Edição #2 - Revista A Hora da Escrita

Porto Alegre | Buenos Aires

Agradecimentos Esta segunda edição da Revista só pôde ser possível pela participação de muitos colaboradores. Agradecemos aos ensaístas: ao historiador Edgar Aristimunho, aos jornalistas Roberta Requia e Pedro Henrique Zandomeneghi; e a María del Pilar, estudante de Letras. É de total mérito desses autores a profundidade e agudeza das reflexões sobre o tema, tão rico, que foi escolhido previamente pelos seguidores em enquete pelo Instagram da revista (@ahoradaescrita). Também agradecemos a todos os que nos enviaram textos de ficção para serem submetidos à seleção. Como de costume, os textos de ficção não são necessariamente relacionados à temática da revista. Portanto, a seção destinada a contos, poemas e crônicas não tem como tema Ditaduras na América Latina, diferindo da parte dos ensaios, que é temática. Gostaríamos de parabenizar a todos os selecionados, entre eles: João Vitor Pereira, Fabiana Souza, Carolina Gropillo, María del Pilar, Renato Rocha, Ícaro Medeiros de França, Maira Permayú e Jaqueline Bastos.

Por último, agradecemos às talentosíssimas ilustradoras que - com admirável perfeição - souberam concretizar as difíceis imagens-mentais de dois confusos editores. Esta capa, de palavras que formam as coisas em si, pode ser apreciada como um poema graças à artista Yasmin Borges. A figura inconfundível do rosto de Cortázar no corpo da estátua de O Pensador - esculpido por Auguste Rodin (obra que ornamenta os jardins do congresso argentino) - é de autoria da artista Carolina Simões.

Esta revista, à diferença da primeira, aspira a atingir não somente o leitor brasileiro, mas também o leitor falante da língua espanhola. Para isso, tivemos a participação de duas autoras argentinas e estudantes do mundo das Letras: María del Pilar e Maira Permayú, dignas de um especial agradecimento por haver aceito participar desta primeira aproximação da revista à língua espanhola.

A crônica “Mesa para dos” foi extraída de uma das edições da revista literária semanal Scribo Club (@scribo_club), por um convite dos próprios organizadores e o consentimento da autora. Scribo Club é um projeto de publicação de ficção em língua espanhola, editado e mantido por Joaquín Herrero e colaboradores.

Finalmente, gostaríamos de agradecer a você, leitor, que nos ajuda a crescer e tornar este projeto realidade. Esperamos que você aproveite, com muita reflexão e deleite, cada um dos textos aqui presentes, e viaje, pois é uma viagem o que as letras nos proporcionam.

Agradecimientos Esta segunda edición de la Revista solamente ha podido ser posible gracias a la participación de muchos colaboradores. Agradecemos a los ensayistas: al historiador Edgar Aristimunho, a los jornalistas Roberta Requia y Pedro Henrique Zandomeneghi; y a María del Pilar, estudiante de Letras. Es de total mérito de sus autores la profundidad y agudeza de las reflexiones acerca del tema, tan rico, que fue elegido previamente por los seguidores de Instagram (@ahoradaescrita) en una encuesta. También agradecemos a todos los que nos enviaron textos de ficción a nuestra selección. Como de costumbre, los textos de ficción no están necesariamente relacionados a la temática de la revista. Por tanto, la sección destinada a cuentos, poemas y crónicas no tiene como tema Dictaduras en América Latina, sino que es de temática libre; difiriendo de la parte destinada a ensayos, cuyo tema es el ya mencionado. Felicitamos a todos los que fueron seleccionados, entre ellos: João Vitor Pereira, Fabiana Souza, Carolina Gropillo, Renato Rocha, Ícaro Medeiros de França, Maira Permayú e Jaqueline Bastos.

Por último, agradecemos a las muy talentosas ilustradoras que - con admirable perfección - supieron concretar las difíciles imágenes-mentales de dos confusos editores. Esta tapa, de palabras que forman a las cosas en sí, puede ser apreciada como un poema gracias a la artista Yasmin Borges. La figura inconfundible de Cortázar en el cuerpo de la estatua del Pensador - esculpido por Auguste Rodin (obra que ornamenta a los jardines del edificio del Congreso Argentino)- es de autoría de la artista Carolina Simôes.

Esta revista, a diferencia de la primera, aspira a atingir no solamente al lector brasileño, sino también al lector hispanohablante. Para esto, tuvimos la participación de dos autoras argentinas, que también son estudiantes de las Letras: las ya mencionadas María del Pilar y Maira Permayú, dignas de un especial agradecimiento por haber aceptado participar de esta primera aproximación de la revista a la lengua española. La crónica “Mesa para Dos” fue extraída de una de las ediciones de la revista literaria Scribo Club (@scribo_club), por una invitación de los propios organizadores y el consentimiento de la autora. Scribo Club es un proyecto de publicación de ficción en lengua española, editado y mantenido por Joaquín Herrero y colaboradores.

Finalmente, nos gustaría agradecerle a usted, lector, que nos ayuda a crecer y tornar este proyecto una realidad. Esperamos que usted aproveche, con mucha reflexión y deleite, cada uno de los textos aquí presentes; y viaje, pues es un viaje lo que las letras nos pueden proporcionar.

Sofia Mello Lungui Rafael S. Agostinho Jorge

Prefácio

Discurso, Poder, Verdade e a Submissão à Divina Gramática

Nascemos numa posição de extrema submissão. Submissão parental, estatal, discursiva. Esta constitui-nos, faz de nós sujeitos dotados de identidade, entrega-nos as possibilidades do ser, de viver, e ao mesmo tempo: nos condiciona, nos limita. Das infinitas possibilidades de uma gramática finita, o infinito é previsível, tão previsível como a repetição da dízima periódica.

Nascemos imersos num discurso sobre a existência de gênero, ou a ausência dele; num discurso de segurança, ou de terror; de religião ou ciência; num de paz, ou de guerra; numa enorme estrutura de discursos de definições. O poder da narração e, mais ainda, seu status de ficção ou realidade é o que funda o cânon de uma sociedade: para uns a Bíblia é ficção, para outros, a mais profunda realidade; o mesmo pode ser dito para qualquer obra científica. Platão, há quase 2500 anos, já reconhecia o infalível poder da construção de histórias, da narrativa como manipulação; e por isso, propôs para sua República o uso de uma narrativa fenícia que pudesse justificar suas castas e estrutura social. Foucault, em sua aula Inaugural do Collège de France, aponta para uma ordem no discurso: há discursos centrais e discursos periféricos, em cada sociedade; há mecanismos de interdição ou de reprodução de tipos discursivos. Sabendo disso, não nos espanta o uso recorrente por chefes de Estado ditatoriais da interdição do discurso ou da criação de relatos narrativos que legitimem a sua presença. Algumas ditaduras que aconteceram na América Latina têm em comum o discurso do progresso, da ajuda aos pobres, de luta contra o imperialismo, por exemplo: Perón, na Argentina. Outras, um central discurso de guerra ao comunismo, exemplo: ditaduras militares brasileira e chilena da metade do século XX. A atualidade de tais discursos, mesmo depois da redemocratização, faz merecer o seu estudo.

Os tipos e temas do discurso (sejam eles centrais ou periféricos) configuram uma ´´gramática´´ discursiva presente na população que reproduz a sua fórmula inconscientemente. Por isso, apelo dizer, as ditaduras ainda nos são uma ameaça. Os demagogos, tiranos e ditadores têm o discurso como principal aliado, principal ferramenta. Nem é preciso reforçar que a internet e as redes sociais só potencializaram ainda mais os efeitos, os exemplos abundam.

Como diz a poeta e ilustradora Jacqueline Bastos, “(as palavras,) Todas, de todo tipo, povoam a terra, inundam os mares, recheiam as manchetes,} Falam por nós e às vezes nos calam.}” extrato do poema “Palavras”.

Talvez nossa sociedade (e aqui não digo somente a latino-americana, mas me refiro a espécie humana vivente atualmente como parte de uma sociedade de um mesmo momento, o início do século XXI) ainda não tenha alcançado a maturidade linguística suficiente para lograr a discursiva; ou então, pode ser da própria natureza da linguagem, cuja estrutura seria muito próxima aos algoritmos (de uma faculdade da linguagem). A primeira é a hipótese-Foucault e a segunda, a hipótese-Chomsky. O que nos resta é, ao menos, tentar descrever o fenômeno, entendê-lo e - inevitavelmente sucubindo a ele- tentar invertê-lo, como diria Foucault: trazendo os discursos periféricos aos centro.

Pela segunda edição da revista A Hora da Escrita, gostaríamos de trazer-lhes os discursos que outrora foram periferia ao centro de nossa revista: há ensaios sobre Eduardo Galeano, Cortázar e María Elena Walsh, três intelectuais cuja produção passou pelas interações das ditaduras de seus países.

A censura de umas palavras, a criação de outras, a rígida ou fluida gramática: as fronteiras entre manipulação e educação são tênues; assim como a de realidade e ficção, e caminham juntas, em paralelo. A modo de conclusão, um comentário: frente a tantas barreiras e condicionamentos, que por sua vez são condições da liberdade; a fruição na leitura tem seu ápice nas fronteiras do gramatical com o agramatical. Onde alguns linguistas veem o erro, outros veem a libertação: o inconsciente surge, eleva-se no horizonte, vasculhando o verbo como vasculhando a si mesmo. A busca da palavra, do sintagma, do enunciado e do discurso certos, passa a ser também a busca de si; isso é a poesia: “Dialogar, engolir, digerir, vomitar: vou-me estar logo alí, vasculhando o to be; vou ceder à maré, vou amar destruir.” extrato do poema de João Vitor Pereira, “I eat, I fart”.

Esta edição é dedicada a Marcello Otávio Santos Cardoso, alguém que passou a vida estudando e refletindo sobre política, injustiça e desigualdade social. Alguém que pensava de modo coletivo e sonhava com um mundo melhor para todos, além de ter sido uma pessoa especial a todos que tiveram o prazer de conhecê-lo. Marcello perdeu a vida em decorrência de sua angústia com a realidade. Mas mais do que sonhador, ele foi um brilhante pensador, e suas ideias continuam inspirando a todos que ele deixou.

Nota al al lector lector Nota hispanohablante hispanohablante Lector, A Hora da Escrita (traducción: la hora de la escritura) es un proyecto de dos amigos brasileños, una periodista recién formada y un estudiante apasionado por la literatura, la filosofía y la matemática. Desde febrero de 2020, después de un encuentro en Buenos Aires, decidimos dar inicio a este proyecto que aspiraba retomar a los antiguos aires de las revistas literarias que fueron suceso en el siglo XX; una de nuestras inspiraciones fue la revista Sur, de la magnífica Victoria Ocampo. Con una cuenta activa en instagram, pudimos juntar una comunidad de escritores en poco tiempo y, ya en julio, lanzamos la primera edición de la revista en formato electrónico, totalmente gratuita. Nuestros escritores y público eran mayormente hablantes del portugués, en este momento. Sin embargo, por las conexiones que los dos editores tienen con la lengua española, y por la voluntad del intercambio cultural que proporciona - a los escritores y lectores - una revista con contenido bilingüe; decidimos traerles a los lectores de esta edición un contenido - mismo que pequeño - en español. Esperamos que para las próximas ediciones este espacio se expanda y muchos otros ensayos, cuentos, poemas y crónicas en esta revista sean en la hermosísima lengua española, o como algunos prefieren especificar: la lengua castellana.

Muchas gracias por confiarnos su tiempo de lectura.

Sumário Ensaios 10 15 22 28

O legado latino-americano de Eduardo Galeano Cortázar entre os militares Narrativas da opressão Viviendo en el “País Jardín de Infantes”

Ficção 36 37 38 39 40 41 47 48 49 50 52

#Nuncamais I eat, I fart Abelhas Palavras Mesa para dos A taxonomia de D’Alembert Entregue Libertá Benévola y terrible soledad Um pequeno mundo errante La gracia desgraçada

TEXTO Roberta Requia ARTE Carolina Simões

U

m dos maiores escritores da América Latina, o uruguaio Eduardo Galeano teria completado 80 anos em setembro deste ano caso estivesse vivo. Falecido em 2015 de edema pulmonar, Galeano foi escritor de diversas obras que estão entrelaça-

das com a história e com a literatura latino-americana.

Obcecado pela lembrança e memórias de sua terra, escreveu livros que dão uma perspectiva histórica e cultural para o continente americano e seus habitantes que até hoje enfrentam as consequências do colonialismo.

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S

ão dessas características que nasce seu livro mais famoso, considerado como uma “bíblia” da esquerda latino-americana.

Lançado em plena ditadura militar, no ano de 1971, o livro “As veias abertas da América-Latina” foi banido durante as ditaduras do Chile, Argentina, Brasil e no próprio Uruguai, motivo pelo qual Galeano precisou se exilar na Espanha durante alguns anos.

E é nesse período que o escritor produz um documento que desenterra acontecimentos históricos do continente, desde a exploração desenfreada de metais preciosos nos territórios inca e maia, até a devastação de populações nativas por doenças trazidas pelos europeus. Galeano escorre sobre fatos e traumas que se fixaram nas entranhas da América Latina. Para Ruben Castiglioni, professor de Literaturas de

Língua Espanhola da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o texto da pesquisadora Ana Maria Vara esclarece a maneira como o livro se organiza.

Ela menciona que “As veias abertas” constituiu uma visão alternativa da histórica da América Latina, que se constrói em cima de sua estrutura narrativo-argumentativa reeditando, explicando e organizando um discurso verbal que já estava estabelecido no momento da publicação da obra. O texto quebra com o tradicional e inaugura uma visão antiimperialista e latinoamericanista que influenciou estudiosos, sociólogos e escritores que usariam seu livro como documento.

Para o professor de História Contemporânea da UFRGS Enrique Padrós, o momento de efervescência política que o mundo vivia no momento da publicação

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da obra esclarece as inquietudes expressadas por Galeano. Além dos acontecimentos na América Latina, a Guerra Fria estava em seu clímax com a escalada de tensão entre Estados Unidos e União Soviética. Ecoavam pelo mundo processos de descolonização, a Guerra do Vietnã, a explosão do movimento negro dos Estados Unidos e o maio francês de 1968. Segundo Padrós, “A América Latina, de forma geral, estava marcada por uma série de aspectos históricos que, com certos matizes e raras exceções, eram comuns ao conjunto de países da região: uma exponencial desigualdade social, altos índices de concentração de riqueza, salários e condições precárias de trabalho, sistemas políticos pouco democráticos e significativa influência/interferência direta ou indireta dos Estados Unidos”.

Esse contexto socioeconômico, aliado ao tem-

peramento dos regimes ditatoriais, cuja essência é defender o capital e a propriedade, é a fagulha do incêndio que faz “As veias abertas da América Latina” virar uma combustão.

Para Padrós, que também é professor do Programa de Pós-Graduação e pesquisador sobre as ditaduras do Cone Sul, a necessidade de explicar o presente no qual o continente se encontrava foi o fio da meada que levou o autor a mergulhar no processo histórico decadente das américas: “O livro foi pensado por Galeano, como um relato, sustentado em extensa pesquisa e consulta de fontes, que servisse de contraponto a uma versão formalista e acadêmica da história. Processo esse que silenciava sobre os mecanismos de exploração, os interesses existentes por detrás deles e as responsabilidades políticas, tanto no plano nacional quanto na dimensão maior do sistema

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capitalista internacional”, afirma o professor.

Nas vésperas dos 50 anos de sua primeira publicação, a obra mais famosa de Galeano mantém o questionamento sobre a situação sócio-econômica dos países latino-americanos. Para Enrique Padrós, mesmo que a obra não tenha sido escrita como um panfleto ou manifesto político, seu conteúdo acabou servindo de argumento para uma crítica do processo histórico: “A onda neoliberal/extrema direita que tomou conta da maioria dos países a seguir, recoloca a projeção da longa sombra dos Estados Unidos sobre a região. A possibilidade de certa autonomia no cenário internacional se esvaiu rapidamente.” Como exemplo desses aspectos o professor cita a concentração urbana e seus problemas derivados, a situação de

genocídio contra os povos originários e a negação ao seu direito de existência, assim como a agressão ao meio ambiente e a privatização do Estado em si.

Novas mudanças ocorreram no período de 50 anos da publicação de “As veias abertas”. Mesmo assim, o livro se mantém como uma referência para compreender os períodos históricos da América Latina assim como seus desdobramentos sociais no século XXI. Como indicado pelo professor de História Enrique Padrós, a obra pode servir como porta de entrada para a compreensão da América Latina: “Sejamos realistas, o livro incomoda, sim. Mas muito mais incomoda o lugar que ocupa o escritor na consciência, no afeto e na memória que lhe dedicam gerações de excluídos da região”, indica o acadêmico.

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entre os militares ARTE Carolina SimĂľes

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TEXTO Pedro Henrique Zandomeneghi

E

m 1951, Julio Cortázar dava seus primeiros passos para se tornar um dos maiores nomes da literatura argentina do século XX. Pela Editorial Sudamericana, de Buenos Aires, publicou o livro de contos ´´Bestiário´´, sua maior obra até o momento. E em outubro daquele ano, partiria com uma bolsa de estudos concedida pelo governo francês para Paris, para onde foi em busca de uma vida melhor. Cortázar viria a falecer em janeiro de 1984, no hospital Saint-Lazere, na capital francesa. Nos quase 33 anos em que viveu na França, conseguiu se sustentar com diversos trabalhos de tradução.

Escreveu o que seria seu mais famoso romance — ´´O jogo da amarelinha´´ — e trabalhou em diversos contos e resenhas literárias.

Sua estada na Europa não apenas possibilitou seu desenvolvimento como escritor, como também fomentou uma consciência política aguda. É bem verdade que o au-

tor já tinha seus olhos voltados para injustiças, demonstrando seu desprezo pelo governo autoritário do general Juan Domingo Perón em algumas publicações, e mantendo uma postura contrária às intervenções nas universidades argentinas. Mas foi somente após sua chegada ao Velho Continente, e com o advento de seu sucesso literário na década de 1960, que Cortázar passou a dar mais atenção às causas humanitárias e sociais[1].

De acordo com a versão propagada por ele mesmo[2], seu despertar político aconteceu após suas visitas a uma Cuba já comandada por Fidel Castro. Desde então, passou a defender o socialismo e se solidarizou com a luta contra as ditaduras militares que assolaram a América Latina entre 1960 e 1980. O escritor peruano Mario Vargas Llosa, que durante um tempo conviveu com o argentino em Paris, apresenta uma outra “versão oficial” sobre a guinada. “A virada de Cortázar, a mais extraordinária que pude

1. KARAM, Sérgio. Apresentação: Cortázar em oito takes. In: CORTÁZAR, Julio. A autoestrada do sul e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 7-30.

2. ORLOFF, Carolina. Representation of the political in selected writings of Julio Cortázar. 2010. Dissertação (Doutorado em Literatura) - Escola de Literatura, Linguagem e Cultura - Universidade de Edimburgo, Edimburgo. p. 2. Disponível em <https://era.ed.ac.uk/handle/1842/5530>. Data de acesso: 14 de novembro de 2020. a hora da escrita

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observar e que jamais vi acontecer a outro ser, [...] aconteceu, segundo a versão oficial — que ele mesmo consagrou —, no maio francês de 1968.

Naqueles dias tumultuosos, ele foi visto nas barricadas de Paris, distribuindo folhas volantes de sua invenção, sendo confundido com os estudantes que queriam levar ‘a imaginação ao poder’. Tinha 54 anos. Nos dezesseis que lhe faltavam viver, seria um escritor comprometido com o socialismo, defensor de Cuba e da Nicarágua, assinante de manifestos e habitué de congressos revolucionários, até sua morte”[3].

De qualquer forma, a mudança foi tamanha que surgiu a ideia de dois Cortázares: o primeiro, que vivia na Argentina, era liberal, elitista e alheio à história da América Latina. O segundo era o militante, consciente, engajado, que refletiu seu posicionamento político em sua obra[4]. Essa visão sobre o autor acabou refletida na crítica sobre seu trabalho, geral-

mente dividido entre um período em que o elemento político supostamente estaria fora de sua construção literária e outro em que esse mesmo elemento seria facilmente identificado.

Contudo, é um tanto simplista classificar a vida e a obra de Cortázar de uma maneira binária, o que acaba limitando possíveis interpretações e entendimentos. Em sua tese de doutorado ´´Representation of the political in selected writings of Julio Cortázar´´ (Representação do político em textos selecionados de Julio Cortázar, tradução livre)[5] Carolina Orloff buscou desmistificar a ideia de que o argentino não era político em suas primeiras publicações. Para isso, ela analisou todos os romances do autor — de ´´Os prêmios e O livro de Manuel´´ aos publicados postumamente ´´Divertimento´´ e ´´O exame´´ —, além de outros escritos. Suas conclusões vão contra o consenso crítico que defende a existência de uma literatura cortaziana livre de

3. LLOSA, Mario Vargas. O trompete de Deyá. In: CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 586 4. ORLOFF, Carolina. Representation of the political in selected writings of Julio Cortázar. 2010. Dissertação (Doutorado em Literatura) - Escola de Literatura, Linguagem e Cultura - Universidade de Edimburgo, Edimburgo. p. 1-4. Disponível em <https://era.ed.ac.uk/handle/1842/5530>. Data de acesso: 14 de novembro de 2020.

5. ORLOFF, Carolina. Representation of the political in selected writings of Julio Cortázar. 2010. Dissertação (Doutorado em Literatura) - Escola de Literatura, Linguagem e Cultura - Universidade de Edimburgo, Edimburgo. Disponível em <https://era.ed.ac.uk/handle/1842/5530>. Data de acesso: 14 de novembro de 2020. dezembro de 2020

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política.

Segundo Orloff, a infância de Cortázar no mundo literário pode ser caracterizada como os “Anos Anti-Peronista”, período que engloba o início de sua carreira até seu “despertar”. Dessa forma, a obra do autor, ainda que timidamente, já era influenciada por sua visão política. Orloff cristaliza sua argumentação citando trechos de ´´O exame´´, que retrata, segundo sua análise, uma invasão ao urbano por

Mais do que isso, foram pontos de guinada ideológica, o que propulsionou a metamorfose do argentino de um liberal para um socialista.

Orloff, entretanto, foca sua pesquisa nos romances e não incluiu uma significativa quantidade de contos em sua análise. Ela se justifica afirmando que não é possível identificar uma evolução da consciência política do argentino comparável a dos romances.

No entanto, é bem provável

SEJAM OS ANTAGONISTAS MILITARES OU SERES FANTASMAGÓRICOS, CORTÁZAR DEMONSTRA SUA DECEPÇÃO E ENFATIZA SUA AVERSÃO ÀQUILO QUE DETERIORA SUA REALIDADE.

parte das massas fiéis a Perón e a subsequente degradação da cultura argentina. Ela conclui que não houve um marco ou um divisor na vida de Cortázar que o influenciasse a abrir os olhos para a política. Em outros termos, a obra do argentino já apresentava elementos que refletissem suas opiniões.

As visitas a Cuba e o posterior engajamento em causas sociais não foram o despertar de Cortázar, senão momentos em que a percepção e a consciência do escritor foram alteradas.

que sua explicação leve em conta o gigantesco hipotético corpus de pesquisa que teria para analisar caso abrangesse toda a obra do escritor, o que seria um trabalho colossal. Até porque em um dos primeiros contos do autor há figuras utilizadas que podem ser interpretadas como políticas. ´´A casa tomada´´ foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1946, na revista ´´Los Anales de Buenos Aires´´, editada por Jorge Luis Borges. O conto é sobre dois

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irmãos, o narrador e Irene, que vivem sozinhos em uma grande casa em Buenos Aires.

A construção do texto destaca a relação afetiva que os moradores possuem com o imóvel, teto da família por gerações e que serve como uma ponte para os principais prazeres dos protagonistas — a rica biblioteca é extremamente útil ao narrador, enquanto os diversos móveis guardam uma quantidade imensurável de roupas de lã feitas por Irene, que estava sempre tricotando. Mas uma noite, enquanto Irene trabalha nos novelos, o irmão vai até a cozinha para esquentar a água do mate e percebe que a parte de trás da casa, onde ficava a biblioteca e a sala de jantar, está ocupada por intrusos.

A identidade dos invasores é uma incógnita. Na realidade, não há nem como saber se são humanos. E o suspense criado acaba por contrastar com o carinho nutrido pela casa. Ao longo do conto, a casa é descrita quase como uma terceira entidade, um verdadeiro lar que fornece conforto e segurança física e emocional,

além de hospedar bens materiais queridos pelos irmãos. E esse lar é sorrateiramente surrupiado e acaba sendo utilizado para asfixiar aos poucos os protagonistas, que no início se acostumam a viver com parte da residência ocupada até o momento em que são obrigados a abandonar o local.

A ideia de perseguição, a corrupção de um símbolo que anteriormente era acolhedor e agora é ameaçador e a derradeira decisão de abandonar a casa e se livrar da chave — para nunca mais voltar — servem como indícios de uma consciência política no jovem Cortázar. O governo de Perón, que em 1946 interferiu na autonomia de universidades argentinas e se mostrava populista e perigoso[6], poderia ser visto como o invasor da casa, responsável pela apropriação de bens queridos aos argentinos e pela degradação cultural que Cortázar tanto criticava. O abandono à casa, talvez ironicamente, só seria concretizado cinco anos depois, momento em que já se havia comprovado o viés autoritário do gener-

6. ROMERO, Luis Alberto. Breve historia contemporánea de la Argentina: 1916-2010. Fondo de Cultura Económica de Argentina: Buenos Aires, 2012. p. 157. Disponível em <https://www.academia.edu/35807675/ Breve_historia_contemporanea_de_la_argentina>. Data de acesso: 15 de novembro de 2020.

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al e que Cortázar, após a publicação do livro ´´Bestiário´´, onde ´´A casa tomada´´ também aparece, se mudava para Paris.

O ciclo, que começa com a primeira publicação do conto e que termina no momento em que o texto é publicado em livro, é uma marca significativa na vida de Cortázar, os anos anteriores ao seu exílio e posterior sucesso internacional. Naturalmente, também há espaço para uma interpretação fantástica ao texto. Ainda assim, a casa é uma espécie de terceira personagem, importante para dimensionar a relação de pertencimento e a identidade dos irmãos.

O abandono reflete, intencionalmente ou não, o desapego necessário para se libertar daquilo que já foi mas não é mais. Sejam os antagonistas militares ou seres fantasmagóricos, Cortázar demonstra sua decepção e enfatiza sua aversão àquilo que deteriora sua realidade.

Em 1982, publica seu último livro de contos em vida, ´´Fora de hora´´. Na obra, en-

contra-se o texto “A escola à noite”, em que há margem considerável para ser interpretado com uma alegoria aos horrores da mais recente ditadura militar argentina, instaurada em 1976 e que duraria até 1983. Nessa fase de sua vida, Cortázar já era o escritor engajado com as causas socialistas e na defesa dos direitos humanos na América Latina.

O conto mescla o passado e o presente do autor, ambientando o leitor na Buenos Aires dos anos 1930 e introduzindo a dupla Nito e Toto, o narrador, que decidem fazer uma visita à escola que estudam no turno da noite. Lá, os dois se deparam com uma festa entre professores e estudantes, tudo descrito de uma maneira macabra. Num ambiente hostil, Nito e Toto tentam se adequar ao ambiente ao mesmo tempo em que pensam em uma maneira de fugir da loucura em que se encontram.

Após um estupro com ares de sadomasoquismo por parte de uma professora, Toto procura por Nito e chega a um cômodo da escola em que to-

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dos os festeiros estão reunidos para chutar e pisotear o colega Kurchin. O evento, como um todo, tem um impacto absurdo na psicologia do narrador, que desiste de tentar salvar Nito e foge da escola horrorizado. Na semana seguinte, encontra-o antes da aula. Nito se comporta de maneira estranha e indiretamente constrange Toto a permanecer em silêncio sobre o episódio.

Os horrores que a dupla testemunha na escola cumprem o papel de alegorias em relação às torturas praticadas pelos militares argentinos durante a última ditadura. O Cortázar que produziu o conto, mais envolvido politicamente, demonstra toda sua repulsa ao terror provocado por aqueles que recorrem a práticas abusivas e utiliza esse mesmo sentimento para materializar sua aversão ao autoritarismo, perpetrado na história argentina principalmente pelos militares.

A mescla de elementos do passado e do presente que resultam no produto final de ´´A escola à noite´´ também são reflexos da evolução da con-

sciência política do escritor.

Se em sua juventude o argentino já apresentava, ainda que timidamente, posições contrárias aos militares no poder e à perseguição empreendida por eles, como visto em ´´A casa tomada´´, o trabalho produzido no final de sua vida transparece sua aversão às experiências desse grupo como mandantes da nação. “Com este conto, Cortázar encerra magistralmente um ciclo, unindo seus recuerdos argentinos mais distantes com as preocupações políticas que o absorviam já há muitos anos”, escreve Sérgio Karam[7].

Mais do que isso, o conto encerra o processo de amadurecimento e cristalização das ideias políticas do autor, iniciado em ´´A casa tomada´´, texto em que manifesta subjetivamente sua insatisfação com Perón, e que termina em sua repulsa a um governo militar mais sanguinário do que o experienciou em sua juventude, que também perseguia oposicionistas e homens e mulheres contrários ao autoritarismo, à tortura e às injustiças políticas e sociais.

7. KARAM, Sérgio. Cortázar em oito takes. In: CORTÁZAR, Julio. A autoestrada do sul e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 26.

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NARRATIVAS DA OPRESSÃO: LITERATURA E CINEMA SOBRE DITADURA CIVIL-MILITAR TEXTO Edgar Aristimunho ARTE Carolina Simões

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entre entre os inúmeros caminhos que o leitor poderia tomar para iniciar a compreensão do período da ditadura civil-militar (1964-1985) através do cinema e da literatura, é preciso lembrar que não há caminhos quando o assunto é repressão ao cidadão. As chamadas narrativas da opressão são o conjunto de filmes e livros produzidos ou publicados no território brasileiro e que tiveram como matéria

aquele período de exceção.

Toda manifestação artística contrária ao horror dos porões da ditadura interessa aqui, como registro, indicação, caminho. Ao final, o leitor não encontrará, aqui, exatamente o que possa chamar de uma luz no fim do túnel, até porque a opressão é uma sina constante pela ´´terra brasilis´´, expressão que na sua origem designa terra da incógnita. Eis um prato cheio para o cinema e a literatura.

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O melhor caminho para se lançar uma proposta de leitura combinada com filmes é começar pela margem. Somente com a compreensão do que estava/ou esteve à margem da sociedade é possível entender o sistema político que reprime o indivíduo e perpetua as estruturas opressivas de dominação. Isto é História. E como o cinema entrou nessa jogada de criar narrativas sobre a ditadura civil-militar? Quando a literatura deu os primeiros passos para ingressar na descrição dos sistemas repressivos dos governos militares brasileiros? Não há respostas. Você pode começar, por exemplo, assistindo ao filme ´´Tatuagem´´, de Hilton Lacerda (2013) e encontrar um conjunto de constatações sobre a origem da repressão aos homossexuais, tanto dentro como fora do sistema – e enxergar aí uma simbologia sobre a ausência de liberdades individuais. Em Cuba, o escritor Reinaldo Arenas denunciou isto em suas memórias ´´Enquanto´´ a noite não chega; aqui relatos literários sobre a indivíduo diante da repressão do Estado são parte de nossa literatura clássica, como em ´´Memórias do Cárcere´´, de Graciliano Ramos. As populações à margem (escritores, homossexuais, populações rurais etc.)

sempre estiveram nos planos dos sistemas repressivos dos governos totalitários no Brasil “ame-o ou deixo-o”. Zero, romance de Ignácio de Loyola Brandão proibido pelos órgãos de censura da ditadura, mostra os horrores sofridos pelo cidadão comum, no caso José, um do povo que até encontra um capitão do Exército que sonha ser presidente. Livro irreverente, revolucionário esteticamente e, agora vemos, profético.

Sobre a passagem do mundo agrário para aquele dominado pelas ideias urbanas, tanto cinema como literatura produziram verdadeiros aplausos em nossa cultura.

Todos os filmes do chamado Cinema Novo podem ser apresentados como um cartão de entrada para o questionamento da ditadura. O desafio, de Paulo César Saraceni (1965), filme que terminou quando Glauber Rocha, Carlos Heitor Cony, Paulo Francis e outros foram presos em 1965, onde esses intelectuais protestaram contra a ditadura diante de autoridades internacionais; ´´Terra em transe´´, de Glauber Rocha (1967), é obra fragmentada e radical do ponto de vista narrativo que trata do delírio e desmandos de políticos populistas enamorados com forças militares repressoras; e O caso dos

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´´Irmãos Naves´´, de Luiz Sérgio Person (1967), a mostrar os estados toscos da tortura.

A literatura de engajamento político é, também, uma marca nacional. O gaúcho Oliveira Silveira foi um dos que escreveram pela liberdade de escrever. Nascido numa região em que a peonada tem que baixar a cabeça para o patrão, o Pampa gaúcho, o escritor jamais desistiu de publicar sua poesia em prosa, que sempre exaltou os elementos constituintes da cultura negra no Brasil e sua luta política. Oliveira Silveira escreveu lindo sobre a peonada, sobre o trabalhador negro do campo e fez homenagens aos grandes negros da História do Brasil, como Zumbi de Palmares, os Lanceiros Negros e Marcílio Dias, entre outros. Entre os escritores ótimoa para se compreender o pensamento político está Josué Guimarães e Erico Verissimo.

Aquele soube descrever os estados totalitários da repressão política ao pensamento dissidente com ´´Tambores Silenciosos´´, enquanto este último escreveu em plena ditadura um livro questionador: ´´Incidente em Antares´´. No plano da vida política nas pequenas comunidades ru-

rais, nada supera a tetralogia ´´Os Guaianãs´´, de Benito Barreto, simplesmente uma obra-prima sobre tudo o que envolve política no Brasil.

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Do ponto de vista do lirismo, cinema e literatura conseguiram temperaturas bem agradáveis. Veja-se o caso do filme ´´O ano em que meus pais saíram de férias´´, de Cao Hamburger (2006), em que família, judaísmo, futebol e resistência política são temas que se entrecruzam. Na dinâmica da política na família, Eles não usam ´´black-tie´´, de Leon Hirszman (1981) retrata as lutas sindicais contra a ditadura e que tem uma das cenas finais mais lindas do cinema brasileiro: o casal separando o feijão como a dizer: “a vida continua”.

Num mesmo plano de registro da destruição familiar pelos sistemas repressivos do Estado brasileiro, os ótimos livros de Ana Maria Machado (´´Tropical Sol da Liberdade´´), em que a preparação para o horror político é gradual mas profunda, e os dois de Marcelo Rubens Paiva (´´Ainda

estou aqui´´), sobre a luta de sua mãe para esclarecer o desaparecimento político do pai, juntam-se a ´´Quarup´´, clássico da literatura brasileira de Antônio Callado que registra as primeiras sessões de tortura instauradas pelo Golpe de 1964. Fecha o ciclo de sugestões o registro afetivo e intenso feito por Lygia Fagundes Telles em ´´As meninas´´.

Desde a família até o estado de exceção instaurado em 1964, temos os filmes sobre o regime. ´´O dia que durou 21 anos´´, de Camilo Tavares (2013), mostra a participação dos Estados Unidos na gestação do golpe. Nada mais pertinente para o público (e eleitor) brasileiro ante o atual quadro de alinhamento irrestrito com o governo norte-americano. O alinhamento do empresariado com as forças repressivas aparecem em livros como ´´A região submersa´´, de Tabajara Ruas, mas é no cinema que a violência policial desponta com os requintes de crueldade de filmes como ´´República dos Assassinos´´, de Miguel Faria Jr., e em documentários como ´´Cidadão Boilesen´´, de Chaim Litewski, que descreve a participação de um empresário de origem dinamarquesa que costumava acom-

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panhar as sessões de tortura. Sobre o registro cruel da tortura, talvez o filme mais impressionante seja ´´Pra frente, Brasil´´, de Roberto Farias, obra realizada em plena vigência da ditadura civil-militar e que mostra como um cidadão comum pode envolver-se, mesmo sem querer, com a resistência armada e a partir daí sofrer a repressão político-militar da mesma forma. No mesmo sentido, ´´O bom burguês´´, de Oswaldo Caldeira, com a interpretação sublime de José Wilker, que vive um bancário que decide ajudar a luta armada. A obra preenche importante lacuna na filmografia sobre o período militar.

Do lado da resistência armada, a história de Carlos Marighella foi contada em mais de um filme, com destaque para a última e polêmica produção: ´´Marighella´´ (2019), de Wagner Moura. O militante político é considerado uma enciclopédia sobre a luta armada, dado sua articulação cultural, e por essa razão foi um dos perseguidos políticos mais visados pelas forças repressoras da ditadura. Outro filme bastante importante é ´´Batismo´´ de sangue, de Helvécio Ratton, obra baseada no livro de Frei Betto e que conta a história de inúmeras relações

entre os integrantes do campo das esquerdas no cenário da resistência armada dos anos 1970. As relações entre a luta armada e o nascimento do Comando Vermelho no Rio de Janeiro é contada no filme ´´Quase dois irmãos´´.

Sobre a prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, o documentário ´´Vlado, 30 anos depois´´, do cineasta João Batista de Andrade, é registro preciso. Ele já havia dirigido outro filme sobre horrores políticos, ´´Doramundo´´, baseado num romance policial envolvendo forças ocultas do período militar.

A repressão política e a luta armada contra a ditadura tem produzido narrativas literárias perturbadoras e gerado filmes inquietantes, independente do formato.

São dessa natureza “O dia em que Dorival encarou a guarda”, episódio do livro de Tabajara Ruas, e “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll, ambas obras transportadas para o cinema. O premiado curta-metragem retrata os horrores das masmorras militares; já o longa ´´Nunca fomos tão felizes´´, de Murilo Salles, é uma adaptação do conto de Noll que explora em profundidade a perda da relação pai/filho por conta do engajamento na luta armada.

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A fragmentação da família e a perda de familiares pelos atos de violência do Estado brasileiro é um tema caro para três dos livros de Bernardo Kucinski: K – ´´diário de uma busca´´, ´´Os visitantes´´ e pesadíssimo livro de contos ´´Você vai voltar para mim´´, um dos relatos literários mais aterrorizantes porque descreve os processos de tortura. Noutro caminho, ´´O amor de Pedro por João´´, de Tabajara Ruas, é obra que fala da resistência política dos anos 1970.

Obras bastante diferentes entre si e que completam novos cenários para o espectador preencher sobre o pós-64. Estão nesta lista ´´Cabra marcado para morrer´´, de Eduardo Coutinho, documentário que acompanha uma família do Nordeste brasileiro antes do Golpe de 1964, militante das Ligas Camponesas, e que revisita a mesma família 20 anos depois para completar o filme; ´´Iracema, uma transa amazônica´´, de Laís Bodansky e Orlando Senna, sobre o autoritarismo dos projetos de expansão e destruição da floresta amazônica.

Ainda sobre os personagens que fizeram a história do período recente de exceção política, temos as histórias da socialite ´´Zuzu Angel´´, do capitão do Exército dis-

sidente ´´Lamarca´´, do deputado federal que passa a ser perseguido pela ditadura após um discurso inflado em ´´O Bravo Guerreiro´´ e o relato de ´´Em busca de Iara´´.

Há também um filme que mostra como a mulher sofreu os horrores dos cárceres da ditadura: este filme é ´´Que bom te ver viva´´ (1989), de Lúcia Murat, com ótima interpretação de Irene Ravache.

Os ínvios caminhos percorridos até aqui, entre cinema e literatura, foram apenas uma tentativa de dar ao leitor um panorama cultural do período compreendido como ditadura militar (1964-1985). Os relatos são vastos; a produção, incessante. Pode-se mesmo dizer que não há uma única entrada para o assunto; a saída, na maioria das vezes, é dolorosa como experiência cinematográfica e habilitação literária.

Esse período da História do Brasil ainda possui muitos acabamentos a serem concluídos. Muito ainda revelará o cinema (veja o curioso caso do documentário ´´Soldados do Araguaia´´); a literatura se volta com força (a trilogia ´´Noite da espera´´, de Milton Hatoum); então, aguardemos. Ao final, será nossa capacidade de absorção dessa soma de produtos culturais o maior fator de disseminação dessas ideias. Continuar essa história. Assistindo, lendo.

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Viviendo en el País Jardín de Infantes: La censura en la literatura infantil argentina en la dictadura militar TEXTO María del Pilar y Vera López

E

l régimen militar del Proceso de Reorganización Nacional que se estableció en la Argentina entre 1976 y 1983 y sus tortuosos mecanismos que paralizaron la cultura del país vedaron el acceso a varias figuras artísticas, entre ellas a la escritora de libros infantiles María Elena Walsh, quien ocupaba un lugar en la “lista negra” del gobierno militar. Mujer multifacética, “si le preguntaban por su profesión, ella respondía: juglaresa” (Pujol, 2011, p.184) y valiente, escribía su postura sobre los tiempos que vivía su país, al que bautiza ´País Jardín de Infantes´ en un artículo publicado por el diario Clarín el 16 de agosto de 1979.

La presente ponencia pretende presentar una interpretación polítia hora da escrita

ca de una de las canciones infantiles más emblemáticas de Walsh: “Twist del Mono Liso”, donde un mono caza una naranja viva e intenta domesticarla, y entender por qué las canciones de María Elena Walsh fueron censuradas, centrándome en la recepción de su música y aplicando la teoría del enunciado propuesta por Mijaíl Bajtín y su círculo.

Con el objetivo de cambiar y moldear el pensamiento de la sociedad, todo lo considerado subversivo, es decir, aquello que trastornaba, revolvía o destruía el orden público impuesto por el régimen, era destruido, literal y simbólicamente. Una de las principales metas era crear un nuevo ´statu quo´ y para ello se puso más atención en los libros infantiles ya que los “ejecutores del terror” página 28

sentían que era una obligación moral instruir a los niños con la ideología de la dictadura. El carácter de la literatura infantil tiene su principal causa en el hecho de que la niñez es una etapa de gran importancia en la formación intelectual de una persona, definiendo la personalidad del futuro ciudadano.

La ilimitada fantasía constituía un paso hacia el cuestionamiento de un orden que reprimía cualquier tipo de estímulos. Era rechazada la visión crítica de la realidad; no era conveniente formar ciudadanos libres y pensantes.

El primero de febrero de 1930 nació María Elena Walsh, al oeste de la ciudad de Buenos Aires, en Ramos Mejía. Hija de Lucia Elena Monsalvo y Enrique Walsh, de ascendencia inglesa e irlandesa y embajador cultural de la familia, quien le hablaba a su hija en inglés y le enseñó a jugar con palabras en vez de muñecos: “Jugar, eso sí, jugábamos a las rimas, a los versitos y las ´Nursery Rhymes´ ” (Massuh, 2017, p.71).

A los quince años, publicaron un poema de su autoría en la revista ´El hogar´ y dos años después ´Otoño imperdonable´, su primer libro de poemas, financiado por ella misma con dinero ahorrado. Envió ejemplares a todas las personalidades del momento quienes la elogiaron y consagraron su libro; María Elena Walsh comenzó a sumergirse en la

vida literaria porteña.

En 1948 fue invitada a los Estados Unidos por Juan Ramón Jiménez y su esposa. Allí supo apreciar mejor a los grandes autores, frecuentar grandes bibliotecas, conciertos, cócteles y aprender del folclore español.

Una vez cumplida la mayoría de edad, viajó a Europa. Camino al antiguo continente conoció a Leda Vallarades, juntas formaron un dúo y su cancionero folclórico del Noroeste argentino fue ovacionado durante cuatro años en París. Cuando no estaba actuando ni leyendo, Walsh comenzó a escribir versos para chicos en su propio idioma.

En 1956, el dúo folclórico volvió a la Argentina y juntas emprendieron una gira por el país presentando su show. Años más tarde la juglaresa estrenó su primera obra teatral infantil ´Tutú Maramba´, sobre la base de los personajes de su primer poemario infantil llamado de la misma manera. Sus versos para chicos se transformaron en canciones, inspiradas en las Nursery Rhymes que su padre le había enseñado: “aquello, que era un juego infantil, tuvo una importancia decisiva cuando me puse a escribir literatura para chicos” (Massuh, 2017, p. 71), las coplas españolas y el folclore. Alternó la publicación de diversos libros con la realización de programas de televisión, obras de teatro y recitales para niños

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y adultos.

Entre 1956 y 1967 compuso la mayor parte de su producción infantil y no quedó nadie sin saber quién era María Elena Walsh.

Entre 1973 y 1975 las ideologías políticas, religiosas y morales no permitían alzar la cabeza con libertad y el declarado anti peronismo a Walsh no le jugaba a favor.

Poco después de la muerte de Juan Domingo Perón, los conflictos del país se hicieron más agudos, y en 1976 “la crisis económica y política combinadas creaban las condiciones para que las Fuerzas Armadas desplazaran a la presidenta y se hicieran cargo del poder, sin oposición y hasta con el alivia-

do consentimiento de la población” (Romero, 1977, p.187). La cantautora no formaba parte de ese sector que apoyaba el régimen, llamado Proceso de Reorganización Nacional por los propios militares, quienes se propusieron restablecer el orden perdido entre muchas otras cosas por el incremento de todos los extremismos, por medio del ejercicio severo de la autoridad, es decir, se propuso – y se cumplió – la eliminación del terrorismo con más terrorismo, aplicado como una cirugía integral a todo y todos los que los militares consideraban, porque no solo los “subversivos” fueron castigados, sino también sus amigos y familiares.

El ambiente artístico fue uno de los más perjudicados. Cantantes, actores, compositores y escritores desaparecieron, fueron torturados u obligados al exilio. La censura literaria mantenía el sistema de dominación terrorista y autoritario a través de la manipulación de información.

María Elena Walsh em cena do filme “Juguemos en el mundo” (1971).

María Elena Walsh abandona la canción y la interpretación en vivo en 1978, pero no se calla. El 16 de agosto del año siguiente escribe para el diario Clarín ´Desventuras en el País Jardín – de – Infantes´, artículo que la posiciona frente al tema de la censura. “Aunque se han prohibido libros infantiles, los pequeños ´monstros´ siguen consumiendo historias con madrastras-harpías, brujas que comen niños, hombres que asesinan a siete esposas, padres que abandonan a sus hijos en el bosque, Alicias que viajan bajo tierra sin permiso de mamá. Entonces ellos, como nosotros, corren el riesgo de perder ese “sentido de familia” que se nos quiere inculcar escolarmente…”

(Walsh, 1979, p.5).

Le parecía absurdo, frívolo, abusivo e inhumano lo que los militares y sus ayudantes, “celadores” para nuestra autora, hacían con la cultura.

“El 17 de agosto, María Elena recibió una llamada de María Herminia Avellaneda desde ATC avisándole que, según una notificación que acaba de llegar al canal, quedaba prohibida la difusión por televisión de todas sus canciones y libros” (Pujol, 2011, p.210). Las ideas de la poeta argentina eran subversivas para la “cultura nacional” que el Proceso buscaba, al igual que para el régimen militar de 1966 y el gobierno pero-

nista de 1973, porque, en definitiva, lo que vivió la Argentina durante diecisiete años fue un ´continuum´ de militares.

Su silencio no era solo por su artículo periodístico. Tampoco es casualidad que haya elegido un género literario relegado por la crítica literaria como lo era la literatura infantil.

Graciela Montes (2005) en “La literatura infantil argentina”, capítulo de su libro ´Literatura infantil. Creación, censura y resistencia´, luego de hacer un recorrido por la historia del género en nuestro país, afirma que la aparición de María Elena Walsh en la década del sesenta marcó un antes y un después ya que le dio un nuevo objetivo a lo infantil, orientado a la educación, al mercado de maestros y alumnos dentro del aula hasta su llegada. Walsh (1964) entendía que “la poesía destinada al niño pertenece al reino de la imaginación y del juego más que a la didáctica” (p.3), pero creía “que es importante acercar al niño a su realidad cotidiana e impregnarlo de conocimientos vinculados al acervo de su propio país” (p.3). El sentido de lo infantil es actualizado por María Elena Walsh al incorporar el juego en el lenguaje y las formas de la comicidad como el disparate o la parodia.

Una literatura que pretenda modelar al niño en los valores morales a partir de sus historias no en-

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tra en la poética de la juglaresa y se hace evidente en la falta de moralejas en todos sus escritos. Con el humor rompe los estereotipos de una literatura pensada para edificar al niño. No pretende dar una lección versificada ni ponerse en el rol de madre, sino que promueve una literatura que subvierte el orden tradicional del mundo y se construye a partir de la lógica del nonsense. En “An anatomy of literary nonsense” Wim Tigges, define el ´nonsense´ como un género narrativo que equilibra la multiplicidad de significados con la ausencia del mismo, a partir de juegos en las reglas del lenguaje.

La estructura lingüística del ´nonsense´ es perfectamente coherente y ordenada, pero esto solo servirá para aumentar el extrañamiento del lector ante el desorden interno del significado.

Le exige al niño - y al adulto porque es él, un mediador, quien les da acceso a las obras de María Elena Walsh - a afinar al máximo sus facultades imaginativas, a agudizar sus sentidos para ver más allá del tiempo y del espacio, pero no de la realidad argentina.

Walsh le cuenta a Massuh (2018) que adora de la poesía popular inglesa la irrupción súbdita del absurdo y su doble sentido muy profundo ya que la realidad histórica

permanece como remanente detrás de sus versos, es decir, que no solo tomó las ´Nursery Rhymes´ lo musical, sino también su contenido.

La experiencia del encierro, la persecución, la clandestinidad, la desprotección y la pérdida de derechos fue la realidad histórica de María Elena Walsh durante la mayor parte de su vida como escritora, tal es así que en sus canciones está la Argentina violenta del ´continuum´ de militares, quienes temieron que alguien más se dé cuenta de eso.

En 1962, Vallarades y Walsh grabaron el EP ´Doña Disparate y Bambuco´, formado por cuatro canciones, entre ellas ´Twist del Mono Liso´. Las cuatro composiciones tienen un hilo conductor que se entiende en el marco de la obra de teatro que lleva el nombre del EP; los personajes emprenden un viaje desde Buenos Aires a París, a pedido de Manuelita para encontrar a la naranja. En París conocen a La Gioconda que les habla de su marido el Mono Liso, famoso domador de la naranja.

Al año siguiente, Walsh regraba en versión solista los cuatro temas, bajo el nombre Canciones para mí y suprime la estrofa número seis donde el Mono Liso le prohíbe a la Reina comerse su naranja. La estrofa vuelve a aparecer en el año 2000 con El Reino del Revés, libro que

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reúne gran parte de la producción musical “ERA RECHAZADA LA VISIÓN CRÍTICA DE LA REALIDAD; NO ERA CONVENIENTE FORMAR infantil de la autora.

El ´Twist del CIUDADANOS LIBRES Y PENSANTES.” Mono Liso´ relata en siete estrofas de ocho das del Proceso de Reorganización versos cada una lo que el famoso Nacional.

Mono Liso le hizo a la naranja: la El texto y el contexto se unen cazó, la guardó viva en el refrigera- en todas las expresiones del arte. dor, la domó día a día, la llevó en una Valentín Volóshinov, discípulo e jaulita, hasta que un ladrón se la robó hijo dilecto de Mijaíl Bajtín explica: y tuvo que ir a quejarse a la corte del “Cualquier producto ideológico es Rey Bobo, quien era el verdadero parte de una realidad natural o social, ladrón. no sólo como un cuerpo físico, un Hay un juego polifónico en el instrumento de producción o un prorepertorio de Walsh. En el caso de ducto de consumo, sino que, además, la canción tratada dado por el estri- a diferencia de los fenómenos enubillo de la canción: “La naranja se merados, refleja y refracta otra realpasea/de la sala al comedor. /No me idad, la que está más allá de su matires con cuchillo, / tírame con tene- terialidad. Todo producto ideológico dor.” (Walsh, 2006, p.13) que Alicia posee una significación, representa, Origgi (2014) define como una rima reproduce, sustituye algo que se enmuy extendida por toda la Argentina cuentra fuera de él” (2014, p.37). y por lo tanto conocida por el públiEn otras palabras, todo acto co cuando Walsh la incorpora a su discursivo se expresa en el exterior, repertorio. Walsh la personifica in- en el intercambio, que responde a estegrándola dentro de un poema del pecíficas formas de interacción social disparate y compone para él un twist, (discursivas, dialógicas, ideológiritmo que hacía furor entre los adul- cas). La polisemia del enunciado se tos en los sesenta. acentúa acorde al horizonte ideológiSi bien el destinatario infantil co que le corresponde, sin obviar la percibe la situación disparatada con participación activa del emisor y la humor, el lector adulto reflexiona recepción activa del oyente. sobre una realidad vigente: el trastoEn el horizonte ideológico del camiento de los valores y las ideas régimen militar todo lo que perturbestablecidas por las Fuerzas Arma- aba, perjudicaba o desprestigiaba sus

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actividades era reprimido. Con el ´Twist del Mono Liso´, como con muchísimas otras obras artísticas que circulaban en la época, el receptor interpretaba y asociaba lo que leía con el afuera ya que el contexto social determina la lectura. La literatura no trata de aludir directamente a los hechos sino de interpelar la sensibilidad del lector por medio de situaciones que dan cuenta de las formas en las que la violencia incide en el sujeto.

En el ´Twist del Mono Liso´ el protagonista caza viva a una naranja, igual que los militares secuestraban personas en la calle a plena luz del día. La guarda viva en el refrigerador, alegoría de la detención en los centros clandestinos de tortura, más tarde la pasea en una jaula, encerrada. María Elena Walsh exalta al Mono Liso de manera irónica, lo califica por las acciones que realiza: “¡Qué coraje, qué valor!”, “El valiente cazador” (2006, p.13) y su nombre Liso lo califica como limitado, como eran los celadores que actúan en nombre de los militares, quienes aparecen también en la canción bajo el nombre del Rey Bobo.

A este personaje se le atribuye el adjetivo mentiroso.

Este es solo un ejemplo de lectura política que podían hacer los receptores de las canciones de María Elena Walsh durante el Proceso de Reorganización Nacional. Quizá la autora, que excedió el campo estrictamente literario del libro para chicos, describió otro periodo de la historia de su país, pero en un contexto en el que se seguían escuchando sus canciones, las significaciones cambiaban.

La autora valiente se atreve a tomar un subgénero para convertirlo en un espacio para la reflexión. Pone al lector frente a nuevas condiciones para interpelar el mundo, para contribuir a la construcción de nuevos sentidos del pasado. Su discurso instala la paradoja y su humor transgresor deleita y hace unir y confrontar ideas diversas.

El periodo de militares que vivió nuestro país dejó secuelas.

Lo que comenzó como una quema de libros, acabó quemando hombres. El encuentro del texto con el receptor permite la auténtica experiencia de aprender. El pequeño lector o espectador de María Elena con ingenuidad contempla la realidad y será quien pueda transformarla.

Todos los datos biográficos de la autora fueron extraídos de la biografía ilustrada “Entre las hojas que cantan. La vida de María Elena Walsh”.

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ficções

ficciones

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#nunca mais TEXTO E ARTE Fabiana Souza

A palavra bordada guarda mais atenção que a palavra escrita. É preciso bordar palavras, letra por letra, linha por linha, na carne dos dias, com o fio vermelho da memória, para nunca esquecer.

Agora tenho tempo

unca ma

para as coisas lentas, mas prefiro ser incisiva quando me furo com a agulha e sinto a dor de tantos além da minha.

Bordo, simplesmente: “#nuncamais” a hora da escrita

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I eat, I fart TEXTO João Vitor Pereira

I eat, I fart It’s it, an arte.

tentar e tratar e trocar e tramar é engolir, é ceder à maré, afogar e nadar e afundar e morrer. É repetir e repetir e repetir e repetir -até que eu, réptil, não saiba mais morrer, não saiba repetir,

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não saiba mais me ser. Mesmo assim, algo há de caber, algo há de cair, algo há de quebrar, e de quebra, algo há de avoar. Dialogar, engolir, digerir, vomitar: vou-me estar logo alí, vasculhando o to be; vou ceder à maré, vou amar destruir.” página 37

abelhas TEXTOS Jaqueline Bastos

Ferrão da pátria, anjo, demônio, infortúnio dos séculos, mulher, Grito, jardim, tumulto, quebra de tabu, mulher, Pecado, raiz do primeiro mau, motivo da primeira lágrima, caos, mulher; Imperfeição, milagre, paradoxo, amor, mulher, Universo, família, almoço de domingo, capa da revista, mulher, Paz, sexo, guerra, roupa lavada, seio, vítima, vilã, unha quebrada, mulher; Céu, provocação, acalento, inferno, mulher, Calor, misericórdia, vingança, frieza, mulher, Abraço, virtude, instinto, saliva, mulher; Poesia, flor, menstruação, choro, sorriso, vida, mulher, Clitóris, lenda, mãe, bruxa, deusa, estátua, mulher, Rainhas da colmeia mundo, abelhas.

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palavras

Há sempre as palavras que caem bem, e as que não cabem em lugar nenhum.

Algumas dizemos, outras esquecemos. Com raras, sonhamos e nunca ouvimos, Há sempre as doces, as amargas, as rudes e as acalentadoras.

Todas, de alguma maneira, repletas de formas, sabores, sentidos e cores.

Todas importantes, mas há as que dispensamos.

Há sempre palavras onde tem homens, mas nem sempre há homens onde há palavras.

Algumas soam como ruído, outras tantas fazem guerra, enquanto poucas chamam a paz.

Há sempre pequenas e grandes, da realeza ao baixo escalão, Todas vazando dos lábios, para se declarar, odiar e ensinar.

Todas ditas, mas há sempre as que não são ouvidas.

Há palavras para todo tipo de gente.

Dezenas pra machucar, centenas para curar.

Palavras nos livros, nas revistas, nos rádios, na televisão e nos sonhos.

Até existem palavras dentro do silêncio, e - inclusive fazemos uso de palavras para explicá-las. } Todas, de todo tipo, povoam a terra, inundam os mares, recheiam as manchetes, Falam por nós e às vezes nos calam.

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Mesa para dos TEXTO María del Pilar

—U

na mesa para dos, por favor – dijo mirando al mozo fijo. El mozo, un joven extranjero, que probablemente trabaja allí para poder pagar su alquiler en la Ciudad de la Furia, la acompañó sin decirle una palabra. Señaló dos lugares: uno cerca de la cocina, el gran laboratorio de aquel pequeño bar. Otro, cerca de un gran ventanal, desde donde el Obelisco se veía en diagonal.

Eligió el segundo. La altura de aquel monumento histórico le producía vértigo, aunque su curiosidad moría por subir allí y ver a todos desde el lugar de Dios. Se sentó, con su mochila entre las piernas, y comenzó a jugar con los sobres de azúcar que estaban en la mesa.

— Hola, ¿qué te puedo ofrecer? – la sorprendió una moza sonriente.

— Estoy esperando que llegue alguien.

La moza se retiró, no sin antes sonreírle. Siguió pensando en la experiencia de subir al obelisco, tocando los sobres de azúcar y sacando las servilletas. No podía sacar la vista de aquel monolito blanco. Cerró sus ojos, sus largas pestañas negras tocaban sus pómulos, despacio y con

suavidad.

El tiempo pasaba lento, las agujas de aquel reloj de pared avanzaban muy despacio. El tiempo parecía no querer seguir. Su vida pasó delante de sus ojos. Su niñez, el peluche que su papá le había regalado, la cantidad de veces que su abuela la había llevado a pasear; su adolescencia, las peleas con su madre; su juventud, la cantidad de decisiones mal tomadas que hoy la llevaban a ser quién era.

El sol se escondió y los mozos comenzaban a cuchillar. Hacía horas que estaba ahí sentada, con los ojos cerrados. Varias veces la moza de la sonrisa se había acercado a preguntarle si quería algo, si ya estaba lista para pedir. La respuesta era siempre la misma: — Estoy esperando que llegue alguien.

Era la hora del cierre. Las pestañas seguían acariciando la parte superior de sus cachetes, pero ni un pelo se movía. Todo era quietud.

La Ciudad de la Furia parecía calma frente a su cara. Los ruidos no la molestaban, el murmullo menos. La voz de una abuelita despidiendo a su nieta la sacó de su estado de introspección: — Comprendí que ya no está.

Tengo que aprender a merendar sola.

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conto:

A Taxonomia de D’Alambert TEXTO Rafael A. Jorge Dedicado a Izadora Lima Dutra

A

taxonomia é o ramo da ciência dedicado à divisão dos seres vivos em grupos, os taxa, cujo singular é taxon (ambos heranças do grego; assim como a própria gramática, a lógica e o Belo.)

Um conhecido taxônomo francês, mais um D’Alembert para a história da ciência moderna, propôs a divisão de toda e qualquer entidade com vida (e aqui poderíamos ampliar a definição usual das entidades capazes de reprodução, crescimento, resposta a estímulos, dentre outras coisas que já caíram em desuso pelo descobrimento do vírus e da computação, mas serei pragmático para fins didáticos) em grupos, em

taxa; de acordo com seus objetos de prazer; e opô-los às entidades sem vida, sem capacidade de gozo por algo.

Claramente, a comunidade científica francesa, e até mesmo a inglesa - muito mais liberal - foi contrária imediatamente a tal disparate pseudocientífico, antes mesmo de ler o livro escrito por D´Alembert (intitulado por este, com muita razão, “A Ordem Pelos Prazeres: como o mundo se divide pelo gozo”).

O estudo feito pelo experto francês foi minucioso, e todo seu método de pesquisa se resume à extensa (porém, sintética) passagem inicial da obra, logo após os agradecimentos à sua esposa Amèlie sem a qual ele ``nunca poderia

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ter entendido como a natureza se distingue pelo gozo, ou melhor, pelos tipos de gozo; com ela, eu pude entender o que distingue o homem do resto dos animais e, daí, partir para os outros seres.

Amèlie possibilitou-nos esta obra´´, assim disse.

Após a descrição metodológica, o autor inicia sua tese: “todos os seres vivos se distinguem pelo gozo”.

E, então, propõe uma revolucionária classificação do Cosmos: “tudo que goza, vive; o que não, é um ser não-vivente, não gozante então, numa nova nomenclatura: não-gozante”. O leitor curioso terá que dirigir-se diretamente ao livro para entender melhor como D’Alembert pôde deduzir logicamente - e até submeter ao rigor científico - o conhecimento sobre os objetos de prazer, de gozo ou fruição, das plantas, fungos, bactéria (é importante salientar que o autor viveu num mundo que não conhecia os vírus, o século XIX), insetos e outros animais que não sorriem ou

produzem discurso com sentido.

O método é fino e interessante; contudo, abre possibilidades à crítica - já muito explorada pelos ingleses e seus franceses de seu momento. D´Alembert afirma que o único dos pensadores da antiguidade que soube entender a natureza e sua ordem foi Epicuro, mesmo que indiretamente. E nenhu-

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ma outra filosofia pode ser mais natural que o epicureismo. Para ele, o estoicismo é uma negação do natural, uma doutrina de rebeldes com a própria natureza humana; e por isso mesmo, nunca atingível em sua totalidade, “não há homem estóico, diz ele, há homem que se pensa estoico”.

Quanto aos cristãos, D’Alembert julga ser esta uma filosofia quase acertada.

Se não fosse a interdição ao sexo, aponta, sería a doutrina do homem ideal, já que o gozo estético, da gramática, da lógica, é garantido pela Biblia. Seu desapontamento com o cristianismo o levou a escrever alguns aforismos que foram reunidos num manifesto ao Novo Cristianismo, publicado em 1837 em Lyons. Nele, D´Alambert sintetizou suas ideias e as uniu a alguns dos preceitos do cristianismo (como todo bom cristão, nosso autor tinha sua própria interpretação da Bíblia e um profundo conhecimento pessoal com Deus e seus desígnios).

A sua proposta de religião pode ser resumida como um cristianismo sem as interdições ao prazer que caracterizam o Homem.

Voltemos a sua obra principal: “A Ordem Pelos Prazeres”.

Neste livro, o autor divide todas as entidades perceptíveis em dois taxa: que diferenciam as entidades que não gozam das que gozam. Estas, por sua vez, se agrupam conforme seu objeto de gozo, de prazer. Há os que gozam pela presença de água, outros pela presença de ar; já outros tantos sentem prazer pela comida; enquanto alguns, na abstinência. Após toda a classificação sistematica - perdoe-me a redundância, mas seu resultado merece muito enfase - D´Alambert propõe um táxon que estaria acima de todos os outros, o dos seres que sentem prazer sexual (já que lhe estava mais que claro que tantos os humanos quanto os cachorros, gatos, leões, pássaros, peixes, baleias e macacos tinham, como objeto de prazer comum, o sexo.)

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As diferenças se davam pelos outros objetos de prazer que os marcam positivamente; por exemplo, os peixes têm prazer na submersão aquática, formando então toda uma sub-subclasse própria; enquanto os pássaros, em voar, igualmente conformam um grupo.

Apesar da complexidade, a exatidão que atinge sua classificação quando referida aos humanos deveria ser, ainda hoje, de muito interesse aos estudiosos das Ciências Sociais, Biológicas e Humanas.

Numa passagem muito citada por críticos posteriores, D’Alembert transpassa os limites das disciplinas e aborda a Sociologia a partir da taxonomia: “Os seres humanos se separam das outras entidades que também sentem prazer físico pelo gozo, por gozar igualmente ao adquirir conhecimento; o intelecto sublima o homem pelo gozo inteiramente virtual, não corpóreo, sem líquidos ou carne. (…)

Há, portanto, como analisar os tipos humanos a partir

da identificação, própria da natureza humana, das variedades de duas grandes categorias: a dos prazeres físicos (sendo o sexo o prazer mais importante, ele divide essa categoria em outras quatro: gozo por homens, gozo por mulheres, gozo por mulheres e homens, não gozo fisico); e a dos prazeres intelectuais (que se divide em: gozo dos teístas - crentes na palavra ou na matematica- e o dos não teístas, os ateus).”

Para D’Alambert, há portanto dezenove tipos humanos (seriam vinte, porém ele desconsidera a configuração “não gozo físico e ateu” - pois, para ele, tal combinação não ocorre naturalmente - um não-gozante é um não-vivente). O autor diz ainda que há certo equilíbrio entre estes grupos, porém não de forma homogênea.

A distribuição é muito mais tendenciosa à configuração: “homem: gozo por mulher - crente nas palavras” e “mulheres: gozo por homem - crente nas palavras”. Esta noção de equilíbrio natu-

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ral pode ser entendida como uma característica visionária do autor, já que Darwin ainda não havia postulado suas ideias da Evolução (cuja ideia de equilíbrio natural é similar à de D’Alembert, mesmo que de maneira tênue).

Entretanto, nosso autor não deixa de afirmar que o ser humano mais nobre, por natureza, é o da configuração cujo prazer é máximo, ao menos em possibilidade: gozo por homem e mulher - gozo pela matemática. A

palavra, diz ele, é importante fonte de gozo; porém, a matemática é sublime, como bem sabia o grego Pitágoras. Devo concordar com nosso francês, todo matemático é profeta e pode iniciar uma religião. É justamente por dominar tão bem os signos que os que gozam da matemática gozam, também, da gramática. Ter prazer pela matemática não é excludente, é extensivo, da mesma forma que, na concordância do sintagma nominal, se há dois substantivos coordenados - um masculino e outro feminino - o adjetivo que lhes caracteriza deve ir no masculino; não porque o femenino deixa de ser femenino, mas porque o masculino é masculino e femenino ao mesmo tempo. Assim são os que sentem prazer pela matemática, sentem prazer tanto pelos números quanto pelas palavras.

Apesar de seus aportes à Biologia e a Sociologia,

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hoje, a ciência de D’Alembert é pouco estudada nas universidades. Embora alguns poucos sociólogos tenham - de maneira oportuna - reconhecido seus logros na intelecção da divisão natural dos seres e entidades, D’Alembert foi esquecido; foi um gênio morto pela posteridade. Se o prazer, como é claro à simples observação cotidiana, move o homem, por que não moveria o resto da natureza também?, pergunta o autor, retoricamente, em uma passagem que conclui a obra. Devo concluir eu também: “A Ordem Pelos Prazeres” é uma obra de profundo conhecimento de seu autor para com a natureza, ou devo dizer, o Cosmos. De maneira elegante e direta, ele propõe uma categorização do Tudo a partir do mais natural que lhe chega aos sentidos, o gozo; e o expande a todas as coisas, sempre numa relação de oposição (antecipando até mesmo o estruturalismo).

Dessa forma, configurou a mais rica taxonomia feita por um sistematizador, a hora da escrita

um classificador do Cosmos - que pode ser usada tanto nas Ciências Biológicas quanto nas Sociais ou Humanas. Sua obra é uma das últimas que ainda foram capazes de fazer o encontro de disciplinas.

Infelizmente, D’Alembert, como todo homem de gênio, morreu jovem - aos 48 anos -, enquanto tentava comer a maior quantidade de açúcar que podia enquanto participava de uma orgia; morreu em favor da ciência, realizava um experimento.

Como se pode inferir, sua morte foi mais um motivo de zombaria por parte de seus críticos e depreciadores, contribuindo ainda mais ao esquecimento de suas obras. Há quem diga que toda a Taxonomia do Gozo não passou de um erro sistemático, porém ninguém pode deixar de reconhecer sua relevância na interdisciplinaridade dos conhecimentos, e seus aportes à psicologia das coisas. Este texto é, pois, um convite e uma introdução às ideias de Ferdinand D’Alembert. página 46

entregue

entregue TEXTO Carolina Gropillo

O desejo de encontrar com a sua boca surge do simples ato de escolher a calcinha que vou usar. } Um choque de lembrança desperta borboletas adormecidas na minha barriga. E elas voam livres a fim de } acariciar cada parte do meu corpo. } Durante o dia quero seu beijo quente. Quando a Lua surge, traz consigo um sentimento de necessidade. } Como me deitar na cama e dormir, se preciso do seu toque? } Seus dedos gentis me desmontam em pedaços, sobre os quais não tenho mais controle.} Simultaneamente, } eles transmitem ferocidade para a minha pele sensível, servindo de argamassa para a construção de } camadas [e mais camadas] de prazer. } Apesar da sua sensualidade não te resumir por inteiro, trata-se de um pedaço importante, por ter a} capacidade de ferver meu sangue, revirar meus olhos e contorcer meus membros.} Um simples olhar me faz derreter em seus braços. Meu próprio nome me escapa. Assim me entrego às suas } vontades, permitindo que o prazer tome conta da minha essência. } dezembro de 2020

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´

Libertá TEXTO Renato Rocha

A

cocorado no canto do único cômodo vivo do meu apartamento encaro o céu vazio.

Apenas a lua se fazia ver por entre a névoa do céu noturno. Era, de fato, uma noite serena. Crianças dormiam tranquilas em casa, após um longo dia de brincadeiras fortuitas. Pais brigavam e se amavam em todos os cantos da cidade. O mesmo luar que iluminava o meu fim concebia luz à vida, em suas mais primárias formas.

Me lembro de estar ouvindo “what a wonderful world” sentado na poltrona deste mesmo cômodo, anos e anos atrás.

Caderno e caneta na mão, registro de gastos e lucros, panela no fogo, a vida correndo igualmente para mim e para os outros.

Me lembro de estar de pé no parapeito da janela, ouvindo o bebê do apartamento de cima chorando, e hoje me lembro de o ver correndo no pátio do apartamento, já exibindo os seus primeiros arranhões, uma vida de aventuras! É engraçado pensar nisso agora, com a seringa na mão. De fato, hoje já não penso mais que a vida que corria para mim é a mesma que corre para os outros.

Eu devo ter me perdido em algum lugar do circuito. No quarto, apenas o abajur sobre a escrivaninha permanece aceso, presente de anos atrás de minha mãe.

- Mãe! Eu consegui! O emprego é meu!

Me lembro do olhar de felicidade, do alívio, do regozijo que

ambos sentimos.

- Eu sabia que ia dar tudo certo no final! A mãe comprou um presentinho pra você, pra te iluminar nesse novo momento da sua vida!

E quem diria, ela acertou. Ele me ilumina, ilumina minha alma, minha vida, meus temores e pesares, minhas poucas alegrias e minhas muitas frustrações. Eu não quero que quem me ache pense que fui infeliz. Claro que não! Fui sim, fui muito feliz; feliz das coisas boas, feliz dos bons momentos. Mas acontece que o balanço da felicidade, para mim, já não pende mais para a direita.

Amanhã, pela manhã, a vida continuará correndo para os outros como correu para mim, um dia. A criança do apartamento de cima acordará, brincará e se arranhará, os pais sorrirão, brigarão e se amarão, as vidas continuam. De fato, Lewis, é um mundo maravilhoso. A brisa bate mais forte no meu rosto, meus demônios olham-me do canto da sala. As luzes da cidade ainda estão acesas, os amores e paixões surgem e perecem. Colhi a vida que plantei, e de modo algum me arrependo das escolhas que fiz, as escolhas apenas não me fazem mais.

Sinto a agulha em contato com a pele, o medo já nem sinto mais. Há tanto tempo que busco libertação de mim.

Olho para o mundo afora novamente, o céu inebriado, a lua pingente no céu. Queria abraçá-la. Sinto frio, é tarde. É, de fato, uma noite muito serena.

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Benévola y terrible

soledad TEXTO Maira Permayú Hacen juntas acto de presencia ya a lo lejos Son una pero vivamente veo doble.

Me envuelven en una niebla espesa y notarse no Puede la suavidad de nuestra voz. Me resigno a eternas simposIacas noches juntas.

Tocan mi puerta trasera, testarudas; no hay torre, trampa, Estrategia, estafa que impida La conquista de mi cuerpo, alma, espiritualidad impía.

Bajo su realmente falso yugo vengo varada y perdida.

Aquí están la Alabada y Temida Soledad. ¿Qué melliza visita mi mente acorazonada?

Benévola,...te ruego…, colmame del conocimiento Sobre mi naturaleza humanamente cegada…

Fiel herrera de mi santidad… ¿podrías caridad Participar a esta mi ceguera espiritual?

Pero, si perteneces al Hades, solo diré: ¡Aléjate de mí, cazadora de tibios! ¡No aceches a mi corazón envejecido!

Los años me advierten mientras la esperanza alienta.

Quien dialoga contigo su esclavitud experimenta. …Perenne tarea, santa, distinguir que interminables conversaciones he tenido.

(He tenido, perenne tarea santa, que distinguir interminables conversaciones)

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Um pequeno mundo

errante

TEXTO Ícaro Medeiros de França

E

xistem dois motivos para um planeta ficar perambulando por aí, a maioria foi ejetada de seu sistema solar natal após ser atingido por um objeto bem maior que ele próprio, isso ou cansaram da vizinhança e resolveram ir contra todas as normas e bater perna. A digressão é um salto no escuro, um bem literal pois quanto mais distante da estrela hospedeira, menos iluminação.

O planetinha vagava pelo escuro do infinito quando sentiu uma presença.

“Opa, o que foi isso?”

“Desculpe, fui eu.”

“Eu quem?”

“Nebulosa de Prudes, muito prazer.”

“Pois, Dona Nebulosa de Prudes, fique sabendo que

a senhora está me deixando desconfortável, me cercando assim.”

“Não posso evitar, sou uma nuvem interestelar de poeira e gases ionizados a partir de restos de estrelas.”

“Hum, essa conversa pode até funcionar com os outros, comigo não. Vá tirando a mãozinha daí, vá!”

“Mas… eu não tenho controle sobre a minha forma.”

“Queridinha, Saturno tinha essa mesma estratégia, não tenho controle. Quem já viu? Bichão véi só quer dar uma de desconstruído, sei qual é a dele. Aquilo ali finge que gosta da personalidade celeste pra pegar o cor-

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po celeste. Amostrado que só com aquele monte de anel, negócio sem necessidade.

Mas, vou te contar, ô lugarzim sem futuro é aquele Sistema Solar. O outro lá, o esquentadinho, Mercúrio, só sabe dizer que é próximo do doutor, que é homem de confiança do Sol. O tal do babão é uma criatura que eu não tenho paciência.”

“Não conheço esses indivíduos.” Diz a Nebulosa de Prudes.

“E nem vale a pena conhecer.

Tem umazinha, a Terra, se aaaachã.

Ah, porque eu sou habitada, tenho lua pra criar, se fazendo de sofrida ainda por cima. Júpiter tem 79 luas e cuida de tudinho sem reclamar. Ei, mas visse a sacanagem com Plutão, rapaz? Sempre ocupou lá a função dele, aí de repente ele não tem órbita livre, rebaixado por causa de uma burocracia, e ainda com laço gravitacional, viu? Dermilivre!”

“Esqueça os outros, quero saber de você.”

“Pia mermo, soltando as

garrinhas do fumacê. Te enxerga, menina” “Sou formado da matéria prima que origina os sóis, eu enxergo muito bem e um dia todos vão enxergar graças a mim.”

“Ser filho de estrela agora é algum mérito, por acaso? Isso é pr´eu ter medo, é?

Tudo o que existe teve um início num passado que não é você, pouco me importa quem você pode ser, admita sua vigência e viva com honestidade.

Isso sim é coragem.

E me dê licença, planeta órfão igual a mim é o que mais tem nesse Universo, preciso de ninguém pra iluminar meu caminho, não. Eu vou no escuro sem precisar tatear ninguém, viu, Dona Prudes. Ó, que tô passando! ” “Convencido.”

“A gente disputa espaço no espaço, meu amor. Tem que se valorizar.”

E o pequeno mundo continuou voando descuidadamente pela imensidão do Cosmos.

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La gracia desgraçada TEXTO Rafael A. Jorge No tiene gracia Una vida sin el beso Que te di.

Llegué con las espinas De la cosa que se tornó rosa Con tu sola mirada Hacia mí.

Por fin y por desgracia, Teu sorriso, que eu vi graça, Me arrebatou com tanta gracia Que por poco No me herí.

Pero la vida es mismo dura, Água bate até que fura.

E no momento que fui fisgado, Como un pez que fue pescado, Pouco havia pensado Que, ahí, habíamos tenido El temido fin.

Como las cosas de mucha gracia Tienen la costumbre de acabar: Água bate mas não dura E eu outra vez Me quedé sin ti, En la sombra oscura Do engraçado fim.

Sin tu mirada, O beso, Ni piel, O tesa vara.

Solamente con la sensación de que, Like Adam and Eve, Podríamos haber povoado Un mundo todo de rosas, Sem espinhas, Ou mágoas, Um lugar muito feliz.

Pero la graça quemó como grasa, Dejándome la vida sin gracia, Sin ni darme las gracias En el momento de salir.

No hubo gracia, Senão um choro dengoso.

Porque quanto mais fico nervoso, Mais recordo-me de ti.

Al fin y al cabo: Ni un beso tuve Cuando me dejaste En el eterno silencio Do inevitável fim.

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Expediente Editores Sofia Mello Lungui. Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2020).

Rafael S. Agostinho Jorge. Estudante na Universidad de Buenos Aires e Universidad Católica Argentina.

Visual Projeto gráfico e diagramação: Sofia Mello Lungui Capa: Yasmin Borges - @enigma35mm Ilustrações dos ensaios: Carolina Simões - @caorlimoes

Textos Prefácio: Rafael S. Agostinho Jorge “Narrativas da opressão”: Edgar Aristimunho, historiador pela UFRGS e escritor, autor de ‘O homem perplexo’.

Trabalha na PFDC (MPF) “Viviendo en el País Jardín de Infantes”: María del Pilar, estudante de Letras na Universidad Católica Argentina “Cortázar entre os militares”: Pedro Henrique Zandomeneghi, jornalista “O legado latino-americano de Eduardo Galeano”: Roberta Requia, jornalista

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