Mancha Neural : Ato II - Guerra

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Mancha Neural – Ato II : Guerra Daniel Alencar Capas: Pink Ghost Revisão Contextual: Pink Ghost

Críticas, elogios e sugestões: agibiteca@gmail.com


Mancha Neural – Ato II : Guerra 1° Edição – Maio de 2020 Todos os personagens são de propriedade da Disney Inc. e utilizados sem a intenção de auferir qualquer valor a título de lucro direto ou indireto. As histórias são de autoria exclusiva do autor e podem ser copiadas, divulgadas e disponibilizadas à vontade. O autor se reserva ao direito de pedir que as histórias não sejam alteradas. Este livro virtual está disponível gratuitamente na Internet, pelo site: http://agibiteca.blogspot.com Proibida a venda deste E-book ou sua versão impressa.


Para minha pequena, mas feliz famĂ­lia, que me apoia em todos os meus projetos.


Agradecimentos

Considerando o período conturbado pelo qual estamos passando, meu maior agradecimento é a Deus que tem mantido meu pequeno núcleo familiar com saúde. Também quero citar os heróicos profissionais de saúde que saem de casa todo dia para cuidar dos doentes e mante-los confortáveis. E finalmente, obrigado a você que está aqui de novo após 7 anos do meu sumiço. Espero não demorar tanto de novo. Um abraço a todos os amigos. Daniel


Índice

- Reflexões do Autor - Informações - Prólogo - Capítulo 01: Lembranças - Capítulo 02: Assassinos - Capítulo 03: CIA - Capítulo 04: Despedida - Capítulo 05: Convite - Capítulo 06: Natasha - Capítulo 07: Mancha Neural - Capítulo 08: Dmitri - Capítulo 09: Amigos - Capítulo 10: Guerra - Capítulo 11: Promessas - Capítulo 12: Inocentes - Capítulo 13: Mancha Negra - Preview do Ato III : Confronto


Reflexões do Autor

Bem vindo amigo leitor, há quanto tempo. A última vez que escrevi a introdução de um livro, foi há 7 anos. Eu achava que após os 4 livros de Nova Patópolis, talvez eu conseguisse escrever ao menos um livro por ano... Ledo engano. Por uma quantidade tão grande de motivos, eu travei e só recentemente consegui voltar a escrever. E valeu a pena? Acredito que sim, pois considero o Mancha Neural meu melhor livro (individual) até agora. Além de ser uma história "fechada", trata-se da minha visão de outra parte do universo Disney, os Ratos. Claro que não será igual Nova Patópolis, que foi uma história intrincada envolvendo o passado-presente-futuro de dezenas de personagens, que precisou de 4 (!) livros para ser contada. Mas... Donald e suas frustrações sempre me pareceram mais críveis e aceitáveis do que o universo perfeito do Mickey. Mickey é perfeito, invencível, amado, cheio de amigos, tem a mulher ideal e absolutamente tudo sempre é resolvido por ele, já que Pateta mais atrapalha do que ajuda. Isso mudou na série Mickey Mouse Mystery Magazine, quando isolado em Anderville, o vemos ameaçado por corruptos, caçado por assassinos, apanhando, sendo chantegeado, imigrando ilegalmente (!), assaltando um banco (!!!!). Passei a gostar de Mickey muito mais após MMMM, tanto que o trouxe ao Brasil em 2013, traduzindo direto do italiano. E ainda hoje, publico as edições inéditas. Após a experiência de Anderville, imaginei que ele em tese estaria mais maduro, mais propenso a falhas e frustações. Ledo engano 2! Até nas histórias mais recentes do mestre Casty (que acho muito boas), o senhor perfeito está de volta.


Então, como foi em Nova Patópolis, se eu quisesse uma história humana, angustiada e frustrada eu que deveria escreve-la. Assim nasceu "O Mancha Neural". Mesmo sendo contratado pela CIA, Mickey se questiona sobre seu papel. Também conhece uma agente que já sofreu MUITO na vida, que faz seus problemas parecerem insignificantes. A vda pessoal do detetive ganha importância, já que até Donald está casado. Ele ama Minnie mais do que tudo, mas o casamento o assusta. E uma caçada ao terrorista que massacrou um vilarejo cheio de inocentes também é algo que ele nunca esperou ter que fazer, a ponto dele não acreditar que seu velho inimigo, Mancha Negra, poderia fazer algo tão terrível. Quanto ao Mancha, um detalhe que sempre me irritou é a ausência de sua origem, igual a Maga Patológica e a K Ka. Don Rosa foi o ÚNICO roteirista que teve coragen de contar uma origem e olhem o resultado... a Saga do Tio Patinhas tem prêmios Will Eisner e é cultuada no mundo todo. Só por isso, pela coragem em quebrar uma tradição irritante da Disney, eu o considero um dos melhores de todos. Como obviamente não existe outro Don Rosa, não teremos a origem do Mancha... e já que faço questão de tentar entender as motivações de cada pessoa, decidi criar a minha versão. É oficial? Não... é plausível? Deixo vocês decidirem... mas até o nome "Mancha Negra" ganha um motivo... E como já é costume em minhas histórias, temos uma forte personagem feminina... Natasha Bykov está a caça do Mancha há muitos anos e tem um passado conturbado com ele. Bom, vamos os detalhes: - O Livro tem três atos ou três arcos que podem ser lidos individualmente, mas obviamente são interrelacionados. - O primeiro envolve Mickey na trama do Mancha Neural. - O segundo é a origem do Mancha Negra. - O terceiro conclui a caçada, onde o detetive juntamente com sua amada, decide parar seu inimigo não importa como.


O mais curioso é que enquanto escrevia o último capítulo, que eu considerava a conclusão, uma continuação se desenhou em minha mente. Já tenho o roteiro completo para o próximo livro, que acontecerá dois anos após os eventos do Mancha Neural. Nem vou prometer uma data, mas dos 25 capítulos roteirizados, já tenho 2 prontos. Então, imaginem que o Mancha Neural não é o fim... é apenas o começo de uma série que vai mexer com o universo dos Ratos. É isso. Espero de coração que você que está lendo esta linha, realmente goste de minha visão e que me faça o favor de comentar oque achou, por email, facebook ou mesmo um comentário no blog. Um grande abraço e vamos em frente. Daniel Alencar


Informações

Esta obra é direcionada para qualquer leitor que se interesse em ver os personagens de Walt Disney humanizados. O grande número de citações a obra de importantes autores, tenta enriquecer o contexto e manter a coerência dentro deste universo ficcional. Para compreender a maioria das citações, recomendamos a leitura das seguintes coleções: - Mickey Mouse Mystery Magazine - Darkenblot - o Mancha das Trevas Ambas disponíveis gratuitamente no site: http://www.gibiteca.com.br/


Prólogo Há 07 meses... A Armênia é um pequeno país entre a Ásia e a Europa, localizado em uma área montanhosa sem costa marítima, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, fazendo fronteira com a Turquia, a Geórgia e o Irã. Há alguns anos, era a menor das repúblicas da antiga URSS, mas hoje voltou a possuir o status de nação soberana. Sua pluralidade cultural e neutralidade política garantem acordos vantajosos, tanto com a Rússia quanto com a União Européia. Seu território é dividido em dez estados, sendo a província de Tavush a que possui a maior área rural. Diversos povoados que vivem da agricultura de subsistência estão espalhados pela região e a maioria das novidades tecnológicas passam longe de lá. O povo é conhecido por ser hospitaleiro e simpático com estrangeiros. Claro que é mais comum os turistas procurarem cidades maiores, como a capital Erevan, mas vez ou outra um deles se perdia na região mais isolada, onde a tranquilidade permeava o ambiente em sua totalidade. A primavera garantia o clima agradável e o sorriso nas pessoas, oque facilitava a recepção de qualquer visitante no povoado de Nord, ao sul da província de Tavush. A escassa quantidade de turistas que se aventuravam por lá transformava qualquer um deles em alguém a ser bajulado. A esperança dos moradores era que alguém bem tratado sempre iria indicar a única pousada existente para os amigos. E foi em uma tarde tranquila como qualquer outra, que um visitante entrou a pé pela rua principal do povoado, carregando uma pequena mala preta que aparentava ser bem pesada. Ninguém ousou perguntar quem ele era ou o quê fazia por lá, mas todo mundo fez questão de recepciona–lo com acenos, cumprimentos e sorrisos. Suas roupas eram típicas da região, o quê indicava que não era um europeu do oeste, e sua altura, pele clara e traços fortes lembravam um Ucraniano ou um Russo. E foi com esse pensamento que o senhor Mardirôs se aproximou do visitante. Mardirôs não tinha mais que quarenta anos e era proprietário de alguns pequenos comércios na cidade, e por já ter viajado bastante, além de sua língua nativa, o Armênio, ele conhecia razoavelmente bem o Russo. – Prostite tovarishch, vy vidite russkie? – perguntou, verificando se seria entendido.


– Da – foi a resposta com um sorriso. Mardirôs ficou aliviado e continuou alegremente: – Fico feliz camarada, assim será bem fácil conversarmos. Será que eu posso te ajudar em alguma coisa? – Talvez. Eu gostaria de um local confortável e limpo para descansar e um bom prato de comida – foi a resposta do forasteiro. – Que bom, que bom. Você vai adorar a pousada "Monte Ararat" que fica na segunda rua a direita, naquela direção – disse Mardirôs ainda sorrindo, ao mesmo tempo em que apontava para o local aonde ele deveria ir. – Obrigado camarada – respondeu o visitante, virando–se imediatamente na direção indicada. – Espere, espere. Meu nome é Mardirôs e se precisar de qualquer coisa, pode me procurar. Todo o povoado me conhece por que sou dono do armazém e de dois bares. – Obrigado, vou me lembrar disso – respondeu ele de costas. Em seguida, passou a andar rapidamente. – Mal educado, nem me disse seu nome – foi o pensamento de Mardirôs, olhando-o com uma ponta de desprezo a medida que se afastava. O forasteiro seguiu em silêncio e sem olhar para qualquer lugar até chegar à pousada. Era uma construção simples de alvenaria que não devia ter mais de dez quartos e uma área para refeição. – Perfeito – pensou ele ao passar pela porta. – Boa tarde – cumprimentou, em Russo, a recepcionista Adriné, que normalmente não tinha nada para fazer. – Muito boa. Mas que vai ficar melhor se você tiver um quarto vago e uma boa quantidade de comida – respondeu ele. – Claro, claro. O senhor quer um quarto para essa noite? – perguntou ela de forma atenciosa. – Por tempo indeterminado – foi a resposta, curta e seca. Adriné se espantou. Já era difícil aparecer alguém na pousada, quanto mais para ficar mais de uma noite.


– Imediatamente senhor – disse ela enquanto pegava a chave de um quarto e o livro de registro. – Aqui está a chave do quarto 103. A diária é de 5.000,00 Drams (pouco menos de 10,00 euros) com refeições inclusas. Por favor, preencha o livro de registro – disse totalmente animada. – Depois eu preencho, agora estou cansado. Espero que isso seja suficiente por enquanto – disse ele, colocando duas notas de 500 euros no balcão. – Claro, claro. Tudo que o senhor quiser – disse Adriné, sem acreditar ao ver tanto dinheiro. Sem emitir qualquer som, ele se virou e seguiu em direção ao quarto. A pressa de soltar a mala e relaxar não permitiram uma maior atenção na moça, que estava com os olhos brilhando. – Esse forasteiro deve ser muito rico, e pessoas ricas são excêntricas mesmo – foi o pensamento dela. Alguns passos depois, ele finalmente chegou a porta do quarto. Sem hesitar colocou a chave na maçaneta, girou e entrou. O quarto era extremamente simples, mas serviria ao seu propósito. Trancando a porta, a pesada mala foi colocada em cima de uma mesinha e antes de fazer qualquer coisa, ele a abriu e confirmou que tudo estava perfeitamente intacto. Algumas caixas pequenas com ampolas, equipamento médico, uma muda de roupa dobrada, carteira, telefone e diversos outros itens estavam acondicionados perfeitamente dentro da mala, que foi fechada em seguida. Sentindo-se mais tranquilo, o forasteiro seguiu até o pequeno banheiro, que continha uma toalha branca, limpa e felpuda. O cansaço dos últimos dias estava começando a se fazer presente e nada melhor que um banho para resolver isso. Com essa certeza, ele preparou–se para relaxar tomando um banho e em seguida sairia para comer. Alguns minutos depois, já embaixo da ducha quente, seu corpo começou a relaxar e ficar mais leve. Já sua mente não parava um instante de imaginar o quanto de trabalho o aguardava nos próximos dias. Aquele pequeno povoado afastado era perfeito para um primeiro teste. Ele tinha certeza que tudo daria certo, mas isso só poderia ser confirmado com um teste. E até aquele momento, não havia aparecido um local melhor.


Colocando o rosto diretamente em baixo do fluxo contínuo de água, teve um pensamento que o fez exibir um longo sorriso: – Finalmente...


Capítulo 01 – Lembranças Quinta-Feira, 20 de março, 14:27 Hoje Após o violento empuxo inicial, o seguinte levou de 300 a 700 km por hora em três segundos, e continuava acelerando sem parar. Nessa velocidade, em apenas um minuto ele estaria ultrapassando o limite da troposfera em direção ao seu objetivo. Mickey não tinha como saber a sua velocidade ou localização, mas ele conseguia sentir a inércia jogando–o violentamente para trás. A pressão era absurda, como se uma mão gigante o prendesse contra a parede. Essa sensação não era nada boa para seu corpo ferido. Segundo o médico que o salvou, era necessário ficar pelo menos um mês em repouso absoluto. Como se isso fosse possível. 750 km por hora, 800 km por hora, 850 km por hora. A velocidade não parava de subir, mas em seus pensamentos, Mickey sabia que não tinha escolha, de uma forma ou de outra isso iria acabar. Mesmo racionalmente sabendo disso, lembranças não paravam de fluir. Pessoas importantes, fatos antigos e recentes, casos interessantes ou mesmo detalhes insignificantes. Neste redemoinho mental, uma imagem se destacava. Um rosto que ele ansiava muito poder rever, mas que estava cada vez mais distante. Ele não tinha certeza se era realidade, mas aquele rosto estava bem na frente dele, com aquele sorriso delicioso e os olhos que permitiam ele esquecer de tudo. Estendendo o braço, ele tentava alcançar o rosto. Só isso importava, só isso desejava. – Minnie... – balbuciou no mesmo instante em que sua consciência começava a se esvair.


Há 04 meses... Naquela manhã de segunda–feira em Ratópolis, o sol havia saído cedo e a temperatura se elevado rapidamente, o que por si só é algo que impede algumas pessoas de ficar na cama até mais tarde. Com o tempo quente, a vontade de levantar, arrumar as coisas, resolver pendências ou apenas passear se faz presente em uma boa parcela da população. A cidade de Ratópolis não chegava a ser uma metrópole, mas possuía um tamanho bem razoável, com diversos centros de negócios. A área residencial podia ser acessada por carro ou trem, opções mais usuais no dia a dia. Ultimamente muitos habitantes passaram a trabalhar em Nova Patópolis, preenchendo as vagas que eram abertas continuamente no setor turístico, hoteleiro e de serviços. A distancia entre as duas cidades era menos de trinta quilômetros, vencidos por carro ou coletivos fretados, que não gastavam mais de vinte minutos entre cada viagem. A Rua das Petúnias era apenas mais uma das tantas existentes no bairro “Monte Branco”, que estava localizado a cerca de oito quilômetros do centro. Por ser estritamente residencial, na maior parte das vezes, ficava vazia durante o dia. Uma exceção era o morador do número 380, que só não se fazia presente em duas situações, quando trabalhava fora da cidade ou quando estava com sua namorada. Nesse exato instante, Mickey levantou–se da cadeira após degustar seu desjejum: café puro, pão com queijo e um iogurte. Para ele não existia maneira melhor de começar o dia, e agora ele poderia ir até a sala decidir o que fazer. A sala de Mickey não possuía muita coisa e ele preferia assim, para facilitar a limpeza. Um sofá marrom de três lugares, uma estante média onde ficavam um aparelho de televisão, DVD´s e livros, uma mesinha ao lado do sofá com um abajur e uma mesinha de centro onde ele deixava as fotos de seus amigos e pessoas que valiam a pena serem recordadas. Esparramando-se no sofá, era impossível não olhar as fotos, um ritual que não incomodava Mickey nem um pouco. Ele adorava rever os rostos das pessoas estampadas em suas lembranças. As mais queridas não envolvem casos ou aventuras, e sim, seus únicos e insubstituíveis amigos.


Minnie ocupava um local de destaque quase no centro da mesa, e Pateta aparece em uma foto juntamente com ele durante uma viagem. Outra tirada pelo Coronel Cintra incluí-a Mickey com Minnie, Pateta, Horácio e Clarabela. Além delas, uma foto de seu grande amigo Donald junto com os três sobrinhos e a irmã é uma das mais lembradas. Foi tirada durante as férias em Patópolis, onde Mickey hospedou-se na casa dele. Outra mais recente é do dia do casamento de Donald e Karen, que formam na opinião de Mickey um belo casal. A única parte negativa no casamento de Donald foi descobrir que sua querida amiga Karen havia perdido a memória em um acidente e não se recordava dele. Mas saber que ela estava feliz com Donald o deixou muito bem. Não fazia muito tempo, ele recebera um telefonema de Donald informando que Karen estava grávida. A notícia o pegou de surpresa, mas a felicidade que ele sentiu ultrapassou e muito qualquer outra sensação. Ele desejava, de coração, que Donald e Karen formassem uma grande e feliz familia. – Karen, Karen, quem diria... – pensou Mickey sorrindo. – Aquela patinha petulante e valente casada com meu mais velho amigo. O mundo é realmente muito pequeno. Diversas lembranças agradáveis (e outras nem tanto) sempre voltavam a tona quando Mickey pensava em Karen. O tempo que ela se hospedou em sua casa para ser treinada ainda estava bem vivo em sua memória, mesmo depois de tantos anos. Sem nem perceber, Mickey virou o olhar e viu a foto do seu velho amigo de faculdade, Sonny Mitchel. Seu pensamento imediatamente saiu de Karen e foi para Anderville. – Anderville, a cidade mais corrupta que já vi – foi seu pensamento, com lembranças intensas e não tão boas. Mickey foi a Anderville ao herdar uma agência de detetives do seu amigo Sonny. Ao chegar lá, diversos acontecimentos o obrigaram a permanecer mais tempo do quê ele gostaria. – Claro que um tiroteio na estação central, com o assassino Rud Kaminski era motivo mais do que suficiente para a polícia ficar em cima de mim, mas o detetive Clayton exagerava – pensou ele. Sem querer, Mickey se envolveu com os poderosos da cidade. Da primeira tentativa de assassinato até o envolvimento de policiais corruptos como Stellhammer, ele imigrou ilegalmente para o México, se envolveu com o FBI e tantas coisas mais.


Claro que um dos itens que mais o traumatizou foi quando ele virou testemunha chave do julgamento de um senador corrupto. A partir daí, a quantidade de atentados a sua vida bateu um recorde. Bombas, atiradores e até um helicóptero militar, todos querendo receber a gorda recompensa pela sua cabeça. E para completar, no dia que finalmente sairia de lá, a bordo do expresso Black Mask, um novo assassino quase explodiu sua cabeça com um projetil diferente de tudo que ele já havia visto. – Deixa pra lá – foi o último pensamento sobre esse assunto, após lembrar a quantidade de vezes que imaginou que nunca mais voltaria a Ratópolis e nem veria mais a Minnie. Desviando os olhos para a direita, uma outra foto exibia a sua equipe da época da P.I. (Polícia Internacional), onde ele pode conhecer diversos locais e agentes de segurança do mundo todo. Curiosamente, ninguém na P.I. entendeu o motivo do seu pedido de exoneração. Para eles, era incompreensível que um agente tão competente não desejasse seguir carreira em um local tão cobiçado. – Eles nunca entenderiam – pensou consigo mesmo. Ser policial era algo que Mickey havia jurado a si mesmo, desde os tempos do colégio, que nunca aconteceria. Seus motivos eram muito íntimos para serem compreendidos. As outras três fotos mostravam pessoas que lhe traziam boas lembranças, como o bizarro Mox Mulder da divisão secreta do FBI chamada Arquivos Z, o repórter Belga Tintão e seu cachorrinho Bilu e o trio de policias que ele conhecera em Las Vegas, Rick Stoken, Dil Drissom e Cathetine Millows. A última foto do canto era a mais recente, mostrando Zark, Bernard e Roxette, o grupo que ele conhecera em Avangard City, conhecida como "A Cidade dos Robôs". Foi lá que Mickey descobriu e desmantelou um esquema de sequestro e chantagem bilionária perpetrada pelo seu mais antigo inimigo, o bandido que ele conhece apenas como "Mancha Negra". O Mancha havia criado um Exoesqueleto nomeado como "DarkenBlot" que não estava submisso as três leis da Robótica, e com ele, sequestrou o prefeito e dezenas de chefes de estado, que só seriam soltos mediante o pagamento de um resgate astronômico. Após muitos percalços, o DarkenBlot foi destruido e o Mancha preso na prisão de segurança máxima em Avangard City, ficando a espera do julgamento. Mickey imaginava que após sequestrar tantos políticos e milionários, o Mancha seria preso e a chave seria jogada fora.


– Faz tanto tempo que não resolvo um caso de verdade – foi seu pensamento melancólico, ao mesmo tempo em que continuava olhando as fotos. – Mas é melhor aproveitar o sossego, vai saber até quando vai durar – concluiu. Mickey só não poderia imaginar que este sossego não duraria muito mais tempo. Com esse último pensamento, ele sentou–se em sua poltrona favorita, ligou a televisão e começou a mudar os canais de forma aleatória. A medida que mudava os canais, sem encontrar nada realmente interessante, ele recordava o último final de semana. No dia anterior, uma pizza com Pateta o deixara com ânimo de começar a semana, pois a conversa com seu velho amigo o animara consideravelmente. Já no sábado, um jantar a luz de velas na casa de Minnie. Muito romantismo e uma noite dormindo abraçado com ela compensou o cansaço da semana inteira. Mickey as vezes se perguntava se não estava se aproximando da hora dele casar e ter uma família, igual ao Donald. Pensando nisso, sem nem perceber, o canal por onde ele havia acabado de passar chamou sua atenção. Só deu tempo de ler a frase que passava em baixo da imagem do repórter: "...encontrados mortos...". Mais que rapidamente, Mickey voltou um canal e parou no Duck News, canal de Nova Patópolis com notícias 24 horas. Mickey leu a sinopse da notícia que era exibida continuamente, ao mesmo tempo em que o repórter tentava claramente falar com uma autoridade e era ignorado. "Massacre sem explicação em pequeno vilarejo. Todos os habitantes encontrados mortos sem qualquer sinal de violência". Após alguns segundos sendo ignorado, o repórter se voltou para a câmera e recomeçou a falar: – É isso mesmo Bill! Infelizmente as autoridades se recusam a comentar ou especular qualquer motivo que possa ter causado a morte de cerca de duzentas e trinta pessoas, todas sem qualquer marca de violência. – Está sendo cogitando ataque químico ou biológico, Leonard? – ouviu–se a voz do âncora da emissora ao fundo. – Oficialmente não, Bill. Os corpos foram encontrados em casa, na rua, na escola, como se tivessem morrido onde estavam, sem procurar ajuda ou reagir. Pelo que notei, as pessoas próximas daqui estão muito assustadas. – Imagino Leonard. Por enquanto obrigado. Agora vamos voltar aos estúdios e retornaremos com você a qualquer momento.


– Tudo bem Bill. Aqui fala Leonard Oliver direto da Armênia, próximo ao povoado de Nord, onde um inexplicável massacre... Mickey desligou. Esse assunto o incomodou imensamente. – Mais de 200 mortos sem explicação? Meu Deus... – Pensou enquanto se levantava para ir até a cozinha pegar algo para beber. Ao mesmo tempo, a milhares de quilômetros de distância, o fim da tarde seguia seu ritmo normal na Armênia, mais precisamente na pequena cidade de Spitak, ao norte da província de Lorri. As pessoas seguiam suas vidas normalmente sem saber do massacre que vitimou seus compatriotas. O que estava chamando a atenção de um pequeno grupo de idosos sentados nos bancos de uma praça, era um forasteiro que caminhava pela avenida principal. Ele era alto, tinha a pele clara e parecia um Russo. Apesar de que a pequena mala preta que ele carregava não parecia com nada que eles já tinham visto. Com uma expressão aparentemente fechada, ele seguia a passos firmes em direção ao pequeno e único hotel da cidade. Os idosos ficaram tranquilos, pois era costume receber muito bem os visitantes e o forasteiro logo se sentiria em casa. Claro que essa tranquilidade desapareceria em um átimo se eles desconfiassem dos motivos que o levara até a cidadezinha. Sentimentos intensos atormentavam aquele homem no exato momento em que o seu local de destino se aproximava. Em seu íntimo, o forasteiro se culpava. Ele acreditava que já tinha controlado o processo e por isso realizou um teste em larga escala. Com pensamentos nebulosos e palavrões terríveis, ele tentava se acalmar e pensar em como corrigir o que tinha dado errado. Sua única certeza era que nada ou ninguém o pararia.


Capítulo 02 – Assassinos Quinta-Feira, 20 de março, 14:28 Hoje "Não importa o que aconteça eu sempre te amarei" Belas palavras, um pouco piegas é verdade, mas foram ditas com total sinceridade durante um abraço apertado e uma lágrima contida. Mickey sempre se recordava dessas palavras. Por pior que estivesse sua situação, a certeza de rever Minnie funcionava como o maior dos incentivos. E foi esse incentivo que o manteve consciente. Relembrar o rosto de sua amada o manteve acordado, mesmo quando seu corpo quase desistia. 900 km por hora. Nesse instante, a taxa de aceleração estava caindo, permitindo que ele retomasse o equilibrio e desencostasse da parede, arriscando um passo em direção a porta da cabine. – Eu vou pará-lo Minnie... – balbuciou. "Não importa o que aconteça..." . A concentração estava difícil de ser alcançada, mas a força de vontade falava mais alto a cada pensamento. – Eu vou pará-lo Minnie... para salvar você... “...eu sempre te amarei”. E com essas palavras, ele conseguiu terminar o primeiro passo.


Segunda-Feira, 17 de fevereiro, 07:32, em algum lugar no estado da Virgínia... A fumaça dos cigarros fumados em sequência permeava todo o ambiente daquela sala fechada. A decoração sóbria, com uma mesa e duas cadeiras, um computador e um arquivo de metal, não era nada parecido com um lar. Mas era o que havia sido para este homem nos últimos dias. A tensão e ansiedade pela qual esta pessoa passava, que motivava este comportamento anormal de fumar o dia todo, algo obviamente prejudicial e incômodo, não podia ser explicada racionalmente. Aquela pessoa já presenciara muitas coisas ruins, e com isso havia adquirido uma certa intuição. E era esta voz interior que se negava a aceitar que estes eventos não tinham qualquer ligação, apesar de serem aparentemente aleatórios. Mas felizmente os ouvidos certos o escutaram e decidiram realizar os testes, mesmo não entendendo bem oque ele esperava encontrar. Após quinze minutos e três novos cigarros apagados, uma batida na porta o trouxe subitamente para o momento presente. – Com licença senhor – foi a frase dita, com todo o respeito, pelo agente que adentrara a sala. – A vontade – respondeu, esperando de coração que esta interrupção fosse motivada por algo importante. – Mandaram entregar este envelope para o senhor. Disseram que é a resposta que estava aguardando. – se apressou em dizer o rapaz, enquanto estendia o item tão esperado. – Finalmente – foi a única palavra sussurrada, ao mesmo tempo em que pegava o documento e o abria rapidamente. Nestes poucos segundos antes de visualizar o conteúdo, ele não sabia se desejava que sua intuição estivesse certa ou errada. Mas em questão de segundos, a terrível confirmação havia sido lida. – Maldição – sussurrou para si mesmo. – Senhor? Posso ir? – perguntou o rapaz meio sem jeito, já que não havia sido liberado. E o cheiro de fumaça o estava perturbando.


Não houve resposta. – Senhor? – Ah sim. Preciso que me faça um favor – respondeu o homem ao mesmo tempo em que acendia outro cigarro e pegava um bloco de notas. – Ligue para o agente Smith e mande-o retornar para cá. Diga-lhe que é um código Ômega. – falou apressadamente enquanto escrevia no papel. – Sim, senhor. Mais alguma coisa? – falou o garoto, sem ter a mínima idéia do que era um código Ômega. – Sim. Vá ao arquivo e traga–me as pastas dessas pessoas – concluiu o homem, dando uma longa baforada e entregando o papel para o rapaz. – Sim senhor, agora mesmo senhor – respondeu apressadamente enquanto saía da sala, procurando um pouco de ar fresco. Após uma outra longa baforada, o único ocupante da sala apagou o cigarro em um cinzeiro lotado, para em seguida se levantar e andar nervosamente em volta de sua mesa. – Sim, só pode ser ele. Mas desta vez, este maníaco foi longe demais. – era seu pensamento ao mesmo tempo em que pegava outro cigarro. – Você terá sua chance garota, mas não irá sozinha – concluiu seu raciocínio enquanto acendia o cigarro e imaginava o quanto demoraria para o agente junior trazer as pastas. O agente especial Anderson da CIA estava com um grande problema nas mãos, mas após pensar muito, sabia exatamente a quem repassa–lo. Neste instante o agente Ethan, que era como um estagiário, chegava aos arquivos. – Deixe ver – pensou ele enquanto lia o papel – preciso pegar as fichas de... – Ivanov... Bykov... e... hum? Mouse, Mickey? Quem diabos é esse? Mas não cabia ao rapaz questionar um superior, então mesmo intrigado, ele simplesmente foi procurar as pastas requisitadas.

Segunda-Feira, 17 de fevereiro, 10:45 - Ratópolis... O dia havia amanhecido há pouco mais de três horas naquela segunda-feira. O bairro silencioso e a rua vazia completavam o cenário de tranquilidade.


Após engolir uma xícara de café, o detetive sentou em sua poltrona e ligou a televisão baixinho só para fazer barulho. Sua atenção estava em uma revista de pesca, já que ultimamente o Coronel Cintra o convidava, esporadicamente, para um passeio de barco. Sem querer pensar muito, decidiu sair para almoçar fora, e o tempo ensolarado o motivou a ir até a sua lanchonete favorita para degustar um de seus deliciosos sanduiches com batatas fritas. Quase saindo de casa, andou em direção a televisão para desliga-la, mas não foi rápido o suficiente para deixar de ouvir a seguinte noticia: – O assassino do industrial Epo Luimuito foi preso no inicio da manhã em um armazém perto do porto. Sem oferecer qualquer resistência, os policiais o encontraram em estado quase catatônico. Já na delegacia, temos noticias de que ele não disse uma palavra... – Como tem louco nesse mundo hoje em dia – pensou Mickey no instante em que desligava a televisão. Já fora de casa, um rápido aceno para o vizinho o fez esquecer completamente o que tinha acabado de ouvir. Sem qualquer pressa, entrou na garagem, deu ignição no carro e habilmente saiu de ré, seguindo ao seu destino. Um pouco antes de chegar na lanchonete, ele começou a relembrar das vezes em que levou Karen até lá. O fato de quatro lanches caberem naquele corpo magricelo era algo a ser analisado com cuidado. Com um sorriso, pensou nas diversas encrencas que aquela patinha espevitada havia causado em sua vida no pouco tempo em que a hospedou. Sem contar as inúmeras discussões. Infelizmente ao lembrar–se dela, um sentimento de culpa também retornava. Ele a expôs e foi obrigado a fazer algo que tinha jurado nunca fazer. – Foi necessário – era o pensamento recorrente que o fazia sentir–se melhor. Novamente o agradável dia ensolarado preencheu seu pensamento e fez desvanecer esta sensação ruim. Chegando na lanchonete, Mickey estacionou na lateral direita, decidido a comer com calma dentro do estabelecimento, já que sempre que tinha um caso para resolver, preferia comprar no drive–thru para depois comer no próprio carro, muitas vezes em movimento.


– Mickey, que prazer revê-lo! – Disse uma das garçonetes em alto e bom som no momento em que ele entrou. – Obrigado – respondeu timidamente após notar que várias pessoas olharam para ele. O detetive não estava acostumado a ser alvo de tão caloroso cumprimento, possivelmente a garota estava de ótimo humor. – Sente, sente. Já vou te atender. Tenho certeza que você está com a vida tranquila, já que se deu ao trabalho de entrar – concluiu a moça sorrindo. Ela carregava uma bandeja cheia de lanches e estava vestida toda de branco, com uma blusinha e saia curta, meias e sapatos pretos. Mickey simplesmente concordou com a cabeça e dirigiu–se a mesa mais próxima, pois queria parar de chamar a atenção. Muitos dos presentes o conheciam pela televisão, normalmente prendendo bandidos, mas sua fama de reservado e mal humorado fazia as pessoas terem um certo receio de aborda–lo. Claro que isso não impediu a feliz atendente: – Então senhor Sherlock Holmes de Ratópolis, o que posso trazer para aplacar sua fome? – perguntou ao mesmo tempo em que abria o bloco de pedidos. Mickey sabia que ela não estava sendo irônica, havia realmente admiração naquelas palavras, então ele se limitou a sorrir discretamente ao pedir: – O número três completo com fritas e uma coca-cola com limão no copo. – Uau, belo pedido. É pra já, meu querido cliente faminto. – disse ela espantada, saindo rapidamente em seguida. – Garotas... Complicadas de conviver, mas não vivemos sem elas – pensou com um sorriso. A televisão do local estava ligada em um programa de esportes, o que diminuia totalmente seu interessa. Ele usaria seu tempo para refletir sobre coisas mais importantes. Mas não houve tanto tempo assim, o lanche foi trazido em menos de cinco minutos, o que só poderia significar que passaram seu pedido na frente. – Aqui está, querido – falou a moça ao colocar o prato na mesa. – Sei que você está faminto, então dei um jeito de ser rapidinho – concluiu com uma piscada. – Obrigado – respondeu levemente encabulado.


Não era hora de pensar, apenas aproveitar aquela delícia enquanto estava quente. Cerca de quinze minutos depois, o super churrasco da casa, com maionese e fritas, já havia sido devorado. Agora só restava esperar a sensação de saciedade diminuir um pouco, afinal, ele não abria mão de uma sobremesa. Sem mais nada para fazer, ficou em silêncio, e nesse instante, o som da televisão invadiu seus ouvidos. – Um tiroteio na sede do banco Paralax na África do Sul terminou com ao menos uma pessoa morta. Um assassino, disfarçado de cliente, sacou uma pequena arma da valise e a descarregou no presidente da instituição que estava em um evento, ministrando uma palestra no auditório... – Mais noticias tristes – pensou Mickey ao mesmo tempo em que desistia da sobremesa – Será que não há local onde eu possa ficar em paz por algum tempo? – se perguntava, enquanto se dirigia ao caixa. Após pagar a conta, com uma respiração funda e uma esticada de braços, sentiu– se animado para retomar seu caminho e suas pequenas obrigações. – Volte sempre Sherlock – despediu–se a garçonete ao vê-lo andando em direção a porta. Um leve aceno, juntamente com um sorriso sincero foi a resposta. Saindo da lanchonete, seu pensamento já se encontrava em outro local. Mais precisamente em outra pessoa, Minnie, sua primeira namorada e se tudo corresse bem, sua futura esposa. Todas as dezenas de situações, boas e ruins, pelas quais eles já haviam passado, só serviram para uni-los cada vez mais. Até mesmo aquela vez, há pouco mais de dois anos, onde ele tinha certeza de que nenhum dos dois escaparia com vida. Com a cabeça longe, ligou o radio para tentar sintonizar uma música. No momento que girava vagarosamente o dial, uma noticia estava sendo veiculada em uma das estações: – O assassino do empresário londrino... Sem se dar conta do que estava sendo anunciado, mudou a estação e encontrou uma música agradável e tranquila. Ainda pensando em Minnie ele se perguntava por quanto tempo conseguiria “enrola-la”. Afinal, após ela descobrir que Donald havia se casado, esse assunto tornou-se muito frequente no dia a dia de ambos. Não que ele achasse que o casamento fosse uma coisa ruim, só imaginava que não estava pronto para um compromisso deste porte.


Mickey gastou o resto da tarde em diversos afazeres domésticos. Passou no mercado, no local que comprava galões de água, na padaria, na doceria, abasteceu o carro e finalizou na banca de jornais. Ao entrar, a seguinte manchete do jornal estampava a página principal: "O Assassinato do maior acionista da Petrolífera..." Por algum motivo, ele não leu o final da notícia e preferiu voltar para casa, onde teria que limpar algumas coisas, lavar um pouco de roupa e mexer no seu jardim, e sem nem notar, o dia acabaria tranquilamente. A noite, Mickey aprontava-se para dormir, pois como só veria Minnie na noite do dia seguinte, não havia muitos motivos que o mantivessem acordado depois das 22:00 hs. Ao sair da sala para pegar um copo de agua, a televisão estava exibindo um programa de entrevistas. Retornando, a programação fora interrompida por uma noticia de última hora: – O Senador Altair Johnson foi baleado... Antes da frase terminar, Mickey desligou o aparelho sem se dar conta da importância da noticia. Seguindo para o quarto, imaginou novamente quando seus serviços seriam necessários e quando ele teria um novo caso para resolver. Ironicamente, ele não havia percebido que seu próximo caso estava se delineando bem na sua frente e em apenas alguns dias ele seria muito requisitado. Ao mesmo tempo em que Mickey adormecia, muito longe de Ratópolis, uma pessoa estava completamente acordada. Os últimos acontecimentos o deixaram extremamente animado. Esse homem sintonizava diversos canais, de várias partes do mundo, para acompanhar os resultados de seu trabalho dos últimos meses. Cada morte anunciada era mais um passo em direção ao novo mundo que ele criaria. – Finalmente, finalmente – dizia ele em voz alta – Após tantas interrupções está dando tudo certo – continuava falando ao mesmo tempo em que enchia uma taça de vinho. Bebendo rapidamente, ele permitiu-se um pensamento feliz:


– Dessa vez nada e nem ninguém vai me parar. Até mesmo aquele maldito rato intrometido não saberá o que o atingiu. Só preciso dar um jeito no incômodo que já está na minha pista há um bom tempo. Após terminar sua bebida, ele soltou uma gargalhada sinistra e alta o suficiente para abafar o som da televisão.


Capítulo 03 – CIA Quinta-Feira, 20 de março, 14:29 Hoje – Eu sei, eu sei... Devia ter te ouvido... aposto que você vai me falar isso durante anos após nosso reencontro – pensava ele, com um leve sorriso no rosto. Há alguns segundos, Mickey percebera que essa pequena conversa interna o ajudava a manter o foco. Mais um passo. – Eu não me recuperei totalmente... Eu sei... Sei que quase morri há alguns dias... E sei que você me salvou... Mais um passo. – Quando estivermos velhinhos, vamos nos lembrar desses dias... E rir... De como um teimoso cabeça dura se esforçou para vivermos até a velhice... Mais um passo. – Mas te conhecendo, sei que você dirá que me arrisquei muito... E terá razão... Estou arriscando tudo... por você... Mais um passo. – Mas o quê posso fazer? A única coisa que me vem a mente é te manter segura... Não posso permitir que algo de ruim te aconteça... Mais um passo. – Por isso, tenha certeza... Por você eu faria tudo... Iria até o fim... E sacrificaria minha vida sem hesitar... Mais um passo. 950 km por hora.


Sexta-Feira, 21 de fevereiro... Aquela sexta–feira iniciou muito antes do que era esperado, já que por volta das sete da manhã, quando o sol ainda não havia despontado, o toque insistente do telefone fez Mickey levantar com uma pontinha de mau humor. – Droga! – pensava Mickey ao mesmo tempo em que ia atender – ainda aprendo a tirar essa porcaria do gancho. – concluiu ele, pegando o fone. – Mickey, desculpe ligar tão cedo, mas poderia vir para cá imediatamente? – foi o que ouviu um instante após encostar o fone na orelha. A voz rouca e inconfundível do Coronel Cintra não soava muito feliz naquele momento. – Sim, mas... – Obrigado, sabia que podia contar com você. – finalizou o Coronel, desligando em seguida. Antes de conseguir falar qualquer coisa, o tom de ocupado do telefone deixou Mickey atônico. Associado ao sono que ainda sentia, permaneceu parado e olhando o vazio por alguns momentos. Após cerca de três minutos conseguiu raciocinar e decidiu trocar–se para ir a delegacia. Apesar da palavra “imediatamente”, demorou quase uma hora para ele entrar na delegacia central de Ratópolis. Incredulidade, sono e mau humor se juntaram para dificultar o banho, a escolha de roupas, o café engolido e os dez quilômetros vencidos com o carro. Sua má vontade só não era maior por que ele estava curioso pelo motivo desse chamado. – Fala aí nanico – cumprimentou o Tenente Joca, cruzando com ele na entrada – O que esta fazendo por aqui essa hora? Caiu da cama? Ou nem dormiu? – Ainda não sei, mas pretendo descobrir em breve – respondeu Mickey sem dar muitos detalhes, pois sabia que Joca o bombardearia com perguntas se soubesse qualquer coisa. Após mais alguns minutos, viu a distância o Coronel pegando um café na maquina expressa. – Ótimo – pensou ele, imaginando que assim pouparia o tempo de ser anunciado. Em seguida dirigiu-se rapidamente para onde o bom e velho Cintra estava. – Bom dia Coronel, me paga um café também? – perguntou da forma mais amigável possível, não deixando transparecer sua contrariedade por estar lá naquele instante. – Mickey meu amigo, pago o que você quiser, mas não agora. Quem mandou te chamar está lhe esperando há muito tempo – respondeu o Coronel em um tom


aliviado – Você pode ir até a sala onde o esperam que eu mando servir um café, rosquinhas e o que mais você quiser – concluiu com um sorriso. – Como assim, “mandaram me chamar”? – respondeu Mickey, mais surpreso ainda. – Tudo a seu tempo, tudo a seu tempo. No momento basta que você vá até aquela sala – disse o Coronel de forma enfática, apontando para um local que estava com as persianas abaixadas. Em seguida se afastou rapidamente. Ainda sem acreditar muito, Mickey foi em direção a sala indicada. Para um detetive, os mistérios costumam só aparecer depois, e não no momento da convocação. Mas o fato de saber que não era o Coronel que havia lhe tirado da cama o deixava mais tranquilo. Conforme pede a boa educação, ele bateu na porta e aguardou autorização pra entrar. Como não houve qualquer resposta, um minuto depois ele abriu a porta vagarosamente ao mesmo tempo em que falava: – Com licença... – A vontade – foi a única coisa dita por uma das pessoas que estavam lá dentro. Sendo um bom observador e especialista em leitura corporal, Mickey rapidamente analisou todos os ocupantes da sala: dois homens sentados, vestindo impecáveis ternos pretos e um cinzeiro em cima da mesa com mais de doze bitucas, uma jarra de água pela metade, quatro xícaras de café, algumas pastas e um olhar levemente impaciente. Além dos dois, cuja única diferença visível era o cabelo, que era grisalho em um e castanho escuro no outro, uma mulher encostada na parede com longos cabelos negros e dois olhos verdes que o fitaram imediatamente. A roupa dela indicava claramente que não era da mesma equipe dos dois homens, pois ele só via um longo casaco marrom, fechado e amarrado na cintura. – Sente–se senhor Mickey Mouse – disse o homem de cabelo castanho, apontando para uma cadeira – Nós estávamos te aguardando há varias horas. – Desculpe a demora, mas eu não costumo funcionar muito bem pela manhã. – Foi a resposta, levemente constrangida. – Tudo bem, foi só um comentário. – Disse ele ao perceber o constrangimento de Mickey. – Bom, agora estou aqui. Em que posso ajudar? – respondeu o detetive tentando disfarçar uma grande curiosidade. – Sr. Mickey, permita-me que eu nos apresente, sou o agente Smith e meu colega é o agente Anderson, ambos do setor de contraterrorismo da CIA – falou rapidamente o de cabelo castanho. O de cabelo grisalho não abrira a boca até então.


– Muito prazer – disse ele, acenando levemente com a cabeça. Com certeza o agente Smith era o subalterno do que estava calado. E o fato da mulher não ser apresentada comprovava que a mesma não fazia parte da equipe. – Serei direto, senhor Mickey. Recentemente, uma questão de segurança nacional chegou a nosso conhecimento e acreditamos firmemente que o senhor poderá ser de grande valia para resolver este problema – disse rapidamente o agente Smith. – EU? – respondeu Mickey com surpresa. – Creio que os senhores estão mal informados ou me superestimando. Sou apenas um detetive de cidade pequena que... – Senhor Mickey – respondeu o agente Smith, fazendo um sinal para que ele se calasse. Ao mesmo tempo, abriu uma das pastas que estava na sua frente. – Nós não estaríamos aqui se não estivéssemos totalmente informados sobre seu currículo. – disse Smith com firmeza. – Após centenas de casos resolvidos aqui em Ratópolis, o senhor ajudou a polícia de ao menos quinze estados e de mais diversos países. – Sim, mas são casos simples de roubos, assassinatos, extorsões. Algo nem próximo do que se deve esperar de um agente de contraterrorismo – argumentou Mickey. – É óbvio que o senhor se subestima. O caso Laswell em Anderville o tornou uma celebridade nos meios legais. Imaginava que o senhor estava ciente disso – respondeu Smith de forma impassível. – Eu dei algumas entrevistas é claro, mas um senador corrupto não é um terrorista fanático que decidiu explodir uma escola. Eu não tenho qualquer experiência com esse tipo de maluco – replicou Mickey, realmente incomodado com a conversa. – Senhor Mouse, creio que deveria deixar o agente Smith terminar – falou pela primeira vez o agente Anderson. Seu tom frio indicava que ele estava acostumado a ser obedecido. – Tudo bem, eu vou ouvir atentamente – resignou–se o detetive. – Obrigado – comentou Smith. – Duas coisas nos dão a certeza de que o senhor será imprescindível nesse caso e uma delas foi o seu sucesso em Avangard City. Mickey travou. Ele lembrava como se fosse ontem do Mancha Negra, o sequestro dos políticos e ricaços, o ataque do Darkenblot e toda a loucura que foi conseguir sair vivo de lá.


– Sabemos que o senhor libertou o Marajá do Longistão, o príncipe regente de Mônaco e até o vice-presidente. A segunda coisa é seu grande conhecimento sobre o criminoso conhecido como Mancha Negra. Agora Mickey congelou. Só havia um motivo para terem falado sobre isso. – Mas até onde sei, o Mancha está na penitenciária de segurança máxima de Avangard City. Ou não? – perguntou, já sabendo a terrível resposta. – O senhor é bom – falou Smith espantado. – Creio que já entendeu todo o problema. O criminoso, conhecido como Mancha Negra, escapou da prisão após algo invadir o local, causando uma pane geral nos sistemas elétricos que desligou a energia, câmeras e celas. – Impressionante – murmurou Mickey. – Perdão? – Impressionante como não conseguimos segurar o Mancha. Por mais que tentem, ele sempre escapa – concluiu com um suspiro. – Sim, e por isso precisamos de sua ajuda. – Mas o Mancha sempre foi um ladrão, o que aconteceu que chamou a atenção da CIA e do departamento de Estado? – questionou o detetive, com uma curiosidade genuína. – Pode deixar que essa parte eu digo a ele, Smith – falou finalmente o agente Anderson. – Sim senhor. – Senhor Mickey Mouse, o quê vou lhe contar agora é de conhecimento de apenas meia dúzia de integrantes dos serviços de inteligência e creio que não preciso lhe dizer que é estritamente confidencial – começou Anderson. – Claro senhor – respondeu Mickey. – Creio que o senhor deve acompanhar os noticiários e possivelmente lembra-se de algo assustador que aconteceu alguns meses atrás. O pequeno povoado de Nord na Armênia, onde mais de duzentas pessoas foram encontradas mortas sem qualquer sinal de violência ou explicação – disse Anderson, pigarreando enquanto acendia outro cigarro. – Sim, me recordo – respondeu Mickey tentando não transparecer o quanto odiava o cheiro de cigarro.


– A única parte da notícia divulgada foi essa. Mas é claro que o medo de algum ataque químico ou biológico fez os serviços de inteligência do mundo todo tentarem encontrar a resposta do que havia acontecido. Uma força tarefa internacional recebeu a missão de definir o motivo exato das mortes – continuou ele, pausando apenas para baforar rapidamente. Mickey acenava a cabeça e continuava ouvindo atentamente. – O resultado foi decepcionante. Não foi possível determinar a causa mortis, nada em qualquer corpo indicava o motivo exato que teria causado o óbito. Na realidade, a única coisa estranha era um pequeno detalhe, que de tão pequeno, a maioria dos legistas não percebeu e só levaram a sério quando notaram isso em todos os corpos. – Uma pequena mancha escura de meio centímetro no cortéx cerebral das vítimas. Uma mancha que ninguém conseguiu explicar a origem ou o motivo de estar lá, mas que por si só, independente do que fosse, não poderia ter matado aquelas pessoas. – concluiu Anderson, com olhar pensativo. – Bom, admito que é um mistério bem grande, mas o fato de uma pequena mancha estar na cabeça das pessoas, não indica qualquer vínculo com o Mancha Negra. Mesmo por que, ele nunca foi um assassino. Lembro-me até hoje que no nosso primeiro encontro, ele tentou de todas as formas me afastar, mas como não o fiz, ele montou uma armadilha para me matar e não conseguiu assistir isso, o que me permitiu fugir. – comentou Mickey, imaginando que o pessoal da CIA era muito paranóico para o gosto dele. – Exato senhor Mouse. Isso por si só não indica nada. Mas vamos avançar no tempo e ver algumas manchetes mais recentes. – disse Anderson, retirando alguns recortes de jornais de uma das pastas e espalhando na mesa. “Industrial Epo Luimuito assassinado essa manhã” “Presidente do banco Paralax morto por alguém disfarçado de cliente” “Empresário Ted Mawson morto enquanto andava no parque” “Senador Altair Johnson baleado em visita a escola” “Prefeito de Bogotá morto em atentado” Foram as manchetes que ele leu rapidamente. As demais, Mickey não considerou necessário, pois não via qualquer vínculo nessas situações espalhadas pelo mundo. – O que o senhor acha? – perguntou Anderson interessado. – Com o que eu sei até o momento, não acho nada – respondeu Mickey secamente.


– Muito bom. Vamos ver se muda de opinião quando eu te contar mais quatro detalhes – disse Anderson sorrindo, ao mesmo tempo em que amassava a bituca no cinzeiro. – Primeiro, todos os assassinos destes eventos foram capturados e são de origem do leste Europeu. Não podemos comprovar exatamente de onde, já que todos tinham documentos falsos, apesar de que um especialista em linguística da CIA imagina que pelo sotaque, sejam ucranianos. Isso demonstra que uma única pessoa os contratou ou financiou. – Segundo, todos os assassinos estão em choque, sem falar coisa com coisa, como se tivessem sofrido uma lobotomia. – Terceiro, um dos assassinos morreu na prisão, gritando por alguns minutos com uma intensa dor de cabeça. A autópsia não revelou nada, nem AVC, sangramento ou tumor. Ele tinha apenas uma pequena mancha negra no córtex frontal. Mickey começou a sentir um leve arrepio na coluna quando ouviu isso. – E finalmente, após ser informado desse último item, meu instinto sinalizou que eu deveria sugerir aos serviços de inteligência uma ressonância magnética nos demais assassinos. Imagino que o senhor já deva deduzir o que foi encontrado em todos eles – concluiu o agente, acendendo outro cigarro. – Uma... pequena... Mancha... Negra... – balbuciou Mickey, enquanto sua mente começava a imaginar mil cenários possíveis que pudessem explicar isso. – Mas, mas, mas... Isso não faz qualquer sentido... Não é estilo do Mancha matar, muito menos inocentes de um vilarejo do Leste Europeu. Como vocês chegaram a essa conclusão? – perguntou Mickey com incredulidade. – São apenas coincidências infelizes senhor Mouse, mas há oito meses o Mancha Negra fugiu da penitenciária. Há quatro meses ocorreu esse massacre terrível e agora aparecem os assassinos que não possuem qualquer vínculo direto entre si, exceto a pequena e inexplicável mancha. Creio que no nosso trabalho, tantas coincidências costumam indicar algo concreto, não? – retrucou o agente com uma grande baforada. – Certo. Vamos imaginar que o Mancha tenha algo a ver com isso. O que eu posso fazer, considerando que não faço a menor ideia de onde ele está? E mesmo que o encontre, qual seria a linha de ação a ser tomada? – perguntou Mickey agora começando a ficar angustiado. – Vamos por partes senhor Mouse. Para começar, creio que o senhor não conhece realmente quem se esconde atrás da máscara do Mancha Negra. Estou certo?


– Já vi o rosto dele, mas caso se refira a nome ou biografia, não tenho qualquer informação. – foi a resposta. – Mancha Negra ou Dmitri Ivanov, tem a ficha bem extensa – falou o agente, ao mesmo tempo em que entregava a Mickey uma outra pasta. Ao ser aberta, a foto do vilão com seu rosto frio e calculista se destacava. Mickey estava muito entretido olhando a pasta, senão teria percebido que a mulher encostada na parede, que não havia dito uma palavra até então, se mexeu nervosamente, mudando de posição várias vezes, assim que o nome “Dmitri Ivanov” foi citado. – De soldado condecorado do exército da Moldávia, durante a guerra contra a União Soviética, a traidor da pátria. E isso é só o início – retomou a conversa o agente Smith – Depois espião da KGB até o fim da guerra fria. Após desaparecer por um bom tempo, retornou como ladrão, chantagista, sequestrador e outras coisas. – E também um gênio, não podemos esquecer. – comentou Mickey não acreditando na quantidade de informação que ele desconhecia de seu velho inimigo. – A cada vez que o encontrava, suas artimanhas e aparelhagem eram mais avançadas. Eu nunca entendi por que ele simplesmente não ficava rico vendendo suas idéas e criações, por que tinha que ser um vilão. – Isso não nos diz respeito senhor Mouse – respondeu Anderson rispidamente. – O que nos interessa é saber se podemos contar com o senhor nesse caso. – Difícil saber se não me falarem o que esperam de mim – foi a resposta seca do detetive. – Claro, que distração a minha. Acreditamos que o Mancha se encontra na Ucrânia, não tão longe do vilarejo onde ocorreu o massacre e local de onde acreditamos que sejam os assassinos presos recentemente. Como o país é imenso e não temos certeza que ele está lá, e nem se é realmente o culpado de tudo isso, não podemos deslocar uma grande força para caça-lo. Já o senhor, que o conhece tão bem, talvez tenha a capacidade de rastreá-lo melhor e caso o encontre, nos avisará para pegá-lo – disse Anderson da forma mais convincente possível, dando a entender que somente Mickey poderia fazê-lo. – E eu vou sozinho? – questionou o detetive. – Não exatamente. Agente Bykov... – retrucou Smith imediatamente. Nesse momento, a mulher que estava encostada e em silêncio desde que Mickey entrara na sala, aproximou-se da mesa, olhando fixamente o detetive. Seus longos cabelos negros se mexiam a cada passo e sua face exibia um semblante duro e


impassível. Mesmo aparentando ser alguém em quem a vida bateu muito, havia uma beleza quase selvagem em seu rosto. – Senhor Mickey Mouse, apresento Natasha Bykov, ex-agente da KGB e agora agente freelancer da CIA. Ela conhece muito bem o Leste Europeu e já tinha se prontificado há muito tempo em caçar o Mancha Negra. Agora creio que chegou a hora. – concluiu Anderson. – Pra...zer? – disse Mickey visivelmente acuado enquanto estendia a mão. O olhar da agente Bykov era um tanto quanto intimidante. Não houve resposta. Ela simplesmente acenou com a cabeça e virou de costas rapidamente, voltando para seu canto na parede. – A agente Bykov não é de falar muito, mas creio que vocês irão se entender bem – disfarçou Smith ao perceber o incômodo de Mickey. – Agora por favor me responda. O senhor nos ajudará nesse caso? – questionou Anderson, de forma incisiva. Após um breve e ao mesmo tempo longo silêncio, Mickey olhou para seus interlocutores e com um grande sorriso respondeu: – Senhores, o que estamos esperando?


Capítulo 04 – Despedida Quinta-Feira, 20 de março, 14:30 Hoje Mickey estava na metade do caminho até a porta da cabine e continuava avançando, devagar, por causa de seu corpo, mas resoluto, unicamente por causa de sua força interior. – Viu meu amor? Estou chegando... Não tem ninguém que me impeça de chegar até lá... Mais um passo. – Prometo a você que vamos tirar férias... Longas... Sem celular, computador ou qualquer forma de contato... Mais um passo. – Que tal Paris? Tenho certeza que você vai adorar... Não? Então Londres... Sempre quis andar naquela roda gigante e conhecer o Louvre... Ah, você também? Mais um passo. – Então combinado... Eu vou até aquela cabine... Detenho o miserável... Volto para casa... Volto para você... E vamos para Londres... Mais um passo. 1.000 km por hora. – Vou voltar para você... Eu prometo... E vou ouvir a pergunta que você quer fazer... Mais um passo. – Vou voltar para você... Mais um passo.


Terça-Feira, 25 de fevereiro... Nos dias seguintes da reunião na delegacia, Mickey praticamente não saiu de casa. Além de arrumar seus pertences e conferir tudo que precisaria levar, ele não conseguia evitar de reler várias vezes todas as informações contidas na pasta entregue pelos agentes da CIA. Nunca havia passado pela sua cabeça o quanto o Mancha já havia aprontado durante a guerra fria, normalmente do lado dos soviéticos. E foi durante uma de suas últimas missões que eles se conheceram. Mas para Mickey, o Mancha era um ladrão sorrateiro e inteligente. De forma alguma ele pensaria na hipótese de que um filho de família tradicional e rica se tornaria um traidor da pátria, mercenário, ladrão e agora possivelmente um assassino. – Isso não faz sentido – pensava a cada novo detalhe descoberto. Após isso, já com o voo marcado, ele decidiu passar seu último dia de folga com Minnie. Ele teria que explicar a ela sobre a viagem e a missão, e certamente seria muito melhor abordar esse assunto aos poucos em um passeio vespertino. Durante uma caminhada na tranquila praça próxima de sua casa, Mickey contou a sua amada, da forma mais doce e convincente possível, oque tinha acontecido. Claro que a reação dela não foi a esperada. – Espera aí, espera aí, deixa ver se eu entendi até aqui – disse ela em um tom muito mal humorado após Mickey expor sua história. – Um pessoal da CIA que você nunca viu, vai te mandar em uma viagem para o Leste Europeu, no meio do nada, acompanhado de uma esquisita com ar de assassina, para procurar o Mancha Negra que ninguém sabe onde está, pois possivelmente, repito, POSSIVELMENTE, ele está envolvido em assassinatos sem qualquer vínculo ao redor do mundo e em um massacre de uma aldeia no interior! É ISSO MESMO SR. MICKEY? – falou rapidamente sem pausas, deixando muito claro, na última frase, o seu descontentamento. – E-e-e-então... Colocando dessa forma... É-é-é mais ou menos isso mesmo – gaguejou um Mickey surpreso com tanta agressividade, pois normalmente Minnie era mais paciente. – Não faltava mais nada na minha vida! Não vejo meu noivo nas férias, não o vejo mais que alguns dias até ele sumir em uma missão da polícia e agora... AGORA... Ele vai para onde o vento se perdeu, com uma assassina, procurar um psicopata a mando de uma sucursal dos homens de preto! – resmungava Minnie, com incredulidade e falando consigo mesma. – Mas amorzinho... – começou a dizer Mickey antes de ser sumariamente cortado.


– Amorzinho nada! Você quase não tem tempo livre só trabalhando com o Coronel Cintra e agora vem dizer que vai começar a pegar casos na Europa a mando da CIA? E depois? FBI, Interpol, MI6? – retrucou Minnie, agora com tristeza. Após essa última frase, ela distanciou-se um pouco, sentando em um banco de madeira que estava com algumas folhas das árvores próximas. Com a cara fechada, não esboçou qualquer reação quando Mickey sentou-se ao seu lado. Mickey a conhecia melhor que ninguém, então agora não era hora de argumentar ou tentar explicar, por isso após se sentar, ele simplesmente deitou a cabeça suavemente no seu ombro e aguardou o momento propício. Após alguns minutos, sentindo que o corpo dela havia relaxado, ele abordou o assunto com delicadeza, já que tinha notado o motivo de tanto desconforto. – Eu sei amorzinho, seu medo é que eu aceite missões cada vez mais longas, perigosas e isso vai nos distanciar – começou ele – Mas se me deixar falar o que eu acho disso tudo, creio que você ficará mais tranquila. – Então fale – respondeu baixinho, ainda com o olhar desviado. – Primeiro, o Mancha Negra não é um assassino, então é mais provável que tudo isso seja um grande engano e mais nada. O Mancha é um ladrão e sequestrador, mas um genocida de uma aldeia cheia de inocentes? Eu não consigo acreditar nisso – disse Mickey passando o braço por trás das costas dela. – Segundo, apesar de esquisita, a agente que vai me acompanhar não pareceu assassina, mas sim, alguém que quer prender o Mancha por um motivo pessoal. Não sei explicar, mas notei algo nesse sentido. – E terceiro, não posso negar que o convite feito pela CIA é empolgante, tanto em aprender como eles fazem uma caçada a um terrorista, como aos equipamentos, informantes e tudo mais. Mas é mais curiosidade do quê a ideia de ser um trabalho constante – finalizou ele com um sorriso. – Então será uma exceção? Você não vai passar a viajar pelo mundo com agentes da CIA e me deixar aqui sozinha? – perguntou Minnie voltando a olhar nos olhos de seu amado. – Claro que não – respondeu com firmeza. – Você acha que não sentirei sua falta? Caso um dia apareça outra missão ou viagem como essa, só aceitarei se puder levar você, pois enquanto trabalho, você pode pegar um trem e viajar pela Europa. Que tal? – Promete? – foi a única resposta dela, enquanto o abraçava.


Não houve outra frase. Mickey simplesmente a abraçou com força e ambos ficaram assim, aproveitando a companhia um do outro em silêncio.

Algumas horas depois... Já de noite, Mickey estava sentado no sofá da casa de Minnie comendo pipocas, ao mesmo tempo em que ela se aconchegava com a cabeça deitada em seu colo. Como a viagem dele era no dia seguinte e a agente Bykov havia pedido que ele a encontrasse logo pela manhã, Mickey aproveitou para passar essa noite com Minnie, conversando amenidades e curtindo o momento. De manhã haveria tempo de sobra para voltar, pegar a mala e seguir ao aeroporto. Após um bom tempo neste aconchego, Mickey colocou a bacia de pipoca no chão. Minnie estava de camisola, totalmente relaxada, quase dormindo, e ele sabia muito bem que não poderia fugir de fazer oque ela gostava tanto. Mickey a puxou em direção de seu corpo, abraçando suas costas com o braço direito e segurando as pernas com o braço esquerdo. Tendo se firmado muito bem, um pequeno impulso o colocara de pé, com sua amada em seus braços. Delicadamente, em passos cuidadosos, o detetive seguiu até o quarto e com todo o cuidado possível, a deitou na cama. Este processo era tão natural entre eles, que o sono dela não foi interrompido. A ansiedade do que estava por vir e as perguntas sem resposta que enchiam sua mente estavam espantando para bem longe o sono, mas não impedia que ele se deitasse abraçando-a. Outro detalhe é que a conversa que tiveram na semana passada ainda o incomodava, mesmo sem estar claro o real motivo por trás desta estranha sensação. E o mais curioso, era que ele mesmo havia começado o assunto de forma inocente. – Nunca imaginaria que o Donald se casaria, realmente foi uma surpresa – foi o início de tudo, durante um jantar. – E o que tem demais? – Ele nunca se pareceu com alguém que seria possível conviver por muito tempo. É explosivo, nervoso, teimoso... – Ah, claro. Falou o senhor monge budista.


– Eu não disse isso, só que não imaginava... enfim... mas creio que o pior é outra coisa. – Sei, sei. O pior foi ele se casar com sua querida amiguinha. – Sim, como eu poderia imaginar que Karen seria sua esposa... Ele nunca nem comentou que a conhecia. – As vezes quando encontramos a pessoa certa, não queremos perder tempo – respondeu ela com certa ironia. – Pode ser – foi a resposta sem qualquer indício da ironia ter sido notada. – Mas também... – Eu sei – disse ela impaciente, cortando a frase dele. – Você já falou isso mil vezes. – Desculpe, é que tudo é muito estranho. Ela não se lembra de tantos anos da vida dela e isso me deixa incomodado. – Ah, você queria que ela se lembrasse ao menos de você, não? – Respondeu Minnie fingindo ciúme. – Não da forma que você está dizendo, mas sim, gostaria muito de ser lembrado. Ela foi muito importante para mim e você sabe bem porquê. – Eu sei, estou brincando. Mas não há muito o que possa ser feito. – Sim, Donald não falou muito do acidente, então fica difícil saber... – Bom, pelo menos ela encontrou alguém que a ama e a trata muito bem – cortou Minnie novamente. – Você está nervosa com o que? – Não estou nervosa, só pensando... pensando... pensando... – Em que? – foi a pergunta que gerou a resposta que hoje o incomoda. – Em como e quando será o NOSSO casamento... Na hora, Mickey quase engasgou, mas teve a presença de espírito de mudar de assunto sutilmente. Minnie sabia que esta era a forma dele arquivar um tema a ser pensado com calma e que certamente ele voltaria ao assunto mais adiante.


Mas até agora, a forma que a palavra "nosso" foi frisada, o deixava incomodado, e a falta de motivo o incomodava mais ainda. Minnie era sua parceira, amiga, namorada, amante e em seu íntimo mais profundo, ele sabia que seu coração pertencia a ela, hoje e para sempre. Então qual o problema em casar? Talvez ele tivesse medo da mudança, ou preferia ficar sozinho pela maior parte do tempo. De qualquer forma não era justo agir assim com a mulher de sua vida. De um dia para o outro, sua vida mudaria totalmente, mas até onde isto poderia ser ruim? Questões e mais questões vinham a sua mente e com certeza agora não era a hora de pensar nelas. Gentilmente Mickey ajeitou seu braço esquerdo por baixo da cabeça dela, ao mesmo tempo em que a massageava devagar e em círculos. A posição de conchinha era uma de suas favoritas, permitindo que ele sentisse o perfume que tanto gostava. Apesar de Minnie dormir cada vez mais profundamente, Mickey aproximou-se de seu ouvido direito e sussurrou: – Não importa o que aconteça ou onde estiver, eu sempre vou te amar. Institivamente, Minnie sorriu ao mesmo tempo em que se aninhou no braço de seu amado. Feliz com esta reação, Mickey decidiu tentar dormir e relaxar um pouco, afinal os próximos dias seriam estafantes. E mesmo sem saber, em breve, muito em breve, esta promessa sussurrada naquele momento tranquilo, seria a única coisa que o manteria vivo.


Capítulo 05 – Convite Quinta-Feira, 20 de março, 14:31 Hoje Mickey não acreditava como alguns poucos metros poderiam parecer tão longínquos. O barulho do jato e a subida vertiginosa confundiam os seus sentidos a ponto de as vezes a cabine parecer mais longe a cada passo. – Falta pouco agora... Isso vai terminar logo... – balbuciava ele. Mas por mais que sua vontade permanecesse inabalável, seu corpo dava mostras de desistir. Faltavam só três passos quando suas pernas falharam e ele desabou pesadamente. – Maldição, droga, porcaria – praguejava ele já caído. – Isso não vai terminar assim... Eu me recuso a desistir – falava alto, ao mesmo tempo que tentava se levantar. O esforço era incrível. Apesar das dores lancinantes, da tontura e da ânsia de vômito que havia começado, ele não pararia. – MALDIÇÃOOOOOOOO !!!!!!!!! – foi seu grito ao se colocar de pé novamente. Com muito esforço, dava mais um passo. – Calma linda... Calma... Lembra o que te falei naquele dia quando estávamos presos naquele poço? – continuava balbuciando. – Eu te prometi que iríamos sair... E que nunca mais você se sentiria sozinha... Pois eu sempre estaria por perto... – eram suas palavras ao tentar dar mais um passo. – Fique tranquila... Eu sempre estarei com você... Não se esqueça... Mais um passo. – Eu te amo... 1.100 km por hora.


Quarta-Feira, 26 de fevereiro... O dia havia amanhecido há pouco mais de duas horas naquela agradável quartafeira, e quem olhasse para o alto, poderia ver um céu sem nuvens, com o sol brilhante e alguns pássaros canoros voando alegremente. E neste exato momento, um táxi estava estacionando no Terminal Um do Aeroporto Internacional de Nova Patópolis. Na cidade de Mickey, Ratópolis, apesar de existir um aeroporto, a maioria dos vôos eram domésticos, então para chegar ao Leste Europeu, era necessário vencer o trajeto de pouco mais de 30 Km para embarcar diretamente na Cidade do Futuro. Ao descer do táxi, mesmo sendo alguém por natureza observador, Mickey não estava notando as maravilhas naturais daquele lindo dia. Muito menos os itens tecnológicos que sempre o impressionavam ao visitar esta cidade. Sua mente estava totalmente focada e preocupada com tudo que havia lido e relido na ficha do Mancha Negra. Por mais que tentasse, ele não conseguia acreditar na possibilidade do seu antigo inimigo ser um assassino, ainda mais, responsável pelo massacre de centenas de inocentes em um vilarejo afastado. Em seu íntimo, ele desejava que tudo isso fosse apenas um grande mal entendido e que todas as conclusões dos agentes da CIA se mostrassem equivocadas. Ao mesmo tempo, se realmente existisse um plano de alguém envolvendo controle mental, o autor tem um modus operandi muito parecido com o Mancha. Então o culpado, caso exista um, poderia ser o Mancha, alguém que pensa parecido ou alguém que está tentando fazer parecer ser o Mancha. Todas estas possibilidades estavam brigando na mente analítica do detetive, de forma que nenhuma conclusão havia se formado ainda. Mas agora, enquanto caminhava nervosamente pelo Terminal Um, somente um pensamento se sobrepunha aos demais. – Droga, deveria estar 08:00 em ponto em frente ao check-in internacional e já estou quinze minutos atrasado. A primeira impressão da agente Bykov não será muito boa. Apesar do vôo estar marcado para às 20:00, Bykov simplesmente ordenou em uma mensagem de voz, enviada terça–feira às quatro da manhã: – Na quarta–feira, esteja as 08:00 em frente ao check-in internacional.


Tanta formalidade indicava que a viagem não seria muito divertida. Após mais alguns minutos de caminhada, ele finalmente enxergou a extensa área de check-in, mas não conseguiu encontrar sua parceira. A direita estavam os balcões para despachar a bagagem, a esquerda os terminais de check-in automatizados e um pouco a frente, algumas filas de cadeiras bem confortáveis. Após olhar o relógio e constatar que atrasara vinte minutos, ele decidiu ficar de pé aguardando-a, já que provavelmente Bykov estava nos arredores. Depois de uma hora, uma singela dúvida o atormentava. – Cadê esta mulher? Após mais uma hora, a dúvida era a mesma, mas a palavra "mulher" estava sendo substituída por uma grande variedade de adjetivos. Aquela incômoda situação durou mais de três horas, quando ela finalmente apareceu, sem qualquer aviso e por trás dele. – Agente Mickey, finalmente chegou? Creio que deveria tentar ser mais pontual – falou secamente. Além do susto e surpresa, suas pernas doíam e seu humor não estava dos melhores. – Eu cheguei há três horas e estava aqui te aguardando, conforme pediu. – Eu estava aqui as oito e você não, então fui até o StarDucks do Terminal Dois tomar um café. Depois fiquei lendo e agora decidi vir aqui olhar novamente se você havia chegado. – Eu sei que me atrasei... – Atrasou e que isso não se repita – cortou, sem qualquer sinal de simpatia. Mickey engoliu seco, pois tinha vontade de faze-la engolir cada palavra, mas ele tinha certeza de que não seria uma boa forma de começar o trabalho que fariam nos próximos dias. – Aqui está sua passagem – disse ela, estendendo o braço – Agora vou almoçar e aguardar em algum lugar. Nos vemos no avião.


Um segundo após Mickey pegar o papel, ela simplesmente se virou e desapareceu entre as pessoas que caminhavam freneticamente no saguão do aeroporto. Mickey estava sem reação e lívido, mas isso não duraria muito tempo. Dez segundos após esta rápida interação, seu rosto começou a esquentar e seus olhos arregalaram. – Eu cheguei doze horas antes do voo somente para pegar a passagem? – falou para si mesmo, sem acreditar. Considerando o teor, os próximos adjetivos e pensamentos do detetive em relação a sua parceira não podem ser replicados. Ainda muito alterado, Mickey seguiu para o toalete para lavar o rosto e respirar fundo. Somente após se acalmar, ele poderia almoçar e aguardar até o momento do embarque. As próximas horas seriam tediosas, mas ele tentaria esquecer este pequeno e conturbado início, focando novamente em seu objetivo primaz, encontrar o culpado, caso haja, dos assassinatos.

Quinta-Feira, 27 de fevereiro, 15:00 (horário local)... – Mesdames et messieurs, nous sommes en descente à l'aéroport Charles de Gaulle. Veuillez rester assis et porter des ceintures de sécurité. Mickey acordou repentinamente a tempo de ouvir a terceira frase da comissária de bordo. Após o Inglês e Espanhol, o Francês era obviamente necessário pela possível presença de franceses a bordo. – Maravilha, agora é só morrer de sono nos próximos dias, enjoar, não comer – pensou de extremo mal humor. Após dez horas de vôo e um fuso horário de outras nove, não era possível estar de bom humor. Seu corpo no momento estava programado para as seis da manhã. – Odeio, odeio, odeio o jetlag – pensava o detetive enquanto tentava se animar. Ao olhar para o lado, viu Bykov sentada, desperta e com o olhar distante. – Ela deve estar mais acostumada, eu que sou um caipira – pensou com uma certa melancolia. Com o raciocínio ainda lento, só lhe restava ficar encostado na cadeira e aguardar o pouso, o estacionamento da aeronave, a saída e a espera da conexão.


Após cerca de quarenta minutos, os agentes estavam no saguão de desembarque. – Vai almoçar? – perguntou Bykov sem qualquer interesse real. – Está brincando? Preciso tomar meu café da manhã. – Amador – pensou ela, com um suspiro. – A nossa conexão para Kiev é a meia-noite, então estarei aqui as onze, faça como quiser – disse ela com desdém, virando-se de costas e saindo rapidamente. – Sua arrogante, cínica, mal educada, insuportável – pensou ele sem qualquer cerimônia. Mickey preferiu ficar dentro do saguão onde desembarcou, para não ter que sair pela alfândega e depois entrar novamente. As sete horas que o separavam de sua conexão não eram nada. – Preciso trazer a Minnie aqui um dia – pensou enquanto ia para a cafeteria mais próxima. Após um café bem forte, seu ânimo melhorou um pouco a ponto de repensar sua missão. – Ainda não entendi como acharei aquele louco em um país que nem conheço – era o detalhe que mais o incomodava. Mesmo tentando se concentrar, a cadeira disponível era tão macia que um cochilo foi inevitável. Enquanto dormia, rápidos e estranhos sonhos povoavam sua mente. Ele não conseguia discernir, mas envolvia Minnie, Bykov, o Mancha, o Darkenblot e muitos outros. – Acorde agente Mickey – foi a frase que, juntamente com uma sacudida em seu braço, o despertou assustado. – Ah, oque? – Já são dez horas e eu estava passando para tomar um café quando vi você suando e se debatendo – falou Bykov sem qualquer emoção. – Acho que estava sonhando... – Nos vemos daqui a pouco no avião – completou ela se afastando.


– ...e não tem problema ter me acordado... Como se ela estivesse me ouvindo – falou enquanto bocejava. Com a proximidade do embarque, só lhe restava ir ao toalete lavar o rosto, oque fez rapidamente. Logo após se lavar, o detetive se encarou no espelho e pensou com toda a sinceridade: – Realmente esta missão não é oque eu esperava. Consegue ser muito pior que Anderville, mas agora, tenho que ir até o fim. Após sair do toalete, seguiu como um zumbi até a cafeteria mais próxima, um pouco de cafeína faria muito bem. – Un café très fort s'il vous plaît – disse entregando seu cartão de crédito. – Quatre Euros – foi a resposta da atendente não muito simpática, simplesmente entregando a máquina para a digitação da senha. Após pagar e receber seu café, o detetive adoçou um pouco e engoliu de uma vez. – Merci – agradeceu Mickey se afastando e voltando a sua cadeira. Ele já se sentia melhor, mas no exato momento em que iria se sentar, ouviu: – Vol UP5623 vers Kiev, embarquement autorisé à la porte quatre. – Maravilha, lá vou eu para mais uma jornada com aquela antipática – foi o pensamento com um suspiro. Sem ter alternativa, Mickey se arrastou em direção ao portão, torcendo para não cruzar com Bykov até entrar na aeronave. Várias coisas incomodavam o detetive nesta missão, mas a maior delas, sem dúvida alguma, era não ter a menor idéia do que aconteceria nos próximos dias.

Sexta-Feira, 28 de fevereiro, 05:30 (horário local)... Naquela sexta–feira, o sol ainda não havia aparecido em Kiev e o tempo estava frio e nublado. Normalmente nesta época do ano os dias são agradáveis, mas aparentemente, como se de propósito, nem isto estava ajudando na missão da dupla que aterrissara por lá há pouco tempo.


O vôo UP5623 havia pousado a cerca de uma hora, após voar por três horas e meia e avançar mais uma faixa no fuso horário. O procedimento alfandegário era bem simples para quem carregava apenas uma bagagem de mão, mas Bykov precisou passar pela sede da Polícia para retirar sua arma despachada em Nova Patópolis e transportada em um contêiner especial. E era neste momento, que Mickey a aguardava no saguão principal, em uma simples cadeira sem muito conforto. Ele já não sabia que horas eram para seu corpo, simplesmente tentava ficar atento a qualquer movimentação suspeita. O detetive também recebera autorização especial da CIA para portar uma arma nos países signatários do acordo de cooperação internacional contra o terrorismo. Mas como sempre, ele preferiu não utilizá-la. Mesmo por que, imaginava que estando com a psicopata da Bykov ao seu lado, ela atiraria primeiro em qualquer ameaça que aparecesse para eles. Suas próximas ações ainda eram um mistério, pois Mickey não tinha a menor idéia do que fazer, portanto sua contrariada parceria deveria lhe dar algumas dicas. Sua única informação confiável era a reserva do hotel que estava em sua mão e que já havia sido lida três vezes. Ele tinha o endereço e precisaria pegar um táxi para chegar lá, tomar um banho e descansar um pouco. Ele não havia visto a reserva de sua parceira, mas com certeza era em outro quarto. Mickey ainda esperava pacientemente quando a agente Bykov saiu da área policial com passos decididos em direção ao detetive. A distância era curta e foi logo vencida. – Ainda não compreendi como você pode pensar em vir para esta missão desarmado – falou ela rapidamente, sentando–se na cadeira ao lado. – Eu não gosto de armas – foi a resposta sem qualquer simpatia. – Então está na missão errada. Talvez você devesse caçar borboletas ao invés de assassinos – respondeu ela com total desprezo, sem sequer olhar para ele. Mickey sabia que ela tinha uma certa razão, então preferiu simplesmente mudar de assunto. – Eu quero discutir com você a nossa estratégia de investigação. Imagino que vamos ao hotel e depois começaremos a procurá–lo, certo? Neste instante, Bykov virou–se bruscamente e o encarou de forma intimidadora. – Você realmente não sabe, não é? Não tem a mínima noção do que fazer aqui.


– Eu... eu... acho que devemos investigar – foi a resposta quase gaguejando. Pela primeira vez nesta viagem, a agente Bykov sorriu. Para em seguida dar uma risada abafada. Mickey ficou constrangido, mas conseguiu questionar: – Oque eu falei de tão engraçado? – Tudo bem... você me fez rir e isto vale alguma coisa. Preste atenção, que eu não vou repetir. – Aqui não é sua cidadezinha de periferia e nem estamos procurando um batedor de carteiras. Estamos no meio do Leste Europeu a caça de um terrorista assassino. – Você acha que ele deixa pistas para qualquer idiota encontrá–lo após fazer algumas perguntas? – Não, mas... – Eu o procuro há anos e já encontrei cúmplices e fornecedores em becos imundos e perigosos, e mesmo assim ninguém me indicou qualquer coisa. Você acha que em alguns dias, na parte nobre da cidade, irá se sair melhor? Não houve resposta, só o rosto do detetive ficou corado. – Mas eu direi oque você deve fazer, já que por sua própria iniciativa, nada vai acontecer – falou ela em um tom estranhamente compreensivo. – A única chance que tenho de achá-lo é permanecer aqui no aeroporto o tempo todo. Talvez ele apareça ou algum cúmplice se assuste ao me ver, considerando o número de cabeças que já arrebentei em minha busca. Acredito que ele foi informado que estou a sua procura e no mínimo, deve estar pensativo. – Quanto a você, vá para o hotel, coma, tome um banho e durma. Em seguida faça oque quiser, não me interessa! – Mas, mas... – Por volta das 22:00 eu irei para o hotel dormir e amanhã por volta das 06:00 voltarei para cá. Espero ter sido clara – disse levantando–se e afastando–se rapidamente. – Mas... – antes de conseguir continuar a frase, ela não o escutava mais.


Mickey ficou sem ação, estático e perdido em meio a surpresa – nunca imaginou que seria tratado como um estorvo – e a resignação – Bykov tinha razão quanto a sua incompetência. Após segundos que pareceram horas, ele decidiu: Iria ao hotel descansar, colocar a cabeça no lugar e só depois escolheria uma linha de ação. Com uma respiração lenta e ao mesmo tempo longa, o detetive pegou sua pequena mala e seguiu até o guichê de uma empresa de táxi que estava a sua direita. No momento ele estava em segurança, mas até quando, era o grande mistério que o atormentava.

Segunda-Feira, 03 de Março, 12:31... O pequeno restaurante Pervak estava acostumado a receber todo tipo de turista que passava por Kiev. Tanto clientes elegantes do lado ocidental que vieram de Londres, Paris ou Berlin, como as pessoas mais simples de Bucareste, Praga ou Minsk. Sua decoração era sóbria e neutra com cores claras e harmoniosas, não causando qualquer desconforto durante a permanência de qualquer um, independente da cultura. Seus pratos campeões de consumação eram os mais típicos possíveis, como a sopa Borscht de peixe ou beterraba, a Deruny, uma panqueca de batatas deliciosa e os bolinhos Pyrizhky de carne ou Varenyky de batata. E era sentado em uma mesa de dois lugares próxima a parede esquerda, tendo uma toalha branca e uma porção generosa de Deruny a sua frente, que Mickey estava pensativo. No quarto dia de sua permanência em Kiev, o detetive não conseguia identificar qual parte do todo era mais surreal. Ao mesmo tempo em que pegava uma Durany e a molhava no iogurte sem açúcar, sua mente recordava–se de cada detalhe estranho que ocorreram em sucessão crescente nestes últimos dias. A primeira surpresa foi na recepção do hotel, ao descobrir que somente um quarto com duas camas de solteiro havia sido reservado. Quando Bykov chegou por volta de 22:30, ela entrou no quarto naturalmente sem falar nada, seguiu até o banheiro e ligou o chuveiro.


Quase as 23:00, ela saiu enrolada em uma toalha, retirou uma camisola de dentro da mala e simplesmente se vestiu no meio do quarto. Extremamente constrangido, Mickey tentou falar alguma coisa, mas foi cortado friamente: – Fique tranquilo agente Mickey. O protocolo exige apenas um quarto, teoricamente para evitar que cada agente seja surpreendido sozinho enquanto dorme. Nesta hora ele descobriu que a privacidade durante estas missões era próxima a zero e também o porque do fato dos agentes que trabalhavam em dupla serem bons amigos. Nos dias seguintes, Bykov realmente saía sempre as 06:00 e retornava as 22:30, sempre ficando no aeroporto o tempo todo. Já o detetive, até tentou fazer alguma coisa, mas para qualquer um que ele tentava questionar sobre o Mancha, inclusive mostrando uma foto, as reações não variavam muito. A maioria o ignorava, outros olhavam de forma engraçada e não respondiam, um aqui e ali falava que nunca tinha visto este sujeito. Apenas um perguntou se Mickey era da polícia e com a negativa, saiu andando sem falar mais nada. Bykov tinha razão, ali não era Ratópolis onde todos o conheciam e sempre estavam dispostos a ajudar. Em Kiev, todos queriam continuar suas vidas anônimas e não se intrometer em nada que não era da conta deles. Sem qualquer progresso no sábado e domingo, hoje o detetive tentou seguir o conselho de Bykov e foi até o aeroporto as 09:00. Chegando lá, viu sua parceira a distância, que simplesmente se virou e o ignorou. Com isso, a cada dia que passava, a certeza de sua inutilidade naquela missão era mais aparente. – Nada disso faz sentido – pensava ele enquanto pegava outra fatia de Deruny. – Em que aqueles sujeitos da CIA pensavam quando me chamaram? – era a outra dúvida. Mickey passou um longo tempo comendo da forma mais devagar possível. Mesmo parecendo inerte, seu afiado raciocínio estava processando todas as informações. De repente, um lampejo em sua mente o fez tomar uma decisão. – Eu estou aqui por um motivo e mesmo não sabendo qual, vou descobri-lo – pensou enquanto finalmente mordia com gosto sua torta de batatas.


– Amanhã, gostando ou não, querendo ou não, a experiente agente Bykov terá um parceiro – foi seu ultimo pensamento, antes de um longo sorriso.

Terça-Feira, 04 de Março, 18:37... O sol já estava se pondo naquele dia, apesar da indiferença dos apressados usuários do Aeroporto de Zhulyany, situado na capital Kiev. Mesmo sendo um aeroporto mediano, não havia como comparar o tráfego diário com outros situados em países com maior fluxo turístico. Naquele momento, um casal andando pelo saguão sem qualquer mala e olhando atentamente para todos os lados, não chamaria qualquer atenção. E era isto que Mickey e Bykov faziam, conversavam amenidades ao mesmo tempo em que caminhavam despreocupadamente. Claro que isso era apenas na aparência, na realidade os quatro olhos atentos vigiavam a mínima reação diferente ou estranha de qualquer um. O entendimento mútuo não havia sido fácil, mas Mickey havia conseguido quebrar a carapaça de gelo de sua parceira em uma singela e discreta conversa pela manhã: – Agente Bykov, você não irá sozinha para o aeroporto – disse ele, se colocando na frente da porta, as 06:00 da manhã. – Sério? E por que eu não iria? Ou melhor, quem vai me impedir? – respondeu ela de forma jocosa, enquanto terminava de se arrumar. – Eu sou seu parceiro e devemos ficar juntos. – Que gracinha, agora você é meu parceiro? Até ontem era oque? – Não me interessa, eu estou nesta missão e irei com você. Um casal são quatro olhos atentos e um disfarce melhor do que... – Do que oque? – perguntou ela colocando a arma no coldre e pegando o casaco. – Do que uma psicótica solitária encarando todo mundo. Após alguns instantes de tensão, Bykov deixou escapar uma risada alta. – Você é engraçado, mas eu deveria quebrar sua cara por essa.


– Mas não vai. Eu irei com você de qualquer forma... parceira. – Tudo bem, só não fique no meu caminho. Agora vamos que estamos perdendo tempo aqui. A aceitação dela havia sido mais fácil do que ele imaginava, mas por alguns momentos o detetive acreditou que apanharia. E agora, os agentes seguiam lado a lado, procurando por qualquer coisa diferente. – Pelo menos você acompanha o meu ritmo. Achava que teria que ficar parando a cada vinte minutos. – falou ela, sendo o mais próximo de um elogio que ele recebera até agora. – Não se preocupe comigo, faça seu trabalho sossegada que eu não a atrapalharei. – respondeu com uma certa satisfação. – Bom para você, pois eu não pararia. – Eu sei. – Mas diga agente Mickey, qual o motivo de você estar aqui? – Não entendi. A CIA... – Não, digo seu motivo pessoal. Você tem uma casa em uma cidade tranquila, uma noiva de muitos anos e um status de quase celebridade nos meios legais de Ratópolis. Para que se arriscar neste trabalho perigoso, longe de toda a sua vida? – Você leu minha ficha detalhadamente – foi a resposta no momento em que seu rosto corava. – Claro. E por isso não entendi o motivo de você aceitar esta missão. – Bom, talvez eu estivesse entediado ou talvez quisesse a chance de ver uma profissional de verdade em ação. Agora foi Bykov que havia corado, silenciando repentinamente. Como sua parceira não respondeu, ele perguntou na sequência: – E você? Por que esta vida agitada e perigosa? Por que você fica longe da sua família? – Eu não tenho família. – sussurrou ela, enquanto desviava o olhar ligeiramente para baixo.


Mickey não sabia oque dizer. Ele percebera que tocou em um nervo exposto e agora devia se desculpar. – Agente Bykov, eu... Mas ele não conseguiu terminar a frase. Sua parceira havia parado de repente enquanto encarava um sujeito a sua direita que olhava fixamente para eles. Após dois segundos, ela começou a andar rapidamente em sua direção. O sujeito não se mexeu, somente ficou parado aguardando tranquilamente a chegada dos agentes. Bykov estava a frente dos dois, com a mão direita sobre a arma e o braço esquerdo pronto para se defender. Faltando alguns passos para estar frente a frente com ele, o estranho ergueu o braço e fez um sinal de "calma" com a mão. – Não é necessário – disse ele de forma totalmente apática. – Calma parceira – falou Mickey em um tom tranquilizador. – Creio que ele só quer falar conosco. Quase chegando, o detetive conseguiu olhar bem para seu alvo e não viu nada demais, apenas um homem mediano, vestindo camisa branca e calça jeans, com o cabelo negro e barba mal feita. Com mais dois passos, Bykov ficou a distância de um pé daquela pessoa. – Eu me lembro de você! É um dos vagabundos que interroguei há alguns meses nos becos de Bilatserkva – falou Bykov, encarando–o friamente. – Que memória! – pensou Mickey. – Eu só vim entregar uma mensagem, é minha única tarefa – respondeu ele sem esboçar qualquer reação. – Então entregue. – Estou te convidando para um encontro. Amanhã pela manhã, um carro sedam preto, placa da Ucrania, estará estacionado em frente ao seu hotel. Os documentos do carro estarão no porta luvas e a chave em cima do pneu dianteiro esquerdo. No quebra sol do motorista terá um mapa com a indicação de onde você deve ir. – Como assim? – perguntou Mickey espantado.


– Muito bem animal, agora você irá responder a algumas perguntas – disse Bykov segurando–o pela camisa e aproximando o rosto do dele. – Eu só vim entregar uma mensagem, é minha única tarefa – respondeu ele. Pela proximidade Bykov notou a ausência de reação e os olhos vazios, algo que ela já tinha visto antes. Neste instante, ela o soltou e afastou–se um pouco. Com isso o sujeito simplesmente se virou e saiu andando sem falar mais nada. – Mas, mas, mas... – gaguejou Mickey. Bykov não falou nada, apenas se virou em direção a saída e seguiu apressadamente para lá. – Mas... oque é isso? – insistiu Mickey a seguindo. – Já atingimos nosso objetivo, não faz mais sentido continuar aqui. – foi a resposta seca e fria. – Mas... eu não... entendi... – Agente Mickey, aprenda uma coisa, se realmente somos parceiros confie em mim. Mickey se calou, pois sabia que ela tinha razão. Mas isso não tornava a situação mais agradável. De todas as situações surreais desta missão, aquele "convite" certamente fora a pior de todas. E não saber oque aconteceria no dia seguinte, era a questão que o atormentaria até o próximo alvorecer.


Capítulo 06 – Natasha Quinta-Feira, 20 de março, 14:32 Hoje – Só mais um passo... Só mais um... Mais um... – dizia Mickey quando seu esforço finalmente fora recompensado. Mais um passo. Quase não acreditando, ele finalmente havia chegado. Ele estava em frente a porta da cabine do jato e sua primeira ação foi pegar a arma com a mão direita, engatilhar e pensar cuidadosamente no próximo movimento. Estando ciente da grande possibilidade de que sua presença estava sendo ignorada até aquele momento, Mickey segurou firme sua arma, estendeu a outra mão, segurou o trinco externo e o empurrou para o lado, tentando abrir. A porta estava trancada. - Trancada... Maldição... Ele perdera a vantagem de um ataque surpresa e com muito esforço suprimiu um palavrão que estava nascendo em sua garganta, se permitindo apenas um longo suspiro de frustração. Mickey começou a se sentir desnorteados, seu corpo estava ferido, uma quantidade excessiva de remédios havia sido ministrada, ele não havia se alimentado direito e para completar, a pressão da inércia quase o tinha apagado. Tudo isso complicava o seu raciocínio, mas o que ele realmente desconhecia era o perigo iminente que o cercava naquele exato instante. O jato estava se aproximando rapidamente da velocidade de 1.235 km por hora, o que naquela altitude significava o Mach 1. E um estrondo sônico era tudo que ele não precisava naquele momento. 1.200 km por hora.


Há dois anos... Naquela noite em Odessa, o vento frio e cortante estava mais intenso que o normal, não sendo possível para as poucas pessoas nas ruas se sentirem confortáveis. Mas para Boris Kosel o frio naquela noite escura era o menor de seus problemas, tanto que, ele estava com muito calor. Tremendo. Nervoso. Correndo. Aquela mulher aparecera repentinamente em sua frente. E sua vestimenta escura, tom de voz frio e olhar assassino o deixaram aterrorizado. Neste instante ele não pensava em nada, simplesmente corria por sua vida, procurando um esconderijo em um beco ou no meio do lixo. Apesar de não dizer nem uma palavra, ele tinha certeza que aquela mulher iria mata-lo naquela noite. Boris continuava correndo, tropeçando, fugindo. Dava voltas, entrava em becos, fazia um caminho totalmente aleatório e sem padrão. Após alguns minutos, que pareceram uma eternidade, ele parou por um momento, encostando a mão direita na parede e se curvando um pouco para retomar o fôlego. – Maldita filha de um cão... quem mandou essa desgraçada para me apagar? – pensava ele arfando e gemendo. Boris não era um tipo honesto, mas suas malandragens eram pequenas demais para chamar a atenção de alguém importante. Um contrabando aqui, um passaporte falso ali, nada que pudesse ofender alguém ou torna-lo uma ameaça. Boris valorizava a discrição e isso o mantinha vivo. Ainda com muito medo, ele se ergueu e olhou para trás, fitando a escuridão, procurando qualquer movimento. Não havia nada. – Vadia desgra... – começou a falar consigo mesmo enquanto se virava novamente para frente, com a certeza de que havia escapado. Infelizmente para ele, a frase não pode ser completada. A mulher estava parada quase colada a seu corpo. Com a mesma roupa e olhar que o haviam atingido mais forte que um murro. No segundo seguinte, antes de conseguir falar ou fazer qualquer coisa, ela já o tinha agarrado pela camisa e o jogado com força contra a parede mais próxima. Em seguida, o segurou na parede apertando seu pescoço com o braço direito. Boris não conseguia reagir, apenas balbuciar: – Moça, por... favor... eu não... fiz nada... Impassível como uma profissional, ela simplesmente aproximou a boca bem perto


de seu ouvido direito e disse: – Onde ele está? – Q-q-quemm??? – balbuciou enquanto tremia muito. – Onde ele está? – repetiu com a voz mais grave. – Moça... eu não... Ela não repetiu ou explicou, simplesmente o jogou no chão como se fosse um saco de lixo. Em seguida, caminhou de forma decidida até próximo a sua cabeça e falou novamente: – Onde está seu último cliente? Sua última venda de passaporte falso. Finalmente ele entendeu. O alvo era aquele sujeito estranho que havia encomendado diversos conjuntos de documentos. A esperança de escapar brotou em seu peito ao responder com toda a sinceridade: – Ah, ele. Eu não se... Antes de concluir a frase, ela já estava pisando em seu pescoço. – Eu... não... sei... moça... eu... juro – falou, tentando evitar que aquele pé esmagasse sua laringe. Ainda na mesma posição, a mulher retirou calmamente uma Magnum .40 que estava no coldre logo abaixo do braço esquerdo. Boris sabia que esta arma pode matar um rinoceronte se usada devidamente. – Eu juro... que não... sei... ele não falou... nada... eu juro... – repetia em total desespero. Silenciosamente, a arma foi apontada para o meio da testa dele e sem demonstrar qualquer emoção no olhar, a mulher engatilhou. – Última chance. Você tem até o três para falar e não ter seus miolos espalhados neste beco imundo. Um – disse ela calmamente. – Não... não... eu juro... que não sei... por favor... não me mate... – implorou Boris, tremendo e começando a chorar. – Dois – foi a resposta, juntamente com uma pressão maior no pescoço. – Se... sou... besse... eu... fala... va... juro... por... minha... san... ta.. mãe... por favor... moça... eu... implo... ro... – sussurou ele agora chorando muito.


– Três... – Nãaaaaooooo!!!!! Instintivamente Boris colocou as mãos a frente dos olhos, como se fosse possível segurar a bala. Após alguns segundos, ele finalmente percebeu. A pressão em seu pescoço havia cedido e ainda com muito medo, seus olhos se abriram. Não havia qualquer sinal da mulher, é como se ela nunca houvesse existido. Tremendo, sujo e com o rosto molhado, a única prova de que ela havia estado lá era a forte dor em seu pescoço. Mas agora não era hora de pensar, mas apenas fugir. Tropeçando e um pouco zonzo, Boris saiu correndo até que sumiu na escuridão. Duas ruas acima, a mulher estava com raiva. A única pista boa em tanto tempo não havia dado em nada. Com passos firmes e decididos, ela voltava para o hotel, onde um informante aguardava o desfecho de sua indicação. Em sua mente, apenas um pensamento recorrente existia, martelando de forma incômoda e repetida. – Eu preciso te achar... e te matar. Mais nada importava para a agente especial Bykov. Esta era sua promessa e missão e não haveria paz ou descanso até que estivesse concluída.

Quarta-Feira, 05 de Março, 11:57... Naquele dia, a tensão estava presente em cada momento e pensamento do detetive. Após o convite inusitado do dia anterior, a certeza de estar sendo chamado para uma armadilha ficou cristalino como um lago congelado. Bykov praticamente não comentou nada, nem sobre o "convite", nem como ela sabia que algo assim poderia acontecer. Na única vez que Mickey tentou perguntar algo, um olhar fulminante fez ele se calar.


E hoje, ele mal dormira e ao acordar de um cochilo as 07:30, simplesmente engoliu várias xícaras de café e não comeu nada. E mesmo agora, perto do horário de almoço, o apetite havia desaparecido. Pelo menos, da forma que foi dita por aquele homem estranho, um carro preto, placa da Ucrânia, estava parado em frente ao hotel, com a chave em cima do pneu dianteiro esquerdo. Mickey aguardava Bykov do lado de fora do veículo, pois não queria ser indelicado. Como ela marcou 12:00 em ponto ele não entraria no carro até lá. Exatamente ao meio-dia, a agente Bykov saiu do hotel e caminhou decididamente em direção ao veículo. – Bom dia – foi a frase do detetive, tentando quebrar o gelo, ou no caso dela, o iceberg. Um leve aceno de cabeça foi a resposta, ao mesmo tempo em que ela entrava como passageira. Mickey não disse mais nada, simplesmente entrou como motorista e pegou o mapa no quebra sol, da forma que o homem havia falado. Ao abrir o mapa, era possível ver uma rota muito bem demarcada, saindo da cidade, pegando uma rodovia principal, escapando para algumas menores e finalmente um círculo vermelho marcando um local. – Só faltou escrever no círculo "armadilha, pode vir" – pensou com um suspiro. Mas considerando que eles não tinham escolha, só restava torcer pelo melhor. Com pensamentos sombrios, Mickey ligou o carro e começou a seguir o caminho indicado.

Quarta-Feira, 05 de Março, 14:48... A viagem de mais de duas horas seguia em silêncio absoluto. Após saírem da rodovia principal, os caminhos foram se estreitando e se esvaziando. Já fazia um bom tempo que eles não cruzavam com outro veículo nesta estrada de pista simples. A abstenção de palavras de sua parceira era deveras incômodo para alguém acostumado a trabalhar com pessoas mais entusiasmadas. – Será este o preço de caçar terroristas? – perguntava-se o detetive.


– Quanto terror ela já presenciou? Que tipo de animal ela está acostumada a caçar? Quais atrocidades seus alvos já haviam cometido? Repentinamente, a importância de caçar ladrões de banco como o Bafo ou corruptos como Lasswell, havia diminuído muito. O ego de Mickey entrou em queda livre e descia cada vez mais, a medida que ele imaginava as ações de sua parceira. Mas agora, o pensamento do detetive voltou a focar. Seguindo as indicações do mapa, a curva seguinte o levou a uma estrada de terra, cercada por árvores centenárias. Ele notou prontamente que Bykov retesou, oque significava que ela estava ciente do quão próximos estavam do seu alvo. Saber que estava junto a uma profissional o tranquilizava um pouco, mas oque atormentava sua mente era algo muito simples. O Mancha marcou este encontro e Mickey precisava arrumar uma forma de sair vivo dele.

Quarta-Feira, 05 de Março, 15:11... Curvas e mais curvas, grandes árvores, mato alto dos dois lados, estradas de terra, nem um carro, pessoa ou animal. Quanto mais se aproximavam de seu destino, mais evidente era a ausência de vida naquele local. Caso fosse realmente um esconderijo, o Mancha havia escolhido bem. Mickey continuava seguindo o mapa sem ouvir um comentário de Bykov, com isso era impossível saber sua percepção. – Quase lá, mais três curvas e chegamos ao local indicado – pensou o detetive, diminuindo a velocidade pela dificuldade de guiar naquela estrada. Repentinamente, Bykov soltou sua primeira frase: – Agente Mickey, preciso lhe dizer uma coisa. A surpresa do detetive quase o impediu de responder: – Hum??? Digo, pode falar. – A captura deste indivíduo é meu objetivo, algo pelo qual estou trabalhando há anos. Gostaria que você não interferisse.


– Eu não tenho motivo para interferir agente Bykov. Na realidade, eu começo a perceber que não deveria estar aqui – foi a resposta com toda a sinceridade. – Oque quer dizer? – Os agentes da CIA falaram tanto sobre meu conhecimento, minhas investigações, mas eu não fiz nada. Ficamos dias parados no aeroporto e do nada, recebemos um mapa direto para a toca do lobo. O que a minha presença ajudou nisto? – Nada, mas eles não teriam me enviado sozinha. Como já falhei diversas vezes para encontra-lo, imaginaram que precisavam de sangue novo – foi o comentário carregado de rancor. – Mas você sabia que ele nos convidaria, não? – Era um palpite. Como enviei muitos recados a medida que arrebentava e coagia seus cúmplices, imaginei que ele acabaria me chamando. – Mas por quê? Neste momento Bykov mudou totalmente de assunto, com uma única palavra em um tom soturno. – Chegamos. Ela tinha razão. Ao final da terceira curva, a estrada terminava próximo a um galpão, não muito alto, mas aparentemente bem extenso. Obviamente um grande galpão branco de madeira destoava de tudo que viram na última hora. Além da pequena porta no canto direito, não havia janelas e não era possível precisar até onde ele se extendia. A surpresa de estar cara a cara com seu destino fez Mickey dar uma freada brusca, que em nada perturbou o olhar concentrado de sua parceira. Engatando novamente a primeira marcha, o detetive levou o carro mais próximo da única porta visível, parando a cerca de dez metros deste acesso. Sem qualquer comentário, Bykov desceu rapidamente do veículo e seguiu na direção da pequena porta de madeira. A obviedade da armadilha era tamanha que Mickey não acreditou nesta atitude descuidada. Ao mesmo tempo, desejou de coração que ela soubesse oque estava fazendo.


Até o detetive desligar o veículo e seguir em direção ao mesmo local, a agente já estava abrindo a porta e entrando sem qualquer cerimônia. Mickey apressou o passo com um único pensamento: – Maluca! Quase chegando lá, ele viu Bykov colocar a cabeça para fora e dizer, em um tom baixo e cuidadoso: – Limpo, pode entrar. – Realmente sabe oque está fazendo – foi o pensamento do detetive ao respirar aliviado. Cautelosamente, Mickey entrou e percebeu que mesmo vazio, a primeira área do galpão possuía uma certa iluminação natural, já que felizmente existiam alguns painéis transparentes no teto. Lado a lado, os agentes seguiram por dentro do galpão em silêncio absoluto, olhando em todas as direções, em busca por antagonistas. Não havia muito oque ver, exceto uma outra porta no meio de outra parede sem qualquer janela. Como não havia outro caminho a seguir, o detetive indicou que entraria lá. Com uma pequena hesitação a porta foi aberta e ambos adentraram prendendo a respiração instintivamente. Mickey conseguiu ver uma sala não muito grande com uma escada ao final que aparentemente levava a um cômodo superior, cujo interior não podia ser visualizado. Esta porta era escura e estava encostada. Ele fez sinal para Natasha, que empunhava sua Magnum .44 engatilhada. Seus olhos buscavam atentamente qualquer movimento ou inimigo que precisasse ser abatido. Repentinamente, o silêncio foi quebrado por uma voz grossa e imponente: – Que interessante, tenho visitas. Ambos olharam em direção ao alto da escada. Mickey ficou em alerta e Natasha apontou a arma direto para a porta que estava se abrindo devagar. Alguns segundos depois, apareceu um vulto vestido inteiramente com uma roupa negra com gola, máscara e garras afiadas.


Mickey o conhecia melhor do que ninguém e a última vez em que o havia visto assim, eles estavam em Avangard City. Natasha já havia visto fotos deste uniforme, mas isto não evitou que seu coração acelerasse ao visualizar aquela tétrica roupa. – Como dizem por aí, a vida é cheia de surpresas. De todos os seres humanos deste planeta podre, estão aqui, juntos, os dois que eu nunca esperaria ver ao mesmo tempo – disse o vulto, começando a descer a escada. Mickey estava aguardando a ação dela. Como estava desarmado, tinha que confiar em Bykov caso o Mancha tivesse uma arma e foi enquanto pensava sobre qual seria a melhor coisa a fazer, que seu raciocínio foi quebrado por sua parceira. – TIRE A MÁSCARA! – gritou, enquanto apontava a arma para a cabeça do vilão. – Nossa, quanta intimidade – respondeu o Mancha calmamente. – TIRE A MÁSCARA AGORA! Mickey não entendeu a atitude dela, mas imaginou que não era hora de questionála. A situação em que eles se encontravam era extremamente delicada. – Tudo bem – disse o Mancha, ainda descendo a escada. – Eu nunca consegui te negar nada, não é? – perguntou ele colocando as mãos para trás e se preparando para retirar o capuz. – Acredite, é um imenso prazer te rever... – dizia ao mesmo tempo em que exibia o rosto. – ...Tasha. Mickey estava com os olhos nos dois. Aparentemente o Mancha estava totalmente a vontade e a agente Bykov estava complemente tensa. Assim que o rosto dele apareceu, o corpo dela relaxou. Em seguida, ela abaixou a arma e desengatilhou. Sua respiração curta e rápida indicava uma tormenta de sentimentos que Mickey não conseguia definir e a única coisa perceptível e inegável era que sua parceira e o Mancha Negra se conheciam. – Então é você mesmo, Dmitri – disse ela, com um suspiro longo e triste. – É evidente. Ou você acha que a KGB, a CIA e o FBI te dariam informações incorretas? – perguntou ele se aproximando mais. – Não, mas eu precisava ver seu rosto por baixo da máscara para não restar dúvidas – respondeu ela, erguendo a arma novamente para manter uma distância segura dele.


– Calma Tasha, eu estou desarmado e a convidei para cá. Pode confiar em mim – disse ele, dando um passo para trás. – CONFIAR EM VOCÊ? – gritou ela, engatilhando a arma novamente. Mickey não estava gostando do rumo da conversa. Aparentemente Natasha tinha um problema pessoal a resolver com o Mancha e isto iria atrapalhar o andamento da missão. Mesmo assim, não havia espaço para seus comentários ou intromissões. A agente Natasha Bykov e o Mancha Negra conversavam sozinhos e ignoravam a presença de Mickey completamente. – Confiar em Dmitri Ivanov? – perguntou ela com sarcasmo. – Confiar no traidor mais odiado da nossa pátria? Você traiu sua família, o exército e o General Alexei. Você entregou a Moldávia nas mãos dos Soviéticos e ainda imagina que merece confiança? – Eu não traí nossa pátria e muito menos você, pois a mantive viva e a salvo no dia da invasão ao Castelo Peterhof – respondeu o Mancha, aparentando calma. Mickey gostava cada vez menos do rumo da conversa. – Mentira, foi só coincidência eu não estar lá. Você nunca se importou comigo, seu miserável frio e calculista – disse com raiva. – Acredite no que quiser, mas tudo que fiz foi motivado por apenas uma coisa, eu tinha que terminar com a guerra – afirmou ele com convicção. – Mentiroso – resmungou ela com ódio no olhar. – Vamos falar sobre mentiras Tasha? Seu amado General mentia que tinhamos chance contra os Soviéticos, mentia que o povo estava protegido, mentia que a melhor coisa que poderíamos fazer era continuarmos independentes, mentia que as viúvas e órfãos de guerra recebiam ajuda do governo. Natasha não respondeu. – Em quase sete anos de guerra, você sempre viveu protegida no castelo. E quanto a mim? Eu presenciei o horror dos campos de batalha, encontrei vilas dizimadas pelas tropas Soviéticas para minar a vontade do nosso povo, assisti soldados saqueando as casas e crianças chorando por seus pais e por fome – disse ele em um tom emocionado, a medida que se aproximava.


– Quantas chances o desgraçado do Alexei teve para encerrar tudo aquilo? A princípio, eles não queriam nos anexar, bastava que ficássemos subordinados ao Comitê Central do Soviete Supremo. Mas não, a Moldávia nunca aceitaria ser subalterna a Moscou, nosso orgulho nacional não devia permitir isso, mesmo que custasse a vida de milhares de pessoas inocentes. As lágrimas começaram a rolar no rosto de Natasha. – Não justifica a sua traição! – disse ela em um tom de voz muito baixo. Mickey estava preocupado e o medo de que Natasha matasse o Mancha friamente estava aumentando, apesar de que ele não iria permitir. – Agente Bykov... – ele começou a falar, sendo cortado imediatamente. – CALE A BOCA! – foi o grito que Mickey recebeu como resposta. E Natasha o fez sem desviar os olhos do Mancha. Mickey congelou neste momento. Qualquer coisa que ele falasse apenas iria piorar a situação. – Nicolai nunca teria aceitado o que você fez – continuou ela, com mais raiva ainda. – NÃO OUSE CITAR O NOME DE NICOLAI! – gritou o Mancha, perdendo a calma pela primeira vez. – Você não sabe de nada porque não estava lá! Você não viu o que aconteceu em Prytysko para saber de alguma coisa, então não fale nada – concluiu ele com raiva. – Tudo bem, Nicolai não tem nada a ver com isto. A única coisa que importa é que finalmente eu encontrei o traidor – disse ela, voltando a mirar na cabeça dele. – Eu sabia que você me procurava, tanto que há vários anos eu sempre estive a sua frente. Mas agora eu ordenei a um dos meus lacaios, que inclusive você conhecia, que se você aparecesse, deveria convidá-la para que pudéssemos conversar. – respondeu calmamente. – E agora, Tasha? Você mata o traidor, sua vida torna-se completa e a partir de amanhã, a felicidade baterá na sua porta todo dia? Natasha não respondeu. – É hora de decidir seu futuro, Tasha. Estou te dando a chance de escolher entre suas ordens ou seus desejos – concluiu o Mancha, ficando parado de frente a ela. – Agente Bykov, não faça isto – pediu Mickey, tentando passar calma em sua voz.


– Eu não sei oque ele fez contra você, mas matá-lo a sangue frio é errado. O Mancha Negra deve ser julgado e preso por seus crimes. – Ele nunca fez nada contra mim – balbuciou ela. Mickey sentiu-se aliviado, pois o problema não era pessoal, o que tornaria mais fácil convencê-la a não matá-lo. – Então, por favor abaixe a arma. Vamos prendê-lo e levá-lo as autoridades. Natasha não respondeu. Um turbilhão de memórias e sentimentos se misturavam em sua cabeça. Tenras lembranças do passado, o primeiro dia que ela o viu na escola, a amizade acima de tudo, os fatos terríveis ocorridos durante a guerra, o alivio que ela sentia quando Dmitri e Nicolai iam visitá-la no castelo nos poucos períodos de folga, o dia em que ele voltou sozinho após uma série de campanhas vitoriosas. Cada item, momento e sentimento envolvido em uma convivência de tantos anos estava voltando como um filme, com a conclusão no maldito dia do adeus, onde ele deixou claro que não tornaria a ve-la. Neste confuso longa-metragem o desfecho eram as ordens de seu governo para matar o traidor a qualquer custo, esta era sua missão. – Agente Bykov? – perguntou Mickey após quase um minuto, quebrando a concentração dela. Este pequeno minuto a fez se decidir. Ela faria o que devia ser feito e que se danassem as consequências. – Fique tranquilo agente Mickey, eu não vou matá-lo... – disse ela finalmente, ao mesmo tempo em que trazia a mão em sua direção, mantendo a arma apontada para cima ao lado de seu rosto. Neste momento, desengatilhou. – Ainda bem – pensou Mickey ao ouvir isto ao mesmo tempo em que dava um suspiro de alívio. – ...e sinto muito por isso – concluiu ela, dando um passo para trás e ficando as costas de Mickey. Antes que Mickey pudesse perguntar qualquer coisa ou mesmo olhar para trás, a coronha da arma que estava com a agente Natasha Bykov desceu pesadamente em sua nuca. Escuridão.


Capítulo 07 – Mancha Neural Quinta-Feira, 20 de março, 14:33 Hoje Mickey tentava decidir oque fazer naquele exato momento. Dar um tiro na porta? Seria uma alternativa possível, mas poderia acidentalmente matar o piloto. Ameaçar dar o tiro e exigir que ele saísse? Podia ser, mas acabaria o elemento surpresa. Tantas opções e ao mesmo tempo, uma sensação de letargia e desorientação. 1210 km por hora. O jato onde ele estava tinha um formato de V, com a ponta da frente afinada e o corpo mais largo, visando carregar bombas e equipamentos. Sua estrutura foi planejada para transportar qualquer coisa, menos pessoas. A única área realmente protegida era a cabine de comando. 1220 km por hora. O Concorde, famoso jato supersônico, possui o corpo inteiro afinado por dois motivos. Facilitar o Mach e evitar qualquer reação ao estrondo sônico para quem estivesse lá dentro. Essa preocupação não existiu para os projetistas desse jato. 1230 km por hora. Nesse instante, Mickey decidiu. Daria um tiro na porta e se por acaso o piloto fosse atingido e o jato caísse, levando-o a morte inevitável, seria um preço que ele estava disposto a pagar. Mas ela estaria segura e só isso importava. Sem pensar, a arma foi apontada para a porta e engatilhada. Mas uma lembrança o fez hesitar por um segundo. – Desculpe Minnie... – foi sua última frase. 1235 km por hora. Escuridão.


Quinta-Feira, 06 de Março... Escuridão. Silêncio. Frio. Dor. Dor intensa. Uma pontada forte que não se sabe de onde vinha. Uma pontada forte na cabeça. Um leve movimento. Frio. Silêncio. Uma dor mais forte. Um leve zunido e um pequeno movimento. – Onde estou? – pensou Mickey. A dor não o deixava raciocinar. Sua cabeça parecia que ia explodir. Foi difícil começar a abrir os olhos. A dor, o silêncio, o frio, uma luz muito forte e uma grande confusão mental tornava tudo surreal. – O que houve – era seu pensamento naquele instante. – Finalmente acordou, achei que era mais duro – foi o que Mickey ouviu bem longe. – Onde... Onde... Onde estou... O que houve? – ele balbuciava de forma totalmente confusa. Uma risada longínqua foi sua resposta. Escuridão.

Um tempo indefinido depois... Escuridão. Muito confortável. Nenhum problema. Nenhuma dor. Nenhuma sensação. De repente, a luz. – O que?! O que houve?! – Mickey acordou gritando. A dor ainda estava na sua cabeça, o frio continuava em seu corpo deitado em uma mesa de metal. Amarrado. Indefeso. A sala onde estava não parecia a de um galpão, mas sim de um laboratório de alta tecnologia.


Diversos armários com uma infinidade de ampolas, alguns computadores que mais pareciam servidores de última geração e uma iluminação forte e branca. – Será que agora você fica acordado? – Mickey ouviu em um tom mais frio do que a mesa, aquela voz que ele conhecia tão bem. – Mancha! Desgraçado! O que fez comigo?! Cadê a agente Bykov?! – começou a gritar Mickey desesperadamente, se debatendo na fria mesa. – Eu? Eu não fiz nada. Quem quase rachou sua cabeça foi sua amiga. Repentinamente veio a lembrança. – Não... Não pode ser. O que você fez com ela? – disse ele parando de se debater. – Nada. Apenas perguntei o que ela queria fazer e a resposta foi sua cabeça rachada – respondeu com um sorriso macabro. – É impossível... Eu li a ficha dela... Uma ficha impecável... Como é possivel? – Hahahaha – foi a resposta, que durou alguns segundos. – Impressionante, realmente impressionante! – disse o Mancha em um tom muito inconformado. – Como um idiota crédulo como você pode me atrapalhar tanto? Uma moça bonita com a ficha impecável. Desde quando isso deve ser considerado para descobrir as motivações de uma pessoa? Mickey não respondeu. – Se eu soubesse que você confiava de olhos fechados em uma mocinha bem intencionada, já teria te destruído faz tempo. – finalizou o Mancha ao mesmo tempo em que balançava a cabeça. Mickey não conseguiu responder. Sua cabeça alternava entre a traição de Bykov, a sua situação e como iria sair dela. Repentinamente a resposta veio, ele precisava ganhar tempo. – Onde esta ela? Oque aconteceu enquanto estive desmaiado? – perguntou com curiosidade genuína. – Não seja indiscreto, daqui a pouco vai querer saber até os detalhes íntimos... Hahahaha – foi a resposta com a conhecida risada gélida. – Isso, comece a se gabar enquanto ativo o localizador de emergência na minha roupa. – pensou Mickey enquanto apalpava a lateral direita da perna.


– A propósito, é isso que está procurando? – foi a frase que o Mancha proferiu ao mesmo tempo em que exibia o localizador, uma peça metálica que parecia uma moeda. Mickey sentiu-se gelar. Como ele poderia saber disso, a não ser que... – Tasha foi gentil e me informou desse pequeno detalhe. Ela não é um amor? – perguntou o Mancha com intensa ironia. O olhar de Mickey estava vazio. A ausência do plano B (a agente Bykov) o travou. – Bom, considerando que em breve você não poderá perguntar mais nada, serei magnânimo. Como o clichê de um bom vilão de filme, permitirei que você pergunte oque quiser e então irei expor meu plano maligno enquanto você, o herói, tenta se safar. Mickey não tinha outra opção e realmente, ele precisava saber oque estava acontecendo. – Então, que tal me dizer oque você faz no meio desse mato? Está se escondendo da CIA? – perguntou rapidamente antes que seu algoz mudasse de idéia. – Hora, você sabe o motivo, a CIA lhe contou sobre o vilarejo e os fanáticos assassinos. Mickey engoliu seco, pois a admissão de culpa por tantas mortes, dita de uma forma tão fria era extremamente incômoda. – Eu não havia acreditado, mesmo sendo você, eu não consegui acreditar que seria sua responsabilidade o massacre de uma vila cheia de inocentes. – disse Mickey com um suspiro. – E quem disse que a culpa é minha? Vou te contar quem é o culpado de tudo isso – foi a resposta com imensa tranquilidade. Mickey estava cada vez mais confuso. – Como você bem sabe, sou um gênio, e como tal, meus objetivos sempre foram grandiosos. – Roubo, sequestro, extorsão. Muito grandioso mesmo – respondeu Mickey com um sorriso. – Ah, você citou os meios, mas não sabe o fim. Tenha paciência, pois quanto mais demorar essa conversa, mais tempo você terá de vida – respondeu o Mancha. Mickey sentiu seu coração disparar com a ameaça carregada de ódio.


– Tudo começou quando após muito estudo, consegui criar algo que almejava há muito tempo. Anos de pesquisa e dedicação culminaram na minha maior criação, o Mancha Neural. Mickey deixou escapar uma risada. – Falei algo engraçado? – Claro que não, só estou imaginando o ManchaMóvel, o Manchacóptero e a ManchaCaverna. – disse Mickey controlando a risada. – Está enganado, o nome Mancha não é uma demonstração ridícula de narcisismo, é apenas o "sintoma" que indica que o hospedeiro está contaminado – foi a resposta. – Uma... pequena... mancha... no... cérebro... – lembrou Mickey sentindo-se gelar novamente. – O Mancha Neural é um nano-robô, que ao ser injetado na corrente sanguínea chega até o cérebro. Uma única dose contém milhões e milhões de robozinhos. – disse o Mancha exibindo uma pistola muito parecida com as usadas em vacinação bovina. – Imagine milhões de robôs, cada um se ligando a uma sinapse, a um neurônio, todos disparando micro sinais elétricos que são idênticos aos comandos normais do cérebro. – Tantos sinais simultâneos, todos ao mesmo tempo sobrescrevendo a vontade e o raciocínio do hospedeiro. Será que você consegue imaginar o poder disso? – Mas, mas, mas... não faz sentido. Se você tem algo tão poderoso, podia conseguir oque quisesse – respondeu Mickey espantado. – Para que matar inocentes, fazendo um massacre como aquele? – Já disse que a culpa não é minha. Que tal deixar eu concluir a história? – foi o comentário impaciente. – Pelo menos uma parte esta clara agora, você dominou a agente Bykov – deduziu o sempre detetive. A gargalhada do Mancha ecoou por todo o ambiente. – Como alguém que se acha um detetive tão competente pode ser tão ingênuo em relação ao coração das mulheres? – Eu não fiz nada contra Tasha, tanto que precisei mandar um lacaio convidá-la para cá, fora a ceninha que você acompanhou na chegada. – disse o Mancha em


tom de incredulidade. – Ou talvez a pancada na cabeça foi mais forte do que pensei. – Verdade, eu não estou bem – pensou Mickey ao ter sua dedução refutada de forma tão óbvia. – Bem, agora seja educado e deixe-me continuar, ao final revelarei o real culpado. Você me permite? – questionou ironicamente. – Como se eu tivesse escolha... – Obrigado. Após concluir o Mancha Neural, realizei diversos testes em pequenos animais, que nada sofreram. Então um teste em larga escala era necessário. – O vilarejo... – balbuciou Mickey espantado com a frieza. – Um vilarejo afastado, onde eu pudesse verificar os efeitos acontecendo aos poucos, em diversas pessoas de idades, peso e alturas diferentes. Aquele local era perfeito. – Bastou contaminar a garota do hotel e ordenar que ela contaminasse os amigos e ao mesmo tempo, repassasse essa ordem. Em menos de três dias todos estavam sob meu controle. Foi lindo – suspirou o Mancha enquanto se virava para Mickey. – Mas... por causa de alguém tudo saiu errado. O cérebro humano tem nuances que o tornam mais sensível, então os pulsos do Mancha Neural deveriam ser gradativos. – Imagine rato... aquelas pessoas simples e honestas que deveriam viver tranquilamente... eu as vi morrer... uma a uma... por causa de um desgraçado – concluiu o Mancha, pausadamente e com os olhos injetados de ódio. – De quem ele está falando? – pensou Mickey sem entender. – Sabendo disso, procurei outro lugar e voltei ao trabalho – falou, já com a voz normalizada. – Tudo bem, já sei a primeira parte, mas isso não explica os fanáticos e os assassinatos. – falou sem querer o prisioneiro. Sem responder, o Mancha suspirou e dando de costas ao seu prisioneiro, caminhou lentamente em direção a uma mesa. Mickey não entendeu essa mudança de postura, mas aproveitou a deixa para procurar uma fraqueza nas cordas que o seguravam.


Infelizmente seu tempo foi demasiado curto, pois seu antagonista voltou em menos de dez segundos, tendo em sua mão uma fita grossa de lacrar encomendas, que o deixou apreensivo. – Como você não sabe esperar e nem ficar de boca fechada, só dessa forma para eu conseguir terminar minha história – disse o Mancha enquanto passava a fita várias vezes na boca de Mickey, com uma raiva palpável. Agora o detetive não conseguiria falar e nem gemer, de tão apertado que estava sua mordaça improvisada. – Bem melhor assim, sem qualquer interferência – comentou com um sorriso de satisfação – Agora posso concluir meu relato e me livrar de você de uma vez por todas. Mickey sentiu um arrepio na nuca, como se alguém estivesse dançando sobre seu túmulo. – Continuando... após o fracasso monumental com os coitados de Nord, fui até Spitak e fiz as coisas de forma mais lenta. – Contaminei um morador... aguardei alguns dias e nada aconteceu, exceto ele me obedecer. Passei para outro e outro... imagine a minha felicidade ao constatar que a segunda versão funcionava perfeitamente. Com esta certeza, coloquei meu plano em prática. – Selecionei alguns pilantras da região, aquele tipo de pessoa que ninguém sentiria falta e que se desaparecesse seria um alivio. Os enganei com uma promessa de trabalho sujo e um ganho alto e com a ajuda do Mancha Neural, tornaram-se meus escravos. – Você entendeu, rato? Consegue imaginar a possibilidade de fazer coisas boas com um bando de facínoras? – questionou o Mancha, sabendo que não haveria resposta. – O maior facínora de todos está aqui bem na minha frente – pensou Mickey, sem realmente saber oque fazer. – Quantos industriais que só servem para poluir o planeta, quantos políticos corruptos e banqueiros que por lucro destroem a vida das pessoas. Quantos inocentes foram prejudicados por estes malditos que foram meus alvos. – E sabe como tudo isso termina? Eu vou salvar este mundo podre, acabar com o desmatamento e as guerras, impedir a extinção dos animais e evitar que a raça humana se autodestrua. – Só restarão vivas as pessoas que merecem, que são boas e não fazem mal a


ninguém. E estes escolhidos obedecerão as minhas diretivas, e tudo será harmonioso e perfeito. – Louco – pensou Mickey arregalando os olhos. – Vejo que você não entendeu nada, não é? Pode falar – disse o Mancha arrancando a mordaça com toda a força. – Louco, você está mais louco do que nunca! Massacrou um vilarejo de inocentes e diz que a culpa não é sua! – E NÃO É!!! – gritou o vilão imediatamente – pois vou lhe contar quem é o maldito culpado de tudo. – Lembra-se de nosso último encontro em Avangard City? Com o Darkenblot eu sequestrei dezenas de líderes mundiais e exigi um resgate de bilhões. – Este dinheiro era para as pesquisas e o equipamento caríssimo que eu precisava para criar o Mancha Neural perfeito. – Eu não ia controlar ninguém, meu plano era criar algo imperceptível que alterasse a personalidade das pessoas aos poucos, tornando-as mais bondosas e menos gananciosas. Mas era necessário muito dinheiro para esta pesquisa. – Nã-ã-o-o... você quer dizer que... – gaguejou Mickey quando a conclusão tornouse óbvia. – Sim, seu maldito! Se não fosse a sua intromissão, eu poderia ter feito mais pesquisas e ninguém do vilarejo teria morrido. Vai conseguir dormir a noite sabendo disso? – Não, não, não... eu nunca desejei isso... você que é um louco assassino... você que... – falava Mickey quando foi violentamente agarrado no pescoço. – Sim, a culpa é sua! Ao evitar que o dinheiro daqueles líderes viesse as minhas mãos, você matou centenas de inocentes – vociferou ao mesmo tempo em que estrangulava seu refém. A cada segundo, Mickey sentia que seu fim havia chegado, pois era impossível escapar daquele aperto mortal. Em seus últimos instantes de consciência, apenas um pensamento veio a sua mente. – Minnie... De repente, o aperto parou. Mickey tossia, tossia e tossia ao mesmo tempo em que respirava desesperadamente.


– Por... – balbuciou ele, tossindo muito ainda. – Não é óbvio? Apesar de tudo, você merece viver. É uma das pessoas boas que este mundo precisa e eu te darei a chance de trazer muitas outras para o nosso lado. Esta será a expiação pelos seus pecados. – Não... não vou... te ajudar... seu... louco... O Mancha riu alto e debochado ao mesmo tempo em que empunhava uma coisa que parecia uma pistola de vacinação. Sem qualquer sutileza, o vilão aproximou-se rapidamente e apertou o estranho aparelho contra a perna do detetive. Tonto e sem poder reagir de qualquer forma, Mickey ainda conseguiu bradar, enquanto sentia sua consciência se esvair: – EU NUNCA VOU TE AJUDAR, SEU LOUCO!!!! – Não se preocupe, você vai entender tudo em breve. – foram as últimas palavras que ele ouviu. Escuridão.


Capítulo 08 – Dmitri Há 42 anos... Era uma bela tarde de quinta-feira na fazenda Nadeyus, localizada em Badiporis, província de Cahul, Moldávia. Esta tranquila fazenda era a moradia do braço principal da família Ivanov há mais de cinco gerações. Eles não pertenciam a nobreza do país, mas eram comerciantes importantes e ricos, que possuiam muitas reservas em ouro, acumuladas em mais de quinhentos anos de negócios lícitos e ilícitos. Diversos monarcas já haviam pedido favores e tomado empréstimos com os Ivanov e graças a isto, sempre havia um deles nas proximidades do Rei, como amigo ou conselheiro. A influência política e social dos Ivanov os tornavam pessoas requisitadas, ótimas para se terem como amigos e péssimas para se terem como inimigos. A dinastia Ivanov tinha uma arvore genealógica mapeada de quase mil anos, onde vinte e sete gerações eram identificadas e nomeadas devidamente. E foi nessa tarde quente e ensolarada que a vigésima oitava geração estava chegando, para alegria do patriarca Vladimir, que acompanhava sua esposa Yeva. Yeva tentava engravidar há um certo tempo e a demora impacientava a família. Vladimir tentava ser compreensivo, mas a sua posição e importância praticamente o obrigava a ter um herdeiro que carregasse o legado da dinastia Ivanov. Há pouco, o médico havia lhe parabenizado pelo saudável menino que acabara de nascer. A alegria desse nascimento era ofuscada pela leveza que Vladimir sentia por finalmente poder encarar a família juntamente com seu rebento. As mulheres limpavam o garoto que em breve estaria no colo de sua mãe. Yeva estava muito feliz pelo parto ter transcorrido sem qualquer problema e compartilhava da leveza de Vladimir por finalmente ter conseguido lhe dar um filho. Ao término do parto, Vladimir adentrou a sala onde Yeva descansava e aguardava seu menininho. Com um sorriso nos lábios, Vladimir aproximou-se da cama, segurou a mão direita dela e disse: – É hora de rejubilar meu amor, pois nosso filho nasceu e é saudável. A casa se encherá com os gritos de alegria de uma criança e nossa linhagem persistirá. Estou orgulhoso de você, pois cumpriu o seu papel com maestria. – Obrigada – foi a única resposta que Yeva conseguiu balbuciar.


– Presumo que esteja exaurida, mas você precisa segurar nosso herdeiro em seus braços para só então repousar serenamente. – Eu sei, pode trazê-lo – retrucou ela sem muita convicção. Ainda sorrindo, Vladimir saiu do quarto e seguiu até a outra sala, onde o menino estava sendo cuidado pelos criados. Sem falar nada, entrou, foi até o cesto onde estava e o pegou delicadamente. O menino não chorava mais e se aconchegou imediatamente em seus braços, oque fez Vladimir sentir uma simpatia e um amor incomensurável por aquela criança. Vladimir levava o pequeno para o colo de sua mãe, que aparentava estar um pouco mais animada. – Segure-o meu amor – pediu Vladimir enquanto entregava a criança. Yeva aconchegou o menino no braço, abraçando-o com carinho. Seu único pensamento era que essa criança tão esperada e desejada finalmente estava entre eles. – Qual nome você escolheu para ele? – perguntou por pura curiosidade, já que o acordo era que se fosse menino o pai escolheria o nome e se fosse menina, a escolha ficaria a cargo da mãe. – O nome de meu avô, que foi tão importante em minha vida, já que me deu mais atenção que meu próprio pai. – Então o nome dele será... – Dmitri, o primeiro da vigésima oitava geração Ivanov – respondeu Vladimir. Com um tímido sorriso, Yeva olhou para seu filho que dormia tranquilamente em seu braço. – Dmitri Ivanov, meu filhinho – foi o último pensamento dela, um pouco antes de fechar os olhos e começar a dormir também.

Há 41 anos... A alvorada havia despontado há pouco mais de trinta minutos naquele sábado e através de uma fresta da janela, o raiar do sol iluminava e aquecia o quarto onde Dmitri dormia tranquilamente.


Vladimir havia levantado primeiro e estava ao lado do berço, o admirando e tecendo dezenas de planos para o futuro. Como demorou para voltar ao quarto, Yeva foi encontrar seu marido. – Você está aí – disse ela, bem baixinho, no instante em que adentrou o quarto, vestindo um pijama longo e rosado. – Sim, meu amor – foi a resposta. Em seguida, Vladimir andou em direção a sua esposa e indicou a saída do quarto. Vladimir seguiu Yeva que quase bocejando perguntou: – O que você estava fazendo? – Olhando nosso rebento, pensando em todas as coisas boas que ele fará na vida. – Não está sendo apressado meu amor? Ele fez um ano há duas semanas – comentou Yeva sorrindo. – É claro que não meu amor. Dmitri tem um grande destino a cumprir e deverá levar isso a sério desde muito cedo – respondeu ele com convicção. – Pobre Dmitri, tão novo e com tanta responsabilidade – disse ela com um sorriso. – Com certeza, mas ele irá nos orgulhar. – Eu acredito nisso também. O destino de Dmitri é grandioso, ele será um homem que vai trazer orgulho a nossa familia e ao nosso país. Vladimir sorriu ao mesmo tempo em que abraçou Yeva, pois qualquer pequeno momento a sós era muito valorizado desde que Dmitri havia nascido. Claro que eles não puderam aproveitar muito, pois três minutos depois, ambos ouviram o choro de seu filho, indicando sem sombra de dúvidas que era hora da primeira refeição do dia. – Hora do serviço de quarto da mamãe – disse Vladimir sorrindo. – Eu sei, eu sei – respondeu Yeva um tanto quanto contrariada. – Vou aguardá-la na sala de estar – disse Vladimir se afastando. – Pode ir, assim que alimentá-lo e ele dormir de novo, eu vou te encontrar lá – foi a resposta. Yeva entrou novamente no quarto, onde ouvia o choro abafado de seu menino e com toda a delicadeza, abaixou-se para pegá-lo.


– Calma, calma, eu estou aqui. Já vamos encher a barriguinha do meu queridinho – disse ela ao mesmo tempo que o abraçava. Dmitri parava de chorar quase que imediatamente ao ouvir a voz de sua mãe. Ao sentir o abraço dela, ele repetia com toda a felicidade do mundo: – Mamã, mamã... – Dmitri Ivanov, o 28º da dinastia, o herdeiro de Nadeyus, o orgulho de seu pai – dizia Yeva com ironia enquanto olhava pra ele. – O mais importante é que você é e sempre será o meu filhinho – concluiu o abraçando de novo.

Há 35 anos... Dmitri não estava nem um pouco tranquilo naquela manhã de segunda-feira. Apesar de seus pais garantirem que ele adoraria o novo ambiente e as pessoas que lá encontraria, uma pequena e incômoda preocupação ocupava sua mente infantil desde que soube, no mês passado, que já era hora. Como pertencia a uma família rica, até os seis anos ele tivera uma série de tutores e professores particulares. Absolutamente tudo que ele queria aprender era providenciado, com toda a boa vontade, pelo seu pai. Por ser uma criança muito curiosa, Dmitri já havia aprendido a ler, tocava piano muito bem, nadava e até arriscava alguns movimentos de esgrima, sempre com seus tutores. Mas sua mãe apareceu com uma novidade no mês passado, pois como ele estava fazendo sete anos, já era tempo de frequentar a escola Gorky Chekhov, local de educação dos aristocratas, ricos e pessoas influentes. Yeva deixou muito claro que se Dmitri quisesse ser alguém na vida, respeitado, inteligente e independente, ele deveria se esforçar muito e ter excelentes resultados nas avaliações. E é a ida para esse local novo, cheio de desconhecidos e onde ele seria cobrado o tempo todo, que atormentava seus pensamentos no momento, enquanto seguia na charrete da família, conduzida por um dos criados. O maior medo de Dmitri é que ele conhecia seus limites e talentos, mas não tinha a menor idéia de como eram as pessoas com quem ele iria conviver e "competir" dali para a frente. Ele não queria de forma alguma decepcionar seus pais e muito menos ser inferiorizado perante outras crianças.


Yeva conhecia seu filho muito bem e fez questão de dizer várias vezes que ele se daria bem, que ele era mais inteligente que todos eles e outros elogios que falados por uma mãe, sempre são 100% sinceros. Dmitri ficava extremamente nervoso quando não tinha o controle da situação, mas tentava se acalmar a medida que via o muro da escola se aproximando. A inevitabilidade dos próximos acontecimentos causavam uma sensação de conformismo muito ruim. O criado levou a charrete até a entrada, parou, amarrou o cavalo no local apropriado e em seguida foi ajudar seu pequeno mestre a descer. Com um movimento delicado, ele colocou Dmitri no chão e perguntou: – Deseja que eu o acompanhe até lá dentro, mestre Dmitri? – Não, não, pode deixar que me viro sozinho – foi a resposta nervosa dele. – Como quiser, senhor. Estarei aqui na hora determinada para levá-lo novamente a fazenda. – Tudo bem, até mais tarde – finalizou, virando-se de costas e adentrando pelo portão principal. Fingindo autoconfiança, Dmitri ergueu a cabeça e olhava para todos os lados, tentando se acostumar com a idéia de conviver todos os dias com tantas crianças. Para sua surpresa, diferentemente de sua casa onde era o centro de tudo, ninguém estava olhando para ele e nem dando qualquer sinal de atenção. Ele sabia que deveria ir até a sala trinta e dois, onde estaria sua professora Kathinka e a turma da primeira série. Claro que para chegar lá, deveria atravessar o pátio inteiro, que no momento estava um verdadeiro caos. Após alguns passos, Dmitri sentiu sua mão sendo segura e instintivamente a puxou com força, enquanto olhava na direção do atrevido que ousara tocar nele. Para sua segunda surpresa do dia, era uma menina pequena, talvez da idade dele, bonitinha, com aparência impecável e um sorriso maior que o mundo. – Desculpe te segurar, mas você tava andando rápido e eu queria te falar uma coisa – disse ela, com o rosto começando a corar. – Pode falar – respondeu Dmitri seriamente. Uma das coisas que ele aprendera com sua mãe era respeitar e tratar muito bem meninas e mulheres. – Eu sou da primeira série, hoje é meu primeiro dia aqui e estou perdida no meio de tanta gente. Você parece perdido também então imaginei que vamos estudar juntos e podiamos nos ajudar a chegar na sala.


Dmitri se surpreendeu novamente, pois essa menina era perspicaz e percebeu o quanto ele estava deslocado só de olhar para seu jeito. Ainda um pouco desconcertado, ele respondeu: – Tem razão, somos da mesma sala. Acho que podemos nos aju... – Ótimo, então vem comigo! – quase gritou a menina, puxando-o pela mão antes que ele conseguisse terminar a frase, pensar a respeito ou mesmo reagir. Nesse momento Dmitri atravessava o pátio na direção oposta para onde ia, enquanto era arrastado por aquela garota espevitada. Só após alguns momentos, ele conseguiu falar: – Estamos indo pro lado errado, as salas... – Eu sei, mas precisamos pegar o nosso outro amiguinho que está me esperando ali no canto. Eu prometi que ia conseguir mais alguém e iriamos todos juntos para a sala – foi a resposta dela, sem nem olhar para trás. Dmitri não conseguiu argumentar mais, já que provavelmente, esse tipo de coisa e de pessoa eram comuns nessa escola. Só restava a ele se adaptar e tentar parecer o mais calmo possível. Depois de algumas dezenas de passos, ele viu um outro menino pequeno com o olhar perdido sentado em um banco. – Será que eu estava com esse olhar? – se questionava. – Olha, olha, consegui mais um amiguinho, agora podemos todos ir para a sala! – chegou gritando. O garoto levantou sem parecer muito animado e disse apenas: – Vamos? – Espera, espera! – protestou Dmitri soltando a mão novamente. – A gente nem se conhece e papai e mamãe sempre dizem que não devemos conversar ou andar com estranhos. Será que podemos nos apresentar primeiro? – Tem razão, como fui mal educada – respondeu a menina, realmente sem graça. – Então tá, meu nome é Dmitri Ivanov, muito prazer em conhecê-los – disse ele de forma solene, da forma que ensaiou dezenas de vezes com sua mãe.


– Oi Dmitri, meu nome é Natasha Bykov – respondeu ela com um sorriso meigo e sem qualquer formalidade. – Nicolai Petrenco – disse o outro garoto, estendendo a mão. Dmitri apertou a mão de Nicolai e sentiu-se muito bem em conhecer duas crianças educadas tão rapidamente. Ele imaginava que talvez a escola não fosse tão ruim assim afinal. O que ele não imaginava, era que essa dupla de crianças seriam seus melhores amigos durante muito mais tempo que a permanência deles nessa escola infantil. O trio Dmitri, Natasha e Nicolai seriam inseparáveis a partir desse dia.

Há 32 anos... Natasha havia acabado de sair da sala de aula naquela manhã de segunda-feira e seu olhar buscava alguém que já estava fora dela há um bom tempo. Ao notar que quem ela procurava não estava no corredor, andou nervosamente em direção ao pátio. Chegando lá, viu Dmitri a distância, sentado tranquilamente em um banco lendo um livro, o que a deixou inconformada a ponto de ir até ele bufando. – Não acredito nisso! – disse em um tom nada amigável. – Não acredita em que, Tasha? – respondeu sem nem levantar os olhos do livro. – Que você está lendo uma das suas porcarias incompreensíveis! – Nietzsche é fascinante, você deveria experimentar – disse ele, ao mesmo tempo que marcava a página e fechava o livro. – Eu nem tenho tempo para estudar para os exames e você... você... – reclamava ela, arfando e com raiva. – Não entendo sua raiva, Tasha – respondeu Dmitri com um sorriso cínico. – Você sabe que odeio esse seu sorriso – disse ela com um olhar fulminante. – Mas o que posso fazer? Eu terminei a prova de duas horas em vinte e seis minutos e decidi esperar vocês aqui fora. Enquanto isso, estou lendo algo que vai abrir a minha mente. – Eu sei – falou Natasha conformada, para em seguida sentar-se ao lado dele no banco.


– Mas não acredito que você consegue ir tão bem nas provas sem se esforçar quase nada. Em seu tempo livre você lê essas coisas enquanto Nicolai e eu nos matamos de estudar. – Bom, não acredito que Nicolai se importe de ficar muito tempo com você. Na realidade ele diz que gosta de cada minuto – disse Dmitri reabrindo o livro. – Sim, sim, mas as vezes sinto falta de você para estudar com a gente. Eu gosto do Nicolai, mas prefiro ficar com você – respondeu Natasha corando levemente. Dmitri não respondeu e não demonstrou se havia escutado e entendido ou simplesmente ignorado. Após ler mais três páginas, marcar e fechar o livro novamente, disse: – Se o problema for esse, eu te ajudo a estudar, você sabe que não consigo te negar nada, Tasha. – Sim, e é só por isso que eu permito você me chamar de Tasha, esse privilégio é só seu. – Devo me orgulhar disso? – disse ele cinicamente. – Deveria seu bobo, você sabe o quanto gosto de você – respondeu ela o abraçando. – Eu também gosto de você Tasha, mas o Nicolai gosta muito mais – disse ele se desvencilhando do abraço. – Não me importa – balbuciou ela, contrariada. Um silêncio constrangedor se formou entre os dois amigos que permaneceram quietos até a chegada de Nicolai, quinze minutos depois. – Aí estão os dois, foram bem? – perguntou Nicolai enquanto se aproximava. – Qual a diferença? – resmungou Natasha. – Acho que fomos bem, Nicolai. Eu estava falando com a Tasha que para as próximas provas, eu podia ajudar vocês a estudar, que tal? – perguntou Dmitri com um sorriso. – Legal Dmitri, acho que vai ser legal. Nós estamos com dificuldade em matemática e qualquer ajuda é bem vinda. – Então combinado – disse Dmitri, ao mesmo tempo que extendia o braço no meio deles.


Natasha e Nicolai já conheciam o ritual, criado por eles na primeira série, três anos atrás. Ambos extenderam o braço, colocando a mão em cima da de Dmitri. – Amigos para sempre! – gritaram os três enquanto levantavam os braços ao mesmo tempo.

Há 31 anos... A sala do senhor Tols Vinográdon era impecável. Em estilo colonial, possuia uma mesa espaçosa, cadeiras lustradas e alguns armários com materiais e documentos. Uma janela de meia parede com cortina branca permitia a entrada do sol durante toda a manhã caso fosse desejado e uma porta de carvalho entalhado o mantinha em privacidade total. Ser o diretor geral da escola Gorky Chekhov era um cargo de prestígio e Vinográdon fazia questão de aproveitar cada mordomia que lhe era concedida. Enquanto verificava alguns assuntos que requeriam sua atenção, lembrava-se do pedido de reunião do professor Paovni, que ministrava aulas de física e química avançada para o 10º ano. Como aquela manhã de sexta-feira estava livre de qualquer compromisso urgente, Vinográdon o havia chamado as 11:30 hs. Faltando apenas três minutos para o horário combinado, o diretor ouviu uma leve batida na porta. – Entre – disse ele em alto e bom som, de forma que seu convidado pudesse ouvir fora da sala. Timidamente, o professor Luksy Paovni abriu a porta e adentrou. Em seguida a fechou e seguiu até a mesa, estendendo a mão e dizendo: – Bom dia diretor Vinográdon, obrigado por me receber. – Fique a vontade, professor – foi a resposta dele, ao mesmo tempo que retribuia o cumprimento com um aperto de mão caloroso. Paovni sentou-se e sabendo que o tempo do diretor era escasso, foi direto ao assunto: – Senhor, eu queria conversar sobre um dos alunos do 5º ano. Trouxe-lhe a ficha para o senhor conhecê-lo melhor – disse ele, colocando uma pasta em cima da mesa, em frente ao seu ouvinte. Vinográdon recolheu a pasta, olhou rapidamente a ficha cadastral do aluno e sem muito interesse, perguntou:


– Qual seria o motivo da conversa, prezado Paovni? – Esse aluno está tendo aulas particulares comigo, senhor – foi a resposta com certo receio. – Como assim? Explique-se, professor – retrucou o diretor, em um tom de incredulidade, ao mesmo tempo em que se ajeitava na cadeira. – Ele sempre teve muita facilidade em tirar as notas máximas de todas as disciplinas, senhor. Desde o ano passado, ele começou a sentir-se entediado e como um incentivo, seus professores permitiram que ele assistisse algumas aulas dos anos seguintes. – Sim, sim, eu me lembro desse caso. Mas o senhor tem que concordar que colocar uma criança de 11 anos para estudar física avançada e quimica molecular não é uma estratégia que faça sentido. É óbvio que será uma perda de tempo imensa para ambos, ele e você. – Era o que eu pensava, até que eu comecei a ensiná-lo em sala de aula e ele ultrapassou com folga todos os alunos de 17 anos. O diretor se espantou, mas o professor continuou sua história: – Como os demais alunos o atrapalhavam, decidi ministrar algumas aulas particulares. E estarrecido, notei que seu raciocínio lógico e abstrato ultrapassa o meu com folga. Para confirmar isso, pedi a professora Noelka que lhe aplicasse diversos testes de QI. – E qual foi o resultado? – perguntou o diretor muito interessado. – Não sabemos, senhor. – Como não sabem? – Foi impossível determinar, pois ele ultrapassou todas as escalas. O diretor se ajeitou na cadeira espantado, pois nunca havia visto algo sequer parecido com isso. Após alguns instantes de reflexão, disse: – E qual a sua opinião, professor? – Que estamos diante de um gênio como não se via há muito tempo nesse planeta. Para qualquer área que ele se direcionar será o melhor, possivelmente fazendo descobertas e formulando teorias que deixarão cientistas do mundo todo boquiabertos.


Após uma respirada funda, Vinográdon começou a imaginar tudo que estava envolvido com o que ele acabara de ouvir. Imaginou o prestígio que a escola e ele próprio receberiam caso um gênio tivesse sido educado lá. Com um sorriso, disse ao professor: – Imagino que o senhor tenha vindo me pedir autorização para dar uma atenção especial a esse aluno. – Sim senhor. Gostaria de ficar responsável pelas matérias que ele vai aprender e desejo acompanhar de perto seu desempenho, fazendo um relatório detalhado de cada item. – Autorização concedida, professor. Forneça tudo que esse aluno precisa e me mantenha informado de seu progresso. – Sim senhor, obrigado senhor – disse Paovni, levantando-se animado e já imaginando as coisas que faria em seguida. Após um ultimo cumprimento, ele saiu e deixou o diretor imerso em pensamentos agradáveis. Imaginava a repercussão perante a comunidade científica, os congressos que poderia ir no mundo todo apresentando esse prodígio e os dividendos que receberia por tê-lo treinado. Pegando a pasta em cima da mesa, olhou atentamente a ficha do aluno e com um sorriso, pensou: – Dmitri Ivanov, com um pouco de sorte e esforço, o mundo todo ouvirá falar de você um dia. O diretor Tols Vinográdon, não podia imaginar o quanto estava correto em seu pensamento. Ele só não podia imaginar como seria que o mundo conheceria aquele brilhante e promissor aluno.


Capítulo 09 – Amigos Há 30 anos... Desde a sua fundação, a Moldávia manteve como forma de governo a monarquia. O trono do Amieiro como era chamado, esteve ocupado por 36 gerações da dinastia Peterhof, cuja origem se perdia desde a época do Império Romano. Há pouco mais de quatro meses, o Rei Krigor Peterhof havia falecido, garantindo a sucessão de seu filho único, o príncipe Andres Peterhof, que agora mais do que nunca estava sozinho, pois seu nascimento havia vitimado a Rainha. O braço direito do Rei, General Alexei Amakai não sentia-se a vontade com o jovem príncipe, pois acreditava que alguém com singelos vinte e dois anos não estava preparado para ostentar a coroa como 37º monarca da Moldávia. Nas últimas semanas, a percepção ruim sobre o príncipe aumentava cada vez mais. Ele não levava a sério as obrigações da coroa, não participava dos eventos solenes onde era requisitado e muito menos preocupava-se com os problemas que chegavam aos seus ouvidos. Um sentimento crescente de desconfiança em relação a coroa estava em curso junto a população. O General Amakai havia avisado o monarca diversas vezes que o povo estava insatisfeito e isso poderia acarretar uma revolta. Como sempre, o Rei não dava ouvidos e mantinha o seu comportamento errático e despreocupado de sempre. Há duas semanas, esse sentimento negativo ganhou mais força após a divulgação de diversas viagens do novo Rei, que utilizando-se do tesouro do país estava passeando por toda a Europa ocidental. Seu erro fora justamente esse, pois aproveitando esse tempo, o General Alexei reuniu-se em segredo com outros militares insatisfeitos e com alguns milionários, dentre eles, Vladimir Ivanov. – Senhores, essa situação é insustentável! – bradava o General, buscando apoio entre os presentes. – E qual a sua sugestão, General? – questionou Vladimir. – Se os senhores confiarem nas palavras de alguém que só quer o melhor para seu país, vocês irão acreditar que só existe uma solução viável e definitiva para tudo isso.


Com muita atenção, todos os homens a mesa naquele momento, discutiam o futuro de seu país. A reunião havia terminado com um acordo de cooperação mútua e com a definição de cada passo a ser tomado nos dias seguintes. E hoje, no dia do retorno de sua majestade, o General Alexei o aguardava na pista de pouso exclusiva para o avião da realeza. O Rei Andres estava voltando para casa e solicitou uma escolta até o palácio, algo que ele nunca abria mão. Junto ao General, trinta oficiais de sua inteira confiança assistiam o avião pousar, se aproximar e parar. Em seguida, a escada foi colocada para a descida do Rei e sua pequena comitiva, formada de amigos íntimos e dois guardas. Ao pisar no chão, o Rei Andres falou animadamente: – Saudações General. – Majestade – respondeu ele com uma reverência. – Por que tantos guardas, General? Está tão preocupado com minha segurança? – perguntou o Rei de forma jocosa. – Em absoluto, Senhor. Eles estão aqui apenas para garantir que vossa majestade seja encaminhado tranquilamente para o local onde passará a noite. – O Castelo Peterhof é bem próximo General, não preciso de tamanha escolta. – respondeu o Rei, começando a se afastar. – Infelizmente sua casa pelos próximos dias não será o castelo de sua familia, Senhor – retrucou Alexei. – Explique-se, General! – ordenou o Rei, virando-se rapidamente para encará-lo. – Guardas! – disse o General, apontando para o Rei. Em menos de um minuto, os soldados que estavam atrás do General renderam o Rei, seus amigos e os dois guardas pessoais. – O que significa isso, General?! – gritava o Rei enquanto era imobilizado. – Significa que vossa majestade está sendo deposto, será preso e daqui a uns dias, exilado – respondeu friamente Alexei. – Podem levá-lo, mas sejam cuidadosos e não causem nenhum dano a nosso amado monarca. – Isso é traição! Você não pode fazer isso comigo!!!! ALEXEI!!!! – gritava o Rei enquanto era encaminhado para fora do aeroporto e de lá, para a prisão.


Enquanto olhava o Rei ser levado, o General pensava em como se havia chegado a essa situação, onde para garantir a soberania de sua pátria, ele precisaria encabeçar um golpe de estado. Sem hesitar, ele faria qualquer coisa para proteger seu amado país e o apoio dado pelos outros militares de alta patente e pelos milionários, garantiria a sua subida e permanência no poder. Isso era um fato incontestável, do qual ele tinha certeza absoluta. O que o General Alexei Amakai nunca poderia imaginar, era a terrível consequencia que esse ato traria a Moldávia, que dentro de alguns anos seria envolvida em uma sangrenta guerra que iria exaurir os recursos econômicos de sua bela nação.

Há 25 anos... O clima frio e tranquilo desse inverno contrastava completamente com o ânimo dos três amigos reunidos na sala de estar principal da fazenda Nadeyus. O fato dos pais de Dmitri estarem ausentes em uma reunião de emergência com o General Alexei, não tornava o ambiente mais agradável ou menos tenso, mas ao menos permitia que eles conversassem com privacidade. Após receberem uma bandeja com chá e pães diversos, servida pelo criados, Dmitri pediu que todos saissem e os deixassem a sós. Enquanto bebiam o chá em silêncio, pensavam nas possíveis consequencias da informação que receberam há poucos dias. Cerca de um ano atrás, o General Alexei havia recebido a visita de emissários do Kremlin de Moscou, com uma mensagem direta e clara. Os russos exigiam, sem qualquer possibilidade de negociação, a rendição militar e subordinação total do governo da Moldávia ao Comitê Central do Soviete Supremo. A partir disso, toda e qualquer decisão estratégica ou econômica em acordos comerciais com outros países, deveria passar pelo crivo dos comunistas. Por considerar o ultimato russo uma afronta, o General Alexei simplesmente deportou os mensageiros de volta a Moscou, sem enviar qualquer resposta formal. Sete meses depois, uma nova tentativa de contato foi feita pelos russos. Com termos mais amenos como "A Moldávia está em uma posição de fronteira que devemos proteger", "A Moldávia não será anexada a U.R.S.S., apenas queremos ter a certeza da lealdade do governo" e uma maior flexibilidade sobre as decisões que o Comitê Central tomaria, um diplomata conversou por dias com o General. Como não chegaram novamente a um consenso, após a partida do diplomata, o General Alexei imaginou que o próximo contato seria bem mais ameno e com certeza poderiam chegar a um acordo muito mais benéfico a Moldávia.


Esse contato seguinte realmente aconteceu, só que de outra forma. Há pouco mais de quarenta dias, tropas Soviéticas haviam se posicionado na fronteira entre os dois países. – É um blefe para me assustar – pensou o General. Não era. Há quinze dias, ocorreu a invasão por terra com soldados e tanques ao mesmo tempo em que caças bombardeavam alvos militares nas cidades mais afastadas da capital. A principio, os russos mantiveram posição próxima a fronteira. O General entrou em contato com Moscou, tentando falar sobre os termos do acordo que havia sido oferecido há poucos meses. A resposta foi curta e grossa: "Sem acordo, exigimos sua rendição e submissão total". Essa nova afronta foi demais para um General que não estava acostumado a baixar a cabeça nem para o rei, quanto mais para estrangeiros comunistas que se achavam donos do mundo. – Sem acordo também. Vou expulsá-los de volta para o buraco de onde vieram! – foi a resposta de Alexei. A guerra havia começado. E foi essa a primeira notícia que o trio de amigos recebeu. Ainda sem entender muito o que fazer ou o que pensar sobre isso, a segunda notícia foi mais devastadora. Todos os homens capazes e jovens entre 16 a 30 anos estavam automaticamente convocados para o exército nacional, que iria resistir a invasão Russa. Esse alistamento compulsório pegou de surpresa a nação inteira, mas havia um sentimento corrente de que não podiam simplesmente permitir que estrangeiros chegassem e assumissem tudo. Assim que terminou de engolir o chá, foi Natasha que quebrou o silêncio ao mesmo tempo em que se levantava da poltrona: – Então? – Então o que? – Questionou Dmitri se levantando também. Nicolai se mantinha em silêncio. – Como o que? Vocês foram convocados para a guerra, não vão falar nada? – E podemos falar o que? Temos escolha ou opção? – respondeu Dmitri cinicamente. – Não disse isso. Quero saber o que vocês acham disso tudo.


– Perda de tempo! O General devia ter feito um acordo ao invés de entrar de cabeça nessa guerra que só vai servir para fazer o povo sofrer – respondeu Dmitri com raiva. – Mas temos que defender nossa pátria! – retrucou Natasha – Eu não estou negando isso. Só digo que nesse caso, uma saída diplomática teria sido muito mais eficiente. – Você acha que tudo se resolve conversando? – Não, mas nesse caso, sim – encerrou Dmitri, se virando e passando a admirar a parede. Essa era outra característica que Natasha odiava nele. – Não dê as costas para mim, você sabe o quanto odeio isso! – disse Natasha espumando de raiva. Dmitri a ignorou e não saiu da posição em que estava. – Gente, parem com isso! – disse Nicolai, finalmente quebrando seu silêncio autoimposto. Em seguida ficou de pé também. – Sei que ambos estão tensos, tristes e nervosos, mas brigar entre nós só vai piorar a situação – concluiu ele. – Como sempre o apaziguador – disse Dmitri se voltando novamente e encarando Natasha. – Você devia aprender com Nicolai que seus surtos histéricos não resolvem nada, Natasha. Natasha sentiu um frio no peito. Toda vez que Dmitri não a chamava de Tasha é por que ele estava extremamente nervoso. Talvez ela tivesse subestimado os sentimentos de seu amigo. – Tudo bem Dmitri, desculpe. Mas não sei como lidar com isso – foi a resposta dela, em um tom muito humilde. – Calma, Natasha – falou Nicolai com carinho – Sei que você está preocupada conosco ao mesmo tempo que sabe que não temos como evitar isso. Mas fique tranquila, não vai acontecer nada enquanto estivermos juntos. Eu cuido do Dmitri e ele cuida de mim. – Pode ter certeza – respondeu Dmitri – Não deixarei nada acontecer com o Nicolai. – Nem eu com o Dmitri – afirmou Nicolai.


Natasha olhou para seus dois melhores amigos e sentiu uma tristeza enorme. Sabia que ficaria longe deles a partir dos próximos dias e que eles estariam em perigo constante no front de batalha. Sem falar mais nada, ela foi até Dmitri e o abraçou bem forte. Meio surpreso, ele retribuiu o carinho. – Promete que vai voltar bem e cuidar do Nicolai? – perguntou ela. – Claro, Tasha. Após alguns segundos, ela o soltou e foi até Nicolai. Repetiu o gesto e o abraçou com força. – Você promete voltar bem também? E vai cuidar do Dmitri? – Claro Natasha – foi a resposta dele, a abraçando bem forte. – Promete que não vai deixar nada acontecer com ele? Vai trazê-lo são e salvo de volta? – insistiu ela. – Natasha... – começou a dizer Nicolai, susurrando no ouvido dela – Eu defenderei Dmitri com a minha vida se for necessário. Por você, eu não deixarei que nada aconteça a ele. – Obrigada – respondeu ela, também sussurrando. Em seguida, fez sinal para Dmitri se aproximar, abraçando-o também, mantendo um braço em cada um de seus maiores amigos. – Amigos para sempre? – disse ela, bem baixinho tentando segurar uma lágrima. – Amigos para sempre – foi a resposta dos dois, ao mesmo tempo em que a abraçavam.


Capítulo 10 – Guerra Há 24 anos... [1º ano da guerra na Moldávia] Era primavera. Nenhum dos que estavam cercando a pequena vila rural havia percebido isso, mas as árvores estavam começando a ficar floridas. O perfume que essas delicadas flores exalavam logo pela manhã também não era percebido. A 8º Companhia de Infantaria do Exército Nacional da Moldávia só tinha um objetivo, retomar essa vila que estava ocupada por tropas Soviéticas. Ao notar a aproximação dos russos, os moradores fugiram apressadamente e deixaram abrigo e comida a disposição do inimigo. O General encarregado havia enviado batedores que reportaram vigias em todas as entradas, o que impedia um ataque total. Ao invés disso, estavam se posicionando em pontos estratégicos, preparando– se para a batalha que começaria a qualquer momento. A guerra na Moldávia já durava quase um ano e as batalhas estavam se intensificando em áreas afastadas da capital, como esse pequeno vilarejo. Uma das estratégias do exército vermelho era avançar aos poucos e evitar baixas civis, afinal, após a ocupação Moscou não queria milícias se vingando de crimes de guerra. O General moldaviano não permitia ser chamado pelo nome. Para todo e qualquer subordinado, ele era “O General” ou simplesmente Senhor. Já os soldados eram todos chamados religiosamente pela patente e sobrenome. – Senhor, todos estão posicionados conforme suas instruções – falou um Sargento que viera ao General apenas para reportar a situação. – Obrigado Sargento Tankovist, informe todas as unidades que começaremos o ataque frontal exatamente as 10:30 hs. – respondeu ele – Assim que a artilharia começar, as demais unidades devem cobrir os soldados que estão avançando. – Sim Senhor – foi a resposta. Em seguida o Sargento bateu continência e se retirou para obedecer a ordem de seu superior. Dois dos soldados que estavam posicionados para o ataque frontal eram exatamente Dmitri e Nicolai. Eles sabiam que aquela era a posição mais perigosa, mas o critério de escolha para quem estaria lá era exatamente a agilidade e velocidade para vencer a distância em campo aberto o mais rápido possível. Eles sabiam que tinham poucos segundos para entrar na vila, se abrigar e limpar o caminho para seus companheiros que viriam em seguida. Também estavam cientes que a cobertura que teriam era de tiros dados a distância que poderiam ou não


acertar os inimigos. – Essa manobra é muito arriscada, Dmitri – falou Nicolai agachado ao lado do amigo. – Obviamente é arriscado para nós, mas é uma forma garantida de realizar a retomada rapidamente e com poucas baixas. O General é um grande estrategista – respondeu Dmitri sem se alterar. – E você fala com essa tranquilidade? Podemos não estar vivos ao final dessa batalha – argumentou Nicolai. – Para morrer basta estar vivo, Nicolai – foi a resposta mais fria ainda. – Você sabe muito bem que preciso te proteger para a Natasha – disse Nicolai com ironia. – Prefiro não falar nada a respeito disso, meu amigo – disse Dmitri, se alterando um pouco dessa vez. – Tudo bem, tudo bem. Deixa eu ver, temos exatamente dois minutos para avançar e torcer para que os inimigos não estejam esperando um ataque frontal, não é? – Eles estão esperando. Por isso que minha primeira ação será derrubar aquele sujeito que está lá no alto – respondeu Dmitri apontando para uma pequena fumaça saindo de um telhado. – Fumar é um péssimo hábito, não é? – disse Nicolai sorrindo. – Pode apostar – respondeu Dmitri conferindo e engatilhando sua arma. – Um minuto, meu amigo. Estou vendo o Tenente fazendo o sinal para ficarmos preparados – disse Nicolai, se posicionando. – Hoje a noite, brindaremos a Moldávia com mais uma vitória contra os comunas – respondeu Dmitri com um sorriso de satisfação. Os dois amigos não falaram mais nada, pois sabiam que suas vidas dependiam dos próximos minutos. Eles não podiam se dar ao luxo de errar ou hesitar. O inimigo não teria piedade e eles também não podiam ter. Exatamente as 10:30 hs da manhã, a 8º Companhia iniciou a invasão. Como tinha planejado, Dmitri derrubou o primeiro sentinela no momento em que ele virou a cabeça para olhar a origem do barulho que começara, conseguindo assim uma pequena folga para os soldados que estavam correndo em direção a entrada da vila.


Dmitri nunca imaginou comemorar seus dezoito anos matando soldados russos em solo moldaviano, mas infelizmente não havia qualquer escolha para os jovens de sua geração.

Há 24 anos, no dia seguinte... Dmitri estava sentando em silêncio, com a mente totalmente desligada do ambiente ao seu redor. A tranquilidade do momento contrastava completamente com a batalha sangrenta que havia ocorrido no dia anterior. Apesar de mais de setenta baixas, a 8º Companhia venceu a luta e retomou a vila. Após mais de vinte minutos de tiroteio intenso, os soviéticos tentaram abandonar o local e foram recebidos pela tocaia montada pelo General moldaviano. Em apenas três minutos tudo tinha terminado, com poucos remanescentes do exército vermelho sendo capturados como prisioneiros de guerra. Após atender os feridos, todos os homens que tinham condições cavaram sepulturas para os colegas e uma vala coletiva para os russos. Com uma pequena cerimônia, todos se despediram dos amigos e conhecidos, imaginando que na próxima vez, possivelmente seriam eles que estariam sendo sepultados diretamente na terra fria, com apenas um lençol em volta do corpo. Sem lembrar de qualquer detalhe, Dmitri continuava quieto. Sua posição de meditação foi aprendida lendo livros de Monges que conseguiam fica na mesma posição, sem dormir ou comer por mais de três dias. Ele não chegava a tanta perfeição, mas por algumas horas, era possível. – Saúde meu amigo! – chegou gritando Nicolai, quebrando a concentração e "acordando" Dmitri. Nas mãos dele, estavam duas canecas com cerveja, cheias até a boca. – Olá Nicolai – respondeu Dmitri secamente, sem se dar ao trabalho de dizer ao amigo o tempo que ele o fez perder com essa atitude. Voltar ao ponto de meditação onde ele se encontrava, demoraria pelo menos duas horas. – Ora, eu trago cerveja e você nem para agradecer – disse ele, sentando-se ao seu lado, ao mesmo tempo em que oferecia uma das canecas. – Tudo bem, obrigado – respondeu Dmitri pegando sua cerveja e já começando a bebê-la. – Um brinde a nossos companheiros que tombaram bravamente pela pátria – disse Nicolai, erguendo sua caneca. – Aos que tombaram idiotamente – respondeu Dmitri batendo os copos.


– O que quer dizer com isso Dmitri? – perguntou Nicolai espantado. – Não é óbvio? Seria bravamente se estivéssemos falando de soldados que lutaram da melhor forma possível e perderam para o tamanho do contingente inimigo. Mas estamos falando de rapazes sem qualquer preparo que correm sem direção e atiram de qualquer forma, só acertando o inimigo por sorte – respondeu Dmitri de forma melancólica. – Você sabe que não tivemos tempo para grandes treinamentos – argumentou Nicolai, entendendo o ponto de vista do amigo. – Eu sei, mas isso não significa que vou ficar feliz de ver tantas pessoas morrerem dessa forma, simplesmente pelo fato de que não sabiam o que estavam fazendo. – Você pensa demais Dmitri. O que importa em uma guerra são apenas duas coisas: Ganharmos e estarmos vivos para comemorar – falou Nicolai, virando quase a caneca inteira de uma vez. – As vezes gostaria de ter um visão tão simplista de nossa realidade, Nicolai – respondeu Dmitri, voltando a beber. Nicolai não falou mais nada, pois sabia que seu melhor amigo as vezes pensava demais e não adiantava argumentar com ele sobre isso. Enquanto bebia, seu único pensamento estava em Natascha, no quanto estava feliz pela oportunidade de vê-la novamente um dia. Já Dmitri, em silêncio com seus pensamentos, imaginava a quantidade de moldavianos que ainda tombariam nessa guerra estúpida e se havia realmente alguma chance de expulsar os russos de seu amado país.

Há 23 anos... [2º ano da guerra na Moldávia] O silêncio que rodeava a 8º Companhia contrastava completamente com o ruido da luta que havia ocorrido no dia anterior. A batalha de Valdai, como ficou conhecida, aconteceu no pé de um pequeno monte e envolveu além da 8º Companhia, mais duas companhias de infantaria, uma de artilharia pesada e uma de paraquedistas que surpreenderam os russos quando marchavam em direção a uma cidade localizada a apenas sete quilômetros a oeste. Nessa ocasião, os moldavianos celebravam tanto pela pequena quantidade de baixas como pelo grande prejuízo causado aos inimigos, pois em média caíram quatro russos para cada moldaviano. A única coisa que salvou o exército vermelho de um autêntico massacre foi a retirada estratégica que o General inimigo adotou após trinta e sete minutos de batalha.


Dmitri e Nicolai descansavam sentados e apoiados em uma árvore, estando cada um virado para um lado, ambos com os fuzis na mão. – E quando você se escondeu no banheiro das meninas para não levar uma sova daqueles três valentões? – questionou Nicolai. – Eu não tinha argumentos e muito menos força, então foi a única saída – respondeu Dmitri sorrindo. Sempre que tinham chance, os amigos conversavam sobre os tempos da escola. As lembranças de um tempo bom aqueciam seus corações e os mantinham animados para seguir em frente. – Pena que as meninas não concordaram com sua idéia – disse Nicolai, caindo na gargalhada. – Falou o rapaz que nunca fez nada vergonhoso – sentenciou Dmitri. – Não consigo lembrar de ter feito uma pior que essa. – Talvez não uma individual, mas em quantidade você ganha de longe. Vou ser um cara legal e te ajudar a lembrar de algumas hilárias. – Seu conceito de engraçado é bem diferente do meu, Dmitri. – Ah é? E que tal quando você perguntou para a Tasha assim : "Natasha, por que as meninas não tem piu-piu?" – disse ele, com voz infantilizada. Nicolai corou. – Não se lembrava disso? A Tasha ficou com tanta vergonha que não falou com você por uma semana. E quando você levou duas caixas, uma com um sapo para a aula de anatomia e outra com um presente para a Tasha? Preciso te lembrar o que ela fez com a caixa do sapo que você entregou a ela por engano? Nicolai permaneceu em silêncio. – Posso continuar, meu amigo? – Não precisa – disse ele finalmente – Você tem razão, mas a maioria das vergonhas que passei eram por causa da Natasha. – E você nunca parou para pensar o motivo disso? – Não sei do que você está falando, Dmitri – respondeu Nicolai secamente.


– Sei, sei. Bom, serei um bom amigo e não vou dizer o que você fez na minha casa quando experimentou, pela primeira vez, a vodca envelhecida por vinte anos do meu pai. – Você sabe que não lembro o que fiz – disse Nicolai com certo constrangimento. – Essa é a parte boa da história! – respondeu Dmitri rindo mais ainda. Contagiado pela alegria do amigo, Nicolai não conseguiu evitar de cair na risada também. Após alguns minutos, aproveitando o silêncio, ele concluiu: – Será que teremos nossas antigas vidas de volta, meu amigo? Dmitri suspirou profundamente. Ele tentava não pensar nisso, pois sua opinião era totalmente formada a respeito desse assunto. – Claro que não. Mesmo que a Moldavia saia vitoriosa, essa maldita guerra teimará em nos mudar por dentro. O melhor que podemos desejar é manter nossos valores inalterados até que possamos um belo dia voltar pra casa e esquecer tudo isso. – Tem razão... – respondeu Nicolai com um suspiro – Só de pensar na palavra “guerra”, uma antiga frase me vem a mente “Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais...” – Dante... Está poético meu amigo, mas eu prefiro não abandonar a esperança. – Sorte sua conseguir pensar assim – concluiu Dmitri. E com essa última frase, os amigos fitaram melancolicamente o céu, pensando no que estava acontecendo com seus entes queridos naquele exato momento. A única certeza que ambos tinham era que essa maldita guerra já havia custado muito e custaria muito mais a todos os seus compatriotas.


Capítulo 11 – Promessas Há 23 anos, dois meses após a batalha de Valdai... A 8º Companhia estava feliz e animada naquele dia quente e ensolarado, pois além da pequena folga que eles teriam das batalhas, a solenidade que começaria em seguida iria prestigiar e valorizar um de seus membros. Todos os soldados estavam com seus uniformes impecáveis e em posição de sentido, de frente ao pequeno palanque montado as pressas, que deixaria o mestre de cerimônia um pouco mais elevado que seus subalternos. Caminhando com passos firmes e decididos, o General da 4º Companhia que fora escolhido para falar, subiu ao palaque e sob o olhar respeitoso dos soldados, iniciou um discurso tão improvisado quanto o palanque onde ele se encontrava. – Valorosos soldados, estamos aqui hoje para homenagear um moldaviano corajoso, que com sua bravura honrou sua família, sua pátria e nosso exército. Suas ações na recente batalha próxima a vila de Belgorod, não apenas salvaram a vida de diversos companheiros, como mostraram aos comunas com quem eles estão lidando. – São de soldados assim que nosso amado Exército Nacional necessita! Se todos se inspirarem em seu exemplo, essa guerra, que vai entrar em seu terceiro ano, vai terminar rapidamente com o único desfecho aceitável, a expulsão dos comunas de todo o nosso território. – É com muito orgulho que chamo o soldado Dmitri Ivanov, da 8º Companhia! – finalizou o General, levantando a voz nessa última frase. Dmitri saiu timidamente do meio de seus companheiros, que agora batiam em seu ombro, sorriam e gritavam palavras de admiração. Há apenas alguns dias, o instinto de Dmitri foi crucial para a vitória na batalha de Belgorod. Nesse dia sua seus companheiros marchavam com tranquilidade, pois imaginavam alcançar os russos apenas no dia seguinte. Mas sem eles saberem, a tropa inimiga se antecipou e montou uma cilada um pouco a frente do caminho. Assim que a 8º Companhia se aproximasse de algumas casas abandonadas, seria recebida a tiros por muitos inimigos que os aguardavam de tocaia. Por algum motivo que Dmitri não sabia explicar, sentia que algo estava errado e essa sensação o incomodava. O silêncio dos animais, inclusive dos pássaros indicava que algo estranho estava próximo a eles.


Com a certeza que valia a pena averiguar melhor, Dmitri pediu autorização ao seu General para realizar uma manobra arriscada. Eles vestiram alguns soldados russos que eram prisioneiros com o uniforme moldaviano, e foram mandados seguir na frente, estando Dmitri logo atrás para garantir que não falariam nada e nem sairiam da formação. Ao se aproximarem da armadilha, os russos mataram rapidamente os prisioneiros ao mesmo tempo que Dmitri caia junto, fingindo ter sido atingido. Com a certeza que tinham derrubado a maioria da tropa da Moldávia, os inimigos sairam de sua proteção e foram abatidos pela 8º Companhia que aguardava mais atrás. O ataque foi tão rápido, que a tropa russa, pega de surpresa, rendeu-se rapidamente. Com os soldados capturados nessa manobra, os restantes foram presa fácil no dia seguinte e a 8º Companhia conquistou uma vitória relativamente fácil, não perdendo qualquer homem nesse dia. E era para condecorar esse brilhante soldado que o General da 4º Companhia estava lá. – Descansar! – disse o General quando Dmitri se aproximou e ficou em posição de sentido. – Soldado Dmitri Ivanov, palavras são insuficientes para agradecer os fabulosos serviços prestados a seu país. São de pessoas como você que nosso povo precisa. – Obrigado Senhor – respondeu Dmitri. Nesse momento o General fez um aceno para o soldado que estava dois passos atrás dele, segurando nas duas mãos uma caixa artesanal, com detalhes em ouro. Assim que se aproximou, o General abriu a pequena caixa e pegou a medalha que estava lá. – É com orgulho e satisfação que concedo ao soldado Dmitri Ivanov a sua primeira medalha por bravura, a Comenda da Estrela Boreal – disse o General, colocando o adereço no lado direito de seu peito. – E também o promovo a Sargento. Essa última parte foi surpresa para Dmitri. Ele não se importava com títulos ou posições, mas ser promovido tão jovem o deixou ligeiramente orgulhoso de si. – Sargento Dmitri, sentido! – ordenou o General, sendo prontamente obedecido. – 8º Companhia, apresentar armas! – gritou o General. Todos os soldados ficaram em posição, erguendo seus fuzis. Sabiam que isso era um sinal claro de respeito e alegria ao colega homenageado. De todos eles, Nicolai era o mais feliz. Naquele dia que Dmitri executou sua estratégia, era seu dia de ser o batedor. Mesmo sem querer, seu melhor amigo


cumprira a promessa que fizera a Natasha e salvara sua vida. E isso era algo que ele nunca esqueceria.

Há 23 anos, sete meses após a batalha de Valdai... A 8º Companhia caminhava naquele melancólico dia de inverno, com o céu coberto de nuvens escuras e um vento frio que teimava em soprar de forma constante. Mesmo cansados e desanimados, os soldados estavam felizes com a promessa do General, que teriam uma folga na primeira cidade que encontrassem pela trilha que seguiam. Já haviam se passado alguns dias desde que encontraram a última patrulha russa e o inverno e o frio com certeza espantara um pouco os invasores. – Ei Sargento, que tal pedir uma folga mais longa para visitarmos a Natasha? – disse Nicolai de forma jocosa. – Claro! Como sou o Sargento, tiro a folga e você como reles Soldado continua em campanha até eu voltar, que tal? – respondeu Dmitri com bom humor. A possibilidade de descansar uns dias o deixava mais leve. – Muito engraçado. Mas já faz tanto tempo que vimos a Natasha que realmente estou com saudades. – Eu também. Mas ela teve sorte de ir parar no Castelo Peterhof como assistente do Ministro. Não tem local mais seguro nesses tempos de guerra – comentou Dmitri. – É verdade, mas deviamos ir vê-la mais vezes. – Durante a folga na cidade eu converso com o Capitão. Nem que seja como uma "missão oficial" para informar algo ao General Alexei, daremos um pulo até o Castelo e ficamos um pouco com ela. – Uau, finalmente um pouco de humanidade vindo do coração de iceberg – concluiu Nicolai. – Muito engraçado – respondeu Dmitri secamente. Após mais algumas horas de caminhada, a tropa vislumbrou a tão sonhada cidade onde poderiam descansar. Tratava-se da pequena Prytysko, que estava localizada ao norte da Capital e era conhecida por sua agricultura, que fornecia alimentos para uma boa parte da região. Ver a cidade animou os soldados que seguiam mais rapidamente, cantando em direção a tão sonhada folga.


Aproximando-se de seu superior, Dmitri fez posição de sentido e disse: – Senhor, após nos alojarmos precisaremos conversar sobre a possibilidade da minha ida ao castelo Peterhof. – Claro Sargento, depois vemos isso – respondeu o Capitão extremamente cansado. – Ótimo! Nicolai vai ficar muito feliz – Pensou Dmitri se afastando com um sorriso. Alguns minutos depois, a tropa entrava na cidade conforme mandava o protocolo. O lider do batalhão ia na frente, oito soldados andavam em duas filas logo atrás com os fuzis no ombro direito e os demais marchavam de forma síncrona. Normalmente os habitantes das cidades e vilas recebiam e tratavam muito bem os meninos do exército (como eram chamados). Não faltavam abraços, gritos, cumprimentos e convites para comer e dormir em alojamentos ou mesmo nas casas. Enquanto marchavam pela entrada de acesso, o silêncio e a ausência de qualquer pessoa começava a incomodar a todos. Não tinha como eles não serem ouvidos ou vistos e apesar do frio, pelo menos uma pessoa tinha que estar na rua. – Que estranho Dmitri – comentou Nicolai. – Muito. Nunca vimos uma vila tão vazia e quieta como essa. Dimitri estava incomodado desde que entraram na cidade e o fato de não haver uma alma viva na rua estava começando a fazer seu instinto gritar. – Soldados, formação de defesa – gritou o Capitão, fazendo toda a tropa empunhar suas armas e formar um círculo expandido de forma a cobrir todas as direções. A tensão era quase palpável a medida que todo o terreno era esmiuçado em busca de algum sinal da presença dos habitantes. Todos os soldados mantinham os olhos e ouvidos atentos ao mesmo tempo que as armas engatilhadas se preparavam para qualquer eventualidade. Como não foi nada encontrado nada na área central, o Capitão começou a espalhar seus homens para cobrir uma área maior. Dmitri e Nicolai seguiam por uma rua estreita entre duas filas de pequenas casas quando avistaram um celeiro enorme. – Deve ser um dos locais onde guardam as provisões que são encaminhadas para outras vilas – comentou Dmitri, acertando sem cheio sem querer. – Vamos até lá – respondeu Nicolai.


Andando com cautela, os dois amigos se aproximaram do celeiro e notaram que as portas estavam apenas encostadas. Com um sinal, Nicolai indicou a Dmitri que iria abrir a porta direita de uma vez e pediu cobertura. Ao mesmo tempo em que Dmitri apontava seu fuzil, Nicolai abriu a porta com um movimento rápido. O que viram ultrapassou todo e qualquer horror que poderiam imaginar. Em todo o celeiro uma grande quantidade de corpos ensanguentados estavam abandonados sem sepultura ou dignidade. Após o choque violento em que os amigos não puderem acreditar no que viram, suas narinas foram inundadas com o terrível cheiro que se fazia presente naquela cena. Rapidamente saíram do local e sem conseguir se controlar, vomitaram diretamente no chão. – O-o-o-o-quê acontece-ce-ce-u aqui??? – grunhiu Nicolai, gaguejando e tremendo. Ao mesmo tempo, soltou sua arma no chão. – Um massacre, um autêntico massacre – respondeu Dmitri olhando para baixo. – Mas... Por quê? Quem? Como? – repetia Nicolai sem acreditar no que tinha visto. – Os malditos russos. Para saquear os mantimentos e mostrar que o povo não pode contar conosco. Malditos. MALDITOS!!!!! – gritou Dmitri, perdendo a calma e a cautela. Ele imaginava que não havia mais qualquer pessoa viva nos arredores e isso foi um grave erro. Sem eles perceberem, alguém que estava atrás do celeiro ouviu o grito e contornou para chegar por trás deles. E essa aproximação só foi percebida quando já era tarde demais. – Desgraçados!!!! Eu sabia que vocês iriam voltar – foi a afirmação que ouviram, vindo de uma voz débil e cansada. Ambos se viraram rapidamente e notaram um camponês ainda vivo, certamente um habitante daquele infeliz local. Mas o item que realmente chamou a atenção foi a arma que ele apontava para Dmitri. – Calma amigo, somos da 8º Companhia do exército da Moldávia, não somos os malditos russos – falou Dmitri estendendo os braços, tentando dizer ao homem que não tinha o que temer dele. Mas sua frase caiu em ouvidos surdos. – Eu sabia que voltariam, por isso não saí daqui! Vocês mataram minha mulher, meus filhos e meus pais! Agora eu vou matar vocês! – disse o homem sem pensar. Obviamente a sanidade o tinha abandonado há muito tempo, e qualquer tentativa de argumentação seria inútil.


Dmitri era o uníco que estava com a arma na mão nesse momento, mas por se tratar de um cidadão da Moldávia, ele hesitou por um segundo, o que bastou para o sujeito engatilhar seu revólver e atirar. Tudo aconteceu muito rápido. Nicolai empurrou o amigo com toda a força, praticamente se jogando em cima dele. A arma disparou e não atingiu Dmitri, que instintivamente se ajeitou, apontou e acertou a cabeça do homem que tentara matalo. Ele caiu imediatamente, quase ao mesmo tempo em que Dmitri soltava sua arma. O barulho chamou a atenção do resto da Companhia que se dirigiu rapidamente para o local onde estavam. – Nicolai... eu... eu não queria – balbuciou ele. – Tudo bem amigo, creio que você fez um favor a ele – foi a resposta com um gemido. – Nicolai! – gritou Dmitri ao ver seu amigo caindo sem oferecer qualquer resistência. – Não, não, não!!!! O que você fez seu louco? – continuava gritando a medida que se ajoelhava e apoiava a cabeça do amigo. – O que eu tinha que fazer. Salvei sua vida e com isso estamos quites, não é? – respondeu Nicolai com um sorriso. – Não, não... Você levou o tiro no meu lugar! Como pode fazer isso? – continuava Dmitri, olhando para a poça de sangue que começava a se formar embaixo do amigo. – Eu não podia descumprir a promessa que fiz a Natasha, meu amigo – respondeu Nicolai começando a falar mais baixo. – Eu também prometi a ela que te levaria para casa são e salvo – respondeu Dmitri segurando as lágrimas que começavam a se formar. – Chegamos a um impasse então... já que um dos dois não poderia cumprir sua promessa hoje. No final... eu fui o sortudo que consegui manter a minha. Sinto muito amigo... pelo menos... dessa vez... eu fui melhor... que você – arfava Nicolai com cada vez mais dificuldade para falar. – Não fale bobagens, a companhia está chegando e vamos te salvar. – Não faça promessas... que não poderá cumprir... Dmitri – respondeu Nicolai quase desmaiando. – Ao invés disso... faça uma que vai cumprir com todas as suas... forças. – O que você quer Nicolai?


– Prometa que vai manter... Natasha segura... que não vai permitir... que ninguém faça... nada com ela – pediu Nicolai olhando nos olhos do amigo e apertando seu braço direito. – Eu prometo. Defenderei Tasha com minha vida se for necessário – respondeu Dmitri com convicção. – Obrigado... meu amigo – disse Nicolai sorrindo ao mesmo tempo que fechava os olhos e soltava o braço de Dmitri. – Aguente firme Nicolai. Nicolai... NICOLAI !!!!!! – gritou Dmitri de forma desesperada. Ele já havia visto muitas mortes e podia perceber claramente que não havia mais nada a ser feito. Esse dia marcaria de forma indelével a alma de Dmitri. Seu melhor amigo morreu para salvá-lo e a única coisa que pedira em troca foi manter a salvo a mulher que ele amava. Ele nunca se esqueceria desse ato e muito menos da promessa, ao menos até o momento em que poderia cumpri-la, na reta final da guerra que ainda devastaria seu amado país por vários anos.


Capítulo 12 – Inocentes Há 22 anos... [3º ano da guerra na Moldávia] Aquele dia de inverno começara tão frio quanto qualquer outro, com um vento cortante e o céu escuro, com nuvens que impediam qualquer raio de sol chegar até o solo da castigada Moldávia em seu terceiro ano de guerra contra os russos, ao mesmo tempo em que o jovem Segundo-Tenente Dmitri Ivanov, com seus vinte anos de idade, estava cumprindo uma missão muito importante. Após a morte de seu grande amigo Nicolai, ele tirou uma licença e voltou ao castelo Peterhof para contar a Natasha o que havia ocorrido e também para garantir que sempre a protegeria. Apesar de Natasha chorar muito e claramente sofrer por Nicolai, ela sentia-se muito grata por ele ter dado sua vida para salvar Dmitri. Esse sentimento não podia ser negado, mas ao mesmo tempo, nunca foi declarado explicitamente. Depois de alguns dias com Natasha, ele voltou a 8° Companhia, mas sentia-se desgostoso na presença dos demais, sempre se sentindo deslocado e com a sensação de que faltava alguma coisa. Com isso, mudou sua estratégia e passou a agir de forma mais solitária, sendo um batedor em regiões próximas a fronteira. Apesar de andar sem uniforme, para conseguir se passar por um civil, seu armamento estava oculto na roupa e na mochila que carregava nas costas. Por mais de uma vez, Dmitri encontrou acampamentos russos, atacou soldados inimigos pelas costas ou mesmo voltou até a 8° Companhia para avisar o Capitão sobre as condições de um possível ataque. Mas o último avistamento ocorrera há cerca de quatro dias e Dmitri aproveitava o silêncio e a ausência de inimigos para refletir. Ele se lembrava de quando conheceu Natasha e Nicolai, do grande futuro que sua mãe previa para ele e de como todos os seus objetivos foram trocados por essa guerra que já durava tanto tempo. Com um turbilhão de pensamentos, Dmitri seguia em direção ao norte, o mais provável local da existência de uma tropa soviética e após mais algumas horas de caminhada tranquila, ele avistou uma pequena cabana, aparentemente vazia. Foi em uma cidade aparentemente vazia que Nicolai perdeu a vida no ano anterior e Dmitri não cometeria o mesmo erro duas vezes. Segurando sua arma engatilhada, que estava discretamente escondida em um bolso de seu casaco, ele aproximou-se do local sem fazer qualquer barulho. Circulando a casa a partir da lateral direita, ele notou como as paredes estavam sujas e abandonadas, indicando que possivelmente estava realmente vazia. Ao chegar na frente de uma janela, olhou cautelosamente para dentro. O que ele viu foi


tão inesperado, que o fez esquecer-se da prudência e rapidamente voltar para a frente do imóvel, abrindo a porta (que não estava trancada) ruidosamente. – Ahhhhh! – gritou um menino que estava lá dentro. – Eles nos acharam!!!! CORRE!!! – gritou o outro, indo em direção oposta a porta de entrada. – Calma, calma, eu sou um soldado da Móldavia, não quis assustá-los – disse Dmitri desengatilhando a arma discretamente e exibindo as mãos vazias. Os dois meninos encaravam o estranho com os olhos arregalados e tremendo muito. – Calma, não vou fazer mal a vocês. – falava Dmitri enquanto se ajoelhava e ficava mais ou menos da altura deles. Nessa posição ele conseguiu olhar bem as roupas esfarrapadas e o quanto eles eram magros e sujos. Não deviam ter mais de oito ou nove anos. – Q-Q-Q-Quem é você? O q-q-q-quê faz aqui? – balbuciou o mais velho. – Segundo-Tenente Dmitri Ivanov, da 8º Companhia de Infantaria. Estou em missão de reconhecimento procurando acampamentos e soldados inimigos – disse ele ao mesmo tempo em que colocava a mochila no chão, abria e pegava uma lata de salsichas. – Estão com fome? Eu tenho mantimentos, posso ceder um pouco para vocês – concluiu exibindo a lata. A fome falou muito mais alto do quê o bom senso nesse momento e os dois garotos se aproximaram rapidamente, sentando-se na frente do seu visitante, que já abria a lata e a pousava no chão para que eles se servissem. Palavras não eram necessárias no momento em que os meninos atacaram avidamente as salsichas, obrigando Dmitri a abrir uma outra lata. Enquanto engoliam o conteúdo da segunda, ele aproveitou para perguntar: – Quem são vocês? – Eu sou Igor e ele é meu amigo Mikhail – respondeu o mais velho, com a boca cheia. – Mas vocês são crianças, o que estão fazendo aqui? – inqueriu Dmitri com incredulidade. – Ele é mesmo criança porque tem oito anos, mas eu não sou não, tenho dez! – respondeu o mais velho em um tom ofendido.


– Não importa, onde estão seus pais? – Não sabemos – respondeu Igor, terminando de comer a última salsicha – Os russos invadiram nossas casas e levaram nossos pais para algum lugar e desde então vivemos juntos e sozinhos aqui. – Malditos – balbuciou Dmitri, imaginando o motivo das crianças terem ficado para trás. Ele já tinha ouvido que alguns soldados invasores capturavam os adultos para trabalhar ou simplesmente para não deixar testemunhas sobre os crimes de guerra perpetrados por eles. E como não tinham coragem de matar as crianças, deixavamas para trás, abandonadas a própria sorte. – Obrigado tio Dmitri – disse Mikhail, com uma satisfação que há muito tempo não sentia. – Tio? Essa foi boa – respondeu Dmitri com um sorriso. – Você vai cuidar da gente? – perguntou Igor com esperança. Dmitri engoliu seco, por saber ser impossível para ele ficar e dar a devida atenção a essas crianças. Ao mesmo tempo se simpatizou com ambos, em especial o menor e não gostaria de simplesmente virar as costas. – Eu estou em missão garotos, infelizmente não posso ficar aqui. – respondeu ele com uma genuína tristeza. – Só alguns dias, por favor. Ajude-nos a montar algumas armadinhas, fazer um estoque de frutas silvestres e ensine-nos alguma coisa que nos ajude a viver sozinhos – pediu Igor, quase implorando. – Por favor tio Dmitri – pediu Mikhail quase chorando. Apesar de saber em seu íntimo que não poderia ficar ali nem um minuto mais, tanto por atrasar sua missão como por fazer parte de todo manual militar a regra de "só permanecer em uma posição estacionária se for necessário defendê-la", Dmitri não conseguiu recusar uma segunda vez. Ele sentia que se não ajudasse aqueles dois meninos, o fim deles seria tão certo quanto rápido. – Tudo bem, posso ajudá-los por uns dias – foi a resposta que ambos ouviram, um pouco antes de gritarem de alegria. Dmitri também ficou feliz, pois se pudesse ajudar esses meninos a sobreviver, talvez sua vida fizesse algum sentido nesses tempos conturbados de guerra.


Alguns dias depois... O inverno continuava rigoroso, apesar de que o frio não era o maior inimigo dos meninos que estavam sob a guarda de Dmitri, pois roupas e cobertores eles possuíam em abundância. O maior perigo para eles era simplesmente o fantasma da fome. Desde que Dmitri havia chegado, ele os ensinou a montar arapucas para pequenos mamíferos, os ajudou a encontrar frutas silvestres e até os ensinou a reconhecer alguns cogumelos como comestíveis. A dieta de ambos havia melhorado muito nos últimos dias. Dmitri sentia-se feliz por ajudar, mas ele sabia que a cada dia que permanecia ali, alguma aldeia ou alguma vida era perdida para o exército inimigo. Ele pretendia confirmar que os garotos já estavam se virando um pouco e partir no mais tardar no dia seguinte. Obviamente, eles ficariam tristes, mas nada mais podia ser feito. Após um singelo almoço (um coelho capturado no dia anterior), eles se sentaram no sofá da sala de estar e descansaram tranquilamente. – Muito bom o almoço – comentou Igor com um sorriso. – Fazia tempo que não comíamos bem assim – completou Mikhail, completamente satisfeito. – Que bom garotos. Vocês não imaginam o quanto fico feliz de ajudar. Mas... – respondeu Dmitri, parando de forma abrupta. – Mas você tem que ir embora, não é? – questionou Igor de forma melancólica. O silêncio de Dmitri respondeu a pergunta. Por alguns momentos o único som que quebrava o constrangedor silêncio era o da lenha queimando lentamente na lareira. – Sim, infelizmente eu tenho que ir – respondeu finalmente. – Mas tio, você é tão legal e nos trata tão bem – disse Mikhail, com uma clara tristeza em sua voz. – Eu sei meninos, mas acima de tudo eu sou um soldado e tenho como missão defender nossa pátria. E esse objetivo é mais importante que a vida de todos nós. – Mas por que tem que ser assim? – perguntou Igor. – Eu não sei Igor. Infelizmente não faço idéia, mas é assim que é – respondeu Dmitri com toda a sinceridade. Ele já se questionara dezenas de vezes do motivo dessa guerra terrível a qual eles estavam expostos. – Mas eu gostaria de dizer uma coisa para vocês antes de ir.


Os meninos se arrumaram no sofá e passaram a prestar muita atenção nas palavras de seu amigo. – Eu quero que vocês me prometam uma coisa. Que nunca vão esquecer que estamos em guerra, e por isso, não podem confiar em qualquer um e nem hesitar um segundo se virem um soldado inimigo. Por mais que ele possa falar palavras doces e parecer uma boa pessoa, ele só tem como objetivo matar todos nós. – Nós sabemos – respondeu Igor. – Isso não é suficiente rapaz. Me prometam que caso se encontrem com um soldado inimigo e precisarem lutar vão atacar sem hesitação, mas apenas se não puderem fugir. Se for possível, vão correr com todas as suas forças para o mais longe que conseguirem – insistiu Dmitri, dando um tom grave a sua fala. – Eu prometo! – respondeu Mikhail. – Eu também! – disse Igor. Com um grande sorriso, Dmitri se esticou e alisou a cabeça de Igor e em seguida a de Mikhail. – Bons garotos – foi seu pensamento antes de relaxar, tentando esquecer que esses bons momentos acabariam no dia seguinte.

No dia seguinte... A alvorada havia ocorrido há pouco mais de uma hora e tímidos raios de sol apareciam entre as nuvens daquele dia que estava um pouco menos frio que o habitual. Dmitri arrumava suas coisas e com uma pequena ponta de tristeza preparava-se para seguir sua missão, deixando os dois meninos sozinhos naquela pequena casa. Os últimos dias haviam sido tranquilos, o que fazia Dmitri se lembrar de seus pais e da fazenda onde fora criado. Ele não retornava para casa há mais tempo do que gostaria de admitir ou lembrar e pretendia remediar isso o mais breve possível. – Já vai, tio Dmitri? – foi a frase que quebrou o silêncio e a concentração de Dmitri. – Sim, Mikhail. Infelizmente eu preciso ir – respondeu ele, se virando. – Eu sei, mas vou sentir sua falta – disse a criança, com a voz embargada. Dmitri se ajoelhou de forma a fitar o menino nos olhos e disse que toda a sinceridade:


– Eu também garoto. Vem cá, me dá um abraço – pediu ele, estendendo os braços. Mikhail quase pulou nos braços de Dmitri, e deu o abraço mais apertado que conseguiu. Apesar de não admitir, era o adulto que estava mais emocionado com o carinho do menino. Após mais alguns segundos, eles se separaram quando ouviram a voz de Igor: – Eu também vou sentir sua falta, mas não espere um abraço, pois eu já sou quase adulto e isso é coisa de criança. – Claro que não, Igor. Sei o quanto você é responsável e tenho certeza que vai cuidar muito bem do Mikhail daqui em diante – respondeu Dmitri se levantando. – Pode contar comigo! – respondeu o menino com um sorriso e levantando o polegar. Com mais um sorriso, Dmitri alisou a cabeça dos dois e ajeitando a mochila se encaminhou em direção a porta, abrindo-a rapidamente. Sem resistir, ele virou a cabeça em direção as crianças e disse com uma sinceridade emocionada: – Boa sorte meninos, espero revê-los em breve. – Boa sorte tio Dmitri – foi a resposta de Mikhail, acenando. – Até logo – concluiu Igor, se esforçando para não chorar, mantendo assim a pose de adulto. Sem esperar mais, Dmitri voltou-se novamente, saindo e fechando a porta em seguida. Sem conseguir concluir se estava fazendo o correto, o senso de dever estava falando mais alto. Após alguns minutos de caminhada e sem conseguir olhar para trás novamente, um pensamento o assombrava: – Os que mais sofrem nessa maldita guerra são os inocentes. Mas o que mais eu posso fazer? – Inocentes... – pensou novamente, fechando as mãos com força e dando um longo suspiro.

Há 21 anos... [4º ano da guerra na Moldávia] O verão na Moldávia costumava alternar dias de calor intenso e outros nem tão quentes. Já fazia alguns anos que a invasão soviética tornara as pessoas apáticas


e um tanto quanto tensas para aproveitar os belos dias dessa estação tão aguardada. O fato da guerra demorar tanto tempo era simples. Não interessava aos soviéticos bombardear o país e destruí-lo (o que eles poderiam fazer facilmente), mas sim, minar a vontade do povo e torná-los dóceis de serem conquistados. Com isso, quando o governo fosse derrubado, não haveria revoluções, guerrilha e nem rebeldes. Inclusive alguns segmentos da sociedade pressionavam o General Alexei para entrar em acordo com Moscou, coisa que ele repudiava completamente. Longe do front, o Primeiro-Tenente Dmitri Ivanov conseguia aproveitar um pouco os raios de sol. Já haviam se passado alguns meses desde que ele deixara para trás a cabana com aqueles dois garotos e contra sua vontade, não conseguira passar por lá para ver se estavam bem. Ele pretendia voltar lá com certeza, mas no momento, só queria apenas esquecer de tudo e cumprir a promessa que fez a si mesmo, indo ver seus pais. Após sua última promoção, ele requisitara uma licença para o Capitão, pedido que fora prontamente atendido. E agora, após dois dias de viagem a cavalo, a bela fazenda Nadeyus estava muito próxima. Nestes poucos momentos de paz Dmitri não parava de pensar de como sua vida havia mudado nos últimos anos. De um estudante promissor, para um soldado de seu país natal. Claro que ele nunca imaginou todos os horrores que iria presenciar nestes últimos anos. A perda de seu amigo Nicolai ainda doía e a promessa feita a Natasha, que não pode ser cumprida, o atormentava dia e noite. Mesmo contra sua vontade, ele tentava esquecer tudo, e simplesmente pensava em rever o sorriso de sua mãe. Ele nunca imaginou que sentiria tanta falta das refeições, dos pastos, do carinho e até das chatices do seu pai. Mas agora faltava pouco, em alguns minutos seu lar estaria ao seu alcance. Após cavalgar mais um pouco, Dmitri chegou a entrada que daria acesso a sua fazenda. Neste momento ele já deveria estar ouvindo algum dos criados. Ao invés disso, o silêncio era tão grande que chegava a incomodar. Nem um pássaro, nem um cavalo, nenhum criado e nem nada. Este silêncio era anormal o que deixou Dimitri um pouco apreensivo. Infelizmente, nada em todos estes anos poderia prepará-lo para o que viria a seguir. Terminando a última subida, Dmitri chegou em um local de onde poderia visualizar toda a sua propriedade. E este exato instante, o marcaria pelo resto de sua vida.


Em um segundo, que pareceu uma eternidade, ele conseguiu visualizar seu antigo e querido lar e até onde a vista alcançava, o cenário era de destruição. – PAI, MÃE! – gritou ele – Não, não, não, não, não, não, não – repetia ele desesperadamente. Chicoteando o cavalo, ele avançou por dentro de sua propriedade. Mesmo a distância foi possível notar que sua querida casa havia sido queimada, e que todo o pasto ao redor também estava destruído. – Não, não, não, não, não, não, não – continuava repetindo em pensamento, com uma fagulha de esperança de que seus amados progenitores haviam fugido ou sido capturados. As tropas soviéticas avançaram sobre algumas fazendas. Caso os moradores os recebessem bem e fornecessem mantimentos, eram poupados. Essa era a propaganda do regime soviético. Em seu íntimo Dmitri sabia que seu pai nunca ajudaria o inimigo, mas também imaginava que tentaria salvar sua querida mãe. – Não, não, não, não, não, não, não – continuava martelando em sua cabeça a medida que avançava se desviando de animais mortos e arvores derrubadas há muito tempo. Seu objetivo era a casa onde ele passara toda sua infância e adolescência, e que agora estava reduzida a cinzas. Após mais alguns instantes, onde cada segundo parecia uma eternidade, seu querido lar finalmente fora alcançado. – PAI, MÃE! – gritou ele, mesmo sabendo que era inútil. Não podia haver ninguém dentro daquela devastação. – MAMÃE, CADÊ VOCÊ? ONDE VOCÊ SE ESCONDEU? – continuava gritando, correndo em cada cômodo daquele local outrora feliz. Móveis, enfeites, plantas, livros e todo o resto. Não havia sobrado nada. Após percorrer a casa inteira diversas vezes e não encontrar nada, a fagulha da esperança ainda ardia. Seus pais não estavam lá, provavelmente haviam escapado. Ainda desnorteado, Dmitri foi aos fundos da casa saindo por onde seria a cozinha. Logo após dar dois passos lá fora, a esperança lhe foi arrancada violentamente. Duas estacas de madeira indicavam o local de dois túmulos, um ao lado do outro, debaixo de uma das últimas árvores que resistiram de pé.


– NÃO, NÃO PODE SER, NÃO É POSSÍVEL! – gritava ele enquanto caminhava tropeçando em seus próprios passos. Não tinha como ele saber, mas um dos fazendeiros vizinhos que sobreviveu ao ataque, encontrou o corpo dos dois e tentou lhes dar um enterro digno. – PAPÁ, MAMÃ... – gritou ele novamente, ao mesmo tempo em que seus olhos se enchiam de lágrimas. – POR QUE, POR QUE, POR QUÊ? – continuou ele, se prostrando de joelhos, bem em frente aos túmulos. Quando questionado no futuro, Dmitri nunca soube mensurar quanto tempo ficou lá. Minutos, horas, o tempo parou de correr e nada mais importava a ele. Em seu intimo, apenas uma pergunta se mantinha acesa: "Por quê?" Por que ele ainda estava vivo? Por que tantos inocentes morreram e ele ainda estava lá? Qual era o sentido de tudo isso? Repentinamente, a resposta o atingiu como um murro. Ele ainda estava vivo para terminar com tudo isso e somente ele poderia dar um basta nesta situação. – Mamã, Papá, Nicolai, Igor, Mikhail... E tantos outros... Milhares de inocentes... Eu estou vivo por causa de vocês. Enquanto falava, ele sacava sua faca de sobrevivência da cintura. Segurando o cabo em sua mão direita, de forma decidida e sem hesitação, ele fechou sua mão esquerda na lâmina. – Mamã, Papá, Nicolai... – repetiu ao mesmo tempo em que cortava sua mão e a estendia por cima dos túmulos. – Eu juro a vocês, da mesma forma que seu sangue fora derramado, eu derramo o meu. As gotas de seu sangue, vermelho, vivo e quente, começaram a pingar na terra seca. Dmitri deixou cair uma quantidade abundante pois ele não sentia nada fisicamente, nenhuma dor, apenas uma resolução avassaladora. – Eu juro a vocês, esta guerra vai acabar! Não importa a qual custo, não importa o que eu tenha que fazer, isto vai acabar. Mais nenhum sangue inocente será derramado em nossa terra. – prometeu ele sem mais nenhuma lágrima nos olhos. Não havia ninguém para ver os olhos de Dmitri neste instante, mas se qualquer pessoa que o conhecesse pudesse vê-los agora, não os reconheceriam.


Não existia mais qualquer emoção ou dor, raiva ou ódio, não havia nada, pois a partir deste momento, seu único objetivo na vida seria cumprir essa promessa, não importava o preço. A guerra acabaria, mesmo que o preço fosse sua alma.


Capítulo 13 – Mancha Negra Há 20 anos... [5º ano da guerra na Moldávia] Primavera. Na região do Leste Europeu, esta época do ano constuma ser notada facilmente, com dezenas de flores e seus aromas doces ou cítricos, de jasmin ou alfazema. As grandes árvores centenárias se cobrem de folhas novas e preparam-se para fornecer uma refrescante sombra no verão que se aproxima. Infelizmente para a grande maioria dos habitantes da Moldávia, estas belezas naturais estavam distantes de seus pensamentos. A guerra em sua pátria continuava e não havia qualquer indicação de um fim próximo. O fato é que os russos não consideravam seu pequeno país como prioridade, e por isso mantinham tropas reduzidas que mais incomodavam o governo local do que realmente o ameaçava. Não era do interesse de Moscou simplesmente anexar e manter um governador fantoche, mas sim ter a rendição incondicional e um acordo privado de submissão, oque evitaria uma guerrilha urbana ou movimentos de independência. E era neste cenário de incertezas, após perder seu lar, amigos e entes queridos, que o Capitão Dmitri Ivanov vivia. Tendo sobrevivido a dezenas de batalhas e sendo condecorado em diversas ocasiões, sua carreira militar estava em rápida ascensão. E foi em um dia, na estação das flores, que Dmitri adentrou os portões do Castelo Peterhof, lar da Monarquia do trono do Amieiro, na capital Kishinev. Os representantes do governo, incluindo o General Alexei, viviam e tomavam todas as decisões militares e políticas dentro dos muros deste castelo. Além da posição privilegiada, no alto de uma colina bem fortificada, havia a certeza de que os russos não destruiriam este respeitado símbolo história moldaviana. A população não suportaria tamanho desaforo com suas tradições. E com esta certeza e segurança, muitas famílias influentes enviavam seus filhos para se protegerem em seus salões. O General Alexei poderia não gostar, mas ele não iria negar isso a seus principais apoiadores. Estando ciente de todos estes detalhes, Dmitri entrava no castelo novamente. As últimas vezes haviam sido visitas rápidas a sua amiga Tasha, mas desta vez não.


Valendo-se de sua influência recém adquirida como Capitão e negociando diversos favores, ele havia conseguido uma licença para ficar trinta dias no Castelo. Neste tempo, ele tinha dois compromissos inadiáveis e em seu íntimo sabia que não haveria outra chance. O primeiro ele resolveria em breve, pois devia há muito tempo uma conversa com Tasha, a mulher que indiretamente era o motivo dele estar ali. Se seu amigo Nicolai não a amasse, quem garantiria que ele teria entregado sua vida tão rapidamente por causa de uma promessa? O segundo compromisso seria feito no decorrer dos dias, quando ele conseguisse uma certa liberdade de movimento, algo as vezes complicado para um conhecido "herói de guerra". Dmitri odiava ser chamado assim, pois qual era o heroísmo em matar e não se deixar morrer? Ele odiava com todas suas forças aquela situação e lamentava cada vida que era obrigado a tirar. Mas por hora isso devia ser desconsiderado, já que agora, era a vez de Natasha e Dmitri não podia adiar por mais tempo. Natasha Bykov lhe enviara um telegrama que chegou as suas mãos no front de batalha. Basicamente pedia para que no dia de sua chegada, a encontrasse no salão Pêssanka. Uma resposta positiva dele pelo mesmo meio incluiu o dia e hora em que estaria lá. E hoje, Dmitri caminhava a passos largos para encontrar sua mais antiga amiga, que certamente o aguardava ansiosamente. – Capitão Dmitri, fico feliz em lhe ver! – falou alto um desconhecido a sua frente, quebrando sua concentração e raciocínio. – Obrigado. – foi a resposta sem qualquer empolgação. Após mais alguns passos, uma nova abordagem bem entusiasmada: – Dmitri, que bom que veio nos visitar! – disse uma moça jovem e desconhecida. Um simples aceno foi a resposta. – Realmente é difícil andar por aqui tranquilamente. Quem sabe de madrugada? – pensou rapidamente. – Não, agora é a vez da Tasha, esqueça todo o resto – foi o pensamento seguinte, que devolveu seu foco.


Felizmente o salão Pêssanka estava próximo e com apenas mais duas incovenientes abordagens, ele havia chegado lá. Não era necessário se anunciar, mas por questões de educação e bom senso, uma entrada sutil se fazia imprescindível: – Com licença – falou ao passar por baixo do antigo umbral. Não houve uma resposta, mas ele conseguiu ver sua amiga no canto esquerdo do salão, admirando uma pintura. Após alguns segundos sem qualquer reação, Dmitri terminou de entrar e caminhou lentamente até a dona de longos cabelos negros, que o aguardava totalmente imóvel. A sala Pêssanka guardava uma série de obras de arte da Moldávia e antes da guerra era um dos ambientes mais visitados do castelo. Com mais uma dezena de passos, Dmitri se colocou ao lado de Natasha, permitindo-se olhar para o quadro que era objeto de sua atenção. A obra de arte possuía um fundo escuro, com a imagem de uma pessoa sentada no chão, vestindo trapos e rodeada de animais mortos e comida estragada. – "Sem Sentido", 1854, Ephanius Dumenko, muito conveniente – disse ele, puxando assunto. – Sim, representa o sofrimento sem fim que todos nós passamos na vida – respondeu ela de forma melancólica. – Tasha... eu... – Também é muito bom te ver Dmitri. Mas venha, vamos nos sentar, pois acredito que nossa conversa será longa – respondeu Natasha, virando-se rapidamente e andando em direção a um banco almofadado a sua esquerda. Sem falar mais nada, Dmitri a seguiu e sentou-se logo após sua amiga. Agora ambos estavam confortáveis, mas não necessariamente a vontade. – Então, como estão as coisas aqui no Castelo? Já é a sua casa há um bom tempo. – Como sempre, está tudo bem. E certamente é mais tranquilo que o campo de batalha onde você vive. – Sim, é óbvio. Mas pergunto sobre você, oque está sentindo.


Neste momento, Natasha cruzou as pernas em posição claramente defensiva. – Oque estou... sentindo? Não acredito que realmente você se preocupa com isso, já que nem lembro quando o vi pela última vez. – Como assim, Tasha? – foi a resposta com surpresa. – Claro que me importo, você é e sempre será minha melhor amiga. – Amiga... sim, é claro – foi o comentário juntamente a um suspiro. – Sabe oque eu acho incrível em você? – perguntou Natasha com a voz embargada. – Sua frieza é tamanha... que... eu nem sei oque pensar. – Não é verdade... eu sempre me importei com... – Então por quê? – Por que você não chorou quando me contou da morte de Nicolai? Nem me deu qualquer detalhe além de que ele foi baleado salvando sua vida? Por que não chorou quando me contou que sua casa e família foram destruídos? Por que Dmitri? Por quê? – disse ela com as lágrimas molhando seu belo rosto. Dmitri ficou em silêncio. Ele realmente não chorou na frente dela, mas lembra perfeitamente de ter chorado ajoelhado no túmulo dos pais e mais ainda enquanto Nicolai agonizava em seus braços. – Talvez... tentei ser forte para consolar você – balbuciou como resposta. – Mas e você? Onde está o homem inteligente e cheio de paixão que um dia faria tremer os pilares da ciência? A pessoa mais viva que eu já conheci? Onde está ele? – Talvez... esteja morto... – Não diga isso! – falou ela levantando a voz. – Nicolai morreu, seus pais morreram, meus pais morreram. Mas estamos vivos e precisamos continuar essa vida! – Vida Tasha? Isso é vida para você? – retrucou com incredulidade. – Milhares de mortos, órfãos abandonados, nossa terra queimando. Não, isso não é vida para o nosso povo! – Eu sei, mas a guerra acabará um dia e teremos que continuar vivendo, teremos que curar as feridas e ajudar as pessoas.


– Se você diz... mas eu... eu... esquece, deixa pra lá... – Diga Dmitri... por favor fale comigo... – Não Tasha... pelo contrário... – Como assim? – Eu vim falar com você... pela última vez... Natasha não acreditou no que ouviu. – Mas, mas... oque está dizendo, seu... seu... – Exatamente isso. – Você acha que vai morrer? Não seja idiota... pare de ser dramático... Ele não respondeu. – Mesmo porque, se você acha que vai morrer... basta me pedir... uma única vez... – Pedir? – Sim. Me peça... e vou embora com você... deste castelo... deste país... vou para qualquer lugar com você a qualquer momento... por favor – implorou ela. – Tasha... eu nunca poderia te pedir isso... – POIS PEÇA! – gritou ela – Me mostre que você realmente se importa comigo, se importa conosco. Basta pedir e eu... eu... – Tasha... – sussurrou ao mesmo tempo em que a abraçou abruptamente. Natasha não aguentou aquele ato de ternura e desabou a chorar. Neste singelo instante, vários anos de incertezas e tensões haviam acabado de cobrar seu preço. Após minutos que pareceram uma eternidade de soluços e lágrimas, ela começou a se acalmar. Um instante após notar que ela se acalmara, Dmitri afastou-se e decidiu que era hora de encerrar este capítulo em suas vidas. – Dmitri... eu... eu... te... Ele não a deixou terminar, posicionando delicadamente a ponta de seu dedo indicador direito nos lábios dela, que ainda estavam molhados pelas lágrimas, e fazendo-a se calar imediatamente com a surpresa.


– Agora você vai prestar atenção e me ouvir, sem perguntar nada. Fique quieta e escute, por favor – falou com um tom de voz gélido e assustador, ao mesmo tempo em que tirava o dedo e se levantava. Natasha nunca o ouviu falando assim, nem parecia a pessoa que ela conhecia há tanto tempo. O choque de estar em uma presença desconhecida a fez travar. – Somos amigos, mas apenas isso – começou ele com a mesma voz gélida. – Não te pediria para ir a lugar algum comigo, pois tenho uma missão com a minha pátria e nada mais importa. – Nicolai foi um tolo ao se deixar morrer e por isso ele não valia nem a farda que vestia. É a vergonha do nosso exército. Natasha não conseguiu acreditar no que ouviu. Aquele homem na frente dela não era Dmitri Ivanov, seu melhor amigo. – Eu estou aqui para descansar das batalhas e não quero ser importunado por fantasias de amor adolescente. Você se humilhar dessa forma é ridículo, está me decepcionando e envergonhando seu sobrenome. Natasha sentiu o ar sendo roubado de seus pulmões enquanto ela não conseguia engolir. – Então, vamos deixar algo totalmente claro. Eu me importo com você como me importaria com qualquer amiga ou até mesmo com uma mascote. – Mas eu já estou cansado de sua fraqueza, seu choro e sua cara de coitada. Portanto me deixe em paz enquanto eu estiver aqui pois lhe garanto que quando eu voltar para o front, você não tornará a me ver. Natasha tremia. Aquilo era um pesadelo do qual ela queria acordar a qualquer custo. – Fui claro Natasha? Eu não vou repetir e nem quero olhar na sua cara novamente. Entendeu? Não houve resposta. A mulher que ele conhecia desde sempre não piscava, não conseguia articular uma palavra e mal respirava. – Ótimo, creio que entendeu. Adeus Natasha, seja feliz e me esqueça. – disse ele enquanto se virava e andava rapidamente para fora do salão. Ouvir seu nome da forma como ele nunca falava, e naquele tom frio e distante, foi demais para ela. Uma forte tontura veio repentinamente, o que a obrigou a se


apoiar no banco, por pouco não desmaiando. As próximas horas seriam de negação para Natasha Bykov, enquanto ela tentaria entender oque tinha acontecido. Em seguida sobraria um ódio imenso e uma tristeza que a derrubaria por semanas. Natasha tinha acabado de perder seu último amigo, a única coisa que a mantinha feliz por estar viva. Já Dmitri estava mudando o foco totalmente para o segundo compromisso inadiável, pensando em dezenas de detalhes. Mas mesmo assim, ele não conseguiu evitar um último pensamento em conjunto de um longo suspiro melancólico: – Me desculpe Tasha, por favor seja feliz.

Há 19 anos... [6º ano da guerra na Moldávia] Inverno. Um frio intenso associado ao vento forte com dias nublados e tristes. Normalmente esta gélida estação não causava boa impressão e nem animava as pessoas, que preferiam se manter dentro de seu lar aquecido e protegido. Inevitavelmente, a extensa guerra contra os soviéticos só serviu para piorar tudo, transformando até o maior dos otimistas em um cético em relação ao futuro de seu povo. Basicamente, a população estava cansada, triste, com fome, frio e sem perspectivas de um amanhã melhor. Não que isso influenciasse as decisões do alto comando em exercício. Tanto o General Alexei como seus principais conselheiros não tinham qualquer intenção de desistir. E foi neste cenário que o Major Dmitri Ivanov adentrou novamente, pelo portão principal, o castelo Peterhof. Há cerca de quatro meses, em sua última grande batalha, o antigo Major, Mikhail Stanislav, foi morto pelos inimigos, o que causou a promoção do mais jovem Capitão daquela companhia. Após uma campanha vitoriosa pelos meses subsequentes, era hora do mais novo Major aproveitar uma pequena licença no castelo, sempre seguro e agradável.


Cada vez mais famoso, Dmitri tentava ser discreto. Ele passou pelo portão vestindo um sobretudo preto, luvas e calça preta e um chapéu escuro que cobria boa parte de sua face. Enquanto caminhava praticamente sem ser reconhecido, Dmitri não conseguiu evitar pensar em Natasha. Há uma semana, utilizando sua influência, ele havia pedido um grande favor para o oficial que servia na cidade de Conrat, na região da Gagauzia. Inventando uma necessidade diplomática, o Capitão Anatoli Zhenya convocou Natasha Bykov para uma viagem até Orhei, garantindo assim que ela não estaria no castelo que chamava de lar no dia de hoje. Misteriosamente, no dia seguinte após ter enviado esta convocação, Anatoli desapareceu. Futuramente, ninguém poderia perguntar a ele o motivo que o fez tirar Natasha de lá, e nem o porquê da tal missão diplomática ser falsa. Tendo a certeza de que Natasha não estava presente, Dmitri continuava caminhando tranquilamente pelos corredores vazios do castelo. Parando repentinamente, o Major retirou um pequeno relógio do bolso de seu casaco e olhou as horas sem qualquer sinal de pressa. – 14:41 hs... acho que já está na hora – foi seu pensamento, ao mesmo tempo em que voltava a caminhar e guardava o pequeno relógio. De forma determinada, Dmitri caminhou em direção ao gabinete do General Alexei, que o estava aguardando para uma pequena reunião. As 14:44 hs, ele chegara em frente a porta do gabinete. Educadamente, deu três pequenas batidas e aguardou. – Entre, entre – ouviu ele. Delicadamente o Major empurrou a porta e acessou o local onde os maiorais do governo tomavam suas decisões. Não havia qualquer hesitação em seus movimentos ou atitudes, oque fez Alexei falar alegremente: – Major Dmitri, que prazer finalmente conhece-lo! E você é pontual como um britânico. Alexei estava sentado em uma grande cadeira marrom escura, atrás de uma mesa comprida e cheia de mapas, papéis e canetas. Uma xícara de chá pela metade indicava que os pequenos luxos não haviam sido esquecidos pelo mandatário. – Obrigado senhor – respondeu Dmitri educadamente.


– Então, o mais jovem Capitão de nosso exército foi promovido para o mais jovem Major. E suas campanhas contra os malditos soviéticos sempre são vitoriosas. – Bondade sua senhor – foi a resposta. – Então, considerando que esta reunião foi a seu pedido, diga-me, filho de Vladimir, oque posso fazer por você? Dmitri respirou fundo e respondeu sem qualquer emoção: – O senhor pode ir para o inferno. Alexei se calou por um instante. Entre a incredulidade e a dúvida sobre oque tinha ouvido, conseguiu responder quase gaguejando: – E-e-eu creio que não entendi, Major Dmitri. – Entendeu sim. O maior favor que o senhor pode me fazer é ir para o inferno – retrucou ele, sem qualquer emoção. – Ma-ma-mas... como ousa?! Com quem você acha que está falando? – foi a pergunta, com raiva, ao mesmo tempo em que se levantava. – Com o desgraçado culpado pela miséria que vive minha amada pátria – respondeu Dmitri, enquanto se aproximava da mesa, sacava uma arma e apontava direto para o peito do General. Alexei sentiu seu sangue gelar. Aquele oficial famoso, um herói de guerra, estava ameaçando sua vida, utilizando um tom de voz gélido e assustador. – Major Dmitri, espere, creio que esta havendo um terrível mal entendido aqui. Eu não sou culpado pela guerra, pelo contrário, eu vivo para defender nosso amado país – disse o General enquanto tentava ganhar tempo. Ao mesmo tempo, ele abria discretamente uma gaveta que estava a sua direita. – É claro. E o senhor está tentando pegar sua arma na gaveta. Para não haver mais interrupções eu espero o senhor procurar, mas já aviso que é inútil. Alexei sentiu-se gelar mais ainda. Seu instinto dizia que aquele homem de voz fria não estava blefando, mas mesmo assim, ele abriu rapidamente a gaveta e confirmou que estava vazia. – Mas, mas... como... – Digamos que tem mais gente neste castelo que não aguenta mais esta guerra genocida. O senhor não imagina como foi fácil convencer várias pessoas a me


ajudar. – Traidores sujos... você e seus cúmplices querem me matar... mas não irão... – Que palavreado forte. Mas está errado, ninguém aqui vai te matar. Agora saia de trás dessa mesa e fique parado de pé junto a parede que está a sua esquerda. – disse o Major, apontando a arma para a cabeça de Alexei. A voz fria e calma de seu oficial era a parte mais perturbadora de tudo isso. Sem conseguir argumentar o General obedeceu, confiando nas palavras de que não seria morto. – Oque você quer, uma promoção? Está me mostrando que não estou tão seguro quanto acredito? Diga-me o seu preço. – Preço?! Meu preço não pode ser pago por ninguém, a não ser que o senhor traga meus amigos, minha família e todo o nosso povo de volta da morte. – Oque você quer Major? – perguntou o General, começando a acreditar que estava diante de um louco. – O fim da guerra – foi a lacônica resposta. – Mas é claro, isso é oque todos queremos, por isso iremos resistir até... – Não General, nosso povo não pode esperar mais. A guerra terminará hoje. – Você está louco! Acha que me matando e assumindo o governo, você e seu grupinho traidor vai... – Já disse que ninguém vai te matar – retrucou, pegando novamente o relógio do bolso e olhando rapidamente. – 14:53 hs. Que ironia, após quase sete anos, a guerra vai acabar em sete minutos – falou Dmitri consigo mesmo. – Você está louco mesmo, como acha que vai derrotar os soviéticos? – perguntou Alexei nervosamente, sempre sob a mira inclemente da arma do Major. – Derrotar? – foi a única resposta, seguida de uma gargalhada alta e terrificante. A cada instante que passava, Alexei ficava cada vez mais assustado. – O senhor sabe que não é possível derrotá-los, mas mesmo assim segue nesta luta insana. – Mas não mais, ninguém mais vai morrer por causa de sua teimosia, creio que


logo o senhor vai entender. – Como assim? O que você está dizendo? Isso não faz sentido Major. – reclamou o General, suando de nervoso, apesar do frio intenso. – Ah, faz sim. Quer ver como faz todo o sentido? – Em alguns minutos, precisamente as 15:00 hs, um contingente soviético armado até os dentes vai invadir Peterhof e assumir o controle do castelo. O General empalideceu. – Havia uma lenda muito antiga, de que o castelo Peterhof possuía uma rota de fuga secreta, e em minha última visita, no ano passado, descobri este acesso nas cavernas Denissova, que traz direto para as catacumbas no subsolo. Então bastou indicar o caminho para um General soviético que contatei e que vai adorar ficar com o crédito. – Mas... mas... será um massacre... seu louco! – balbuciou o General sentindo o desespero aflorando violentamente. – Ah não, não haverá qualquer morte já disse. A maioria dos guardas estarão vestidos de negro, oque indica que não irão resistir. E os poucos que não estão, tiveram suas armas sabotadas, de forma que serão facilmente dominados. Alexei não conseguiu articular uma palavra. – E o melhor é que logo após o castelo ser dominado, o príncipe Andres que voltou de seu exílio será reconduzido ao poder. Isso vai legitimar a presença soviética e o povo vai aceitar sem qualquer problema, já que o retorno do príncipe trouxe a paz também. – Oque? Aquele idiota será um fantoche... não... – É claro que será, mas teremos trégua e paz, sem mortes ou uma guerra destruindo nosso povo. Não será lindo? – perguntou Dmitri dando outra gargalhada. – Louco... você está entregando nosso país... seu traidor... – bufou com ódio o General. Um estampido reverberou pelos corredores silenciosos naquele instante. – Ahhh!!!! MALDITO! DESGRAÇADO! – gritou o General caído no chão, com as mãos em seu joelho direito. – Pode gritar, meus homens garantiram que ninguém estaria por aqui após minha chegada. Mas ouça... está acontecendo...


Gritos e mais gritos estavam vindo de todas as direções. Ordens de rendição, pedidos de clemência e choro eram bem notados. Mas nenhum tiro. – Não disse? As pessoas estão assustadas, mas ninguém vai morrer. – MALDITO!!!! Isso não vai ficar assim!!! Todo nosso povo vai odia-lo como um traidor. Eu vou garantir... Um novo estampido. – Ahhhh!!!! – o General voltou a gritar, desta vez segurando o joelho esquerdo. – Eu prometi entrega-lo vivo, mas creio que um tiro em cada joelho, de forma a aleija-lo, está dentro do acordo. – O senhor será julgado por crimes de lesa-pátria e lesa-majestade. Com certeza será executado, apesar de que será uma punição leve considerando tudo que você fez. – concluiu Dmitri, se virando e preparando-se para sair. – Eu não ligo se serei odiado, só me interessa que cumpri a promessa feita a mamã, papá e Nicolai. Eu terminei com a guerra. Os gritos continuavam, mas a invasão do castelo Peterhof estava destinada a se desenrolar sem qualquer baixa. Os russos prometeram e cumpriram, apenas entrar e tomar posse. Quando estava próximo da porta, Dmitri ainda ouvia o General praguejar. – Isso não acabará aqui Dmitri Ivanov... eu vou contar para todos... que você traiu e entregou nossa pátria! Está ouvindo?! O nome Dmitri Ivanov será sinônimo de infâmia em toda a Moldávia... desgraçado... Já debaixo do umbral, Dmitri parou, guardou a arma e sem se virar, respondeu: – Dmitri Ivanov? Está enganado General. O herdeiro de Nadeyus não está mais aqui. Ele morreu junto a família, em sua bela fazenda. – Oque? Seu louco... LOUCO!!! – Sabe por que escolhi esta roupa preta, General? Eu vou lhe dizer, mesmo tendo a certeza de que alguém como você nunca entenderia. – Esta veste é um sinal de luto por nosso povo, o povo que o senhor matou e fez sofrer por quase sete anos.


– E em respeito a todos que se foram, este luto nunca vai me abandonar, pois hoje, graças ao senhor, no meu coração só existe uma mancha negra. Após isso, ele voltou a andar e quase saindo da sala, proferiu uma última frase, uma melancólica constatação que foi ouvida pelo General Alexei. – Dmitri Ivanov, o 28º de sua dinastia, o 1º de sua geração, o herdeiro de Nadeyus, o orgulho de Vladimir e o amor de Yeva, está morto. Agora só sobrou uma casca vazia, onde não existe nada... apenas... uma Mancha Negra.


Ato III - Confronto

O embate final entre Mickey e o Mancha Negra

Mickey reencontra alguém muito especial, alguém que ele nunca esperou rever... Por que o Mancha Negra nunca matou Mickey? Foram tantas as chances... Oque Mickey fará após ter sido infectado pelo Mancha Neural? Quais as reais intenções da CIA? Oque aconteceu no jato quando ele atingiu o Mach 1? Qual será o destino de Natasha Bikov após trair a missão? Até onde Minnie iria para salvar seu amado?

Lançamento em 22/05/2020



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