a cultura local, e isso não é possível senão com o passar dos anos, estudo e muita observação. Dizia um padre dehoniano que está em Moçambique há mais de 40 anos: “estou aqui há mais de quatro décadas, mas todos os dias aprendo coisas novas sobre a cultura Macua”.

A riqueza cultural sempre vem de berço. E não somente a língua, mas também as maneiras de cozinhar, de estudar, de rezar e de se relacionar. A família possui uma influência muito grande em nossos formandos, o que não é negativo, pois percebemos que existe uma grande responsabilidade do formando com relação à respectiva família. Porém, eles sabem dosar a interferência que devem ter com a família, pois, estando longe dela, não podem resolver os problemas que eventualmente ela enfrenta.

Para os formadores, um relacionamento mais

próximo com a família é muito difícil, quase impossível. A primeira dificuldade são as distâncias; a segunda, a língua. Entretanto, aos poucos vamos superando essas dificuldades e interagindo cada vez mais com as “sagradas famílias” dos nossos formandos.

Mas, ao lado das muitas dificuldades, temos a enorme alegria de testemunhar grandes aprendizados e um bonito crescimento humano e espiritual dos formandos. Cativados, eles se tornam bons companheiros. Entre si, resolvem seus problemas com conversas e posicionamentos claros e firmes. Claro, nem todos. As refeições são muito animadas, momentos em que percebemos a sinceridade de cada um, momentos de risos e de fraternidade. Eles demonstram o anseio de aprender coisas novas, e a curiosidade faz parte do cotidiano. E isso não só sobre a realidade do Brasil ou do mundo, mas também da vida pessoal de cada um.

Como a formação é substancialmente convivência, formar em terras de missão é um belo e exigente processo de vivência e de convivência. Aprender é, antes de tudo, escutar! É muito mais ficar sentado, aprendendo, do que de pé, ensinando. A formação aqui em Moçambique nos ensina a sermos pessoas e religiosos melhores. É preciso formar aprendendo e aprender formando.

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Por Fr. Ricardo Klock, msf Nampula/Moçambique
Missão no Brasil
Com uma caminhada de pouco mais de três anos como formador dos aspirantes nativos, Fr. Ricardo compartilha suas descobertas e convicções sobre a formação em terras moçambicanas.
Crédito foto: Banco de imagens freepick

Traíram o Evangelho!

Mesmo que possa conter algumas afirmações questionáveis, vale a pena ler esta publicação de um jornalista brasileiro, comprometido com a criação de uma cultura da justiça e da paz.

Não são poucas as igrejas evangélicas e os evangélicos que têm demonstrado apoio irrestrito ou silêncio conivente com o governo bolsonarista. Como o campo evangélico é extremamente diverso, é comum a alegação de que evangélicos possuem posicionamentos diferentes e podem sustentar suas posições na Bíblia, porque isso seria uma questão de interpretação. Mas não se trata de interpretação. A vida de Jesus está lá, nos quatro Evangelhos, para servir de referência.

A posição desses pastores (seus impérios, sua conivência com a política bem-sucedida de indiferença com os cuidados da população) é uma traição inquestionável àquilo que é a vida de Jesus. Chega a ser doentio que esses pastores busquem conquistar o país com uma megaigreja em cada parte do território nacional, enquanto Jesus não teve qualquer apego aos templos por onde passou. Suas pregações mais conhecidas aconteceram em meio ao povo, na rua, nos montes, às margens de rios, e nunca no templo, de onde ele tinha que fugir da elite religiosa, ameaçado de morte.

Homens como Silas Malafaia, Edir Macedo, Valdemiro Santiago e R.R. Soares não possuem qualquer compromisso com uma forma de ser evangélico. São interesseiros milionários. É inexplicável que líderes milionários se digam imitadores de alguém que mal tinha uma casa e fomentou que os ricos distribuíssem a riqueza que tinham.

O império desses homens também criou uma geração de pastores "playboys" que ostentam preconceito, racismo religioso e homofobia. O pastor Lucinho Barreto é um homem que age como menino, brincando de "cheirar a Bíblia", incitando racismo religioso, gabandose de atacar terreiros e dizendo que, contra bandido, o policial deve descarregar a arma e jogar o revólver na cara

no final. E o pastor André Valadão, o menino rico que ostenta a boa vida em Orlando, acha estar defendendo a Bíblia ao dizer que "igreja não é lugar para gays".

Igreja Batista Lagoinha, Vitória em Cristo, Universal, Renascer, Sara Nossa Terra, Catedral do Avivamento, Igreja Batista Atitude, entre outras, não possuem absolutamente nada do que foi a vida de Jesus. Consequentemente, elas ferem e traem quem deposita nelas a credibilidade de conhecimento e compromisso com o Evangelho.

A precariedade e perversidade políticas do governo Jair Bolsonaro também têm a chancela dos que fingem racionalidade e imparcialidade, mas contribuem para blindar um governo que tem na violência sua principal linguagem, que prioriza mais as armas do que as vacinas e que continua atacando minorias sociais e a democracia. Como o governo odeia tudo que tem aparência de "esquerda", "comunista" ou "progressista", esses homens (sempre homens) da igreja usam o silêncio para chancelar tudo que o bolsonarismo tem raivosamente implementado.

Um país com um governo que patina no cuidado da saúde numa das maiores crises sanitárias de nossa história, com a economia secundarizada para os mais pobres, implorando por um auxílio emergencial para não tocar a fome, e o campo evangélico conservador e fundamentalista dividido entre os que olham ensimesmados para o céu e os que olham para suas contas bancárias e para os privilégios da sua igreja. Aqui não há nem sinal de inspiração em Jesus.

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Missão no Brasil
Ronilso Pacheco (Colunista do UOL) Crédito foto: Banco de imagens freepick

Os desafios da formação para a vida religiosa

Vivemos em uma sociedade barulhenta, ruidosa e assustada, que oferece as distrações e ilusões do ter e do curtir. Mas, desde março de 2020, fomos obrigados a mudar substancialmente nosso estilo de vida por causa dos limites que o Covid-19 provocou na comunidade mundial.

E então, entrou na nossa história o paradigma do medo, do isolamento social, da obrigatoriedade do uso da máscara e do estudo on-line. E sentimos a urgência de parar e escutar a voz de Deus, que nunca se cansa de comunicar-se com a humanidade (cf. 1 Sm 3, 1-10.1920). A Igreja sentiu-se interpelada a abaixar-se ao nível da terra e colocar os ouvidos no chão, (cf. Is 43,19), sem medo do que iria escutar.

Um exercício de paternidade

Qual seria a postura mais adequada do formador? Encontramos no modelo do bom pai de família, a exemplo de São José, uma possibilidade para conduzir o processo de formação, vendo o progresso e o crescimento integral do filho, ou seja, do formando. Educar a pessoa humana para a vida afetiva, espiritual, intelectual, pastoral e comunitária seria o motor motivacional para formar integralmente o vocacionado.

O protagonismo do formador viria da sua capacidade nata de paternidade. Se nos sentimos estéreis e não assumimos o potencial paterno que há em nós, enfrentaremos grandes dificuldades na assimilação do nosso serviço como formador.

Um dos grandes problemas na formação seria o formador assumir uma postura de chefe, de autoridade funcional, de cumpridor de obrigações. Fechar-se na funcionalidade e não se abrir à paternidade espiritual pode provocar uma crise na identidade do formador. Estaríamos assim, eliminando o potencial que a comunidade deve ter de família, espaço diferenciado de personalidades, oficina de trabalho e aptidões no reconhecimento dos talentos.

Conceitos e significados questionados

Constatamos hoje um conflito nos conceitos e uma grande dificuldade de captar o sentido e o significado da missão de formar. Despertar nos vocacionados o desejo de vivência da consagração e do serviço a Jesus Cristo com alegria, por meio dos nossos carismas, torna-se uma aventura perigosa, que poucos querem assumir ou se responsabilizar.

O desafio de desconstruir o conceito de formar (“colocar na forma” ou “cunhar”, como um artista que modela a madeira dando configuração à escultura) seria o marco da passagem para uma atmosfera propícia na arte de educar em nossas casas de formação.

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Formadores dos Jovens Missionários da Sagrada Família em Belo Horizonte, os padres Sóstenes e Moisés nos oferecem algumas reflexões e questionamentos que emergem da entrega generosa a esta desafiadora missão.
Igreja Crédito foto: Banco de imagens freepick Crédito foto: Banco de imagens freepick

Então o desafio é transformar a casa de formação em uma Comunidade-Lar, onde estudo e vida se misturam, provocando-nos a perceber que somos sempre aprendizes na arte de conviver. “Lar” vem da palavra latina “lare”, que pode ser traduzida como recinto de acolhimento, de aconchego, onde se aprende a ser responsável e estar em estado constante de crescimento em vista da maturidade. Nesse horizonte, já não seria o formador uma autoridade baseada no poder da nomeação para o “cargo”, mas na responsabilidade de orientar aqueles que lhes são confiados, conduzindo-os com intuição paterna para um equilíbrio no paradigma de ser pessoa humana integral.

É importante para o formador desenvolver uma atitude de escuta. Em latim, o verbo “udire” significa ouvir, ou seja, portar-se como quem escuta Deus e é capaz de ser sinal Dele em um mundo confuso e cheio de incertezas provocadas pelo niilismo e pela pandemia. Quem escuta o próximo é capaz de entendê-lo, animá-lo, admoestá-lo e amá-lo mais, numa proposição dialogante. Não é fácil desconectar-se e escutar o outro, requer de nós um exercício de interioridade e uma transcendência versus o interlocutor.

Assimilar a postura de formador como servidor da comunidade é outro desafio que devemos enfrentar. Hoje, facilmente o fundamentalismo pode entrar em nossas casas de formação, disfarçado de um cuidado com as coisas de Deus ou de um saudosismo do passado que alguns nem viveram.

Assumir a postura de servo e servidor

A palavra "serviço" possui muitas conotações, e pode ser aplicada a diversas circunstâncias. Tratando-se da vida consagrada e do chamado a uma atividade qualificada, podemos entender o serviço como sair de si para dar-se aos outros. Como na derivação do original grego, a qual diakonia significa estar à disposição para ajudar a outros. Stefano de Fiores afirma que serviço indica aspecto fundamental à figura de Cristo, que Isaías já havia anunciado como o servo de Iahweh (cf. Dicionário de Espiritualidade).

Nessa perspectiva, o formador será o servidor da comunidade, que, apoiado pela Congregação, entra na dinâmica de abaixar-se para elevar os outros e a comunidade. Consciente de suas fraquezas e limitações, dará espaço para que Deus manifeste a Sua fortaleza e o capacite para essa missão.

O risco de transformar o lar em arena

Hoje, com todos os efeitos da pandemia, temos que ter sensibilidade de perceber que nossas comunidades necessitam se tornar canteiros de boas amizades, de sadia convivência, de estudo teológico e reflexão pastoral. Não ‘circus maximus’, a qual as pessoas vivem se digladiando ou confabulando exercícios estratégicos, que destroem a alteridade e a beleza das diferenças.

O formador prudente procede como um pai silencioso que procura educar na alteridade e acolher o formando, dando-lhe a possibilidade de entender que vocação é resposta a um chamado amoroso e irrepetível que Deus faz a cada um de nós (cf. Jo 15, 9-17).

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Pe. Moisés Furmann, msf Pe. Sóstenes Tavares Luna, msf Belo Horizonte/MG Belo Horizonte/MG Igreja Criar um ambiente de lar Crédito foto: Banco de imagens freepick Crédito foto: Banco de imagens freepick

Dialogar é preciso!

Partindo da imagem da casa, esta meditação nos convida a refletir sobre o dinamismo e a força humanizadora do diálogo.

Compararemos o diálogo com uma construção. Iniciemos preparando o terreno. Façamos a terraplenagem, ou seja, ajeitemos o espaço e nivelemos o mesmo, removendo as arestas da comunicação. A seguir, coloquemos seus fundamentos. Depois, façamos o estaqueamento, ou seja, cuidemos dos pilares que deverão sustentar o diálogo. Como pilastras, temos o respeito, a compreensão, a ternura, a acolhida e, sobretudo, a escuta com o coração. Feito isso, levantemos as paredes da nossa construção dialogal.

Como proteger o diálogo? Como fortalecê-lo nas tempestades do dia a dia? Levantando as paredes com o auto e o heteroconhecimento. Superando os medos e preconceitos referentes a si próprio e ao outro. Superando a nossa fraca imagem, ou seja, acentuar demais as limitações, defeitos e carências e abandonando as atitudes e superioridades.

Como é o teto dessa construção dialogal? Com certeza a capacidade para sentar, escutar e acolher o outro em suas partilhas é uma excelente ideia. Qual é o telhado dessa construção? Comecemos com o significado e a importância de um verdadeiro relacionamento. Por vezes, pensamos que um mero estar próximo do outro já é um diálogo. Enganamo-nos pensando que, quando dois se comunicam, seja por palavras faladas ou escritas, eles já estejam dialogando. Uma residência normal precisa de móveis, como mesa, cadeiras, cama, armário e tantos outros. Como é a cadeira dialogal? O que serve para criar um clima para esse tão salutar exercício? Pensamos numa atitude de acolhimento para que, à mesa do diálogo, possam ser compartilhados os sentimentos, os pensamentos, as realizações e tantas outras coisas boas que a vida nos apresenta.

Vamos para os quartos. Esses podem ser as áreas nas quais nos relacionamos. Qual é o conteúdo normal das nossas conversas? Falamos de tudo e de todos, menos de nós próprios.

O dormitório é importante. O quarto do casal testemunha o seu carinho, a ternura, a proximidade,

a cumplicidade e tantas outras manifestações de afeto nele compartilhados. A cama é significativa, não somente para um casal, mas também para um solteiro. O casal, nela, revela o resultado de sua relação numa entrega total, vivenciando a sua sexualidade até se tornarem uma só carne. O celibatário pode fazer da cama um móvel onde revê e planifica o seu dia a dia. Como pintaremos o diálogo? Os sentimentos compartilhados, acolhidos mediante uma escuta com o coração, farão com que a vida seja mais colorida e vistosa. Escutar com o coração enche de luz quem escuta, porém, particularmente, o escutado e o acolhido. Quem olha essa construção dialogal e contempla a vida dos seus ocupantes, percebe um relacionamento que desperta ou aprofunda seu amor.

Falando em amor, de nada resolveria esta bela construção dialogal sem sua presença e dinamismo. O amor deve ser como o sol que irradia luz, calor, cumplicidade, compreensão e todas as outras virtudes que favorecem a construção de uma vida humana e cristã. O diálogo é uma arte que só se aprende exercitando!

Quem acompanhou a Campanha da Fraternidade percebeu algo semelhante à isso?

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Pe. Jacob Inácio Kehl, msf Passo Fundo/RS Crédito foto: Banco de imagens freepick

Muitas vezes, confunde-se diálogo, com uma troca febril de opiniões nas redes sociais, constantemente pilotada por uma informação mediática nem sempre confiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo.

A difusão altissonante de fatos e reivindicações nas redes sociais frequentemente obstrui as possibilidades do diálogo, pois permite a cada um manter intactas e sem variantes as próprias ideias, interesses e opções, desculpando-se com os erros alheios. E, muitas vezes, o debate é manipulado por determinados interesses que procuram desonestamente inclinar a opinião pública a seu favor.

A falta de diálogo supõe que ninguém está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar. Assim, a conversação se reduz a meras negociações para que cada um possa agarrar as maiores vantagens possíveis, sem uma busca conjunta que gere o bem comum.

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O Pontífice nos brinda na surpreendente e corajosa encíclica “Somos todos(as) irmãos(as)”

Pressupostos e frutos

O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo. Num verdadeiro espírito de diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz. Neste mundo globalizado, os meios de comunicação social podem ajudar a nos sentirmos mais próximos uns dos outros; a nos fazermos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele a solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Mas é necessário verificar se as formas atuais de comunicação nos orientam efetivamente para

A arte de tecer a paz social

A paz social é laboriosa, artesanal. Seria mais fácil conter as liberdades e as diferenças com um pouco de astúcia e algumas compensações. Mas esta paz seria superficial e frágil, não o fruto duma cultura do encontro que a sustente. Integrar as realidades diferentes é muito mais difícil e lento, embora seja a garantia duma paz real e sólida. Isto não se consegue agrupando só os puros, porque até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder. O que conta é gerar processos de encontro, processos

o encontro generoso, a busca sincera da verdade íntegra, o serviço, a aproximação dos últimos e o compromisso de construir o bem comum.

Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecêlos, confere solidez e estabilidade a uma ética social. Mesmo quando os reconhecemos e assumimos por meio do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares estão para além de qualquer consenso, os reconhecemos como valores transcendentes aos nossos contextos e nunca negociáveis.

que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro! Isto implica o hábito de reconhecer, ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente. A partir deste reconhecimento feito cultura, torna-se possível a criação dum pacto social. Sem este reconhecimento, surgem maneiras sutis de fazer com que o outro perca todo o seu significado, se torne irrelevante, fazer com que na sociedade não lhe seja reconhecido qualquer valor.

A desejável e possível amabilidade

Ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade. Há pessoas que conseguem, tornando-se estrelas no meio da escuridão. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo, quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros, que se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, tentativa de aliviar o peso dos outros. Supõe dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, ao invés de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam.

A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que

não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser feliz. O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante, nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes.

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Papa Francisco (Fratelli tutti, §§ 200-224)

A missão como diálogo profético

No decorrer da história, conhecemos várias compreensões de missão e, várias delas, convivem atualmente, não sem tensões. Mas há um modelo, ou perspectiva, que corresponde melhor à atual compreensão do mundo, aos desafios sociais e culturais, e à sensibilidade religiosa do nosso tempo: a missão como diálogo profético.

A compreensão da missão, no fim do século XX, foi marcada por três perspectivas: a missão como participação na missão de Deus Trindade; a missão como serviço libertador do Reino de Deus e a missão como anúncio de Jesus Cristo, Salvador Universal. Essas três perspectivas lançaram as bases para uma nova e atual compreensão da missão: a missão como diálogo profético.

Nessa nova perspectiva, dentro de um mundo plural e interdependente, a Igreja é chamada a ser uma comunidade que não apenas oferece algo de si mesma em serviço ao mundo e aos povos e suas culturas, mas que também aprende, expandindo a própria compreensão de Deus; uma Igreja radicada em Deus que salva por meio do esvaziamento de si mesma, e que não pode comportar-se superiora às populações no meio das quais opera.

Ponto de partida: um Deus humilde e audaz

A humildade de Deus e da Igreja na missão deve ser também uma humildade audaciosa. A missão cristã é, então, participação à vida e à missão dialógica da Trindade, mas tal diálogo é profético, ou seja: acolhe a realidade e a cultura, assume a inculturação por meio de uma interação criativa e, ao mesmo tempo em que provoca mudanças, anuncia, confronta e propõe a partir do Evangelho.

Se no passado a missão foi concebida numa perspectiva monofônica, como obra da salvação das almas, como “implantação da Igreja”, ou mesmo como anúncio de Jesus Cristo, hoje, ela precisa ser concebida de forma decisivamente estereofônica, que implica vários elementos que fazem parte integrante da missão evangelizadora da Igreja.

Testemunho e anúncio

O primeiro elemento implicado na missão é o testemunho e o anúncio. O primeiro meio da evangelização é o testemunho, escreveu Papa Paulo VI. Testemunho e anúncio são inseparáveis. O anúncio é sempre um convite e uma resposta a uma demanda.

A missão de Jesus foi caracterizada tanto pela palavra, quanto pelas ações, e essas se explicavam por si mesmas. As suas parábolas e ensinamentos eram pronunciamentos proféticos que muitas vezes contradiziam a tendência do saber e da práxis predominantes. As suas curas e seus exorcismos eram parábolas em ação, e a sua práxis de incluir entre os discípulos e acolher em sua mesa aqueles que estavam às margens da sociedade foi um testemunho potente da validade de seu ensinamento.

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Crédito foto: Banco de imagens freepick

A liturgia e a oração

A liturgia, a oração e a contemplação são o segundo elemento implicado na compreensão e no desenvolvimento da missão como diálogo profético. Liturgia e missão devem estar em constante diálogo com a assembleia cristã. Um ato de oração ou de culto pode ser autenticamente missionário.

Na liturgia e na oração, descobrimos que somos Povo de Deus, e que participamos no mistério de Deus. Trata-se de uma experiência divina que se revela como dialogal, missionária e itinerante. Um Deus que se apresenta como amor ativo e salvífico na sua misteriosa presença em meio a criação, por meio do Espírito Santo e do ministério redentor de Jesus de Nazaré.

A liturgia e a oração são expressões criativas da vida, contemplam as diferentes tradições culturais e religiosas, assim como os ritos e manifestações originais e populares, e trazem presentes os desafios sociais e econômicos dos povos, em diálogo com a diversidade das interpretações e compreensões do mundo atual.

Inculturação e interculturalidade

Para guiar os cristãos com entusiasmo, mas na difícil tarefa de tornar possível um autêntico encontro entre a fé e os contextos locais, é necessária uma espiritualidade da enculturação, deixar pra trás o senso de superioridade, o poder, a ilusão de compreender uma cultura facilmente. Somente com anos de escuta, aprendizado e diálogo no processo de evangelização, se poderá chegar à uma postura e uma ação inculturada e dialogal. A inculturação é um exercício exigente do diálogo profético.

Justiça, paz e defesa da criação

Agir pela justiça é parte da missão da Igreja hoje, e a nossa participação na transformação do mundo é fundamental. A história nos oferece inúmeros testemunhos de homens e mulheres radicalmente envolvidos na proteção e na defesa da criação. E, a partir da encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, sabemos que defender a ecologia integral é elemento intrínseco da missão.

Diálogo inter-religioso

O diálogo é a norma e o estilo necessário de toda a missão cristã e de cada parte dela. A promoção do diálogo ecumênico e inter-religioso está destinada a ser um dos maiores serviços missionários ofertados pela Igreja. Esse diálogo tem sua centralidade em Jesus Cristo, e se dá na abertura à realidade das outras confissões e religiões, ao seu reconhecimento público e respeitoso e à cooperação com elas nas grandes causas da humanidade.

Reconciliação

O serviço da reconciliação da Igreja é indubitavelmente um ministério do diálogo profético. A reconciliação é um movimento contracultural, um apelo a imaginar um mundo não apenas reparado, mas uma nova criação. Esta reconciliação da humanidade dividida é mediada por cristãos solidários com as vítimas do mundo. O anúncio da reconciliação é o anúncio da centralidade de Jesus Cristo, e é profundamente eclesial enquanto é uma ação relacional “face a face” dentro da comunidade cristã, a qual há espaço para a verdade, a confiança e a reciprocidade.

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Por Pe. Júlio César Werlang, msf Roma/Itália Crédito foto: Banco de imagens freepick

Dialogar, convivendo em família

Sirva de convite à leitura as linhas que o autor escreveu ao enviar seu texto: “Havia apenas acabado de escrever a palavra final, 'conflitos', no meu rascunho, quando ouvi o infausto atentado em Saudades. Perdi a tramontana, e, por falta de condições racionais e psicológicas, desisti de escrever uma segunda página para o meu texto. Parece que o 'príncipe deste mundo' do evangelho de ontem começou a reinar. Asseclas não lhe faltam país afora. Se julgarem a página que envio suficientemente 'substanciosa', publiquem-na.”

Breve informe gramatical: optei por intitular o texto na forma verbal, e não nominal, do tema, para dar mais expressividade ao dinamismo e ação da concretização do diálogo no contexto familiar, e mediado pela forma do gerúndio do verbo conviver, à guisa de adjunto adverbial. Nesta, talvez, insólita introdução, estão insinuados já os elementos essenciais das exigências da ars dialogandi numa genuína convivência familiar. Pretendo explicitá-las à luz da antropologia e em curtas exemplificações da prática do diálogo da família de Nazaré.

Quais são os elementos estruturantes e essenciais que um diálogo concreto pressupõe e exige numa ambiência de convívio familiar? A antropologia nos ensina que dialogar é relacionar falas (ou outras dicções comunicacionais). A categoria da relação (o tò pròs tí aristotélico) é a pedra angular sobre a qual se estrutura como causa formal o diálogo humano, em geral, e, especificamente, também na família. Há muitas formas hermenêuticas de explicitação dessa vivência relacional. Martin Buber, considerado o “filósofo da relação”, aposta na palavra-princípio “EuTu” (ou “Eu-Outro”) da relação dialógica, em oposição à relação monológica do “Eu-Isso”. A filosofia da alteridade de Levinas reforça essa concepção. Otto Bollnow, existencialista alemão, enfatiza, por sua vez, a palavra-princípio “encontro”, inseparável da gratuidade e integralidade do diálogo em família.

A Pedagogia da Libertação, de Paulo Freire, com seu intento de conscientização entre educador e educando, é plenamente passível de aplicação ao Sitz im Leben da formação continuada também em família. Ser de relação no mundo com os outros, encontro instaurador de gratuidade e encanto em família e um processo de conscientização na faina dialogal do dia a dia familiar, eis algumas exigências da missão de “dialogar, convivendo em família”.

Armadilhas marcam presença nessa ótica da prática do diálogo convivial em família, sobretudo, na lábil mudança do esquema dialogal “Eu falo - Tu falas”, para o esquema “Eu falo – Tu ouves”, doutrinando, arbitrando ou, pior, oprimindo um polo da relação. Caberia analisar outras dimensões da ars dialogandi, em circunstâncias familiares, além da gratuidade e integralidade acima referidas.

Uma breve incursão na seara da Teologia Bíblica me fornece dois versículos, cuja exemplaridade para a prática do diálogo em família é digna de menção. Cito: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos (...)". "Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,48s).

Eis um exemplo de diálogo transparente e sincero, indicativo da insondável relação de filho de pai carpinteiro e de Pai celestial. Outro texto: “Eles não têm mais vinho (...)", "Que há entre mim e ti, mulher?", "Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,3-5). Por mais insólito que seja este diálogo entre mãe e filho, ele nos ensina que a convivência familiar não é sempre isenta de conflitos.

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Espiritualidade
Por Crédito foto: Banco de imagens freepick

Respirar!

A pandemia que estamos vivendo desde 2019, e não tem fim previsível, vem fazendo milhares de vítimas por todo o mundo. São dias difíceis em que nos sentimos caminhando “por um vale tenebroso” (Sl 23,4), nas sombras da morte. Para não sermos atingidos de forma mais violenta pelo vírus pandêmico, precisamos usar máscaras, manter distanciamento social e lavar as mãos. Nossa respiração tornou-se agente de transmissão do vírus. Por isso, nessa meditação quero partilhar algo que nos vem da Bíblia sobre nossa constituição como corpo que respira.

Quando Deus criou Adão do barro da terra, soprou sobre aquele barro. Seu sopro de vida e barro tornaram-se ser vivente (cf. Gn 2,7). Assim Adão foi feito do solo fértil moldado por Deus e do sopro do próprio Deus. O Salmo 104,30 diz: “envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra”. Jesus ressuscitado se manifesta aos seus discípulos amedrontados por sua morte violenta e sopra sobre eles dizendo: “recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). Jesus Ressuscitado renova a vida dos seus discípulos pelo sopro da vida. No areópago de Atenas, Paulo apropria-se de uma citação dos escritores gregos: “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28).

Espírito Santo, sopro divino, respiração, solo fértil. Deus e o Humano numa interação inconfundível. O que quero chamar a atenção é para o fato de existirmos por Deus, com Deus e em Deus. Sem Ele, somos só pó da terra. Quem nos faz existir é aquele que nos dá o hálito da vida. O terrível vírus da pandemia que tanto ameaça deve lembrar-nos de que sem o sopro de Deus, não podemos ser: nele vivemos, nos movemos e existimos.

Precisamos recordar que somos seres materiais e espirituais. Estamos completamente ligados ao céu e à terra. Não temos uma espiritualidade, somos espiritualidade. Quando o poeta pergunta, na sua canção, “existirmos, a que será que se destina?”, uma das possíveis respostas pode ser para respirar, sentir o hálito da vida. Entrar na dinâmica da convivência humano/

divina conosco mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus. Mesmo diante de tanta morte, não fiquemos desesperados, existe uma saída. Existe respiração!

Johann Sebastian Bach tem uma peça musical intitulada air, cuja tradução é “ar”. Encontrar a tradução de air no google não é difícil. Difícil mesmo é traduzir o sentimento que nos traz a composição. Uma das possibilidades é perceber o ar que nos rodeia, que nos envolve completamente de dentro para fora e de fora para dentro de nosso ser. Deus nos envolvendo sem nos invadir, esperando nosso aceno, nosso dar-se conta de sua presença, como aconteceu com o filho pródigo, que apenas avistado foi abraçado por aquele que esteve sempre à espera de sua volta: “ele estava ainda longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos” (Lc 15,20).

Queira Deus, nossa espiritualidade cristã, judaica, islâmica ou outra, nos ajude a respirar o ar de Deus. Lembrando que ele dá seu ar, seu sopro a todos(as). Todos(as) estamos incluídos no seu sopro de vida, num diálogo interminável entre humano e divino. A palavra orante do salmista nos ajude a acolher Deus em tudo e em todos, especialmente no humano: “Para onde ir, longe do teu sopro? Para onde fugir longe de tua presença? Se subo aos céus tu lá estás; se me deito no Xeol, aí te encontro" (Sl 139, 7-8).

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Crédito foto: Banco de imagens freepick Crédito foto: Banco de imagens freepick
Espiritualidade
Por Pe. Francisco Ary Carnaúba, msf Porto Alegre/RS
Num tempo em que a respiração tornou-se ameaça dos outros, o Pe. Francisco nos convida a buscar e acolher a respiração de Deus.

“Saudades” hoje rima com “prantos"

No último dia 4 de maio, na pequena cidade de Saudades, localizada no Oeste de Santa Catarina, cinco vítimas perderam suas vidas brutalmente no atentado à Creche Pró-Infantil Aquarela. Como não poderia deixar de ser, esse fato triste chocou toda a população. A comunidade está sem palavras, e um silêncio dolorido e inconformado paira sobre todos. Brotam sentimentos de angústia e de justiça. Mas, ao mesmo tempo, surgem questionamentos sobre o porquê de tudo isso.

Neste momento de sofrimento das famílias e da comunidade em geral, não há palavras que possam preencher o vazio e responder a dor da perda dessas pequenas e inocentes crianças e das duas professoras. E não há palavras que possam expressar a dor, sofrimento e desolação que os pais das vítimas estão sentindo. Como membros da comunidade eclesial, sofremos juntos com essas famílias, e nos sentimos tremendamente desafiados a entender e crer na Ressurreição. Jesus disse: “Eu sou a Ressureição e a Vida. Quem acredita em mim, mesmo que morra, viverá” (Jo11,25).

Compreender os propósitos de Deus, perscrutar o sentido e as lições dos acontecimentos, muitas vezes pode se tornar uma tarefa difícil, principalmente quando a dor e a tristeza batem inesperadamente na nossa porta, como no caso desse atentado à creche. As lágrimas brotam constantemente dos nossos olhos e a saudade só aumenta. Tentamos aliviar nossos corações apresentando a Deus nossas perguntas e protestos em forma de preces. Fica a breve memória destas tenras vidas, o vazio indescritível e as doces lembranças, que, no momento, tem um sabor tremendamente amargo. Queremos, e esperamos, que a dor da perda seja diminuída na medida que a chama da esperança a cada dia for alimentada e revigorada. Por isso, enquanto comunidade católica da Paróquia Sagrada Família, unimo-nos a todas as famílias, dando o conforto e auxílio espiritual necessário para a superação do sofrimento pela perda de seus entes queridos.

Um dia após o atentado, juntamente com as famílias e comunidade, na presença do Bispo Diocesano Dom Odelir José Magri, de Chapecó, presidiu a celebração de exéquias, juntamente com o pároco, Pe. Armando,

e demais padres das paróquias vizinhas e do pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). Sucessivamente, durante três noites, na Igreja matriz, realizamos o Tríduo da Esperança. Toda a comunidade está empenhada, dando o suporte e conforto necessário a todas as famílias das vítimas.

Que a bravura e heroísmo da professora Keli Adriane Aniecevski (de 29 anos) e de Mirla Renner (de 20 anos) se transforme em estímulo, ânimo e coragem para seguir a luta das demais professoras e profissionais da educação, apostando que, por meio do ensino já desde tenra idade, construamos um outro mundo, no qual haja mais amor e empatia, e que não estimule, gere e embale pessoas transtornadas que, numa ação tresloucada, provoquem tamanha maldade. E que extirpemos, sem “se” nem “mas”, a ideia louca de que dando vazão à nossa raiva e irracionalidade, agredindo e eliminando o agressor, estaremos enxugando as lágrimas das pessoas enlutadas e purificando a sociedade de todos os males.

Saudades chora! Saudades se vestiu de feridas! A “aquarela” da vida foi reduzida à cor cinza. Oxalá o vazio deixado pelas crianças Sarah Luiza Mahle Sehn (de 1 ano e 7 meses), Murilo Massing (de 1 ano e 9 meses) e Anna Bella Fernandes de Barros (de 1 ano e 8 meses), se transformem em esperança e coragem para seus pais.

Keli, Mirla, Murilo, Anna Bela e Sarah Luiza, Saudades chora de saudades de vocês. Honraremos suas vidas cuidando da vida, educando para a vida, lutando pela vida, de todos(as)!

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16 Espiritualidade
Crédito foto: Banco de imagens freepick
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Pe. Ezequiel Ramin (1953-1985)

Ezequiel nasceu em Padova, Itália, em 1953. Ainda jovem, decidiu dedicar sua vida aos mais pobres e necessitados como missionário além fronteiras. Foi ordenado sacerdote em 1980 e, aos 30 anos, foi enviado em missão ao Brasil. Antes de partir para o Brasil, disse: “ainda não sei aonde irei, porém estou contente com o fato de partir. É uma coisa mais forte do que eu”. Foi destinado a trabalhar em Cacoal, Rondônia.

Em Cacoal, encontrou uma Igreja que caminhava junto ao povo, comprometida com os pobres e atenta às questões sociais. Havia comunidades consolidadas e lideranças que estavam sendo formadas e, por isso, eram capazes de exercer um protagonismo na vida eclesial e social destas pequenas comunidades. Cheio de entusiasmo, entrou com facilidade na realidade do povo.

Encontrou-se num contexto de gritantes desigualdades pela falta de reforma agrária e de uso da violência pelos poderosos, que grilavam terras para ampliar seus latifúndios e expulsavam ou matavam os indígenas para ficar com as suas terras. Não demorou muito para se deparar com os conflitos. Os poderosos (grileiros) usavam os pobres (pistoleiros) para matar outros pobres. Essa realidade incomodava Ezequiel profundamente. Não se continha diante das desigualdades sociais, da concentração dos bens da criação nas mãos de poucos, das injustiças, da violência ou da manipulação das leis para oprimir os pequenos.

Diante disso, Ezequiel colocou-se corajosamente em defesa dos indígenas, que tinham um grande apreço por sua pessoa, e dos posseiros, na luta pelo direito à terra e à vida digna, vivendo de modo muito concreto a opção pelos pobres. Esta postura lhe trouxe a estima dos pobres, mas o rechaço daqueles que achavam que o padre não pode se comprometer nas questões sóciopolíticas e ambientais, e deve restringir seu ministério aos sacramentos.

Logo, chegaram as ameaças e as perseguições, porém Ezequiel manteve-se fiel até o fim. Ele mesmo falou em uma das missas: "não aprovamos a violência, embora recebamos violência. O padre que está falando, recebeu ameaças de morte. Querido irmão, se a minha vida lhe pertence, a minha morte também lhe pertencerá”.

No dia 24 de julho de 1985, o Pe. Ezequiel, com apenas 32 anos de idade, foi brutalmente assassinado quando voltava de uma missão de paz, na qual havia visitado posseiros na Fazenda Catuva para pedir que se retirassem, pois corriam perigo. Foi pego de surpresa pelos pistoleiros a mando de fazendeiros. Seu corpo recebeu muitos tiros de espingarda. Os mandantes do crime nunca foram presos.

Assim como tantos outros mártires, o Pe. Ezequiel tornou-se semente de novos cristãos. Seu martírio nos estimula a assumir uma vida cristã comprometida pela construção de um mundo melhor para todos. Sua entrega em favor dos pequenos nos impulsiona a sair de nós mesmos e ir ao encontro dos outros, em especial, dos que mais precisam.

Ezequiel nos deixa o testemunho de que ser cristãos de verdade significa nos comprometer pela libertação do pecado estrutural, que faz o mundo tão desigual, onde há milhões de pessoas que morrem de fome enquanto alguns poucos concentram a maior parte da riqueza do mundo, sem saber como gastar tanto dinheiro.

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Testemunhos
Pe.
Rafael Gemelli Vigolo, mccj (https://www.combonianos.org.br/ martires/pe-ezequiel-ramin)
Convidamos a recordar, com gratidão e compromisso, o testemunho deste jovem e generoso missionário, que foi dado à luz na Itália e se tornou luz em terras brasileiras.
Crédito foto: Google
19 Colabore

“Em Saudades se ouve uma voz, choro e grande lamentação. São as mães que choram seus filhos(as) pequeninos(as), e as crianças inocentes que clamam pelas suas amadas e dedicadas “tias” educadoras. Mas as vidas delas foram brutalmente ceifadas (cf. Mateus 2,18). Todos somos chamados a cuidar e defender a vida, em todas as suas expressões, especialmente a vida das criaturas mais frágeis e vulneráveis. Esta é a nossa vocação! Que todos tenhamos a coragem e a generosidade de responder: “Senhor, eis-me aqui!”

E possamos discernir nosso lugar na Igreja e nos seus ministérios, e nossa forma de servir e cuidar da vida, sem jamais ceder à tentação de eliminar os agentes imediatos de uma ação tresloucada que causa tanto sofrimento, e talvez sejam tanto algozes quanto vítimas.

Que nossa resposta e nosso compromisso seja...

~ Edificar famílias que sejam espaços de diálogo e santuários da vida!

~ Manter escolas que sejam espaços de convivência e educação para a vida!

~ Construir comunidades cristãs que promovam e celebrem o cuidado e a defesa da vida!

~ Construir uma sociedade que priorize a defesa das vidas mais ameaçadas!

~ Despertar lideranças políticas comprometidas com a solidariedade e a vida!

~ Desenvolver uma agricultura com menos pesticidas e mais respeito à vida!

~ Lutar por uma justiça que se ocupe mais em restaurar que em punir!

~ Gerar uma cultura vacinada contra a indiferença e que cultive a empatia e a vida!

Em memória dolorida e agradecida das vítimas inocentes e das vítimas heroicas da tragédia de Saudades/SC (5 de maio de 2021).

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