Do metodo natural ao texto livre

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Aristides Custódio . Cláudia Xavier . Cristina Miranda Dulce Barreiros . Fernanda Santos . Lurdes Mendes Mónica Teixeira . Paula Martins . Serafina Salvador

Escrita: Uma forma de Multiplicar os Sentidos

Do Método Natural ao Texto Livre os processos (não)naturais em Freinet António Nunes e Daniel Lousada (coord.)


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Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos vol. 2

DO MÉTODO NATURAL AO TEXTO LIVRE: OS SENTIDOS (NÃO)NATURAIS EM FREINET

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Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos. 1 – Escultor de Palavras. Inventar palavras já inventadas 2 – Do Método Natural ao Texto Livre: os sentidos (não)naturais em Freinet

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Aristides Custódio - Cláudia Xavier - Cristina Miranda Dulce Barreiros - Fernanda Santos – Lurdes Mendes Mónica Teixeira - Paula Martins - Serafina Salvador

Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos

Do Método Natural ao Texto Livre: Os sentidos (não)naturais em Freinet António Nunes e Daniel Lousada (coord.)

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TÍTULO: Escrita uma forma de multiplicar os sentidos Vol.2 – Do Método Natural ao Texto livre: os sentidos (não)naturais em Freinet AUTORES: António Nunes, Aristides Custódio, Cláudia Xavier, Cristina Miranda, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Fernanda Santos, Lurdes Mendes, Mónica Teixeira, Paula Martins e Serafina Salvador

© Daniel Lousada 2012 Euedito geral@euedito.com www.euedito.com Impressão: Euedito Depósito Legal: 314628/10 ISBN: 978-989-96852-1-5

Estamos com material adicional em www.agoragaia.pt.vu Qualquer sugestão ou pedido de esclarecimento pode ser enviado para: agoragaia@gmail.com Desde já, agradecemos o seu interesse As(os) Autoras(es)

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“As crianças precisam de pão e rosas. (...) As crianças têm necessidade de pão, do pão do corpo e do pão do espírito, mas necessitam ainda mais do teu olhar, da tua voz, do teu pensamento e da tua promessa. Precisam sentir que encontraram, em ti e na tua escola, a ressonância de falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo que é a expressão de tudo o que trazem nelas de generoso e de superior (...) ” 1

Freinet

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FREINET, Celestin, 1973

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ÍNDICE APRESENTAÇÃO. ………. 11 1. MÉTODO NATURAL: os sentidos (não)naturais, no sentido de Freinet. ………. 17 António Nunes e Daniel Lousada

1.1. Introdução. ………. 19 1.2. O início da história. ………. 22 1.3. Aprender naturalmente. ………. 28 1.4. Dos nomes das coisas às coisas dos nomes. ………. 32 1.5. Entre ensinar e aprender. ………. 36 1.6. Não temos modos naturais de estar se não os conquistarmos. 40 1.7. Ao jeito de conclusão: do método didático ao método de investigação. ………. 43

2. ENTRE O MÉTODO NATURAL E O TEXTO LIVRE. ……… 49 Daniel Lousada.

2.1. Natural/informal. ………. 51 2.2. O Texto Livre. ………. 58 2.3. A imprensa. ………. 61 2.4. O trabalho de texto. ………. 64 2.4.1. Do controlo externo àquele outro puramente interno da atividade linguística. ………. 66 2.4.2. A relação com a gramática. ………. 71 2.5. Conclusão: texto livre, um produto da escola. ………. 74

3. APRENDER A ESCREVER PARA APRENDER A LER: AS práticas de escrita tal como as vivemos. ……… 77 Aristides Custódio, Cristina Miranda, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Fernanda Santos, Mónica Teixeira e Paula Martins 3.1. Introdução. ………. 79 3.2. “Quando eu morava no jardim”. ………. 85 3.2.1. Já separamos o que é escrita do que não é. ………. 90 3.3. “Já sei ler a novidade da Joana ao contrário”. ………. 91 3.3. 1. Ler ao contrário. ………. 96 3.4. “O meu pai atirou-se ao rio”. Trabalhar a escrita no tempo de trabalho autónomo ………. 98

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3.5.Ensinar e aprender através de um trabalho de texto. ………. 102 3.5.1. A questão da ortografia. ………. 107 3.6. “Gotinha de Água”. ………. 113 3.6.1. Redesenhar a estória com novas informações. ……… 117 3.6.2. Concluindo. ………. 122 3.7. Viagem à serra da Estrela. ……… 123 3.8. Quero escrever mas não sei o quê. ………. 131 3.9. Conclusão: “o outro é a medida”. ………. 138

4. NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS E ENSINO DA ESCRITA. ………. 141 Cláudia Xavier, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Lurdes Mendes e Serafina Salvador

4.1. Introdução. ………. 143 4.2. O que sabemos. ………. 146 4.3. O programa. ………. 149 4.4. Que objetivos definir? ………. 150 4.5. Treinar o olhar. ………. 153 4.6 Multiplicar os sentidos. ………. 155 4.7. Apoio educativo – sala de aula – família. ………. 158 4.7.1. Apoiar na sala de aula ou noutro espaço? ………. 158 4.7.2. Plano individual e diário de atividades. ………. 160 4.8. A importância do trabalho individual apoiado com alunos em dificuldade. ………. 163 4.9. Principais dificuldades ou em jeito de conclusão. ………. 168

CONCLUSÃO ENTRE LER E ESCREVER O MUNDO: O PAPEL DO TEXTO LIVRE E DA REDAÇÃO. ………. 171 Ler o mundo e escrevê-lo. ………. 173 Escrever na escola e escrever para a escola. ………. 176

BIBLIOGRAFIA. ………. 183 ANEXOS. ………. 189 1. Era uma vez, p.190; 2. Renovar a imagem do jornal, p.195; 3. Registo de textos produzidos, p.201; 4. Ficheiro de escrita, p.203; 5. Escrever sobre um tema numa redação, p.206; 6. Efeito de John Ridley Stroop, p.210

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APRESENTAÇÃO

“Para mim, a escrita não é uma questão menor; tem muita importância. Mas não deve ser, nem para os alunos, nem para o professor, uma fonte de traumatismos, o que seria aliás o melhor meio de falhar” Paul Le Bohec

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In FREINET, Celestin, 1977: p.160

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N

o 1º volume, «Escultor de Palavras: inventar palavras já inventadas», entrámos na escrita através da leitura. E mais do que “ouvir” o que tinham para dizer os autores que convocámos, convidámo-nos a escrever com eles para percebermos de que era feita a sua escrita. E procuramos aprender com a escrita que escreveram. Agora, entramos na expressão escrita pela porta, mesmo, que o ato de escrever permite abrir. Entre o que então apresentámos no 1º volume e o que apresentamos neste, não se veja, no entanto, uma hierarquia de propostas, que não defendemos de todo. Com efeito, quando dizemos, com Alberto Manguel,3 que a leitura precede a escrita, não estamos a marcar um percurso: ensinar a ler primeiro e só depois ensinar a escrever; defendemos, tão só, que a entrada na leitura e na escrita se faz através de portas que se abrem em simultâneo, 4 e que o segredo na aprendizagem da língua está não só na atenção que damos aos saberes que as nossas crianças trazem para a aula,5 mas também nos 3

MANGUEL, Alberto, 2010.

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Aliás, um dos projetos que nos juntou teve, justamente, o título “Aprender a escrever para aprender a ler”.

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No domínio da língua, são saberes de leitura, sobretudo, que aprenderam “naturalmente” no contacto com os nomes das marcas dos produtos que consomem, dos centros comerciais que frequentam, da série de tv a que assistem, etc., etc.

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desafios que formos capazes de propor com elas. A nossa principal preocupação só pode ser ensinar a escrever para que as nossas crianças aprendam a dominar a escrita, convocando toda a ajuda que seja possível convocar neste processo. Não carregamos, portanto, uma proposta mágica fora de tudo quanto se tenha feito já. Mas, mesmo não sendo mágica, ou até por isso mesmo, achamos que é preciso recuperá-la num debate tranquilo. Temos debatido pouco! E quando o fazemos parece que trazemos as nossas prioridades trocadas. Há pouca pedagogia nos nossos debates! E raras vezes olhamos a história dos que, antes de nós, fizeram da educação o seu combate.

* Neste livro, que apresentamos agora, António Nunes e Daniel Lousada, em «O Método Natural: os processos (não)naturais no sentido de Freinet», discutem sobre a natureza dos processos de construção da leitura e da escrita pelas crianças. E em Freinet analisam uma prática de ensino de tal forma exemplar que, ainda hoje, se matem atual, tendo em conta as teorias que, entretanto, se foram afirmando sobre o modo como as crianças aprendem a ler e a escrever: “(…) as metáforas de Freinet, dando conta do movimento espontâneo que nos faz aproximar de qualquer objeto (de conhecimento ou outro) que desperte a nossa atenção, não explicam, é certo, como é que a aprendizagem se processa neste “movimento”; mas o método natural, tanto quanto podemos ver na prática de Freinet, apenas dá conta das aprendizagens que decorrem 13


destes processos, fazendo-as ponto de partida para que as crianças, avancem no conhecimento delas. Não faz destes processos os processos de trabalho que levam à escrita”. Daniel Lousada, traçando o percurso «Do Método Natural ao Texto Livre», destaca a expressão livre como a principal característica da abordagem ao ensino da leitura e da escrita proposta por Freinet: “É ela que mobiliza as crianças na produção dos enunciados que servem a aprendizagem da escrita e que, uma vez registados e trabalhados com a ajuda do professor, serão textos de apoio à aprendizagem da leitura”. Defende, então, que uma abordagem «natural», no ensino da leitura e da escrita, só faz sentido com a instituição do «texto livre»: “Sem esta dimensão textual, que a expressão livre favorece, teríamos mais um método de base global, apenas com a vantagem aparente de vir associado a um vocabulário visual básico de trabalho, retirado da experiência quotidiana das crianças em aprendizagem”. Aristides Custódio, Cristina Miranda, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Fernanda Santos, Mónica Teixeira e Paula Martins apresentam, em «Aprender a Escrever Para Aprender a Ler», um conjunto de relatos de práticas, que descreve algumas das atividades desenvolvidas com os seus alunos, em escolas do 1º ciclo do ensino básico, que encontram nas ideias analisadas nos artigos anteriores a sua justificação, enquanto que Cláudia Xavier, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Lurdes Mendes e Serafina Salvador, procuram traduzir as ideias refletidas por Freinet para o ensino

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da leitura/escrita», numa prática voltada para as dificuldades escolares, em «Necessidades Educativas Especiais e a Aprendizagem da Escrita», ensaiando um modelo de organização consequente com os seus propósitos. Finalmente, na «Conclusão», sustentados, também, no trabalho descrito no 1º volume, defendemos que não faz sentido continuar a analisar uma ou outra forma de convocar a escrita de um texto por oposição a todas as outras, naquela espécie de confronto moral que só procura desacreditá-las. A fórmula certa para a aprendizagem da escrita está ainda por inventar. E não acreditamos que venha a sê-lo alguma vez: não acreditamos em fórmulas definitivas, portanto, até porque acreditar nesta possibilidade seria acreditar numa “gramática prescritiva”6, desacreditando na dimensão criativa da escrita. Acreditamos, aliás, que é nesta dimensão criativa que reside todo o fascínio da escrita e simultaneamente a sua grande dificuldade, pelo investimento que exige de quem ensina e de quem aprende a escrever.

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Neste caso seria bastante fazer aprender uma gramática, para vermos os problemas de escrita resolvidos.

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MÉTODO NATURAL: OS SENTIDOS (NÃO)NATURAIS, NO SENTIDO DE FREINET 7 António Nunes e Daniel Lousada

“Leitura e escrita têm estado, durante séculos, ao serviço exclusivo dos deuses (…) ou dos senhores do momento (…). E quanto mais longa era a iniciação, quanto mais custava de esforço, de sofrimento, de sacrifício mais valor tinha para aqueles que dela beneficiavam (…) Não se tratava então de procurar ou de experimentar métodos que beneficiassem essa iniciação (…). E não se iludam: a vossa escola terá muito que fazer para se libertar da crença nas dificuldades dessa iniciação, para compreender que a educação e instrução não são necessariamente provações, que elas são – e devem sê-lo – funções naturais como respirar com voluptuosidade o ar fresco duma manhã de primavera, ou…” Freinet 8

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Este texto constitui um capítulo (adaptado aqui) de um livro inacabado, que projetamos sobre “ (…) os encontros que nos influenciaram no modo como vivemos a profissão e que, resistindo às arrumações que fomos fazendo, continuam a influenciar-nos no que fazemos hoje (…) ”>da introdução@. 8

FREINET, Celestin, 1974c: pp.109-110

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1.1. INTRODUÇÃO

Freinet é autor que revemos repetidas vezes. Por vezes olhando, apenas, as lombadas dos seus livros que se alinham na estante. E, olhando, convocamos memórias. É um dos poucos pedagogos por quem mantemos o fascínio apesar da distância que, entretanto, a história colocou entre nós. Sérgio Niza9 fala dele como autor de referência, capaz de inspirar muitas ações pedagógicas mas que, “(…) deixando de ser ator para o diálogo real, se torna, por isso, interlocutor “impossível” dos potenciais leitores”. E, no entanto, o que somos hoje foi, em boa parte, construído no diálogo com “interlocutores impossíveis”. Não no diálogo que procura soluções práticas em respostas de ontem para problemas de hoje, como se de projeções proféticas se tratassem, mas no diálogo com a história que busca a narrativa que nos fez chegar até aqui. Não me arrependo do que fui outrora // porque ainda o sou, escreveu Fernando Pessoa. Somos o que fazemos e o que “fizemos” fez de nós. Neste sentido, o olhar sobre as propostas pedagógicas de Freinet, não tem nada de nostálgico. Não é o mundo de Freinet que nos faz mover, como não nos movem os

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Posfácio. in, NUNES, 2002: pp. 153-159

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mundos de António Sérgio, ou Rui Grácio, ou Vygotsky, ou Piaget… também eles “interlocutores impossíveis” e referências do “projeto pedagógico” que, tantas vezes contra eles, vimos construindo. Mas não somos indiferentes às cruzadas contra os pedagogos. Assumimos, então, a provocação de nos colocarmos a seu lado. Até porque este ataque, que hoje virou moda, é sempre feito pela via de uma visão estática da sua obra, como se a partir dela não houvesse mais história para contar. Ora, o saber não é estático, fixo no tempo, indiferente ao tempo que por ele passa. Como refere Paulo Freire todos os saberes, uma vez detidos, são sempre saberes passados.10 Embora tendo uma história que garante a sua autenticidade, só adquirem um sentido atual na utilidade que para eles buscamos. Então, ao aceitarmos a herança de Freinet, aceitamos um “saber fazer” que podemos investir (atualizado) nas nossas práticas presentes, sem aquela “declaração em nosso desfavor”, ou “mágoa pelo que somos e não fizemos como profissionais de educação”, de que nos fala Sérgio Niza.11 Neste sentido, não é de “desígnios não cumpridos” que desejamos tratar neste texto: nem Freinet é profeta, nem as suas

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“O saber se faz através de uma superação constante. O saber superado já é uma ignorância. Todo o saber humano tem em si o testemunho do novo saber que já anuncia” >FREIRE, P., 1983: p. 28@. 11

“Podemos, hoje afirmar a atualidade de Freinet se nos dispusermos a dar sentido útil ao discurso de um homem invulgar (…)”. Mas “o reconhecimento dessa atualidade envolverá sempre uma declaração em nosso desfavor, uma mágoa pelo que somos e não fizemos como profissionais de educação, para agora” >Posfácio, in NUNES, A., 2002: pp. 153-159@.

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propostas um catecismo – como refere Alberto Araújo,12 dando a palavra a Freinet, ele procurava “uma escola de século XX para o homem do século XX” –. Mas há uma continuidade histórica naquilo que fazemos hoje, que precisamos reconhecer. Só reconhecendo o caminho que nos trouxe aqui, percebemos o sentido do que temos a fazer. E melhor poderemos, então, construir a escola do século XXI para o homem do século XXI.

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ARAÚJO, Alberto, 2003: p. 89-111.

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1.2. O INÍCIO DA HISTÓRIA

Quando entramos na profissão, Freinet era um nome distantemente vago, associado a “curiosidades pedagógicas” como Método Natural e Texto Livre que, de tão distantes das nossas experiências sensíveis, só com grande esforço conseguíamos traduzir nas nossas práticas, mais como forma de romper com uma escola que nos dizia muito pouco, do que como opção politicamente assumida. Estávamos no início da década de setenta e a “primavera marcelista”, apesar do seu clima político mais ameno, não dava espaço a grandes aprofundamentos na nossa relação com todo aquele fascínio. Com o triunfo da “Revolução de Abril” abre-se a oportunidade à criação de espaços alargados de discussão que analisam o ensino da língua para além do campo restrito da didática, discutindo-a na sua dimensão social e politica mais ampla.13 O debate à volta do método natural e do texto livre desenvolve-se neste contexto. E com Freinet passamos a viver um tempo em que podíamos olhar a escrita como um objeto que aprendemos a dominar naturalmente, bastando, para tanto, colocá-lo ao serviço de uma forma de expressão que desejávamos ser manifestação 13

Procurávamos combater, então, a neutralidade da educação, assumindo-a como ato político.

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de liberdade. Correm, então, as décadas de setenta e oitenta com a imprensa-freinet e o limógrafo a surgirem como tecnologias de ponta ao serviço deste propósito. Hoje, de “texto livre” fala-se pouco, enquanto que para o “método natural”, entendido como identificação de um processo de iniciação à escrita, procuramos outra expressão que identifique a dimensão (não)natural do sentido de Freinet. E isto porque, sabemos hoje, uma relação eficaz com a escrita não se constrói num processo tão natural assim, sendo necessário o concurso de alguns artifícios para que esta relação se consolide e desenvolva. Então, perante as evidências que a investigação foi apresentando, questionámos o “método natural”, sem que de tal resultasse a transformação das práticas de ensino que lhe estavam associadas e que continuamos a usar ainda.14 Por quê (ou para quê) rejeitar um nome, em vez de atualizar o significado de um adjetivo que, no essencial, procurava ajudar a aprofundar a relação da criança com a escrita, dando sentido ao movimento espontâneo (uma espécie de impulso, tantas vezes inconsciente) que a faz aproximar de qualquer objeto que desperte a sua curiosidade? Rigor científico, dirão alguns, não vamos qualificar de natural uma ação que não o é! Outros dirão que há nas palavras outros sentidos que escapam aos sentidos que a ciência oferece e entendem que, com estes outros sentidos, se conserva a memória, evitando ruturas inúteis com a história que só nos fragilizam. As palavras, dizem, “(…) revestem-se do sentido prático que os 14

Questionamos apenas a formulação teórica que apoiava a prática, portanto.

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hábitos sociais lhe emprestam,”15 sustentando que há um sentido prático, hoje, que os “hábitos sociais emprestam” à palavra “natural”, dificilmente captado por outro adjetivo qualquer: os sentidos (não)naturais de Freinet ganham corpo numa certa forma de ser natural de hoje! E em busca de uma outra designação, mais conforme com o que hoje sabemos sobre o modo como uma criança constrói a leitura e a escrita, ou seja, aprende a ler e a escrever, encontrámo-nos, a dado momento, com o “método interativo”, esperando encontrar nele um sentido equivalente ao sentido proposto por Freinet com o seu método. Não foi, do nosso ponto de vista, um encontro feliz. Desde logo, porque qualificar de interativo um método de ensino, além de uma redundância, é uma desvalorização do sentido que, com Freinet, procurávamos para a escrita, já que se perdia a carga ideológica que este natural, inscrito numa história que marcava o modo como vivíamos a profissão, acrescentava a um método só de leitura na sua aparência.16 Depois, “interativo” é uma designação fria que, importada da informática, não traz o calor próprio da relação que se estabelece entre pessoas, para além de nada dizer sobre a origem dos textos que apoiavam a aprendizagem. De um equipamento dizemos que é interativo 15

ICEM, in MONCEAU, Gilles, 1977: pp.43-56

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Como refere Gilles Monceau (Idem: 1997, p.43) “os professores ignoram frequentemente o que Freinet designa por «natural» e o lugar que este adjetivo ocupa na luta contra o que ele chamou de escolástica. (…) não é, pois, o método pedagógico em sim mesmo, como construção teórico-prática”, que é colocado em evidência mas a construção de uma alternativa à rigidez dos processos artificiais que a escola impõe.

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quando interage connosco. Das pessoas não; elas são-no naturalmente. Enquanto isto, e à medida que avançava a investigação sobre os processos implicados na aprendizagem da escrita, ganhavam força as correntes que começavam a questionar a utilidade dos métodos de ensino:

“(…) o mundo está cheio de especialistas refere Frank Smith17 prontos a promover o seu remédio favorito para os problemas de leitura. “Mas se uma autoridade diz que o método A é melhor que o método B, como poderia uma terceira opinião tirar as dúvidas do professor. O professor não precisa de concelhos, ele precisa compreender (…). Todos os métodos de ensino de leitura parecem ter algum sucesso, com algumas crianças, algumas vezes. (…) mas infelizmente nenhum método tem sucesso com todas as crianças.” Defende, então, que o importante, no ensino da leitura e da escrita, não se situa no método, entendido como mapa onde se encontra traçado o caminho que devemos seguir, mas na compreensão que o professor tem acerca da forma como estas aprendizagens se processam. Fernando Hernández, numa perspetiva idêntica, mas com alguma contradição à mistura, dá conta de “(…) uma conceção educativa, mesmo entre os que abordam a língua escrita a partir de enfoques psicogenéticos, que continua pensando que todo o referencial (de pesquisa e de análise) dever ser transformado em um método, em um saber fazer”, traduzido numa sequência didática, para defender que “um marco de interpretação do que acontece 17

SMITH, Frank, 1999

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na sala de aula não tem que ser traduzido em uma proposta didática.”18 No entanto, reconhece que isto acabe por ser inevitável (aqui a contradição) se esta tradução der certo. E, aqui chegados, somos confrontados com um problema fundamental que é necessário resolver: precisamos ou não de um “método” de ensino da leitura e da escrita? Numa resposta instantânea, e face ao que registámos até agora, somos levados a dizer que não! Mas coloquemos a pergunta noutros termos: precisamos ou não de método no ensino da leitura e da escrita? A pergunta já não é a mesma; um artigo menos aqui e outra preposição ali faz toda a diferença; o método está presente mas adquiriu outro sentido, e a resposta já será outra! Quer dizer, não há trabalho eficaz sem método. Em qualquer trabalho que se queira levar a bom porto, o método – do grego “methodos”19: caminho para chegar a um fim – precisa de estar presente. E é nossa opinião que o “método natural” se inscreveu (e continua a inscrever-se com a sua história) na busca dos melhores instrumentos de trabalho que levem à aprendizagem da escrita. Claro que entre os termos «método» (que nos é dado pela didática) e «natural» (que qualifica a natureza de uma aprendizagem), integrados numa mesma expressão, o conflito é evidente. Mas foi 18

in PÉREZ, F., e GARCIA, J. (orgs) Artmed, 2001: pp. vii-xii

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A palavra método vem do grego, methodos, formada por meta: através de, por meio de; e hodos: via, caminho. Neste sentido, servir-se de um método é, antes de tudo, tentar ordenar o trajeto através do qual se possa alcançar os objetivos projetados. O methodos impregnava uma ideia de projeto que se perdeu nos métodos.

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precisamente o conflito que esteve na génese do aparecimento do “método natural” de Freinet: o conflito dos métodos escolares de ensino com as aprendizagens realizadas na informalidade da rua, do grupo de amigos, da família, etc., etc., (e não reconhecidas, porque ignoradas, pela escola) onde, entre outros objetos, a criança dá conta da escrita, através da percepção das suas funções. Não era, obviamente, o “methodos”, que estava na mira de Freinet, mas o didatismo escolar que o contaminou e o despojou do seu sentido original, que deu no que deu: nos métodos que a didática nos oferece, e nos quais objectivos e respetivos caminhos, estão já traçados. Quer dizer, respeitamos a ordem que nos dão, não ordenando coisa alguma. Para nós, o método natural apontava já para um nãométodo – a negação do método como forma de recuperar o “methodos”, e nele os meios (meta) que vinculam os fins, nos caminhos que temos a perseguir (hodos)20 – de certa forma assumido por Freinet no discurso, quando este se insurgia contra a influência da «escolástica», presente no modo como a escola promovia (e promove ainda) todo o tipo de aprendizagens e não só a aprendizagem da escrita. 20

Numa perspectiva idêntica, Sérgio Niza defende que “(…) temos é sem medo e sem preconceito a mais, que descobrir como é que na vida que nos é dado viver as coisas acontecem. (…) é nesses modos de acontecer ciência ou qualquer outro tipo de cultura, que temos de aprender didática. É esse o nosso papel, hoje, historicamente. (…) mas a didática que temos de construir é a negação mesma da didática” (1990). Porque o conceito de didática, tal como nos é apresentado pela sociologia, “remete para o processo de transposição didática tal como Verret o definiu: a transformação da cultura em objeto de ensino e de aprendizagem escolar” (PERRENOUD, 1993: p.73). Mas a cultura não deve entrar na escola para ser coisa parecida.

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1.3. APRENDER NATURALMENTE

Quantas vezes, agindo de acordo com o que sabemos, desconhecemos o percurso que nos fez saber: falamos porque sabemos falar, mas em momento algum recordamos que quisemos aprender a falar.21 São aprendizagens naturais – algumas das quais, de certa forma, fazem parte do nosso instinto de sobrevivência – que decorrem do nosso desenvolvimento, sem intenção ou objetivo definido à partida. Quer dizer, sem objetivo não traçamos caminho: caminhamos, simplesmente, qual “Alice no País das Maravilhas”, quando desconhecemos o lugar a procurar22 – estamos onde estamos porque, simplesmente chegamos aqui –, num percurso que só retrospetivamente será possível reconhecer. Ora, a aprendizagem da leitura e da escrita esconde uma fase assim. Uma criança não aprende a escrever de uma forma

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Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nesta corrente é que a sua consciência desperta e começa a operar (…). Os sujeitos não adquirem a língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência” >BAKHTIN, M., 1981: p.108@. 22

“Podes dizer-me como posso sair daqui” – pergunta a Alice ao gato – “não me interessa muito para onde”. E o Gato responde: “nesse caso, podes ir para um lado qualquer”. “Desde que vá ter a qualquer lado” – continuou a Alice em jeito de explicação >CARROL, L., 2000: p.63@.

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natural mas descobre, com os outros, o que é a escrita, naturalmente. Freinet, ao não identificar esta diferença entre descobrir e aprender, acreditava, com alguma contradição à mistura, que fala e escrita se inscreviam em processos idênticos de aprendizagem. De acordo com esta crença, defendia, então, que para aprender a escrever bastaria escrever, como caminhar para aprender a caminhar, ou andar de bicicleta para aprender a andar de bicicleta (com as inevitáveis quedas à mistura), através do que designava por tateamento experimental. No entanto, também admitia que até o andar de bicicleta solicita outros processos para além do tateamento experimental e, por maioria de razões, o acesso à escrita não seria tão simples assim. Esta contradição, não racionalizada por Freinet, deve-se, pode dizer-se, “(…) à diferença real entre dois tipos ou níveis de aprendizagem que podem ser teorizados por referência a uma ideia proposta por Vygotsky quando ele distingue, ao nível ontogénico, dois estadios de aprendizagem da escrita, a saber: aquele da pré-história da escrita, durante o qual a criança aprende para que é a escrita (descobre); e aquele da história individual da escrita, que é aquela da diferenciação da língua escrita (aprende a escrever)”.23 Como na passagem entre estas duas “histórias” não são visíveis ruturas, a dificuldade em reconhecer a existência de uma fronteira a dividilas é evidente. Freinet foi sem dúvida um dos pioneiros no que se refere ao reconhecimento da importância atribuída à primeira fase da 23

SCHNEUWLY, Bernard, 1994: pp. 313-323.

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aprendizagem da escrita; uma fase caracterizada pela aproximação inicial que a criança faz à leitura da escrita que compõe o seu espaço e que desenvolve através da observação dos gestos de quem se encontra a seu lado. Uma aprendizagem natural no sentido em que, tal como na fala, em momento algum recordamos o momento em que quisemos aprender para que serve a escrita; recordámos apenas que quisemos aprender a ler e a escrever (ou que alguém quis por nós): Venho para a escola porque quero aprender a ler e a fazer contas. O adjetivo “natural” associado à designação de um método de ensino da escrita responde, assim, a esta evidência – mais evidente hoje do que no tempo de Freinet – de que a escrita faz parte do nosso mundo, impondo-se olhos adentro. Mesmo quem não domina a escrita não consegue ver-se livre dela. De uma forma ou de outra a nossa vida será sempre afetada por ela. E se a sua aprendizagem não decorre do próprio desenvolvimento da pessoa da mesma forma que o andar ou o falar, necessita, por isso, de outros interfaces. Quer dizer, a janela está ali desafiando o nosso olhar, disponível para revelar os segredos que guarda se estivermos dispostos a abri-la. Só que interpela o olhar sem chamar ao ouvido que nos faz virar a cabeça. O outro está ali mas, diferentemente da fala, está distante, precisando por isso de ser convocado por quem olha o que é dito (escrito). Esta faceta da aprendizagem da escrita, que a separa da fala, tem a ver com aquela atitude em relação à linguagem que Vygotsky24 chama de voluntária e consciente. A fala dispensa a necessidade desta consciência; quer dizer, quando falamos não precisamos tomar cons24

VYGOTSKY ,2007

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ciência da fala enquanto tal. Da escrita dizemos, quando muito, que pode ser “naturalmente” vivida, com espontaneidade.25 E, de facto, começa por ser espontânea com as primeiras manifestações de escrita vividas pela criança, que não são mais do que tentativas (tateamentos, para usar o termo de Freinet) de colocar em relação fala e representação, antes de ser condicionada no decurso do processo de aprendizagem/ensino. Um condicionamento de que pode libertar-se, com uma escrita construída coletivamente, continuamente recriada em rituais de passagem (ensino), no decurso dos quais é reinventada pelas crianças,26 transformando-se no artifício que, uma vez incorporado, somos capazes de viver com espontaneidade.27 Quer dizer, a leitura torna-se tão natural que, uma vez adquirida esta capacidade, “(…) quando olhamos para uma palavra temos mesmo de a ler. (...) não podemos simplesmente observar uma palavra e não ler”,28 como demonstrou John Ridley Strop.29 25

“Trata-se de um excelente exemplo de como a cultura que, de início, introduz lentamente invenções artificiais, torna-se omnipresente com o tempo e, portanto, «natural» (…) Para um alfabetizado ler e escrever é algo tão natural como falar e escutar”>BLAKEMORE, Sarah-Jayne e FRITH, Uta. 2008: p.77@ 26

“Não se trata de que as crianças reinventem as letras mas que, para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processo de construção e suas regras de produção (…)” >FERREIRO, Emilia. 1991: p.13@. 27

“(…) já não temos modos naturais de estar se não os conquistarmos, se não conseguirmos incorporar o artificio e gerar uma espontaneidade para o artificio que criamos” >NIZA, Sérgio, 1990@. 28

SPITZER, Manfred, 2007: p.215.

29

John Ridley Strop, citado por Spitzer (2007) demonstrou, em 1935, que é praticamente impossível nomear a cor que desenha uma palavra sem ler essa palavra (VER ANEXO 6).

31


1.4. DOS NOMES DAS COISAS ÀS COISAS DOS NOMES

“Tudo isto são construções de artifícios em que homens e mulheres progridem. Esta é a artificialidade em que vivemos todos os dias o dia todo”, dizia Sérgio Niza, em 1990, na sessão de encerramento do XXIII0 Congresso do Movimento da Escola Moderna, referindo-se à cultura que, no seu todo, condiciona as nossas vidas. “Hoje não sabemos sequer o que é ser natural (…) “Os nossos "métodos naturais não têm nada de natural. (…) mas temos é, sem medo e sem preconceito a mais, que descobrir como é que na vida que nos é dado viver as coisas acontecem”. E, no entanto, o “natural” surge com idêntico propósito: foi o adjetivo que Freinet juntou ao “método” para, com o conflito que esta associação provocava (e provoca ainda), combater as barreiras levantadas pela “escolástica”, que nos afastavam e continuam a afastar da vida. Quer queiramos quer não, quase meio século após a morte de Freinet, a escola não encontrou ainda um modo de manter a forma, que deu forma aos saberes que acolhe: “(…) os conteúdos escolares são ensinados e aprendidos fora dos âmbitos naturais de sua produção e aplicação”.30 Os pressupostos que estão na base do nascimento do “método natural” mantêm-se, 30

TRILLA, Jaume e GHANEM, Elie, in ARANTES, Valéria (org.) 2008: p. 39

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portanto. No entanto, dir-se-á que, com o que sabemos hoje, seria improvável designar um método de aprendizagem da escrita de natural. Mas esta não é uma probabilidade que seja útil confirmar; seria como entrar num jogo de faz de conta (que dirias ontem com o que sabes agora?); além disso, o problema com que nos confrontamos, hoje, não decorre da dúvida de existir ou não uma dimensão natural na aprendizagem da escrita (que desfizemos, reconhecendo-a na primeira fase desta aprendizagem), mas no que podemos fazer, na escola, para devolver à escrita a sua condição de “objeto social”, dotado das “suas funções extracurriculares: precisamente aquelas que historicamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem”.31 Ora, observada a proposta de Freinet, vemos que a abordagem que ele preconizou para o ensino da escrita, rompeu com uma didática que não considerava o trabalho sobre aquelas funções, daqui decorrendo a nossa convicção de que não é a prática pedagógica, que o “método natural” promove, que é colocada em causa, mas o significado do nome que, hoje, desligado da sua história e dos pressupostos em que assentou, identifica esta prática.

31

A escola transformou a escrita “de objeto social em objeto exclusivamente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extracurriculares: precisamente aquelas que historicamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem” >FERREIRO, Emília, 1993: p. 20@.

33


* Os nomes estão aí para dar nome às coisas. E nós fazemo-las viver com os nomes que lhes damos. Foi esse o papel do “método natural”: construir uma parte importante do que somos hoje, até que decidimos precisar doutros nomes para as coisas que construímos. Mas há um outro sentido na relação das coisas com os nomes que as revelam, que nos temos esquecido de pensar: na arte, por exemplo, há um sentido inverso que permite “dar coisas aos nomes”.32 Na perspetiva que trazemos aqui, “dar coisas aos nomes” é dotar os nomes de outros sentidos. Dito de outro modo, a relação de um significante com o seu significado não é uma relação estável; ela vai-se alterando ao longo do tempo com as mexidas que os usos sociais fazem nesta relação. Não basta dar um nome diferente a uma coisa, é preciso que ela seja mesmo diferente. Em contrapartida um nome, com o tempo, pode vir a revelar outros significados, acrescentando em si outros sentidos. “Natural”, não tem hoje o mesmo significado que tinha, por exemplo, no tempo de Rousseau; adquiriu outros sentidos. Mas isto não nos pôs a correr ao encontro de outro nome para “este natural” que deixou de ser o “outro”. O nome manteve-se, só que incorporou outros sentidos que não tinham condições de ser contemplados então. Que nenhuma das aprendizagens, que a escola promove, é considerada num processo natural de desenvolvimento, é um 32 “

Dar Coisas aos Nomes” é título de um texto de Manuel Castro Caldas

34


facto. E a aprendizagem da escrita não resulta de um processo natural33 em toda a sua extensão. Mas há um método natural de leitura e escrita, historicamente datado, que chegou até nós: o “Método Natural da Escola Moderna” que nos recorda que a aprendizagem da escrita, não se inscrevendo num processo natural de desenvolvimento, comporta, no entanto, uma dimensão natural.34 E, sendo o conflito que esteve na génese do seu aparecimento, talvez que o problema que temos para resolver esteja no método e seu significado, como intuiu Freinet, independentemente do adjetivo que lhe juntemos para o qualificar.35 Afinal, com o «natural», o que Freinet pretendeu questionar foi a racionalidade de um método (de práticas de ensino), ilusoriamente considerado de aprendizagem, que retirava (e ainda retira) a aprendizagem da vida, propondo, em alternativa, o ensino da escrita nos contextos onde a escrita ganha sentido, num (não)método que procura recuperar o «méthodos», na perspetiva que defendemos atrás,36 e que nos convida a refletir sobre a distinção entre ensinar a aprender.

33

Integrado no processo de desenvolvimento da pessoa, como falar ou andar.

34

Como defendemos atrás com Vigotsky: pp. 29-30

35

Identificamos também o conflito nas relações método/global; método/analítico-sintético… Nada nos diz que as crianças aprendem a ler inscritas na hierarquia de procedimentos proposta em qualquer um deles. 36

Ver pp.26-27

35


1.5. ENTRE ENSINAR E APRENDER

“Caminante no hay camino, se hace camino al andar” António Machado

Aprendemos naturalmente para que serve a escrita. Mas para ser um objeto que sabemos usar nos diferentes contextos em que pode ser usada, precisamos de nos inserir num trabalho metódico que nos ajude (ensine) a adquirir essa experiência sem sermos sufocados no processo. Ora, o sentido paradoxal que se extrai da combinação das palavras que fizeram o seu nome, ofereceu ao “método natural” os argumentos para enquadrar este trabalho. Foi, aliás, nesta combinação que residiu a sua força. Sendo o “método”, por definição, um conjunto de regras básicas (caminho) para desenvolver uma experiência a fim de produzir um novo conhecimento (chegar a um fim), a partir de um saber pré-existente, ao associá-lo ao adjetivo natural, reconheceu-se, de certa forma, a impossibilidade de percursos lineares na aprendizagem da escrita, com “estações” de paragem obrigatória e hora marcada para chegar ao destino. Com a combinação destes dois termos, o reconhecimento da importância das aprendizagens realizadas na informalidade dos contextos não con36


trolados pela escola ou qualquer outro sistema de educação formal, saiu reforçado.37 Tanto hoje como no passado, escreve Emília Ferreiro, “(…) o acesso à linguagem escrita começa quando o adulto decide – A ilusão pedagógica pode manter-se porque as crianças aprendem tanto a proceder como se nada soubessem (embora saibam), quanto a mostrar, diligentemente, que são capazes de aprender através do método escolhido”. Quer dizer, é uma ilusão pretender prever todas as circunstâncias que levam à aprendizagem da leitura e da escrita, num método que controle os atos todos implicados no processo.38 Quando muito conseguimos sufocar um mundo que se quer libertar. O caminho que leva à leitura e à escrita não é um caminho único assinalado num mapa; mas o mapa está aí com todos os caminhos possíveis; apenas precisamos aprender a fazer a leitura dele. Então, estaremos em condições de identificar caminhos e, passa a passo, desenhar novas rotas não marcadas no mapa, para ultrapassar obstáculos imprevistos. O “método natu37

António Nunes (2009) vê nas aprendizagens naturais de Freinet, ontem, com os processos informais de hoje, uma aproximação de sentidos, e identifica, nas aprendizagens informais, os sentidos (não)naturais de Freinet que, entretanto, procuramos. De certa forma, entre o natural e o informal, regista uma continuidade histórica que nos aproxima numa narrativa comum. Neste sentido, em alternativa a natural, seria legitimo associar ao método o adjetivo informal. Não vemos, no entanto qualquer vantagem nesta associação já que, mantendo-se a relação conflituosa do método com o adjetivo que o qualifica, não resolveríamos o problema epistemológico de fundo. 38 “

(…) as crianças são incrivelmente flexíveis (…) parecem ser capazes de aprender apesar do método de ensino empregado. Mas isto não deve ser interpretado como uma afirmação de que qualquer coisa serve” >SMITH, Frank, 1999: p. 11@.

37


ral” foi este mapa (continua a ser para muitos professores), uma âncora que nos segurava e nos convidava a pensar nas alternativas se nos sentíssemos à deriva. Porque qualquer percurso que leva uma criança à escrita é, sempre, um caminho não previsto, que descobrimos caminhando com ela, sempre pela primeira vez, mas dando sempre o passo seguinte sabendo onde nos encontramos e para onde queremos seguir. Quando se trata de ensinar a escrever, a tendência vai no sentido de ver a escrita como coisa da escola, apenas; mesmo o “método Natural”, nascido, é certo, da ambição de libertá-la das formas escolares que desvirtuam a sua função, não deixa de ser um produto marcado pela escola: o “método”, uma das palavras que compõem o seu nome, é um símbolo desta marca. É o “método” (numa didática) que amarra o ensino da escrita à “gramática” da escola; e o adjetivo “natural” é o elemento que Freinet associou ao método para libertar a escrita das formas que a escola lhe tem dado no modo como ensina. Mas se o “método” está presente no seu nome, como pode o “método natural” ver a escrita, na escola, como escrita, livre das contaminações didáticas dos métodos? Na nossa tese, que não é tese nenhuma mas apenas convicção, é fundamental assumir a dimensão natural da escrita (no que podemos ver de natural nela: na funções de comunicação ou memória, por exemplo), presente no “método natural da escola

moderna”, libertando-a do “método”. Quer dizer, não vemos, como muitos veem, a raiz do problema no adjetivo «natural» que qualifica o método, mas nos métodos, como propostas didáticas, que descontextualizam a escrita, no decurso do seu ensino! 38


O que distingue as aprendizagens que acontecem, naturalmente, nos espaços informais de educação, que a escola não controla, é a sua intencionalidade. Na rua uma criança aprende muitas coisas, muitas vezes, no convívio com os outros, sem se aperceber que aprende. Mas não é nesta informalidade toda da rua que ela consegue descobrir o sentido de tudo que sabe. E a escrita é uma daquelas “coisas” que começa por ser reconhecida naturalmente, como demonstramos atrás.39 Mas depois, para avançar no conhecimento, é preciso ir além do simples reconhecimento; é preciso aprender a usar a escrita como “o bem social indispensável para enfrentar o dia-a-dia”.40 E para isto os processos informais não bastam; é necessária a intencionalidade que só um modelo estruturado de organização do trabalho de aprendizagem é capaz de proporcionar. Assim, a tendência é deslocar o enfoque do método, de um processo de aprendizagem natural/informal, para um processo de facilitação ou passagem (ensino), que compreenda o modo como a aprendizagem se processa. Então, dos métodos de ensino da escrita (e da leitura) passamos ao ensino da escrita com método. E o trabalho desenvolve-se metodicamente, quer dizer, o método deixa a sua condição de substantivo para assumir a condição de advérbio: o modo como fazemos as coisas, naturalmente, ou seja, respeitando a natureza do objeto que temos para ensinar.

39

Capítulo 1.3 - Aprender Naturalmente, pp.28-31

40

MARCUSCHI, Luiz, 2001: p. 16

39


1.6. “NÃO TEMOS MODOS NATURAIS DE ESTAR SE NÃO OS CONQUISTARMOS”

Se tentassemos definir o homem, pelo sistema de comunicação que usa, diríamos que é um ser que fala e não um ser que escreve. É a fala, e não a escrita, que está inscrita nos seus genes.41 Mas, independentemente das características que encontremos nestas duas formas de expressão, estaremos sempre perante dois modos de desocultar uma língua, só visível se for falada ou se for escrita. Sem fala e sem escrita, a língua manterse-ia como pensamento invisível, escondido na mente de quem o pensa. E, neste sentido, fala e escrita assentam em idênticos propósitos. Num contexto assim, foram as funções da escrita, naturalizadas nos ambientes sociais onde se exprimem, que o método natural pretendeu realçar. A escrita naturalizou-se nas formas que o homem inventou para organizar a sua vida. Mas não sabemos que outras formas de naturalização são ainda possíveis. Não sabemos se num futuro a milhões de anos de distância, dificilmente previsível até num cenário de ficção científica, teremos a escrita, pelo uso que dela fazemos, inscrita nos nossos genes, como sugere Have41

“(…) Seu uso da fala (…) foi adquirido por processos de seleção natural operando ao longo de milhões de anos. O hábito de usar símbolos escritos (…) existe há pouco tempo para poder ter sido inscrito em nossos genes >Havelock, 1995, citado por MARCUSCHI, idem, 2001: p. 23@

40


lock.42 Mas sabemos, pelo contributo de ciências emergentes, como as neurociências, dos efeitos da sua aprendizagem na arquitetura biológica do cérebro, que abre novas perspetivas sobre o papel da escrita, em particular, e da cultura, de um modo geral, na conquista de outros modos naturais de estar. A experiência da escrita não se adquire através de processos biologicamente programados. Contrariamente à linguagem que se desenvolve a partir de estruturas cerebrais que lhe estão dedicadas,43 a escrita é uma competência que se adquire através de uma série de transformações neuronais.44 Quer dizer, o cérebro, não tendo uma “estrutura biológica programada” para aprender a ler, está, no entanto, “biologicamente preparado para se adaptar” a esta experiencia: o contacto com a escrita permite construir, gradualmente, os circuitos neuronais capazes de aceder à leitura. Por analogia com a informática, é possível compreender esta diferença entre “programado” e “preparado para se adaptar”. Assim, o cérebro (computador) vem equipado de estruturas 42

citado por MARCUSCHI, Luiz, 2001

43

Chomsky (1959, citado por CERI, 2008) defende que o cérebro dispõe de um dispositivo que permite transformar cadeias sonoras em elementos significantes, por um processus análogo à transformação da informação sensorial na representação de objetos. No entanto, como refere Bruner, este dispositivo (LAD – Language Acquisition Device) não teria condições de funcionar sem a ajuda de um falante que, ao incorporar-se com a criança num registo transacional, fornece um sistema de suporte de aquisição da linguagem (LASS – Language Acquisition Support System). “É a interação entre LAD e LASS que torna possível à criança entrar na comunidade linguística e, simultaneamente, na cultura a que a linguagem dá acesso” >BRUNER, Jerome, 1990: p.22@. 44

CERI. OCDE, 2008

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biológicas (programas) que lhe permitem executar operações básicas necessárias à vida (ao seu funcionamento). A estrutura dedicada à linguagem é um destes programas que serve à aprendizagem da língua se houver um falante que, ao “falar com”, possibilite a aprendizagem da fala. Mas há operações que só são possíveis se forem instalados os programas que adaptem o computador às novas funções. Ora, de certa forma, o ensino da leitura e da escrita assemelha-se à instalação de um programa. O cérebro está preparado para se adaptar a qualquer programa, e a sua instalação (ensino), semelhantemente ao que sucede com o disco duro de um computador, deixa as suas marcas (circuitos neuronais) no cérebro, que passam a integrar as suas estruturas biológicas. E aqui termina a analogia. Diferentemente do que sucede com o disco duro de um computador, o cérebro não permite a desinstalação de um programa que a educação instalou; só um acidente muito grave seria capaz de apagá-lo. Os instrumentos de cultura que adquirimos, pela educação, tornam-se permanentes e, portanto, parte de nós. Resumindo, evolução e educação, não se situando no mesmo plano, não são vistas em planos opostos, como aconteceu, no passado, com natureza e cultura.45 Hoje, a nossa natureza define-se, também, pela cultura que se desenvolve no intercâmbio entre evolução e educação: os nossos modos naturais de estar, agora, seriam impossíveis sem esta relação.

45

BLAKEMORE, Sarah-Jayne e FRITH, Ut, 2008

42


1.7. AO JEITO DE CONCLUSÃO DO MÉTODO DIDÁTICO AO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO

Glenn Doman numa curiosa relação da aprendizagem da fala com a aprendizagem da leitura, defende que “(…) naturalmente nenhuma criança quer aprender a ler até ficar sabendo que a leitura existe. (...) você pode realmente começar a ensinar o bebé desde o nascimento. Afinal, nós falamos com o bebé assim que ele nasce – e isso melhora a sua capacidade de ouvir. Nós podemos dar-lhe, igualmente, a linguagem através dos olhos – o que desenvolverá a sua capacidade de enxergar (...)”.46 Dir-se-á que, entre desenvolver a capacidade de ouvir e desenvolver a capacidade de enxergar, estamos a recuperar as disputas entre “associacionismo” e “gestaltismo” que alimentavam o debate no tempo de Freinet e a colocar em confronto, respectivamente, os métodos sintético e global. Mas já ultrapassamos essa fase. E o que vemos nas palavras de Glenn Doman, não tem nada a ver com aquele trabalho sobre perceções, enquadrado no conceito de pré-requisito, que a psicologia geral desenvolveu, mas com o facto de não aprendermos nada sobre um objeto se ele não nos disser nada, à partida. Ora, apontar uma palavra, falando o que ela nos diz, enquanto a sublinhamos como o dedo, estamos a atuar, precisamente, neste registo: a 46

DOMAN Glenn, 1994

43


mostrar um objeto por aquilo que ele nos diz, pelo que somos capazes de fazer com ele. Hoje, temos ciências (neurolinguística, psicolinguística..., que não estavam ao alcance de Freinet no seu tempo), que nos ajudam a compreender como se processa a aprendizagem da escrita, permitindo-nos convocar os instrumentos de trabalho de acordo com a natureza dos processos envolvidos na construção deste saber. Procurando uma analogia com outros métodos naturais, houve tempos em que dizíamos, por piada, que se todos usássemos o método natural estaríamos hoje cheios de filhos. Queríamos então dizer, que defender o “método natural” é, longe de deixar a natureza seguir o seu curso, compreender o curso que a natureza segue em nós.47 Quer dizer, tal como no método contracetivo, com o método natural de leitura aprendemos a ajustar, à “nossa natureza”, o objeto (escrita) que pretendiamos dar a conhecer. E partimos, então, à procura do que precisa de acontecer no homem e à volta dele, para que ele aprenda a ler: à procura dos sentidos (não)naturais, no sentido de Freinet. 48

47

Também este método tem pouco de natural. O que é natural é só haver fecundação no período de ovulação. Então, o que temos é um método contracetivo que compreende o modo como funciona o sistema reprodutivo humano. Mas daqui não resultou um problema epistemológica para resolver. 48 “

(...) se conhecermos a nossa natureza ou a nossa relação com a natureza, talvez isso nos possa orientar sobre como atuar e como utilizar convenientemente a nossa liberdade” >SAVATER, Fernando, 1999: p. 163@

44


* Claro que, em bom rigor, não podemos dizer que Freinet tenha apoiado o seu método natural numa teoria de aprendizagem, sustentável com os conhecimentos que temos atualmente sobre este assunto. O que ele construiu foi uma prática, de tal forma exemplar, que não podemos fugir dela com as teorias que temos hoje. Reconhecemos, no entanto, o conflito do método de ensino na sua relação com o adjetivo «natural» que o distingue. Mas entendemos que o problema desta relação conflituosa vai inteirinho para o método (no sentido que a didática tradicional nos dá) e não para a natureza dos processos de aprendizagem que vincula. Quer dizer, há qualquer coisa nos métodos de ensino que nos faz desconfiar do modo como estes organizam o trabalho de aprendizagem, o que não significa, de todo, defender a ausência de método no modo como nos organizamos no trabalho. Mas este método que nos organizava no “método natural” nada tem a ver com o outro (presente nos métodos tradicionais de ensino) que nos amarra. Precisamos, então, de libertar esta dimensão natural, desenvolvida por Freinet, do método que a contamina. E atrevemo-nos a propor a atualização do “método” numa “abordagem natural”, inscrita num espaço criado pela escola para convocar a escrita: o “Texto Livre”.49 O enfoque já não se encontra num 49

Nas propostas de Freinet o “Método Natural” aparece associado ao “Texto Livre”, e ao conjunto de técnicas que esta forma de solicitar a escrita convoca (Este tema é desenvolvido no capítulo 2 deste livro). Mas para que este espaço funcione é preciso, obviamente, um modelo de organização do trabalho de aprendizagem, que o contemple. E, pelo que conhecemos, o modelo do “Movimento da Escola Moderna” é um destes modelos. Note-se, no entanto, que neste modelo o ensino da escrita partilha com o ensino de todos os outros

45


conjunto de procedimentos delineados hierarquicamente, mas nos marcos de interpretação do que acontece na aula, que conseguimos fazer à medida que as aprendizagens avançam. E numa abordagem assim, deslocamo-nos do método como proposta didática, para nos aproximarmos de um método de investigação (investigação-ação?). Se encararmos o “método natural” apenas como uma curiosidade pedagógica, perdida na história, poupamos, provavelmente, o incómodo de um problema epistemológico por resolver. Mas corremos o risco de perder uma parte importante da memória que nos trouxe até aqui. É que o “método natural” traz consigo a herança de um sentido que se narra pelo seu nome, conta uma história como nenhum outro consegue contar, ao propor-nos o ensino da escrita nos contextos onde ganha vida. É certo que ao confrontarmo-nos com os pedagogos do passado, corremos o risco de sair do confronto com “a pobreza e desencanto das nossas práticas presentes”.50 Mas não é o confronto com o passado que nos faz mover. Não é de nostalgia que trata este texto. E se o confronto existe, ele desenrola-se no interior das nossas práticas presentes, na busca do sentido do que fazemos agora. Sempre usámos o “método natural da escola moderna” no processo de iniciação à leitura e à escrita. E as respostas às perguntas que colocamos, no decurso das “arrumações” que conteúdos curriculares a mesma designação: “ensino interativo”, no qual, pela leitura que fazemos deste modelo, o trabalho sobre a escrita, que o texto livre convoca, se integra [mais informações em: www.movimentoescolamoderna.pt]. 50

NIZA, Sérgio. Posfácio, in Nunes, A., 2002: pp. 153-159

46


vimos fazendo, vão no sentido de confirmar o sentido das práticas que ele encerra nas práticas de ensino que desenvolvemos ainda, sustentados, agora, não pelas metáforas naturalistas de Freinet mas pelas conceções que hoje temos sobre o modo como as aprendizagens da escrita e da leitura se processam: as metáforas de Freinet, dando conta do movimento espontâneo que nos faz aproximar de qualquer objeto (de conhecimento ou outro) que desperte a nossa atenção, não explicam, é certo, como é que a aprendizagem se processa neste movimento; mas o método natural, tanto quanto podemos ver na prática de Freinet, apenas dá conta das aprendizagens que decorrem destes processos, fazendo-as ponto de partida para que as crianças, avancem no conhecimento delas. Não faz destes processos espontâneos os únicos processos de trabalho que levam à escrita. Onde muitos veem, nesta proposta de Freinet, um equívoco ideológico do tempo, nós vemos, hoje, uma questão ideológica sem qualquer espécie de equívoco. Quer dizer, vemos esta dimensão «natural» da escrita como um «estado» a alcançar: uma forma de vivê-la plenamente, naturalmente. Porque, afinal, os meios precisam de vincular os fins da educação Parafraseando João Paraskeva, é fundamental ir além de Freinet sem o evitar.51 Mas claro que é sempre possível evitá-lo, com grande perda de memória. 51

Este professor e investigador, da Universidade do Minho, referia-se a John Dewey >A imperiosa obrigação de ir além de John Dewey sem o evitar In DEWEY, John (2007) A Democracia e a Educação. Lisboa: Ditática Editora@.

47


48


ENTRE O MÉTODO NATURAL E O TEXTO LIVRE 52 Daniel Lousada

“O texto livre permite que cada aluno tenha a liberdade de escrever sobre o que entender, impregnando-se de um coletivo e, nele, apoderar-se da imensa multiplicidade das produções, intervindo, nas formas mais diversas, no seu conteúdo (…), na correção da sua estrutura escrita (…), na discussão dos tempos, dos espaços e dos acontecimentos que lhe deram origem. Constitui-se (…) como um regulador social da classe”. António Nunes53

52

Este capítulo é uma reescrita do artigo “A propósito do Texto Livre”, publicado na revista “Escola Moderna”, nº 30-5ª série, 2007: pp.20-27.

53

2002

49


50


2.1. NATURAL / INFORMAL: OU APRENDER COM AS CIRCUNSTÂNCIAS PRÁTICAS DA VIDA

Aprendi a ler onde e como a maior parte das crianças da minha geração aprenderam: na escola ao ritmo marcado pelo manual escolar, livro único no meu tempo. Mas antes de entrar na escola, tive a sorte de entrar no mundo da escrita através daquele jogo de faz de conta, que toda a criança joga para, sem sair do seu mundo, experimentar o mundo do adulto através da cópia dos seus gestos. Freinet viu neste jogo o movimento espontâneo que qualquer criança faz para tocar o objeto que lhe desperta a atenção, numa espécie de mobilização dos sentidos no sentido do mundo que a rodeia. E fez a analogia com o processo de imitação dos sons da fala, que desenvolve no diálogo com a mãe, na procura do sentido comum que dá sentido à relação de comunicação. Há uma tal espontaneidade no modo como as crianças interrogam a escrita, quando crescem no convívio com ela, que não será de todo descabido pensar a aprendizagem da leitura integrada num processo “natural” de desenvolvimento. Não o natural que resulta da informação inscrita no nosso código genético e que dispensa qualquer mediação no processo de aprendizagem, mas o “natural” que nos faz convocar o outro num pedido

51


de ajuda para entender o que desperta a nossa atenção.54 Afinal, a escrita está em tudo quanto é sítio, invadindo o espaço todo; não há como não dar por ela e evitar a curiosidade que desperta. Só que, enquanto a curiosidade tem morada preferencial na rua, o ensino da escrita e da leitura (principalmente da escrita) tem sido visto como coisa da escola apenas, e só por acaso se têm encontrado no mesmo espaço. Quer dizer, o “natural” que pretendo fazer sobressair, refere-se a este comportamento social que nos faz pedir e apreciar a companhia do outro (se o outro estiver disponível), quando temos um problema que não sabemos resolver sozinhos. Hoje diríamos que esta forma de aprender (e ensinar) se inscreve em processos informais de aprendizagem (e ensino) e que, contrariamente aos processos normalmente utilizados na “educação formal”, procura desenhar um contrato que contempla o lugar (saberes, interesses, desejos, expectativas…) da pessoa em formação. Quer dizer, esta forma informal não se identifica tanto pela aprendizagem em si mas pela intencionalidade das condutas: “(…) sua forma propriamente educacional não emerge como algo distinto do curso próprio da ação ou situação em que o processo transcorre”.55 Valéria Arantes, apoiando-se em Dewey, defende que “(…) a chave para a compreensão da instrução «Formal» está 54

“Descobri pela 1ª vez que sabia ler aos quatro anos. Já tinha visto vezes sem conta as letras que sabia (porque me tinham dito) serem os nomes das imagens debaixo das quais se encontravam” >MANGUEL, Alberto. “Uma História da Leitura”. Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 19@ 55

JAUME Trilla, citado por GHANEM, Elie., in ARANTES, Valéria (org.) 2008: p. 62

52


naquelas experiências vividas durante as atividades «nãoformais». Se assim for, podemos entender que as ideias ou valores se originam das circunstâncias práticas da vida humana, e, portanto, a instituição escolar deve facilitar a elaboração dessas experiências”. 56 Freinet teve o mérito de procurar fazer da escola este espaço que compreende a relação da criança com o mundo. E com o “método natural” deu uma importância enorme àqueles saberes que “se originam das circunstâncias práticas da vida”, ensinando a criança a tomar consciência do que aprendeu a partir delas e do que pode aprender ainda. Ora, a leitura e a escrita não existe fora da relação com estes saberes.

56

ARANTES, Valéria (org). “Educação Formal e Não-Formal”. São Paulo: Summus Editorial, 2008, p. 8. – A educação “não-formal”, aqui, não se distingue da educação “informal”, partilhando o mesmo conceito. No entanto, há autores que propõem conceitos diferentes para estas duas designações. Trilha (2008), por exemplo, prefere distingui-las. Assim, a educação não-formal é “toda atividade organizada, sistemática, educativa, realizada fora do marco do sistema oficial, para facilitar determinados tipos de aprendizagem a subgrupos específicos da população, tanto adultos como infantis; e a educação informal, um processo, que dura a vida inteira, em que pessoas adquirem e acumulam conhecimentos, habilidades, atitudes e modos de discernimento por meio das experiências diárias e da sua relação com o meio”. Nesta perspetiva, a educação “não-formal” não se distingue da “formal” pela sua intencionalidade, já que esta é uma característica que distingue uma e outra da educação “informal”, mas pela sua inclusão ou exclusão no sistema educativo hierarquizado (1º, 2º e 3º ciclos, ensino secundário, etc.).

53


Aprender a ler começa pelo reconhecer na escrita aquele objeto singular que nos permite “desenhar” não as coisas mas os nomes que as coisas têm57 e que qualquer criança (ou quase todas as crianças) reconhecem já, quando chegam à escola: um objeto que não existe por si mesmo; um objeto que existe na dependência de contextos de significação e se reconhece no uso das suas funções (de memória, de comunicação, etc., etc. – aqui, as circunstâncias práticas da vida). Freinet, com o “Método Natural”, procurou apoiar-se nesta relação da escrita com os contextos que lhe dão sentido. Por isso chamou a escrita para a escola e não apenas as letras,58 apostando na construção de um espaço de diálogo entre a escola e o mundo da criança; uma forma de “deixar entrar e sair para ir buscar informação extraescolar disponível”.59 Como refere Emilia Ferreiro, 60 com muita frequência “se tem enfatizado a necessidade de abrir a escola para a comunidade. Curiosamente, no caso onde é mais fácil abri-la é onde a fechamos. A criança vê mais letras fora do que dentro da escola: a 57

É neste reconhecimento que conquistamos a possibilidade de “desenhar”, além do que a mão consegue tocar, também o que o coração é capaz de sentir.

58

Quem vê o ensino da escrita como o ensino das letras, vê a escrita como objeto que existe por si mesmo e, portanto, dificilmente ensina a escrever.

59

FERREIRO, Emilia (1991). Emilia Ferreiro referia-se à experiência pedagógica levada a cabo por Ana Teberosky, em Barcelona, com a qual, para além desta ideia, defendeu que: “o professor não é mais o único que sabe ler e escrever na sala de aula; todos podem ler e escrever, cada um ao seu nível; as crianças que ainda não estão alfabetizadas podem contribuir com proveito na própria alfabetização e na dos seus companheiros, quando a discussão a respeito da representação escrita da linguagem se torna prática escolar”. 60

FERREIRO, Emilia, 1991

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criança pode produzir textos fora da escola enquanto na escola só é autorizada a copiar, mas nunca a produzir de forma pessoal”. Freinet rompe com esta prática e defende a expressão livre como a principal característica da sua abordagem ao ensino da escrita. É ela que mobiliza as crianças na produção dos enunciados que servem a sua aprendizagem e que, uma vez registados e trabalhados com a ajuda da escrita do professor, são os textos de apoio à aprendizagem da leitura. Sem esta dimensão textual, que a expressão livre favorece, teríamos mais um método de base global, apenas com a vantagem, aparente, de vir associado a um vocabulário visual básico de trabalho, retirado da experiência quotidiana das crianças em aprendizagem. Tivesse o Pedro, a oportunidade de viver uma experiência assim, e já não teria razões para dizer: “Estamos a olhar para o quadro e a professora mostra como ela é capaz de escrever, para ver se nós aprendemos também a escrever como ela. Mas ela só faz letras, e eu estou farto, e agora até ando confuso com esta cena das letras”.61 O Freinet procurou, portanto, no que fazem e dizem as pessoas (as circunstâncias práticas da vida de que é feita a educação informal), os elementos que servem a aprendizagem da leitura e da escrita, propondo, na escola, um espaço onde a desocultação dos segredos da escrita se cruzasse com a curiosidade cultivada na rua: propôs a entrada da escrita na escola a partir das fases mais precoces da sua aprendizagem. E o Texto Livre surgiu, como um instrumento de materialização deste espaço.

61

GOUCHA, Luís. s/d

55


Ao promover este espaço, o professor larga mão de um pouco do seu controlo e, por momentos, recria-se aquela relação com o saber que caracteriza a informalidade da rua, liberta dos constrangimentos da forma escolar. E digo por momentos porque o “texto livre” não anula a intencionalidade própria da “educação formal”, mas cria antes as condições de permeabilidade entre estas “formas de educação” (da escola e da rua), nos processos de aprendizagem, configurando, pela importância e visibilidade que lhe dá, um espaço de legitimação do olhar que as crianças desenvolvem sobre o mundo que as rodeia, no decurso do processo que a ensina a escrever.62 De certa forma, assume-se aqui um espaço de desocultação das funções da escrita, ocultadas no decurso da transmutação a que esta foi sujeita pela escola, para utilizar os termos de Emília Ferreiro, 63 e que favoreceu a ilusão da escrita como objeto 62

Num espaço destes, o Pedro teria o interlocutor necessário para o ajudar a aprender com as interrogações que as suas dúvidas levantam: “Quando olhei para a parede, por cima da caixa multibanco, onde a minha mãe estava na bicha para levantar o dinheiro, ela disse que estava escrita BANCO. E lembrei o que a minha professora andava a dizer para aprendermos as letras: vamos lá ver se vocês sabem todas, aaaa… beee… ceeee… deeee… e por aí fora… E isto causoume uma grande impressão, e nem perguntei a ninguém… a professora não se podia ter enganado, nem nos andava a enganar… Mas se a professora nos andava a ensinar a-b-c-d… e ali o B estava antes do A como é que isso podia ser? >GOUCHA, Luís, s/d@. 63

A escola transformou a escrita “de objeto social em objeto exclusivamente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extracurriculares: precisamente aquelas que historicamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem” >FERREIRO, Emília, 1993, p. 20@. É esta transformação da escrita, como instrumento de cultura, num instrumento que não vincula cultura alguma, como condição necessária à sua transposição para o espaço escolar, que Freinet procurou combater com a sua prática.

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que existe por si mesmo, presente em boa parte das práticas tradicionais de ensino.64 É claro que há outras formas de trazer a escrita para a escola: a escrita que vem nos livros é escrita também, que precisamos mostrar ao ler, para ensinar, também, como se escreve.65 Mas o texto livre traz o sentido da escrita de que uma abordagem natural se alimenta para ensinar, ou deixar aprender, o que as letras (na escrita) podem fazer (e dizer).

64

A professora da minha irmã mandou-a escrever no caderno uma linha de “is”… (…). Mas a minha irmã disse à professora: “Eu já sei escrever o meu nome”. A professora não lhe ligou nenhuma, e fez muito bem, estava a explicar os “is”, ela só tinha que os fazer e calar-se. Mas ela teimou e voltou a dizer: “olha que eu já sei escrever o meu nome”, e mostrou-lhe INÊS. A minha irmã decidiu que não fazia nenhum “i” se a professora não a deixasse escrever o nome, e como ela não deixou, não fez nada a manhã inteira >GOUCHA, Luís, s/d@

65

Amplamente desenvolvida no 1º Volume, “Escultor de Palavras: inventar palavras já inventadas”

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2.2. O TEXTO LIVRE

Para Pierre Clanché, a liberdade deste «livre», que qualifica o Texto Livre de Freinet, “não reside no conteúdo, assunto, inspiração, etc., mas no modo de solicitação”.66 E deparamo-nos, então, com um modo muito particular de convocar a escrita na escola, que altera as prioridades de produção do texto: escrevo porque persigo um sentido preciso, que a minha escrita faz visível, para mim e para os outros, e não para aprender a escrever, se bem que aprenda no decurso do processo. Antes de tudo, escrevo para produzir um texto. E, não sendo a aprendizagem da escrita o motivo desta produção, só o que posso fazer com ela, inscrito num processo de socialização que lhe confere sentido, me pode mobilizar a escrever: “A escrita, no sentido mais literal do termo, não é mais do que a primeira etapa da produção do texto enquanto produto: é ao longo deste processo de socialização que se faz a aquisição do epistema”.67 A escrita, se não vier de uma encomenda, dá-se, muitas vezes, em gestos espontâneos (um estado de escrita, para usar uma expressão de Sophia de Mello Breyner), que é preciso alimentar e não deixar perder. E o texto livre alimenta esta espontaneidade já 66

CLANCHÉ, Pierre, 1977

67

CLANCHÉ, Pierre, 1977

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que nele a escrita é livre, sem espaço/tempo para se soltar: não tem horários a cumprir, nem vem amarrada a um compromisso de produção. O texto livre que escrevo é o texto que não me comprometi a escrever. Mas isto não significa que, no texto livre, a escrita surja apenas de uma inspiração do momento. A escrita não resulta de um jogo de inspiração mas de um trabalho de palavras. Uma ideia ou um pensamento (inspirado ou não) nasce da nossa relação com o mundo que nos envolve. A escrita, quando muito, vem ajudar a encontrar a forma que corresponde à ideia que o pensamento pensou; convoca o trabalho de palavras que faz a mão «desenhar» a ideia numa escrita. António Lobo Antunes, a propósito de uma ideia que esperava desenvolver, mas que não passava disso mesmo – uma ideia que não encontrara, ainda, a sua forma – escreveu o seguinte: “(…) me anda na cabeça mas não me aparece na mão, e só consigo escrever com os dedos. Os miolos não pegam na esferográfica”. “Os miolos não pegam na esferográfica”, é certo, mas podem dialogar com a mão. E o trabalho de palavras integra-se neste diálogo; um diálogo que só é possível ensinar a fazer se o inscrevermos naquele processo de socialização que lhe dá sentido. A diferença entre António Lobo Antunes e um qualquer aprendiz de escrita está na capacidade de fazer a mão entrar no diálogo e convencê-la a desenhar a ideia que os miolos pensaram. Quer dizer, diferentemente de um escritor competente, o aprendiz de escrita precisa de alguém que seja mediador neste diálogo. 59


E é precisamente neste processo de mediação que o “natural” em Freinet encontra a sua natureza, confundindo-se com ele: o que é natural não é a aprendizagem da escrita, se bem que exista uma fase natural nesta aprendizagem;68 o que é natural é o diálogo procurado por quem aprende para entender o que desperta a sua atenção. Daqui que, para Freinet, não ser possível pensá-lo (e, menos ainda, praticar este diálogo), fora da expressão livre que o texto livre solicita: a partir da expressão livre a criança “entra no domínio da escrita escrevendo; ela escreve antes de aprender a ler; ela aprende a ler enquanto escreve; duas raízes juntam-se para formar uma nova função: representar e falar; representar a fala”,69 que o mesmo é dizer, fazer visível ao olhar o que, até então, só o ouvido permitia captar: uma fala traduzida para ser «ouvida» com os olhos também.70

68

A saber, aquela ”da pré-história da escrita, durante o qual a criança aprende para que é a escrita (descobre) ”. Ver atrás, página 29 69

SCHNEUWLY , Bernard, 1994: pp. 313-323. Quando Schneuwly diz que a criança escreve antes de aprender a ler não é da escrita socializada que está a falar, mas daquele desenho da fala a partir do qual inicia a sua entrada no mundo da escrita ; escreve a sua fala que antes ditou e a educadora, ou a professora, escreveu por ela 70

Esta dimensão da escuta associada à leitura encontra-se desenvolvida no primeiro volume.

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2.3. A IMPRENSA

O texto livre aponta para a diferença entre a escrita como produto e a escrita como processo. Insere o texto numa cadeia de produção, oferecendo a promessa de um leitor para o texto produzido (uma das características mais importantes do texto livre está, aliás, na distinção que promove entre a escrita com processo 71

e a escrita como produto).

Então, motivado pela imprensa e por todos os instrumentos que permitem a circulação do texto, a escrita constitui apenas a primeira etapa de um processo que leva à sua libertação. Um texto que se quer livre conquista a sua liberdade quando, libertando-se do autor, encontra condições para existir na atenção dos leitores que o acolhem. Sem a expectativa de um leitor o texto nasce para não viver; é a negação do sentido procu71

E a esta distinção não é indiferente as diversas funções da escrita: só faz sentido a escrita como produto num texto que encontre um consumidor (leitor) no fim da cadeia de produção. Mas nem toda a escrita exige este estatuto. O registo de uma memória (um lembrete), os apontamentos que faço para organizar uma ideia, não trazem propriamente a promessa de um leitor. O texto que o aluno escreve num exercício de escrita tem no professor um leitor, mas não é este leitor que procura quem escreve um texto! “(…) ao escrever um texto admite-se que o escritor trabalho no sentido social do termo, isto é, que produz; pelo contrário, a criança quando escreve não produz, aprende (…)” (CLANCHÉ, Pierre, 1977).

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rado pela escrita. Então, é neste carácter funcional e comunicacional, assente numa escrita que recusa entrar num jogo de faz de conta, que o texto livre encontra toda a sua força. E Freinet, ao introduzir a imprensa na aula, promove um conjunto de instrumentos de comunicação (correspondência, jornal escolar) que respondem a esta vocação da escrita. Pese embora a resistência à renovação autêntica que, de acordo com Sérgio Niza72, tem caracterizado a atitude da escola, “infantilizando e desvitalizando os meios técnicos de que se apropria” e que Freinet, “com a confiança desmedida no valor educativo das técnicas”, não tinha condições de antever, não deixa de ser verdade, como refere Liliane Maury,73 que a imprensa entra escola adentro e os efeitos que arrasta explodem fora dela. A reprodução ilimitada que a imprensa permite retira o texto de um espaço social restrito que limita a sua capacidade de afirmação: não é mais (apenas) a composição escrita para professor corrigir;74 o texto pode ser escrito para uma multidão: 75 “Não é mais a mão do aluno que produz um texto por intermédio de uma caneta; mas o seu texto, já escrito, sofre uma transformação por intermédio da imprensa. (…) Pelo processo de impressão o texto muda de estatuto: vem para ficar reprodutível e definitivo”.76 72

1991: pp. 22-25

73

1994

74

“Escrita pela escrita ou escrita para ninguém que, na escola tradicional, esvaziam o carácter interlocutivo de escrever >COLELLO, 2007@. 75

Um produto para ser consumido (lido) pelo leitor que procura.

76

SCHNEUWLY, Bernard, 1994: “A impressão é materializada num instrumento e num processo à parte (da escrita à mão) que dá o produto final definitivo e infinitamente reprodutível”.

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Um texto com «estatuto» (livre), eis o que quero produzir com o texto que escrevo: um texto definitivo que, reproduzido, possa viver na atenção dos leitores que procuro. «Definitivo» e «reprodutível» duas palavras-chave nesta visão do texto (como produto) que, principalmente a partir de Freinet, a escola pode adotar. Entretanto, os avanços das novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) modificaram radicalmente a nossa relação com a produção do texto impresso e, ao desatualizarem a imprensa Freinet, transformaram (ou impossibilitaram) muitas das experiências que esta permitia viver. Desde logo porque o computador impõe outro modo de fabricação do texto. O aluno tipógrafo que, com a ajuda de um espelho, ordenava os caracteres nos componedores, que constituíam as linhas do texto, não é mais possível: os caracteres passaram a ter uma existência virtual, só manipuláveis com a ajuda de um teclado e um monitor; e aqui, a aproximação aos processos de produção próprios da imprensa profissional de hoje é evidente (contrariamente às tecnologias do passado mais distantes da escola): já é possível integrar, instantaneamente, o texto trabalhado no programa de edição e decidir em que parte da página vai ficar, como em qualquer jornal. Os instrumentos de comunicação, postos por Freinet ao serviço da divulgação do texto, são basicamente os mesmos: o jornal (que pode contemplar uma edição eletrónica) e a correspondência (tradicional e eletrónica). A informática, apenas, atualizou ou colocou mais meios de produção, permitindo respostas mais rápidas às solicitações do texto.

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2.4. O TRABALHO DE TEXTO

Encontrar o texto definitivo é uma demanda só ao alcance de quem vê o texto como um lugar de diálogo entre “a escrita do dizer” (funcional, reprodutiva…) e a “escrita do transformar” (crítica (re)criativa…).77 É no delinear deste diálogo entre estas duas visões de escrita que se manifesta o salto qualitativo pedido pelo texto que procura merecer o estatuto de “texto definitivo” e que só (?) a imprensa lhe confere.78 Mas nem todo o texto procura merecer tal distinção: apenas aquele que visa um destinatário geral, identificado/percebido pelo seu autor mas dele distanciado, requer este estatuto. A presença deste destinatário tem fortes implicações no modo como invisto na escrita que escrevo. “Isto porque, ao longo do processo, de escrever, a interlocução real ou sugestionada com o outro fará o autor reflectir sobre o seu texto sob diversas óticas 77

“Escrita do dizer” e “escrita do transformar” são termos de Colello (2007)

78

“ A escrita à mão permite a reelaboração relativamente fácil, novos arranjos, correção contínua: o texto que resulta é, ainda que durável (…), não definitivo, sujeito a revisões, a melhorias. A escrita à mão constitui a escrita como memória; e se não tiver outras fases, claramente distintas, constitui ao mesmo tempo escrita como produto. Com a introdução da imprensa (…), o processo de produção como produto e processo de produção do produto são separados” >SCHNEUWLY, 1994@

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ou possibilidades de dizer”,79 convocando, no decurso deste processo, aquele diálogo que a «escrita do dizer» realiza com a “escrita do transformar”.80 Quer dizer, e de acordo com Georges Steiner, “O texto escrito implica, entre o autor e o respetivo leitor, a promessa de sentido”. 81 Ora, a qualidade da nossa relação com a escrita resulta do nível em que colocamos esta promessa. E o texto livre, sendo “sempre escrito para os outros (…), para todas as pessoas participantes de uma forma ou de outra na vida da classe”,82 facilita a materialização de tal promessa: a situação comunicativa geradora de sentido está sempre presente, fabricando laços entre a vida que se vive na escola e a experiência social exterior (as tais circunstâncias práticas da vida, que caracterizam a educação informal), definindo um contexto no qual produzir um texto tem um sentido preciso para os alunos. A criança, mais do que escrever para si escreve principalmente para se ligar aos outros, “já não escreve apenas o que lhe interessa a ela: ela escreve aquilo que nos seus pensamentos, nas suas observações, nos seus atos é suscetível de interessar os seus camaradas e vir a interessar os seus correspondentes”,83 implicando-se, na construção do sentido que deseja partilhar. “Analisa então os seus escritos para conseguir uma 79

COLELLO, 2007

80

“O outro é a medida; é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção dos sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição necessária para que o texto exista” >Geraldi, 1993, citado por Colello, 2007@ 81

STEINER, 2007

82

SCHNEUWLY, 1994

83

FREINET, 1974

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técnica de expressão perfeita”.84 Quer dizer, a língua como objeto que preciso aprender a recriar é a perspetiva que a escrita, mais cedo ou mais tarde (de preferência mais cedo), acrescenta à necessidade de sentido que vincula a atividade linguística. Mas esta é uma perspetiva que uma criança muito dificilmente consegue adotar sozinha. Nem todas são capazes de convocar o diálogo entre os diferentes tipos de escrita, que corresponde à expressão dos sentidos prometidos. 2.4.1. DO CONTROLO EXTERNO ÀQUELE OUTRO PURAMENTE INTERNO DA ACTIVIDADE LINGUÍSTICA

FIGURA 1

Como refere Schneuwly, enquanto que na fala é a situação exterior, a comunicação em direto que se estabelece com o outro que, funcionando em cadeia, dá sentido à atividade linguística – pergunta/resposta, dúvida/explicação; a necessidade de qualquer coisa e a resposta a essa necessidade chamam-se 84

FREINET, 1975 – “é o que fazemos de uma forma metódica com os alunos”, continuou Freinet.

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mutuamente (FIGURA 1) – na escrita o contexto precisa de ser representado interiormente, sem um «outro físico» que interpela e ajuda a construir o discurso (FIGURA 2). E aqui, viver a passagem daquele controlo externo àquele outro puramente FIGURA 2 interno da atividade linguística, como condição necessária à aquisição/desenvolvimento da escrita, colhe todo o sentido.85 Ora, o trabalho de texto, que o texto livre solicita, desenvolve este movimento: através das interpelações que o texto convoca, na procura dos sentidos prometidos, questionam-se as falas que a escrita permite ver. Em fases iniciais, é fundamental a presença do leitor para que o autor perceba que a escrita mexe na fala, que não é apenas discurso falado feito de um modo que pode ver, ainda que, num primeiro momento, comece por ser o registo daquilo que diz. Então, com o movimento fala–escrita–leitura–reescrita em que, pela interpelação do leitor, se coloca o texto, o «escritor» apren85

COLELLO, Sílvia (2007) refere que a aprendizagem da língua situa-se num campo interindividual. Na sua análise incorpora uma conceção mais alargada de conhecimento sustentada nos princípios de Vigotsky, sintetizando-a com a citação que faz de Smolka & Góes: “ (…) o processo de conhecimento é considerado como produção simbólica e material que tem lugar na dinâmica interativa. Tal movimento interativo não está circunscrito apenas a uma relação direta sujeito-objeto, mas implica necessariamente uma relação sujeito-sujeitoobjeto”.

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diz dá-se conta de que a escrita, para ser escrita, precisa de ser discurso pensado depois de falado. E aprende a escrever, aprendendo a pensar um discurso assim.86 Um autor competente encontra argumentos que o libertam da presença do leitor real (o outro físico); quer dizer, dando conta das distinções entre fala e escrita, desenvolve o seu discurso ajudado por um diálogo interior com o leitor que lhe lê o texto (projeta-se no leitor que deseja para o seu texto).

* A primeira regra de escrita é escrever, não é pensar: 87 – Não penses, escreve! – dizia William Forrester ao jovem Jamal – Primeiro escreves com o coração, depois voltas a escrever com a cabeça.88 Escrevemos com o coração aquela emoção do momento. Mas depois precisamos ter a certeza de que a experiência vivida mantém todo o sentido na leitura que outros farão do nosso texto. Então vemos (lemos como um qualquer «leitor») o que escrevemos com a razão. Por isso, na instituição do texto livre de 86

Para Marcos Richter (2003) “competência comunicativa é, antes de tudo, uma competência semiótica; logo, a passagem da fala para a escrita no processo de escolarização implica o acréscimo de outro código na mente, e assim, «uma segunda língua» no sentido semiótico do termo” 87

Não é esta a tradição da escola. Enquanto alunos ensinaram-nos que a primeira regra é pensar para não errar – “não pensas antes de escrever e depois dá nisto!” – Pensar é fundamental, mas prefiro dizer que é preciso pensar no texto que escrevemos antes de dá-lo como pronto, o que é bem diferente. 88

Do filme “Descobrir Forrester”

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Freinet, a escrita, a leitura e a discussão sobre/e a propósito dos textos lançam mão de “um conjunto de patamares entre o controlo exterior (ligados à conversação: leitura pública e comentários dos textos) e o controlo interno (aspetos ligados à produção escrita: 89 influência provocada pelas reações oferecidas pelo grupo/classe)”. O autor, incentivado a não se contentar com a escrita pela escrita, porque recusa escrever para ninguém, é levado a distanciar-se do seu texto para, estimulado pelas interpelações do grupo, procurar com ele a frase perfeita que traduz o pensamento que pretende transmitir (FIGURA 3).

FIGURA 3

Neste sentido, o texto livre assume a escrita, também, como um trabalho/jogo de palavras: se, por um lado, é no que 89

Pierre Clanché, citado por SCHNEUWLY, 1994

69


temos para contar que o texto encontra sentido, por outro, é no processo de escrita, neste jogo/encontro de palavras e frases que o texto provoca os sentidos, nos faz sentir e gostar (ou não) do que ouvimos quando lemos.90 A escrita tem esta possibilidade, que a fala tem menos, de jogar com as palavras: na fala a palavra dissolve-se no ar, mas na escrita ela fica para ser lida. E nesta leitura reforça-se o trabalho de texto feito do encontro de ideias com as palavras que as revelam. A leitura faz ecoar o som das palavras que faz frente ao sentido, diz Julien Craeq:91 “Não se é escritor sem o sentimento de que o som na palavra vem carregar o sentido”. Então não trabalhamos só as ideias; trabalhamos as ideias com as palavras que acrescentam ao texto a sonoridade que o sentido do texto precisa (FIGURA 4).

FIGURA 4

A prática do texto livre, ao valorizar a perspetiva comunicacional da escrita, faz do texto o objeto da análise. Não sendo a avaliação, expressa 90

De certa forma, escrever é procurar uma palavra ou frase com a caneta e deixarmo-nos ir num texto pensado para ser escrito. Mas não é qualquer palavra que se deixa pensar deste modo. Umas dão-se a estes convites e outras (tantas vezes) resistem a dar a cara. 91

Citado por JEAN, Georges 1999.

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na nota que o professor tem para dar, o motivo do encontro, o autor tem a possibilidade de, ao descentrar-se do seu texto, verse como observador crítico da escrita que produz, ajudado pela interpelação que o grupo oferece. 2.4.2. A RELAÇÃO COM A GRAMÁTICA Na escola, é bom que os autores se encontrem, a propósito dos seus textos, com aqueles que são os seus primeiros leitores, que desejamos os mais solidários, mas também os mais críticos. No decorrer destes encontros, a atenção do professor está presente com a informação que esclarece, que ajuda a compreender porque é que uma frase soa melhor com aquela palavra naquele lugar, ou soa estranhamente porque o sujeito não concorda com o predicado, ou porque etc., etc., etc.,… convocando a gramática que ajuda a libertar a escrita num texto que cativa leitores.92 José Cardoso Pires, ao referir-se à condição essencial para se ser escritor afirmava: “(…) em primeiro lugar precisamos conhecer a fundo a gramática da língua portuguesa, em segundo lugar esquecê-la”. E Paulo Freire, por seu lado, em conversa com Ira Shor93 dizia que “(…) em certo sentido você tem que lutar contra a gramática para ter liberdade para escrever. (…) a beleza e a criatividade não podem viver escravas da devoção à correção 92

“Não é que eu valorize o discurso correto, claro e elegante – seja ele oral ou escrito –, mas acredito que a prática de tal discurso é a única maneira de assegurar que dizemos as coisas com correção, delicadeza e eficiência a nós mesmos” >BRUNER, 1999@.

93

1987

71


gramatical”. Duas formas aparentemente semelhantes, que veem a gramática como principal instrumento de condicionamento social da linguagem, mas distintas no modo escolhido para interagir com ela: esquecimento e luta. Paulo Freire soa-me mais simpático. Prefiro a escrita como luta: luta entre modos de dizer e de escrever, com o trabalho de texto como palco; luta pela conquista daquela palavra ou frase que traduz o que temos para contar e que a fala espontânea, só por si, não chega para revelar. E no decurso desta luta tenho a oportunidade de aprender gramática. É o encontro com a gramática que Freinet chama de «natural» ou com a gramática que Álvaro Gomes94 identifica como «gramática da vida»: a gramática que aponta a regra e ajuda a compreender, mas recusa ser «lei»; a gramática que não quer fazer de quem transgride fora da lei…, porque, como refere Hymes,95 a propósito da noção de «competência comunicativa», a escola precisa de saber ensinar quando utilizar ou quando não utilizar as regras que a gramática impõe. “O que aprendi sobre a língua não aprendi nos compêndios de gramática – diz Rubem Alves – desrespeito sabendo que estou a desrespeitar o que dizem os cientistas da língua”.96 Mas desrespeitar a gramática obriga a saber como. O desrespeito não se baseia na ignorância: só desrespeitamos quem ou o que que94

2006

95

Citado por Madeira, 2005

96

“O gramático está para a linguagem da mesma forma que a dona de casa está para a casa arrumada (…). Sou formado em desencontros. A sensatez me absurda. Os delírios verbais me terapeutam” (2002).

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remos. O desrespeito da gramática precisa nascer de uma intenção pois, quando tal, transforma-se em desrespeito da língua. Desrespeito feito de ignorância é um sem querer. Em certo sentido, o que faço agora é um desrespeito: um sem querer não existe. «Sem querer» não é nome, não leva determinante artigo atrás.

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2.5. CONCLUSÃO TEXTO LIVRE, UM PRODUTO DA ESCOLA

O Texto Livre é um produto da escola, refere Bernard Schneuwly.97 Nasceu na escola, colhendo deste facto a vantagem de não ser considerado um capricho enganador. Trata-se de um instrumento que não poderia ser criado por quem não tivesse tomado e vivido “a escola a sério como lugar social de aprendizagem coletiva e que utiliza as particularidades da escrita para melhor fazer funcionar este lugar, dando aos alunos a possibilidade de se exprimirem livremente”. É neste contexto, continua Schneuwly, que a escrita escapa ao estatuto de sagrado, de qualquer coisa inacessível, antes apresentando-se, de imediato, como uma ferramenta que acolhe inúmeras funções na vida da classe. Se é verdade que não é suficiente escrever livremente para aprender a escrever, e não ser legítimo estabelecer uma relação de causa/efeito entre escrita livre e competência escrita, no entanto, quer-me parecer que o texto livre, com tudo o que ele envolve, ajuda a resolver um dos problemas maiores que o ensino da escrita levanta: o da motivação. Ao situá-lo no interior dos processos de solicitação e produção do texto, não deixa que 97

SCHNEWLY, Bernard 1994

74


apareça como personagem de um engano: afinal o que anuncio é o que não tenho para dar. Com a liberdade que o define, e atuando num lugar onde a escrita é obrigatória, o texto livre oferece a liberdade que a escrita precisa. Sendo a escrita obrigatória e não escrever na escola não ser opção, marca um espaço onde a escrita é livre, ao permitir outras realizações neste espaço; o espaço de “liberdade psicológica materialmente instituído”, referido por Pierre Clanché.98

98

CLANCHÉ, Pierre, 1977: p.45

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APRENDER A ESCREVER PARA APRENDER A LER: AS PRÁTICAS DE ESCRITA TAL COMO AS VIVEMOS Aristides Custódio, Cristina Miranda, Daniel Lousada, Dulce Barreiros, Fernanda Santos, Mónica Teixeira e Paula Martins

“Através desta técnica natural de trabalho, a própria criança sente muito cedo a necessidade de escrever e aparece o primeiro texto livre (…). Esta escrita é, naturalmente, de um género muito especial e temos de nos treinar a lê-la”. Freinet

99

In “O Texto Livre”, 1976: pp.29-30

77

99


78


3.1. INTRODUÇÃO

“Quando se realizaram, pela primeira vez, as provas de aferição, fui destacado para vigiar a sua aplicação a um grupo de alunos do 4º ano de escolaridade. Chegou o dia da prova de português e, com ele, o teste de composição escrita: uma hora para escrever um texto sobre um tema que não recordo agora (mas pouco importa para o caso que trago aqui). Era a primeira vez que aqueles miúdos eram “sujeitos a estas vidas” e, à cautela, para garantir que todos ensaiavam a sua escrita num papel de rascunho, sugeri que, antes de passarem o texto a limpo para a folha de prova, perguntassem primeiro se o podiam fazer. Nem quinze minutos são passados e levantam-se três ou quatro mãos (não sei precisar). Desloco-me a um dos miúdos para responder ao que imaginei ser uma dúvida. – Professor – diz o miúdo em voz baixa – já fiz! Vejo uma folha bem preenchida, sem rasuras que saltassem à vista e, sem ligar ao conteúdo, digo-lhe: – Vou contar-te um segredo: eu não conseguia escrever esta composição tão depressa como tu! Se fosse eu, antes de passar a limpo, lia com muita atenção, em voz muito baixinha, só para mim, para ver se o que tinha escrito esta100 va bonito como eu queria”.

100

LOUSADA, Daniel e outros (s/d). In Tempo da Escola, Neste e Noutros Tempos. Texto Fotocopiado.

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O «escritor» competente é aquele que consegue fazer-se acompanhar de um leitor que lhe aprecia o texto e o interpela no decurso da sua produção. Um leitor apenas virtual: o “Escutador de Sophia”, para utilizar um conceito desenvolvido no 1º volume (Escultor de Palavras), e que não é mais do que o escritor projetado num leitor que escuta o seu texto.101 Sem este leitor virtual a escrita é apenas a uma espécie de transcrição da fala; não é fala traduzida numa escrita, portanto; não é um discurso que se escreve porque não se diz, na perspetiva de Paul Ricoeur, porque não é dito para ser escrito (com a forma que só a escrita pede).102 Os miúdos que despacharam tão prontamente a sua escrita não tinham consigo o leitor virtual que interpela e interroga o texto; não souberam chamá-lo para o seu lado, talvez por que ninguém lhes ensinou como fazê-lo. Quem os «ensinou» a escrever, ensinou-os a transcrever as suas falas, corrigiu certamente os seus textos, mas não os ensinou a escrever de facto, porque não é de transcrições e correções apenas que se faz o ensino da escrita. “Correções por atacado, se não vierem inscritas num diálogo do leitor com o autor do texto, servem para avaliar mas ajudam muito pouco quem escreve. É no diálogo com um leitor real (físico, portanto) que qualquer escrevente aprendiz constrói o leitor virtual que o acompanhará, vida fora, na sua escrita: o 101

“Quem não é «escultor de palavras» atento ao escutador que o acompanha, não escreve de facto: apenas consegue fotografar as palavras da sua fala” >LOUSADA, Daniel (coord.), 2012@. 102

“A fixação da fala pela escrita surge no mesmo lugar da fala, quer dizer, no lugar onde a fala poderia ter nascido”>Paul Ricoeur, citado por LOUSADA, Daniel (coord.), 2012@.

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leitor é virtual porque já foi real: Não existe fora da realidade que o construiu”.103 O que procuramos desenvolver nos nossos alunos é o hábito de olharem os seus textos como leitores; a capacidade de escutarem a sua escrita quando escrevem (e que é desenvolvida, também, na leitura de «textos de autor», como procuramos defender no 1º volume). E quanto mais escreverem naquele diálogo com o

leitor real, melhores condições terão para desenvolverem a sua capacidade de escuta, de serem capazes de chamar para o seu lado o leitor virtual que os faz autónomos na sua escrita. A instituição do Texto Livre assenta no reconhecimento de que quem escreve procura um leitor para a sua escrita e não necessariamente um corretor. Quer dizer que ensinar a escrever não é mandar escrever e corrigir o texto depois de pronto, deixando um aluno com a responsabilidade de continuar o trabalho. Mas que trabalho, se o texto chegou pronto à mão do professor que, ao corrigi-lo, esgotou a sua função?! Onde está o produto de escrita (fruto do trabalho do aluno) para ser apreciado?

* Na escola, uma criança não produz, aprende, refere Pierre Clanché, quer dizer, quando escreve a sua escrita não cumpre a sua função num produto: um texto pronto para viver na leitura dos leitores que o acolhem.

103

LOUSADA, Daniel e outros (s/d)

81


E aqui entra a distinção da escrita como processo, da escrita como produto: “o texto livre é apenas parte de um conjunto de práticas”,104 a primeira etapa na produção do texto, aquela que nos mobiliza para a escrita. Atrás desta outras virão a seguir. E o texto é, então, “acolhido e depois transformado pelo grupo, que de um produto bruto faz um produto elaborado e consumível (corrigido, passado a limpo, impresso, ilustrado, etc.).105 104

CLANCHÉ, Pierre (1977).

105

CLANCHÉ, Pierre (1977) [o destaque a negrito é nosso]: “ao escrever um texto admite-se que um escritor trabalha, no sentido social do termo, isto é, que produz; pelo contrário, a criança quando escreve não produz, «aprende»; não pode ser assimilado a um trabalhador social. Freinet foi o primeiro a denunciar esta ilusão” (p.48). Numa outra linha de análise, Roland Barthes [citado por Pierre Clanché] distingue o escritor da pessoa que apenas escreve: o escritor do escrevente. “O escritor é aquele que escreve, mas para quem a escrita constitui um problema”. O problema não é escrever para alguém, mas o trabalho que realiza com as palavras; não escreve necessariamente para alguém. Por isso defende que, para um escritor, o verbo escrever é intransitivo; e nesta intransitividade o escritor não faz depender a sua escrita de um leitor: o leitor virá, se vier. O escrevente é aquele que tem na escrita um meio para contar algo. Neste sentido, a criança é, à primeira vista, um escrevente, já que escreve “aquilo que nos seus pensamentos, nas suas observações, nos seus atos é suscetível de interessar os seus camaradas e vir a interessar os seus correspondentes” [Freinet (1974), citado por Daniel Lousada, p. 58 deste livro]. Quer dizer, diferentemente do escritor, para ela, escrever é um verbo transitivo: “escreve-para-x”. “O escritor escreve-pelo-prazer (o que não quer dizer que o faça com facilidade)”. Mas ele já tem do seu lado os argumentos que fazem deste trabalho um prazer; não precisa de motivação extra, de uma audiência: o prazer da escrita chega-lhe no próprio ato de escrever! Mas a criança que aprende precisa desta audiência, e de com ela fazer o seu texto nascer num produto de escrita. Como referimos no 1º volume [escultor de palavras, p. 33], a nossa função não é formar escritores, mas escreventes: pessoas que tratam a escrita com competência. Por isso procuramos que os nossos alunos tenham a possibilidade de

82


O professor ensina a escrever quando se integra com os seus alunos neste processo de produção. Quer dizer, no texto livre, o professor, mais do que participar na correção do texto, inscreve-se com a turma no processo da sua produção, a que chamamos «trabalho de texto», porque é com o seu trabalho que uma criança, ao escrever, aprende a dominar a escrita. É este «trabalho de texto» que, no «texto livre», dá lugar às descobertas sobre a escrita e que só o trabalho de “entrar” no texto proporciona. Então, o professor insere-se com os seus alunos neste trabalho: interroga, faz perguntas, lança desafios, mas não parte à descoberta, sobrepondo-se deliberadamente aos seus alunos. Mas, no entanto, estes sabem que o professor tem uma resposta, que só oferece em pequenas doses quando o impasse se instala: uma espécie de jogo onde o professor é aquele que sabe dar muito, sem que o muito se confunda com o tudo que há para dar (deixa para eles o prazer de descobrir).106 Mas nem todos os textos são objeto deste «trabalho de texto». Nem todo o texto procura merecer esta distinção: apenas escreverem livremente para alguém que lhes aprecia a sua escrita, os interpela e critica os seus textos. Se serão ou não escritores di-lo-á o caminho que vierem a caminhar. Parafraseando Pierre Clanché, a intransitividade da sua escrita, hoje, será talvez um instrumento para a construção de uma intransitividade fundamental, no futuro. 106

“«Em pedagogia, ao contrário de muitas outras áreas, é preciso sempre dizer muito e não o bastante (…)». É necessário confrontar o estudante com «uma situação problema acessível e ao mesmo tempo difícil, que ele possa dominar aos poucos, sem explorá-la de uma só vez nem dispor da solução antecipadamente»”[Philippe Meirieu, citado por LOUSADA, Daniel. Ensinar e aprender: um problema de organização que o modelo do M.E.M. procura resolver. In “Escola Moderna”, nº 32-5ª série. Lisboa: Movimento da Escola Moderna, 2008: pp. 5053]

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aqueles que os alunos escolhem, do conjunto de textos que escreveram, serão sujeitos a este processo, integrados num calendário previamente negociado e controlado pela turma, através do «registo de textos»,107 fundamental para garantir que todas as crianças possam ter textos integrados neste processo de produção e poderem aprender com ele. Os trabalhos que apresentamos a seguir inscrevem-se num processo deste tipo, a partir das fases mais elementares de aprendizagem da escrita (e da leitura): daquela em que a escrita é um conjunto de sinais gráficos que registam o nome das pessoas (e das coisas) em tabelas de dupla entrada e que organizam a atividade na aula, ao objeto que é possível usar para contar a novidade/noticia, a história ou a experiência pessoal que se deseja partilhar; textos com uma função social precisa, escritos na escola ou noutro espaço qualquer, que a escola, pela instituição do texto livre, convoca.

107

Uma tabela de dupla entrada: a coluna vertical com os nomes dos alunos e a linha horizontal com o tipo de textos produzidos (ver anexo 3: Registos).

84


3.2. “QUANDO EU MORAVA NO JARDIM…”

O segredo de um ensino eficaz da língua começa na “atenção que damos aos saberes que as nossas crianças trazem para a aula, sobretudo de leitura, que aprenderam naturalmente no contacto com os nomes das marcas dos produtos que consomem, dos centros comerciais que frequentam, da série de tv a que assis108 tem, etc., etc.”.

108

Página 11: na “Apresentação” deste livro.

85


“A criança é capaz de aprender a palavra e a frase antes de distinguir os seus elementos constitutivos, mas com a condição de esta frase estar intimamente inserida no contexto de vida dos indivíduos. (FREINET, C. 1977)

Falar de coisas que sei, vejo, vivo, sinto… Consultar diferentes documentos: registos do tempo; registos de presenças; registos do leite;

“O acesso à linguagem escrita começa quando o adulto decide. A ilusão pedagógica pode manter-se porque as crianças aprendem tanto a proceder como se nada soubessem (embora saibam), quanto a mostrar, diligentemente, que são capazes de aprender através do método escolhido”(EMÍLIA FERREIRO, 1991).

Do Jardim para a Escola queríamos que começasse por ser apenas uma mudança de espaço! O Jardim-de-Infância e a Escola funcionam no mesmo edifício, partilhando as mesmas estruturas de apoio: cantina, biblioteca, espaços exteriores… Durante o ano desenvolveram-se atividades em conjunto, criaram-se espaços para a comunicação, visitámo-nos regularmente, cruzamo-nos inúmeras vezes naquilo que fazíamos. Não éramos ilustres desconhecidos. O primeiro dia serviu, então, para relembrarmos encontros passados, coisas que fizemos em conjunto. Serviu para pormos as nossas memórias em dia. E serviu para explorar um novo espaço: a nossa sala. Nas paredes tínhamos: O programa de Língua Portuguesa do 1º Ano 86


-

O registo do tempo O registo de presenças e faltas O registo de quem somos

O Pedro, apontando o registo de tempo, diz: “quando eu morava no jardim não era assim…” – Então decidimos pedir à educadora um registo de tempo para comparar mais tarde. Entretanto, a análise do Registo de Quem Somos serviu para continuarmos a falar de nós. Ficamos a saber que todos sabem o seu nome próprio, mas nem todos sabem o seu nome completo e alguns (muito poucos) não sabem o nome do pai e da mãe. Ficamos a saber que quase todos reconhecem o seu nome escrito em maiúsculas no Registo de Quem Somos. Ficamos a saber que quase todos reconhecem as palavras PAI e MÃE FIGURA 5

Alguns assumiram, então, o seu primeiro compromisso:

Saber o seu nome completo, o nome do pai e o nome da mãe;

87


“O nome próprio tem algumas características definidas. Por exemplo, é fixo: sempre igual. Uma criança pode adotar um procedimento silábico para escrever qualquer palavra… menos seu nome que se escreve sempre igual, completo. O mesmo acontece ao escrever o nome de outros: ninguém aceitará que seu nome seja escrito por alguém de forma fragmentária ou desordenada, ou incompleta. É um texto com autêntico significado para a criança: designa-a, marca seu território e propriedade, identifica-a. É a sua assinatura. É extraordinariamente motivador” (CURTO ET ALL, 2000).

Treino de reconhecimento global de palavras; Colecionar as palavras descobertas ou reconhecidas; Descobrir expressões ou palavras iguais Escrever legivelmente, gerindo corretamente o espaço da página; Escrita de palavras e textos memorizados e por cópia;

Reconhecer o seu nome escrito nos registos, nas listas de nomes, na identificação dos seus cadernos; Reconhecer a escrita das palavras pai e mãe.

Lentamente o Registo de Quem Somos foi sendo preenchido com as informações disponíveis: o nome do pai e da mãe, o dia do aniversário (data de nascimento), a cor dos olhos, a cor do cabelo, o animal preferido, o brinquedo preferido, o melhor amigo… Utilizou-se, propositadamente, a letra impressa, combinando letras minúsculas com maiúsculas. Esperava-se, assim, a confrontação com o tipo de letra utilizada na “pré”. Não tardou que uma das crianças dissesse que no jardim o seu nome se escrevia de outra forma. Como escrever então? CADA UM COMPROMETE-SE A: ESCREVER O QUE SABE, ESCREVER COMO SABE. NINGUÉM DIZ QUE NÃO SABE!

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Ensaiou-se, então, o primeiro plano individual de trabalho (PIT), através de um registo coletivo, apenas com atividades de escrita, para realizar no tempo de trabalho autónomo, marcado na nossa agenda semanal.109

FIGURA 6 Escrever como sei: frases, palavras, novidades Escrever muito bem: o meu nome outros nomes Copiar: frases da sala frases do livro Ler

Desenhar

Este plano individual de trabalho proponha as seguintes atividades de escrita:

Esta atividade propõe o alargamento do vocabulário visual básico, inserindo-se na escrita sem ajuda. Permite explorar intenções comunicativas, a mobilização dos conhecimentos sobre escrita no levantamento de hipóteses. Constitui o material de apoio à aprendizagem da escrita. Os nossos nomes só podem ser escritos de uma forma. Não pode haver lugar a confusões São os pequenos textos que já sabemos ler. Tal como no “escrever muito bem”, fazemos um esforço para não nos enganarmos Tentamos que, no PIT, o ler não seja independente da escrita. Tentaremos escrever de memória ou por cópia o que achamos que já sabemos ler. Se ainda não sabemos escrever podemos desenhar o que queremos contar, para depois, com ajuda, aprender a escrever. FIGURA 7

109

“A criança coloca-se numa situação de autor e não de consumidor, confrontando-se com uma diversidade de situações que, devido aos processos Auto avaliativos, lhe instaura maiores índices de autoestima” (NUNES, A., 2002: p.98)

89


3.2.1. JÁ SEPARAMOS O QUE É ESCRITA DO QUE NÃO É “As crianças (…) iniciam a sua aprendizagem do sistema de escrita nos mais variados contextos, porque a escrita faz parte da paisagem urbana. As crianças urbanas de 5 anos geralmente já sabem distinguir – dentro do complexo conjunto de representações gráficas presentes em seu meio – o que é desenho e o que é ‘outra coisa’. Chamar de ‘letras’ ou ‘números’ esse conjunto de formas que têm em comum o facto de não serem desenho não é crucial nessa idade. Mais importante é saber que essas marcas são para uma atividade específica, que é ler, e que elas resultam de outra atividade também específica, que é escrever”. FERREIRO, E. 1991)

Contactar com diversos registos de escrita; Localizar palavras conhecidas em jornais, rótulos, folhetos;

Estabelecer relações de

comparação por semelhança ou contraste em textos próximos

Entretanto recolhemos material escrito que já sabemos ler, ou que temos curiosidade em saber como se lê. A análise destes materiais permitiu distinguir sinais convencionais de escrita de outros sinais, identificando o que é escrita e o que não é escrita. FIGURA 8

90


3.3. JÁ SEI LER A NOVIDADE DA JOANA AO CONTRÁRIO

“A escrita está presente no modo como percebemos a nossa fala depois de escrita por um outro que a traduziu connosco, precisamente para ser escrita”.110

110

Vol.1 – Escultor de Palavras, pp. 117

91


“Deixamos de lado a linguagem oral. Não porque seja de menor importância, mas porque a escrita, primeiro, e a leitura depois, nos oferecem um campo suficientemente extenso e delimitado de experimentação. (…) não se trata de que a linguagem oral esteja ausente (…). Ao ler e escrever, falamos sempre sobre o lido e o escrito ou sobre o que se vai escrever. (…) acreditamos que é muito importante estudar as relações entre linguagem oral e linguagem escrita. Não se passa diretamente de uma para a outra, pois ambas são duas variedades distintas da mesma linguagem. Oralizar o escrito é um conteúdo fundamental entre os três e os oito anos. Por outro lado, a linguagem oral deve ser elaborada para ser escrita e esta é uma atividade que pode ser abordada desde muito cedo… e nunca deve ser abandonada”. (CURTO et all. 2000)

Reconhecer que numa frase a posição de uma palavra conta Relacionar produções orais com a sua forma escrita

Hoje tivemos o texto da Joana para trabalhar!

“Eu tenho uma pomba na minha avó” Depois de escrito numa tira de papel, a Joana leu o seu texto para a turma. O Jorge, um dos miúdos mais participativos, também quis ler. Está bem. Mas vais tentar ler do fim para o princípio ͸ Assim não consigo ͸ respondeu depois de hesitar ͸ Lê como sabes, então. 92


Logo de seguida, em jeito de brincadeira, vem o reparo da professora: ͸ Como é Jorge? Também tens uma pomba na tua avó? E o desafio foi lançado à turma. Se somos nós que vamos contar a novidade da Joana como vamos escrever?

FIGURA 9

Eu

Joana

tenho

tem

uma

uma

pomba na

pomba na

minha

sua

avó

avó

FIGURA 10

Partimos à descoberta do que é igual nas duas frases. Dispusemos então as frases na vertical para melhor as compararmos. Como vem sendo hábito, passou-se à interpelação da Joana. Trata-se de interrogar o texto, procurando junto da autora as respostas que o texto não dá. E, a cada pergunta, a Joana vai dando a sua resposta.

Agora falta, apenas, completar a notícia com as novas informações. Começamos por tentar integrar a informação da primeira resposta: ͸ Para juntar estas duas frases temos que apagar algumas palavras. Quais são? (Figura 11)

93


“(…) Maria e seus colegas aprenderam a interagir com seus textos, fazendo perguntas, porque seus professores e colegas realizaram conferências sobre o progresso do seu trabalho. Por esta razão, a abordagem ao processo de escrita também é chamado de abordagem à conferência para a escrita. As conferências entre professor e estudantes são o coração do ensino da escrita; é através destas conferências que os alunos aprendem a interagir com seus próprios escritos.” (CALKINS, Lucy 1989)

Transformar duas frases numa só; Encontrar diferentes formas de escrever uma frase ou conjunto de frases, sem lhe mudar o sentido.

As palavras “no” e “galinheiro” foram a primeira hipótese. Ao ler a frase assim composta vimos que não dava. Então a Beatriz suFIGURA 11 geriu que apagássemos as palavras “A”, “pomba” e “está”, ficando assim: A Joana tem uma pomba na sua avó no galinheiro. Procuramos outras combinações: A Joana tem uma pomba no galinheiro na sua avó. A professora pediu uma palavra para substituir o “na” porque não gostava dele naquele sítio. E a frase ficou assim: A Joana tem uma pomba no galinheiro da sua avó.

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Seguindo o mesmo processo, uma a uma, se vão integrando as restantes respostas. A última resposta teve um processo um pouco mais complicado: à semelhança da novidade A Joana tem uma pomba magrinha e bonita, original precisou de no galinheiro da sua avó, que o amigo do ser, primeiro, reescri- avô lhe deu. FIGURA 12 ta na terceira pessoa e só com a ajuda clara da professora foi integrada no texto (Figura 12).

No dia seguinte o Jorge vem ter connosco: “Professora, já sei ler a novidade da Joana ao contrário!”

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3.3.1. LER AO CONTRÁRIO Algumas crianças tendem a considerar que a lógica que estrutura o desenho é a mesma que estrutura a escrita, na convicção de que com estas duas formas de representação se contam coisas. Mas escrever não é desenhar: Enquanto o desenho representa as coisas, a escrita representa o nome das coisas. Enquanto o desenho reenvia para o universo do real, a escrita reenvia para o universo das palavras. Enquanto no desenho a leitura é livre, na escrita a leitura é obrigatória. Dizse, então, que a escrita é literal.

Descobrir elementos comuns a várias palavras Construir listas de palavras que contenham elementos conhecidos Realizar jogos de comutação de letras para formar outras palavras

A escrita obedece a princípios espaciais de organização que, no caso da nossa escrita, se orienta da esquerda para a direita e de cima para baixo. Diz-se, então, que a escrita é linear, ou seja, um tempo na fala corresponde a um espaço na escrita. (MARTINS, M 1996; SMITH, F 1989; FERREIRO, E 1989; SILVA, A. 2003)

Omitir palavras, baralhar as palavras na frase, foi uma forma muito usada para “dizer” que na escrita não é indiferente o lugar ocupado por uma frase, uma palavra ou uma letra. Em jeito de brincadeira as nossas crianças são desafiadas a apresentar textos alternativos com as “tiras” que compõem os textos trabalhados na aula. (FIGURA 13) 96


FIGURA 13

Experimentando diferentes formas de organizar as frases de um texto que conhecem, puderam verificar alterações que, na maior parte das situações, levaram à perda de sentido dos escritos assim construídos. Para algumas crianças a manipulação das frases, das palavras, das letras, numa relação quase física com as palavras, tocando-as, mudando-as de lugar, reconhecendo-as nas posições que iam tomando, foi importantíssimo para compreenderem como se organizam estes desenhos que “falam palavras”.

97


3.4. O MEU PAI ATIROU-SE AO RIO TRABALHAR A ESCRITA NO TEMPO DE TRABALHO AUTÓNOMO

Não vejo no «trabalho autónomo» o trabalho em roda livre; mas também não vejo a autonomia como a liberdade que me oferecem para trabalhar autonomamente no que não escolhi trabalhar. A autonomia traz atrás de si um alto sentido de responsabilidade, que começa na responsabilidade do professor que não deixa um aluno ao abando só porque decidiu que aquele tempo é de «trabalho autónomo» ”. 111

Daniel Lousada

111

In, “Inovação e novidade: as armadilhas das construções didáticas «inovadoras»” (texto fotocopiado).

98


No pré-escolar e nos inícios do 1º ano de escolaridade, as novidades que as crianças nos trazem são acontecimentos simples, por vezes, curiosidades apenas, mas a que os seus autores atribuem grande significado e, talvez por isso, contados quase sempre na primeira pessoa. Trata-se de uma ótima oportunidade para trabalhar, a partir das fases mais precoces da aprendizagem da escrita, a distinção discurso direto/discurso indireto ou 1ª/3ª pessoa.

Saber investir a experiência adquirida em novos projetos de escrita; Saber passar uma frase da 1ª para a 3ª pessoa.

À medida que o ano escolar avança as crianças ficam mais autónomas na sua escrita, já que o seu vocabulário visual básico vai aumentando: a escrita que se encontra um pouco por toda a sala, e as palavras de que gostam, recortadas e coladas nos seus cadernos, ou simplesmente copiadas, constituem muito do material usado pelas crianças para escreverem os pequenos textos, que apresentam para serem trabalhados com a turma toda. As palavras que não conseguem escrever, a partir das palavras que conhecem (o que acontece muitas vezes), são substituídas por um risco no local pensado para elas na frase: abrem uma lacuna para ser preenchida depois.112 Foi o que fez o Diogo no seu texto. O meu pai atirou-se ao rio

112

Aqui, inspirei-me no processo descrito por Daniel Lousada no seu artigo “A propósito da leitura e da escrita”, publicado na revista Escola Moderna, nº 3-3ª série, de Jul/Set de 1991.

99


Neste tempo, as crianças têm oportunidade de, autonomamente, mobilizar conhecimentos (ou competências?) adquiridas em «trabalhos de texto» anteriores, ou noutras atividades de escrita, de orientação mais diretiva, por exemplo, em jogos de escrita. É o caso do jogo «palavra puxa palavra», com o qual procuramos com a última palavra de uma frase (ou outra palavra selecionada, se esta não der em nada) o início da frase seguinte: uma espécie de motor de ideias O meu pai atirou-se ao rio (Figura 14).113 Atirou-se para pescar Pescar peixes Depois de escritas, aliPeixes para comer nhadas na vertical, o autor risca Comer no jantar as palavras repetidas, nas FIGURA 14 frases que foi puxando; volta a escrever o seu texto com as palavras que sobraram, e lê para verificar se faz sentido: O meu pai atirou-se ao rio para pescar peixes para comer no jantar

Concluído este processo, estranhei o “atirou-se”: as pessoas atiram-se ao rio para pescar? E na conversa que se seguiu concluímos que entrou no rio para pescar com uma rede. E reescrevemos com a alteração: O meu pai entrou no rio para pescar peixes para comer no jantar

Este texto apresenta algumas particularidades que costumo trabalhar logo a partir das fases iniciais de escrita (o caso da utilização dos conectores como “no”, “para” “de”, “da”, “em”, etc.) e como, para além disso, estava escrito na 1ª pessoa e me interes113

Ver anexo 1: “Era uma vez”

100


sava treinar, com todos os meus alunos, a passagem para a 3ª pessoa de uma frase escrita na 1ª, optei por continuar o trabalho sobre este texto com toda a turma. No dia agendado o Diogo fez, então, a sua apresentação. E lanço o primeiro desafio: o Diogo escreveu aqui “no jantar”. Acho que já conhecemos uma «palavrinha»114 que é capaz de ficar melhor! Alguém conhece?

Perante a perplexidade lanço uma pista: tem duas letras como esta (no)… e começa pela letra “a”. E diz alguém, rapidamente: ao jantar! O meu pai entrou no rio para pescar peixes para comer ao jantar Proponho então, um novo desafio: Eu acho que posso riscar uma palavra, se tirar desta «palavrinha» aqui (ao) uma letra! Vamos lá ver se alguém descobre que palavra estou a pensar cortar… O meu pai entrou no rio para pescar peixes para comer o jantar Seguiu-se a reescrita do texto na 3ª pessoa (Figura 15), e a interpelação do autor, a propósito do conteúdo do seu texto, num processo em tudo idêntico ao usado no texto da Joana. 115

O pai do Diogo entrou no rio para pescar peixes para o jantar.

114

FIGURA 15

Designação que costumo dar a estes conectores linguísticos, quando trabalho com crianças muito pequenas, com as quais não faz sentido avançar com este tipo de conhecimentos da gramática da língua. 115

“Já sei ler a novidade da Joana ao contrário”, pp. 91

101


3.5. ENSINAR E APRENDER ATRAVÉS DE UM TRABALHO DE TEXTO116

(…) defender a escrita, mesmo num processo mais alargado de expressão livre, não significa deixar quem escreve ao abandono, até porque a escrita só é realmente livre se tiver condições para se desenvolver, se tiver ouvidos (…) que saibam compreender os impasses em que, por vezes, o texto cai! 117

116

Texto reescrito a partir do artigo, com o mesmo título, de Aristides Custódio, Daniel Lousada e Fernanda Santos, publicado na revista “Escola Moderna”, nº 27-5ª Série 2006. 117

Vol.1 – Escultor de Palavras, pp. 13

102


A escrita aprende-se. Não se ensina! Aprende-se no diálogo com os outros. Eu não ouço o professor e depois vou escrever de acordo com as suas instruções, como ele me “ensinou”. O Professor não me “ensina” a escrever. Acompanha-me na minha escrita, interpela-me. O professor é um crítico. Um bom professor de escrita, gosta de escrever. Critica-me porque gosta de escrever. Não procura os meus erros. Vê no que escrevo de errado o que eu não vejo que está certo, e ajuda-me a descobri-lo.

Identificar elementos essenciais da frase. Descobrir a informação que falta num texto (aprender a fazer perguntas)

Um texto começa por ter apenas as palavras necessárias para dizer o que queremos dizer. Não tem palavras a mais! Seguindo este critério, quando nos envolvemos num trabalho de texto, começamos por verificar se é possível dizer melhor FIGURA 16 com menos palavras. Neste sentido, por vezes, corrigir um texto não é mais do que descobrir a frase certa escondida numa frase que transborda de palavras.

103


FIGURA 17

De certa forma, a escrita de um texto desenrola-se como a composição de uma peça musical. Começa por um esquema simples (uma melodia), despido de quaisquer efeitos. Mas, ou as notas estão lá todas, no sítio certo, ou a melodia sai desafinada.

FIGURA 18

O texto do Luís revela que, num primeiro momento, escrevemos ao sabor da fala, num processo que transcreve um discurso oralizado. Mas a escrita não é fala, não aceita repetições excessivas de palavras. Com a escrita a palavra não se dissolve no 104


ar, adquire uma existência quase física que não a deixa sair dali. Por isso oferece “resistência como matéria a ser trabalhada”,118 adquire uma força que influencia o caminho do texto, obriga a um pensamento mais rigoroso e criativo. E isto não se ensina, passa-se pelo entusiasmo da construção solidária de uma escrita em direto, projetando escritas alternativas num processo que assume a escrita como único instrumento de trabalho. Quer dizer, a fala espontânea não é permitida nesta fase. Desta forma, reforça-se a reflexão participada que só a exposição da escrita pela leitura é capaz de provocar. A obrigação da escrita obriga à pausa que o pensamento necessita, força o diálogo interior necessário à construção da hipótese alternativa, desenvolve a capacidade de reflexão metalinguística de que se alimenta o “escritor” competente. Retirada ou substituída uma palavra que não cabe, acrescentada outra que está a menos, voltámos ao texto todo. E verificamos, então, que podíamos retirar uma palavra mais.

FIGURA 19

Aparentemente, o texto ficou arrumado, de acordo com as intenções projetadas pelo seu autor.

118

Ives Beal, in APAP, Georges (2002)

105


Como o Luís não quis ser interpelado sobre o seu desabafo, não passámos à fase de perguntas sobre o conteúdo do texto. Dir-se-ia que, continuando a comparação com a música, não se introduziu o som de outros instrumentos, não se passou à orquestração. Houve apenas lugar a um desafio do professor: encontrar uma arrumação diferente para as frases 3, 4 e 5, juntando o conteúdo da 3 e da 5 numa só. a. Gostava que tudo ficasse como era dantes e voltássemos a ser amigos; b. Gostava que voltássemos a ser amigos e tudo ficasse como era dantes; c. Gostava que tudo ficasse como era dantes, que voltássemos a ser amigos; d. Gostava de votássemos a ser amigos, que tudo ficasse como era dantes. E antes de dar o trabalho por concluído, cuidamos da pontuação.

FIGURA 20

Como “pauta sonora de um texto”, a escrita traz sinais que guiam o leitor no modo de lhe dar vida. Às vezes, precisa de algo mais FIGURA 21

106


do que palavras alinhadas, arrumadas no sítio certo. Precisa do modo de dizer do seu autor, de explorar outros modos de lhe dar forma.

3.5.1. A QUESTÃO DA ORTOGRAFIA Os erros corrigem-se. Não se “valorizam” com uma avaliação que penaliza. Os pontos fracos não se escondem. Usam-se como trampolim para crescer no conhecimento. Mas para que tal aconteça é necessário colocar o erro em condições de cumprir esta função. Nesta perspetiva, transformamos o “status do erro” para, no dizer de Ives Beal, colocá-lo na condição de hipótese formulada pelo sujeito que constrói o seu saber, que aprende em interação com os outros a partir das avaliações que faz.

Descobrir e aplicar regas ortográficas; Investir na correção ortográfica.

Uma ortografia descuidada realça os defeitos de um texto; por vezes, não deixa ver o que está escrito, obriga a uma leitura silabada, palavra a palavra, que oculta o que de bom este possa conter. Daqui o cuidado que temos na transcrição do texto a

FIGURA 22

107


trabalhar, evitando que o número de erros visíveis prejudique a sua apreciação. Então, perante um texto com muitas palavras erradas, começamos por corrigir todos os erros que não tenham nada para nos ensinar, ou seja, que não é possível reverter a partir das informações que a análise da palavra nos oferece. Para este tipo de erros, feitos em palavras de uso frequente, que não nos dizem o porquê de se escreverem assim, temos o local das Palavras que é Proibido Errar. “Escrevem-se assim porque sim”,119 refletindo uma dificuldade que pode acompanhar-nos por algum tempo. Mesmo com o estatuto de “escritor” competente, encontraremos sempre palavras novas para as quais é possível encontrar mais do que uma hipótese de escrita. Se “hipótese” fosse uma destas palavras, teríamos, com certeza, à cabeça, quatro maneiras de fixar a sua escrita (ipótese, ipóteze, epótese, epóteze) e, às tantas, dificilmente, nos ocorreria a norma que hoje usamos. Mas a aprendizagem da ortografia não se centra apenas na memória, pode e deve servir-se de outros recursos cognitivos para se desenvolver. Este é um dos trabalhos em que a nossa intervenção na sala de aula é mais diretiva, permitindo interpelar, fazer perguntas, dar pistas, propor desafios numa espécie de jogo de descoberta. Mas o modo como esta interpelação é feita depende da natureza do erro, da avaliação que fazemos.

119

Quando o uso de uma letra ou dígrafo é justificado apenas pela tradição de uso ou pela origem – etimologia da palavra >in MORAIS, Artur, 2001@.

108


Para perceber a natureza dos erros detetados e melhor determinar os recursos cognitivos que podemos mobilizar, construímos, com frequência, quadros de análise que nos ajudam a avaliar as dificuldades reveladas. A análise do quadro da figura 23, construído a partir dos erros detetados no texto, permite observar três tipos de dificuldades: -

de correspondência fonográfica regular direta de correspondência regular morfológica gramatical de correspondência fonográfica irregular.

FIGURA 23

É esta avaliação que nos vai dizer como é que uma determinada dificuldade ortográfica vai ser trabalhada: -

Numa aula com toda a turma, durante um trabalho de texto, ou noutro momento agendado para o efeito; Individualmente ou em pequena grupo, com o professor, no tempo de trabalho autónomo.

De todos os erros analisados, selecionamos três para trabalhar no decurso do trabalho de texto: 109


-

-

ficase/ficasse; emfim/enfim – porque são um erros frequentes, partilhados por outras crianças e temos a possibilidade de relembrar regras já estudadas; secalhar/ se calhar – porque ocorre, por vezes, com outras formas verbais;

A estes acrescentamos a análise da distinção “antes/dantes” que, não estando no grupo dos erros ortográficos, é um tipo de dificuldade que merece ser analisada sempre que a oportunidade aparece, em contextos de significação. As palavras erradas, classificadas como “correspondências irregulares”, são corrigidas, integradas em famílias de palavras conhecidas (pazes vem de paz; acho é forma do verbo achar) e, como são também de uso frequente, são enviadas para a lista de palavras que é proibido errar. As restantes dificuldades, como estão localizadas, apenas, no autor do texto, são trabalhadas individualmente no tempo de trabalho autónomo. Trata-se de dificuldade ao nível da “correspondência fonográfica regular direta”, localizada na confusão entre “s”, “j” e “x” ou “ch”, e entre “l/lh”, quer em textos espontâneos, quer em textos ditados. Sendo um problema de distinção que não depende de contextos de significação, entendemos que “o aprendiz possa tratar a língua como objeto de conhecimento e não só como instrumento de comunicação. (…) A defesa de um aprendizado significativo da língua não pressupõe «uma ditadura do texto como única unidade de trabalho» (…).120 A escrita deve ser vivida como um trabalho de palavras e não

120

MORAIS, Artur, 2001

110


como um jogo de inspiração”.121 Não queremos com isto dizer que, num dado momento, não nos sintamos inspirados, mas o “trabalho de palavras” tem de estar lá. Se assim não fosse, o texto do Jorge teria ficado como estava. É deste “trabalho de palavras” que o ensino da escrita se funda. É de escrita e do desafio de escrever, persistentemente assumido pelo professor com os seus alunos, que o ensino da escrita é feito. Sublinhamos com porque a importância que lhe atribuímos é enorme. Quer dizer, o professor é solidário e implica-se com os seus alunos também com a sua escrita, experimentando, quantas vezes, as suas dificuldades.

* De certa forma, o “desenho das palavras” de Vigotsky, atualiza-se noutras fases do desenvolvimento da escrita. Quer dizer, a criança ao escrever representa a fala de uma forma que pode ver. Projeta a “imagem da sua fala”. O que vê é a sua fala e não o escrito do que disse. Não vê o seu escrito como outra coisa distinta da sua fala. Mas a escrita não é fala, não é simplesmente a sua transcrição. Daqui as dificuldades por que passa quando não percebe as observações que lhe fazem – “não vês que não soa bem?” –, precisa de ouvir a leitura que o «outro» faz do seu discurso para perceber que a escrita precisa de mexer na fala. Um «escritor» competente dá conta destas distinções e escreve o seu 121

Canard, Marie-Pierre, Ateliê de escrita «mural de palavras». In APAP, Georges (2002)

111


discurso ajudado por um diálogo interior que o desloca do seu texto. Mas o aprendiz de «escritor» precisa de um «outro físico» que o ajude no diálogo para, com persistência, passar de um processo interpessoal a um processo intrapessoal necessário à sua emancipação da fala e transformar a escrita numa forma de pensar, que lhe permite ser autónomo no reconhecimento dos sentidos que a escrita força. Desocultar, nestes escritos, os sentidos descobertos pelos seus autores, interrogando o texto através da interpelação solidária dos seus pares, revela-se, assim, como uma das intenções mais importantes destes trabalhos de texto. Mas tem de ficar claro, desde o início, que é o texto o objeto da nossa atenção, é o texto e não o autor que está a ser interrogado. Só assim a interpelação coletiva pode descentrar o autor do seu texto e ajudá-lo a ver-se como observador crítico do seu escrito. Então, no decurso do processo, os sentidos multiplicam-se por ação dos sentidos que a interpelação coletiva nos traz.

112


3.6. A GOTINHA DE ÁGUA

“É evidente que defendemos que o respeito pelo pensamento da criança é, neste caso, uma coisa essencial mas também sabemos que não pode existir educação sem uma influência, direta ou indireta, dos educadores sobre as crianças” Freinet

122

1976: pp.46-47

113

122


Um «texto livre» não é definido pela sua originalidade, mas pela liberdade da decisão de o escrever. Se não é o relato de um acontecimento vivido é, muitas vezes, a recriação decalcada de uma história ou de uma mistura de estórias que, quem decidiu escrever, leu ou ouviu ler.

Aprender a fazer perguntas; Aprender a usar a leitura para apreciar o que escrevemos; Encontrar formas diferentes de escrever uma frase. Passar uma frase do tempo passado para o presente.

Sabemos, pela experiência dos trabalhos de texto que temos vindo a realizar, que o problema de uma frase que não soa bem ao ouvido se encontra, por vezes, nas palavras que tem a mais, que podem não ser Gotinha de Água necessárias.

Era uma vez uma menina muito gira chamada gotinha de água. Ela tinha muitos amigos que eram: o peixe João, as anémonas e outros mais peixes. A gotinha era muito traquina. Dava beliscões ao peixes e batia ás anémonas. Ela era muito fofinha. FIGURA 24

Assim, ao ler a estória da Sílvia, e depois da correção dos erros ortográficos, começámos por marcar as palavras que achamos mesmo importantes e não podem ser dispensadas (ou não queremos que o sejam). No caso deste

texto, as que servem para apresentar as personagens, com a respetiva caracterização, e o acontecimento relatado. E passámos à reescrita do texto, frase a frase, sem grandes mexidas na estrutura original. Nesta fase, centramos a nossa atenção nas informações que o texto apresenta e no local que 114


ocupam, enquanto procuramos uma forma mais eficaz (porque mais agradável ao ouvido) de as registar. Neste processo, chamamos para nosso lado o «escutador de sophia» - para usar a expressão com que designamos um conceito descrito no livro “Escultor de Palavras”123 -, e que não é mais do que o leitor que nos acompanha na escrita.

FIGURA 25 – Quando a Sílvia lê que a personagem principal da sua estória era muito gira e fofinha, pergunto: – e já não é?

Uma vez reescrita a estória (Figura 25), passámos à interpelação da autora através do seu texto: que - A resposta não pode estar no texto (queremos perguntas que dúvidas é que a sua estragam respostas que acrescentem tória nos levanta e gostainformação ou expliquem melhor o ríamos de ver resolvidas. que não está bem explicado); - Não há perguntas que tragam E relembrámos sim ou não como resposta; as regras que, normal- - Escrevemos a pergunta que mente, seguimos nesta queremos fazer. interpelação (Figura 26). FIGURA 26

123

Vol.1 do projeto de autoformação cooperada em que estou envolvida, “Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos”, pp.29-34

115


Enquanto cada um escreve as suas perguntas, vou circulando pela sala; aqui e ali, ajudo nas perguntas de uma ou outra criança que apresenta mais dificuldade. Terminado o tempo para esta escrita de perguntas dou a palavra à criança que escolhi para ler a primeira. Pergunto se alguém tem uma pergunta igual, escrita de outra forma. Esgotadas as perguntas, entretanto - Onde Vive a Gotinha de Água? - Por que é que dava beliscões registadas no quadro, na aos amigos? forma que escolhemos - Com quem vive a Gotinha de (Figura 27), dou esta fase Água? do «trabalho de texto» por concluída. Agora é FIGURA 27 preciso aguardar pelas respostas da autora, a quem demos tempo para escrever as respostas, no tempo de trabalho autónomo, no período da tarde, sob a minha supervisão. E agendamos uma nova sessão para o dia seguinte.

116


3.6.1. REDESENHAR A ESTÓRIA COM AS NOVAS INFORMAÇÕES “Somar” duas frases simples numa só, mais complexa, assemelha-se, de certa forma, à soma aritmética de duas quantidades: a representação que resulta não incorpora os elementos todas das representações convocadas para a soma.

Saber construir uma frase complexa a partir de duas ou mais frases simples Saber organizar as ideias em frases de acordo com o seu conteúdo , cronologia de acontecimentos, etc. …

“A aprendizagem da leitura é sobretudo uma construção das suas regras, a qual como qualquer outra construção da criança implica um conhecimento lógicomatemático, ou seja (…), só pode ser adquirida através da coordenação de relações entre objetos ou factos (…), pressupondo a capacidade para ordenar e agrupar objetos de acordo com um ou mais atributos”124

A Sílvia começou por escrever as respostas no seu caderno, trabalhando-as comigo de seguida.

FIGURA 28

Comecei pela 3ª resposta já que era a que não pedia novas perguntas; apenas, eventualmente, alternativas de escrita: Vive com os seus pais e as suas duas irmãs

124

Ramiro Marques, citado por: LOUSADA, Daniel. Tenho 11 anos e não sei ler: reflexões sobre aprendizagem da leitura e da escrita. In “Escola Moderna”, Série-2 , volume 4. Lisboa, 1990: pp.28-32

117


O castelo de cristal sugeriu-me a pergunta: onde fica? Ao que ela me respondeu de pronto: no fundo do mar. O castelo de cristal no fundo do mar, os amigos (todos peixes, ou seres marinhos), assim como o nome da menina (Gotinha de Água) levam-me a acreditar que a estória da Sílvia tem por base experiências adquiridas com estórias que leu ou ouviu ler (assunto que não esclareci com ela). Daqui esta dificuldade (entendo eu) em aprofundar uma sequência de ações (porque dispersas por estórias diferentes), coerente com o texto que apresentou. A resposta que explica as razões que levam a menina a bater e a dar beliscões aos amigos trazem para a conversa as brincadeiras no recreio. E são estas brincadeiras que me levam a comentar: Gotinha de Água é uma meni Às tantas, entre na muito gira e fofinha. Vive num castelo de cristal, no fundo tantas sapatadas e beliscões, do mar, com os seus pais e as já não sabem quem começou suas duas irmãs. Ela tem primeiro. Se calhar a menina muitos amigos: o João, as anémonas e muitos outros bate porque diz que quem peixes. Mas é muito traquina: começou foram os amigos, e dá beliscões e bate aos amigos. os amigos dizem que foi ela! Os amigos (como ficam?) ficam E começamos a reescrever a estória com as novas informações (Figura 29).

muito zangados (e que fazem?) e fazem-lhe a mesma coisa. FIGURA 29

Como muitas outras crianças da sua idade, a Sílvia, até aqui, faz apenas o relato do que pode ser o início da sua história, limitando-se a descrever personagens e locais; apresenta o pro-

118


blema (Gotinha de Água e os amigos trocam beliscões e outros mimos), mas não desenvolve um enredo que conduza a uma solução, que indique o tipo de final que deseja. Então, entre outros aspetos, o que procuro neste diálogo face a face é ensinar a ver, nos elementos presentes no enunciado do problema, o sentido ou sentidos que a estória pode tomar, projetando os termos da sua resolução: como queres que acabe a tua estória?125

* No dia seguinte, já com a turma toda, aceitamos a sugestão “nas profundezas do oceano” para substituir “no fundo do mar”. E, por sugestão minha, procuramos uma alternativa para a última frase deste parágrafo: Nós já aprendemos algumas palavras que servem para substituir um nome, quando ele é repetido muitas vezes. Alguém sabe qual é a palavra que pode substituir, aqui, «os amigos»?

125

Será isto conduzir e ensinar, ou simplesmente manipulação disfarçada? “(…) o professor nunca é considerado um recetor passivo, espécie de escrivão que aprova o texto da criança ou o corrige sob o ponto de vista gramatical sem abordar os problemas de conteúdo. O professor tem um papel ativo a desempenhar na instituição do texto livre: é aquilo a que o próprio Freinet chama de «o papel do professor». Falando ou calando-se, aprovando ou criticando, o professor exerce sempre uma influência no processo de criação do texto livre. (…) «A pretexto de deixar à criança toda a liberdade, vamos relegar-nos para segundo plano e deixar as crianças entregarem-se às mais espantosas fantasias, fontes de desequilíbrios e instabilidade? (…)». O que Freinet quer dizer, é que o acolhimento e a exploração do texto devem ser modulados pelo professor. O importante não é saber se se deve ou não censurar, mas saber o que se deve fazer do texto para que a retroação seja uma incitação positiva. (…) Manipulação? Talvez, mas sobretudo catálise >CLANCHÉ, Pierre, 1977: pp. 56-59@.

119


Estes ficam zangados e fazem-lhe a mesma coisa.

O que é isto de fazer «a mesma coisa»? Batem-lhe e dão-lhe beliscões Quero substituir “dão-lhe beliscões” por uma palavra só. Alguém sabe? Beliscam-lhe (?) – responde um miúdo claramente influenciado pela palavra anterior. Beliscam-lhe, sem mais nada, parece faltar qualquer coisa; precisas de dizer o quê: beliscam-lhe o braço, a perna…. Vamos pensar que dão beliscões onde calha. E como ninguém conseguia chegar lá, dei a resposta: beliscam-na (uma distinção que registo para trabalhar futuramente numa sessão planeada para este efeito).

Estes ficam muito zangados e batem-lhe e beliscam-na também Finalmente lemos a frase completa para ver se gostávamos do que ouvíamos. Se quisermos eliminar este «e» que temos de fazer? Tiramos e pomos uma vírgula:

Estes ficam muito zangados, batem-lhe e beliscam-na também. Trata-se de um exercício de escrita que realizam muitas vezes, mas que questiono neste caso, porque este «e» reforça o efeito de causalidade entre o estar zangado e o bater. Não digo que esteja mal. Mas se tirarmos uma palavra e colocarmos outra vírgula é capaz de ficar melhor. Estes, muito zangados, batem-lhe e beliscam-na também. 120


Para terminar a estória decidimos que os amigos não têm “brincadeiras parvas”, “estúpidas”, “sem graça nenhuma” (sucessão de adjetivos inventariados com os miúdos).

E para acabar com brincadeiras parvas tem de haver alguém com: juízo, bom senso, sensato… que saiba ter uma conversa séria…

FIGURA 30

Gotinha de Água é uma menina muito gira e fofinha! Vive num castelo de cristal, com os pais e as suas duas irmãs, nas profundezas do oceano. Ela tem muitos amigos: o João, as anémonas e muitos outros peixes. Mas é muito traquina: dá beliscões e bate aos amigos. Estes, muito zangados, batemlhe e beliscam-na também. O João, o amigo mais sensato da Gotinha de Água, cansado destas brincadeiras, resolveu ter uma conversa séria com a sua amiga! Estas brincadeiras estúpidas tem de parar, não têm graça nenhuma! Tens razão, isto está a dar mau resultado. Acabamos sempre zangados! E, a partir daqui, decidem acabar com estas brincadeiras parvas. FIGURA 31

121


3.6.2. CONCLUINDO Os textos livres das crianças, nestas idades, não são lá muito originais. Mas, como refere Pierre Clanché, a principal característica de um texto livre não está na originalidade do seu conteúdo mas na vontade de escrever de quem o cria. Uma vontade a que não será alheia uma certa afetividade que envolve todo o processo de produção do texto. Como defendia Freinet: com a instituição do «texto livre», “a criança, mais do que escrever para si, escreve principalmente para se ligar aos outros, implicando-se na construção do sentido que deseja partilhar. «Analisa então os seus escritos para conseguir uma técnica de expressão perfeita (…). É o que fazemos de uma forma metódica» ”.126

126

LOUSADA, Daniel: “Entre o método natural e o texto livre” (ver atrás, p. 58-59)

122


3.7. VIAGEM À SERRA DA ESTRELA

“Só quando um autor escreve um texto ou um poema que teve a honra de ser escolhido pela classe e que foi imortalizado pela impressão, quando tem que defrontar as mesmas dificuldades que os escritores e os poetas, quando toma consciência das suas insuficiências e dos seus êxitos, só então é que ele aprecia verdadeiramente a obra dos outros”. Freinet127

127

1978: p.58

123


No trabalho de texto, o professor inscreve-se com os seus alunos num jogo de descobertas “(…), mas não parte à descoberta sobrepondo-se aos seus alunos. No entanto, estes sabem que o professor tem sempre uma resposta para oferecer em pequenas doses, quando o 128 impasse se instala”. Então a descoberta que as crianças têm para fazer, é a resposta que o professor tem para dar. E, muitas vezes, a descoberta é de tal ordem que supera a resposta que o professor guardava.

Fazer perguntas Dar respostas Identificar: grupo nominal, grupo verbal, grupo móvel, relacionando com regras de pontuação. Juntar duas frases simples numa frase complexa Exercitar a escrita de frases intercalares (entre vírgulas) Aplicar regras de ortografia

“Viagem à Serra da Estrela” foi o texto escolhido, hoje, para trabalharmos em conjunto na aula, tal qual foi apresentado pela Mariana. E, como sempre, começamos com a caça aos erros:129 num tempo determinado, que depende da extensão do texto FIGURA 32 (3 minutos, neste caso), cada criança regista na sua folha de trabalho as palavras erradas, 128

Ver p. 83 (introdução a este capítulo)

129

Como vem sendo usual, os erros ortográficos que não têm nada para nos ensinar, ou seja, que não é possível reverter através da análise da palavra (escreve-se assim porque sim), são corrigidos previamente pela professora >ver “A questão da ortografia”, p. 102@

124


escrevendo-as na forma que acha certa. Concluído este tempo, à medida que os erros iam sendo indicados, analisamos os casos ortográficos detetados e identificamos palavras com grafias idênticas para, se possível, extrair a regra que pudesse evitá-los. Eu no fim de semana fui para a serra da estrela . Quando eu fui para o monte estava lá muito nevoeiro e frio. Mas não se podia sair fora do carro porque molhava as calças todas. E fomos para o hotel . No domingo quando fomos embora passamos lá e já não estava frio até fomos eu e os meus pais fomos brincar para a neve e atirar bolas. Mas depois o meu pai aventurou-se a ver os queijos os presuntos e prová-los e eu e a minha mãe enjoamos e fomos para casa a minha cadela Tucha estava em pulgas por nos ver. FIGURA 33

Na etapa seguinte, analisamos o modo de construção de cada uma das frases, procurando palavras que estivessem a mais (Figura 33), ou seja, que era possível cortar sem alterar o seu conteúdo. Há medida que as palavras a mais eram eliminadas, íamos reescrevendo o texto, procurando corrigir as falhas de pontuação (Figura 34).

125


Relemos o texto e fizemos mais algumas alterações: trocar uma ou outra palavra por um sinónimo ou por outra com sentido idêntico, propondo uma organização alternativa nalgumas frases (Figura 35). VIAGEM À SERRA DA ESTRELA No fim de semana, fui para a serra da estrela. Quando fui para o monte, estava lá muito nevoeiro e frio. Não se podia sair fora do carro porque molhava as calças. E fomos para o hotel. No domingo, quando fomos embora, passamos lá e já não estava frio. Eu e os meus pais até fomos brincar para a neve atirar bolas. Depois o meu pai aventurou-se a ver os queijos, os presuntos e a prová-los. Eu e a minha mãe enjoamos e fomos para casa. A minha cadela Tucha estava em pulgas por nos ver.

VIAGEM À SERRA DA ESTRELA No fim de semana, fui para a serra da estrela. (1) Quando chegamos ao topo do monte, estava lá muito nevoeiro e frio. Não se podia sair fora do carro porque molhava as calças. (3 e 6) E fomos para o hotel. (4) No domingo, ao irmos embora, voltamos ao topo da montanha e já não sentimos frio. Eu e os meus pais até fomos brincar para a neve atirar bolas. (2) Depois o meu pai aventurou-se a ver os queijos, os presuntos e a prová-los. Eu e a minha mãe enjoamos (5) e regressamos a casa. A minha cadela Tucha estava em pulgas por nos ver.

FIGURA 34

FIGURA 35

E passamos à interrogação do texto, interpelando a sua autora: 1. Quanto tempo demorou a viagem? R: A viagem demorou 2h 40 minutos. 2. O que viste na serra? R: eu na serra vi neve, queijo, chinelos casacos, pessoas a tirar neve umas às outras e a andar de trenó 3. O que observaste no topo da montanha? 126


R: eu observei uma paisagem branca e as nuvens quase batiam na montanha. 4. Como era o hotel? R: o hotel era rústico e muito confortável. 5. O que fizeste no hotel? R: eu no hotel vi televisão e dormi. 6. Por que é que enjoaram? R: enjoamos porque o cheiro dos queijos e dos enchidos embrulha-nos o estômago. 7. Gostaste da viagem? R: sim gostei, tem uma paisagem muito bonita Finalmente, selecionamos as novas informações para integrar no texto, a partir das respostas da Mariana (Figura 36); 1. 2. 3. 4. 5. 6.

A viagem demorou pouco mais de duas horas e meia As pessoas andavam de trenó As nuvens quase batiam na montanha O hotel era rústico e muito confortável Enjoamos porque o cheiro dos queijos e enchidos embrulhavanos o estômago A paisagem é lindíssima

FIGURA 36

identificamos os locais onde deveriam ser integradas (Figura 35 – os números identificam a informação a integrar); ensaiamos diferentes formas de “arrumar” as frases (Figura 37) e fizemos alguns ajustes mais.

127


No fim de semana fui para130 a serra da Estrela:

Quando chegamos ao topo da montanha, estava muito nevoeiro e frio

No domingo, ao irmos embora, voltamos ao topo da montanha e já não sentimos frio

Eu e a minha mãe enjoamos com o cheiro dos enchidos a embrulhar-nos o estômago e fomos para casa

No fim de semana, fui à serra da Estrela, com os meus pais Fui à serra da Estrela, com os meus pais, no fim de semana. Fui com os meu pais, no fim de semana, à serra da Estrela Estava muito nevoeiro e sentia-se muito frio, quando chegamos ao topo da montanha. Estava muito nevoeiro, quando chegamos ao topo da montanha, e sentia-se muito frio. Quando chegamos ao topo da montanha, estava muito nevoeiro e sentia-se muito frio Ao irmos embora, no domingo, voltamos ao topo da montanha e já não sentimos frio No domingo, ao irmos embora, voltamos ao topo da montanha e já não sentimos frio Voltamos ao topo da montanha, ao irmos embora, no domingo, e já não sentimos frio No domingo, voltamos ao topo da montanha, ao irmos embora, e já não sentimos frio

Eu e a minha mãe enjoamos com o cheiro dos enchidos a embrulhar-nos o estômago e fomos para casa Com o cheiro dos enchidos a embrulharnos o estômago, eu e a minha mãe fomos para casa

FIGURA 37

130

Para a serra ou à serra? Dizemos «para» quando vamos para ficar longos períodos de tempo: vamos mesmo para lá. Dizemos «à» quando estamos de passagem ou por períodos curtos de tempo. Neste caso decidimos que a Mariana não foi para ficar: foi apenas à serra da Estrela. E registamos esta distinção para ser trabalhada em textos futuros.

128


No fim de semana fui, com os meus pais, à serra da Estrela. A viagem demorou pouco mais de 2h e meia. Quando chegamos ao topo da montanha, estava muito nevoeiro e sentia-se muito frio. E não pudemos sair do carro porque molhavamos as calças todas. Mas a paisagem branca era lindíssima! As nuvens quase batiam na montanha! E chegamos, cansados mas bem dispostos, 131 a um hotel rústico e confortável. No domingo, ao irmos embora, voltamos ao topo da montanha e já não sentimos frio. Até fomos brincar para a neve, atirar bolas, enquanto outras pessoas andavam de trenó. O meu pai aventurou-se a provar os queijos e os presuntos. Eu e a minha mãe, enjoadas com o cheiro dos enchidos a embrulhar-nos o estômago, fomos espreitar as montras. E regressamos a casa. A minha cadela Tucha estava em pulgas para nos ver.

Analisadas as diversas formas de organização de cada uma das frases, escolhemos as que mais gostamos e reescrevemos o texto (Figura 38). E ao reescrevermos o texto verificamos que era necessário pedir mais um esclarecimento à autora: Foram para casa porque enjoaram com o cheiro dos enchidos?

E ficamos a saber que, enquanto o pai da Mariana provava os queijos, os presunto e os enchidos, ela foi com a sua mãe “espreitar as montras”.

*

A escrita de uma frase assemelha-se, por vezes, a uma operação aritmética; e somamos numa mesma frase duas ou mais ideias, ou optamos por distribuir por cada frase uma ideia

FIGURA 38

131

Cada reescrita é sempre uma oportunidade para retocar uma ideia ou caracterizar melhor uma ação.

129


apenas. Outras vezes parece-se com a construção de um puzzle que vamos compondo, procurando o lugar certo para aquela palavra (ou grupo de palavras, como podemos verificar no quadro da figura 37). Mas em qualquer dos casos, a escuta é sempre convocada: é o “ouvido” de quem ouve que escolhe a forma que lhe sabe melhor ouvir:132 No fim de semana fui à serra da Estrela com os meus pais. A viagem demorou pouco mais de duas horas e meia. No fim de semana fui à serra da estrela com os meus pais, numa viagem que demorou… Mas a paisagem branca era lindíssima e as nuvens quase batiam na montanha! Mas a paisagem branca era lindíssima! As nuvens quase batiam na montanha! Eu e a minha mãe enjoamos com o cheiro dos enchidos a embrulhar-nos o estômago, fomos espreitar as montras e regressamos a casa. Eu e a minha mãe, enjoadas133 com o cheiro dos enchidos a embrulhar-nos o estômago, fomos espreitar as montras. E regressamos a casa.

132

Daqui a nossa insistência na leitura em voz alta, para escutarmos as formas que gostamos mais de ouvir. 133

A forma verbal foi, aqui, transformada em adjetivo, dando origem a uma frase intercalar. Trata-se de uma forma de organização que procuramos ensinar a aplicar através de situações de uso.

130


3.8. QUERO ESCREVER MAS NÃO SEI O QUÊ!

Sabemos pela análise dos seus textos, que os temas escolhidos pelos nossos alunos não primam, a maior parte das vezes, pela originalidade, o que não quer dizer que não sejam originais nas suas vidas: quando não é o acontecimento vivido a mobilizar uma criança para a escrita da “novidade” (descrição de uma relação social em que participou) é a influência da estória que leu, ou do seu herói preferido, que a convoca para a escrita de um texto. Não é, assim, apenas a imposição do tema, numa redação, que condiciona uma criança na sua escrita. Não vemos, portanto, no texto livre, a fonte de inspiração, ou o garante da originalidade que liberta uma criança do estereótipo. Só que, na redação, diferentemente do texto livre, a criança é também condicionada na sua liberdade de escolha, no tempo que tem para escrever e no lugar destinado à escrita.134 No «texto livre», que aparece primeiro? Um assunto que surge espontaneamente e nos provoca uma vontade de escrever? 134

“É portanto a liberdade do aparecimento que fez a liberdade do texto, o que não quer dizer, longe disso, que o texto livre esteja ao abrigo de influências e do estereótipo! Convém admitirmos este facto, não como uma infelicidade, mas como uma característica fundamental do texto livre: o texto pode ser banal, tem o direito de o ser; é a exigência – formal – da originalidade que é afinal mais constrangedora; ela diz: «Não digas o que queres, diz outra coisa, de outro modo» >CLANCHE, Pierre. 1977: p.42@.

131


Ou uma vontade de escrita (aquele estado de escrita, de que fala Sophia de Mello Breyner135) que nos faz correr atrás de um tema para satisfazer esta vontade? Ao certo, o que sabemos é que, na escola, a escrita provoca-se; a vontade de escrever estimula-se, mesmo que esse estímulo venha através da escrita do outro, colocada estrategicamente numa espécie de convite, para que o “estado de escrita”, uma vez presente, não esmoreça: encontre terreno lavrado onde possa crescer e desenvolver-se. Não se trata de ver nesta escrita (curtos excertos de textos, feitos convite), aquelas introduções que antecedem a proposta de uma redação, nem tão pouco de escrever sobre um texto (se bem que isso possa ocorrer), mas da escrita de uma leitura, ou dos pensamentos que a leitura de um texto produziu porque algo mexeu em nós.136 Nestas condições, a vontade que comanda a decisão de escrever o texto, presente na instituição do texto livre, não é beliscada: a criança decidiu escrever porque a leitura que fez de um poema, de uma estória, de um slogan, de uma pergunta até, provocou nela uma vontade de escrever.137 135

Ler “O Escutador de Sophia”. in Volume 1 deste projeto (Escultor de Palavras), pp. 29-34. 136

“ (…) acontecia, às vezes, na poesia, a reescrita de um verso ou a mudança de uma rima, numa «espécie de cópia livre» que me fazia sentir o texto não apenas pelo que os olhos trazem mas também pelo que pode fazer uma mão que escreve” >Quando não souberes copia, in “Escultor de Palavras”, 1º volume deste projeto, “Escrita uma forma de multiplicar os sentidos”, p. 45@ 137

Freinet distingue a escrita literária, na qual insere o texto livre, deste tipo de escrita («adaptada»). A criança insere-se também nesta escrita mas não, ao que julgamos saber, na perspetiva que defendemos aqui. Nas aulas de Freinet “a criança treina-se frequentemente nesta escrita «adaptada» de modo «natural»,

132


Temos, então, no atelier de escrita: citações tiradas dos mais variados livros (pensamentos); poemas completos, ou apenas excertos; perguntas (as de Pablo Neruda, por exemplo),138 gravuras; reproduções de pinturas; livros de imagens, etc., etc.

* O trabalho de texto, sobre o «texto de autor», se não for também enquadrado no espaço que o texto livre marca, a prazo não passará de mais uma atividade rotineira, igual a tantas outras desenvolvidas pela escola.

Escrever, livremente, sobre o sentimento que uma leitura provocou; Fazer do texto lido a pergunta que provoca a vontade de escrever.

Todas as fichas de escrita têm no rosto um curto texto de apresentação, feito de perguntas, a anteceder um excerto de um poema (Figura 39) e, no verso, o poema todo, se o excerto não der

FIGURA 39 – VER EXEMPLO COMPLETO NO ANEXO 4 escrevendo sozinha ou com outros o texto de álbuns consagrados aos mais diversos assuntos (história e geografia local, arquitectura, zoologia, tecnologia, etc.) ou redigindo conferências (termo que Freinet prefere a «exposição»)” >CLANCHÉ, Pierre, 1977: p. 53@. 138

NERUDA, Pablo (2001) Perguntas de Pablo Neruda. Lisboa: Campo das Letras.

133


em nada e apetecer recriá-lo da forma que trabalhamos em “Escultor de Palavras”.139 A quase totalidade dos poemas trabalhados no “Escultor de Palavras” faz parte destes ficheiros, de que as crianças se servem para procurar 140 quando a “inspiração”, vontade de escrever está presente, ou o compromisso de escrita foi assumido num plano individual de trabalho, mas a pergunta que dá início à escrita não FIGURA 40 tem jeito de aparecer. O excerto do poema de António Nobre, por exemplo, sugere uma estória inacabada que nos convida a continuá-la, a começar pelo preenchimento de lacunas: Na praia lá da Boa Nova, mesmo junto ______________, construi um belo castelo de ___________________. Era manhã e o sol _______________ FIGURA 41

E a estória continua, seguindo o mesmo esquema, ou afastando-se do original, servindo de pretexto para outras abordagens na escrita. Mas há outras coisas que podemos olhar num texto, que não a história (ou estória) que ele conta incompleta139

Vol.1 deste projeto: “Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos”.

140

“É necessário distinguir, sobrepondo-os, o modo de aparecimento institucional e o modo de aparecimento psicológico (a que se chamou, mas a que hoje deixou de se chamar, a «inspiração»)” >CLANCHÉ, Pierre, 1977@.

134


mente, e que podemos querer completar, ou continuar, aqui e ali recriar, buscando na nossa experiência uma experiência idêntica. E podemos olhá-lo pelas memórias que ele nos traz, impressas numa ou noutra palavra apenas, seguindo um processo idêntico ao que usamos, muitas vezes, na abordagem de um tema: uma lista de palavras que se integram no assunto que desejamos tratar (as mais significativas À beira mar, um dia, e de que gostamos mais); e Encontrei (que grande a minha sorte) a partir delas vamos Uma concha que trazia fantasia, desfiando o que elas têm Cheia de cor e recorte. para dizer, em nós.141 É o Naquelas redondezas não havia que parece ter acontecido Quem se gabasse de tal. Oh concha tão linda! Trazia com a Inês. Do mar uma linda melodia

No poema origiFIGURA 42 nal António Nobre centrase nas construções na areia, a Inês pega em elementos do mar que fazem parte da sua experiência e trá-los para a sua escrita (Figura 42). Estes textos inserem-se, pois, na escrita que o texto livre, convoca: o texto livre é uma vontade de escrever que se afirma; não tem a ver com o lugar ou a fonte de inspiração que faz nascer o tema. E, nem todos os textos são objecto de trabalho de texto em sessões coletivas organizadas para o efeito. Muitos deles, (texto livre ou não) são sujeitos a outras formas de interpelação, que o professor realiza num tempo em que as crianças se envolvem nas suas tarefas de uma forma autónoma, ou através de

141

Ver Anexo 5

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indicações escritas que o professor devolve ao aluno com o texto que este lhe deu a ler, num convite para alongar a escrita. Foi desta forma que a Inês alongou o seu texto, ajudada por um guião que a professora sugeriu: Sabes que podes prolongar o que escreveste! Ora repara: "À beira mar um dia" - e agora podes dizer como estava o dia: cheio de sol, o sol aparecia entre as nuvens, À beira mar um dia, Cheio de sol quentinho, ou estava escondido Quando caminhava na areia, atrás delas… Encontrei (que grande a minha sorte) Uma concha que trazia fantasia, Cheia de cor e recorte. Estava escondida e envergonhada Na areia branca e molhada. Cintilava como uma estrela, Curiosa mas tímida.

Depois encontraste a concha, não foi? Mas para a encontrares, tiveste que caminhar na praia, certo? Mas por onde? Junto ao mar?

Peguei nela, Guardei-a na palma da mão. Mas como era tão bela, Coloquei-a junto ao coração.

As ondas molhavam-te os pés? Caminhavas descalça, talvez! Sentias a areia nos pés, certo?

Naquelas redondezas não havia, Quem se gabasse de tal. Oh! Que concha tão linda! Trazia Do mar uma linda e doce melodia.

Então encontraste a concha. Onde estava? Escondida na areia, e ao passares, sentiste-a com os dedos dos pés? Ou estava ao longe e viste-a reluzir?

FIGURA 43

Não é obrigatório que escrevas um poema parecido com o poema do António Nobre! O importante é escreveres o que sentes ou o que a tua imaginação te mandar. 136


* Este trabalho de texto, pode dizer-se, por correspondência, não se destina a todas as crianças: apenas as crianças autónomas no modo como se organizam na sua escrita estarão em condições de beneficiar dele; não serve para textos que, necessitando de uma exploração mais complexa, pedem uma intervenção mais fina e, portanto, com o olhar do(a) professor(a) mais próximo.

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3. 9. CONCLUSÃO: “O OUTRO É A MEDIDA”

O “natural”, em qualquer aprendizagem, é aprender a partir do saber já detido, escutando a pergunta que todo o objeto (de conhecimento ou qualquer outro) nos faz quando queremos saber mais sobre ele. Por isso é tão importante saber o que sabemos do que desejamos saber mais. Uma criança nem sempre sabe o que sabe, até ser confrontada com o saber que desconhece que sabe: ela chega à escola, tantas vezes, sem saber que sabe; sabe que não sabe ler ou escrever, mas não sabe que sabe ler e escrever muitas coisas, até lhe mostrarmos que sabe. Por tudo isto, é fundamental saber quem é aquela “pessoa que habita no aluno” que temos pela frente e o que sabe sobre o objeto que queremos ensinar a dominar.142 Foi o que fizemos, dando continuidade ao que vinha sendo feito no jardimde-infância, atualizando, no modelo de organização da sala de aula que montamos, os instrumentos de organização do trabalho que quisemos (porque precisamos) continuar a usar (registo de presenças, de tempo, de tarefas) e construindo outros à medida que 142

“Se eu fosse realmente responsável por ensinar leitura a um grupo de 35 crianças nas manhãs de segunda-feira, precisaria ter certeza de que saberia o suficiente sobre leitura em geral e sobre aquelas crianças em particular para nunca precisar de fazer uma pergunta como essa a um estranho” (SMITH, Frank, 1999: p.11).

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a sua necessidade foi sendo sentida (quem somos, plano individual de trabalho, registo de textos produzidos e diário de turma, para referir os que tiveram mais influência na organização e controlo das atividades de escrita) e, também eles, formas de escrita, fortemente contex-

tualizada nas suas diversas funções, que as crianças aprenderam a dominar no uso que fizeram dela. Aprenderam a escrever escrevendo: os seus nomes; os nomes dos pais; os nomes dos colegas; as novidades que trouxeram para a escola e com as quais escreveram os textos que usamos para ensinar a ler, enquanto as ensinamos a escrever…143 E deste trabalho inicial emergiu a importância fundamental de duas funções da escrita: a de memória e a de comunicação: os instrumentos de registo cumprem claramente a primeira função; as novidades a segunda. Ao elaborarmos um registo de textos produzidos fizemo-lo para não esquecer quem os escreveu e os trabalhou connosco; e quando escrevemos uma novidade foi porque desejamos despertar a atenção do outro para o que temos a contar. Quer dizer, procuramos ensinar a escrever, ensinando a usar a escrita, nos usos que ela nos permite usar, construindo um ambiente que estimule a produção de textos, através da atenção que todo o texto escrito pela criança nos merece, principalmente se queremos que ela aprenda com a escrita do texto que a incentivamos a escrever. Insistimos na ideia de que corrigir, apenas, um texto depois de pronto ajuda pouco a quem escreve: se o texto está pronto, se cumpriu já a sua função na correção do professor, perdeu-se o interesse que leva o “escritor” de volta ao seu texto! 143

“Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chagada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua” (GERALDI, 1991).

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Apostamos, então, no ensino da escrita no decurso do ato de escrever, inserido no tempo, mesmo, em que o aprendiz de “escritor” se envolve na sua escrita, colocando-nos a seu lado como o leitor que participa naquela “coisa que pergunta” (para 144 utilizar a expressão de Clarice Lispector) que faz nascer o texto. Até porque o prazer da escrita dificilmente se desenvolve sem a expectativa de um leitor. Um leitor que, principalmente nestas fases mais precoces de aprendizagem da escrita, precisa estar presente: “O outro é a medida; é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição necessária para que o texto exista. (…) Seu sentido, por maior precisão que lhe queira dar o seu autor, e ele o sabe, é já na produção um sentido construído a dois”.145 Não fazemos redações neste espaço,146 portanto, no sentido que lhe atribui Wanderley Geraldi: um texto que se escreve na escola sem outra função que não seja a de receber a nota que o professor tem para oferecer! Isto não significa que os nossos alunos não tenham espaços onde possam aprender a fazer redações: também eles terão uma redação para escrever numa prova de aferição, e nós não queremos (tanto eles como nós) ficar mal na fotografia. Mas sabemos ao que vamos; não entramos no engano! 144

“Escrever é apenas o reflexo de uma coisa que pergunta” (citada por: SOUZA, Solange, 1984) 145

GERALDI, j. Wanderley, 1991: p.102

146

No espaço que a instituição do “texto livre” marca.

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NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS E ENSINO DA ESCRITA Cláudia Xavier, Daniel Lousada, Dulce Barreiros Lurdes Mendes e Serafina Salvador

O trabalho apresentado neste capítulo centra-se num olhar retrospetivo sobre práticas utilizadas na educação de crianças com acentuados problemas no seu desenvolvimento. Ao sintetizarmos o essencial da experiência adquirida, procuramos refletir sobre aspetos identificados como comuns aos casos analisados, centrados, essencialmente, no modelo de organização do trabalho que procuramos, tendo no processo de iniciação à escrita/leitura o tema que contextualiza esta procura.

141


142


4.1. INTRODUÇÃO

Perante um deficiente motor investe-se ao máximo na reabilitação de cada músculo que responda a estímulos, independentemente do uso que possa vir a ter; Perante um deficiente visual ou auditivo investe-se na estimulação do que sobra da sua visão ou audição, tirando partido dos resíduos visuais ou auditivos que ainda possua; E perante um deficiente mental, investe-se em quê?

Há algo de irracional no modo como encaramos a deficiência mental que não se verifica na intervenção com outras deficiências. Em mais nenhuma se fala com tanta insistência em “currículos funcionais” (leia-se rotinas da vida diária, que não apelam a grandes recursos intelectuais). Sendo a deficiência mental um problema que afeta o desenvolvimento intelectual da pessoa, seria de esperar, à semelhança do que sucede com as outras deficiências, uma intervenção nas áreas que apresentam problemas de desenvolvimento. Mas o que a análise da maior parte dos currículos revela é a demissão de uma escola que remete estas crianças para programas que mais parecem de tempos livres, com as quais o estímulo necessário ao seu desenvolvimento intelectual só marginalmente acontece. A lógica é simples: se não têm hipóteses, por exemplo, de serem leitores competentes não vamos perder tempo com esta área. E esquecem-se os efeitos que o investimento na escrita tem 143


no desenvolvimento intelectual de qualquer pessoa e, por maioria de razões, na pessoa com deficit mental, independentemente do uso que possa vir a fazer deste conhecimento. Fica-se, então, com a sensação de que algumas crianças precisam de estar fora de tudo o que a escola tem para oferecer para poderem estar na escola. A esta forma estranha de estar na escola, não estando, chamam alguns de socialização ou de integração social. Sérgio Niza, em 1995,147 referia-se ao currículo e ao programa como instrumentos que nos permitem perceber de que forma uma criança está na escola. É o currículo traduzido no modo como uma criança caminha no programa (da escola, bem entendido) que nos diz se uma criança está na escola ou fora dela; é o modo como este programa se cumpre naquela criança que nos informa sobre o nível de integração escolar: quanto mais em contacto estiver com o programa da escola, mais em contacto com a escola estará. É claro que a educação não se esgota no ler, escrever e contar. Mas uma escola distante destes saberes é difícil de aceitar. “Ensinar a sentar na sanita, a pegar nos talheres ou vestir o casaco é coisa que consigo fazer em casa”, dizia-nos uma mãe, reconhecendo a necessidade destas competências mas aceitando mal a necessidade de um programa: “Se a escola tiver problemas, claro que estou disponível para ajudar, quero que ele se sinta bem na escola”.

147

Actas do 1º Encontro Nacional de Educação Especial, do Movimento da Escola Moderna, realizado no Porto, no Pavilhão Rosa Mota.

144


Nas escolas de formação, habituamo-nos a ouvir dizer que estes pais ainda não aceitaram a perda, que insistem ver no filho que têm o filho que sonharam, recusando-se a fazer o luto. Pode ser que seja assim, ou pode ser que entendam que a competência na leitura/escrita contribui para definir o estatuto intelectual da pessoa e que um deficiente mental que saiba ler e escrever não seja tão deficiente assim! Pela nossa parte, entendemos que o domínio da escrita é condição de inclusão social, sendo impedido do exercício pleno da cidadania, todos quantos são excluídos deste saber. Daqui o compromisso ético de investir seriamente numa aprendizagem sustentada deste saber, recusando pré-conceitos sobre a disponibilidade do sujeito para aprender. De qualquer modo, colocada a questão em termos pragmáticos, o que sabemos é que um “programa educativo individual” só tem condições de sucesso se tiver a adesão empenhada dos pais, respondendo às suas expectativas, incorporando os seus pontos de vista de uma forma credível. Quer dizer, não ser um “faz de conta” e ser levado a sério pela escola. Isto não significa que não haja a possibilidade de existirem dificuldades intransponíveis. Mas um obstáculo só é verdadeiramente intransponível se todas as tentativas para o ultrapassar fracassarem. Alguns, sabemo-lo bem, revelam-se impossíveis de transpor. Mas devemos o trabalho à criança, aos pais e a nós mesmos, com a lucidez para entender que o investimento a fazer é enorme.

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4.2. O QUE SABEMOS

Estas crianças apresentavam dificuldades decorrentes de problemas globais de desenvolvimento, presentes, de um modo geral, nas pessoas com algum tipo de deficiência mental. A trissomia 21, com impacto no funcionamento cerebral, que afeta estas crianças explica as dificuldades que observamos ao nível de: 1. Comunicação expressiva – mudança constante de assunto quando em situação de comunicação espontânea; articulação de palavras frequentemente impercetível, principalmente quando formadas por sílabas complexas; utilização de um discurso com frases telegráficas, sem determinantes. 2. Investimento na tarefa – tempos de trabalho muito curtos; necessidade de pressão constante da professora. Partindo do pressuposto de que os processos utilizados na aprendizagem da escrita assentam na fala como instrumento de mediação, as dificuldades detetadas ao nível da comunicação expressiva serão, aparentemente, as que mais influência terão no desenvolvimento daquela aprendizagem. No entanto, não negando esta influência, rejeitamos, perante dificuldades deste tipo, um programa de desenvolvimento da linguagem falada

146


independente de um programa de iniciação à escrita e, muito menos, como pré-requisito desta. Queremos com isto dizer que encaramos a comunicação verbal (de que a fala e a escrita fazem parte) como um todo, para o desenvolvimento da qual se conjugam as diferentes formas de expressão, enfatizando ora uma ora outra, de acordo com intenções prévias, mas sempre sem esquecer que a escrita não se reduz à sua função de comunicação. Com efeito, o desenvolvimento de competências metalinguísticas (com a possibilidade que a escrita tem de mexer na fala) e a tomada da escrita como uma outra forma de pensar, permitindo-nos refletir sobre o conhecimento que adquirimos (desenvolvimento de competências metacognitivas), são contributos frequentemente esquecidos nos usos que fazemos desta forma de expressão. Esta preocupação, como refere Ana C. Silva148, própria de quem reflete sobre a linguagem e sobre a sua utilização, não se desenvolve espontaneamente (é fruto de uma aprendizagem intencional), aparecendo, de certa forma, independente do desenvolvimento natural da linguagem. Quer dizer que a criança centra a sua atenção no significado dos enunciados através de análises processadas automaticamente e de forma inconsciente, não precisando, no decorrer deste processo, de se preocupar com dimensões formais da linguagem. Entretanto, o acesso aos ganhos que estas dimensões, centradas no funcionamento da língua, proporcionam, só é possível através de uma educação formal (intencional), ou seja, do ensino.

148

Silva, A.C., 2003

147


A consciência fonológica, por exemplo, apontada por variadíssimos estudos como elemento facilitador no desenvolvimento inicial da leitura,149 dificilmente dispensa o seu ensino. No entanto, não são apresentadas evidências que a coloquem como condição prévia; trata-se, isso sim, de uma condição necessária, que é possível desenvolver com a aprendizagem da escrita/leitura, sendo possível concluir que fala e escrita interagem, influenciando-se mutuamente.

149

Morais, J.; Viana, F., 2002; Silva, A.C., 2003

148


4.3. O PROGRAMA

O programa destas crianças não é diferente do programa de outras crianças. Precisou apenas de ser ajustado de forma a permitir uma melhor operacionalização, convocando os contributos dos professores (da turma e educação especial) e dos pais. Enquanto que para a generalidade da turma é possível propor atividades que permitem o trabalho sobre a escrita para além da sala de aula, com um mínimo de atenção de um adulto responsável, já para estas crianças, um trabalho deste tipo necessita da cumplicidade dos pais, de um outro familiar, ou de um adulto próximo. Esta implicação da família no processo de iniciação à escrita tem um duplo sentido: por um lado pedir-lhe a atenção que questiona, que interpela, que exige resposta…, definindo espaços diversos de contextualização da escrita, na convicção de que a escola não é o único espaço onde o aprender acontece; por outro, evitar a dúvida sobre a verdade quanto ao investimento que a escola faz nesta aprendizagem, ao enunciar atividades a desenvolver, discutindo sobre as condições de realização (que apoios educativos requerer) e o que se espera adquirir com elas. Desta forma, a seriedade da proposta pela apreciação crítica que só a avaliação dos percursos proporciona, sai reforçada. 149


4.4. QUE OBJETIVOS DEFINIR?

Os programas educativos que o mercado oferece, assentam numa estrutura marcada por diferentes tipos de objetivos que, numa organização descendente, vai dos objetivos gerais aos específicos (ou operacionais, consoante os autores) terminando nas estratégias de ação (e/ou, nalguns casos, atividades). Trata-se de uma estrutura nem sempre fácil de formalizar, sujeita a redundâncias excessivas entre objetivos, estratégias ou atividades, obrigando, quantas vezes, a um trabalho acrescido de tradução para facilitar a comunicação com os pais. LER Os dias da semana

O nome próprio O nome próprio dos colegas O nome de familiares

ONDE, COMO…

Agenda semanal Calendário Plano do dia Registo do tempo Revista de programação t.v. Mapa de tarefas Material a distribuir

Mapa do leite Registo de presenças Cartões de palavras

FIGURA 44

150

Mesmo admitindo que uma criança com as características já referidas possa beneficiar de uma abordagem por objetivos, entendemos que estes devem, sempre que possível, confundir-se com a tarefa a realizar, na perspetiva seguida pelo


programa de língua portuguesa do 1º Ciclo do Ensino Básico ou das orientações curriculares para a educação pré-escolar. Neste sentido, são as atividades que realizamos nos diferentes ambientes onde somos interpelados pela escrita que, de certa forma, orientam o modelo de organização desta aprendizagem (Figura 44). A escola e o Jardim de Infância valorizam pouco os conhecimentos que os seus alunos têm da escrita, talvez porque a grande maioria dos professores não sabe como introduzir estes saberes nos seus processos de trabalho e grande parte dos educadores considerar a escrita como uma questão da escola. Digamos que, para estes, a perspetiva curricular aceite não contempla a escrita e, para aqueles, os conhecimentos sobre a escrita, revelados pelas crianças, não são compatíveis com o método adotado.150 Vai daí, embora reconhecendo a existência deste saber procede como se não existisse: é contacto com a escrita, sim senhor, mas não é leitura! E, no entanto, são escritos que fazem parte da vida de todos os dias, as crianças utilizam-nos de forma implícita sem que tenham adquirido o seu domínio explícito mas, descontextualizados da experiência que lhes dá sentido, correm o risco de não serem reconhecidos se não houver a ajuda que faça a ponte. 150

“A polémica sobre a idade ótima para o acesso à língua escrita (…) foi mal colocada por ser falso o pressuposto no qual se baseiam as posições antagónicas. O problema sempre foi colocado tendo por pressuposto serem os adultos que decidem quando essa aprendizagem deverá ser iniciada. (…) A ilusão pedagógica pode manter-se porque as crianças aprendem tanto a proceder como se nada soubessem (embora saibam), quanto a mostrar, diligentemente, que são capazes de aprender através do método escolhido” (FERREIRO, Emilia, 1991)

151


A escrita está por todo o lado, é já um elemento naturalizado da nossa paisagem urbana, faz parte da imensidão de objetos que invadem a nossa vida, mostra-se ao virar de cada esquina pronta a interpelar quem quiser aceitar o convite. Mas a verdade é que nem todas as crianças conseguem aceitar esta interpelação sem ajuda, dispondo-se a investigar os segredos que a escrita tem para revelar: falta-lhes, quantas vezes, a experiência da observação do gesto do adulto quando lê as mensagens que compõem o espaço urbano ou os livros e revistas que entram (ou não entram) em sua casa; falta-lhes o conhecimento implícito no uso informal da mensagem escrita. Uma criança curiosa deteta estes usos da escrita. Outras precisam da ajuda que treina o olhar, que aponta a escrita e se esforça por despertar a curiosidade.

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4.5. TREINAR O OLHAR

O olhar que nos interessa treinar é o olhar que ajuda a compreender a relação da escrita com as pessoas, com os objetos, com as coisas que fazemos…, e que qualquer criança desenvolve naturalmente, desde que não tenha colado a si um qualquer tipo de condicionamento que dificulte esta relação. É claro que há outros olhares possíveis, importantes para perceber o mundo, que convém treinar, e que não são referidos aqui. São olhares que não têm que ver com a escrita. Exploram a capacidade de observação, essenciais para perceber o mundo que nos rodeia, mas não fazem parte da escrita. Nesta linha de preocupações, há perspetivas que defendem programas de desenvolvimento de capacidades gerais de observação/atenção, perceção/descriminação, coordenação visual/motora, orientação espaço/temporal, etc., como pré-requisitos da aprendizagem da leitura/escrita, assentes em atividades que (insistimos) nada têm a ver com a escrita.151 Não dizemos que estas atividades não possam ser importantes (são-no, certamente). Apenas defendemos que o acesso à escrita não depende delas. Se assim não fosse que seria dos

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Trancoso e Cerro, 1998

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cegos, dos surdos ou dos portadores de algumas deficiências motoras. Entendemos que o olhar que convoca a escrita pode convocar, em simultâneo, outros olhares. Não precisamos de parar (ou adiar) para procurar fora da escrita, e da leitura que dela fazemos, o que a escrita e a leitura da escrita precisam. Ela abrenos outras possibilidades, que vão muito além da própria escrita como objeto de estudo: a organização da fala de uma forma que podemos ver é, seguramente, uma das mais importantes, revelando-se como um instrumento de trabalho precioso no desenvolvimento da linguagem.

154


4.6. MULTIPLICAR OS SENTIDOS

Se pudéssemos influenciar a definição de objetivos em matéria de ensino inicial da leitura e escrita elegíamos apenas dois: ler e escrever. Assim, sem mais adjetivos! Tudo o mais define-se na ação, na resposta a umas tantas perguntas sobre o que temos de fazer para aprender. Ler é, essencialmente, procura de sentidos. Decidindo que “não ler” não é opção, resta-nos saber o que ler e para quê, como, quando, onde… Só, então, podemos organizar o nosso trabalho (Ex.: Figura 45). LER

ONDE, COMO…

Na rua: nas placas informativas Bombeiros voluntá Na escola e em rios de Avintes casa: nas fotograContinente fias; na escrita que a Café Skip professora ou a mãe Confeitaria Costa faz FIGURA 45

Esta é a perspetiva que defendemos para qualquer criança porque entendemos ser a única capaz de permitir explorar a busca dos sentidos que a escrita encerra e, simultaneamente, ajudar a superar o que parecem ser as dificuldades na comunicação expressiva, destas crianças.

Rua 5 de Outubro

É este tipo de planeamento, realizado todos os dias desde a “pré”, assente sempre na mesma pergunta – que temos hoje para ler? –, que se encontra na base da comunicação com a 155


família (a concretização da tarefa cumpre o objetivo na perspetiva defendida atrás). Numa abordagem que, para ser bem sucedida, precisa de iniciar-se no jardim de infância (ou mesmo antes, na família), começamos por apostar na leitura contextualizada para, lentamente, retirar as ajudas que o contexto dá (descontextualização).152 São as primeiras experiências de leitura, que FIGURA 46 alguns autores chamam de “préleitura”, totalmente determinadas pelo contexto. É aquela fase em que uma criança compreende a mensagem apenas porque o contexto onde aparece lhe é familiar. No entanto, fora do contexto que lhe serve de referência, a identificação é mais difícil ou não se dá mesmo se não houver a ajuda que relaciona com a nova imagem que a palavra tem. O contexto começa por definir-se no objeto que suporta a escrita e permite antecipar o que vamos ler, sendo que o nome do produto e a respetiva marca ocupam o lugar de destaque, confundindo-se, muitas vezes, numa mesma designação: Coca-Cola, Seven-Up… (Figura 46) O processo de desenvolvimento FIGURA 47 da leitura, a partir de uma escrita desta natureza, passa pela descontextualização do escrito do contexto 152

“(…) apreensão de um contexto pragmático (saber servir-se de um objecto ou de um lugar que comporta escrita mesmo não sabendo ler” (Chartier, 1996).

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que lhe dá sentido. É o retirar das ajudas que o contexto dá, desafiando à leitura das mesmas palavras, dos mesmos textos, noutros locais e noutros suportes. A palavra é retirada, literalmente (recortada), da embalagem ou do folheto publicitário e colada num cartaz e na folha de atividades (Figura 47), servindo de modelo para o desenho da palavra (1ªs tentativas de escrita, já experimentadas com o nome).

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4.7. APOIO EDUCATIVO – SALA DE AULA – FAMÍLIA

4.7.1. APOIAR NA SALA DE AULA OU NOUTRO ESPAÇO? O TRABALHO É QUE DECIDE. Com estas crianças, as atividades de aprendizagem da leitura e da escrita são reforçadas no tempo de apoio individual, que a educação especial disponibiliza às crianças com Necessidades Educativas Especiais,153 na sala de aula, ou no gabinete quando a escrita serve de apoio ao desenvolvimento da fala, ou noutras tarefas que requerem um esforço mais exigente, contrariando restrições aos apoios prestados fora da sala de aula154.

153

Necessidades educativas especiais ou necessidades especiais de educação? “Em 88 defendia-se que o conceito de educação especial era um conjunto de procedimentos, de materiais, de atuações…, que visavam (já nessa altura se utilizava a designação) responder a necessidades especiais. Isto também resultou duma dificuldade de tradução do inglês que tem uma forma de adjetivação esquisita, e muita gente veio a considerar as necessidades educativas especiais como necessidades de educação especial. Os ingleses dizem “special education needs”, isto é uma coisa, “special needs of education”, é outra coisa. E a confusão, que em Portugal se faz, tem a ver com a dupla adjetivação dos ingleses. Já Eça de Queiroz a utilizou, mas utilizou brilhantemente. Nos textos legais, a qualidade não é a do Eça e o resultado foi a confusão entre a adjetivação da educação e a adjetivação das necessidades que deu em Portugal a confusão que deu”. (BARBOSA, J., in LOUSADA, D., 2002.). 154

Estas restrições ao apoio educativo, em “gabinete”, ou noutro espaço, dentro do período letivo, pretendem, aparentemente, garantir que qualquer criança não é impedida de participar nas atividades propostas para a turma. Vai daí, com uma gestão da escola incapaz de avaliar uma situação excecional, fora da

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Estas saídas da sala de aula não são fruto de uma rotina marcada pela presença do professor de educação especial, se bem que só aconteça (quando acontece) quando este está presente. Mas não é a sua chegada que determina a saída para outro espaço mas sim a tarefa a realizar que influencia a escolha do local de trabalho (sala de aula, gabinete de apoio ou biblioteca/espaço multimédia). Insistimos neste ponto porque entendemos fundamental para a compreensão da perspetiva de trabalho que defendemos para todas as crianças. Sendo a natureza da atividade a desenvolver a determinar o local onde vai ser realizada, estas saídas podem acontecer com qualquer criança, desde que enquadradas num modelo de organização do trabalho que as contemple. Não é, não pode ser nunca, um exclusivo desta ou daquela criança, justificado pelas suas características físicas ou intelectuais. Estas saídas para receber apoio ao currículo, integram-se, assim, num modelo de organização do trabalho da turma que, valorizando o trabalho autónomo dos alunos, organiza os tempos e os espaços necessários ao seu desenvolvimento, criando mecanismos de ajuda no trabalho individual de cada um.

visão burocrática que justifica os seus atos, o que começa por ser um convite à reflexão sobre as medidas a adotar transforma-se, rapidamente, em apoio educativo na sala de aula como única forma de apoio permitida. E esquece-se que o apoio educativo na sala de aula não garante que um aluno com necessidades especiais de educação participe nas atividades da turma com os colegas. Quem anda “nestas coisas” sabe que uma criança pode estar sozinha no meio de outras crianças se o modelo de organização do trabalho não for pensado para ter aquela criança, naquele grupo. E quase nunca é pensado!

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4.7.2. PLANO INDIVIDUAL E DIÁRIO DE ATIVIDADES É neste espaço que a intervenção da “educação especial” se faz sentir, aparecendo o “plano individual de trabalho”155 e o “diário de atividades”156 como instrumentos fundamentais de comunicação entre a professora da turma, professor de educação especial e os pais, apresentando-se com a função acrescida de instrumento de gestão do programa educativo individual (PEI). Trata-se, portanto, de um “PIT” algo diferente, que envolve, para além do aluno, os pais e os professores num mesmo compromisso. Para que o compromisso dos pais possa ser efetivo, é programada uma sessão semanal de trabalho, com a duração de 1 hora, em horário pós-letivo (ao final da tarde), que comporta dois momentos distintos: 1º Momento – ocupado com a avaliação das aprendiza-

gens, tendo o “PIT” e o “Diário de Atividades” como instrumentos de referência. Trata-se de uma avaliação descritiva que enumera as atividades realizadas e as aprendizagens que, a partir destas, se consideram definitivas, seguindo-se a construção do novo “PIT”; 155

O Movimento da Escola Moderna instituiu um modelo de organização do trabalho de aprendizagem que contempla um tempo de trabalho autónomo, organizado através de um plano individual de trabalho (PIT), gerido pelo aluno. – este plano individual de trabalho, na tradição que nos vem de Freinet, “traduzse pela apresentação numa grelha, de um conjunto de atividades que, de acordo com a organização da turma, o aluno se propõe fazer, segundo o seu ritmo, as suas capacidades e num tempo determinado” (Nunes, A., 2001). 156

Um caderno onde se registam as atividades realizadas com o professor de apoio.

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2º Momento – realiza-se uma atividade integrada no

“PIT”, oferecendo-se, desta forma, indicações de trabalho que possam servir de exemplo para os pais (+ ou – 15 minutos de duração). Eventualmente, quando os procedimentos usados não são novos, convidam-se os pais a orientar o trabalho.157 Sabendo que, na leitura, tão ou mais importante do que a “informação visual” (escrita) é a “informação não visual” que permite compreender,158 utilizamos estas sessões para fazer muitas das escolhas do vocabulário que integra a experiência vivida e alimenta a escrita que ensina a ler.

FIGURA 48

FIGURA 49

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Um “programa educativo individual” só tem condições de sucesso se tiver a adesão empenhada dos pais, respondendo às suas expectativas, incorporando os seus pontos de vista de uma forma credível; quer dizer, não ser um “faz de conta” e serem levados a sério pela escola. 158

Na perspetiva defendida em SMITH, Frank (1999)

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Temos, assim, neste espaço aberto à família, a descoberta de muitos dos elementos que marcam o desenvolvimento do currículo. Com o “Plano Individual de Trabalho” tomam-se decisões sobre os conteúdos a incluir na semana que se inicia, com uma forte ligação ao programa do 1º Ciclo (Figura 48), de forma a traduzir os seus conteúdos em atividades, contextualizadas nas experiências quotidianas, para realizar na aula e em casa. Com o “Diário de atividades” (que circula entre a escola e o lar) registam-se procedimentos de trabalho e comportamentos observados (Figura 49); é a memória descritiva do trabalho realizado (fizemos isto ou aquilo, respondeu assim ou assado, precisou desta ou daquela dica) que permite avaliar processos e encontrar pistas para novas atividades.

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4.8. A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO INDIVIDUAL APOIADO COM ALUNOS EM DIFICULDADE

A escrita que ensina a ler é a escrita que facilita a “leitura significativa”, que não obriga a grandes esforços de descodificação, mobilizando a “informação não visual” disponível no leitor. São textos fortemente contextualizados, normalmente construídos em direto, na presença de quem aprende, num processo que defende a aprendizagem da leitura, quer através da escrita das novidades que a fala dos alunos nos traz, quer através da escrita que o trabalho sobre o vocabulário visual identificado proporciona. Então, com a novidade que uma criança nos conta, contextualizada na sua experiência, procuramos, através da interpelação que entretanto promovemos, a fala que melhor serve a sua escrita; e com os rótulos que nos lê (vocabulário visual), partimos à descoberta dos sentidos que estes escritos têm para revelar, em sessões de trabalho de texto apoiados numa grande interação verbal. Na fase de iniciação à escrita, estes trabalhos de texto, realizados na aula, nem sempre funcionaram bem com estas crianças, principalmente, quando o texto a trabalhar não era o deles. Embora respondendo às interpelações diretas da professora, desligavam com frequência, desinteressando-se das intervenções dos colegas.

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Então, para além das interações verbais desenvolvidas na sala de aula, no decurso do trabalho de texto, foi necessário promover o diálogo face a face, que recupera a memória, só possível com uma abordagem fortemente diretiva, que relaciona o texto trabalhado com conhecimentos prévios, num trabalho individual apoiado. Sempre que o texto a trabalhar, ou a palavra a explorar, era de uma destas crianças, agendava-se, com o professor de apoio, uma sessão para preparar a sua apresentação à turma, no tempo de trabalho autónomo159 (normalmente no dia anterior). É o caso do texto seguinte, construído a partir do diálogo realizado sobre um rótulo que uma das crianças trouxe para a escola. Aluno – É Skip Professor – Sabes o que é? A – É Skip. P – Pois. E sabes para que serve? A – Lavar roupa P – Sim, lavar a roupa. Quem lava a roupa? A – Mãe P – Vamos escrever então: “a mãe lava a roupa com Skip”

Escrito o texto, observado o lugar FIGURA 50 de cada palavra, procuramos, com o auxílio das palavras móveis, outras combinações com nomes conhecidos (pai, avó, tia, …), lendo-as e copiando-as de seguida, no caderno de escrita. Finalmente, passámos a frase no computador, com a qual fizemos a folha de atividades que apresentámos à turma (Figura 50). 159

Quando possível era preparado no tempo de trabalho com os pais.

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Na fala desta criança predominava a utilização de formas verbais no infinito, e o uso dos artigos definidos e indefinidos era, frequentemente, esquecido. Ora, nesta procura da fala que serve a escrita, a correção da fala decorre da reflexão que a escrita promove, permitindo “ver” os determinantes antes dos nomes, ao adquirem na frase uma existência quase física. Não se trata apenas de corrigir modos de dizer mas também de “ver” (ler) o que a fala ditou. Desta forma, fala e escrita interagem no mesmo propósito, na perspetiva que defendemos atrás.

FIGURA 51

No dia agendado, o texto é apresentado à turma, lido pelo seu autor e:

Identificam-se palavras conhecidas, apontando-se os textos ou as listas de palavras onde estas se encontram (Figura 51).

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Cada criança cola a folha de atividades no seu caderno de textos, copia a frase, preenche lacunas, substitui o sujeito por outras palavras conhecidas. Uma ficha de leitura, colocada no ficheiro respetivo, propõe um desafio para resolver no tempo de trabalho autónomo (Figura 52).

FIGURA 52

A comparação do “Skip” com o “Café Skip”, de um texto trabalhado anteriormente, deu oportunidade à professora para trabalhar a distinção entre o nome de um produto e a sua marca (Café Skip é um café. E este Skip o que é?), levando à procura, nas embalagens colecionadas, dos indícios que ajudam a identificar os nomes dos produtos e os nomes das marcas160. Mas isto já foi uma outra atividade que não envolveu esta criança. 160

Atividade inspirada em CHARTIER, A., 1996

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Os exemplos de trabalho descritos permitem-nos defender que não existe um “método especial”, com técnicas e materiais especiais para ensinar “crianças especiais”. O que existe é um modo adequado a A, que tem em conta a pessoa que é, onde está e os saberes que já domina.161 Quer dizer, ensinar uma criança a ler (com ou sem dificuldades) não é uma questão de mais ou menos recursos técnicos. A questão está no modo como encaramos o trabalho, na disponibilidade que podemos criar em A para aprender o que B consegue aprender apenas a respirar, ou de aproveitar os momentos em que esta disponibilidade se manifesta. Daqui a importância das atividades de apoio ao currículo, quer por parte de professores de apoio (do especial ou não) quer por parte da família, que completa ou antecipa o que se vive na aula, que chama a atenção para os detalhes que outra criança qualquer vê sem ajuda.

161

“Se eu realmente fosse responsável por ensinar leitura a um grupo de 35 crianças nas manhãs de segunda feira, precisaria ter certeza de que saberia o suficiente sobre leitura em geral e sobre aquelas crianças em particular para nunca precisar fazer uma pergunta como essa a um estranho”. SMITH, F (1999)

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4.9. PRINCIPAIS DIFICULDADES OU EM JEITO DE CONCLUSÃO

A escrita só ganha sentido na tradução de uma ideia. É uma competência que se manifesta com referência ao pensamento que reproduz. A leitura será, neste sentido, a forma de captar este pensamento que alguém escreveu para nós. E isto acrescenta dificuldade à dificuldade que o aprender a ler nos traz, quando este pensamento se afasta das referências que nos ligam ao mundo. Daqui a nossa insistência, quase obsessiva, numa leitura significativa, assente numa escrita que começa por ser fortemente contextualizada. A educação especial integra esta leitura contextualizada nos “currículos funcionais”, que aplica à deficiência mental, dando-lhe o nome de “leitura funcional”. Ao insistir na ideia de que as aprendizagens destas crianças devem ser funcionais, admite, assim, o pressuposto absurdo de que a leitura ou a escrita possam não funcionar para a generalidade das outras crianças. Trata-se, obviamente, de um equívoco alimentado pelo que considera um saber a adquirir: o que para qualquer criança é projetado como uma forma de aceder à leitura é visto para estas crianças como um fim em si mesmo. Quer dizer, onde a educação especial vê o seu ponto de chegada, nós vemos uma etapa de um longo caminho a percorrer, persistentemente, com a orientação

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de um adulto competente, integrando a escrita noutros contextos que lhe multiplicam os sentidos. O problema é que, nestes casos, esta persistência confunde-se, vezes demais, com a persistência do adulto que acompanha o aluno. Não é por acaso que há quem diga que estas crianças “só dão o trabalho que a gente quer”.

* Na escola, o desenvolvimento da autonomia constrói-se com o desenvolvimento da leitura/escrita. Ora, um 1º ano de escolaridade é, no princípio do ano letivo, uma turma feita com crianças a iniciar a aquisição destas competências, sem rotinas de trabalho autónomo, muito dependentes da atenção dividida que a professora pode dar. Nestas circunstâncias, a gestão do tempo a favor de quem apenas trabalha (aprende) sob o olhar atento de quem se senta ao seu lado, sai largamente prejudicado. O ideal seria ter a atenção acrescida de um auxiliar competente, durante o período de instalação das rotinas de trabalho autónomo que libertarão a professora para um olhar mais persistente sobre os alunos que mais precisam. Daqui ressalta o carácter organizacional das dificuldades que temos para resolver, que passa pela invenção de uma fórmula que permita perceber a escola, com as estruturas de apoio, a família e outros espaços onde a aprendizagem se dá, como instâncias de um espaço educativo alargado.

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O aprofundamento dos modelos de organização do trabalho de aprendizagem e/ou do papel representado pela educação especial, aqui apenas esboçado, pode oferecer excelentes contributos na procura desta fórmula que passará, inevitavelmente, pela invenção de um espaço de organização/comunicação capaz de convocar outros olhares necessários ao desenvolvimento das crianças com grandes limitações na sua educação escolar. Um espaço que as medidas do “isto é uma espécie de escola a tempo inteiro” tendem a inviabilizar, ao pretenderem estilhaçar, numa lógica burocrática que passa à margem da pedagogia, um sistema de organização escolar (1º Ciclo) que, pese embora todos os defeitos que lhe apontam, será o que funciona menos mal. Neste sentido, seria mais razoável aprofundar o modelo mas, em vez disso, assistimos a uma “balcanização disciplinar que se agiganta, com todas as consequências culturais e politicas que revela”.162

162

NIZA, Sérgio, 2007

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CONCLUSÃO ENTRE LER E ESCREVER O MUNDO: O PAPEL DO TEXTO LIVRE E DA REDAÇÃO

“Em vez de considerar, como faz a escolástica, que a criança nada sabe – o que evidentemente é falso – e que pertence ao educador ensinar-lhe tudo – o que é pretensioso e irrealizável – partimos para o nosso ensino das tendências naturais existentes em todo o indivíduo saudável, para a acção, para a criação, para o amor do belo, para a necessidade de se exprimir e de se exteriorizar.” 163

Freinet

163

1978: p.31

171


172


L

ER O MUNDO E ESCREVÊ-LO

A leitura precede a escrita, está escrito algures neste livro. Mas não é para a leitura da escrita que remetemos esta expressão, mas para aquela que a escola sempre se descuida em olhar: “a leitura do mundo”, para usarmos uma expressão de Paulo Freire, que dá sentido à palavra “mundo”. Sem a leitura que as antecede e as carrega de sentido as palavras simplesmente não tinham como (porque) existir. “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. (…) Por isso é que, ao chegar à escolinha (…) já estava alfabetizado. Eunice continuou e aprofundou o trabalho dos meus pais. Com ela a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a leitura do mundo. Com ela a leitura do mundo foi a leitura da “palavramundo”.164 A leitura da “palavramundo” traz o mundo de nós, que o lemos; quer dizer, antes de ler a palavra, já tínhamos a sua leitura em nós. Como diria João dos Santos, só aprendendo a ler o mun-

164

FREIRE, Paulo (2000)

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do à nossa volta,165 com as palavras que aprendemos para lhe dar sentido, é que podemos aprender a ler de facto. Freinet já intuíra a necessidade de ensinar cada criança a ler o mundo que se desenrola ao seu redor, ensinando-a a procurar as palavras com que pudesse dizê-lo melhor. Por isso abriu a escola para deixar todo este mundo entrar, a partir das palavras que as crianças têm para contá-lo. Mas o nosso mundo não é nosso mundo apenas; é também o mundo onde nos cruzamos com o mundo do outro e de que só nos damos conta se nos dispusermos a conhecê-lo. Ora, com a instituição do «texto Livre», provocamos o intercâmbio entre estes mundos que se cruzam na escola “(…) na medida em que os textos livres são lidos e discutidos na aula; criam um laço entre a vida escolar e a experiência exterior; orientam a vida da classe, guiando as atividades, regulando as relações sociais entre os alunos (…)”.166 A novidade, o relato do episódio do seu quotidiano ou as estórias que povoam a sua imaginação são excertos destes mundos que alimentam e dão sentido à escrita das crianças que aprendem a escrever na escola: e “a decifração da palavra flui naturalmente da leitura do «mundo particular»”.167 E ao escrever para os outros é também para estes que a leitura precisa de ser clara. Neste sentido, a criança aprende a fazer um discurso que a afasta do improviso e, numa “interlocução real ou sugestionária”, 165

“Ensinaram-me a ler o mundo à minha volta” é o título de uma coletânea de livros de João dos Santos, publicada pela Assírio & Alvim, em 2008. 166 SCHNEUWLY, Bernard (1994). 167

“fluía” na expressão original. In FREIRE, Paulo (2000)

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reflete-o melhor para si.168 Foi também esta importante dimensão da escrita (a escrita como instrumento de reflexão) que nos esforçamos por mostrar aos nossos alunos, desenvolvendo-a também com eles, no decurso das actividades que promovemos: “Quando a escrita é instrumento que ajuda a pensar, a comunicação, obviamente presente, não é a prioridade, mas a clareza dos pensamentos que penso. Quanto mais sentido tiver para o outro, mais sentido terá para mim. Convoco então o outro (para o meu mundo) no leitor que tenho em mim”.169

* Enfatiza-se muito a importância do «outro» no prazer da escrita – fizemo-lo nós ao longo deste livro –; convém não confundi-lo com o «leitor consumidor» do nosso texto que, sendo importante, desconhecemos, contudo, a dimensão desta importância. Mas sabemos que ele “(…) não esgota (nem de longe, nem de perto) o prazer todo; não pode esgotar! Se fosse assim, se esgotasse, só a garantia de um leitor para o meu texto me mobilizaria a escrevê-lo. Mas eu não sei se o terei no futuro, se (ou quando) der este texto por terminado. Acho que o prazer da escrita assenta nesta incerteza: ter a expectativa de um leitor sem o ter por garantido: escrevi tanta coisa que nunca fiz sair do caderno (continuo a escrever ainda) e nem por isso deixei de escrever! Mesmo um texto com honras de imprensa, de figurar no 168

Mais real que sugestinária nos trabalhos de texto que o nossos alunos realizaram connosco. Ver atrás, em “Entre o método natural e o texto livre”, p.60. 169

LOUSADA, Daniel. Reflexões sobre leitura e escrita (texto fotocopiado, s/d).

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jornal da escola, não dá um leitor como certo: a imprensa apenas alimenta a expectativa”.170 Quer dizer, a certeza do leitor dá-se apenas no decurso do “trabalho de texto”: a certeza da presença daquele “outro” a quem demos tanta importância; o leitor que realmente importa porque nos acompanha na escrita do texto, ajudando-nos a escrever o mundo pela leitura dele, que faz connosco; um leitor real nas fases iniciais de aprendizagem da escrita, que dialoga connosco olhos nos olhos, a partir do qual construímos (em nós) um leitor virtual que nos acompanhará vida fora. Sem este leitor virtual a escrita competente não passa de uma miragem. É ele que nos faz voltar à palavra, à frase, ao texto que acabamos de escrever, para confirmar que aquela escrita reflete o pensamento tal qual o pensamento pensou.

E

SCREVER NA ESCOLA E ESCREVER PARA A ESCOLA

Durante um congresso do Movimento da Escola Moderna, que decorreu em Lisboa, em julho de 1991 (ou 92, não estamos certos), de grande expressão mediática, lia-se em jornais da capital, em grandes títulos, que “a criança deve escrever o que quer, quando quer e lhe apetece”. Mas depois deixou por dizer algo muito importante: a escrita é obrigatória; não há como não escrever na escola! Não pode haver!171

170

LOUSADA, Daniel. Reflexões sobre leitura e escrita (texto fotocopiado, s/d).

171

Nos jornais, por vezes (ou vezes demais) escreve-se de megafone na mão: o importante não é a notícia, mas o ruído que provoca.

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Sem discutir a bondade ou os pecados deste “slogan”, entendemos que o problema não está na escrita que uma criança deve escrever livremente, mas no que fazer para que ela escreva. Sejamos claros: sem escrita, não há como ter escrita livre! Neste sentido, escrever é a condição necessária (se bem que não suficiente) para que a escrita livre exista. E aqui colocamos, necessariamente, o problema da motivação ou da mobilização, como preferimos dizer, para nos afastarmos do conceito que, na tradição que nos chega de uma certa psicologia, afasta a motivação da prática.172 Que é preciso fazer, para que a escrita não seja um permanente sacrifício? Nem toda a escrita nos dá prazer, e há textos que se escrevem, mesmo, penosamente! Veja-se o caso da escrita da ata daquela reunião interminável em que passamos o tempo todo a olhar para o relógio. Qual de nós bate as palmas de contentamento porque lhe calhou escrevê-la em sorte? Ninguém delira com a escrita destas atas! Mas não é porque dão muito trabalho, mas sim porque são inúteis! Como diria Wanderley Geraldi, elas têm “muita escrita e pouco texto (ou discurso)”.173 Não é, assim, 172

“Nunca consegui entender o processo de motivação fora da prática, antes da prática. É como se primeiro devesse estar motivado para depois entrar em ação (…). Esta é uma forma muito antidialetica de entender a motivação (…). O currículo padrão lida com a motivação como se esta fosse externa ao ato de estudar (escrever no caso que nos traz aqui). A melhor coisa é sempre aquela que você não está fazendo no momento” (FREIRE, Paulo e SHOR, Ira, 1986). 173

Wanderley Giraldi, referindo-se às atividades de escrita na sala de aula, distingue a “produção de textos” da “redação”, defendendo que quando se diz que uma criança escreve uma redação ela escreve para a escola, e quando produz um texto escreve na escola! Nesta distinção associa a redação à escrita que se aprende a partir da escrita das cartilhas, sem qualquer tipo de intenção comunicativa, “precisamente porque se constroem nestas atividades (…) respos-

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de excluir a hipótese de que a rejeição que algumas crianças revelam relativamente a muitas das atividades de escrita, que são obrigadas a realizar na escola (e para a escola), estará no sentido (ou falta dele) que esta escrita regista, e não no trabalho que lhes dá.174

* A escola tem duas formas de convocar o texto: a reda175

ção

(também chamada de composição livre ou sugerida no formato e no tema) entendida como tarefa que ocorre num tempo e num espaço determinado (que pode passar por um trabalho de casa) e o texto livre que, na tradição de Freinet, nos chega, à partida, sem agenda ou conteúdo a condicioná-lo. Assim uma criança:

escreve uma redação quando a sua escrita é encomendada pela escola, personificada na figura do professor:

tas diferentes daquelas que se constroem quando a fala (e o discurso) é para valer” (GERALDI, Wanderley, 1991). Qual é o sentido da expressão: “é a pua papu” ou o “papu papa a tia papá”? 174

Num discurso que parece mais a procura da desqualificação da pedagogia do que da promoção da aprendizagem, assiste-se ultimamente à defesa da “aprendizagem que dá trabalho por oposição à aprendizagem que dá prazer. E esta insistência é de tal ordem que, de repente, se perde o sentido do debate e se assume que o trabalho é sacrifício! Daqui a afirmar-se que a aprendizagem que não é sofrimento é desleixo ou falta de rigor vai um passo! E, no entanto, a aprendizagem é trabalho que, como qualquer trabalho comporta, por vezes, sacrifício. A dicotomia prazer/trabalho vê-se assim legitimada, como se o trabalho não pudesse ser fonte de prazer” (LOUSADA, Daniel. Aprender com trabalho ou ter que sofrer para aprender. In Escola Moderna, nº28-5ªsérie, 2006: pp.39-42). 175

Distinguimos a redação que faz sentido escrever da redação que não tem sentido nenhum (e, porque não tem sentido, não consideramos aqui).

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escreve-a na escola, ou noutro espaço qualquer, para a escola; escreve um texto livre quando algo em si lhe pede que escreva, na escola ou em qualquer espaço onde a vontade de escrever desperte: naquele “estado de escrita” que procuramos ao longo deste projeto.

Houve tempos em que colocávamos em oposição estas duas formas de convocar a escrita; falávamos de texto livre por oposição a outras formas de fazer uma criança escrever: de um lado a escrita livre e do outro todas as outras, numa espécie de confronto moral que procurava desacreditar as formas tradicionais de convocar o texto. Ora, o texto livre não é uma instituição absoluta que procura excluir da escola qualquer outra forma de solicitar a escrita. E então, com a redação, defendemos o texto que se quer libertar da vontade que o convocou, integrando-o no mesmo processo de produção que a instituição do texto livre defende: a redação não tem por que ser apenas exercício de escrita que o professor corrige. Defender o texto livre como única forma legitima de solicitar um texto na escola seria defender aquele slogan (já enunciado atrás) de que a criança deve escrever unicamente o que quer, quando quer, se quiser. E isto seria um absurdo! Há coisas que só aprendemos a gostar porque alguém insistiu que experimentássemos, colocando-se a nosso lado para participar connosco da experiência. 176 E então, perante uma experiência bem sucedida, 176

Mas esta insistência, esta participação solidária precisa de amarrar prazer: quem insiste precisa, na forma como insiste, de mostrar que gosta do que está a

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o mais provável é que ela se repita, sem necessidade de um novo convite, no “espaço de liberdade psicológica” instituído na sala de aula, que dá pelo nome de Texto livre.177 A escrita precisa de entrar na escola para cumprir a sua função, da mesma forma que a cumpre noutro espaço social qualquer, naturalizando-se nas nossas vidas. Mesmo na vida que se desenrola lá fora, nos espaços que a escola não controla, escrevem-se poucos (para não dizer pouquíssimos) textos livres;178 até os escritores, às vezes, não são muito livres na sua escrita: quando escrevem, por exemplo, por uma questão de sobrevivência. Mas nem por isso se desqualifica a sua escrita. Uma redação, apenas porque alguém nos pede que escreva, não tem de ser uma patetice qualquer, sem sentido, nem precisa vir despojada de prazer. Por exemplo, as recriações descritas no livro “Escultor de Palavras” que as crianças escreve-

oferecer. Como refere Cadzen (citado por PEREZ, F. e GARCIA, J., 2001), o sucesso na aprendizagem da escrita tem mais a ver “com os nossos esforços para aumentar a confiança das crianças em sua própria capacidade de aprender do que na motivação inicial” que as crianças trazem para a tarefa, evitando destruir as suas energias no decurso do processo. 177

No entendimento que defendemos no decurso deste projecto de autoformação cooperada, pode integrar a leitura de um texto já pronto (de autor ou outro). Daqui a necessidade de alargar este espaço, para que esta possibilidade, mesmo que apenas possibilidade, exista!

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De facto, escreve-se pouco qualquer tipo de texto. Daqui a importância de projetar a redação como um espaço em deslocação para o texto livre. Com efeito, só com a oportunidade de viver a escrita livremente, sem pressões que nos empurrem para a escrita de um texto, é que a escrita terá condições de se transformar um hábito nas nossas vidas. Defendemos, então, o prazer do texto em todas as formas de escrita (livre ou não).

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ram a partir da leitura de poemas explorados na aula, 179 se não são «redações», serão no mínimo textos marcados pelo mesmo espaço de solicitação da escrita; as crianças só os escreveram porque se encontraram connosco na escola e responderam ao nosso desafio, mas nem por isso deixaram de tirar prazer da escrita que criaram. Achamos, no entanto, que é de evitar a redação com tema livre: “escreve sobre o que te apetecer”. E se não apetecer escrever? E se não houver coisa nenhuma para dizer? Quer dizer, assumimos a redação pelo que ela pode trazer de facto: sugestões de escrita, de temas que podemos discutir, dando pistas, propondo desafios e que, de outra forma, os nossos alunos não saberiam como desenvolver. Porque, para escrever livremente, é preciso aprender a “(…) mobilizar recursos linguísticos para enfrentar um tema (…), que não são previamente aprendidos para depois serem postos em funcionamento, lendo textos, debatendo temas, esquematizando intervenções, fazendo anotações, revisando conceitos e conceções: eis a preparação para escrever textos: conviver com a expressão e não analisar ou descrever os recursos de expressão.”180 E os temas livres? … Bom, se são livres, saídos das escolhas das crianças, não vamos amarrá-los ao tempo e espaço que a redação marca: vamos dar-lhes a liberdade de aparecer, quando aparecerem, se aparecerem, onde quiserem aparecer, quer dizer, no espaço que instituímos para esta escrita: o “Texto Livre”, um espaço que, no dizer de Pierre Clanché é de “liberdade psicológi179

1º volume deste projeto autoformação cooperada, “Escrita: uma forma de multiplicar os sentidos”. 180

GERALDI, J. Wanderley (2008)

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ca não decretado mas materialmente instituído”.181 Um espaço criado para que a “escrita livre” (e a liberdade para escrevê-la) exista num mundo onde a escrita não pode deixar de ser obrigatória. Vemos, então, na «redação», um espaço em deslocação para o texto livre, com a dimensão que o «texto livre» lhe permitir que tenha, ou seja, que diminui à medida que o texto livre se alarga! Porque quem souber trazer para a escrita, livremente, a sua «leitura do mundo», estará em condições de ler melhor o mundo que se estende à sua volta e, neste sentido, preferirá a escrita que faz dele, livremente, à escrita que outros lhe peçam que faça.

181

CLANCHÉ, Pierre (1977)

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188


ANEXOS

ANEXO 1

Era uma vez ANEXO 2

Renovar a imagem do jornal escolar ANEXO 3

Registo de textos produzidos ANEXO 4

Ficheiro de escrita ANEXO 5

Escrever sobre um tema numa redação ANEXO 6

Efeito de John Ridley Stroop

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ANEXO 1 ERA UMA VEZ…

“Quase todas as crianças sabem que quando se lê «Era uma vez…» trata-se de uma história infantil. Sabem que podem esperar que apareçam personagens fantásticas (fadas, heróis, monstros, animais falantes, etc.)”.182

182

CURTO ET ALL, (2000) Escrever e Ler: como as crianças aprendem e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler. Porto Alegre: Artmed.

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“Como interlocutora e escriba, a professora imprime também um carácter ao texto. Ela não se anula nessa relação. Ela assume a relação de ensino que sustenta e dá sentido à sua tarefa de ensinar. Nesse contexto, a escrita não é uma mera transcrição da fala, e o texto não é uma «gravação do que foi dito». O Texto é uma forma de organização das ideias” (SMOLKA, Ana. 2003).

Escrever estórias curtas; Construir frases complexas; Legendar gravuras; Ler com clareza e entoação.

Com frequência lemos estórias. E frequentemente “descemos” à biblioteca da Escola. Manuseamos livros e, numa espécie de jogo, tentamos adivinhar o título procurando nas capas os elementos que nos ajudem a decifrar o que nos querem dizer. Hoje chegou a nossa vez, não de ouvir ler mas de escrever uma estória, que a seguir vamos ler. E como muitas das estórias que ouvimos, esta também irá começar por “era uma vez…” Optamos pela construção de um texto em cadeia, em que a última palavra da frase, que cada miúdo propõe, é a deixa para a frase seguinte. Sem personagens projetadas ou cenários pensados à partida, partimos à aventura.

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E continuamos a contar como era o cão: Peludo de pelo castanho. Castanho clarinho. Clarinho como o sol.

Mas uma personagem só, dificilmente faz uma estória: O cão encontrou um coelho. Um coelho que estava na toca Na toca a descansar.

E aconteceu… Claro que tem de acontecer qualquer coisa de emocionante, com movimento: O cão ladrou e o coelho assustou-se. Assustou-se e fugiu. Fugiu para o pinhal. Pinhal com muitos pinheiros. Pinheiros para se esconder.

A estória já vai longa, surgem as primeiras hesitações. E antes que o entusiasmo, acabe a professora sugere: O cão fala com o coelho para ele não fugir. Como vamos escrever?

E agora recordamos para outros continuarem!

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O texto da estória foi passado no computador pela professora, os desenhos digitalizados e, através de “corta e cola”, juntou-se cada frase à respetiva ilustração. Preparou-se a apresentação à turma do 3º Ano que iria ser convidada a continuar a estória, ficando cada criança responsável pela leitura de uma cena. Estudou-se a entoação a dar a cada frase:

Como ler o título? Como ler as frases que descrevem as personagens? Como ler o encontro do cão com o coelho? E a fala do cão, que entoação lhe dar? Tudo foi estudado ao pormenor, incluindo a coordenação da leitura de cada frase com o ritmo a dar na transição das cenas. E chegou o dia da apresentação! Alinhados em frente do televisor, cada criança, na sequência ensaiada, representou a frase que tinha para ler, com o formalismo que uma apresentação pública deve ter. Através da técnica utilizada na escrita desta história, o texto desenvolve-se com frases curtas, com muitas repetições, proporcionando a oportunidade de realizar exercícios de identificação de palavras.

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No final da apresentação da estória, as crianças foram desafiadas a identificar as palavras iguais e a eliminar as que não faziam falta para contar a estória. De seguida, uma criança da turma convidada do 3º Ano leu o texto e verificou-se que continuava a contar a mesma estória. A professora chamou a atenção para a expressão “e fugiu para o pinhal com muitos pinheiros”, perguntando se o coelho ia com os pinheiros às costas”. E surgiu como alternativa a expressão “e fugiu para o pinhal onde havia muitos pinheiros”, para não deixar dúvidas. Era uma vez um cão peludo, de pêlo castanho clarinho como o sol. O cão encontrou um coelho que estava na toca a descansar. O cão ladrou e o coelho assustou-se, fugindo para o pinhal onde havia muitos pinheiros para se esconder. - Coelho, não fujas. Eu quero brincar contigo.

Sugerindo que se tirasse o “e”, a professora perguntou o que seria preciso fazer ao “fugiu”. Depois de algumas tentativas e erros, chegou-se à expressão final:

fugindo para o pinhal onde havia… 194


ANEXO 2 RENOVAR A IMAGEM DO JORNAL ESCOLAR 183

“A partir de agora a criança já não escreve apenas o que lhe interessa a ela; escreve aquilo que nos seus pensamentos, nas suas observações, nos seus sentimentos e nos seus actos é susceptível de interessar os seus camaradas e de vir a interessar os seus correspondentes” Freinet

183

184

Por decisão do conselho de docentes o trabalho de coordenação do jornal foi atribuído ao 4º ano, que compõe o conselho de redação e que, em assembleia convocada para tal, dá conta do trabalho realizado, sujeitando-o à aprovação da escola. 184

FREINET, Celestin (1974) O Jornal Escolar. Lisboa: Editorial Estampa.

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“(…) se funcionarem o jornal e a corres- Saber organizar e classificar pondência, a criança, como acontece em informação. casa, não se cansará nunca de contar os elementos da sua vida, e não só da sua vida exterior, mas também de todo esse pensamento profundo que a escola nunca aflora e que constitui, sabemo-lo hoje bem, o motor profundo do seu comportamento”... (FREINET, C.1975) O projecto de um jornal escolar oferece uma excelente oportunidade para reflectir sobre a forma dos textos a produzir, tendo em conta a função que lhes é atribuída. Ao reflectirmos sobre a função dos textos que desejamos escrever criamos o estímulo necessário à procura dos recursos que melhor toquem os sentidos que queremos despertar. Decidimos, então se queremos “dizer coisas” ou “falar das coisas”.

Quisemos transformar uma publicação artesanal num objecto mais parecido com um jornal, mais agradável à vista, onde gostássemos de ver os nossos textos. Para isto tivemos que aprender a utilizar os instrumentos de produção e organização dos profissionais da imprensa. Começamos então por comparar o nosso jornal com outros jornais para ver o que podíamos fazer:

Que podemos fazer à «Padeirinha» para termos um jornal parecido com um jornal a sério? 196


Utilizar folhas maiores Utilizar um programa informático para fazer jornais Organizar os textos por temas (criar secções) Escolher um conselho do jornal (conselho de redação) e um diretor para o jornal. QUAIS OS CONTEÚDOS DO JORNAL? A análise dos jornais permitiu verificar que estes privilegiam as notícias sobre:

e que algumas notícias, além de relatarem o acontecimento, falam também sobre ele, registam uma opinião sobre o assunto tratado, ajudando-nos a compreender melhor o que se passa. Esta análise ajudou a projetar a estrutura e o conteúdo do primeiro número, a submeter à aprovação da assembleia da escola.

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QUE SECÇÕES CRIAR?

AVALIAR O JORNAL Pronto o jornal e concluída a sua distribuição, procedeuse à avaliação do trabalho realizado através da apreciação do produto, a face visível do que foi feito. É claro que há outras avaliações a fazer, por ventura mais importantes, relacionadas com o que aprendemos no decurso do processo. Mas o que nos interes198


sava naquele momento era perceber o impacto que a nova imagem do jornal produziu em nós e nos outros. E este parece ter sido significativo:

Pela primeira vez o jornal esgotou; Ficou mais bonito; Está mais parecido com um jornal; A primeira página devia ter as letras maiores e mais fotografias. Porquê? Porque os jornais que se compram lá fora têm muito pouco para ler na primeira página: são só os títulos e pouco mais, e muita imagem – explicou alguém. Comparamos, em seguida, o resultado final do nosso trabalho com as intenções inicialmente projectadas. E verificamos que algumas não foram cumpridas (algumas secções não criadas):

“Desporto” – porque o desporto escolar ainda não começou “Aconteceu lá de Fora” – porque o que aconteceu lá fora não teve muito interesse para nós; não estivemos muito atentos ao que se passou fora da escola; porque lemos poucos jornais e revistas ou não lemos mesmo “Gostamos de Ver, Ler, Ouvir…” – porque falamos entre nós das coisas que gostamos de fazer mas não estamos habituados a escrever sobre elas.

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CONCLUINDO O Jornal serviu para reflectir sobre a escrita que produzimos e desfazer a ideia que temos quanto ao investimento que julgamos fazer nesta área. Escrevemos todos os dias! Até podemos escrever muito. Acreditamos que cada uma das nossas crianças escreveu mais de uma folha A4, que daria para alimentar mais de uma vintena de jornais. Ma não foi o que aconteceu, o que explica, em parte, a dificuldade que sentimos em alimentar as oito páginas projectadas. Quer dizer que o problema reside mais na diversidade do que na quantidade dos textos produzidos.

NOTA: Este jornal não dispensa os jornais de turma; bem pelo contrário: procura promovê-los para se alimentar, também, com os seus textos.

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ANEXO 3 REGISTO DE TEXTOS PRODUZIDOS

O registo de textos produzidos é uma tabela de dupla entrada (exemplo na página seguinte) que permite ler o nível de produção livre (sem necessidade de uma encomenda) da turma, numa determinada unidade de tempo (neste caso, uma semana), e que nos convida a prestar atenção à criança que tem a sua linha pouco preenchida. A cada quadrícula marcada com um X corresponde um texto produzido. Se este X for circundado assim X , significa que o texto foi objeto de “trabalho de texto” com a turma. Este registo pode diferenciar os textos por tipos de escrita: Estórias, contos… Sobre o que li – podem ser ficheiros de escrita (ANEXO.4) Notícias Relatos Cartas Poemas Banda desenhada ………………………

ou pode não fazer diferenciação nenhuma, ou assentar noutro tipo de classificação mais de acordo com a vida da turma. 201


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ANEXO 4 FICHEIRO DE ESCRITA185

Este ficheiro apresenta um conjunto de fichas de trabalho com dois tipos de propostas: 1. A escrita que a leitura de um poema pode provocar. O poema esconde uma estória (ou história), contando-a incompletamente. É feito de emoções e de tensões que a estória não completamente contada deixou. Alguns poemas escondem de tal forma o enredo que é impossível ler a trama que o fez assim. Outros, com a porta entreaberta, deixam sair um pouco da estória num convite a preencher lacunas; e abre-se, assim, espaço à nossa escrita para com ela entrarmos melhor no sentido do texto, recriando-o ou escrevendo sobre os sentidos que ele despertou em nós.

2. A escrita da história (ou estória) que se encontra por de trás de uma notícia. Uma notícia conta o acontecimento que provocou a notícia, mas deixa muita coisa por contar. A maior parte das vezes, fala pouco das pessoas e quase nunca as põe a falar. O desafio proposto neste tipo de ficha de escrita é imaginar o que a notícia não contou.

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Ficheiro disponível em www.agoragaia.pt.vu

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ANEXO 5 ESCREVER SOBRE UM TEMA NUMA REDAÇÃO

Vemos a «redação» não como um tipo de escrita mas como a forma que a tradição escolar fixou para pedir aos seus alunos que escrevam um texto, num tempo e num espaço determinado, numa coabitação que procuramos sem conflitos com o «texto Livre». Por isso não pedimos a uma criança que escreva, uma redação (que se caracteriza, entre outros, pelos constrangimentos de horários para cumprir), sobre um tema à sua escolha (redação de tema livre); e não é porque achemos que as crianças não tenham (ou não devam ter) temas sobre os quais gostassem de escrever: é porque corremos o risco de estar a desperdiçar estes temas nos momentos em que a vontade de escrita não seja a melhor. Entendemos que se o tema é livre, é preferível deixá-lo acontecer noutra forma de convocar a escrita (num “estado de escrita”), mais de acordo com a liberdade de um tema: no espaço que «texto livre» marca, onde a escrita ocorre liberta dos constrangimentos de espaços e de agendas fixadas para cumprir a tarefa. Na «redação», diferentemente do «texto livre», os temas são da nossa escolha, com espaços e horários marcados numa agenda: podem ocorrer na escola ou como trabalho de casa mas sempre com um prazo para cumprir. No entanto, tem na nossa 206


sala de aula um espaço onde, eventualmente, pode cruzar-se com o «texto livre»: o espaço marcado para o «trabalho de texto». Neste espaço, marcado pela «redação», os temas vão do aparente «no sense» (se eu fosse uma placa de sinalização de trânsito, ou qualquer outro objeto estranho para convidar alguém a ser) até aos temas mais concretos (reais ou inventados), relacionados com experiências de pessoas comuns (relato de um sonho, de uma viagem, etc., etc.). O tema, umas vezes imposto e outras sugerido de entre um conjunto reduzido de escolhas (2 ou 3 não mais), tem sempre, da nossa parte, uma exploração prévia (salvo se for parte de um teste), que visa contextualizá-lo nas nossas vidas e facilitar a escolha se esta opção for oferecida. Há como que um debate sobre o tema proposto (ou temas; daqui, por uma questão de tempo, o reduzido número de escolhas), no decurso do qual se procura elaborar uma espécie de guião que ajude a orientar a escrita. Por exemplo: “SE EU FOSSE UMA PLACA DE SINALIZAÇÃO DE TRÂNSITO”186 1. Formato do texto: descritivo; uma estória que envolve ação entre personagens… 2. O papel que vou ter: ativo; contemplativo; observador da ação que se desenvolve à minha frente… 186

Tema ensaiado por nós num dos encontros que levamos a cabo, no âmbito do projeto de autoformação cooperada em que estamos envolvidos(as), na convicção de que só experimentando, entre nós, com a nossa escrita, os procedimentos que usamos com os nossos alunos, estaremos em condições de compreender as dificuldades que poderão experimentar.

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3. Os tipos de sinais de trânsito conhecidos: proibição, obrigação, perigo… 4. O sinal que escolho ser: se for importante para a estória. 5. Local onde me encontro: rua movimentada da cidade; estrada deserta onde quase nada acontece… E explicamos que, à medida que nos vamos situando em cada um dos pontos, vamos condicionando a nossa posição nos pontos seguintes. Assim: um papel mais ativo talvez peça a escolha de uma rua movimentada, e a definição da personagem num tipo de sinal, talvez, mais interventivo (de proibição ou de obrigação). Mas se o papel for passivo ou contemplativo, a escolha do local não será tão importante e o tipo de sinal não terá muita influência no desenrolar da ação; talvez precisemos de outros personagens: automobilistas ou peões com os quais vamos interagir no desenrolar da ação…

Definido o contexto geral da estória ou do relato que vamos escrever, ocupamo-nos do que poderá ser o seu conteúdo. E para nos ajudar na tarefa podemos escrever uma lista de «palavras chave», de alguma forma relacionadas com o tema, que nos possam inspirar: carro, camião, autocarro, mota, bicicleta, ambulância; condutor, automobilista, peão (homem, mulher, rapariga, rapaz…), ciclista, motociclista, polícia; 208


travagem, velocidade, pressa, derrapagem, despiste; rua, cruzamento, rampa, estacionamento; passadeira de peões; hora de ponta, principio do dia, fim do dia, meio da manhã, meio da tarde, anoitecer, noite, madrugada; buzina, sirene, alarme; E ensaiamos o início da nossa estória: “O sol já tinha nascido. Era hora de ponta. As pessoas, apressadas, caminhavam impacientes para chegarem rapidamente ao seu destino. E eu ali, numa das ruas mais movimentadas da cidade, parecia que ninguém dava por mim: afinal quem liga a um sinal de passagem para peões? ” Ou “O sol já estava escondido atrás das montanhas. Anoitecia. E eu ali no meio daquele deserto sem entender muito bem por que me tinham colocado ali: afinal para que é preciso um stop se não há carros para fazer parar? ” Neste tipo de redações, o conteúdo não é propriamente a prioridade para nós, mas os recursos linguísticos que podemos mobilizar, para dotar uma ideia das palavras que lhe reforçam o sentido, a que não é alheio o desenvolvimento do sentido estético associado à escrita.

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ANEXO 6 “EFEITO DE JOHN RIDLEY STROOP”

“Nomeie as cores das palavras no lado esquerdo da folha e depois as do lado direito. No caso do lado direito, acontece o que se chama interferência – palavra/cor, ou seja, temos dificuldades em não ler a palavra e apenas nomear a sua cor. Este efeito de John Ridley Stroop foi descrito, pela primeira vez, em 1935 (com cores ainda é mais claro!), tem hoje o seu nome e mostra, de forma muito impressionante, o grau elevado do automatismo da leitura das palavras”.187

187

Citado por SPITZER, Manfred (2007) Aprendizagem: neurociências e a escola da vida. Lisboa: Climepsi Editores, p.216

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OS AUTORES ANTÓNIO NUNES Concluiu o curso do Magistério Primário do Porto em 1973, tendo exercido a sua atividade como professor do 1º ciclo até 2005 Ŷ Especializou-se em educação especial, na área da deficiência mental e dificuldades múltiplas, na ESE do Porto, em 1993, e concluiu o mestrado em ciências da educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade do Porto, em 1999; em 2008 concluiu o Doutoramento em pedagogia, pela Universidade de S. Tiago de Compostela Ŷ Ocupou, entre outros, os seguintes cargos: 1987 a 1989, Presidente do conselho pedagógico da Equipa de Educação Especial do Porto; de 1989 a 2006, Responsável de Área Pedagógica em Equipas de Educação Especial do Porto e Matosinhos Ŷ É sócio do Movimento da Escola Moderna, tendo participado ativamente nos seus projectos de formação até 2003 Ŷ Lecionou nas seguintes instituições de ensino superior: ESE Jean Piaget; Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Macau e Instituo Superior de Estúdios Psicológicos de Barcelona Ŷ Autor do livro “Freinet: atualidade pedagógica de uma obra”, publica artigos em revistas de educação, que refletem sobre a prática pedagógica, e tem participado em projetos de formação contínua de professores Ŷ ARISTIDES CUSTÓDIO Concluiu o curso de professor do 1º ciclo na Escola Superior de Educação Jean Piaget, em 1995, e a licenciatura na variante de Matemática e Ciências da Natureza, exercendo, atualmente, a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Foi professor na Escola Superior de Educação Jean Piaget Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores e publicado artigos sobre educação, em revistas da especialidade Ŷ CLÁUDIA XAVIER Concluiu a licenciatura em professora de 1º ciclo variante de português/francês na Escola Superior de Educação de Bragança, em 1995, exercendo atualmente a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores Ŷ CRISTINA MIRANDA Concluiu o curso de professora do 1º ciclo na Escola do Magistério Primário do Porto, em 1978, exercendo atualmente a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Concluiu a licenciatura de Complemento de Formação Científica e Pedagógica para Professores do

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1º ciclo do Ensino Básico, Especialização em Estudo do Meio, na Universidade Aberta, em 2005 Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores Ŷ DANIEL LOUSADA Concluiu o curso do Magistério Primário do Porto em 1973, tendo exercido a sua atividade, como professor do 1º ciclo do ensino básico, até 2005 Ŷ Especializouse em educação especial, na área da deficiência mental e dificuldades múltiplas, na ESE Jean Piaget de V. N. Gaia, em 1994 e, em 2002, concluiu o mestrado em ciências da educação, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade do Porto Ŷ Foi professor de educação especial, responsável de área pedagógica de uma equipa de educação especial, de Vila Nova de Gaia, e membro de uma equipa de coordenação de apoios educativos, do mesmo concelho Ŷ É sócio do Movimento da Escola Moderna, tendo participado ativamente nos seus projectos de formação até 2003 Ŷ Lecionou na Escola do Magistério Primário de Chaves e na ESE Jean Piaget Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores, e publicado artigos em revistas de educação que refletem sobre a prática pedagógica Ŷ DULCE BARREIROS Concluiu o curso de professora do 1º ciclo na Escola do Magistério Primário do Porto, em 1978, exercendo atualmente a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Especializou-se em Gestão e Coordenação pedagógica, em 1999, encontrando-se, atualmente, a concluir mestrado em ciências da educação Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores Ŷ FERNANDA SANTOS Concluiu o curso de professora do 1º ciclo na Escola do Magistério Primário do Porto, em 1979, exercendo atualmente a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Especializou-se em Direção Pedagógica e Administração Escolar, na ESE Jean Piaget – V. N. Gaia, em 1993 e em Educação Especial, na área da deficiência mental e dificuldades múltiplas, em 1995 Ŷ Foi professora de educação especial Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores e publicado artigos sobre educação, em revistas da especialidade. É sócia do Movimento da Escola Moderna, tendo feito parte da coordenação do Núcleo Regional do Porto Ŷ LURDES MENDES Concluiu o curso de Educadores de Infância na escola Superior de Educação Jean Piaget, em 1987 e o Curso de Estudos Superiores Especializados em Educação Especial, na área da Deficiência Mental e Dificuldades Múltiplas, na mesma instituição, em 1994 Ŷ Foi técnica especialista em intervenção precoce na

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UADIP, do Ministério da Segurança Social até 2006. Atualmente é educadora do quadro do Ministério da Segurança Social, exercendo as suas funções no Centro Infantil de Valbom Ŷ Sócia do Movimento da Escola Moderna, tem participado em projetos de formação contínua de professores(as) e educadores(as) Ŷ MÓNICA TEIXEIRA Concluiu o curso de professora do 1º ciclo na Escola Superior de Educação Jean Piaget de Vila Nova de Gaia, em 1997, exercendo, atualmente, a sua atividade no Agrupamento de Escolas Anes de Cernache, em Vila Nova de Gaia Ŷ Especializou-se na área de Estudo do Meio, em 2005, na Universidade Aberta Ŷ Foi coordenadora de vários estabelecimentos de ensino. É atualmente conselheira no Conselho Geral do Agrupamento de que faz parte. Tem participado em projetos de formação contínua de professores Ŷ Atualmente é formadora certificada pelo IEFP. PAULA MARTINS Concluiu o curso de professora do 1º ciclo na Escola Superior de Educação do Porto, em 1995, e a licenciatura na variante de Educação Física, exercendo atualmente a sua atividade no Agrupamento de Escolas Adriano Correia de Oliveira, em Vila Nova de Gaia Ŷ Tem participado em projetos de formação contínua de professores. SERAFINA SALVADOR Concluiu o curso de Educadores de Infância na escola Superior de Educação Jean Piaget, em 1987 e o Curso de Estudos Superiores Especializados em Educação Especial, na área da Deficiência Mental e Dificuldades Múltiplas, na mesma instituição, em 1994 Ŷ Foi educadora especialista nas Equipas de Educação Especial de vila Nova de Gaia e de Espinho nos anos de 1994 a 97 e 1997 a 99, respetivamente, e técnica especialista em sala de Intervenção Educativa com crianças autistas (Modelo TEACCH) na escola de S. João de Ovar, de 2004 a 2006, em colaboração com a Equipa de Autismo da Região Centro Ŷ Foi Orientadora de Práticas Pedagógicas do Curso de Educadores de Infância, de 1988 a 2001, na Escola Superior de Educação Jean Piaget Ŷ Sócia do Movimento da Escola Moderna, tem participado em projetos de formação contínua de professores(as) e educadores(as) Ŷ Atualmente é educadora no Jardim de Infância de Ponte Nova, em Ovar.

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