Revista Bertheriano (Jan/Fev/Mar 2021) - Português

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A cena da Praça de São Pedro vazia e chuvosa com o Papa Francisco rezando sozinho e dando voz ao clamor da humanidade comoveu e moveu o mundo inteiro. A partir daquele dia de março de 2020, o Papa Francisco, passou a ser uma eloquente manifestação de humana solidariedade e consolação de Deus.

Mas este e outros gestos eloquentes que se multiplicaram mundo afora, podem ser acolhidos como um convite a fechar os olhos e as mãos diante das vítimas da Covid-19, à espera de uma vacina pretensamente milagrosa. A humanidade não chegará à cura de si mesma se continuar acorrentada ao pensamento individualista, ao nacionalismo corrosivo, à intolerância selvagem e às práticas econômicas destruidoras da casa comum.

É neste horizonte que a edição da Revista Bertheriano provocou alguns dos seus colaboradores com a pergunta: A pandemia do Covid-19 seria uma quaresma sem páscoa, uma cruz sem ressurreição?

Esta pergunta se justifica, pois o vírus resiste e a pandemia se alastra; as nações continuam priorizando a economia sobre as vidas humana; governantes menosprezam a tragédia e a melhora dos serviços de socorro às vítimas; muita gente resiste a mudar seus hábitos de diversão e de consumo; e o próprio vírus se reinventa de forma assustadora.

Não temos a pretensão de dar respostas superficiais nem definitivas à pergunta que habita nossa mente e nosso coração.

Oferecemos uma partilha de vivências, interrogações, iniciativas e lições. E uma convicção fundamental: se as nações, as igrejas, os organismos políticos e econômicos, e a população como um todo, não mudarem seus hábitos e se recusarem a viver como uma família de criaturas, mesmo com a ajuda de vacinas, a quaresma terminará fatalmente numa sexta-feira pouco santa e sem fim.

02 Editorial

03 Missão no Mundo

05 Missão no Brasil

07 Igreja

10 Central

14 Espiritualidade

16 Missionários

17 Testemunhos

19 Colabore

à nova versão da Revista Bertherianos, reelaborada com muito carinho para proporcionar a você um momento rico e agradável de leitura, sintonizando-se com nosso carisma, através de cada matéria compartilhada por meio deste material.

Expediente

Essa é uma publicação da:

Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família

Produção:

Responsáveis Conselho Provincial

Pe. Itacir Brassiani msf Coordenador Provincial

Pe. Domingos de Sá Filho msf

Vice Provincial

Ir. Irio Luiz Conti msf

Conselheiro Provincial

Pe. Lotário José Niederle msf Conselheiro Provincial

Edição Aline Oliveira

Revisão de texto Ariane Miranda

Editoração

Editora Acadêmica do Brasil

Capa e diagramação

Letícia Sales

Contato e Pedidos

Província dos Missionários da Sagrada Família (Brasil Meridional)

Rua da Floresta, 1043 - Bairro Petrópolis

Cx. Postal 3056 - CEP: 99051-260

Passo Fundo - RS - Brasil

Fone: (54) 3313-2107

E-mail: secretaria@msagradafamilia.com.br

Site: www.misafala.org

Impressão e tiragem

Passografic / 1.800 exemplares

2 Editorial Editorial
Por Pe. Itacir Brassiani, msf Coordenador Provincial do Brasil Meridional
Sumário
Seja bem-vindo

Muito a fazer, e muito mais a aprender!

Acompanhe a jornada do Ir. Moacir Filipin em Moçambique

Saí de Passo Fundo no dia 20 de janeiro e cheguei em Nampula dia 24. Foi uma viagem demorada e tensa, com um pernoite em Addis Abeba (Etiópia), e dois dias de espera em Maputo, devido ao ciclone previsto para o dia 24 de janeiro.

Após quase um ano de espera, por conta da pandemia, finalmente cheguei à missão, em Mecuburi, no dia 25 de janeiro. Continuamos inseguros e vulneráveis à Covid-19, tanto que, estando aqui já há um mês, não tive oportunidade de participar de nenhuma celebração nas comunidades. Por decreto presidencial, todos os cultos comunitários estão suspensos desde o dia 3 de fevereiro.

compartilhar um jantar na casa deles, na companhia do Fr. Ricardo e do Fr. Carvalho. Na manhã seguinte, saboreei um esperado chimarrão em nosso seminário, ainda em construção. Finalmente, em Mecuburi, encontrei o Pe. Celso, a comunidade das Irmãs Franciscanas do Coração de Jesus, e a direção e alunos da Escola Familiar Rural. Mas, apesar disso, aqui em Mecuburi me senti um pouco mais “estrangeiro”, pois predomina a língua Macua.

Outra boa sensação foi chegar no “pequeno paraíso” que é a sede da missão, em Mecuburi. Encontrar uma casa e um ambiente externo tão bem estruturados e organizados me deixou muito feliz. Quanto trabalho, zelo e dedicação para termos este ambiente! Sinto-me motivado a dar continuidade a este belo trabalho.

Vim com a intenção de somar forças com os colegas que aqui estão, dando continuidade às ações iniciadas em 2007 pelo Pe. Neiri e continuadas por vários coirmãos.

Em um país onde quase 60% da população vive na pobreza extrema (menos de R$ 10,00 por dia!), pode-se imaginar os problemas e dificuldades. Basta sair para as ruas e abrir os olhos. Há muito a fazer e, mais ainda, a aprender, para encontrar saídas. Mas quero falar das boas impressões e sensações vividas até o momento.

A primeira sensação é a de ser plenamente acolhido. Por causa do idioma, chegar em Maputo foi como estar no meu próprio país. Foi grande minha alegria ao ser recebido no aeroporto pela missionária Édina e seu esposo Júlio, e pelo Pe. Pedro Léo e de

Tive uma boa impressão também da Escola Familiar Rural, concebida e mantida pela nossa missão. O impacto deste trabalho é perceptível na comunidade local. E é grande a procura por parte dos jovens, rapazes e moças. É uma aposta que vale a pena, apesar dos enormes desafios que temos pela frente. Sem ajuda de fora não há como sustentar o projeto, mas sabemos que iniciativas como esta certamente podem contar com ajuda de parceiros, especialmente da AMISAFA.

Aqui temos muito a fazer, mas muito mais a aprender. Muito foi feito, muito mais poderemos fazer. “Aquele que planta não é nada, e aquele que rega também não é nada: só Deus é que conta, pois é ele quem faz crescer” (1Cor 3,7)

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Crédito fotos: banco pessoal Mecuburi/Moçambique Por Ir. Moacir Filipin, msf
Missão no mundo
Se “a primeira impressão é a que fica”, posso afirmar que começo bem minha nova missão!

Sou originário da República Centro-Africana, um dos 54 países que compõem o continente africano. Sou formado em filosofia e postulante dos Missionários da Sagrada Família, que conheci através de uma religiosa malgaxe, em missão na República Centro-Africana.

Cheguei ao Brasil em abril de 2019 para realizar minha vocação nos passos do Pe. Jean Berthier, e, enquanto espero o visto para que possa ir ao Chile e fazer meu ano de noviciado, partilho algo sobre o meu país de origem e o nosso modo de celebrar a Quaresma e a Páscoa.

A República Centro-Africana é um país sem litoral, e está localizado no coração da África. Tem uma área de 623.000 km2 e uma população de 5 milhões de habitantes. Desde a independência da França, em 1960, tem experimentado um difícil processo de desenvolvimento, apesar de ser rico em recursos naturais, e está classificado entre os países mais pobres do mundo. A população é composta por 80 comunidades étnicas, e predominam três religiões: cristãos (73,5%); muçulmanos (13,8%); animistas e outras (13.7%). A Igreja tem lá uma história de apenas 125 anos de evangelização.

Como em outras partes do mundo, os cristãos centro-africanos começam com o ritual de preparação e celebração da páscoa com o dia das cinzas, que marca o início da Quaresma.

Cobrir-se de cinzas significa exalar a própria dor em meio às provações, mas também manifestar a consciência e o pesar pelo pecado e a esperança na infinita misericórdia de Deus.

Durante a Quaresma, os fiéis são convidados a percorrerem um retorno a si mesmos e uma conversão materializada em renúncias e abertura a Deus e aos outros. A Quaresma é interrompida pela Festa das Palmeiras, que lembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém a fim de culminar sua missão salvadora. Mulheres, crianças e homens se reúnem e acompanham Jesus numa caminhada de fé, rumo a Jerusalém.

Como sabemos, a palavra Páscoa vem do hebrai-

co e deriva do verbo pasah, que significa "poupar". Daí vem o substantivo pesah, que traduzimos como "cordeiro pascal". Em latim, esta ideia é traduzida por pascha, e representa o sacrifício do cordeiro pascal na saída do Egito. E o Novo Testamento reinterpreta tudo isso a partir da vida, morte e ressurreição de Jesus.

Para os cristãos de todo o mundo, a festa da Páscoa é a festa mais importante de todo o ano litúrgico. Os cristãos da República Centro-Africana celebram com alegria este mistério da morte e ressurreição de Cristo. Este momento marca a passagem da morte para a nova vida, da vitória de Cristo sobre a morte e as forças do mal. É um dia importante para que os fiéis, mesmo aqueles que perderam a fé, voltem à Igreja para celebrar a ressurreição de Cristo.

Mesmo que haja um ritual comum, cada Diocese do meu país organiza esta festa de acordo com suas orientações. Após a celebração da Eucaristia, os cristãos católicos centro-africanos se reúnem com suas famílias para comemorar este dia, compartilhando as refeições, seguidas de danças e muitas outras manifestações de alegria e confraternização.

4 Missão no mundo
Crédito fotos: banco pessoal
A festa da Páscoa na República Centro-Africana
Conheça como são realizadas as celebrações de Quaresma e Páscoa no coração da África

Quando o barco para...

Quando o barco para, à margem daquilo que seria o seu principal objetivo no viés da missão, alguém pergunta o que aconteceu para que aquela tão presente visita, de longos anos, não acontecesse. Com o barco parado, a âncora não se move, a partida é incerta. Em 2020, além do barco, pararam tantas coisas, tantos projetos, tantos sonhos ficaram às margens, e tantas vidas ceifadas também pararam, definitivamente.

Quando o barco para, até a compreensão de parar e ancorar muda. Ancorar seria a chegada na esperança da partida imediata, um voltar e recomeçar. No entanto, em contexto de pandemia, o sentido da parada foi ir mais além, e significou se posicionar diante de um invisível, cruel, impiedoso e assassino vírus. Parar foi a solução plausível para a vida continuar. Isso significou perder tempo para ganhar a vida, não só a vida de quem vai em missão, mas também de quem fica e de quem recebe a missão.

Quando o barco para, o povo pergunta quando será o momento de alçar a âncora e voltar a produzir banzeiros nas barrentas águas e sinuosas curvas do Rio Juruá. Entre esperança e medo, os ribeirinhos aguardam a possibilidade de um novo encontro, de novas partidas e chegadas. Havia a grande expectativa de que aque-

les 15 dias iniciais terminassem logo. No entanto, de 15 em 15 dias, o vírus cruel foi chegando onde somente as emoções o haviam acolhido pelos noticiários e falácias. Muito antes da chegada do vírus, os ribeirinhos haviam somatizado os sintomas da enfermidade pelo medo.

Quando o barco para, a visita aos ribeirinhos foge ao controle do padre, do querer de alguém. Entretanto, da nossa parte faltou ousadia para estar mais presente, ser mais ativo e proativo junto àqueles que lhes foram confiados. À pergunta “quando será feita visita?”, a resposta foi sendo adiada mês a mês: iniciou em março e seguiu o calendário da probabilidade do término da pandemia. Antes do mês de março, os ânimos projetavam uma grande visita, um contato mais intenso e direto com lideranças específicas, preparando-as para a ousada e esperada formação catequética no mês de novembro. Os dias e os meses passaram, e a resposta era “para quando tiver permissão dos órgãos de saúde”.

Quando o barco para, cessa nossa presença junto ao povo, perde-se o vínculo estabelecido, distanciamo-nos afetivamente dos momentos próprios de cada comunidade na vivência da fé, na celebração da vida e de cada arraial, na festa dos santos e na fiel devoção.

5 Missão no Brasil
Crédito fotos: banco pessoal

Quando o barco para, perde-se a contemplação do olhar sofrido das Marias, Raimundas, dos Antônios, dos Josés e de tantas outras mulheres e homens batalhadores que reluzem o dinamismo da vida nas margens dos igarapés, dos lagos e do Rio Juruá.

Quando o barco para , a criança assustada não corre a gritar “o padre chegou, o padre chegou”, e os bombons que outrora pedira não têm o mesmo sabor. Barco parado não conduz pescadores, não corta as águas para cumprir sua missão.

Quando o barco para, todos têm tempo para cuidar de si, porém poucos estão preparados para essa árdua tarefa e, consequentemente, questionam a fé, duvidam de si mesmos ao terem abaladas as frágeis estruturas emocionais. Entre esperança e medo, a incerteza de uma quaresma estarrecedora e a certeza de uma páscoa transformadora, pois do barco vem o pão, o trabalho e a missão, mas somente de Jesus a salvação.

Quando o barco para, as águas da fé e dos rios seguem seu curso, o alento

da vida é contínuo, e mesmo onde o barco, o varadouro, a trilha não levam o missionário, Jesus dá a volta, caminha sobre as águas, chega mais rápido. Jesus chega ali, onde o amor se faz canção, o Evangelho se faz semente a germinar na vida, na ação de cada filho, pai, mãe e cada irmão. Ali a criança precisa de mim, precisa de você, deixemo-la crescer; o jovem precisa crescer, deixemo-lo florescer; o adulto e o idoso querem viver, deixemo-los transcender.

Quando o barco para, a comunidade repensa a missão e percebe outras formas de evangelizar nestas águas e neste chão amazônico, sabendo que se, em algum canto, tem gente que desconhece a mensagem do Reino, também tem gente sedenta pela mensagem de salvação. E o missionário descobre que a riqueza do Reino de Deus é justamente o encontro com cada pessoa e cada irmão no qual brilha a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quando o barco para...

6 Missão no Brasil
Crédito fotos: banco pessoal Por Pe. Aniceto Francisco dos Santos, msf Carauari/AM

Ciranda de todos os povos para uma cultura de paz!

A proposta da Campanha da Fraternidade deste ano é a solução do problema para a desunião

As cirandas são utilizadas para celebrar a vida em todas as suas fases. Com isso, ela é uma dança capaz de fazer emergir o respeito ao próximo. Na sua base percebemos que ninguém está acima de ninguém. Todos estão olhando no mesmo nível, respeitando o espaço e o tempo de cada um, construindo pontes e não muros.

Se o desejo é dançar no mesmo compasso e construir uma sociedade mais humana, justa e fraterna, não se torna possível construir sozinhos, essa missão passa pelas mãos de todas as mulheres e todos os homens de boa vontade, como afirma o Papa Francisco. Nessa toada, a Campanha da Fraternidade Ecumênica tem sido realizada, a cada cinco anos, com a proposta de congregar diversas denominações cristãs, sempre de forma ecumênica, atraindo para o diálogo sobre temas que tocam a todos como: dignidade humana, paz, economia, meio ambiente, valorizando as riquezas em comum entre as Igrejas.

Entretanto, como fruto do delírio coletivo acirrado por meio do bizarro contexto político em que o Brasil se encontra, não é surpresa nenhuma que haveria críticas à proposta da Campanha da Fraternidade de 2021. Afinal, ela convida à verdadeira conversão – algo que nem todo cristão, mais de nome do que de obras, é capaz de vislumbrar.

Ironicamente, a proposta da CF deste ano é a solução do problema para tanta desunidade: o tema escolhido foi “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef. 2.14). Para a sociedade brasileira atual, não haveria nada mais assertivo, pois traz muitos aspectos positivos. Pois a questão toda está quando se fala na superação de polarizações. A proposta da CF 2021 é justamente o que causa alarde no pseudo-cristão (aquele que adora fazer escândalo e chamar quem fala de problema social ou de pobreza dentro do âmbito teológico de comunista) e isso o motiva a ataques contra o ecumenismo.

Ao pretender educar o povo para a vida em fraternidade, a partir da justiça e do amor – que é uma exigência central do Evangelho – a proposta da CF 2021 chocou.

E qual o motivo para tanta surpresa? Simples: ela convida “comunidades de fé e pessoas de boa vontade para pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual”, como aponta seu texto base.

Infelizmente, esse comportamento leva a uma onda de outras ações, que vão da produção de fakenews e de conteúdos que tentam desmerecer membros da Conferência Nacional das Igrejas Cristãs - CONIC. Ou seja: enquanto quem espera por mudanças faz campanha visando à fraternidade, os contrários iniciaram uma contra-campanha. E ela é um desserviço, revelando o desejo intencional de se dividir ainda mais o povo.

Bom, afinal de contas, o que fazer em meio a tanta desunião? Certamente ficar dentro de sua bolha é muito mais cômodo para quem tripudia a vivência prática do Evangelho, refutando o fato de que a sociedade brasileira tem assistido aos mais agressivos problemas na área da saúde, da economia, da política, e tantos outros.

E é por isso que a finalidade da ciranda é unir todos os povos para uma cultura de paz, de encontro com o diferente, rompendo com o discurso de toda polarização. Que a cultura do conflito se transforme em cultura de amor, capaz de construir uma sociedade onde caibam mulheres com plenos direitos, a diversidade religiosa, dos povos indígenas, os direitos das pessoas LGBTQIA+ e de quem quer que tenha seus direitos restringidos.

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Igreja
Crédito fotos: CNBB
Por Fr. Igor Pereira, msf Belém/PA

Cuidar da saúde e promover a cidadania

Muitos/as se perguntam como será a sociabilidade depois da Covid-19. Cuidar e ser cuidado são as constantes da vida promotoras da sociabilidade humana. E espiritualidade cristã e missionária nos impele a sermos protetores e cuidadores da vida. Mas quem cuida daqueles/as que vivem à margem da sociedade, com ou sem Covid-19? Quem cuida dos trabalhadores/as da saúde?

Logo que chegou a notícia do novo coronavírus, as instituições comprometidas com a pessoa humana tomaram todos os cuidados técnico-sanitários para proteger vidas, em nome da saúde, procurando integrar os saberes, cientes de que cuidar é um ato que exige compromisso com a vida do outro.

Com esta motivação, a Igreja católica incrementou suas iniciativas de caráter solidário com pessoas carentes e mais vulneráveis. Além de seguir rigorosamente as medidas de prevenção em seus espaços, a Igreja está suscitando projetos que fomentem o uso da “máscara social” em favor da saúde e prevenção das pandemias. E pede que todos ajudemos a cuidar da vida como um dever moral.

Temos ciência de que é possível cansar, fracassar e até cair na decepção e na solidão. Mas quem não passou pela experiência da solidão, não está habilitado para a vivência solidária.

A vida humana não se prolonga eternamente na história, mas as máscaras e o álcool-gel reúnem dois valores ao mesmo tempo: proteção e cuidado, caridade e solidariedade.

Os momentos fortes na vida social são novos impulsos para resistir às situações adversas, como também, motivos para avançar e qualificar o processo humano. A Campanha da Fraternidade quer suscitar o espírito do “Bem Viver” e promover o reconhecimento dos Direitos Humanos, sem “as máscaras” da razão indolente e fascista, que exclui as pessoas do convívio social por causa de etnia, sexo, religião, classe ou orientação sexual. Esse é o vírus para o qual ainda não se encontrou uma vacina preventiva e curadora.

Todos/as nós, independentemente de credo ou orientação sexual, somos chamados/as a dar uma resposta humana às demandas da sociedade. Ser cristão e discípulo/a missionário/a de Jesus implica em engajar-se na proteção e promoção da vida.

A indagação sobre como será a vida social no pós-Covid-19 faz sentido, e pode ser vista como um ato pedagógico que leva a um novo aprendizado para encarar a vida em sua integralidade. Nossa resposta deve ser o compromisso ético de esperança e de solidariedade com as pessoas que vivem desprotegidas do seu direito humano à saúde.

Em tempos de Covid-19, é de se esperar que esta ação direta se expresse na continuidade e na intensificação do respeito mútuo e da solidariedade entre as pessoas, especialmente da sociedade brasileira, tão ferida, nos seus direitos civis e políticos, pela Covid-19 e pelas autoridades constituídas mas, muitas delas, destituídas de empatia e humanidade.

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Em favor da saúde e prevenção das pandemias, Igreja suscita projetos que fomentam o uso da “máscara social”
Por Pe. José André da Costa, msf Professor e Pároco em Caldas Novas/GO Crédito foto: banco de imagens freepick

Pastoral da Comunicação no

"novo normal"

Veja a readaptação da Pascom durante a pandemia

Na paróquia Santa Maria Madalena, de União dos Palmares/AL, a Pastoral da Comunicação começou de forma simples: trabalhávamos com a missão de transmitir uma ou outra celebração especial, algumas missas dominicais e a festa da padroeira, que ocorre todo ano entre o final de janeiro e início de fevereiro. Para nós, esse sempre foi o momento de fazer alguma coisa diferente. Quando começamos, dois ou três agentes já davam conta de transmitir e divulgar as atividades de nossa comunidade.

Chegou 2020, e veio junto com ele o coronavírus. Em nossa arquidiocese, o dia de São José foi a nossa última celebração presencial na matriz. Da participação ativa, abraços e proximidade, passamos ao isolamento e participação à distância em todas as atividades.

Readaptar: nunca passou pela nossa cabeça que essa palavra seria agora uma constante em nossa vida pastoral, que faria parte da nossa vivência da fé. Mas, como na canção “segura na mão de Deus e vai...”, nós “fomos” e nos reinventamos.

Se antes nossa atuação pastoral da comunicação era pontual, agora nossa responsabilidade aumentou: catequese, lives musicais, programas de entrevista, reza do terço, novenas... Enfim, todas as pastorais que antes tinham sua organização por conta própria, passaram a se comunicar pela pascom.

Todo aprendizado traz junto dores e alegrias. E ver a igreja vazia, nas primeiras celebrações no início da pandemia, doeu bastante. Hoje temos as celebrações presenciais, mas com certeza, nem se compara ao que vivíamos antes. Vários agentes choravam, outros nem conseguiam ir, enfim, mexeu profundamente com todos nós. Nosso pároco, Pe. George, nos animava durante a travessia: “Meus irmãos, tudo isso é para que fortaleçamos a nossa fé, para que nós possamos nos aproximar mais de Deus, a partir do nosso coração, a partir de nossas famílias”.

A comunicação e a arte são dimensões únicas em nossa vida e, quando esses registros comunicativos e artísticos falam de algo tão essencial que é a Boa Notícia de Cristo, acreditamos que algo fundamental sempre fica no coração das pessoas. O saudoso (e agora santo) Papa João Paulo II foi um arauto da comunica-

ção, e cremos: suas palavras e escritos foram o que nos motivaram muito naquilo que atualmente fazemos.

Sabemos que não está sendo fácil para ninguém, mas esperamos que toda essa realidade possa melhorar, e que o “novo normal” gere em nós uma nova postura diante da vida e diante da fé: que sejamos novos homens e mulheres, transformados pela única novidade que de fato faz o novo acontecer, Jesus Cristo, nosso Senhor.

Conforme a CNBB, “Pastoral da Comunicação” nasce da junção de duas realidades que interagem reciprocamente: a comunicação e a ação pastoral. O universo da comunicação abrange as distintas dimensões da realidade humana, enquanto o universo da pastoral envolve a dimensão sócio eclesial, relacionada aos diferentes ambientes da Igreja em sua missão de evangelizar.”

Conheça nosso trabalho:

9 Igreja
Por Wilquer Correia e Ir. Wanderson Alves, msf União dos Palmares/AL
Unifatea
Crédito foto: Site
(Nelson Antoine/ Shutterstock)
@pascomsmm p.santamariamadalena

Na Encíclica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco dá a sua resposta à pergunta formulada no título acima, no seguinte teor: “Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras” (n. 6).

Na presente etapa da minha vida, fazendo parte do grupo de risco dos idosos e convivendo circunstancialmente com a experiência da quarentena frente ao drama da Covid-19, ensaio também uma resposta ao desafio proposto. Provido do tradicional método brainstorm, dou livre fluxo ao pensamento, dentro do horizonte psíquico e espiritual do meu vivido existencial, do meu Sitz im Leben

O Papa Francisco contextualizou sua observação sobre uma Quaresma sem Páscoa no âmago da Alegria do Evangelho, título e conteúdo da sua sempre atual Encíclica. Já o contexto do meu “vivido existencial” são os até hoje onze meses de quarentena, de quase “quaresma” prolongada. À luz da gramática moderna, é possível identificar uma similitude de étimos nos significantes de quaresma e quarentena. Preciso é, porém, que se deslinde o(s) significado(s) destes significantes.

Mesmo mantendo presente o contexto da “alegria” do texto papal, meu pensamento flui, súbito e sápido, para o contexto da “liberdade”. Paradoxalmente, posso ser “livre”, confinado em quarentena? Não seria já uma resposta antecipada à questão da Quaresma sem Páscoa? Não se introduz sub-repticiamente o pensamento sartriano da necessidade de saber o que fazer da nossa eventual não-liberdade? Ou quiçá, mais radicalmente, o imperativo nietzschiano de ser o que se é, “humano, demasiado humano”? Imperativo kantianamente categórico?

10 Central
Reflita sobre a dimensão pascal da vida e fé cristã durante a pandemia

Retorno, então, à condição de octogenário que resiste ao império absolutista da quarentena e busca refúgio físico, social e espiritual. O amparo físico, encontro na sombra benfazeja de um pé de cinamomo, no fundo do nosso quintal. A ajuda social é garantida pela assistência solícita dos filhos e, máxime, pela convivência diuturna, dialógica e amorosa da esposa. O recurso espiritual, finalmente, é absorvido por momentos de oração e meditação, por leituras variadas e pelo estudo perquiridor de hermenêutica bíblico-teológica. Sobre este horizonte da espiritualidade, concentro agora minha análise e minha predileção, coincidentes com a questão acima intitulada.

O princípio básico da espiritualidade da Quaresma consiste em transformar a Quaresma sem Páscoa em Quaresma com Páscoa, isto é, identificar a dimensão de pascalidade na Quaresma, decorrente, por sua vez, da dimensão pascal da vida e da fé cristãs. Simples assim? Nem tanto, pois, a circunstância existencial de viver em momentânea quarentena, talvez, ainda sem adoração do Santíssimo na Quinta-feira Santa, sem procissão do Senhor Morto, na Sexta-feira Santa, sem Vigília Pascal, no Sábado Santo. Em situação de grandes aglomerações, me está ensinando que preciso fazer a experiência mística das noites escuras do “deserto”, exercitar o enfrentamento das “tentações” de poder e de orgulho, a luta contra a mediocridade (Santo Afonso) ou contra a ideologia dos compromissos meramente terrenos (Bonhoeffer, num campo de concentração).

A vida quaresmal, na dimensão pascal ao longo de todo o ano e não apenas numa curta fração do tempo no infinito da eternidade, me ensina a identificar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus (aprendizagem dos exercícios espirituais de Loyola), pois, em Deus “vivemos, nos movemos e existimos”, segundo Paulo no Areópago (cf. At 17,28).

Além disso, a espiritualidade da Quaresma me convida a ver o sagrado no profano, a laicidade ombreando com o clericalismo, a ideologia de gênero buscando foros de cidadania, o diálogo e o igualitarismo sendo compromissos da CNBB e do CONIC na atual CF ecumênica, o Reino de Deus se sobrepondo à institucionalidade da Igreja, a diaconia-serviço sendo tarefa de todo batizado (incluindo Papa, Cardeal, Bispo, Sacerdote e Religioso), sem falar do negacionismo a ser vergado na luta contra a Covid-19 e a resistência urgente ao neoliberalismo na economia, e ao neonazifascismo na política e ideologia hegemônica do poder executivo. Tudo isso é “mistério pascal da fé”, é dimensão pascal da espiritualidade quaresmal.

Este contexto de fé e espiritualidade da Quaresma sem ou com Páscoa, trouxe à tona o trio economia, política e ideologia familiar ao estudioso das estruturas sociais. Ao constatar que a liturgia do tempo comum optou, neste início de ano, pelo Evangelho de Marcos, dediquei parte das minhas leituras na quarentena ao reestudo do relato da prática de Jesus na ótica de Marcos. Muitas conclusões me ocorreram, inclusive com os significados e denotações dos três níveis (econômico, político e ideológico) presentes na sociedade de classes da Palestina do século I dC, úteis para a compreensão genuína do segundo evangelho sinótico.

Devido ao espaço limitado deste artigo, menciono somente o caráter subversivo da Ressurreição de Jesus na Páscoa e a curiosa existência das reticências (...) após Mc 16.8 que as modernas edições do Evangelho apresentam, sinalizando que o relato da prática de Jesus não termina com a morte do Nazareno e que o túmulo vazio indica a vitória do Crucificado sobre a morte, com a ordem aos discípulos: “proclamai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16,15) para alvíssaras de felicidade (“Boa-Nova”) e liberdade de todas as nações, assistidas pelo Espírito que o Pai haveria de enviar, pois, segundo Paulo: “Onde se acha o Espírito do Senhor aí está a liberdade” (2Cor 3,17b). Na quietude do meu retiro quaresmal, balbucio: por que não inverter? Onde se acha liberdade, aí está o Espírito.

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Obviando estes pensamentos fugidios de cariz filosófico-humanista, direciono o leme do meu pensar para a espiritualidade bíblico-teológica, mais condizente com a questão da Quaresma sem Páscoa.
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Prof. Bertilo Brod Erechim/RS

Quarentena da Covid-19 não será uma quaresma sem fim!

Uma experiência de 40 dias isolados

A Covid-19 gerou o isolamento social e um novo modo de percebermos a realidade como um todo. Este tempo está sendo uma oportunidade para “cozinhar-se na própria banha”, compreender o tempo da semente lançada na terra e a necessidade de decidir entre apodrecer e germinar, brotar, tornar-se planta, amadurecer e produzir frutos.

Poderíamos também comparar isso que estamos vivendo com a experiência de Jesus nos 40 dias no deserto, como um tempo de cultivo muito intenso. Dando asas à imaginação, visualizo Jesus no deserto olhando para o seu passado, conduzido pelo Espírito, plasmando o seu projeto de vida, morte e ressurreição.

É de se esperar que muitos, com sabedoria, tenham conseguido transformar esta vivência em

tempo de cultivo e repouso e cuidado de si, em tempo de contemplação e estudo, num grande retiro. Outros, talvez, tenham aproveitado este tempo para fazer o que sempre desejavam fazer e não tinham tempo, foram inibidos pelo medo, distraídos pelo ativismo, não foram capazes de silenciar e continuam no mesmo.

Quando o Vaticano interferiu na vida acadêmica de Leonardo Boff, impondo um tempo de “silêncio obsequioso”, o cardeal Arns disse: “Espero que ele consiga fazer deste silêncio um tempo de cultivo e usar a sabedoria que leve a sua obra e missão a uma grande fecundidade”.

Foi isso que aconteceu com Nelson Mandela, na África do Sul. Em 1964, ele foi condenado à prisão perpétua por sua luta contra o racismo. Foi libertado por pressão internacional em 1990, e recebeu o “Prêmio Nobel da Paz” em 1993 pela sua luta contra o regime de segregação racial. E tornou-se presidente da África do Sul (1994-1999). Aqueles anos passados na prisão foram um intenso e incessante processo de cultivo e pacificação de sua própria interioridade na busca de sonhos e projetos que se tornaram realidade.

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Central
Crédito foto: banco de imagens freepick

Ao sair da prisão, Mandela faz um discurso chamando o país para a reconciliação: “Eu lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Eu tenho prezado pelo ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver juntas em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual eu espero viver e que eu espero alcançar. Mas caso seja necessário, é um ideal pelo qual eu estou pronto para morrer”.

Diante disso, penso que poderíamos afirmar que estes tempos marcados pela Covid-19 são um tempo fértil para a gestação de uma nova páscoa, para dedicar-se ao essencial, para mergulhar dentro de si e auscultar-se, e movidos pela Palavra de Deus, que desperta a solidariedade, nos faz missionários, nos chama a ser sal da terra e luz do mundo, estender-nos a toda a humanidade e perceber que o planeta todo precisa de nosso cuidado e de nossa ação transformadora. Estes tempos exigentes podem se converter em um tempo de terra fértil para iniciativas renovadoras para enfrentar as questões e desafios mais fundamentais. Creio que, pelo fato de muitas pessoas terem mais tempo para parar e sabiamente silenciar e viver “um deserto fértil”, brotarão, nos mais diversos ambientes, iniciativas que geram mudanças de vida e de atitudes, iniciativas de solidariedade que ajudam a gerar o mundo novo que tanto almejamos. Queira Deus que, nesta quaresma, muitos vivam uma verdadeira e contínua conversão aos valores fundamentais da convivência humana.

E que a Campanha da Fraternidade Ecumênica nos ajude a ver com amor aqueles que são diferentes e gere iniciativas coletivas para o bem do Brasil, da humanidade e do nosso planeta, libertando-nos dos vírus destruidores do poder, da corrupção e do individualismo. E oxalá possamos, no fim deste tempo de travessia, cantarmos juntos: “Somos gente nova!”

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Por Pe. Hilário Dewes, msf Passo Fundo/RS
Central
Crédito foto: banco de imagens freepick

Pistas para uma espiritualidade de travessia do “mar Vermelho”

Prepare-se para o ciclo pascal com um caminho espiritual fortalecido no livro de Êxodo

Estamos iniciando o ciclo pascal, com o tempo da quaresma. Fazemos isso já no segundo ano da pandemia pela Covid-19. No ano passado, com as igrejas fechadas, e este ano celebraremos com poucas pessoas para evitar aglomerações, cuidando do distanciamento, fazendo uso do álcool para higienização e vários outros cuidados necessários.

Em meio às desolações, desespero e dores onde poderíamos buscar uma espiritualidade de consolação, fui então no livro do Êxodo para resgatar a tensão que foi a travessia do mar Vermelho. A história do êxodo dos filhos de Israel, do primeiro ao último capítulo, (Ex 1,140,38), parece relatar uma "quaresma sem páscoa". Mas não foi isso o que aconteceu.

Os filhos de Israel, segundo o livro do Êxodo, entraram em desespero, pois em determinado momento se vêem entre o faraó e seu exército e o mar. Por isso, criticam duramente Deus e Moisés: “Aterrorizados, os israelitas clamaram ao Senhor e disseram a Moisés: ‘Foi por não haver sepulturas no Egito que nos trouxeste para morrermos no deserto? Que vantagem nos deste tirando-nos do Egito? Não te falávamos assim no Egito: ‘Deixa-nos em paz para servir os egípcios?’ Era melhor servir como escravos aos egípcios do que morrermos no deserto”, (Ex 14,10b-12). Porém, neste momento a posição confiante de Moisés foi essencial para devolver esperança ao povo:

Acredito que este deve ser um caminho espiritual que devemos adotar para vivermos a Quaresma como preparação para a Páscoa. Caminhamos até aqui, segunda Quaresma na pandemia, mas, por mais que os profetas do caos apocalíptico insistam em bradar males, doenças, pecados, mortes, temos que ir além. Jesus sofreu, morreu, mas ressuscitou.

O povo de Israel aterrorizou-se diante do exército de morte do faraó, mas prevaleceu a mão de Deus: “O Senhor disse a Moisés: ‘Por que clamas a mim por socorro? Dize aos israelitas que se ponham em marcha. Quanto a ti, ergue a tua vara, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os israelitas passem em seco pelo meio do mar. As águas se dividiram e os israelitas entraram pelo meio do m ar a pé enxuto, enquanto as águas formavam uma muralha à direita e outra à esquerda” (Ex 14,21-22). O resto da história nós conhecemos, mas vale a pena o capítulo 14 por inteiro.

Fique bem claro que não estou negando a dramaticidade da pandemia em nossos dias. Muitos amigos(as), familiares, seres humanos perderam sua vida para a Covid-19. É fato. Mas, precisamos afirmar sempre e continuamente: celebramos o ciclo pascal como um conjunto – quaresma, tríduo pascal e tempo pascal. Por isso, não é hora de anunciar o desespero, mas consolar nosso povo (cf. Is 40,1): “Consolai, consolai o meu povo’ diz o vosso Deus”.

“Não temais! Permanecei firmes e vereis a vitória que o Senhor hoje vos dará. Pois os egípcios que hoje estais vendo, nunca mais tornareis a ver. O Senhor combaterá por vós; e vós, ficar tranquilos”, (Ex 14,13-14).

14 Espiritualidade
Crédito
Por Pe. Francisco Ary Carnaúba, msf Porto Alegre/RS
foto: Site Raciocínio Cristão

Jesus no caminho da cruz

Com a ajuda do profeta Isaías, Jesus tomou consciência de que a manifestação do Reino de Deus seria diferente do que ele imaginava no início da sua missão: a vitória do Servo Sofredor viria pela resistência, condenação e morte. A cruz aparece não mais como uma possibilidade, mas como uma certeza. Contudo, Jesus continua focado no Reino de Deus, que já está presente, atuando no mundo, e não muda sua relação com o Pai, cada vez mais íntima e profunda. A noção que Jesus tem de Deus é a do salmista (Sl 144): “Misericórdia e piedade é o Senhor, ele é amor, é paciência, é compaixão. O Senhor é muito bom para com todos, sua ternura abraça toda criatura”.

A ternura e misericórdia de Deus continuarão sem limites na compreensão de Jesus. Mas, a partir das resistências que enfrenta, Jesus dá nova direção à sua vida e missão, e muda o modo de anunciar o Reino: as parábolas se referem a essa nova realidade, e se direcionam mais para o futuro julgamento e para o fim dos tempos; ele diminuiu os milagres e começa a falar constantemente de sua paixão e morte.

Depois de perguntar o que os discípulos pensam dele, Jesus começa a falar da sua paixão e morte na cruz. Mas os discípulos têm dificuldade de compreender isso, e até tentam levá-lo por outro caminho. Isso gera uma grande crise, e Jesus passa a mostrar com clareza o seu caminho e as exigências para segui-lo: “Quem quer ser meu discípulo renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me, pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida, por causa de mim, vai encontrá-la”.

A partir deste momento, Jesus insiste na vigilância e nas exigências do seguimento, com uma

nova compreensão da cruz, tão bem expressa por São Paulo quando fala aos cristãos de Corinto: “Os judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria, mas nós anunciamos o poder do mistério da cruz, que para os judeus é escândalo e para os gregos é loucura” (cf. 1Cor 1,10ss).

O momento da prisão, da paixão e da morte de Jesus na cruz é o auge da crise dos discípulos: eles dormem enquanto Jesus está no horto em profunda agonia e dor; Pedro o nega quando é perguntado pelos soldados se ele o conhecia; Judas negocia a vida de Jesus com as autoridades; quase todos eles fogem na hora de sua morte. Todos dão a nítida impressão de estarem decepcionados, de terem perdido quase tudo o que tinham buscado até então.

A crise dos primeiros discípulos continua sendo vivida hoje, por muitos cristãos, por falta de uma compreensão mais profunda do verdadeiro sentido da vida, pela falta de uma compreensão mais evangélica do sofrimento e da cruz que carregam seguindo Jesus, da compreensão da própria morte, e por falta de fé na ressurreição sobre a qual, hoje, temos provas históricas muito convincentes.

Contudo, na experiência de sofrimento ou de aproximação da morte, muitas pessoas descobrem o verdadeiro sentido da vida e são confirmadas na sua esperança. Quem passa pelo sofrimento tem uma maravilhosa oportunidade de crescer moral e espiritualmente, mesmo nas experiências doloridas. É claro, que isso depende da capacidade de se abandonar, incondicionalmente, nas mãos de Deus.

15 Espiritualidade
foto: Banco de imagens Cathopic
A cruz aparece não mais como uma possibilidade para Jesus, mas como uma certeza
Crédito
Por Pe. Euclides Benedetti, msf Pároco/Santo Ângelo/RS
16 Missionários

Pe.

Milton Sulzbacher msf: uma vida doada pelos empobrecidos

Sua história de doação aos mais pobres é um exemplo de discipulado de Jesus Cristo

Conheci o Milton nos encontros de estudos em Palmitos/SC nos anos 2003 e 2004. Ele trabalhava na Paróquia católica, e participava nos encontros de estudos sobre a realidade brasileira influenciada pelo capital e sobre o movimento de resistência dos camponeses.

Em 2004, eu deixei o trabalho da Pastoral Popular Luterana em Palmitos e assumi a paróquia luterana de Condor/RS. Reencontrei o Milton anos depois, e ele me contou que se tornara Missionário da Sagrada Família e estudava teologia. A partir da realidade de exploração em que vivem os agricultores, o Milton estudou teologia para fortalecer o anúncio do Deus que se fez camponês sem-terra e palestino empobrecido em Jesus de Nazaré. Quando foi ordenado padre, ele me convidou para a celebração.

O anúncio do Evangelho se resume no projeto de insurgência evangélica do Reino de Deus.

A partir da fé, o Milton se jogou nessa luta contra o reino classista do mundo, e partiu para o país mais pobre da América do Sul, que havia organizado o campesinato indígena e o operariado que tomou o poder do Estado, que foi comandado por um indígena.

Um camponês empobrecido de Palmitos se colocou a serviço da revolução evangélica do Reino de Deus na Bolívia, que continua sendo um grande sinal de resistência aos interesses do imperialismo estadunidense. O Padre Milton colocou sua vida a serviço da luta contra o reino do mundo, o capitalismo, que é um instrumento que o

diabo usa para impedir a revolução do Reino de Deus, conduzida por Jesus Cristo.

O Padre camponês Milton morreu dentro deste processo missionário, como discípulo do Deus que se tornou classe camponesa em Jesus de Nazaré, para acabar com a sociedade de classes. Ele morreu de Covid-19, num país que mostrou que é soberano e reconquistou o poder usurpado pelo imperialismo estadunidense, aliado à elite lacaia e subserviente local, nas eleições do ano passado.

O Milton quis servir ao Reino de Deus num país que resiste ao imperialismo, e isso nos anima a resistir também aqui no Brasil aos interesses imperialistas assentados no Palácio do Planalto, mas já questionado pelo povo, que pede o impeachment de seu morador por causa da omissão no enfrentamento da pandemia que já ceifou mais de 250 mil vidas no Brasil. A pandemia está mostrando que os interesses do Mercado colocam a vida humana em segundo lugar. A Covid-19 mata e muda constantemente, como o capitalismo.

A vida e morte do Padre Milton na Bolívia nos diz que a vida é maior que o Mercado, e que a coragem é maior que o medo. Sua doação evangélica no país mais pobre da América do Sul é exemplo de discipulado de Jesus Cristo. A vida vem de Deus e é de Deus. O capital está a serviço da morte e é coisa do diabo.

17 Testemunhos
Crédito foto: banco pessoal
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Por Pastor Günter Adolf Wol (IECLB) Palmitos/SC

A Pandemia na vida de um pastoralista

A dura realidade de lidar com um inimigo tão desconhecido

A notícia veio de longe. Inicialmente sem importância. Quase ninguém lhe deu atenção. Mas, como a notícia se emenda, logo, todo mundo ficou sabendo que se tratava de uma pandemia e vinha na montaria da morte. Chegou ao Brasil no meio do carnaval, nesta hora da folia e da alegria, não teria lugar para ela e deixaram para depois. As consequências foram desastrosas.

A situação ficou pior, quando a pandemia foi tratada com desdém, a ignorância se impôs à ciência, o negacionismo negou a dura realidade, o preconceito fortalecido pela ideologia reinante, dificultou qualquer tipo de negociação, principalmente na hora de adquirir a vacina ou a “IFA” para sua fabricação.

As mortes foram se multiplicando e as imagens divulgadas pela mídia, cada vez mais chocantes e provocando muita angústia, afinal, eram irmãos e irmãs que estavam morrendo em tão grande quantidade.

Lidar com um inimigo tão desconhecido, foi sendo um grande desafio. Ficar se cuidando quando o inimigo poderia estar longe, era expor-se ao ridículo. Não se cuidar quando o inimigo poderia estar no trinco da porta de nossa casa, era um apelo para estar num estado de alerta constante. Assim ficamos um tempo sem as celebrações presenciais, apenas pela internet.

Foi uma experiência que exigiu um grande esforço de adaptação. Em seguida, porém, veio a orientação da CNBB. Com todo o cuidado, voltamos a celebrar com a presença dos fiéis, exigindo-lhes o uso de máscara, álcool em gel e o devido distanciamento, o que continuamos fazendo até hoje.

Mas o descaso de muitas pessoas frente à pandemia, a falta de empatia com o coletivo, geraram em mim preocupação e indignação. Sucessivos equívocos do governo federal, no enfrentamento à Covid-19, enquanto eram negados por grande parte da população, em mim eram revoltantes.

Na medida que pessoas da comunidade eram contaminadas e perdiam suas vidas, devo confessar, o medo foi tomando conta de mim, principalmente por ser do grupo de risco. Medo de ser contaminado e não resistir, de ter que abandonar tudo o que ainda sonhava fazer.

Ao mesmo tempo, um desejo inconsciente de ser contaminado e poder dizer que era forte e resisti. Na medida que ia me distanciando para não ser contaminado, um sentimento de culpa invadia minha alma de ser um pastor que estava abandonando suas ovelhas, que não estava dando a vida por elas. No meio a tudo isso, surgiu um tripé de proteção: máscara, álcool em gel e distanciamento.

Vive-se um momento de grande preocupação, não só pelas mortes de milhares de pessoas pela pandemia, mas também pela morte à cultura, pelo desprezo à ciência, pela piora na educação e pelo empobrecimento cada vez maior dos pobres. Nunca se repetiu tanto: precisamos manter viva a esperança, mas a nossa razão, exige razões para tal.

18 Testemunhos Crédito foto: Banco de imagens freepick
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Por Pe. Euclides Benedetti, msf Santo Ângelo/RS
Foi no meio desta dura realidade que cada um viveu sua dura experiência da pandemia.
19 Colabore

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