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Associação dos Juízes Federais do Brasil Ano 25 – Número 92 (1º semestre/2012)
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Direito Federal Revista da
AJUFE Utilidade Pública Federal Decreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p. 15057) Presidente: Gabriel Wedy Diretor da Revista: José Lázaro Alfredo Guimarães Capa: Editora e Artes Gráfica Zeni Ltda. Pintura da Capa: Coleção Arnaldo Marchetti Rio de Janeiro Número de Registro: Acrílico sobre tela 100 x 100 cm. – Reinado dos Festeiros – Couto de Magalhães de Minas Assinada * Paiva Frade Arte e Leilões Barrocão * Simone Ribeiro Anexo segue a imagem Diagramação e Projeto Gráfico: Editora e Artes Gráfica Zeni Ltda. E-mail: graficazeniltda@terra.com.br Impressão e Acabamento: Gráfica Zeni. Obs.: Os textos e sua revisão são de responsabilidade de seus autores.
Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE SHS Quadra 06 – Bl. E – Conjunto A, Sala 1305 a 1311 Brasil XXI, Edifício Business Center Park I, 70322-915 – Brasília – DF Telefone: (0xx61) 3321-8482 Fax: (0xx61) 3224-7361
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Diretoria da Ajufe Biênio 2010/2012
Gabriel de Jesus Tedesco Wedy Presidente Fernando da Costa Tourinho Neto Vice-presidente da 1ª Região Fabrício Fernandes de Castro Vice-presidente da 2ª Região Ricardo de Castro Nascimento Vice-presidente da 3ª Região Fernando Quadros da Silva Vice-presidente da 4ª Região Nagibe de Melo Jorge Neto Vice-presidente da 5ª Região José Carlos Machado Júnior Secretário-geral Carla Abrantkoski Rister Primeiro secretário Cynthia de Araujo Lima Lopes Tesoureiro José Lázaro Alfredo Guimarães Diretor da Revista Márcia Maria Ferreira da Silva Diretora Cultural Érika Giovanini Reupke Diretora Social Vladimir Passos de Freitas Diretor de Relações Internacionais Jorge Luis Girão Barreto Diretor de Assuntos Legislativos José Francisco Andreotti Spizzirri Diretor de Relações Institucionais Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti Diretor de Assuntos Jurídicos Wilson José Witzel Diretor de Esportes Abel Fernandes Gomes Diretor de Assuntos de Interesses dos Aposentados Sidmar Dias Martins Diretor de Comunicação Ivo Anselmo Höhn Junior Diretor Administrativo Alexandre Ferreira Infante Vieira Diretor de Tecnologia da Informação Antônio André Muniz Mascarenhas de Souza Coordenador de Comissões Reynaldo Soares da Fonseca Suplente Suane Moreira Oliveira Suplente Márcia Vogel Vidal de Oliveira Membro do Conselho Fiscal Tânia Regina Marangoni Zauhy Membro do Conselho Fiscal Warney Paulo Nery Araújo Membro do Conselho Fiscal Jorge André de Carvalho Mendonça Membro do Conselho Fiscal (Suplente) Fernando Cleber de Araújo Gomes Membro do Conselho Fiscal (Suplente)
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Colégio de Delegados Seccionais Juízes Jair Araújo Facundes Gustavo de Mendonça Gomes Dimis da Costa Braga Fábio Moreira Ramiro José Eduardo de Mello Vilar Filho Raquel Soares Chiarelli Rodrigo Reiff Botelho Gabriel Brum Teixeira Newton Ramos Raphael Cazelli de Almeida Carvalho Raquel Domingues do Amaral Corniglion José Henrique Guaracy Rebelo Daniel Santos Rocha Sobral Bianor Arruda Bezerra Neto Thais Sampaio da Silva Carolina Souza Malta Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho Vellêda Bivar Soares Dias Neta Hallison Rêgo Bezerra Rodrigo de Godoy Mendes Helder Girão Barreto Rodrigo Machado Coutinho Janaína Cassol Machado Fernando Henrique Correa Custódio Fernando Escrivani Stefaniu Marcelo Velasco Nascimento Albernaz
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Estado AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MT MS MG PA PB PR PE PI RJ RN RO RR RS SC SP SE TO
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Índice Palavra do Presidente ....................................................................................................... 11 Palavra do Diretor............................................................................................................. 13 Seção de Doutrina .............................................................................................................. 14 A Separação dos Poderes e a Independência do Poder Judiciário ........................ 15 Dr. Gabriel de Jesus Tedesco Wedy A Correlação entre a Norma Jurídica Kelsiana e a Teoria Ecológica e sua Importância para a Construção Científico-Dogmática da Norma Tributária ......33 Dr. Eduardo Morais da Rocha A Penalidade de Cassação de Aposentadoria do Servidor Público no Regime Contributivo.................................................................................................................... 49 Dr. João Batista Ribeiro As viagens insólitas até às populações tradicionais..................................................69 Dr. Antônio César Bochenek Centenário de Nascimento do Ministro Carlos Thompson Flores.......................... 83 Dr. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Coisa julgada Inconstitucional - limite de aplicação............................................... 167 Dr. Murilo Brião da Silva Controle Judicial de Constitucionalidade: O Contributo da Constituição de 1891....197 Dr. Edilson Pereira Nobre Júnior A Cooperação Jurídica Internacional em Matérias Penal e as Dificuldades Enfrentadas no Direito Brasileiro............................................................................... 221 Dr. Marco Bruno Miranda Clementino Direito & Economia - Uma análise essencial............................................................241 Dr. Marcelo Guerra Martins O Mecanismo do Julgamento Conjunto como Instrumento de Cooperação Judiciária Penal Europeia.............................................................................................263 Dr. Carlos Wagner Dias Ferreira Legitimidade e Despolarização da Demanda..........................................................281 Dr. Antonio do Passo Cabral Pensão por Morte e Exclusão da Concubina do Rol de Dependentes..................319 Dr. Oscar Valente Cardoso Sistema Progressivo - Mecanismo de Transformacao e Reintegracao (ou o que se espera dele)................................................................................... 339 Dr. Alexandre Pontieri
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Palavra do Presidente Prezados leitores, É com satisfação que apresentamos o 92º Volume da Revista da AJUFE. Sua publicação é alusiva aos 40 anos de nossa associação, que tem sido incansável na defesa do Estado Democrático de Direito, do Regime Republicano e da independência do Poder Judiciário como pilar de nossa democracia. No último dia 09 de abril, tivemos homenagem a nossa entidade em Sessão Solene oferecida pelo Senado Federal, o que denota o protagonismo que a AJUFE atingiu nestes 40 anos como personagem social junto ao povo brasileiro. A nossa intenção com esta publicação é oportunizar ao associado um espaço qualificado para publicar e disseminar a sua cultura jurídica em benefício dos operadores do direito e da sociedade brasileira. A qualidade técnica dos artigos publicados demonstra a capacidade dos juízes federais brasileiros na busca do aperfeiçoamento das ciências jurídicas e sociais e do Estado de Direito. Faço um especial agradecimento ao Desembargador José Lázaro Guimarães pela incansável atuação como Diretor de nossa Revista e pelo trabalho realizado nesta edição e também no Volume 91. Forte abraço a todos e aproveitem a leitura,
Gabriel Wedy Presidente da AJUFE
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Palavra do Diretor Esta edição, marca a despedida da atual Diretoria da AJUFE, com a divulgação das ideias e posições da categoria, permitindo sua integração ao universo jurídico nacional. Nela estão reunidos artigos sobre temas relevantes, como a separação dos poderes e a independência do Poder Judiciário, de autoria do nosso presidente, juiz federal Gabriel Wedy; a cooperação jurídica internacional em matéria penal e as dificuldades enfrentadas no direito brasileiro, pelo juiz federal Marco Bruno Clementino; a controvertida questão da pensão por morte e a exclusão da concubina do rol de dependentes, pelo juiz federal substituto Oscar Valente Cardoso; o sistema progressivo como mecanismo de transformação e reintegração, pelo advogado Alexandre Pontieri; o limite de aplicação da coisa julgada inconstitucional, pelo juiz federal substituto Murilo Brião da Silva; o controle de constitucionalidade como contribuição da Constituição de 1891, pelo desembargador federal Edilson Nobre Júnior; a migração entre os polos da demanda civil, pelo professor Antonio do Passo Cabra; a integração entre Direito e Economia, pelo juiz federal Marcelo Guerra Martins; as viagens insólitas até as populações tradicionais, pelo juiz federal Antônio César Bochenek; a correlação entre a norma jurídica Kelsiana e a teoria egológica e sua importância para a construção científico-dogmática da norma tributária, pelo juiz federal Eduardo Morais da Rocha; a retrospectiva da vida e da obra do Ministro Carlos Thompson Flores, no centenário do nascimento do venerável homem público, pelo desembargador Carlos Thompson Flores Lenz; o mecanismo do julgamento conjunto como instrumento de cooperação judiciária penal européia, pelo juiz federal Carlos Wagner Dias Ferreira; e a penalidade de cassação de aposentadoria do servidor público no regime contributivo, pelo juiz federal João Batista Ribeiro. Uma coletânea, pois, de valiosa contribuição ao pensamento jurídico, a merecer a atenção e análise dos destinatários desta revista, que, ao longo das últimas três décadas, se firmou como repositório da reflexão acadêmica dos juízes federais brasileiros. Lázaro Guimarães Diretor da Revista
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Seção de Doutrina
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A Separação dos Poderes e a Independência do Poder Judiciário
Gabriel Wedy Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE. Mestre Direito pela PUC/RS. Professor de Direito Ambiental pela Esmafe/RS. Ex-advogado e membro do Tribunal de Ética e Disciplina e da Comissão de Assistência e Defesa do Advogado da OAB/RS. Ex-Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul. Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul AJUFERGS e da Esmafe – Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul. Autor de artigos e livros jurídicos. em
Introdução. 1. O Poder Executivo do Estado e os riscos de sua hipertrofia. 2. O Poder Legislativo. 3. O Poder Judiciário e os riscos do seu enfraquecimento. 4. A independência e harmonia entre os Poderes. Conclusão. Introdução
O tema escolhido para o artigo foi a clássica conceituação do princípio da separação e independência dos poderes do Estado que, desde a origem do direito, fascina pela sua complexidade. Princípio descrito por Aristóteles na Antiguidade e sistematizado mais recentemente por Montesquieu com uma visão mais clara do Estado de Direito. O princípio é marco característico do regime republicano e das democracias modernas. A separação das funções do Estado também passa pela análise de sua necessidade para que uma sociedade se organize, efetivamente, como Estado Democrático de Direito capaz de garantir os direitos e liberdades individuais dos cidadãos. Será procedida análise das funções executiva, julgadora e legisladora do Estado e a necessidade que, a par da harmonia, também exista a independência entre os Poderes. Finalmente será sindicada a importância e a necessidade da independência do Poder Judiciário no país.
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1. O Poder Executivo do Estado e os riscos de sua hipertrofia O órgão executivo, também chamado Poder Executivo, notabilizou-se nas Monarquias absolutistas pela centralização de seus poderes nas mãos do Rei e dos seus ministros. Nas Repúblicas essa função é realizada pelo Presidente da República e pelos Ministros de Estado. Ao Poder Executivo compete representar a totalidade do Estado e, em harmonia com esse ideal, o Chefe do Poder Executivo é o Chefe do Estado. O Poder Executivo é encarregado também de impulsionar e direcionar assuntos nacionais relevantes. Cabe a este velar pela ordem pública no interior das nações e pela defesa do Estado contra os seus inimigos externos. O Poder Executivo, seja no regime presidencialista ou no parlamentarista, promulga e publica as leis e, em vários países, também as sanciona, executa e exerce o poder regulamentar com a edição de regulamentos. Ainda, preenche os cargos públicos, concede honrarias, o direito de graça e administra a justiça em matéria administrativa. Nos últimos anos, não apenas na América Latina, o Poder Executivo tem visto se multiplicar as suas atribuições e responsabilidades pelas exigências do progresso moral e desenvolvimento econômico da sociedade. Também, se dá este fenômeno, pelas complexidades e momentos de instabilidade política pela qual passam muitas nações na sociedade globalizada. E, ao analisar o Poder Executivo, hipertrofiado ou hipotrofiado, ambos vícios indesejáveis e degenerações democráticas, nos deparamos com um dilema bem definido por Darcy Azambuja: O problema da organização do Poder Executivo tornou-se talvez o mais agudo em ciência política. Porque, se de um lado é necessário organizá-lo de modo que seja um poder ilimitado, um poder de direito, e não arbitrário e despótico, não menos necessário também é que disponha de força, recursos e prestígio que o habilitem a cumprir a formidável tarefa exigida no governo do Estado moderno1. Na verdade, após a 1ª Grande Guerra Mundial (1914-1918), pretendeu-se enfraquecer o Poder Executivo em virtude da opressão dos executivos monárquicos e fortalecer o Poder Legislativo. São exemplos clássicos e reais desta situação os casos da Alemanha, Áustria, Polônia, Checoslováquia, Lituânia e Letônia. Observa-se que a medida não deu certo na busca de uma sociedade
Darcy Azambuja, Teoria Geral do Estado, p. 175.
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democrática como temos o exemplo da Alemanha nacional-socialista de Hitler e os regimes bolcheviques de Lênin e Stálin que se aproveitaram da opressão destes países, flagelados econômica e humilhados politicamente, para introduzirem a sua ideologia de forma arraigada. Cai a talho o próprio projeto de Constituição da Áustria, apresentado a Assembléia Constituinte, após ser elaborado pelo jurista Hans Kelsen2, que suprimia o cargo de Presidente da República. Na última hora foi acrescentado ao projeto de Kelsen o cargo de presidente pelos constituintes originários. Para os publicistas europeus do século XX o regime parlamentar é o único que pode criar um governo viável e permeável aos anseios da sociedade. O Poder Executivo assim ficaria como um mero e atribulado executor obediente a vontade nacional representada pelo parlamento e os Estados, assim, ficariam em tese menos suscetíveis as ditaduras. 3 De fato, no Brasil o Poder Executivo, como hoje é conhecido, foi colocado em funcionamento sem debates, sem maiores estudos e o que era uma monarquia parlamentar à noite, amanheceu transformado em uma república presidencialista à luz do sol. Não houve espaço para discussões políticas e jurídicas sobre qual o melhor sistema de governo. Enfim, introduziu-se no tranco o regime republicano e o sistema presidencial de governo pela Constituição de 1891. O Poder Executivo consolidou-se, assim, como o norte da nação e condutor da ação política do Estado. Como afirmado pelo Professor Paulo Bonavides: Do que há sido no Brasil a prática presidencialista, nenhum testemunho mais alto e eloqüente que o de Rui Barbosa, autor doutrinário de nossa primeira Constituição republicana, presidencialista convicto nos primeiros dias do regime que aboliu a monarquia e, com o tempo, crítico pessimista e algo desencantado das instituições que transitaram puras em suas mãos e depois se contaminaram dos vícios da ambiência política e social, da caudilhagem, da inépcia, do ditatorialismo4. De fato, o próprio Rui Barbosa afirmou que “o presidencialismo brasileiro é a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo5”. Prossegue Rui “a nossa revolução estabeleceu o Ver, Hans Kelsen, General theory of Law State. Idem, p.200. 4 Paulo Bonavides, Ciência Política, p. 338. 2 3
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silêncio...as formas do novo regime mataram a palavra...não há senão um Poder verdadeiro: o do Chefe da Nação, exclusivo depositário para o bem e para o mal...a tribuna parlamentar é uma cratera extinta, e as câmaras legislativas mera sombra de representação nacional”6. A ação hipertrofiada do Poder Executivo no país, impossível dissociála do presidencialismo, é marcada no Brasil, segundo Paulo Bonavides, por violentas comoções políticas, levantes militares, revoluções, intentonas, intervenções federais, estados de sítio, infrações da Constituição e outras mazelas que emprestam ao sistema presidencial latino-americano sua velha e mórbida fisionomia7. Nos últimos anos observa-se no Brasil um Poder Executivo cada vez mais hipertrofiado, com uma força imensa sobre os congressistas que precisam de liberação de recursos para a aprovação de emendas parlamentares. Isso para não falar na constante edição e reedição de medidas provisórias, algumas levadas a cabo na calada da noite para questões impopulares. O Poder Executivo aprova assim tudo o que for de seu interesse, nem que para isso o texto constitucional seja objeto de constantes maus tratos. Tivemos no último ano clássico exemplo disto quando o Poder Executivo deixou de enviar ao Congresso Nacional a proposta orçamentária apresentada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Cesar Peluso, nos exatos termos dos art. 84, inc. XXIII e art. 99 da Constituição Federal de 1988. A Presidenta da República não encaminhou a proposta, como determinado na Constituição Cidadã, mas “mensagem”, sem garantir recursos, alegando “a crise internacional” e a “falta de dinheiro”. Referido gesto compromete o regular funcionamento do Poder Judiciário e inviabilizou a correção monetária da defasada remuneração dos seus juízes e servidores. Mesmo que se saiba que a arrecadação, apenas na Justiça Federal, tenha sido em média de 10 bilhões de reais anuais nos últimos anos nas Varas de Execução fiscal para os cofres da União8 e a proposta orçamentária total do Poder Judiciário fosse de 7, 7 bilhões de reais para ser executada ao longo de 4 anos. Prevaleceu a vontade do Poder Executivo e, em acontecimento inédito em nossa República, o Poder Judiciário ficou sem orçamento para este ano de 2012. Como se não bastasse isso, o art. 37, inc. X, da Constituição Federal também foi descumprido. Esse artigo foi criado com a participação da AJUFE, pela EC 45/2004, criando um teto remuneratório moralizador para o funcionalismo
Rui Barbosa, Novos discursos e conferências, pp. 350- 353. Rui Barbosa, Campanha presidencial, PP. 118-119 7 Idem, p. 341. 8 Relatório “Justiça em Números” do CNJ. 5 6
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público. Essa disposição determina a revisão do teto anualmente pelos índices oficiais de inflação e, mais uma vez, mais um ano, o teto não foi atualizado como determina de forma cogente o texto constitucional. A magistratura é a única categoria no país que tem perda real do seu subsídio nos últimos sete anos superior a 33% [um terço dos seus rendimentos]. Todavia, parece que pouco importa este aspecto da Constituição ao Poder Executivo que, com forte influência e poder de pressão sobre o Poder Legislativo, impediu a votação também dessa matéria no ano de 2011. De outro lado, o Poder Executivo conseguiu a aprovação da DRU – [Desvinculação das Receitas da União] e pode gastar 20% do seu orçamento como bem quiser, como se não existissem os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, em especial o da legalidade [art. 37]. O Executivo acumula agora super-poderes nunca antes vistos, mas nada o molesta, a sua força ganhou habeas corpus e agora até “o controle social e popular da mídia” é cogitado pelo Governo no III PNDH [Plano Nacional dos Direitos Humanos] em evidente ameaça à liberdade de imprensa e de opinião tão necessárias e arraigadas à cidadania. É de lembrar-se, por fim, da frase de Rui Barbosa que reencarnado poderia reproduzi-la na sua voz de grande orador que um dia, como a grande águia, encantou Haia: “Deste feito, o presidencialismo brasileiro não é senão ditadura em estado crônico”9. 2. O Poder Legislativo do Estado O Poder Legislativo teve origem na Inglaterra. Nasceu na Idade Média, quando nobres e o povo lutavam para impedir a autoridade absolutista dos monarcas. O poder do Rei foi perdendo força, enquanto um novo poder fortaleceu-se: o parlamento. A teoria de Rousseau sobre soberania contribuiu muito para isso, pois esta se manifesta pela lei, embora resida no povo. O povo diretamente não poderia fazer leis, mas poderia eleger representantes em seu nome que teriam o poder de legislar [democracia representativa]10. No Brasil, ao Poder Legislativo é atribuída a função primordial, típica, de legislar. É o poder encarregado de elaborar normas genéricas e abstratas com força cogente dentro do ordenamento jurídico: as leis. Todavia, é bom lembrar que o Poder Legislativo, como os demais Poderes, 9
Rui Barbosa, Novos discursos e conferências, p. 350. Ver.Rousseau, O contrato social.
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também possui funções atípicas: administra e julga. Administra com autonomia quando concede férias aos seus funcionários [art. 51, IV, e 52, XII]; fiscaliza os atos do Poder Executivo [Art. 49, X] e também finanças e orçamentos [Art. 70]. Julga os crimes de responsabilidade previstos no art. 52, inc, I e II da Constituição Federal. E quando processa e julga os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União [art. 52, inc. II, CF]. Não cabe, contudo, a este Poder o monopólio da função legislativa. O Poder Executivo tem forte parcela de poder na medida em que pode baixar medidas provisórias [art. 62] e regulamentos [art. 84, inc. IV] que são normas gerais e abstratas. O Poder Legislativo tem também importante função fiscalizadora. É consuetudinária a competência da fiscalização financeira, contábil, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Legislativo. Agora, positivada pelo art. 70 de nossa Magna Carta. O Congresso Nacional, in casu, recebe o auxílio do Tribunal de Contas da União. Como afirma Celso Ribeiro Bastos: ...a história mostra que na Antiguidade foi sentida a necessidade de serem criados órgãos fiscalizadores do tesouro – dinheiros públicos – bem como de sua adequada aplicação. Em Atenas, a Corte de Contas não só fiscalizava as contas públicas como também julgava o peculato11. No Brasil temos o regime bicameral no Poder Legislativo. A Câmara dos Deputados e o Senado da República compõem o Congresso Nacional. É atribuído ao Congresso Nacional deliberar, com sanção do Presidente da República, sobre todas as matérias de competência da União, especialmente aquelas previstas no art. 48 e seus incisos. Em casos excepcionais o Congresso Nacional pode dispensar a sanção do Presidente da República como previsto no art. 49 da Constituição Federal e seus incisos. É o caso dos decretos legislativos e resoluções. A Câmara dos Deputados compete privativamente deliberar sobre a instauração de processo contra o Presidente da República, seu Vice e os Ministros de Estado. Também tem autonomia para dispor sobre a sua organização e eleição do Conselho da República [art. 51 e incisos]. Ao Senado compete privativamente processar e julgar as altas autoridades federais. A este compete também aprovar, após argüição publica, por voto secreto, a escolha de Magistrados, Ministros do Tribunal de Contas, Diplomatas entre outros [art. 52 e seguintes].
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Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p.349.
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Um dos mecanismos principais que garante a independência do Poder Legislativo é a imunidade parlamentar. Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. Esta imunidade, material, exime o parlamentar do enquadramento no tipo penal. Ou seja, se o mesmo ato poderia ser considerado crime se praticado pelo cidadão do povo, não o é se praticado pelo parlamentar. Esse não é um privilégio, mas é uma prerrogativa que visa garantir a independência do Poder Legislativo. Como afirmado por Alexandre de Moraes: Imprescindível a existência das imunidades parlamentares à prática da democracia, significando verdadeira condição de independência do Poder Legislativo em face dos demais poderes e garantia da liberdade de pensamento, palavra e opinião, sem a qual inexistirá Poder Legislativo independente e autônomo, que possa representar, com fidelidade e coragem, os interesses do povo e do país, pois, e é sempre importante ressaltar, estas imunidades não dizem respeito à figura do parlamentar, mas à função por ele exercida, no intuito de resguardá-la da atuação do Executivo ou do Judiciário consagrando-se como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais.12 Não há que se falar aqui de vil privilégio ou de ferimento ao princípio da isonomia [art. 5º, inc. I, da CF/88]. Esta não é uma garantia da pessoa do parlamentar, mas da sociedade. No exercício da função não é cidadão comum, é representante do povo, é agente político do Estado que não pode ficar intimidado por pressões políticas, econômicas, ou até criminosas, para exercer parcela do poder estatal com total independência. A finalidade desta prerrogativa é a defesa da democracia e do próprio Estado Democrático de Direito. 3. O Poder Judiciário e os riscos do seu enfraquecimento O Poder Judiciário possui como função típica prestar jurisdição, ou seja, julgar, aplicar a lei ao caso concreto, resolvendo os conflitos de interesses estabelecidos na sociedade. Também possui funções atípicas de cunho administrativo que são, por exemplo, a concessão de férias aos seus membros e serventuários, prover na forma prevista na Constituição, os cargos de juiz de carreira na respectiva
12
Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, p. 394.
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jurisdição entre outras. Também possui função legislativa quando elabora normas regimentais, observando o devido processo legal, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. O Poder Judiciário para possuir independência necessita de magistrados com prerrogativas fortes e sólidas para resistir às pressões e ameaças políticas, econômicas e, hoje em dia, até do crime organizado e do tráfico internacional de drogas. Um Poder Executivo, de arraigado matiz ideológico, pode tomar medidas que visam enfraquecer o Poder Judiciário, com a finalidade de aumentar a sua autonomia política e facilidade de atuação que pode servir, inclusive, a interesses político-partidários para moldar determinada sociedade. Neste sentido o Poder Legislativo, em concerto com o governo, pode legislar no sentido de enfraquecer o Poder Judiciário como forma de conservação ou de perpetuação no poder de determinado grupo político. O enfraquecimento do Poder Judiciário é o primeiro passo para a criação da ditadura do partido único e para a vulnerabilização dos princípios norteadores do direito constitucional que são: a regra de proteção dos direitos individuais; a regra do processo regular; a regra do razoável ou do equilíbrio de interesses e a regra da igualdade de direito à proteção legal. Karl Schmitt afirmava que: a utilização da legislação pode ser facilmente direcionada para atingir predicamentos da magistratura, afetando a independência do Poder Judiciário. Como autoproteção, o próprio Judiciário poderá garantir sua posição constitucional, por meio do controle judicial destes atos, de onde concluímos a ampla possibilidade de controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos que desrespeitem o livre exercício deste Poder.13 É por isso que Hamilton no Federalista comparava as garantias dos juízes às do Presidente da República norte-americana. E referia que “as garantias dos juízes deveriam ser mais fortes e duradouras do que as do próprio Presidente da República”14. O art. 85 da Constituição Federal considera crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra o livre exercício e funcionamento do Poder Judiciário. Neste sentido, o desatendimento a proposta orçamentária anual a ser apresentada pelo Poder Judiciário ao Poder Executivo, a intromissão na nomeação
13 14
Apud Alexandre Moraes, Curso de direito constitucional, p. 440. Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, O federalista, p. 42.
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de Ministros em desacordo com o texto constitucional, o contingenciamento de gastos para o regular funcionamento e aperfeiçoamento da estrutura do Judiciário e obstaculizar o cumprimento do art. 37, inc, X, da Constituição Federal, que estabelece a revisão anual dos subsídios da magistratura e servidores, dependendo das circunstâncias, pode, em tese, ser enquadrado como crime de responsabilidade do Presidente da República. Como afirmado por Alexandre de Moraes: ...as imunidades da magistratura não constituem privilégios pessoais, mas relacionam-se com a própria função exercida e o seu objeto de proteção contra os avanços, excessos e abusos dos outros poderes em benefício da Justiça e de toda a nação.15 São garantias da magistratura, na verdade da sociedade, que asseguram a independência na prestação jurisdicional: a vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio. Como vitaliciedade entende-se a garantia que possui o magistrado de apenas perder o cargo por decisão judicial transitada em julgado [art. 95, inc, I, da CF/88], que é adquirida após o exercício efetivo na carreira, pelo prazo de dois anos, durante o estágio probatório, após aprovação em concurso de provas e títulos. Portanto, é inadmissível qualquer tentativa de emenda constitucional que pretenda conferir competência ao Conselho Nacional de Justiça para decidir pela perda do cargo de magistrado, ou de sua aposentadoria, por ferir a independência do Poder Judiciário consubstanciada no princípio da vitaliciedade. Aliás, é corolário do princípio da vitaliciedade a aposentadoria com proventos integrais pagos pela previdência pública para a magistratura Não há que se pretender privatizar a aposentadoria da magistratura ou equiparala a aposentadoria do INSS. Em primeiro lugar por ela ser superavitária e auto-sustentável e em segundo porque, além de ferir de morte o princípio da vitaliciedade, acaba com um dos últimos incentivos para que se ingresse em uma carreira marcada, nos últimos anos, por progressivas vedações e impedimentos constitucionais. Se assim não fosse, a privatização da previdência e criação de fundos privados de previdência complementar no Chile deram demonstração de sua total inviabilidade, levando a quebra da previdência pública naquele país e deixando milhões de chilenos desamparados. A migração da previdência pública
15
Idem, p. 443.
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para privada no Chile teve um custo de quase de 20% do PIB anual do país, no ano da sua implementação, que nunca mais vai ser recuperado pelos cofres públicos. A inamovibilidade, por sua vez, é a garantia constitucional que reveste a função do juiz de apenas ser removido ou promovido por iniciativa própria, jamais por ato ex-officio de qualquer outra autoridade. Existe apenas a exceção constitucional de remoção por motivo de interesse público [CF, arts. 93, inc. VIII, e 95, inc, II] e pelo voto de 2/3 do órgão competente. A garantia da inamovibilidade tutela a independência e imparcialidade do órgão julgador de qualquer pressão: política, econômica ou do moderno crime organizado que, apenas nos últimos anos, assassinou quatro juízes e dois promotores no nosso país. Os magistrados possuem também a garantia da irredutibilidade do subsídio. Aliás, a EC 45/2004 fez inserir no texto constitucional o teto constitucional do funcionalismo que deve ser revisado pelos índices oficiais de inflação anualmente [art. 37, inc. X]. Todavia, desde o ano de 2005, o teto remuneratório do funcionalismo público foi revisado apenas uma vez no percentual de 8, 88%, no ano de 2009, ferindo não apenas o dispositivo do art. 37, inc. X, da CF/88, mas, especialmente o princípio da irredutibilidade do subsídio. É de se lembrar a clássica lição Hamilton em The Federalist que bem retrata a garantia da irredutibilidade do subsídio da magistratura: “mexer na subsistência do juiz é mexer na sua vontade”16. Importante grifar que, como garantias de imparcialidade, a Constituição veda [art. 95, parágrafo único, incisos I, II e III]: o exercício, ainda que em disponibilidade, de outro cargo ou função, salvo uma de magistério; receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo e o exercício da atividade político-partidária. Quanto à última vedação esta é excessiva e inoportuna, sendo inadmissível que o magistrado tenha apenas cidadania ativa, podendo votar, e não podendo participar da Casa do Povo como cidadão eleito após ser votado. O Juiz e o representante do Ministério Público, quanto ao status político, são equiparados ao preso pela Constituição, não possuindo cidadania passiva. Seria importante que os representantes do Poder Judiciário, como ocorre em outras democracias consolidadas do mundo, pudessem, desde que afastados do cargo, como cidadãos, fazerem parte do Poder Legislativo e também ocuparem cargos no Poder Executivo.
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Idem, p. 43.
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A magistratura e o ministério público poderiam, de forma inovadora, qualificar governos e parlamentos pelo seu conhecimento da lei, da Constituição e com a experiência dos seus membros pelo exercício de anos de função de judicatura e ministerial. Inadmissível que o Poder Judiciário e o Ministério Público fiquem à margem da sociedade e não possam democraticamente estar representados no parlamento por representantes dos seus segmentos que trazem em si presunção de saber jurídico e de conduta ilibada. 4. O princípio da separação e da independência dos Poderes O princípio da separação e independência dos Poderes remonta a Aristóteles que distinguia a assembléia geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário. De fato, em sua obra clássica “A política”, o filósofo grego, embora não fosse claro na definição de Poder Legislativo, Judiciário e Executivo que temos hoje era enfático no sentido de que o governo deveria dividir-se em três partes. Para Aristóteles: Uma das três partes está encarregada de deliberar sobre os negócios públicos; a segunda é a que exerce as magistraturas, e aqui é preciso determinar quais as que se devem criar, qual deve ser a sua autoridade especial e como se devem eleger os magistrados. A terceira é a que administra a justiça. A parte deliberativa decide soberanamente sobre guerra, paz, alianças, ruptura dos tratados, promulgação de leis, pronúncia de sentença de morte, exílio, confisco e exame de contas do Estado.17 Como degeneração dos governos Aristóteles já entendia que o poder deveria limitar o poder e defendia que “o poder assanha a ambição e multiplica a cobiça”.18 Já defendia o filósofo a prevalência do “governo das leis” sobre o “governo dos homens”. Segundo ele: ...nos governos democráticos onde a lei é a senhora, não há demagogos: são os cidadãos mais dignos que têm precedência. Mais uma vez perdida a soberania da lei, surge uma multidão de demagogos. Então o povo se transforma em uma espécie de monarca de mil cabeças: é soberano, não individualmente, mas em corpo. Esse princípio foi sistematizado por Charles de Secondat, o Barão de Montesquieu, no seu célebre “O Espírito das Leis” [De l´Espirit des Lois] no 17 18
Aristóteles, A política, p. 69. Idem, p.88.
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capítulo VI, do Livro XI. No entendimento de Montesquieu tudo estaria perdido se aqueles três poderes: o de criar leis; o de executar as políticas públicas e o de julgar – se reunissem num só homem ou associação de homens. Segundo Montesquieu: Há em cada Estado três tipos de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o Poder Executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o Príncipe ou o magistrado faz leis para certo tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que são feitas. Pelo segundo, declara a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga os litígios dos particulares. Chamaremos este último de poder de julgar; e o outro, simplesmente de poder executivo do Estado19. A aglutinação do poder na mão de um único soberano ou a sua hipertrofia, tendente a uma tirania, foram a motivação da partilha do poder do Estado que é genuinamente único. A sensatez e a experiência de milênios de prática política, recomenda a limitação de uma parcela de poder por outra. O poder deve limitar o poder. Montesquieu citava como exemplos o caso dos Turcos, em que os três poderes na pessoa do sultão levaram a um “reino de despotismo tremendo”. No mesmo sentido afirmava que nas Repúblicas da Itália, onde os três poderes estavam reunidos, as liberdades eram menores do que nas monarquias em que havia essa divisão naquele tempo.20 As lúcidas palavras de Montesquieu, antigas, mais atuais, demonstram a clareza que tinha acerca da separação e independência dos Poderes: Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo é reunido ao poder executivo, não há liberdade; porque é de temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas, para executá-las tiranicamente.Tampouco há liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estiver unido ao poder legislativo será arbitrário o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos; pois o juiz será legislador. Se estiver unido ao Poder Executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor.21
Montesquieu, O espírito das leis, p. 168. Idem, p. 169. 21 Idem,p. 169. 19 20
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Aliás, foi mais longe, no mesmo Livro XI, dedicou o XVI capítulo ao Poder Legislativo intitulado “Do Poder Legislativo na República Romana”, o capítulo XVII intitulou de “O Poder Executivo na República Romana” e, finalmente, tratou no capítulo XVIII do “Do Poder de Julgar no Governo de Roma”. Questionado se realmente o princípio teria de Montesquieu a paternidade, o grande Madison no célebre O Federalista [The Federalist] referiu que: “Se não foi ele o autor desse valioso preceito da ciência política, teve ao menos o mérito de expô-lo e recomendá-lo do modo mais eficaz à atenção da humanidade.22” O princípio da Separação e Independência dos Poderes foi positivado no Século XVIII com a Declaração de Direitos da Virgínia [Virgínia Bill of Rights] de 12 de junho de 1776. Alcançou tal prestígio que o art. 16 da Constituição Francesa, de 3 de setembro de 1791, quando refere-se à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão disciplina: “Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação dos Poderes, não possui Constituição”. No art. 22 da Constituição de 5 do Frutidor, do ano III, restou estampado:”Existe tão somente a garantia social quando assegurada pelo estabelecimento da divisão de poderes, pela fixação de seus poderes e pela responsabilidade dos funcionários públicos”. O princípio foi erigido nas democracias visando evitar o absolutismo dos monarcas e evitar as ditaduras e tiranias para que um poder estatal pudesse contrabalançar o outro, sem suplantá-lo, no sentido de haver harmonia nas suas funções executoras, julgadoras e legisladoras. A independência e a separação dos Poderes deve vir acompanhada da harmonia necessária à funcionalidade constitucional do Estado. Montesquieu afirmava que: “Esses três Poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, são obrigados a ir em frente, serão forçados a caminhar em concerto”.23 Norberto Bobbio em clássica lição, acerca da necessária separação das três funções do Poder Estatal, em sua obra “Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant” é esclarecedor acerca da imperatividade desta separação para que: a - a massa do poder estatal não seja concentrada numa só pessoa, mas distribuída entre diversas pessoas; b - as diferentes funções estatais não sejam confundidas num só poder, mas sejam atribuídas a órgãos distintos.24 Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, O federalista, p.45. Idem, p. 176. 24 Norberto Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant, p. 16. 22 23
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Refere ainda que o limite do poder nasce da sua própria distribuição, por duas razões: 1. não existirá mais uma só pessoa que tenha todo o poder, mas cada uma terá somente uma porção do mesmo. 2. os órgãos distintos aos quais serão atribuídas funções distintas se controlarão reciprocamente [balança ou equilíbrio dos poderes] de maneira que ninguém poderá abusar do poder que lhe foi confiado.25 No Brasil, o princípio vem previsto desde a Constituição do Império [1824]. Seguindo as veredas dos ideários de Benjamin Constant os poderes eram quatro: executivo, legislativo, judiciário e moderador. Já a partir da Constituição Republicana de 1891 os Poderes passaram a ser três, como previsto no art. 15: “São órgãos da soberania nacional o poder legislativo, o executivo e o judiciário, harmônicos e independentes”. A Constituição revolucionária de 1934, revolução liderada por Getúlio Vargas, manteve o princípio em seu art 30: “São órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si”. O mesmo ocorreu com a Constituição de 1946, art. 36, com a redemocratização do país posterior ao Estado Novo. Até mesmo as Constituições do Regime Militar: 1967 e 1969, não deixaram de prevê-lo em seu texto. A Constituição militar de 1967 previa expressamente no seu art. 60: “São Poderes da União, independentes e harmônicos, o Legislativo, Executivo e o Judiciário”. Na Constituição de 1988, após mais de 20 anos de regime autoritário, o princípio da Separação e Independência dos Poderes foi inserido já no seu art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Portanto, vige no Brasil e nas democracias mais consagradas o princípio da separação e independência dos poderes, que devem ser harmônicos, como uma garantia da própria manutenção dos regimes democráticos e para a proteção das garantias e direitos constitucionais individuais dos cidadãos. As poucas ditaduras, e arremedos destas, que se observam nos dias atuais em alguns países do Mundo, seja aquelas em que a secularização ainda não chegou plenamente e a política mistura-se com fanatismo religioso ou naqueles regimes que se ensaiam na América Latina, marcados por uma esquerda
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Idem, p.16.
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ultrapassada, às vezes travestida de populismo não esclarecido e assistencialista. Observa-se nestes casos, na contramão da história, a fortificação do Poder Executivo que age de modo quase absoluto sobrepujando e subjugando os Poderes Judiciário e Legislativo. É marcante nestes regimes a limitação de garantias republicanas consagradas como a independência do Poder Judiciário e a liberdade de imprensa. Conclusão: O princípio da separação dos Poderes é uma garantia da democracia e da defesa dos direitos individuais fundamentais do cidadão, sendo um dos pilares do regime republicano. É característico deste princípio o sistema dos freios e contrapesos [checks and balances] que é uma garantia de que um Poder não subjugará o outro e, por conseqüência, não se tornará uma ameaça constante aos direitos individuais e garantias constitucionais dos cidadãos como sói ocorrer nas ditaduras e tiranias. Observa-se, contudo, em vários países, e no Brasil, em especial nos últimos anos, uma hipertrofia do Poder Executivo e uma forte influência deste sobre o Poder Legislativo que, compelido a aprovar emendas parlamentares, fica sem forças para resistir e zelar por sua total independência. O Poder Judiciário acaba por ser um dos últimos bastiões desta resistência para garantir a independência e a harmonia entre os Poderes. Hoje, contudo, ocorre uma grave ameaça a independência do Poder Judiciário com o público e notório aviltamento das prerrogativas da função do juiz. Isso significa o atropelo institucional de uma tradição histórica nas democracias, em especial após o advento do Estado de Direito, marcada pela necessária independência do Estado-Juiz. O texto constitucional de 1988, aliás, tem sido retalhado por inúmeras emendas constitucionais e, também, por interpretações que não garantem a supremacia de nossa Magna Carta e as prerrogativas ligadas não à pessoa, mas ao cargo de magistrado. Essas prerrogativas, da sociedade em primeira e última instância, garantem a independência do Poder Judiciário como pilar mestre de nossa democracia e, por conseqüência, às liberdades públicas e direitos individuais dos cidadãos reunidos em um, embora em crise26, Estado de Direito.
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Ver. Carl Schmitt, La Tirania de los Valores, p. 75.
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A Correlação entre a Norma Jurídica Kelsiana e a Teoria Egológica e sua Importância para a Construção Científico-Dogmática da Norma Tributária Eduardo Morais da Rocha Doutorando e mestre em Direito Tributário – Universidade Federal de Minas Gerais; especialista em Direito Público – Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal e Territórios; Juiz Federal Titular. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: eduardo.rocha@trf1.jus.br.
Resumo: O presente artigo estuda a norma jurídica na concepção kelseniana e sua inter-relação com a Teoria Egológica, realçando a correlação entre as normas primárias e secundárias de Kelsen e a perinorma e a endonorma de Carlos Cossio. Seguindo o desenvolvimento do estudo dos diversos aspectos da hipótese e do mandamento da norma jurídica, procurar-se-á demonstrar a sua importância para a construção da atual concepção jurídicodogmática da norma tributária. Abstract: This article explores the legal standard in design kelsen and their interrelationship with the Theory egological, highlighting the correlation between the primary and secondary standards and Kelsen Perinorm and endonorm Carlos Cossio. Following the development of the study of various aspects of the hypothesis and the commandment of the rule of law, will seek to demonstrate its importance for the construction of the current legal-dogmatic conception of the standard tax.
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1. A NORMA JURÍDICA NA CONCEPÇÃO KELSENIANA Na concepção de norma jurídica, Kelsen procurou separar o ato produtor da norma de seu significado, ou melhor, distinguiu o plano do “ser” do “deverser”. A norma seria posta no Ordenamento Jurídico por meio de um ato de vontade, sendo, portanto, o significado desse ato. No campo jurídico, o significado de determinado ato de vontade não é perceptível por meio dos sentidos, como ocorre no campo da natureza, pois, no Direito, o sentido de determinado ato de vontade é obtido por meio da hermenêutica, funcionando a norma para o mestre de Viena, como um “esquema de interpretação”.1 A norma jurídica kelseniana, assim, é o significado de certo ato. A norma, embora nasça de um ato de vontade, com este não se confunde, pois o ato é somente um ponto de partida do qual a norma é o seu resultado final. As normas podem ser postas por atos de vontade, como o costume e a lei, dentre outros, que são externalizados por palavras, cores, desenhos e gestos, sendo que tais atos se distinguem das normas por eles postas, já que as normas poderão valer quando não se cogita mais da existência do ato. O ato de vontade, por meio do qual a norma é posta, estaria no plano do ser (natureza), enquanto que o seu significado estaria no plano do “deverser” (Direito). Cabe ressaltar, contudo, que nem todo “dever-ser” poderá ser considerado uma norma jurídica, porque não lhe basta mero significado subjetivo, sendo imperativo, ainda, um sentido objetivo,2 que decorre de outra norma do Ordenamento Jurídico, que lhe confere validade. Por meio disso, é possível distinguir, segundo Kelsen, o ato de um carrasco que executa um indivíduo, em virtude de uma condenação à pena de morte, do ato de salteadores que exigem que alguém lhes entregue determinado bem, pois, nesta última hipótese, o “dever-ser” não decorre de outra norma jurídica que lhe dá validade. Diferentemente, para Kelsen, é o “dever-ser” oriundo do ato do carrasco que executa a norma individual posta por uma sentença judicial, sentença esta que extrai sua validade de uma outra norma geral, a qual, por sua vez, retira a sua validade da Constituição3 posta, que, por seu turno, tem sua validade conferida por uma norma fundamental pressuposta. Desta pirâmide normativa, o mestre austríaco retira o sentido objetivo que confere a um “dever-ser” o significado de uma norma jurídica. Por isso, o ato do carrasco será válido e lícito, ao passo que aquele praticado pelo bando de salteadores será ilícito e, conseqüentemente, criminoso. 1 2 3
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 3-4. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 2-3. Para Niklas Luhmann, a positividade de uma norma de decisão não decorreria da validade que uma norma inferior extrai de uma norma superior, mas, sim, dos fatores sociais, conforme se infere da seguinte passagem de sua obra: “Essa mudança estrutural (e não uma decisão) torna a decisão o princípio do direito. Sua
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Assim, para Kelsen, a norma é o sentido objetivo que possuem certos atos que se dirigem à vontade de outrem, de forma que a norma jurídica não descreve condutas, mas, pelo contrário, prescreve condutas, seja proibindo, permitindo ou atribuindo competência, por meio de juízos hipotéticos decorrentes de uma relação de “dever-ser”. Em virtude disso, para Hans Kelsen, o direito não pode preocupar-se com os motivos (eficácia causal) da conduta, mas, sim, verificar se os destinatários da norma a estão cumprindo ou se as autoridades a estão aplicando, no caso de seus destinatários não observarem a conduta prescrita pelo Direito. O Ordenamento Jurídico quer provocar uma conduta desejada e evitar uma conduta indesejada, e, para isso, utiliza técnicas às quais denomina “sanções”, que nada mais são do que respostas da norma para a conduta realizada. Se a conduta realizada for juridicamente desejada, a resposta poderá ser um prêmio, mas se, pelo contrário, a conduta for indesejada, a resposta será uma pena, à qual também, comumente, se denomina “sanção”. A sanção pretende ser uma garantia de observância do Ordenamento Jurídico, e aí reside a diferença substancial entre a Moral e o Direito, pois a sanção jurídica, diversamente da sanção moral, admite o uso de atos de coação em detrimento de condutas omissivas e comissivas indesejadas. Kelsen conferiu uma importância tão grande às normas sancionatórias que caracterizou o Direito como uma “ordem de coação”,4 conforme se depreende da seguinte passagem de sua obra: É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que o não determine como ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social, e porque, com o elemento coação, se
positividade não resulta da constituição (mas vige quando a constituição a nega, “assumindo-se” como direito natural ou inalterável); ela não resulta da referência lógica a uma norma básica que confere vigência normativa a determinadas decisões (mas quando muito é simbolizada e construída juridicamente pela idéia de uma tal norma básica); ela resulta, isso sim do desenvolvimento social e está correlacionada com uma estrutura social que gera uma superabundância de possibilidades através da diferenciação funcional apresentando por isso a tendência de fazer com que todo o direito pareça contingente.” (LUHMANN. Niklas. Sociologia do direito II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, p. 238). 4
Luhmann prefere definir o direito por meio de sua função, e não como instrumento de força física. Confirase: “É amplamente difundida a concepção que define o direito através do instrumento da força física, ou mais precisamente através da aplicabilidade legítima (reconhecida socialmente) da força física no caso de transgressões à norma. Pensa-se aqui não só no emprego da força autorizado ou executado pelos órgãos estatais; o conceito também inclui formas mais primitivas da legítima defesa. Essa definição facilita a distinção do direito de outras normas. Mas não fornece indicações suficientes para a resposta às diversas
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toma por critério um fator sumamente significativo para o conhecimento das relações sociais e altamente característico das ordens sociais a que chamamos ‘Direito’ [...].5 Para melhor compreensão da importância de tais normas na construção teórica kelseniana, urge que, como premissa, se investiguem as denominadas “normas autônomas” e as “não autônomas”. 1.1. Normas autônomas e normas não autônomas Embora nem todas as normas do Ordenamento Jurídico estatuam atos de coerção, Hans Kelsen afirmou, como observado no item precedente, ser o direito uma “ordem de coação”. Tal afirmação baseou-se na constatação de que todas as normas que não estabeleçam um ato coercitivo somente terão validade à medida que se ligarem a outra norma estatuidora de um ato de coerção. Às normas que contenham um preceito coercitivo, Kelsen denominou de “autônomas”, em contraposição “às não autônomas”, que são aquelas que não estatuem um ato coercitivo e que somente terão validade se ligadas às primeiras. Assim, as normas que estatuem atos de coerção têm como desiderato obter certa conduta de um indivíduo, se bem que nem todos os atos de coerção sejam tidos por ele como sanção, pois que na hipótese de internamento compulsório por doença contagiosa não há conduta que seja pressuposto de tal ato coativo. Um caso de normas “não autônomas” para o mestre de Viena seria o daquelas que conferem justamente sentido a outras, seja interpretando-a, seja, mesmo, especificando os seus conceitos. Cita, como exemplo, um artigo do Código Penal que estatui o que seja homicídio – tal norma extrairia seu sentido de outra norma que efetivamente estabelece uma sanção no caso de o homicídio ser consumado ou tentado. Dentre as diversas modalidades de normas não autônomas, Kelsen cita, ainda, aquelas que, reduzindo o âmbito de validade de outras, permitem a realização de determinada conduta. Como exemplo, faz referência à norma permissiva da legítima defesa, que limita o âmbito de validade de outra norma que veda o uso da força física. Nessa hipótese, a norma que impõe a sanção para aquele que empregar o uso da força tem seu âmbito de validade limitado por outra norma não autônoma, que possibilita, em certas circunstâncias, o uso da
indagações que deixa em aberto. Por isso preferimos definir o direito através de sua função – ou seja, a da generalização congruente – fundamentando a partir dessa função a explicação de por que e em que limites a força física assume aquela posição proeminente.” (LUHMANN. Niklas. Sociologia do direito I, p. 123-124). 5
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força. Para Kelsen, a norma que admite a autodefesa é dispensável, tendo em vista que poderia existir uma única norma que proibisse o uso da força que não fosse caracterizada como legítima defesa. Outro exemplo colacionado pelo mestre austríaco seria o de uma norma que proibisse o consumo de bebidas alcoólicas, ligando à conduta oposta uma sanção. Esta norma poderia ter seu âmbito de validade restringido por outra norma não autônoma que permitisse o consumo de tal bebida, desde que houvesse permissão da autoridade. Esta segunda norma somente faz sentido se conjugada com a primeira norma, que impõe a sanção no caso de consumo da bebida. Por tal motivo, para Kelsen, poder-se-ia prescrever uma única norma estatuindo que “quem traficar bebidas alcoólicas sem permissão da competente autoridade será punido”.6 Podendo uma norma limitar o âmbito de validade de outra, esta também poderia retirar totalmente a sua validade, como as chamadas “normas derrogatórias”, que, para Kelsen, também seriam exemplos de normas não autônomas, porque somente teriam sentido se postas em conexão com as normas derrogadas. Outra hipótese de normas não autônomas na construção kelseniana são aquelas que somente atribuem competência para uma autoridade produzir outra norma jurídica. Tal norma que confere competência a alguém para realizar uma conduta criadora de normas outorga-lhe poder jurídico e, ao mesmo tempo, estatui as premissas nas quais serão aplicados os atos de coerção. Exemplificando as normas não autônomas que outorgam competência, Kelsen cita o dispositivo da Constituição que disciplina o procedimento legislativo ou, mesmo, que autoriza o costume como “fato produtor do direito”. Do mesmo modo, as normas que estatuem os procedimentos administrativo e judicial conferem os meios para que as autoridades possam criar as normas individuais, dando aplicação ao direito. Bastante elucidativo dessa hipótese é o exemplo a seguir, colacionado da obra de Hans Kelsen: Consideremos a situação que se nos apresenta quando, numa determinada ordem jurídica, o furto é proibido por lei sob pena de prisão. Pressuposto da pena estabelecida não é de forma alguma o simples fato de que um indivíduo cometeu um furto. O furto tem de ser averiguado, num processo ou segundo um processo fixado pelas normas da ordem jurídica, por um tribunal que essas normas para tal considerem competente; ao que
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se seguirá a aplicação, por este tribunal, de uma pena fixada pela lei ou pelo direito consuetudinário, pena essa a ser executada por um outro órgão. O tribunal é competente para, num determinado processo, aplicar ao furto uma pena, somente quando foi produzida, segundo um processo constitucional, uma norma geral que liga ao furto uma determinada pena. A norma da Constituição que confere competência para a produção desta norma geral fixa um pressuposto ao qual é ligada a sanção. A proposição jurídica que descreve esta situação diz: Se os indivíduos competentes para legislar estabeleceram uma norma geral por força da qual quem comete o furto deve ser punido de certa maneira, e se o tribunal competente segundo o ordenamento processual penal verificou, de conformidade com um procedimento fixado pelo mesmo ordenamento processual, que determinado indivíduo cometeu um furto, e se este mesmo tribunal aplicou a pena legalmente fixada, então deve um certo órgão executar essa pena. Esta formulação da proposição jurídica descritiva do Direito mostra que as normas da Constituição que conferem competência para a produção das normas gerais ao regularem a organização e o processo do órgão legislativo, e as normas de processo penal que conferem competência para a produção das normas individuais das decisões penais, são normas não autônomas, pois elas apenas determinam as condições ou pressupostos da execução das sanções penais.7 Em momento algum Kelsen olvidou a existência de normas que não estatuam qualquer ato de coerção, mas, pelo contrário, reconheceu-as expressamente e afirmou que as normas meramente interpretativas, as normas que atribuem competência, as normas que limitam ou retiram o âmbito de validade de outras, todas elas são normas não autônomas por estarem essencialmente ligadas a normas autônomas que estatuam atos de coerção. Isso porque as normas não autônomas irão somente estabelecer os pressupostos e requisitos para a aplicação da sanção jurídica. Cabe ressaltar, todavia, que Kelsen ainda classifica, como autônomas, as normas ditas primárias e, como não autônomas, as chamadas secundárias. Tendo
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 60-61.
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em vista a importância dessa classificação para a construção da teoria da norma tributária, este tópico será tratado com vagar no item que se segue. 1.2 Normas primárias e normas secundárias Kelsen distinguiu, ainda, as normas que prescreviam determinada conduta daquelas que estabeleciam uma sanção para o caso de realização de comportamento oposto ao desejado pelo Ordenamento Jurídico. Na visão kelseniana, a norma que prescreve a conduta juridicamente desejada está essencialmente ligada à norma que impõe sanção para o caso de seu descumprimento, pois esta já contém negativamente aquela na sua hipótese. Portanto, a norma estatuidora da sanção, por já conter negativamente no seu pressuposto a norma que prescreve a conduta desejada, seria uma norma autônoma, já que prescindiria da norma que impõe o comportamento desejado pelo Direito. Por estar essencialmente ligada à norma que estabelece a sanção, a norma que prescreve a conduta desejada pelo Direito seria, para Hans Kelsen, “supérflua do ponto de vista da técnica legislativa”,8 já que seria possível a edição de uma única norma que englobasse em seus preceitos as duas normas, tendo a conduta vedada pela ordem jurídica como pressuposto da sanção. Enquanto a norma que estabelece a sanção é autônoma, aquela que prescreve a conduta desejada é não autônoma, uma vez que esta segunda somente será considerada juridicamente prescrita se a conduta oposta for pressuposto de uma sanção. Assim, para Kelsen, tanto a norma que prescreve uma conduta quanto aquela que estabelece uma sanção à conduta oposta formam uma norma dupla e complexa interligada. Sobre o caráter duplo da norma, bastante esclarecedoras são as observações de Américo Lacombe atinentes às formulações kelsenianas: A norma jurídica encontra-se dividida em duas normas separadas, em duas expressões de dever-ser. Uma visa à obtenção de determinada conduta e a outra determina a sanção em caso de descumprimento. Como a primeira norma só é válida se a segunda atribuir uma sanção, temos que a primeira é supérflua em relação à segunda.9
8 9
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 59. LACOMBE. Américo. Obrigação tributária. 2. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996, p. 24.
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À norma que prescreve a conduta juridicamente desejada, Kelsen denominou de “norma secundária”; à norma que estabelece a sanção à conduta oposta, de primária.10 Buscando exemplificar a distinção das normas em primárias e secundárias, Kelsen cita uma norma do Código Civil que estabelece ao credor a obrigação de restituir a quantia objeto de empréstimo. Para ele, a disposição dessa norma, por ser secundária, já estaria contida negativamente no pressuposto da norma primária, que impõe ao devedor inadimplente da obrigação a execução civil sobre o seu patrimônio. Lembra, ainda, Kelsen que os modernos Códigos Penais não estatuem mais normas cujo conteúdo sejam as condutas desejadas pelo Ordenamento Jurídico, mas, pelo contrário, limitam-se a prescrever a conduta vedada pelo Direito, ligando a essa conduta uma sanção. Vejamos os exemplos colacionados pelo jurista austríaco: O moderno legislador do Direito não diz: 1. ‘Não se deve furtar’ e 2. ‘Se alguém furta deve ser punido com cadeia’, ou: 1. ‘Deve–se pagar um empréstimo recebido’ e 2. ‘Se alguém não paga um empréstimo recebido, deve ser dirigida uma execução em seu patrimônio’, mas ele se limita, comumente, a estabelecer a norma que liga ao furto a sanção da pena de prisão, ou o não pagamento de um empréstimo recebido a sanção da execução forçada.11 Assim, para Kelsen, o Direito já veda determinado comportamento, uma vez que o liga a uma sanção, sendo por isso desnecessária a edição de normas que prescrevam as condutas desejadas, como ocorria antigamente em relação, por exemplo, às contidas nos Dez Mandamentos, que estatuíam preceitos, como, “Não matarás”, “Não furtarás”. Por já estar a conduta prescrita contida negativamente no pressuposto da norma que impõe a sanção, a norma que prescreve o comportamento desejado pela Ordem Jurídica é supérflua. Com isso, Hans Kelsen demonstrou o relevante
10
11
O jurista inglês Herbert L. A. Hart também identifica o Direito como um sistema de normas primárias e secundárias, sendo que ele atribui outra conotação a essas normas. Para Hart, as normas primárias seriam aquelas que impõem comportamentos, seja criando direitos ou impondo obrigações, enquanto que as normas secundárias seriam normas de reconhecimento, à medida que são elas que estabelecem como e por quem as regras primárias podem ser reconhecidas, formadas, extintas ou modificadas. (Cf. HART. H. L. A. The concept of law. 2. ed. New York: Oxford University Press, 1994, p. 79-99) KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 181-182.
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papel da sanção existente no ato de coação, caracterizando o direito como uma ordem de coerção,12 tendo em vista que uma conduta, para ele, somente seria considerada o conteúdo de um dever jurídico quando o comportamento oposto estivesse ligado a uma sanção. 2 A NORMA JURÍDICA E A TEORIA EGOLÓGICA DE CARLOS COSSIO Assim como Hans Kelsen, Carlos Cossio13 também desdobra a norma jurídica, tornando-a complexa ou dupla, e ainda, em consonância com a teoria kelseniana, confere ao dever jurídico papel de destaque. O Professor argentino, porém, dá outra estrutura à norma jurídica, conforme adverte Felipe Peixoto Braga Netto: Sabe-se que a teoria egológica, do jurista argentino Carlos Cossio, opõe-se à teoria pura de Kelsen no que se refere à estrutura da norma jurídica. Enquanto para Kelsen ela é um juízo hipotético, para Cossio ela assume a forma de um juízo disjuntivo. Na teoria egológica, a norma jurídica completa é composta de duas estruturas proposicionais, a endonorma e a perinorma. A licitude estaria na endonorma, sob a forma da possibilidade de cumprir o devido, e a ilicitude estaria na perinorma, sob a ameaça de sanção tendo em vista o não cumprimento da prestação (dado A, deve-ser B, ou dado não – B, deve ser S).14
12
Para Hart, o direito tem um caráter mais aberto, à medida que, para ele, a validade da norma jurídica não decorre unicamente da sua coercitividade, mas também de uma justificação atribuída pela legitimidade da sua aceitação pela população através de uma regra de reconhecimento (norma secundária). Com clareza, Hart expõe a questão: The assertion that a legal system existis is therefore a Janusfaced statement looking both towards obedience by ordinary citizens and to the acceptance by officials of secondary rules as critical common standards of official behaviour. [...] But where there is a union of primary and secondary rules, which is, as we have argued, the most fruitful way of regarding a legal system, the acceptance of the rules as common standards for the group may be split off from the relatively passive matter of the ordinary individual acquiescing in the rules by obeying them for his part alone. (HART, H. L. A. The concept of law, p. 117). (Tradução nossa: “A afirmação da existência de uma ordem jurídica é, desta forma, uma asserção bifronte, que tem por escopo tanto a observância pelos cidadãos como a aceitação pelos funcionários das normas secundárias como padrões gerais do comportamento oficial. [...] Porém, onde existe uma conjunção de normas primárias e secundárias, hipótese que é o modo mais proveitoso de analisar uma ordem jurídica, a observância das normas como modelo comum para a coletividade pode ser dissociada do ponto de vista relativamente passivo da aquiescência do indivíduo em relação às normas, obedecendolhes por sua vontade própria”.)
13
COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944, p. 300-328.
14
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 51-52.
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Em vez de chamar a norma complexa de norma primária e norma secundária, prefere o mestre portenho denominá-las, respectivamente, de perinorma e endonorma.15 A endonorma seria, grosso modo, equiparada à norma secundária kelseniana; a perinorma guardaria certa correspondência com a norma primária. Isso porque, na visão de Cossio,16 a endonorma teria como hipótese o comportamento desejado pelo direito, e a isto atrelaria determinada conseqüência normativa, ao passo que a perinorma teria como hipótese normativa a não-observância do comportamento almejado pela Ordem Jurídica, tendo como conseqüência a aplicação de uma sanção. Assim, a norma complexa de Cossio resultaria da conjugação de dois juízos hipotéticos, tendo cada um deles uma hipótese e uma conseqüência própria, cujo produto seria uma endonorma e uma perinorma ligadas disjuntivamente, formando uma norma jurídica una e completa de caráter verdadeiramente dicotômico, conforme se depreende da seguinte passagem da obra do catedrático: La norma jurídica completa, que en cuanto concepto adecuado al objeto que menciona no puede menos ser disyuntiva por la razón ontológica de la interferencia intersubjetiva, tiene dos miembros, a los que proponemos llamarlos endonorma (conceptuación de la prestación) y perinorma (conceptuación de la sanción), no solo para terminar con el caos de las designaciones de normas primaria y secundaria que los diferentes autores usan con sentido opuesto, sino para subrayar que se trata de una norma única y no de dos normas, punto indispensable para entender el concepto de la norma jurídica com un jucio disyuntivo.17 O enfoque dicotômico e disjuntivo da norma tem o condão de, justamente, possibilitar o estudo sistêmico do fenômeno normativo sem agregar à hipótese e à conseqüência da norma outro elemento, qual seja, a sanção, pois uma formulação normativa que conjugasse todos estes requisitos se tornaria extensa demais, impedindo a compreensão holística de estágios normativos diversos. São bastante esclarecedoras as lições de Paulo de Barros Carvalho a respeito do caráter dicotômico da norma e da necessidade de seu desdobramento funcional por meio de juízos disjuntivos, verbis:
15
COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 300-328.
16
COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 302.
17
COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 302.
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Por outro lado, afastamos desde já a possibilidade de juntar a estes dois elementos – hipótese ou suposto e conseqüência – um terceiro, que seria a sanção, posto que adotamos a aludida dicotomia das regras jurídicas e, com isso, a norma sancionadora seria precisamente outra regra, com hipótese e conseqüência próprias.18 E continua o Professor paulista: Por fim, caso a sanção passasse a integrar a estrutura lógica da norma jurídica, haveríamos de conceber regra que tivesse uma hipótese, uma conseqüência, outra hipótese para o descumprimento dessa conseqüência e, finalmente, outra conseqüência a que chamaríamos de sanção. Verdadeiramente, seria algo de estrutura tão complexa que, seu estudo pormenorizado demandaria esforços incalculáveis.19 É nesse ponto que se revela um dos aspectos mais notáveis da obra de Carlos Cossio, qual seja, o desdobramento funcional da norma, atribuindo a cada uma dessas formulações normativas uma hipótese e uma conseqüência própria, de forma que a disjunção normativa de dois juízos hipotéticos dê ensejo, respectivamente, à endonorma e à perinorma. Para finalizar essas breves considerações sobre a norma jurídica, noções imprescindíveis para o prosseguimento do estudo, colacionamos um trecho da lição do próprio Professor Carlos Cossio sobre relação lógica entre endonorma e perinorma mediante um juízo disjuntivo: Mas, em estes autores, ficou pouco claro qual dos princípios estabelece a relação entre o juízo hipotético e o juízo que, com prestação, o antecede: será o princípio da contradição ou o do terceiro excluído? A teoria egológica tomou sobre si o encargo de dar essa precisão e indicou que era o segundo destes princípios. Esta indicação resulta da sua concepção da norma jurídica como juízo disjuntivo. Eis porque a teoria egológica reclama que à conjugação ou se reconheça o carácter de conceito
18
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 50.
19
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 51.
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fundamental, uma vez que a relação existente entre prestação e transgressão é uma relação de opostos que se contradizem; o referido caráter permite ver a relação lógica existente entre endonorma e perinorma.20 3 A NORMA TRIBUTÁRIA A doutrina nacional no estudo da norma tributária superdimensionou a hipótese da norma em detrimento de sua conseqüência ou mandamento.21 Isso porque a maioria dos aspectos ou critérios estruturais que compõem a norma jurídica, em especial a norma tributária, foi alocada na sua hipótese de incidência, fato que esvaziou substancialmente a conseqüência ou o mandamento da norma. Em que pese a não se olvidar a importância da hipótese de incidência da norma, não se deve descurar de que, na sua conseqüência, estão os principais elementos para a identificação da relação jurídico-tributária. O doutrinador pátrio que talvez mais bem tenha percebido isso foi Paulo de Barros Carvalho,22 que, utilizando os ensinamentos de Kelsen e da nomenclatura e do enfoque dicotômico e disjuntivo atribuído por Carlos Cossio à norma jurídica, dividiu a norma tributária em endonorma e perinorma tributária. Interessa-nos, especificamente, o enfoque dado por Paulo de Barros à endonorma tributária, pois que, como visto no item precedente, a perinorma cuida das infrações e das sanções jurídicas que não são objeto da norma tributária impositiva da obrigação tributária. Quanto às endonormas tributárias, estas, como todas as normas jurídicas, possuem uma hipótese (a conjugação dos aspectos imperativos para a caracterização do fato jurídico), à qual, uma vez ocorrida, o direito imputará uma conseqüência (conjugação dos aspectos para a caracterização da relação jurídica). O Professor Paulo de Barros Carvalho23 isola, na hipótese da endonorma tributária, três critérios que, segundo ele, seriam necessários para identificar o fato jurídico suficiente para o surgimento da relação jurídico-tributária. O primeiro
20
COSSIO, Carlos. Norma, direito e filosofia. Boletim da Faculdade de Direito, v. XXIII, Coimbra, 1947, p. 255.
21
Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002, ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. 3. tir. São Paulo: Malheiros, 1993. FALCÃO, Amílcar de Araújo. O fato gerador da obrigação tributária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
22
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 98-99.
23
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 124-135.
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critério teria caráter nuclear, uma vez que seria o próprio fato descrito pelo legislador como suficiente para o surgimento da obrigação tributária, fato este que condicionaria os demais critérios da hipótese normativa. O segundo critério da hipótese da endonorma seria o espacial, que determinaria o local da ocorrência do fato jurídico. E o terceiro critério seria o temporal, critério que delimitaria e situaria o fato jurídico no tempo. Já na conseqüência da norma tributária, o Professor Paulo de Barros24 aponta a existência de dois outros critérios que, no seu entender, seriam suficientes para individuar a relação jurídica de índole tributária surgida com a incidência do comando da norma, quais sejam, um pessoal – sujeito passivo e ativo da relação jurídico-obrigacional –, e outro, quantitativo – base de cálculo e alíquota –, que permitiria definir o conteúdo da prestação devida pelo sujeito passivo. Cabe ressaltar, todavia, que os critérios apontados por Paulo de Barros Carvalho não são suficientes para revelar todos os requisitos do fato jurídico e da relação jurídica dele decorrente. Tanto é assim que o Professor Sacha Calmon Navarro Coelho acrescentou outros critérios tanto à hipótese quanto à conseqüência ou comando da endonorma tributária. À hipótese normativa, além dos critérios material, espacial e temporal, Sacha Calmon25 acrescentou outro aspecto, terminologia usada pelo Professor, que seria o aspecto pessoal. Este, incluído na hipótese normativa, teria o condão, por exemplo, de explicar fenômenos como a substituição tributária, em casos em que a pessoa que realiza concretamente o fato jurídico previsto abstratamente na norma difere daquela que integra o pólo passivo da relação jurídico-tributária. Ainda segundo o mencionado jurista, a existência de um aspecto pessoal na hipótese normativa revela-se importante “para a percepção da capacidade contributiva, para a graduação da progressividade, para a consideração do ilícito fiscal e da responsabilização, para o reconhecimento de isenções e imunidades subjetivas”.26 No que diz respeito às conseqüências endonormativas, Sacha Calmon acresce, ainda, àquelas citadas por Paulo de Barros – aspecto pessoal e quantitativo – outros aspectos denominados operacionais, que, na sua visão, seriam imperativos para a correta compreensão da relação jurídico-tributária: “como, onde, de que modo, quando, em que montante se vai satisfazer o débito em favor do sujeito ativo”,27 todos eles alusivos à obrigação tributária surgida com a ocorrência no mundo dos fatos da hipótese abstrata prevista na endonorma.
24 25
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 160-178. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 384-385.
26
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 384.
27
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 385.
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Além de tais aspectos acrescidos à conseqüência endonormativa, Sacha Calmon, ainda, criticando os critérios de Paulo de Barros, ressalta não ser possível reduzir o aspecto quantitativo da norma tributária a dois únicos requisitos: base de cálculo e alíquota. Isso em virtude de existirem tributos que não possuem alíquotas e base de cálculo, como ocorre na maioria das taxas, além de, em determinados impostos e contribuições, ser imperativa a utilização de outras operações como adições ou subtrações para a verificação do montante devido.28 Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Professor da Universidade Federal de Minas Gerais Werther Botelho Spagnol acresceu ainda outro aspecto à conseqüência da norma de tributos finalísticos, como os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais. Seria um aspecto finalístico, consistente na “indicação do destino a ser dado ao produto da arrecadação”.29 Na visão de Werther Spagnol, nos empréstimos compulsórios e nas contribuições especiais, o exercício da competência constitucional de instituição e de arrecadação estaria estritamente vinculado às finalidades postas pelo Constituinte à destinação do produto da arrecadação do tributo.30 4. CONCLUSÃO 1. Tanto a norma que prescreve uma conduta quanto a que estabelece uma sanção à conduta oposta formam uma norma dupla e complexa interligada, sendo que pela teoria egológica a perinorma guarda certa relação com a norma primária kelseniana, enquanto a endonorma tem certa correspondência com a norma secundária. 2. No caso da norma tributária, essa se situa na endonorma, ou na norma secundária, tendo em vista que a norma que estabelece a sanção está contida na perinorma ou na norma primária. 3. A norma tributária contém na sua hipótese aspectos pessoais, materiais, espaciais e temporais, sendo certo que no seu mandamento estão todos os elementos para identificação da obrigação tributária, quais sejam, os aspectos subjetivos, operacionais, quantitativos e, ainda, nas contribuições sociais e no empréstimo compulsório um outro aspecto, que é o finalístico.
28
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 385-386.
29
SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 51.
30
SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário, p. 49-53.
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REFERÊNCIAS BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. COSSIO, Carlos. Norma, direito e filosofia. Boletim da Faculdade de Direito, v. XXIII, Coimbra, 1947. _______. La teoría egológica del derecho. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987 LACOMBE. Américo. Obrigação tributária. 2. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996. SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
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Servidor Público no Regine Contributivo João Batista Ribeiro Juiz Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais E-mail: jbri@ig.com.br ou joão.ribeiro@trf1.jus.br Resumo: Este artigo procura abordar a compatibilidade da aplicação da penalidade de cassação da aposentadoria em razão da prática de atos incompatíveis com a função pública, a partir da Emenda Constitucional 03, de 17/03/1993, que introduziu o § 6º, no art. 40, na Constituição Federal, com a instituição de um regime próprio de previdência para o servidor público civil, de caráter contributivo, especialmente a contar da publicação do art. 4º, da EC 20, de 16/12/1998, que, por ficção legal, transformou o tempo anterior de serviço em tempo de contribuição. Palavras-Chave: Cassação da aposentadoria do servidor público civil. Regime contributivo desde o advento da EC 03, de 17/03/1993, com as alterações introduzidas pela EC 20, de 16/12/1998. Compatibilidade com a Constituição Federal. Abstract: This article discusses the legality of retirement forfeiture punishment, caused by the pratice of acts, incompatible with the public servant functions, considered the Federal Constitution in art. 40, § 6º, introduced by Consitutional Amendment n. 03, of 1993/3/17, and the creation of their contributive ownpension scheme for civil servants, since 1998/12/16 (art. 4o, Constitucional Amendment n. 20), wich, by legal fiction, has changed the previous career period in contribution period. Key-words: Civil servants retirement forfeiture. Contributive scheme created by Constitucional Amendment n. 03, of 1993/03/17 and modificated by Constitutional Amendment n. 20, of 1998/12/16. Federal Constitution compatibility.
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A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria do servidor público, principalmente a partir da Emenda Constitucional 03, de 17/03/1993, que introduziu o § 6º, no art. 40, na Constituição Federal, a fim de deixar expresso que as aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais seriam custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores e, notadamente, a partir da edição da Emenda Constitucional 20, de 16/12/1998, com a instituição de um regime próprio de previdência para o servidor público civil, de caráter contributivo, ainda não foi abordada, em todas as suas peculiaridades, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência que vem se formando a respeito do tema até os dias atuais. De fato, até a data da edição da EC 03, de 17/03/1993, a aposentadoria por tempo de serviço era uma das vantagens concedidas aos servidores, consistente na permissão de sua retirada do serviço ativo, com vencimentos integrais ou proporcionais ao tempo de serviço, sem qualquer contrapartida de sua parte. Neste sentido, trago à colação lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Quanto ao servidor público, a aposentadoria pode ter “caráter previdenciário” e pode constituir em “direito decorrente do exercício da função pública”, financiado inteiramente pelo Estado. A primeira hipótese tem sido adotada para os servidores contratados sob o regime da legislação trabalhista, em consonância com a Lei Orgânica da Previdência Social. A segunda hipótese é aplicável ao servidor sob o regime estatutário; para este, a aposentadoria não depende de qualquer contribuição, as importâncias que recolhe mensalmente ao órgão previdenciário destinam-se ao atendimento dos encargos de assistência médica e da pensão mensal, devida aos beneficiários do contribuinte, após o seu falecimento.1 Na mesma vertente interpretativa, a decisão do E. Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 3138/DF, no voto-vencido proferido pela eminente Min. Ellen Gracie, ao traçar um breve histórico, sobre a evolução do sistema de aposentadorias no setor público. São suas palavras:
1
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 373.
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51 [...] Mas, é com a Emenda Constitucional 3/1993 que o direito previdenciário do servidor público perdeu, definitivamente, o caráter até então reconhecido de direito devido em razão do cargo exercido. Com a expressa natureza contributiva que lhe foi conferida, justificou-se a instituição por lei de alíquota destinada ao custeio deste beneficio, o que foi feito através da Lei 8668/1993, que alterou o art. 231, do Regime Jurídico Único. As alíquotas estabelecidas foram as mesmas antes previstas pela Lei 8162/1991 que deveriam incidir sobre a totalidade da remuneração e fixou-se o prazo de noventa dias para o Congresso Nacional de projeto de lei dispondo sobre o Plano de Seguridade do Servidor e das alíquotas a serem observadas a partir de 1º de junho de 1994. [...] É com a EC 20/1998 e com a Lei 9717/1998 que se dá uma importante alteração no regime de previdência dos servidores públicos. Cria-se um regime próprio de previdência para o servidor público civil, de caráter contributivo. Por isso, passa a prevalecer o “tempo de contribuição” sobre o “tempo de serviço”. Estabeleceram-se, também, limites de idade para aposentadoria e teto limite para os valores de aposentadorias e pensões, desde que implantados os planos de aposentadoria complementar. [...] (grifo nosso) 2
No caso em estudo, consoante se vê, em razão dessa Emenda, a aposentadoria dos servidores públicos passou a ser de caráter contributivo. Assim, instituído o regime contributivo, passou o servidor a adquirir esse direito vertendo as contribuições pertinentes. O tempo anterior, de serviço, por força do disposto no art. 4º, da EC 20, de 16/12/1998, foi transformado em tempo de contribuição. Disso resultaria relacionamento de caráter securitário (seguro social), de modo que o direito à fruição da aposentação resultaria do simples cumprimento do tempo de contribuição necessário ao seu exercício e da implementação do requisito etário. Nesse mesmo sentido, posicionamento de Regis Fernandes de Oliveira, conforme reproduzo:
2
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Peno. ADI n° 3138/DF. Relatora Ministra Ellen Gracie. Brasília, julgado em 14 de setembro de 2011. Publicado no Diário da Justiça em 13 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1730536>.Acesso em 4 mar. 2012.
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52 A grande alteração introduzida pela Emenda Constitucional 20, de 15/12/1998, foi ter mudado o regime de aposentadoria de mera implementação do tempo de serviço pelo sistema de contribuição obrigatória. Pelo regime anterior, bastava ao servidor demonstrar que tinha trabalhado determinado período, para obter a passagem para a inatividade. Agora, é imprescindível o pagamento de contribuição. Há dois requisitos: a) caráter contributivo e b) necessidade do equilíbrio financeiro e atuarial.3
Destaco, igualmente, o entendimento da administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao discorrer sobre a sistemática da aposentadoria dos servidores públicos efetivos: Dependendo do regime adotado, a aposentadoria do servidor público pode, em tese, apresentar-se como direito de natureza previdenciária, dependente de contribuição, ou como direito vinculado ao exercício do cargo público, financiado inteiramente pelo Poder Público, sem contribuição do servidor. Tradicionalmente, a primeira hipótese era reservada apenas aos servidores contratados pelo regime da CLT, ficando os demais livres de qualquer contribuição. A Emenda Constitucional 3, de 1993, introduziu o § 6º no art. 40 da Constituição para prever que “as aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei.” (grifo nosso) 4 A esse propósito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 8-MC/DF, no voto condutor do acórdão, relatado pelo eminente Min. Celso de Mello, traz a definição elucidativa do que se deve entender por regime previdenciário de natureza contributiva, senão vejamos: Se é certo, portanto, que nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total (CF, art. 195, § 5º), não é menos exato que também não será lícito, sob uma
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OLIVEIRA, Regis Fernandes Oliveira. Servidores Públicos. 2ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008. p. 109-110. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Servidores Públicos na Constituição de 1988. 1ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2011. p. 151.
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53 perspectiva estritamente constitucional, instituir ou majorar contribuição para custear a seguridade social, sem que assista, àquele que é compelido a contribuir, o direito de acesso a novos benefícios ou a novos serviços. Cabe ter presente, por isso mesmo, a decisão plenária proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento final da ADI 790/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (RTJ 147/921-929), quando esta Suprema Corte, analisando a questão do equilíbrio atuarial e da necessária existência de causa suficiente como pressuposto de legitimação do aumento de contribuição destinada ao custeio da seguridade social, expendeu irrepreensível magistério sobre a matéria: O disposto no artigo 195, §5º, da Constituição Federal, segundo o qual “nenhum beneficio ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio”, homenageia o equilíbrio atuarial, revelando princípio indicador da correlação entre, de um lado, contribuições e, de outro, benefícios e serviços. O desaparecimento da causa da majoração do percentual implica o conflito da lei que a impôs com o texto constitucional. 5
A questão em estudo circunscreve-se em averiguar se a penalidade de cassação de aposentadoria afigura-se compatível ou não com o regime previdenciário do servidor público, de natureza contributiva, principalmente a partir da edição da EC 03, de 17/03/1993, que introduziu o § 6º, do art. 40, da Constituição Federal, e da EC 20, de 16/12/1998, tendo em conta a necessidade de correlação entre custo e benefício, pois o regime contributivo, por sua natureza, há de ser essencialmente retributivo. A questão que surge agora então é a seguinte: se, em razão da Emenda Constitucional 20, de 16/12/1998, a aposentadoria dos servidores públicos passou a ser de caráter contributivo; tendo o servidor contribuído para a concessão da aposentadoria, e assim também considerado o tempo de serviço anterior a essa emenda (art. 4º, da EC 20, de 16/12/1998), pode ou não ser cassada essa aposentadoria, que tem evidente viés securitário, em face do caráter contributivo, por atos que, em atividade, o servidor tenha praticado, autorizador da aplicação da pena de demissão?
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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADC n° 8-MC/DF. Relator Min. Celso de Melo. Brasília. Julgado em 13 de outubro de 1999. Publicado no Diário da Justiça em 04 de abril de 2003. Disponível em: < http:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=372907>.Acesso em 2 mar. 2012.
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A Carta da República, estabelece que o servidor público estável somente perderá o cargo mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa, conforme se depreende do disposto artigo 41, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, cuja redação é a seguinte: Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. § 1º O servidor público estável só perderá o cargo: [...] II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; 6 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Explica o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello: 151. Poder-se-ia imaginar, num primeiro relanço, que o § 1º, do art. 41, ora sub examine, contém disposição supérflua e incongruente, pois o art. 5º, inciso LV, da atual Constituição teria produzido autêntica uniformização entre estáveis e não estáveis, na medida em que outorgou a todas as pessoas direito à ampla defesa nos processos administrativos. É que o referido inciso LV do art. 5º, assim dispõe: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. Bem examinada a questão, entretanto, percebe-se que o disposto no § 1º, do art. 40 não é supérfluo nem contraditório com o art. 5º, LV. Adilson Dallari, com razão, observa que o servidor estável só perderá ser demitido quando incurso em alguma infração para a qual se preveja, como sanção, a pena de demissão. 7 O ato de cassação de aposentadoria, como modalidade de penalidade disciplinar, está previsto, de forma expressa, no art. 127, IV e 134, ambos da Lei 8.112, de 11/12/1990, nos seguintes termos: 6 7
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p.123.
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Art. 127. São penalidades disciplinares: [....] IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade; [...] Art. 134. Será cassada a aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com a demissão. 8 A cassação da aposentadoria, na lição do saudoso Professor Hely Lopes Meirelles, perfila-se em paralelo com a pena administrativa de demissão: Cassação da aposentadoria é penalidade assemelhada à demissão, por acarretar a exclusão do infrator do quadro de inativos e, consequentemente, a cessação do pagamento de seus proventos. Por ser penalidade, deve observar a garantia da ampla defesa e do contraditório. 9 Segundo o magistério de José dos Santos Carvalho Filho, a cassação da aposentadoria, [...] Cuida-se de penalidade por falta gravíssima, praticada pelo servidor quando ainda em atividade. Se essa falta fosse suscetível, por exemplo, da pena de dem issão, o servidor não faria jus à aposentadoria, de modo que, tendo cometido a falta e obtido a aposentadoria, deve esta ser cassada. Trata-se, por conseguinte, de penalidade funcional, ainda que aplicada a servidor inativo.10 Na mesma linha de raciocínio, anota Regis Fernandes de Oliveira que, com muita propriedade, explica: A demissão rompe o vínculo funcional. Impõe-se o afastamento definitivo do cargo público. Em se cuidando de inativo e tendo ele praticado, enquanto na ativa, falta funcional que importe pena de demissão, será instaurado contra ele processo administrativo, objetivando a cassação da aposentadoria ou dispoBRASIL. Lei n° 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. 9 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 18ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p.388-389. 10 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Servidores Públicos. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 151. 8
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nibilidade. Reverterá ele à ativa, suportando o processo. E caso de terminar com a pena de demissão, não poderá mais usufruir da aposentadoria, perdendo tal direito.11 De seu turno, o Professor Ivan Barbosa Rigolin salienta que a regra prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, constitui uma das mais grotescas atecnias de que padece o Estatuto dos Servidores Públicos: Se o artigo anterior é péssimo, este é simplesmente inconcebível. Contém um dos mais crassos erros de concepção que se pode imaginar em toda a legislação brasileira, e, mais uma vez, é de duvidar que componha lei tão importante quanto a Lei 8112. [...] Somente pode ser cassada a aposentadoria de quem a obteve de modo irregular, contra a lei, contra a Constituição, contra o ordenamento pátrio expresso. Ignora o artigo que a aposentadoria é um ato jurídico perfeito, que quita de parte a parte – Administração e servidor – todo e qualquer direito pendente, ou expectativa, ou desacerto passível de regularização futura. A aposentadoria corrige pendências até então existentes, apara arestas, arredonda cantos vivos, elimina descompassos como créditos ou débitos recíprocos. Quando concedida regularmente, a aposentadoria não pode ser prejudicada por atos ou fatos subseqüentes, relativos ao servidor, salvo aqueles que indicam fraude, pelo mesmo servidor, na demonstração de que tinha os requisitos para aposentar-se, ou salvo ainda erros da Administração, praticados quando da concessão da mesma. Afora nestas hipóteses, não será um fato praticado há quinze anos pelo servidor hoje aposentado que poderá, em nenhuma hipótese do universo, prejudicar a atual aposentadoria. Esta constitui um estado definitivo e supostamente correto, estável, a proteger o ex-servidor [...] 12
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Júris, 2011. p. 663. 12 RIGOLIN , Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995. p. 233. 11
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Imperioso recorrer, novamente, à crítica, veemente, do articulista Ivan Barbosa Rigolin à previsão estatutária do art. 134, da Lei 8112, de 1990. São suas palavras: É rigorosamente absurda a penalidade de cassação de aposentadoria de funcionário em face de falta cometida na atividade e não punida à ocasião, por absoluta e insuperável falta de nexo causal. A simples idéia em si constitui aberta violação à Constituição e ao princípio atemporal abrigado pela Lei de Introdução ao Código Civil, garantidor do ato jurídico perfeito e do direito adquirido que este origina. [...] Com efeito, a aposentadoria é um ato jurídico perfeito e acabado, que obrigatoriamente quita toda e qualquer pendência, aresta, descompasso, diferença ou disputa entre Administração e servidor – tanto que a Lei 8112, de 1990, art. 172, simplesmente impede a concessão de aposentadoria ao servidor que esteja sendo processado administrativamente quando a requer, mesmo que tenha completado o direito. Reza esse dispositivo: “ O servidor que responder a processo disciplinar só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente, após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada.” E se a lei assim o faz, é porque o legislador sabe que uma vez concedida a aposentadoria esse mesmo ato tem o condão imediato de quitar, de parte a parte, qualquer daquelas eventuais pendências ou diferenças, que, a partir da aposentação, não mais poderão ser reclamadas por nenhum dos lados. Apenas se pode conceber, em Estado juridicamente idôneo e assim jurisdicizado cassar-se aposentadoria que tenha sido irregularmente concedida com desrespeito e insatisfação dos pressupostos e requisitos para sua concessão. Nunca em outra hipótese. 13
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RIGOLIN, Ivan Barbosa. A absurda pena de cassação de aposentadoria por falta antiga, punível com demissão, Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Minas Gerais, 22 ago. 2007. Disponível em: http://200.198.41.151:8081/tribunal_contas/2007/03/-sumario?next=2. Acesso em 24 fev. 2012.
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Em outras palavras, na hipótese em comentário, sustenta o renomado administrativista que o agente quando se aposenta não ostenta a condição de servidor, na acepção técnica e jurídica do termo, já que está totalmente desvinculado das atribuições, responsabilidades e prerrogativas do cargo e, portanto, a Administração não detém legitimidade para aplicar a penalidade de cassação de aposentadoria como punição de um fato, dito irregular, atribuído ao servidor inativo, descrito no regime estatutário como suscetível de ter ensejado a abertura de processo administrativo, visando à sua demissão, quando estava, ainda, em atividade. Permitimo-nos discordar da inteligência em que se fundamenta o raciocínio desenvolvido pelo eminente jurista para sustentar a inconstitucionalidade da penalidade de cassação de aposentadoria por um motivo muito simples, a saber: a aposentadoria do servidor não desfaz o vínculo estatutário, motivo pelo qual afigura-se possível a aplicação da pena de cassação de aposentadoria em virtude de falta grave que, praticada na atividade, ensejaria a aplicação da pena de demissão. De fato, o gozo de aposentadoria não descaracteriza o vínculo jurídico do servidor com a Administração. É que os proventos decorrem, sempre, de um cargo exercido na atividade, conforme, aliás, já decidiu o Plenário do E. Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE 163204/SP, pronunciando-se o eminente Min. Relator Carlos Velloso, no voto condutor do v. acórdão, no aspecto que interessa ao tema sob análise, da seguinte forma: De fato. A aposentadoria encontra disciplina na Constituição e nas leis dos servidores públicos. A Constituição estabelece os casos de aposentadoria e o tempo de serviço necessário a sua obtenção (CF, art.40). [...] No que concerne aos servidores federais, a Lei 8112, de 1990, disciplina a aposentadoria nos artigos 185, § 1º, 186 a 195. Os servidores públicos aposentados não deixam de ser servidores públicos: são, como bem afirmou Haroldo Valadão, servidores públicos inativos. [...] Ambos, entretanto, vencimentos e proventos. Constituem remuneração decorrente do exercício – atual ou passado – de cargos públicos, ou de empregos e funções em autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público (CF, art. 37, XVI e XVII, art.40 [...] 14
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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno. RE n° 163204/SP. Relator Min. Carlos Veloso. Brasília. Julgado em 09 de novembro de 1994. Publicado no Diário da Justiça em 31 de março de 1995. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=214228>.Acesso em 1° mar. 2012.
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Assim, se o servidor cometeu a falta quando estava em atividade, daí que a conseqüência seria a demissão a bem do serviço público, o que afastaria seus vencimentos e demais vantagens do cargo. Desta forma, se a Constituição Federal, no seu artigo 41, § 1º, inciso II, possibilita a perda do cargo que é o mais, como não autorizaria a cassação da aposentadoria, que é o menos? No regime estatutário, o servidor só adquire direitos, respeitadas as disposições da Constituição, já que “o direito adquirido e o decurso de longo tempo não podem ser opostos quando se tratar de manifesta contrariedade à Constituição” (RE 381204 / RS; 2ª Turma, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 11/11/2005, p.48) de sorte que a prática de ato faltoso durante a atividade macula os atos posteriores – dentre eles – a concessão da aposentadoria. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a constitucionalidade da cassação de aposentadoria prevista nos artigos 127, IV e 134, ambos da Lei 8112, de 1990, como sanção pela prática de ato infracional grave por servidor público (AI 504188 ED / RS; 1ª Turma, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 11/11/2005, p.29; RMS 24557 / DF; 2ª Turma, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 26/09/2003, p.25). Confira-se, a propósito do tema examinado, a diretriz firmada pelo Plenário do E. Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do MS 23299/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, em acórdão cujo voto condutor sintetiza: Não há cogitar, igualmente, de ofensa ao ato jurídico perfeito da aposentadoria: a cassação da inatividade remunerada do servidor público é pena disciplinar legalmente prevista, à qual não se pode opor, como ato jurídico intangível, a concessão de aposentadoria, cuja existência, ao contrário, constitui o antecedente necessário de sua aplicabilidade. De resto – como já assentado sem discrepância pelo Tribunal – “o ato jurídico perfeito impede que se desconstitua aposentadoria pela aplicação de lei posterior a ela, mas não há que se invocar esse princípio, que se situa no âmbito do direito intertemporal, para se pretender a inconstitucionalidade de lei que, como relação às aposentadorias ocorridas posteriormente a esta, comine sua cassação pela prática, na atividade – e, portanto, anteriormente à sua concessão – de falta punível com demissão” (MS 22728/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 13/11/1998, p.005).
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É forçoso concluir, diante desta quadra, que o legislador ordinário não infringiu nenhuma disposição da Carta de 1988, ou do poder constituinte derivado, ao disciplinar seu regime estatutário, submetendo o servidor que, no exercício do cargo, cometeu ilícito administrativo passível de demissão. Ao contrário, deu exata vazão à competência que a Carta da República lhe assegurou, perante a qual, ressalta feita à disposição em contrário, que inexiste, é livre para tudo prever. Vale ressaltar, neste ponto, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 21948/DF, no voto proferido pelo eminente Relator Min. Néri da Silveira, já se manifestou pela constitucionalidade da penalidade de cassação de aposentadoria, tecendo as seguintes observações, inteiramente aplicáveis, à hipótese em comentário: [...] A alegação não tem procedência. A ruptura do vínculo funcional é prevista no art. 41, § 1º, da Constituição, ao estipular: § 1º O servidor público estável só perderá o cargo, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa. A cassação da aposentadoria ou disponibilidade pressupõe ilícito disciplinar enquanto no exercício de atividade funcional. Dessa maneira, a circunstância de o servidor possuir tempo de serviço para a aposentadoria voluntária não obsta a Administração a que vinculado instaurar processo administrativo disciplinar para apurar falta que haja eventualmente praticado no exercício do cargo. Mesmo se aposentado, ainda assim lícito seria a instauração do procedimento disciplinar de que poderia decorrer a cassação da aposentadoria, se comprovada a ocorrência da falta grave, em lei capitulada como conducente à pena de perda do cargo. 16
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno. MS n° 23299/SP. Relator Min. Sepúlveda Pertence. São Paulo. Julgado em 06 de março de 2002. Publicado no Diário da Justiça em 12 de abril de 2002. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85941>.Acesso em 1° mar. 2012. 16 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno. MS n° 21948/RJ. Relator Min. Néri da Silveira. Rio de Janeiro. Julgado em 29 de setembro de 1994. Publicado no Diário da Justiça em 07 de dezembro de 1995. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85646>.Acesso em 2 fev. 2012. 15
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Registre-se, ainda, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que, não obstante o caráter contributivo de que se reveste o benefício previdenciário, o Tribunal tem confirmado a aplicabilidade da pena de cassação de aposentadoria, no julgamento do MS 23219 AgR/RS, Rel. Min. Eros Grau, em cujo voto condutor registra-se esta expressiva passagem: Quanto à constitucionalidade da cassação da aposentadoria, este Tribunal confirma reiteradamente a aplicabilidade dessa forma de punição, não obstante o caráter contributivo de que se reveste este benefício previdenciário. I. Cassação de aposentadoria pela prática, na atividade, de falta disciplinar punível com demissão (L. 8.112/90, art. 134): constitucionalidade, sendo irrelevante que não a preveja a Constituição e improcedente a alegação de ofensa do ato jurídico perfeito. II. Presidente da República: competência para a demissão de servidor de autarquia federal ou a cassação de sua aposentadoria. III. Punição disciplinar: prescrição: a instauração do processo disciplinar interrompe o fluxo da prescrição, que volta a correr por inteiro se não decidido no prazo legal de 140 dias, a partir do termo final desse último. IV. Processo administrativo-disciplinar: congruência entre a indiciação e o fundamento da punição aplicada, que se verifica a partir dos fatos imputados e não de sua capitulação legal.17 Na hipótese sob exame, consoante se vê, a Suprema Corte, concisamente, considerou constitucional a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria, ainda que no regime contributivo criado a partir da edição da EC 03, de 17/03/1993, que introduziu o § 6º, do art. 40, da Constituição Federal, a fim de deixar expresso que as aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais seriam custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores e, notadamente, a partir da edição da Emenda Constitucional 20, de 16/12/1998. A constitucionalidade da penalidade de cassação de aposentadoria prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, foi reconhecida pela Suprema Corte, mesmo no regime contributivo, ao fundamento de que tal penalidade resulta da prática de ilícito passível de aplicação da pena de demissão, não se afigurando possível, no caso estudado, distinguir a relação estatutária e a previdenciária, até mesmo
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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno MS 23219 AgR/RS. Relator Min. Eros Grau. Rio Grande do Sul. Julgado em 30 de junho de 2005. Publicado no Diário da Justiça em 19 de agosto de 2005. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=24908 >.Acesso em 2 fev. 2012.
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porque a prática de ato faltoso durante a atividade macula os atos posteriores, dentre eles, o ato concessivo da aposentadoria. No âmbito dos Tribunais Regionais Federais e Estaduais, a questão da argüição da inconstitucionalidade da aplicação da pena de cassação de aposentadoria prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, no regime contributivo, instituído a contar da edição da EC 3, de 17/3/1993, malgrado tenha sido provocada pela parte interessada, em sucessivas oportunidades, tem sido rejeitada, invariavelmente, pelas instâncias ordinárias, sem maiores considerações, ao simples argumento de que o Supremo Tribunal Federal já rejeitou tal alegação de inconstitucionalidade. A título meramente ilustrativo, trago à colação julgado oriundo do E. TRF/2ª Região em que o servidor público inativo defendia a inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria, após o advento da EC 20, de 16/12/1998, em virtude do seu caráter contributivo. A arguição foi rejeitada, de forma bastante concisa, no voto condutor do acórdão, do seguinte modo: No que toca à alegação de inconstitucionalidade de cassação de aposentadoria, registre-se que o Supremo Tribunal Federal no MS 21948/RJ, rejeitou tal alegação. Assim assevera a ementa do acórdão: EMENTA: - MANDADO DE SEGURANÇA. DEMISSAO. PROCURADOR AUTARQUICO. 2. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS INCISOS III E IV DO ART. 127, DA LEI N. 8112/1990, AO ESTABELECEREM ENTRE AS PENALIDADES DISCIPLINARES A DEMISSAO E A CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. SUA IMPROCEDENCIA. A RUPTURA DO VINCULO FUNCIONAL E PREVISTA NO ART. 41, PAR. 1. DA CONSTITUIÇÃO. HOUVE, NO CASO, PROCESSOADMINISTRATIVO, ONDE ASSEGURADA AO IMPETRANTE AMPLA DEFESA. A DEMISSAO DECRETOU-SE POR VALER-SE O IMPETRANTE DO CARGO, EM DETRIMENTO DA DIGNIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA E DESIDIA. LEI N. 8.112/1990, ART. 117, INCISOS IX E XI. 3. NÃO CABE, EM MANDADO DE SEGURANÇA, PENETRAR NA INTIMIDADE DAS PROVAS E FATOS DE QUE RESULTOU O PROCESSO DISCIPLINAR. 4. NÃO PODE PROSPERAR, AQUI, CONTRA A DEMISSAO, A ALEGAÇÃO DE POSSUIR O SERVIDOR MAIS DE TRINTA E SETE ANOS DE SERVIÇO PÚBLICO. A DEMISSAO, NO CASO, DECORRE DA APURAÇÃO DE
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63 ILICITO DISCIPLINAR PERPETRADO PELO FUNCIONÁRIO PÚBLICO, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. NÃO E, EM CONSEQUENCIA, INVOCAVEL O FATO DE JA POSSUIR TEMPO DE SERVIÇO PÚBLICO SUFICIENTE A APOSENTADORIA. A LEI PREVE, INCLUSIVE, A PENA DE CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA, APLICAVEL AO SERVIDOR JA INATIVO, SE RESULTAR APURADO QUE PRATICOU ILICITO DISCIPLINAR GRAVE, EM ATIVIDADE. 5. AUTONOMIA DAS INSTANCIAS DISCIPLINAR E PENAL. 6. MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO. 18
Desse mesmo conciso decidiu o E. Superior Tribunal de Justiça, segundo dá conta julgamento, de cujo acórdão extraio os seguintes fragmentos: De resto, o Pleno do Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela constitucionalidade da penalidade de cassação de aposentadoria, em acórdão assim ementado: EMENTA: - MANDADO DE SEGURANÇA. DEMISSAO. PROCURADOR AUTARQUICO. 2. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS INCISOS III E IV DO ART. 127, DA LEI N. 8112/1990, AO ESTABELECEREM ENTRE AS PENALIDADES DISCIPLINARES A DEMISSAO E A CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. SUA IMPROCEDENCIA. A RUPTURA DO VINCULO FUNCIONAL E PREVISTA NO ART. 41, PAR. 1. DA CONSTITUIÇÃO. HOUVE, NO CASO, PROCESSO ADMINISTRATIVO, ONDE ASSEGURADA AO IMPETRANTE AMPLA DEFESA. A DEMISSAO DECRETOU-SE POR VALER-SE O IMPETRANTE DO CARGO, EM DETRIMENTO DA DIGNIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA E DESIDIA. LEI N. 8.112/1990, ART. 117, INCISOS IX E XI. 3. NÃO CABE, EM MANDADO DE SEGURANÇA, PENETRAR NA INTIMIDADE DAS PROVAS E FATOS DE QUE RESULTOU O PROCESSO DISCIPLINAR. 4. NÃO PODE PROSPERAR, AQUI, CONTRA A DEMISSAO, A ALEGAÇÃO DE POSSUIR O SERVIDOR MAIS DE TRINTA E SETE ANOS DE SERVIÇO PÚBLICO. A DEMISSAO, NO CASO, DECORRE DA APURAÇÃO DE
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BRASIL, Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Sétima Turma Especializada. AC 200951010277573. Relator Juiz Nobre da Matta. Rio de Janeiro, Julgado em 09 de fevereiro de 2011. Publicado no Diário da Justiça em 16 de fevereiro de 2011. Disponível em: < http://www.trf2.gov.br/cgi-bin/pdbi?PRO= 200951010277573&TOPERA= 1&I1=OK> Acesso em 2 fev. 2012.
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ILICITO DISCIPLINAR PERPETRADO PELO FUNCIONÁRIO PÚBLICO, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. NÃO E, EM CONSEQUENCIA, INVOCAVEL O FATO DE JA POSSUIR TEMPO DE SERVIÇO PÚBLICO SUFICIENTE A APOSENTADORIA. A LEI PREVE, INCLUSIVE, A PENA DE CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA, APLICAVEL AO SERVIDOR JA INATIVO, SE RESULTAR APURADO QUE PRATICOU ILICITO DISCIPLINAR GRAVE, EM ATIVIDADE. 5. AUTONOMIA DAS INSTANCIAS DISCIPLINAR E PENAL. 6. MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO.19 Firmadas essas premissas, impõe-se analisar a possibilidade ou não da contagem do tempo de contribuição pelo servidor titular de cargo público efetivo, no âmbito da Administração Pública, para fins previdenciários, quando lhe for imputada, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa, a pena de demissão ou de cassação de aposentadoria. A Constituição Federal, em seu art. 201, § 9º, estabelece o seguinte: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: [...] § 9º Para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei. 20 Na hipótese sob análise, facilmente se depreende que a Carta da República, a fim de assegurar ao interessado a contagem recíproca do tempo de contribuição para efeito de aposentadoria impõe a obrigação de indenização/ compensação entre os diversos regimes de previdência social.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça . Terceira Seção. MS 7795 / DF. Relator Ministro Hamilton Carvalhido. Distrito Federal, Julgado em 26 de fevereiro de 2003. Publicado no Diário da Justiça em 24 de junho de 2002. Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao= null&livre= %28%22HAMILTON+CARVALHIDO%22%29.min.&processo=7795&b=ACOR> Acesso em 1° fev. 2012. 20 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. 19
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Pois bem. A questão que se põe é a seguinte: pode o servidor público que teve a sua aposentadoria cassada, na forma prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, requerer a sua filiação ao RGPS – Regime Geral da Previdência Social, na qualidade de contribuinte individual ou segurado empregado, e, ao depois, cumprida a carência mínima exigida, postular a contagem recíproca do tempo de contribuição vertido ao RPPS – Regime Próprio de Previdência do Servidor Público que não pôde ser contabilizado no regime de origem em razão da imposição da pena disciplinar (cassação de aposentadoria)? A resposta à indagação, respeitada as opiniões, em sentido contrário é, naturalmente, positiva. A Lei 8.213, de 1991, nos seus artigos 24, § único c/c artigo 99, da Lei 8.213, de 1991, prescreve: Art. 24. Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências. Parágrafo único. Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido. [...] Art. 99. O benefício resultante de contagem de tempo de serviço na forma desta Seção será concedido e pago pelo sistema a que o interessado estiver vinculado ao requerê-lo, e calculado na forma da respectiva legislação. 21 Na hipótese em comentário, não há qualquer proibição na legislação que impeça ao servidor público, aposentado pelo Regime Próprio de Previdência que, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa, tenha sido punido com a pena de cassação de aposentadoria, prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, filie-se ao RGPS e, após o cumprimento da carência mínima exigida (art.24, § único, da Lei 8213/1991), aproveite a regra do art. 99, da Lei 8213, de 1991, a fim de lhe garantir o direito à aposentação.
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BRASIL, Lei n° 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
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Esse entendimento, por sua vez, foi corroborado pela jurisprudência do E. TRF/5ª Região, ao rejeitar a pretensão de devolução das contribuições vertidas aos cofres públicos pela ex-servidora pública, apenada com a sanção de cassação de aposentadoria, como se vê, de maneira bastante expressiva, do voto condutor do seguinte acórdão, que bem sintetiza a controvérsia: Ainda, também não há como se acolher o pedido alternativo para que seja determinada a devolução das contribuições pagas durante todo o tempo de serviço público em regime de previdência social. A contribuição previdenciária está vinculada à prestação do serviço laboral, os recolhimentos foram efetuados de forma regular, não havendo que se falar em restituição. No entanto, tais contribuições podem ser aproveitadas no cálculo de eventual concessão futura de aposentadoria pelo Regime Geral da Previdência Social, obedecidos os ditames do art. 201, § 9º, da CF e o art. 24, § único, da Lei 8213, de 1991, situação em que os sistemas contributivos se compensarão. 22 Não há falar, na hipótese em estudo, que a filiação do servidor ao RGPS (Regime Geral de Previdência Social), configuraria verdadeira burla ao sistema, pela impossibilidade lógica de se promover a indenização/compensação de tempo de contribuição não passível de contabilização no regime de origem (Regime Próprio de Previdência Social), pela imposição da sanção disciplinar. É que as disposições que revelem caráter punitivo, restringem a liberdade ou afetem direitos merecem interpretação estrita, criteriosa, discreta, prudente, como recomenda Carlos Maximiliano 23, refletindo regra de exegese secularmente consagrada. Demais disso, no regime contributivo, instituído a partir da edição da EC 3, de 17/3/1993, que introduziu o § 6º, do art. 40, da Constituição Federal, e da EC 20, de 16/12/1998, o direito à aposentação não resulta de simples prêmio ao servidor público pelo exercício da função pública, independentemente de qualquer contraprestação de sua parte. Assim, exigir, novamente, que o servidor inativo, apenado com a sanção de cassação de aposentadoria, na forma prevista no art. 134, da Lei 8112, de 1990, após a sua filiação ao RGPS, demonstre tempo de contribuição suficiente BRASIL, Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Segunda Turma. AC 200483020059042, Relator Juiz Francisco Wildo. Pernambuco, Julgado em 23 de março de 2010. Publicado no Diário da Justiça em 30 de março de 2010. Disponível em <http://www.trf5.jus.br/archive/2010/03/200483020059042_20100330. pdf> Acesso em 28 de fev 2012. 23 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1961. 22
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sob o referido regime, a fim de que possa gozar do benefício da aposentadoria por tempo de contribuição, impedindo-o, de contar o tempo de contribuição vertido ao RPPS, configura, sem qualquer sombra de dúvida, o confisco a que se refere o art. 150, IV, da Constituição Federal, já que a contribuição em questão se caracteriza como tributo (RE 146733/SP, RTJ 143/684). Esta, a meu sentir, a interpretação que se harmoniza com o reconhecimento da constitucionalidade da penalidade de cassação de aposentadoria, no regime contributivo, já que a se entender que houve a desconsideração total do tempo de contribuição, no regime próprio, em decorrência da aplicação da penalidade sem facultar a sua utilização no regime do RGPS estará caracterizado, sem qualquer sombra de dúvida, o efeito confiscatório que a Carta da República repudia (CF, art. 150, IV).
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As Viagens Insólitas até às Populações Tradicionais: “Expedição da Cidadania” nas comunidades indígenas Tekoha Ocoy, Tekoha Añetete, Tekoha Itamarã
análise do projeto
Antônio César Bochenek Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Ponta Grossa/PR Presidente da APAJUFE Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI Coordenador do Grupo de Pesquisa do CESCAGE www.bochenek.com.br - cesarbochenek@hotmail.com Sumário: 1. As populações tradicionais. 2. A (in)justiça histórica com as populações tradicionais. 3. As comunidades indígenas Tekoha Ocoy, Tekoha Añetete, Tekoha Itamarã. 4. Constatações da pesquisa empírica. 5. Considerações finais. 6. Referências Bibliográficas. Resumo: O presente ensaio analisa o projeto “Expedição da Cidadania”, desenvolvido pela AJUFE em parceria com entidades e instituições, junto às comunidades indígenas Tekoha Ocoy, Tekoha Añetete e Tekoha Itamarã, localizadas no sudoeste do Estado do Paraná. O objetivo do projeto é levar cidadania até as populações tradicionais por intermédio da realização de Juizados Especiais Federais. A ausência de informação e de documentação dos indígenas é o principal obstáculo ao acesso à justiça e impulsionou a promoção de ações para o atendimento das populações tradicionais em condições de igualdade, observando e assegurando a diversidade e as diferenças, em relação aos mesmos benefícios e serviços oferecidos à população em geral. A investigação de campo, com entrevistas e observação participante, foi o instrumento utilizado para a análise crítica do projeto. Palavras-chave: Poder Judiciário - cidadania - populações tradicionais – indígenas.
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Abstract: This essay analyzes the project “Expedition of Citizenship”, developed by AJUFE in partnership with entities and institutions, along the indigenous communities Tekoha Ocoy, Tekoha Añetete and Tekoha Itamarã, located in the southwest of the State of Parana. The project goal is to take citizenship to the traditional populations through the implementation of Special Federal Courts. The lack of information and documentation of indigenous people is the main obstacle to the access to justice and pushed the promotion of actions for the care of traditional populations on equal terms, observing and ensuring the diversity and differences in relation to the same benefits and services offered to the general population. The field research, with interviews and participant observation, was the instrument used to make a critical analysis of the project. Key-words: Judiciary - citizenship - traditional peoples - indigenous. O Poder Judiciário historicamente foi marcado por doses excessivas de conservadorismo. O processo de redemocratização brasileiro foi acentuadamente marcado pelo ressurgimento, ainda que incipiente, de várias forças e grupos sociais. A Constituição de 1988 representou e ditou os interesses mais variados que ao longo dos últimos 20 anos foram se cristalizando lenta e precariamente, mas com a expectativa de melhorias, desde que os movimentos sociais, a classe política e todas as pessoas trabalhem arduamente para que este objetivo possa ser concretizado. O Poder Judiciário também evoluiu e transformou-se para consagrar novas práticas que representam alternativas ao projeto de construção de uma sociedade mais justa e democrática e que vise a eliminar as grandes discrepâncias econômicas, sociais e culturais. As iniciativas tomadas pelo judiciário federal brasileiro, praticamente inexistentes no passado, começaram a brotar de forma isolada e com baixa intensidade. No universo amplo e continental brasileiro, estas iniciativas representam pouco do que o Poder Judiciário, enquanto órgão com responsabilidade pública e social, pode fazer para a afirmação da cidadania e contribuir para a implementação de uma democracia mais efetiva e de alta intensidade. Nesse caminho, a conscientização pessoal e institucional passa pela prevalência do interesse público e coletivo em detrimento de interesses particulares, que já demonstraram o quão nefastos são para com a sociedade e principalmente para com as classes menos favorecidas. Justamente, ao longo da história, as populações tradicionais foram as menos favorecidas e as mais exploradas e esquecidas, sem falar na invisibilidade social produzida desde a época da colonização européia até os dias de atuais com consequências silenciosas, opressoras e irresponsáveis.
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Analisar as iniciativas e alternativas que aproximam as realidades distintas - Poder Judiciário e populações tradicionais - é o desafio do presente ensaio, com a finalidade de verificar as potencialidades e limites. O presente trabalho é composto de uma parte teórica sobre as chamadas populações tradicionais, em especial, as indígenas. A parte empírica analisará criticamente o projeto “Expedição da Cidadania” realizado nas comunidades indígenas. Para tanto, a pesquisa de campo contou com a metodologia da observação participante e entrevistas semiestruturadas. Ao final, serão lançadas considerações críticas sobre o projeto. 1. As populações tradicionais A ideia e o conceito de populações tradicionais estão essencialmente ligados à preservação de valores, de tradições, de cultura. As populações “tradicionais” são aquelas que apresentam, em regra, relaçao íntima e próxima com a natureza, modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltado principalmente para a subsistência, baseado em uso intensivo de mão de obra da unidade familiar, transmitida via oral pelos antepassados, e com a utilização de tecnologias simples, de impacto limitado, de base sustentável e de reduzida acumulação de capital Essas populações, em geral, ocupam as terras há muito tempo e não possuem registro legal de propriedade, além de definir apenas o local de moradia como parcela individual, o restante do território é utilizado como área comunitária, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente. A conservação da fauna e flora é a garantia de perenidade para as populações tradicionais. Em geral “as populações tradicionais são discriminadas por sua identidade sociocultural e impedidas de reproduzir seu modo de vida” (Arruda, 1999). Ao contrário, as populações tradicionais não são sinônimo de populações atrasadas, refratárias ao progresso ou à modernização e podem ser tão modernas ou mais que uma população urbana. A Constituição brasileira, ainda que de maneira insuficiente, mas com relevante destaque no resgate da dívida para com as populações tradicionais, estabelece algumas obrigações legais em favor dos índios, em maior grau, e das populações de remanescentes de quilombolas. Contudo, há uma infinidade de outras populações tradicionais esquecidas e marginalizadas que compreendem (Diegues, 1993; Arruda, 1999) pelo menos 13 populações tradicionais nãoindígenas brasileiras: caboclos ou ribeirinhos amazônico, praieiros, babaçueiros, sertanejos ou vaqueiros, jangadeiros, pescadores artesanais, caiçaras, açorianos, campeiros, caipiras ou sitiantes, varjeiros ou ribeirinhos não-amazônicos, quilombolas e pantaneiros.
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2. A (in)justiça histórica com as populações tradicionais A “prosperidade” da sociedade brasileira foi construída na base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e com recursos provenientes da exploração dos escravos. Esses povos foram durante séculos vítimas do descaso e invisibilidade por parte do Estado e seus agentes e também pela sociedade. Ainda, não foram raras às vezes que o sistema judicial atuou na contramão da justiça social, a favor das elites neocoloniais e com resultados trágicos e nefastos aos sistemas coletivos de produção e vida, principalmente contra os índios e negros que tiveram suas culturas depreciadas e não valorizadas. Por essas razões, no contexto brasileiro há um forte componente de injustiça histórica para com os povos indígenas e afros-descendentes, ainda arraigados na cultura brasileira de racismo anti-índio e anti-negro. A partir das concepções de justiça social não há como dissociar ou esquecer o elemento da justiça histórica, pois ela tem mais a ver com o futuro do que com o passado opressor e marginalizador (Santos, 2008 : 3). A exclusão histórica e estrutural caracteriza a situação dos povos indígenas. Entretanto, sopram nos últimos anos ventos favoráveis à justiça histórica na América Latina: a) o reconhecimento constitucional de diversidade de culturas dos povos que constituem o Estado (Santos, 2007; Baldi, 2008); b) o reconhecimento dos territórios tradicionalmente habitados pelas comunidades tradicionais interessa ao mundo como forma de preservar as reservas e, com elas, a identidade cultural e a própria biodiversidade (Santos, 2008); c) a forma de vida e relação com a natureza das populações tradicionais baseada na responsabilidade sócio-ambiental são imprescindíveis para o futuro do planeta (75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou afros-descendentes), A partir dessas premissas é possível verificar que há um débito quanto ao passado e um crédito futuro para com as populações tradicionais, especialmente as indígenas. Dívida pelo descrédito, negligência e não valorização das culturas que foram vítimas de toda a sorte de exploração e usurpação. Crédito, por estar usufruíndo daquilo que foi cuidado, preservado, manejado e não explorado indevidamente pelos indígenas e que agora passa a ser visto como modo de sustentabilidade. No balanço, toda a sociedade deve muito às populações tradicionais e precisa aprender a valorizá-las e respeitá-las, além de recuperar e recompor as diferenças e as desigualdades perpetradas ao longo de toda a história. Isso não significa fazer a promoção da igualdade a todo e qualquer preço, mas antes de tudo aprender a valorizar as diferenças, que são vitais ao futuro. Compreender
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as limitações, apreender sobre a vontade de viver (Dussel, 2007) e viver em harmonia e equilíbrio com o meio são elementos fundamentais para o presente e imprescindíveis para o futuro. É preciso respeitar as máximas da vida como parte um todo indissociável e não apenas e somente aprender com os erros cometidos ou provocados. Admirar o outro faz com que o homem se expanda, por outro lado, o egoísmo é a face do encolhimento. Importa identificar o que é possível fazer e quais são as alternativas para aproximar o enorme vazio e a distância entre as populações tradicionais e a sociedade dita civilizada. Como a sociedade pode compensar as populações tradicionais e reequilibrar as diferenças sociais ocasionadas pelos anos de exclusão, marginalização, usurpação, negligência, desvalorização. Há muito o que aprender e a se fazer. Contudo, é relevante respeitar memória e a identidade das populações tradicionais, e evitar que a pretexto de fazer uma compensação pelos equívocos do passado sejam realizados atos que prejudiquem e afetem ainda mais o rico conteúdo cultural e de experiências acumulados pelas populações tradicionais. Também não é recomendado nem desejável que as ações partam de cima para baixo, mas sim de baixo para cima, ou seja, as populações tradicionais devem ter a liberdade para participar ativamente da elaboração de planos, metas e estratégias que entendam necessárias para o futuro.] 3. As comunidades indígenas Tekoha Ocoy, Tekoha Añetete, Tekoha Itamarã Estima-se que entre um milhão e cinco milhões de índios viviam no Brasil em 1500, distribuídos em 1.400 tribos, que falavam 1.300 línguas diferentes. De acordo com os dados de 2005 da Funai (www.ibge.gov.br), a população indígena no Brasil era de 358.000 pessoas,. divididas em 215 etnias, 180 línguas faladas, e representando um percentual 0,2% da população brasileira. Além da população indígena identificada oficialmente, há 55 notificações de grupos isolados ainda não contatados pelo homem branco. A maior parte da população indígena (27,5%) está concentrada no Estado do Amazonas, no Mato Grosso e em Roraima. Antes da colonização européia os índios guaranis ocupavam o território do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Na região sudoeste do Estado do Paraná há três aldeias indígenas da etnia avá-guarani, às margens do Lago de Itaipu. A aldeia indígena Tekoha Ocoy, localizada no município da São Miguel do Iguaçu/PR, conta com cerca de 700 pessoas que compõe as 150 famílias, distribuídas em aproximadamente 231 hectares. Nas aldeias Tekoha Añetete e Tekoha Itamarã vivem mais 800 índios. Vale citar que a maioria dos integrantes das aldeias não entende ou fala com regularidade o português, mas o idioma
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guarani em dois dialetos. São poucos os que falam o espanhol. Este fato reduziu consideravelmente o universo de entrevistados, mas não impossibilitou a realização da pesquisa de campo. Entrevistei 15 indígenas, 2 coordenadores e 5 executores do projeto. De acordo com a pesquisa de campo, há aproximadamente 35 comunidades indígenas às margens do lago de Itaipu, no Paraguai, e 10 aldeias em território argentino. O sentido de identidade entre os Guarani tem se preservado por meio da manutenção da língua, da cultura, e também pela mobilidade desses povos. As atividades dessas comunidades indígenas baseiam-se na produção de roças de subsistência, pomares, criação de galinhas, além da pesca. Para complementar a renda familiar, produzem e vendem artesanato. Nas aldeias brasileiras, há professores índios que alfabetizam as crianças na língua Guarani ou Kaingang. Os índios já incorporam muitos costumes e tradições da sociedade local, em face da proximidade da região da aldeia com fazendas e cidades. A “Expedição da Cidadania” visa a realizar Juizados Itinerantes nos locais onde vivem as populações tradicionais do Brasil. A ausência de conhecimento, informação, oportunidade e recursos financeiros e materiais são alguns dos fatores que inviabilizam o exercício de direitos pelos indígenas que lhes são assegurados, mas nem sempre concretizados. Para a propositura de uma ação judicial ou concessão de um benefício previdenciário ou assistencial é necessária a apresentação de alguns documentos, sem os quais não é possível obter os direitos. Como boa parte dos índios, por razões diversas, não possuem documentação, eles não usufruem de determinados direitos estendidos a população em geral. O projeto visa a elaboração de documentos que são úteis e necessários para a propositura de ações judiciais ou para outras diversas finalidades. Um exemplo de serviço prestado é a regularização do serviço militar, sem o qual não é possível fazer o título de eleitor e, em consequência, o cadastro de pessoa física (CPF). Sem este documento não é possível, ou ao menos se torna muito difícil, a implantação de benefícios da seguridade social, principalmente nos dias atuais em razão da informatização e modernização dos sistemas de registros dos serviços públicos. Também é possível afirmar que a burocracia estatal existe em certa medida para conter as eventuais e possíveis fraudes. Contudo, o índio, sem a documentação, pouco tem a fazer ou a quem recorrer para reverter este quadro e conseguir por forças próprias utilizar das vantagens deferidas em caráter geral à população.
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Para atender e suprir as necessidades acima delineadas e por iniciativa da AJUFE foi realizado o projeto “Expedição da Cidadania”, na aldeia Tekoha Ocoy. Os serviços disponibilizados foram prestados nas salas de aula da escola pública da aldeia Tekoha Ocoy e em tendas montadas, nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 2009, das 9:00h às 17:00h. Os índios das aldeias Añetete e Itamarã deslocaram-se até a aldeia Ocoy. O público atendido passou por uma triagem prévia, em que foram detectadas as múltiplas necessidades, com os respectivos encaminhamentos até aos estandes correspondentes. Ainda, os funcionários da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) fizeram um levantamento prévio sobre as necessidades dos serviços a serem prestados e os coordenadores do projeto mobilizaram os órgãos e as entidades responsáveis para em parceria oferecer os serviços requisitados. Cerca de 500 pessoas foram atendidas. Esse número não englobou os adultos e as crianças atendidas em serviços de recreação, saúde e higiene. Foram emitidos 1028 documentos (RG, CPF, CTPS, título de eleitor e certificado de regularização do serviço militar), 49 requerimentos administrativos de benefícios previdenciários, ajuizadas 28 ações no JEF, aplicadas 185 vacinas (febre amarela, VTV e poliomelite) e 500 atividades de corte de cabelo e manicures. O Juizado Especial Federal esteve presente em três etapas. Na primeira etapa foram reduzidos a termo, de forma simplificada, os pedidos de concessão de benefícios previdenciários e assistenciais, pelos funcionários do setor de atermação da Justiça Federal e de estagiários voluntários. No dia 11 de novembro de 2009, os participantes do projeto voltaram às aldeias indígenas para fazer a entrega de mais de 700 documentos (CPF, carteira de identidade e carteira de trabalho) que não puderam ser entregues no ato na primeira etapa. Nos dias 09 a 12 de dezembro, nestas mesmas três aldeias, os juízes, advogados do INSS, peritos judiciais e os índios participaram das audiências de conciliação, instrução e julgamento dos processos propostos na primeira etapa do projeto. Também foram entregues os documentos restantes e os agentes do INSS se deslocaram até a aldeia para fazer o atendimento na via administrativa. Em todos os processos foram realizadas as audiências e foram proferidas as decisões, inclusive algumas delas resultaram acordos entre as partes no que se refere à concessão do benefício e o pagamento dos valores atrasados. Um projeto grandioso somente alcança mais beneficiários se contar com o apoio e a parceria de uma rede de diversas instituições, entidades e empresas, sem contar com a valiosa participação de cidadãos.
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4. Constatações da pesquisa empírica A pesquisa de campo realizada para análise do projeto da “Expedição da Cidadania” foi desenvolvida a partir da metodologia da observação direta participante, com o registro de fotos e coleta de informações, e por meio de entrevistas semi-estruturadas aos coordenadores, executores e beneficiários do projeto. Para a coleta do dados foi elaborado um guia de entrevista. As entrevistas semi-estruturadas foram divididas em duas partes: uma, comum a todos os entrevistados; duas, específica para as atividades relacionadas com o entrevistado e a sua participação no projeto. Foram entrevistadas 22 pessoas. As populações tradicionais atendidas pelo projeto (os indígenas) deparamse com inúmeros obstáculos para usufruir dos serviços e programas oferecidos pelos órgão estatais: a primeira barreira é a da língua, pois alguns índios falam e a grande parte deles endentem pouco o idioma português, enquanto que outros nada entendem; a cultura indígena guarani é acolhedora, contudo são simples e tímidos para procurar os órgãos estatais; encontram dificuldade de deslocamento, sem falar no custo financeiro, impede ou dificultam sobremaneira o acesso das populações tradicionais aos locais onde são prestados os serviços públicos; os órgãos estatais não estão preparados para oferecer um tratamento diferenciado de atendimento aos integrantes das populações tradicionais, além de faltar programas, projetos e campanhas que atendam as suas necessidades; carência de serviços e programas estatais que contemplem o contexto do binômio diversidade-igualdade e promovem a cidadania com respeito a identidade e memória das comunidades indígenas, pois atualmente a comunidade conta somente com os serviços da Funai (Fundação Nacional do Índio), Funasa (Fundação Nacional da Saúde) e escola pública. Apesar da atribuição constitucional do Ministério Público Federal constar na Constituição, os índios entrevistados lamentaram a pouca interação do órgão com a comunidade. Da mesma forma, os índios consideram insuficientes e precários os serviços oferecidos pela Funai. De acordo com o cacique Daniel a comunidade requer uma atuação mais contundente do Estado por meio de seus órgãos. Nota negativa para a ausência da defensoria pública, que é um órgão público essencial a administração da justiça e prevista constitucionalmente, mas que conta com poucos defensores. A carência ou a ausência de órgãos e agentes públicos nos diversos setores revela a insuficiência de estrutura adequada e ideal para atender as populações tradicionais. Aliás, a insuficiência de recursos e estrutura é corrente nos mais diversos setores. É fundamental a reestruturação dos órgãos e serviços públicos para que prestem serviços dignos a todos os cidadãos, observadas as diferenças
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e as diversidades, sem se descuidar do parâmetro da isonomia e da promoção de ações afirmativas. Os coordenadores do projeto revelaram preocupações em respeitar e assegurar ao máximo a identidade e a cultura dos indígenas das aldeias, de modo a não causar nenhum desconforto ou qualquer ingerência na rotina dos índios. Inicialmente, o contato com os líderes da comunidade indígena foi realizado por meio de pessoas que já desenvolviam ações e interações com as comunidades. Posteriormente na discussão dos serviços e ações a serem desenvolvidas durante o projeto, para evitar constrangimentos ou intromissões na cultura indígena. Um dos coordenadores do projeto relatou a intenção de realizar exames de mama para a verificação de câncer de mama nas índias. Depois, a idéia foi abandonada porque as mulheres não receberiam bem esse serviço de exame, em face da cultura indígena. No mesmo sentido, foi relatado por um dos coordenadores que a alimentação servida nos dias do evento foi escolhida em conjunto de modo a não afetar a dieta alimentar regular dos integrantes da aldeia. Aponto uma crítica em relação ao nome do projeto. A expressão “Expedição” pode representar uma conotação negativa, pois no contexto histórico o termo guarda relação como as diversas expedições empreendidas à época do Brasil Colônia que tiveram como finalidade a exploração de territórios, busca de riquezas minerais, captura ou extermínio de escravos indígenas ou mesmo africanos. Assim, historicamente as expedições foram as investidas descompromissadas e violentas dos colonizadores europeus durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. A investigação mostrou que o projeto não guarda relação com a forma usurpadora e arrebatadora utilizada pelos colonizadores europeus que aportaram na América e provocaram séria desestabilização nas comunidades que aqui já residiam. Ao contrário, visa melhorar a prestação dos serviços público às populações tradicionais sem que ocorra qualquer tipo de exclusão injustificada em relação às comunidades indígenas. Logo, a relação histórica do termo “expedição” não se coaduna com a forma atual empregada pelo projeto. Assim, o conteúdo pejorativo do termo “expedição”, de acordo como foi empregado, principalmente no período do Brasil Colônia, à primeira vista pode criar restrições ao projeto. Por outro lado, também é corrente que os termos e expressões sofrem mutações no seu significado no tempo e no espaço. Contudo, no presente caso, a definição construída ao longo de mais de três séculos não pode ser apagada, em face das inúmeras consequências danosas provocadas às populações tradicionais que hoje são atendidas pelo projeto, sem contar com a injustiça histórica e social que atinge essas populações.
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Pensar de modo diverso, implicaria em todo um trabalho arquitetado de forma a apagar as impressões negativas e construir e resgatar a dignidade e identidade das comunidades tradicionais. E é sabido que para “limpar” ou “purificar” uma expressão já consagrada do idioma e no meio comum, na maioria das vezes, é preciso que a expressão possa ser considerada de utilização corrente entre os usuários, o que não acontece no presente caso. Trata-se de um trabalho de Sísifo e com grandes dificuldades interpretativas até mesmo aos maiores intelectuais, o que se diga então das populações indígenas. Uma segunda consideração crítica é em relação aos tipos de serviços prestados. Apesar do projeto procurar buscar todas as formas para preservar e respeitar a cultura e a identidade indígena, os propósitos do projeto são apenas de levar aquilo que a sociedade contemporânea convencionou como forma de viver, ou seja, a confecção de documentos e ações amparadas pela ciência moderna. A ausência constatada no projeto refere-se às possíveis e eventuais atividades que poderiam ser desenvolvidas e que partissem das potencialidades e limites da própria comunidade indígena. Por exemplo, o artesanato. Embora nos dias do evento a comunidade tenha oferecido à venda seus produtos de artesanato, não foi veiculada nenhuma atividade de fomento que poderia auxiliar na sustentabilidade da aldeia. Ainda, um índio entrevistado, mencionou que ele e mais alguns membros da comunidade não costumam fazer artesanato, porque com o tempo os recursos naturais se tornam escassos. O projeto poderia apresentar propostas de como investir no manejo de formas sustentáveis de obtenção de matéria prima. Claro, que é impossível prever todas as possibilidades e atender as infindáveis alternativas. O projeto atendeu as necessidades impostas pela sociedade em geral, amparando as comunidades tradicionais e respeitando sua cultura. No contexto histórico e social de marginalização e desvalorização é importante que este ou outros projetos possam privilegiar as necessidades das populações tradicionais, pois, como acima delineado, a forma de vida destas comunidades é modelo de sustentabilidade para um mundo melhor, principalmente para as futuras gerações. Um ponto positivo a ser destacado refere-se à oportunidade ímpar que diversas pessoas tiveram ao acompanhar ou executar os trabalhos do projeto. A presença física no local onde os indígenas vivem é de fundamental importância para conhecer a realidade e abrir horizontes tornados invisíveis pela sociedade. O contato com a realidade possibilita a abertura de novas visões sobre as populações tradicionais e sobre o mundo. Impressões preconcebidas e preconceituosas, principalmente sobre a condição de segurado trabalhador rural dos indígenas, puderam ser desmistificadas e a orientação da administração pode ser alterada quanto a este requisito específico na concessão de um benefício.
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A mudança de conceitos e paradigmas possibilitam a abertura de novos horizontes que constituem em caminhos relevantes para a construção de uma sociedade mais justa e humanitária. 5. Considerações finais O embate entre as populações tradicionais e as sociedades contemporâneas revela diferenças substanciais em todos os níveis, que merecem reparos e acertos para um futuro social harmônico e sustentável. A iniciativa de membros do Poder Judiciário é louvável, pois trata-se de atribuições secularmente deixadas ao executivo e legislativo, ou mesmo ao chamado terceiro setor. A expansão do Poder Judiciário e o aumento do seu protagonismo permitiram a abertura de espaço para que os juízes pudessem participar ativamente na realização de políticas públicas antes inexistentes ou pouco expressivas. É importante dizer que nada de novo há nessa prática, pois a responsabilidade social é e sempre foi de todos, indistintamente para os agentes públicos ou privados, em maior grau para os primeiros. Não se trata de nova forma de exercício de cidadania, mas de novos atores responsáveis por fomentar a cidadania. A coragem de fazer algo novo é um ponto de destaque, principalmente em se tratando de projeto encabeçado por membros do Poder Judiciário. O ineditismo das ações voltadas a um público secularmente desprestigiado e com menos recursos de todas as espécies, além da injustiça histórica contra eles perpetuados, revelam o acerto do público atendido pelo projeto. Aproximar realidades distintas num contexto de diferenças foi o ponto alto da iniciativa. E a rede de parceiros foi fundamental para ampliar o leque de opções de serviços prestados, pois isoladamente pouco se conseguiria fazer de proveitoso, ao contrário, a soma de esforços é sempre producente. A mobilização de diversas entidades e instituições revela um movimento em rede de ações voltadas a consecução das finalidades do projeto. Contudo, uma significativa ausência pode ser notada, ou seja, a ausência de participação dos movimentos sociais. Apesar da Secretaria de Estado da Diversidade/ PR estar presente no projeto, nenhum movimento social foi consultado ou participou das ações. A participação dos movimentos sociais é de extrema relevância pois poderia produzir um embate de idéias, principalmente para atender as expectativas dos beneficiários do projeto e promover o equilíbrio da tomada de decisões. Na mesma linha, também foi constatada a ausência de conhecimento de antropologia o que poderia auxiliar na definição de medidas e serviços a serem prestados às comunidade indígenas.
Ainda é necessário repisar que a escolha do nome do projeto (termo expedição) apresenta um forte conteúdo negativo, principalmente aob a
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perspectiva dos atendidos pelo programa, devido às razões históricas. As novas ações, como sugeridas pelos entrevistados, poderiam contemplar e abranger outras necessidades dos habitantes das comunidades tradicionais, principalmente àquelas voltadas ao modo de vida sustentável. Para encerrar é importante consignar que é fundamental nos dias atuais que se procure estabelecer um equilíbrio na distribuição das benesses e ônus e, para além disto, não ocorra o desprezo às experiências, pois são fundamentais à preservação das identidades e memórias dos povos, em especial, das fragilizadas populações tradicionais. Infelizmente, a história é, em regra, contada pelos vencedores, e as populações tradicionais, na maioria das vezes, não puderam contar ou apresentar suas versões. Para recuperar o desperdício dessas experiências é fundamental ouvir, entender e compreender as populações tradicionais para que possam ser valorizadas, reconhecidas e recolocadas no patamar de onde jamais deveriam ter saído, e, ainda, possam contar com um mínimo existencial possível e desejável. Oxalá, as viagens insólitas até às populações tradicionais possam ser transformadas em areté (dia festivo em tupi-guarani), em todos os dias, seja nas comunidades indígenas ou nas populações tradicionais. 6. Referências bibliográficas ARRUDA, Rinaldo. “Populações tradicionais” e a proteção dos recursos naturais em unidades de conservação. Ambient. soc. [online]. 1999, n.5, pp. 79-92. ISSN 1414-753X. doi: 10.1590/S1414-753X1999000200007. BALDI, César Augusto (2008). Desafios do constitucionalismo intercultural. Estado de Direito, Porto Alegre. nº14. Disponível em: http:// www.estadodedireito.com.br/edicoes/ED_14.pdf. DIEGUES, Antonio Carlos S (1993). Populações tradicionais em unidades de conservação: o mito moderno da natureza intocada. São Paulo:CEMAR/USP/NUPAUB, 94 p. DUSSEL, Enrique (2007). 20 teses de política. São Paulo: Expressão popular. SANTOS, Boaventura de Sousa (2007). La reinvención del Estado y el Estado plurinacional. Cochabamba: Bolívia. p. 9-19. Disponível em http:// www.ces.uc.pt/publicacoes/outras/200317/estado_plurinacional.pdf _______ (2008). Bifurcação na Justiça. Folha de São Paulo, 10 de junho de 2008, p. 3.a).
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Endere莽os eletr么nicos www.ibge.gov.br. Acesso em 05/01/2010. www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo. php?conteudo=68. Acesso em 17/09/2009.
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Centenário do Nascimento do ministro Carlos Thompson Flores Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Desembargador Federal do TRF/4ª Região “Justiça que brote de Juízes independentes, sem falsos ou mal compreendidos exageros. Justiça austera, impoluta, incorruptível, como se faz mister o seja, e para cujos imperativos prosseguiremos indormidos e intransigentes. Justiça humana, como merece distribuída às criaturas, feita à imagem de Deus. Justiça que jamais se aparte dos fins sociais e das exigências do bem comum, sem cujo conteúdo não teria nenhum sentido. Justiça que se aproxime, sem excessos ou enganosas formas, do próprio Povo, para o qual é ditada e do qual deve estar sempre ao alcance: simples, real, despida de tudo que a possa tornar dificultosa, a fim de que a compreenda melhor, sinta-a com mais fervor, e possa, assim, nela crer, para amá-la, prestigiá-la e defendêla, se preciso for, convencido que ela é o seu baluarte democrático e a sua mais sólida garantia. E, sobretudo, Justiça pontual, como a queria Rui, porque tarda não mereceria o nobre título. E como dizia, reclamando, “Para que paire mais alto que a coroa dos reis e seja tão pura como a coroa dos santos”. Só assim nos tornaremos dignos do respeito e da confiança da Nação, ao lado dos demais Poderes da República”.
Ministro Carlos Thompson Flores Ao discursar na homenagem a Carlos Thompson Flores, em 14 de fevereiro de 1977, que então se empossava na Presidência do Supremo
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Tribunal Federal, o Ministro Moreira Alves teve oportunidade de dizer, em análise percuciente, a propósito de sua personalidade como magistrado nestas palavras consagradoras, verbis: “Neste ano e meio em que tenho a honra de integrar esta Casa, servindo na Turma a que até agora Vossa Excelência presidia, pude sentir de perto, em convivência quase diária, a justiça que se lhe tem feito ao longo de sua vida de magistrado. Tenho-o, Sr. Min. THOMPSON FLORES, por modelo de juiz. Vossa Excelência, no exercício da judicatura, revela não limitar-se a possuir aquelas qualidades que MURATORI, apoiado nas santas escrituras e veemente na crítica aos juristas, exigia dos juízes: o saber, para bem aplicar as leis; o amar a verdade, para poder distingui-la do erro; o temor a Deus, para não deixar-se levar pelo ódio, medo, cupidez ou qualquer outra inclinação; o desprezar as posições e regalias, para ser imparcial. A esses atributos, acrescenta-se, em Vossa Excelência, um outro: o exercer a magistratura como sacerdócio, com o amor de quem nela, e só por ela, realiza o ideal de suas aspirações.” (1) Logo em seguida, o Procurador-Geral da República, o Professor Henrique Fonseca de Araújo, em nome do Ministério Público Federal, traduziu, com estas belas e significativas orações, os mesmos sentimentos, verbis: “Tanto impressionou-me o espírito de justiça de que impregnava seus pronunciamentos, que disse certa vez à Sua Excelência, que, se porventura, um dia fosse eu réu em um processo, o escolheria para juiz, renunciando previamente a qualquer recurso. Não tive motivos, continuando a acompanhar-lhe a judicatura, muito especialmente neste colendo Tribunal, para alterar, antes para confirmar esse juízo que, de resto é o de todos que o tem visto atuar como magistrado. Em Sua Excelência, nos seus julgamentos tenho encontrado a confirmação do que ensina RECASENS SICHES, de que a lógica jurídica não é igual ao tipo de lógica matemática, porque é a lógica do razoável. A sentença, na sua elaboração, não obedece necessariamente ao clássico silogismo. Porque, “sentença”, já na sua etimologia latina, vem do verbo “sentice”, o que equivale
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85 dizer, experimentar uma espécie de emoção, dir-se-ia, uma espécie de intuição emocional. Juiz, ao conhecer dos fatos, forma, antes de mais nada, sua conclusão, pelo seu inato espírito de justiça, numa demonstração de que o “decisum”, em regra, se estabelece no espírito do juiz, antes dos “consideranda”. Essa, também, a opinião de CALAMANDREI. O eminente Min. THOMPSON FLORES sente, intuitivamente, onde está a Justiça. Se algo caracteriza sua personalidade de magistrado é esse inato espírito de justiça, servido por um caráter incorruptível e inamoldável, onde a bravura e o destemor não chegam a ressaltar por sua naturalidade. Contra os poderosos do dia, presidiu, certa feita, como Juiz, júri de imprensa. E contra tudo e contra todos, levou o Tribunal à unânime decisão condenatória, que lhe valeu ameaças e insultos, que em nada alteraram sua conduta. Por suas qualidades é que, sem bairrismo, nós, riograndenses do Sul, nos orgulhamos do Min. THOMPSON FLORES.” (2)
Com efeito, após 44 anos dedicados exclusivamente à magistratura, atingira o cume de sua vitoriosa carreira, repetindo, no plano nacional, a consagração que obtivera em seu estado natal, o Rio Grande do Sul. Quanto mais se examina a vida de Carlos Thompson Flores, mais se revela a sua vocação para a função de juiz. Por certo, herdou-a de seu avô, o também Desembargador Carlos Thompson Flores, fundador e primeiro Diretor da Faculdade de Direito de Porto Alegre, Presidente da Província no Império, parlamentar, constituinte em 1891 e membro do Tribunal de Justiça tão logo proclamada a República. Aos 26 de janeiro de 1911, há cem anos, nasceu Carlos Thompson Flores na cidade de Montenegro, no Estado do Rio Grande do Sul. Filho do político e advogado Luiz Carlos Reis Flores e de Dona Francisca Abbott Borges Fortes Flores, foram os seus avós paternos o Desembargador Carlos Thompson Flores e Dona Luíza Elvira Reis Flores, filha do Barão de Camaquã, um dos comandantes militares da Guerra do Paraguai; pelo lado materno, o Dr. João Pereira da Silva Borges Fortes, político e magistrado no Império e Dona Ofélia Abbott Borges Fortes, irmã do ex-Ministro da República e ex-governador, Dr. Fernando Abbott.
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O Ministro Carlos Thompson Flores é descendente de algumas das mais ilustres e antigas famílias do Brasil que forneceram ao nosso país políticos do mais alto relevo, como o Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, Presidente da República, diplomatas como o embaixador Carlos Martins Thompson Flores, médicos como o Conselheiro do Império Dr. Jonathas Abbott, considerado por muitos o maior luminar da ciência médica brasileira no século XIX. Destacam-se, ainda, o Coronel Tomás Thompson Flores, herói da Guerra de Canudos, cujos feitos são relatados por Euclides da Cunha na obra clássica “Os Sertões”; o Ministro Francisco Thompson Flores, Ministro do Tribunal de Contas da União que, em 1937, como relator das contas do Presidente Getúlio Vargas, levou a Corte de Contas a manifestar-se pela rejeição das contas do Presidente da República, em decisão sem precedentes na história daquele Tribunal. É descendente direto do bandeirante Raposo Tavares, um dos fundadores do Brasil, e de Dionísio Rodrigues Mendes, um dos primeiros povoadores do Rio Grande do Sul, cuja fazenda, em meados do século XVIII, situava-se em terras onde hoje se localiza o Município de Porto Alegre. Uma das fazendas de seu bisavô, o Dr. João Pereira da Silva Borges Fortes, notável político do segundo reinado, hospedou o Imperador D. Pedro II e toda a sua comitiva, no ano de 1865, em São Gabriel, quando de sua visita à Província de São Pedro. Corre em suas veias o nobre sangue da família Leme, de São Paulo, que deu ao Brasil homens como o Cardeal D. Sebastião Leme, que desempenhou papel decisivo para o favorável desfecho da Revolução de 1930, ao convencer o Presidente deposto Washington Luís Pereira de Sousa a partir para o exílio. São, ainda, seus primos o Almirante Diogo Borges Fortes, Ministro e Presidente do Superior Tribunal Militar, o General Carlos Flores de Paiva Chaves, o primeiro militar brasileiro a comandar tropas da ONU – comandou a Faixa de Gaza nos anos cinqüenta -, o Almirante Joaquim Flores do Rêgo Monteiro, formado em Engenharia Naval na Inglaterra e um dos pioneiros no país nessa importante modalidade de engenharia e o Embaixador Francisco Thompson Flores, um dos responsáveis pela criação e instalação do Mercosul, quando embaixador em Buenos Aires. Essas, em apertada síntese, são as origens familiares de Carlos Thompson Flores. O homem, disse-o Antonio Joaquim Ribas, em sua biografia de Campos Salles, é um ser sucessivo, cuja alma contém, algumas vezes, as virtudes de cem gerações. (3) Como nos minerais e vegetais, prossegue o notável biógrafo, a natureza elabora, longa e surdamente, as suas obras primas na humanidade.
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Eis porque assinalamos que nos seus antepassados já se revelavam as altas virtudes que, aperfeiçoadas pelo estudo e meditação, destinaram-no às mais elevadas posições na administração da nossa Nação. A l’origine d’une vocation, recorda Roger Martín Du Gard, il y a presque toujours un exemple. No exemplo de seus ancestrais, colheu a inspiração e o estímulo que lhe serviram de motivação na escolha de sua vocação, a magistratura, cujo exercício consumiu toda a sua existência. A rigor, parodiando Ruy Barbosa, dele se pode afirmar: Juiz, sempre Juiz, apenas Juiz. Fez o curso primário no Colégio Público Elementar “14 de Julho”, na cidade de Montenegro. O ginásio no Colégio Estadual Júlio de Castilho, escola modelar na época, em Porto Alegre. Concluído o curso secundário, matricula-se na tradicional Faculdade de Direito de Porto Alegre, fundada por seu avô, o Desembargador Carlos Thompson Flores, em 1900. Forma-se com distinção como integrante da turma de 1933, tendo colado grau em solenidade especial realizada no gabinete do Diretor, eis que já era, a esse tempo, Juiz Distrital de Herval do Sul, termo da Comarca de Jaguarão. Em 1938, após aprovação em concurso público, é nomeado Juiz de Direito da Comarca de Santa Vitória do Palmar. Daí passou, mediante remoção, para a Comarca de Rosário do Sul. Posteriormente, foi promovido, sucessivamente, para as Comarcas de Montenegro, de 2ª entrância, e Livramento, de 3ª entrância. Em 1951, é promovido para a Capital e, posteriormente, designado para a Vara dos Feitos da Fazenda Pública, desaguadouro dos grandes nomes da magistratura riograndense. Em 13 de abril de 1953, é convocado para substituir o Desembargador Homero Martins Batista sendo, logo a seguir, em 03 de junho, promovido a Desembargador do Tribunal de Justiça, com 42 anos de idade, o mais moço na época. Todas as suas promoções na carreira sempre foram movidas pelo impulso nobilitante do merecimento, num claro reconhecimento das suas marcantes qualidades de julgador. No Tribunal de Justiça, foi eleito para o cargo de Corregedor-Geral da Justiça, tendo-o exercido por dois períodos consecutivos, deixando ditas funções para compor a 4ª Câmara Cível, em março de 1960. No Tribunal Regional Eleitoral, exerceu os cargos de Vice-Presidente e Presidente.
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A sua atividade, porém, não se restringiu à magistratura. Realmente, durante muitos anos professou a cadeira de Processo Civil no Curso de Formação de Magistrados mantido pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Designado mediante eleição, representou o Tribunal de Justiça no Congresso de Juristas em comemoração do Centenário de Clóvis Beviláqua, realizado na cidade de Fortaleza, em 1958. Da mesma forma, representou o Tribunal de Justiça perante a III Conferência Nacional de Desembargadores, realizada em 1964, na cidade do Rio de Janeiro, quando foi distinguido por seus pares para presidir uma das quatro comissões – a de processo civil -, escolhendo como seu secretário o Professor Alfredo Buzaid. Essa comissão debateu a fundo o anteprojeto do Código de Processo Civil, sendo que várias de suas sugestões foram incorporadas ao mencionado projeto de codificação. É eleito vice-Presidente do Tribunal no período de 1964-1965 e, posteriormente, Presidente no biênio 1966-1968. Os seus elevados méritos levaram o Tribunal, por unanimidade, a quebrar o critério da antiguidade e elegê-lo Presidente da Corte antes de chegar a sua vez pelo rodízio tradicional, pois reconheceram os seus integrantes que o Desembargador Thompson Flores era, na oportunidade, a pessoa certa para promover as reformas que o Judiciário gaúcho necessitava. Com efeito, na chefia do Poder Judiciário Estadual empenhou-se decididamente na superação dos entraves que há décadas emperravam o judiciário gaúcho com as seguintes medidas: criou a Revista de Jurisprudência do Tribunal; instituiu os boletins de jurisprudência da Corte distribuídos quinzenalmente aos desembargadores, providência essa que, posteriormente, como Presidente do Supremo Tribunal Federal, difundiu na Suprema Corte e em todos os Tribunais do país; promoveu a elaboração de um novo Código de Organização Judiciária; encaminhou sugestões à reforma da Constituição Estadual, em atendimento à adaptação à Constituição Federal de 1967; dinamizou e concluiu as obras do Palácio da Justiça, paralisadas há mais de dez anos; garantiu a ampliação dos quadros de pessoal da Secretaria do Tribunal, por meio da Lei nº 5.668/67; criou a assessoria de imprensa do Tribunal, iniciativa pioneira para divulgar à sociedade as atividades do Judiciário, tornando-o mais conhecido da população; procurou as faculdades de direito dialogando diretamente com os estudantes para sensibilizá-los no ingresso à magistratura. Prestes a cumprir o seu mandato, é nomeado pelo Presidente Costa e Silva ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga do Ministro Prado Kelly, por decreto de 16 de fevereiro de 1968.
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A sua posse deu-se em 14 de março, nela comparecendo o que havia de mais representativo da cultura jurídica e do cenário político do Rio Grande do Sul, fruto da fama do juiz excepcional que, em seu estado de origem, conquistara o respeito e admiração de seus coestaduanos face às suas qualidades de inteligência, independência, cultura, honradez e trabalho. No Supremo Tribunal Federal, permaneceu cerca de treze anos, ratificando o alto conceito de que viera precedido. Seria dar incontável extensão ao presente texto se, porventura, se quisesse examinar em pormenores o brilho da judicatura do Ministro Thompson Flores na Suprema Corte. Os seus votos, em geral, não eram muito extensos, mas profundos, valendose da melhor doutrina, desvendando o âmago da causa numa síntese admirável de exatidão e brilho. Em 07 de agosto de 1980, julgando o RE nº 88.407-RJ (Pleno), versando a responsabilidade civil do transportador na hipótese de assalto ao passageiro, proferiu voto que bem retrata sua técnica de julgar, verbis: “O SR. MINISTRO CARLOS THOMPSON FLORES (RELATOR): - Conheço do recurso e lhe dou provimento para restabelecer a sentença de fls. 65/66, excluindo, porém, a indenização pelo dano moral, e, no pertinente aos honorários de advogado, reduzi-lo a 15%, nos termos do art. 11 da Lei 1.050/60. 2. Decidindo como decidiu o acórdão recorrido que, à transportadora não cabia responsabilidade porque ocorrera “fator impediente do cumprimento do dever de incolumidade do passageiro acrescido de sua culpa” face aos fatos que se oferecem certos, penso que o decisório não só denegou vigência ao art. 17, e seus incisos 1º e 2º, do Dec. Legislativo 2.681/912, como dissentiu do enunciado na S. 187 e julgado, desta Corte, proferido no RE nº 73.294, 2ª Turma, de 03.12.73 (R.T.J. 70/720/1), cuja ementa dispõe: ‘Responsabilidade civil. Transporte urbano de passageiros. Ao elide a responsabilidade do transportador, por não ser estranho à exploração da atividade, o fato de terceiro, motorista de outro veículo, após discussão provocada pelo condutor do coletivo sobre questiúnculas de trânsito, disparar sua arma contra este e atingir o passageiro. Dissídio com as Súmulas 187 e 341.
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Recurso extraordinário conhecido e provido’ Justifica-se, dessarte, o conhecimento do recurso. E cabe provê-lo. Os fatos se oferecem certos, como reconheceram as partes e os julgados de primeiro e segundo graus. Apenas no pertinente à sua qualificação é que dissentiram. E, fazendo como fez o aresto impugnado, não só deixou de aplicar a regra adequada na sua conceituação própria (art 17, e seus incisos 1º e 2º) como discrepou do correto conceito jurídico que atribuíram os padrões aludidos. Por isso, o restabelecimento parcial da sentença do nobre Juiz Antonio de Oliveira Tavares Paes que, em precisa síntese, fez incensurável adequação dos fatos à lei, ao afirmar, fls. 65v/66: ‘Nenhum valor me parece ter a alegação constante da contestação, no que diz respeito à existência de força maior ou de caso fortuito a descaracterizar a obrigação indenizatória. Está provado que a existência de assaltos coletivos, na região em que a firma ré explora sua atividade lucrativa, alança índices alarmantes e os autos dão bem uma notícia disso (fls. 18), além de se tratar de fato público e notório, que independe de prova. Ora, sendo um fato que já se integrou na diuturnidade da vida de quem habita aquela região, a ocorrência desses assaltos não pode ser considerada como fato imprevisível a caracterizar a fortuidade de sua verificação. Parece-me irrespondível a douta argumentação neste sentido expendida pelas autoras, na réplica de fls. 51/60, que se constitui em verdadeira aula sobre responsabilidade civil. Acresce notar que a ré alegou que o próprio marido e o pai das autoras foi o único responsável pelo evento, pois, foi ele quem deu início ao tiroteio e, assim, teria dado início a um outro processo causal, que estaria a descaracterizar a responsabilidade decorrente da garantia de incolumidade devida aos passageiros pela transportadora.
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Tal argumento, se bem que impressionante à primeira vista, não resiste a um exame mais profundo, pois, quando da interferência da vítima, já se caracterizara o inadimplemento à garantia de incolumidade, pois, não apenas um passageiro, mas, todos se achavam submetidos à mira das armas dos meliantes, pelo que evidenciada a falta de precaução da ré em evitar o ocorrido. Não é resultado lesivo que caracteriza o inadimplemento da obrigação da transportadora de assegurar ao passageiro sua incolumidade física, mas sim a simples criação in concreto da possibilidade de sua verificação. No caso, o resultado apenas determina a incidência de uma obrigação secundária, que diz com a reparação dos danos sofridos. Se o passageiro for submetido a um risco concreto de lesão e esta não vier a se concretizar, não há como se negar o inadimplemento da obrigação de garantia de incolumidade, no entanto, não há que se falar em indenização, pois, esta decorre do dano e o mesmo não se verificou. No caso dos autos, o inadimplemento da obrigação de garantia de incolumidade se verificou com a ocorrência do assalto e as lesões sofridas pela vítima, que vieram a ocasionar sua morte, nada mais são do que um desdobramento desse fato inicialmente imputável à ré. Não importa que os demais passageiros não tenham sofrido danos, pois, o que caracteriza a obrigação é a conjugação do inadimplemento com a verificação da lesão, e, desde que verificada tal conjugação, é inarredável a responsabilidade indenitária’ 4. Nem poderia a demanda ter outro desfecho. O documento que se refere a sentença, certidão expedida pela Delegacia de Polícia de São João de Meriti, fls. 18/19, de criminalidade inferior à de Caxias, onde ocorreram os fatos, bem como de Nova Iguaçu, revelou que no ano de 1974, só na referida Delegacia, foram registrados 228 assaltos a coletivos, o que representa uma média de quase um por dia. Dita média, seria maior na cidade onde se verificou.
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Em verdade, é fato, mais que notório, tais ocorrências na Baixada Fluminense, como bem acentuara o magistrado. Apreciando acontecimento que se repete no trânsito, o qual pela conduta de terceiro originou dano a passageiro de ônibus, acentuou o eminente Ministro Xavier de Albuquerque, relator do padrão referido: ‘Tomados os fatos na versão do próprio acórdão, não vejo como lhe endossar a conclusão. Discussões desse gênero chegam a ser rotina no trânsito do Rio de Janeiro, felizmente não no sendo desfechos como o que essa teve. Mas tais desfechos também não chegam, por desgraça, a ser raros. A imprensa se ocupa freqüentemente com episódios análogos, que sociólogos, psicólogos e médicos procuram interpretar em estudos sérios e conhecidos. O fato do terceiro, que deu causa aos danos sofridos pelo recorrente, não pode considerar-se estranho à exploração do transporte urbano de pessoas numa cidade como o Rio de Janeiro, a ponto de equiparar-se ao caso fortuito ou à forma maior. Principalmente quando, como reconhece o Tribunal a quo, deu-lhe ensejo, não importa que sem proporção, a discussão, provocada pelo preposto da transportadora.’ (RTJ 70/721). Em tais condições não ocorrem, a meu ver, quaisquer dos pressupostos capazes de afastar a responsabilidade do recorrido, ou seja, fato de terceiro ou culpa exclusiva, da vítima. Com efeito. No campo da responsabilidade civil nos transportes coletivos de passageiros, a Jurisprudência do S.T.F. tem sido sempre sensível à realidade, como também ocorre em países outros, especialmente, França e Itália. Em princípio, e desde 1920, passou a aplicar o vetusto Dec. Legislativo nº 2.681/912 ao transporte através dos bondes. Após, ampliou-se aos ônibus, e chegou até às lotações como o admitiu a Eg. 3ª Turma ao julgar o RE nº 59.966, em 11.04.69 (RTJ 55/429)
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Intercorrentemente, quebrando a rigidez do Código Civil, art. 1.523, admitiu a presunção de responsabilidade do preponente. O caso, assim, deve ser considerado ante a dolorosa realidade do que sucede e se agrava, como é notório, nas grandes capitais e aqui nas cidades que integram a chamada ‘Baixada Fluminense’ onde ocorreu o evento. Atendo às circunstância que o rodearam, não há como falar em “fator impediente no cumprimento do dever” capaz de elidir a responsabilidade pelo fato, de parte do transportador, como aceitou o acórdão. É que, por disposição expressa da lei, art. 17, segunda parte, sua culpa é “sempre presumida”, ressalvadas as duas hipóteses de seus incisos 1º e 2º, fortuito ou força maior, e, bem assim, culpa exclusiva da vítima. Precisou o Código Civil, no seu art. 1.058, a conceituação dos dois primeiros. In casu, cuida-se do segundo, o fato de terceiro, o qual, em verdade, não seria excludente de sua responsabilidade, apenas daria direito de regresso contra o causador do dano, nos termos do art. 19 da citada lei especial, como sentido que se lhe atribuiu a Súmula 187, ou seja, compreensivamente, como já acentuava Aguiar Dias fundado no ensinamento dos Tribunais (Da Responsabilidade Civil, vol. 1, 1979, p. 231). É mister, porém, como acentua: ‘Assim, qualquer que seja o fato de terceiro, desde que não seja estranho à exploração, isto é, desde que represente risco envolvido na cláusula de incolumidade, a responsabilidade do transportador é iniludível, criando, entretanto, o direito de regresso em favor do transportador sem culpa no desastre.’ É esta, ademais, a lição dos doutrinadores. Sucede, porém que, na espécie em exame, de fortuito, não se trata de que o fato não seja estranho à atividade da empresa que se dispõe a explorar o transporte de passageiros, na área já referida e, cujos riscos, contra ela mesma, em sua arrecadação, e notadamente na incolumidade de seus
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94 passageiros, eram previsíveis, e assim, quando não, de todo evitáveis, pelo menos reduzíveis ou atenuados. Todavia, apesar de tudo, não comprovou, como lhe impendia, qualquer providência pertinente, que tenha tomado, seja para si mesma, diretamente, seja perante às autoridades policiais para as providências que lhe coubessem tomar. E, tanto era de seu conhecimento o risco dos assaltos, de resto, de manifesta notoriedade, que atribuiu a guardas seus a segurança de seus escritórios e locais de arrecadação da “féria”, como esclareceu a prova. As medidas de segurança são, de resto, quase que habituais, como ocorre com os veículos que transportam valores, acompanhados de pessoal especializado e fortemente armado. Nem se alegue que, com a concessão para exploração do transporte e pagamento dos tributos estaria isenta das medidas de segurança. Não nas condições conhecidas e, apesar delas, expor-se aos azares em comentário. Demais, a disciplina interna, conexa com a segurança e bem-estar dos passageiros, eram de sua integral responsabilidade, apenas sujeita à limitada fiscalização do Poder Público. A presença de guardas seus pelo menos à noite era providência que se impunha, ao menos para prevenir ou reduzir os riscos. Ainda aqui, omitiu-se. Evidencia-se, assim, a ausência absoluta de quaisquer das causas elisivas da responsabilidade, força maior ou fortuito, no último se inserindo, como acontece, na legislação de outros países, o ato de terceiro. Pouco importa que seja ele até criminoso, como reconheceu a E. Primeira Turma ao julgar o RE 80.416, em 04.10.77 (RTJ 86/837), quando a passageira vitimada, foi passível da ação de terceiro, um ladrão, ao arrebatar-lhe uma corrente de valor. De outra parte, bem analisou a sentença a conduta da vítima, a qual posto que, também culposa, o que se admite, apenas, para argumentar, sem consentir, não seria exclusiva
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como o requer o inciso 2º do citado art. 17, sem o alcance pois, para elidir a responsabilidade por sua morte, segundo orientação desta Corte. Por fim, quero referir-me à Jurisprudência dos Tribunais estrangeiros. Da busca procedida, pouco se obteve. René Rodière, professor de Direito de Transportes da Faculdade de Direito de Paris, em seu Droit des transportes terrestres et aériens 1973, 9. 358/9, indica julgados alusivos a transporte coletivo nos quais seus passageiros teriam sofrido danos por atos de sabotagem. Das decisões tomadas, extraiu ele, entre outras, estas afirmações: ‘... èlle (SNCF) est responsable d’un attentat commis sans qu’elle ait pu prouver que ses agentes n’y ont pas participé.” Por último, cabe considerar a indenização pelo dano moral. Deu-a a sentença sem maior fundamentação. Todavia, a Jurisprudência do S.T.F, em caso como o dos autos, não o tem consagrado (ERE 53:404, Relator Min. Adalício Nogueira, in RTJ 42/378, RE 71.465, Rel. Min. Eloy da Rocha, in RTJ 65/400; RE 59.358, Rel. Min. Victor Nunes, in RTJ 47/276 e RE 84.718, do qual fui relator, in RTJ 86/560). E, quanto aos honorários, porque goza o autor do benefício da assistência judiciária, fixei-os de acordo com a respectiva lei especial. No mais, reporto-me aos fundamentos do parecer da douta Procuradoria-Geral da República, e da sentença restabelecida. É como voto.” (4) Da mesma forma, questão singular foi enfrentada pelo Presidente Thompson Flores ao deferir medida cautelar no Pedido de Avocação nº 1/SC, julgado pelo Plenário, em 14 de dezembro de 1978. O seu voto é do seguinte teor, verbis: “Em 11 do próximo passado, quando o Tribunal se encontrava em férias, requereu o Dr. Procurador-Geral da República a concessão de medida cautelar em pedido de
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96 avocação, fundada no art. 119, I, letras o, e p, da Constituição, na redação que lhes atribuiu a Emenda nº 7/77. Fê-lo através do petitório de fls. 2/12, cuja leitura sou levado a fazer para integral compreensão da controvérsia (ler). Veio ela instruída com farta documentação, constante de manifestação dos Srs. Ministros dos Transportes e das Relações Exteriores, fls. 13/14 e 172, acompanhada aquela de vasta correspondência recebida da SUNAMAN e da SYNDARMA, além de recortes de vários periódicos nacionais e um do exterior, alusivos ao assunto. Outrossim, vieram com a pretensão documentos extraídos dos autos da ação, especialmente na fase de cognição, sentença, acórdãos do Tribunal Federal de Recursos e do Supremo Tribunal Federal; e na de execução, o laudo pericial, a sentença de liquidação, a apelação interposta e autos de penhora de dinheiro (depósitos) e de imóveis, na cidade do Rio de Janeiro. Os efeitos da execução provisória, face à apelação interposta, sem exigência de caução, ficaram assim resumidos pela SUNAMAN e endossados pelo Senhor Ministro dos Transportes, ao consignar, verbis, fls. 15/7: “Tal procedimento, a nosso ver, caso não venha a ser sustado de imediato, terá efeitos desastrosos para a política econômica do Governo e especialmente para a de marinha mercante, afetando a vários setores da atividade pelos motivos que seguem: 1) o nosso intercâmbio comercial com o exterior será fatalmente afetado, uma vez que empresas de navegação nacionais e estrangeiras cancelarão suas escalas nos portos envolvidos; 2) haverá redução da receita dos portos nos quais esses empresas deixarem de freqüentar; 3) acarretará falta de cumprimento, pela bandeira brasileira, de seus compromissos internacionais de transportes decorrentes de acordos bilaterais e, também, nos acordos de rateio de fretes, no caso de diminuírem a sua participação no transporte marítimo, o que, certamente, acontecerá;
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97 4) os programas de exportação do Governo serão seriamente prejudicados, principalmente o daquelas mercadorias para as quais já tenham sido equacionados seus programas de transporte marítimo; 5) as importações de materiais e equipamentos indispensáveis ao desenvolvimento do País também serão prejudicadas; 6) com o enfraquecimento da política de marinha mercante teremos reduzida a receita de divisas produzida pelos fretes por ela gerados; Por outro lado, já temos notícia de que grande número de embarcações do Norte da Europa já manifestaram sua intenção de não embarcarem suas cargas nos navios da Empresa de Navegação Aliança S/A, receiosos de que os navios da mesma venham a ser objeto de arresto, ficando paralisados nos portos e causando-lhes vultosos prejuízos. Assim, estando a este Órgão afeta a execução da política da marinha mercante, vimos além de encaminhar a exposição e os documentos anexos, oriundos do SYNDARMA, manifestar a nossa preocupação pela gravidade da situação criada, que poderá estender-se a todos os portos do País, e cujas conseqüências são imprevisíveis, principalmente, para o Setor de transporte marítimo” Do mediato exame da documentação convenci-me da ocorrência, em princípio, dos pressupostos que justificam a avocatória, e, ainda, que, para sua real eficácia, impendia a concessão da medida cautelar, visando sustar, de pronto, os efeitos produzidos pela sentença em fase concreta de execução. Quanto ao procedimento, coincide ele com a conceituação que lhe atribuiu esta Corte no Diagnóstico da Reforma do Poder Judiciário (Reforma do Poder Judiciário, Diagnóstico, os. 37/8, ns 41/2). Seus pressupostos foram transplantados para a Constituição, através da Emenda nº 7/77, na redação do art. 119, I, o. É certo que o Supremo Tribunal Federal ainda não disciplinou seu processamento.
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O projeto da respectiva Emenda Regimental, elaborado pela Comissão, está em fase de estudo perante o Plenário. A meu ver, tal omissão não obsta a aplicação imediata da norma constitucional vigente, adotado o processo similar da Representação, ao qual se referem os arts. 174 e seguintes do Regimento Interno, no que couber. Permito-me aqui pequena digressão. Ao advir a primeira lei que disciplinou o processo de declaração de inconstitucionalidade em tese, prevista pela Constituição de 1946, e que ao que me parece, 2.175, expedida ao tempo do governo Café Filho, adotou em seu procedimento as normas que regulavam o mandado de segurança. E por duas vezes pelo menos esta Corte concedeu em tais feitos medidas cautelares, invocando para fazê-lo as disposições da citada lei nº 1.533/51. Refirome às Representações ns. 466 e 467, das quais foram respectivamente Relatores os eminentes Ministros Ari Franco e Victor Nunes (DJ de 16.11.61, Ap. 209, pág. 621 e seguinte; e RTJ 23, pág 1 e seguintes). Para o caso, a questão se faz mais singela, pois o art. 175 do Regimento Interno alude à medida reportando-se ao art. 22, IV. E assim decidiu este Plenário ao apreciar a Representação nº 933 da qual fui Relator (RTJ 76/342). As dúvidas então suscitadas desapareceram ante a Emenda Constitucional nº 7/77, como passou a dispor o art. 119, I, letras o e p. Certo a decisão caberia ao Plenário. Estando, porém, em férias a Corte, dita atribuição ficou a cargo do Presidente, como dispõe o art. 14, VIII, do citado Regimento, sujeitando sua decisão ao referendum do Plenário. E isto porque a medida, caso não estivesse em férias o Plenário, caberia ao Relator, face à urgência, mas ad referendum do Órgão. No que pertine ao merecimento, a documentação convence seja justific ando a avocação, seja a medida cautelar, demonstrando decorrer do decisório impugnado, já em fase de concreta execução, imediato perigo de grave lesão à segurança, e, especialmente, das finanças públicas.
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99 Ademais, complexa execução processa-se por simples, arbitramento, cujo laudo severamente atacado pelas partes, estima os prejuízos na elevada cifra de Cr$ 59.919.150,05. E, posto provisória a execução, face a apelação interposta, teve ela curso, sem qualquer caução, contrariando o disposto no art. 585, I, do Código de Processo Civil. Por último, é de anotar-se que já se encontra em tramitação perante esta Corte, ação visando rescindir o acórdão proferido na fase final de cognição da causa. Refiro-me à A. R. nº 1.040, a qual tem como Relator o eminente Ministro Soarez Muñoz. Por fim, a concessão de liminar, cingiu-se a sustar o prosseguimento da execução. E o despacho por mim prolatado é o seguinte, fls. 216 (verso): “A. Conheço do pedido, como incidente do procedimento a que se refere o art. 119, I, o, da Constituição, na redação da Emenda nº 7/77. E o defiro, ad referendum do Plenário, a medida cautelar postulada pelo Dr. Procurador-Geral da República, suspendendo os efeitos da sentença de liquidação, proferida nos autos da Ação de Indenização a que se refere a presente petição a fl. 11. E assim o faço, nos termos do Regimento Interno, reconhecendo decorrer do decisório impugnado imediato perigo de grave lesão à segurança e, especialmente, das finanças públicas. E assim o concluo do exame dos documentos que instruem o pedido, notadamente da judiciosa fundamentação aduzida pela “SYNDARMA” ao Ministro dos Transportes e por ele acolhida; e, bem assim, das considerações aduzidas pelo Ministro das Relações Exteriores, ao considerar, como aquele, o elenco de conseqüências emergentes do veredicto impugnado, em face de sua ruinosa execução, afetando as próprias relações internacionais do Brasil e o seu comércio marítimo com Nações irmãs. A tudo se ajuntem os comentários desfavoráveis de vários periódicos nacionais, e ainda, do Lloyd’s List, de Londres, edição de 29.12.77, como se verifica da documentação anexa.
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100 Expeça-se, imediatamente, via “telex”, nos termos da minuta anexa, devidamente por mim autenticada, comunicação ao Dr. Juiz Federal, Secção Judiciária do Estado de Santa Catarina, com jurisdição no feito originário, para que faça cumprir esta determinação, acusando o recebimento da comunicação e dando pronta ciência das providências tomadas. Outrossim, expeça-se ao Magistrado ofício, acompanhado da cópia desta e respectivo despacho para que, em quinze dias, preste as informações que entender de direito”. Esclareço que sua determinação foi cumprida, segundo comunicação de fls, e que a esta altura as informações solicitadas já se encontram nos autos. Trago agora, na forma regimental, art. 14, VIII, ao referendum do Egrégio Tribunal, o despacho em questão, antes de fazer sua distribuição. Pareceu-me que esta seria a ordem lógica, pois, responsável pela decisão, poderia, creio, proporcionar melhores esclarecimentos de meu livre convencimento ao prolatá-la. Acentuo, por último, que no processamento procurei orientar-me pelo Projeto da Emenda Regimental referente ao pedido de avocação, na parte já aprovada. É o relatório, o qual se tornou um tanto extenso pela originalidade do tema” (fls. 564 a 570, 2º volume).” (5)
De outra feita, o Recurso Extraordinário Eleitoral nº 90.332-SP, julgado pelo plenário, em que figurava como parte o então candidato ao Senado Fernando Henrique Cardoso, posteriormente Presidente da República, enfrentou relevantíssima questão constitucional e de direito eleitoral, na época, acerca do prazo da sanção prevista no Ato Institucional nº 5/68 e a sua respectiva projeção na inelegibilidade, interpretando o art. 154 da CF de 1967, na redação da EC nº 1/69. O Ministro Thompson Flores, Presidente do Supremo Tribunal Federal, profere voto – amostra de como julgava – nestes termos, verbis: “O Sr. Ministro Thompson Flores: (Presidente) - A natureza do recurso leva-me a votar. É o que passo a fazer. Adianto, desde já, que estou de pleno acordo com o eminente Relator. Penso que S. Exa. examinou a controvérsia com precisão lógica e deu-lhe solução juridicamente fundada, em
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101 brilhante argumentação, ornada, por vezes, com lances de elegância estilística. Convinha mesmo apreciar as duas correntes que formaram a maioria do T.S.E., originando o decisório. Aquela que o situou nas lindes da L.C. nº 5/70, cuja interpretação bastou para dirimir ali o litígio, por certo, tornou quase inviável o recurso extraordinário, circunscrito, quando se trata de julgado daquela Corte Eleitoral, em contrariedade à Constituição. E, a toda evidência, sua afronta em si, não importa na prática de igual pecado contra a Carta Maior, a menos que, no particular, seja ela um decalque desta. O desrespeito, pois, não seria em tal hipótese, à Lei Complementar, mas à própria Constituição. Mas isto não ocorreu, como bem demonstraram o despacho presidencial e o eminente Relator. Procura o douto recorrente invocar em seu prol precedente em Representação de Goiás, quando se teria enfocado a L.C. nº 10/74. O símile não oferece, data venia, o devido préstimo, dado que, face a seus termos, o que o Tribunal reconheceu, então, é que a própria criação do município goiano afrontava o art. 14 da Constituição. A relevância da questão, porém, se apresentou no pertinente a outra corrente que se formou na Corte Eleitoral e que somou a maioria, calcada nos votos dos eminentes Ministros Leitão de Abreu e, especialmente, seu Presidente, o já saudoso Rodrigues Alckmin. Considerou ela, diversamente da outra, o prazo de inelegibilidade, estimando-o em dois anos, fundada no art. 154 da própria Constituição, e por isso já então decorrido. Penso que, assim procedendo, de forma alguma, afrontou o decisório os arts. 6º e 151, ambos da Carta Maior, como se sustenta. Realmente. O que fez a maioria vencedora ao estimar o prazo? Penso que supriu exigência da lei, buscando, em fonte própria, sua inspiração, o art. 154 do Estatuto Máximo.
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Aplicou, como lembraram o Ministro Cunha Peixoto, o art. 4º, da L.I.C.C., e o Ministro Xavier de Albuquerque, o art. 126 do C.P.C. E assim o faz o julgador vezes muitas, realizando um dos mais nobres e importantes de seus deveres suprir as lacunas da lei, revelando-a, dando-lhe o seu legítimo sentido e real alcance. Faz instantes, em sua sustentação oral, invocava da tribuna o advogado do recorrido o R.E. nº 71.293, qual foi relator o eminente Ministro Amaral Santos. Ali, como aqui, discutia-se matéria de inelegibilidade. Fora eu o relator do acórdão, proferido pelo Egrégio Tribunal Superior Eleitoral, chamado a substituir o eminente e saudoso Ministro Barros Monteiro, impedido. O T.R.E. de São Paulo admitira que o prazo máximo da suspensão dos direitos políticos admitido nos Atos Institucionais era 10 anos. A lei não o dissera, mas o Tribunal local revelando-a, reconheceu. O T.S.E. não conheceu do recurso, como que endossando a tese. Na discussão nesta Corte, que não se estatuíra inelegibilidade perpétua, como admitiam que o aresto o fizesse, os eminentes Ministros Bilac Pinto e Adauto Cardoso. O que admitiu o S.T.F., então, é que ela findaria aos 10 anos. Vê-se assim que ali se fixou um limite máximo. Aqui o T.S.E. admitiu o mínimo para o caso. E friso, para o caso, porque não proferiu ele decisão normativa, o que estaria ao seu alcance, porque, para que ocorresse a normatividade, outros pressupostos se fariam mister, como é elementar. Antes, limitou-se a apreciar a relação discutida. Ateve-se a ela. E como reconheceu omissa a lei, aplicou norma legal para supri-la. Mais, inspirou-se, para solver a controvérsia, de norma política do próprio Estatuto Político, a Constituição, no
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seu art. 154, o qual, a par do prazo máximo, 10 anos, fixou também o mínimo, 2. E, sem ares de arbítrio, mas em cotejo com a hipótese que julgava, ateve-se ao prazo ínfimo. Legislou a respeito, afetando o princípio insculpido no art. 6º ou naquele previsto no art. 151, ambos, da citada Carta, como sustenta o recorrente? Seguramente, respondo pela negativa. Ao contrário, operou laboriosa construção jurídica, suprindo, com material próprio, omissão legislativa para bem e politicamente solver controvérsia desse gênero. Manifesto é que não poderia a irresignação contra tal procedimento merecer do S. T.F. sua acolhida, máxime ante o disposto no art. 139 da Constituição. A regra que nele se contém é a irrecorribilidade das decisões do T.S.E. A exceção está nas duas ressalvas que introduz: H.C. denegado e decisão que contrarie a própria Constituição. Há ligeira similitude entre o citado art. 139 e o art. 143, posto que, a meu ver, aquele seja mais restrito, mais preciso e incisivo. Tudo está a mostrar que somente quando o acórdão do T.S.E. contrarie a Constituição cabe o extraordinário, afora as hipóteses dos Habeas Corpus denegados. E não seria possível admitir que inocorresse na grave falta o decisório impugnado que antes de contrariá-la, relevou-a, buscou, em seus próprios princípios, meios para suprir lacuna de norma política. Mantendo, exerce o S.T.F seu alto papel político, interpretando a Constituição. Em conclusão, com a vênia do voto do eminente Ministro Cordeiro Guerra, não conheço, também, do recurso. É o meu voto.” (6) Longo seria, nesse momento, arrolar e comentar os votos e intervenções mais importantes proferidos pelo Ministro Thompson Flores, reveladores de sua vivência, cultura e prudência, marcas registradas de um grande juiz. Já foi dito, e não constitui originalidade, que a jurisprudência não é mais do que a luta do bom senso contra a cegueira dos princípios absolutos.
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Os exageros são perniciosos. O bom magistrado não se define em fórmula matemática, razão pela qual o ato de julgar constitui acima de tudo uma arte. Nesse sentido, a velha mas sempre nova lição do Juiz Ransson, verbis: “Si la connaissance du droit est une science, il est permis d’affirmer sans présomption que la manière de l’appliquer constitue veritablement un art.” (7) Cabe ao juiz ir dizendo, em face dos fluxos e refluxos da vida em sociedade, onde acabam os direitos e começam os abusos, até que ponto o expandir-se de cada atividade não se converte em obstáculo ao conceito das demais atividades, assinalando as dissonâncias e os exageros, corrigindo, notificando, cumprindo e fazendo cumprir a Constituição e as leis do país. Em meio século de judicatura, não houve campo da Ciência Jurídica, seja no Direito Público, seja no Direito Privado, que não a perlustrasse o Ministro Thompson Flores, com o devotamento, a competência e a proficiência que todos lhe reconhecem, fruto direto de sua reconhecida arte de julgar. Por outro lado, convencido do papel saliente que representa nos meios de expressão do pensamento o emprego conveniente dos vocábulos, os seus pronunciamentos e votos primavam pela excelência da redação. Seguia, no ponto, o conselho de Cícero, “utimur verbis ... iis quae propria sunt” e “non erit utendum verbis iis quibus iam consuetudo nostra non utitur”(9) e, ainda, “moneo ut caveatis, ne exilis, ne inculta sit vestra oratio, ne vulgaris, ne obsoleta”(10). (8)
Favorecia-o o conhecimento de línguas, inclusive o latim, que lhe permitia o acesso direto à literatura especializada dos países mais adiantados, ensejandolhe ao longo de sua vida a formação de uma qualificada e respeitável biblioteca. Nesse ponto, importa referir a lição do notável Juiz Learned Hand quando enfatiza a necessidade da maior ilustração por parte do magistrado, notadamente quando julga questões constitucionais. São suas palavras, verbis: “ I venture to believe that it is as important to a judge called upon to pass on a question of constitutional law, to have at least a bowing acquaintance with Acton and Maitland, with Thucydides, Gibbon and Carlyle, with Homer, Dante, Shakespeare and Milton, with Machiavelli, Montaigne and Rabelais, with Plato, Bacon, Hume and Kant, as with the books which have been specifically written
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105 on the subject. For in such matters everything turns upon the spirit in which he approaches the questions before him. The words he must construe are empty vessels into which he can pour nearly anything he will. Men do not gather figs of thistles, nor supply institutions from judges whose outlook is limited by parish or class. They must be aware that there are before them more than verbal problems; more than final solutions cast in generalizations of universal applicability. They must be aware of the changing social tensions in every society which make it an organism; which demand new schemata of adaptation; which will disrupt it, if rigidly confined.” (11)
Os que conheceram e tiveram o privilégio de conviver com Carlos Thompson Flores são uníssonos sobre as virtudes e qualidades de sua personalidade, o seu cavalheirismo, a cortesia no trato com os colegas e as pessoas de modo geral. Dele, traçou retrato fiel o saudoso Ministro Adalício Nogueira, em suas conhecidas memórias, verbis: “Thompson Flores é uma perfeita vocação de magistrado. Talvez que lha houvesse transmitido o seu avô paterno e homônimo, Desembargador Carlos Thompson Flores. Esse pendor irresistível, ele o tem patenteado no decurso da sua longa e profícua carreira. O escrúpulo extremo com que ele costuma resguardar a sua vida profissional coloca-o acima de quaisquer suspeitas, que lhe possam desfigurar a atitudes. Na pequenez do seu físico pulsa a vibração de uma inteligência vivaz e reside a amplitude de uma cultura esmerada. Debalde a modéstia que o envolve busca velar essas riquezas do seu espírito, porque estas, através da simplicidade dos seus hábitos, transparecem aos olhos de todos. Participando no Supremo Tribunal da 2ª Turma, a que eu em determinado período presidi, foi-me dado ouvir os pronunciamentos que ele emitia, cinzelados em forma translúcida e moldados na mais escorreita doutrina jurídica. A par disso, a atividade febril com que ele se vinculava a um labor incansável possibilitava-lhe estar sempre em dia com o serviço forense. No convívio com os colegas, ele sempre lhes dispensou um tratamento cortez e delicado, jamais se lhe notando, em
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106 relação a eles, um simples gesto de antipatia ou desagrado, porque, em verdade, isso não condiria com a nobreza dos seus sentimentos.” (12)
Nesse sentido, também, o Ministro Soares Muñoz quando, em nome da Corte, proferiu o discurso em homenagem ao Ministro Thompson Flores, por ocasião de sua aposentadoria, verbis: “O Ministro Thompson Flores exerceu todos os cargos administrativos que a alta magistratura do País pode proporcionar. Integrou as três comissões regimentais, foi Vice-Presidente e Presidente do Tribunal Superior Eleitoral e, por igual, Vice-Presidente e Presidente do Supremo Tribunal Federal. No desempenho dessas funções, que impõem deveres complexos e difíceis e as responsabilidades mais sérias e excelsas, sempre se houve com invulgar êxito. Recebeu todas as dignidades a que um magistrado pode aspirar e soube realçá-las, inclusive, com a sua dignidade pessoal e funcional. Tudo fez em prol do Poder Judiciário, para que fosse distribuída a melhor justiça, aquela que ele idealizava: “Justiça que brote de Juízes independentes, sem falsos ou mal compreendidos exageros. Justiça austera, impoluta, incorruptível, como se faz mister o seja, e para cujos imperativos prosseguiremos indormidos e intransigentes. Justiça humana, como merece distribuída às criaturas, feita à imagem de Deus. Justiça que jamais se aparte dos fins sociais e das exigências do bem comum, sem cujo conteúdo não teria nenhum sentido. Justiça que se aproxime, sem excessos ou enganosas formas, do próprio Povo, para o qual é ditada e do qual deve estar sempre ao alcance: simples, real, despida de tudo que a possa tornar dificultosa, a fim de que a compreenda melhor, sinta-a com mais fervor, e possa, assim, nela crer, para amá-la, prestigiá-la e defendê-la, se preciso for, convencido que ela é o seu baluarte democrático e a sua mais sólida garantia. E, sobretudo, Justiça pontual, como a queria Rui, porque tarda não mereceria o nobre título. E como dizia, reclamando, “Para que paire mais alto que a coroa dos reis e seja tão pura como a coroa dos santos”. Só assim nos tornaremos dignos do respeito e da confiança da Nação, ao lado dos demais Poderes da República” .
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107 Mas o alto conceito do Ministro Thompson Flores não deflui, unicamente, de sua capacidade de trabalho e do seu amor à justiça, dos seus dotes de inteligência e cultura, da seriedade, isenção e pontualidade com que exerceu a magistratura; outras virtudes e qualidades ornam-lhe também a personalidade, singularizando-o como ser humano admirável. Suas intervenções, no Plenário, na Turma ou em sessões de conselho, sempre se fizeram no momento adequado, com elegância de saber discutir, sem contundência, policiando-se para falar apenas o necessário. O cavalheirismo, a cortesia, a suavidade de maneiras, a modéstia cativante, a tolerância, a afabilidade tornaram-no alvo da amizade dos colegas, da estima dos advogados e do afeto filial dos funcionários da Casa. Em pleno vigor físico e intelectual, com o serviço que lhe fora distribuído rigorosamente em dia, foi surpreendido pela idade-limite e em conseqüência aposentado compulsoriamente. Cumpriu-se, inexoravelmente, o preceito constitucional. O Supremo Tribunal Federal perdeu um grande Juiz. O Ministro Thompson Flores, no entanto, continuará presente nos fastos da Justiça Brasileira, não só como um grande Juiz, mas como um Juiz exemplar.” (13)
Preocupado com o crescente peso das atividades do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Thompson Flores elaborou várias propostas no sentido de evitar que o congestionamento dos trabalhos do Tribunal se tornasse invencível. Foi de sua iniciativa a proposta que deu origem ao § 1º do art. 119 da Constituição Federal de 1967, na redação da Emenda nº 1/69, que atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para indicar, em seu regimento interno, as causas a que se refere o item III, alíneas “a” e “d”, do mencionado artigo. Com fundamento nesse dispositivo da Constituição foi que o Supremo Tribunal Federal instituiu, em 1975, a relevância da questão federal como condição de admissibilidade do recurso extraordinário. Nesse sentido, também, a seção concernente ao recurso extraordinário do CPC de 1973 partiu de proposta por ele elaborada. Eleito pelo Supremo Tribunal Federal, presidiu a Comissão que elaborou o célebre Diagnóstico do Poder Judiciário, composto de 94 volumes anexos, tido até hoje como o estudo mais completo acerca dos males que afligem a Justiça Brasileira. Esse trabalho notável, publicado na íntegra pela Revista Forense, v. 251, pp. 7 e seguintes, subsidiou o legislador constituinte quando da edição da
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Emenda Constitucional nº 7/77 que estabeleceu a Reforma do Judiciário. Para o devido registro da história do Poder Judiciário, convém recordar a introdução desse importante documento, verbis: “A honrosa visita de cortesia do Sr. Presidente da República ao Supremo Tribunal Federal, no dia 16 de abril de 1974, revestiu-se do caráter de profícuo encontro entre o Chefe do Poder Executivo e a mais alta hierarquia do Poder Judiciário, para declarações concordantes dos dois Poderes, da maior relevância para a justiça e, portanto, para a Nação. Afirmaram-se naquele diálogo: a necessidade e oportunidade de reforma do Poder Judiciário; a disposição de fazer o Governo do Presidente ERNESTO GEISEL o que puder para o aprimoramento dos serviços da justiça; a conveniência de prévia fixação, pelo próprio Poder Judiciário, do diagnóstico da justiça, mediante o levantamento imediato dos dados e subsídios necessários. Em decorrência do interesse do Governo, na reforma, o senhor Ministro ARMANDO FALCÃO entrou em entendimento com o eminente Ministro ELOY DA ROCHA, presidente do Supremo Tribunal Federal. Ficou assentado, nessa ocasião, que, inicialmente, o Poder Judiciário procederia aos imprescindíveis estudos, em cada área de atividade jurisdicional, na medida em que aos Tribunais parecesse recomendável a ação reformadora. 2. Para desempenhar-se do encargo, foram solicitadas às justiças especiais e à justiça comum estatísticas, informações e sugestões, bem como a contribuição de universidades, de associações de classe, de magistrados, advogados e outros juristas. Os dados e as opiniões obtidos constam de noventa e quatro volumes anexos. Foram apresentados relatórios parciais, relativos à Justiça Federal, à Justiça Militar, à justiça do Trabalho, à justiça Eleitoral, às Justiças dos Estados e à Justiça do Distrito Federal, nos quais se encontram, a par de algumas observações de ordem geral, problemas específicos das respectivas áreas de exercício jurisdicional. Esses relatórios parciais se consideram, pois, incorporados ao presente, que constitui uma visão resumida dos problemas mais graves do Poder Judiciário.
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109 A pesquisa feita indica, sem que se precise descer a pormenores, que a reforma da justiça, ampla e global, sem prejuízo do sistema peculiar à nossa formação histórica, compreenderá medidas sobre recrutamento de juízes a sua preparação profissional, a estrutura e a competência dos órgãos judiciários, o processo civil e penal (e suscitará, mesmo, modificação de regras de direito material), problemas de administração, meios materiais e pessoais de execução dos serviços auxiliares e administrativos, com aproveitamento de recursos da tecnologia. Avultarão, na reforma, ainda, problemas pessoais dos juízes, seus direitos, garantias, vantagens, deveres e responsabilidades. E visará a assegurar o devido prestígio à instituição judiciária, que, no regime da Constituição, se reconhece como um dos três Poderes, independentes e harmônicos. 3. A extensão da pesquisa realizada corresponde à idéia de que a reforma do Poder Judiciário deve ser encarada em profundidade, sem se limitar a meros retoques de textos legais ou de estruturas. Quer-se que o Poder Judiciário se torne apto a acompanhar as exigências do desenvolvimento do país e que seja instrumento eficiente de garantia da ordem jurídica. Quer-se que se eliminem delongas no exercício da atividade judiciária. Quer-se que as decisões do Poder Judiciário encerrem critérios exatos de justiça. Quer-se que a atividade punitiva se exerça com observância das garantias da defesa, com o respeito à pessoa do acusado e com a aplicação de sanções adequadas. Quer-se que à independência dos magistrados corresponda o exato cumprimento dos deveres do cargo. Quer-se que os jurisdicionados encontrem, no Poder Judiciário, a segura è rápida proteção a restauração de seus direitos, seja qual for a pessoa ou autoridade que os ameace ou ofenda. 4. Reforma de tal amplitude não se fará sem grandes esforços. Há dificuldades técnicas a resolver. Serão necessários meios para corresponder a encargos financeiros indispensáveis. E há interesses que hão de ser contrariados ou desatendidos. Impor-se-á alteração de textos constitucionais e legais e será mister disciplina. unitária de direitos e deveres de magistrados.
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110 É certo que a reforma poderá implantar-se por partes. Mas determinadas medidas, que dizem com a essência dela, ou serão preferencialmente executadas, ou não haverá, na realidade, reforma eficaz.” (14)
No dia 14 de fevereiro de 1977, o Ministro Carlos Thompson Flores tomou posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal para o biênio 1977/1979. Em seu discurso assumiu o compromisso de dedicar-se integralmente em prol do Poder Judiciário, visando ao seu aperfeiçoamento, para que fosse distribuída a melhor Justiça, aquela que ele tanto idealizava, verbis: “Grave, penoso, por vezes antipático, a cada passo incompreendido, exigindo sempre equilíbrio e coragem, a missão do juiz, inobstante, impende ser cumprida para que a lei, como expressão do Direito, tenha execução, e a Justiça jamais falte entre nós. Justiça que brote de juízes independentes, sem falsos ou mal compreendidos exageros, como sempre o foram os juízes do Rio Grande, reconhecidos urbe et orbe, sem cujo atributo nem é possível conceber o exercício funcional como ele se impõe. Justiça austera, impoluta, incorruptível, como se faz mister o seja e para cujos imperativos prosseguiremos indórmitos e intransigentes. Justiça humana como merece distribuída às criaturas feitas à imagem de Deus. Justiça que jamais se aparte dos fins sociais e das exigências do bem comum, sem cuja presença nem seria compreendida. Justiça que se aproxime, sem excessos ou enganosas fórmulas, do próprio povo para a qual é ditada e do qual deve estar sempre ao alcance; simples, real, despida de tudo que a possa tornar dificultosa, a fim de que a compreenda melhor, sinta-a com fervor, e possa, assim, nela crer para amá-la, prestigiá-la, e defendê-la se preciso for, convencido que ela é seu baluarte democrático e a sua mais sólida garantia. Justiça da qual se não permita desconfiar um só segundo, porque como assinalava Balzac: “Desconfiar da Magistratura é um começo de dissolução social”.
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E sobretudo Justiça pontual, como a queria Rui, porque tarda não mereceria o nobre título. E como dizia, reclamando: “Para que paire mais alto que a coroa dos reis e seja tão pura como a coroa dos santos”. Só assim nos tornaremos dignos do respeito e da confiança da Nação, ao lado dos demais Poderes da República.” (15) Ajusta-se com propriedade ao seu pensamento aquela passagem de Michel Debré, Ministro da Justiça do Presidente De Gaulle, a respeito da sua preocupação com o aperfeiçoamento e modernização do Judiciário: “Je suis de ces républicains qui rêvent d’une justice habile et prompte, sévère et humaine, condamnant ceux qui méritent de l’être, protégeant l’innocence, statuant avec équité en tous domaines. Il me paraît que la valeur de la justice et le respect dont ses décisions sont entourées attestent du degré de civilisation qu’un peuple a atteint.” (16) A sua presidência foi marcada de realizações. No plano administrativo, foram tomadas as seguintes medidas: promoveuse ampla reforma da Secretaria da Corte, medida há muito reclamada pelos advogados; a publicação interna, para uso exclusivo dos Ministros e assessores, do boletim do Supremo Tribunal Federal, destinado ao acompanhamento das decisões do Plenário e das Turmas logo após proferidas, experiência instituída pelo Ministro Carlos Thompson Flores quando presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; o retorno do Plenário ao edifício-sede após a conclusão das obras na gestão do Ministro Djaci Falcão; a inauguração, em dezembro de 1977, da Galeria dos retratos dos Presidentes da Corte, desde a instalação em 1829; a instalação do Museu do Supremo Tribunal Federal, abarcando peças e documentos históricos vinculados à Corte, inclusive com a remoção do mobiliário da antiga sala de sessões do Supremo Tribunal Federal no Rio de Janeiro, que foi trazido para Brasília, completamente restaurado e instalado no edifício-sede; a transferência da biblioteca para o 3º andar do edifício-sede; a classificação e catalogação do acervo, bem como a sua ampliação mediante a aquisição de novas obras; a atualização da Revista Trimestral de Jurisprudência, inclusive com a publicação de acórdãos da década de 1950 e início dos anos seguintes; início da construção do bloco de apartamentos destinado exclusivamente à residência dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; criação do serviço de auditoria da Corte com a aprovação da Lei nº 6.474/77; foram acelerados os entendimentos com o Poder Executivo para a obtenção de área contígua ao Tribunal destinada à construção do Anexo II; a regulamentação das normas do cerimonial das sessões solenes do Tribunal, através da Portaria nº 148/78; a celebração de convênio com o Senado, possibilitando acesso aos bancos de dados já existentes e visando à
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inclusão da jurisprudência da Corte no PRODASEN, constituindo-se no embrião da informatização dos serviços do Tribunal. Dentro da filosofia de incentivo aos funcionários situados em faixa salarial mais reduzida, adotaram-se as seguintes providências, verbis: a) “ajuda-alimentação”, constante no pagamento de 80% do valor da refeição, fornecida por restaurante existente nas dependências do Supremo Tribunal Federal; b) construção e instalação do gabinete odontológico; c) implantação do transporte para funcionários residentes nas cidades-satélites; d) contratação dos serviços de um médico ginecologista para atendimentos das servidoras; e) assinatura de convênio com a Central de Medicamentos para fornecimento gratuito de remédios. No plano institucional, dois eventos se projetaram na Presidência Thompson Flores: a implantação da reforma do judiciário, por meio da Emenda Constitucional nº 7/77, que acrescentou novas e importantes atribuições para o Supremo Tribunal Federal, destacando-se o Conselho Nacional da Magistratura; e a comemoração dos 150 anos do Supremo Tribunal Federal, com ampla divulgação por todo o país da efeméride. A propósito, impõe-se destacar a introdução feita pelo Presidente Thompson Flores na obra “O Legislativo e a Organização do Supremo Tribunal no Brasil”, editada pela Câmara dos Deputados, onde são assinalados aspectos marcantes da história do Supremo Tribunal Federal. Disse o Ministro Thompson Flores, verbis: “O movimento libertador que culminou, em 1822, com a Independência, tornou imperiosa a necessidade de criar e pôr em funcionamento os órgãos que iriam compor a estrutura do novo Estado, jovem Nação, liberta da subordinação à Metrópole. Por esse motivo a década transformou-se em palco de eventos de grande significação, consubstanciadores das providências adotadas para consolidar a nova situação do País. As idéias constitucionalistas e liberais que agitavam as Cortes européias e, em particular, a de Portugal, exerceram profunda influência sobre o processo de constitucionalização do Brasil que, segundo registram os historiadores, ter-se-ia
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113 desenvolvido simultaneamente com o desejo de promover a libertação completa e definitiva da terra brasileira. Fruto desse processo é o documento constitucional do Império, outorgado a 25 de março de 1824, que acolheu em seu bojo, dentre outros, o princípio preconizado por LOCKE e desenvolvido por MONTESQUIEU, da repartição dos poderes do Estado, à tradicional divisão tripartite sobrepôs, contudo, o elemento de controle e equilíbrio a ser representado pelo Poder Moderador, exercido pessoalmente pelo Imperador, visando preservar, inegavelmente, a essência do autoritarismo monárquico. Nesse contexto iniciou o Poder Legislativo suas atividades em 1826, através da Assembléia Geral, dividida em Câmara dos Deputados e Senado, este vitalício e aquela temporária, passando a elaborar as leis básicas a garantir a liberdade e soberania do País. Atendendo aos reclamos da juventude brasileira, obrigada a buscar nos estabelecimentos de ensino europeus sua formação superior, houve por bem o órgão legiferante, recém-instalado, criar “dois cursos de ciências jurídicas e sociais, um na cidade de São Paulo e outro na de Olinda”, por lei de 11 de agosto de 1827, introduzindo, entre nós, o estudo universitário. No que concerne ao Poder Judiciário ou “Poder Judicial”, como foi então chamado e que era único para todo o Império, não havendo magistraturas provinciais, previa a nossa primeira Constituição, no art. 163, a criação de um órgão de cúpula, a denominar-se Supremo Tribunal de Justiça, com atribuições peculiares e distintas das que foram conferidas aos demais integrantes do organismo. Assinale-se que, quando da transmigração da Família Real portuguesa para o Brasil, já havia o Príncipe Regente transformado a Relação do Rio de Janeiro em Casa da Suplicação do Brasil, “considerada como Superior Tribunal de Justiça, para se findarem ali todos os feitos em última instância, por maior que seja o seu valor, sem que das últimas sentenças proferidas em qualquer das Mesas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso que não seja o das revistas”, mediante o Alvará de 10 de maio de 1808, à semelhança de órgão existente em Lisboa.
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114 Essa Corte embora possa ser o precedente histórico do Supremo Tribunal de Justiça - Supremo Tribunal Federal com o advento da República - com ele não se confunde, em face, sobretudo, da nítida diferenciação que entre os dois produziu a libertação política do País e do surgimento, posterior, de uma legislação genuinamente brasileira, em substituição às Ordenações portuguesas, até então vigentes e aplicáveis aos brasileiros. É de indagar-se, pois, quais teriam sido as causas que levaram o legislador constituinte do novo Estado a imaginar, no ápice do sistema judiciário, um tribunal ímpar, superposto aos demais componentes do Poder e, ainda, distinto de seu predecessor. PIMENTA BUENO em seus comentários à Constituição do Império, abordou com maestria a questão, enfatizando duas ordens de fatores que teriam contribuído predominantemente. A primeira, afirma o autor, relacionava-se à circunstância de que, esgotadas as duas instâncias ordinárias nas quais os fatos e o direito eram exaustivamente examinados, impunhase a existência de um órgão maior, que viesse a apreciar a questão suscitada, já agora não mais apenas em razão dos direitos ou aspirações individuais, mas “em relação ao interesse da ordem pública, do império da Lei, questão de alta importância, que cumpria resolver com inteiro acerto”. Por outro lado, destacava, fazendo clara referência ao problema da diversidade jurisprudencial, há uma multidão de tribunais, cada um dos quais tem sua inteligência e vontade distinta, e que ainda mesmo sem intenção de abuso, pode seguir doutrina diversa, tanto mais porque a aplicação das leis nem sempre se faz sem dúvida e dificuldades, mesmo por causa da concisão de seus preceitos; e uma tal divergência romperia a unidade da lei, que deve ser igual e a mesma para todos. Era essencial, portanto, criar uma entidade, uma instituição mista, de caráter político-judiciário que, não sendo uma terceira instância, viesse a cumprir o alto encargo de exercer uma elevada vigilância, uma poderosa inspeção e autoridade, que defendesse a lei em tese, que
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115 fizesse respeitar o seu império, o seu preceito abstrato, indefinido, sem se envolver na questão privada, ou interesse das partes, embora pudesse aproveitar ou não a elas, por via de conseqüência. Para cobrir todo esse amplo espectro de atribuições, inclinaram-se os elaboradores da Carta Imperial pelo Supremo Tribunal de Justiça, corte específica, de composição que o próprio texto constitucional fixava com missão especial, “mais política do que judicial”, no dizer, ainda, de PIMENTA BUENO. A previsão constitucional, por si só, não tinha o condão de dar existência real ao órgão. Coube à Assembléia Geral dar vida ao disposto no art. 163 do documento político do Império; por suas duas Casas tramitou o projeto apresentado por BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELOS, na sessão da Câmara de 7 de agosto de 1826, transformado na Lei de 18 de setembro de 1828, que criou e declarou as atribuições do Supremo Tribunal de Justiça. Seus primeiros juízes, bem como seu Presidente, o Conselheiro JOSÉ ALBANO FRAGOSO, foram nomeados por ato do Imperador, de 19 de outubro de 1828, e decreto de 2 de janeiro de 1829 determinou que o Tribunal se instalasse a 9 daquele mesmo mês, dando início às atividades que tiveram curso, ininterruptamente, até a República. A Carta Política de 1891 representou a síntese dos ideais republicano-democráticos que conseguiram romper, de forma definitiva, com a tradição monárquica, até então imperante no País. Tratou a Constituição de nossa Corte Suprema no art. 56, dispondo sobre sua composição e forma de nomeação de seu membros; adotou, ainda, a denominação Supremo Tribunal Federal, mais consentânea com a forma federativa que o Brasil, então, elegera. Às antigas províncias, transformadas em Estados, concedeu-se autonomia legislativa; cada um deles passou a reger-se pela Constituição e leis que adotasse, respeitados os princípios constitucionais da União (art. 63); estabeleceramse as justiças estaduais, com competência submetida aos limites fixados nos arts. 61 e 62.
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116 Inobstante tais inovações, as leis oriundas do Poder Legislativo federal deveriam ser observadas em todo o território nacional, fazendo com que se ampliasse, não apenas em volume de serviço, como em importância, a alta missão já antes deferida ao Supremo Tribunal Federal, de manter a uniformidade na interpretação do Direito. Novo e relevantíssimo encargo foi conferido ao Poder Judiciário da República e, em particular, ao órgão de cúpula do sistema como seu porta-voz derradeiro: o do controle da constitucionalidade de leis e atos do poder público, atribuído pela Carta Imperial ao Poder Legislativo (art. 15, IX, da Constituição de 1824). Quanto a essa significativa modificação, assinalava JOÃO BARBALHO, em seus comentários à Constituição de 1891, que “nem fora necessário texto formal e explícito, atribuindo à magistratura o poder, ou antes o dever [...] de deixar de aplicar leis inconstitucionais”, eis que estariam ambos (“poder” e “dever”, implícitos na própria ação de julgar, na medida em que não poderiam ser exercidos com esquecimento ou preterição da Constituição, “fonte da autoridade judicial e lei suprema, não para os cidadãos somente, mas também para os próprios poderes públicos” . A Constituição de 16 de julho de 1934 modificou, no art. 73, a denominação do Tribunal para “Corte Suprema”, desejando emprestar maior fidelidade ao modelo norte-americano que servira de inspiração ao constituinte de 1891. A alteração teve vida efêmera; pois, em 1937, a chamada Carta do Estado Novo preferiu utilizar, no art. 90, o antigo título “Supremo Tribunal Federal”, consagrado, definitivamente, nos documentos básicos que se seguiram. PIMENTA BUENO, na obra antes referida ao finalizar as considerações desenvolvidas acerca do órgão previsto na Carta de 1824, afirmava profeticamente: Tal é a natureza desta sublime instituição, ainda tão desconhecida e tão pouco considerada em nosso jovem País; ela porém está plantada no terreno constitucional,
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117 e a Providência há-de fecundá-la; há-de ser entre nós o que é em outros Estados, aos quais tem prestado úteis e gloriosos serviços. Se, à época, já causava espécie o desconhecimento que cercava a valiosa destinação e a incomparável significação da Corte, a situação não se modificou, substancialmente, ao longo desses 150 anos. O fato não deve ser debitado, apenas, a um possível desinteresse ou descaso dos juristas e historiadores pátrios, tendo como conseqüência a escassa literatura sobre o órgão máximo da Justiça brasileira; grande parcela cabe, também, à própria Corte, em razão das características que pautaram, sempre, a atividade de seus ministros, avessos a qualquer tipo de publicidade. Há que admitir a existência de preciosas lições, frutos da cultura e do trabalho laborioso de insignes juízes de nossa Corte maior, que jazem esquecidas em longínquas páginas de acórdãos, furtados ao conhecimento de advogados, estudantes e estudiosos do Direito por falta de uma divulgação ampla e adequada, com lamentável perda para a formação jurídica nacional. Quanto aos bons augúrios formulados ao ensejo de sua criação, pode, hoje, o Supremo Tribunal Federal voltarse para seu passado, para o século e meio que o separa de seu nascimento, com a consciência tranqüilizada não apenas pela sensação do dever cumprido; tem, antes, a certeza da missão diligenciada com profundo amor e dedicação à causa da Justiça, aos quais se aliaram, em todas as épocas, o brilho da inteligência e do saber jurídico daqueles que ocuparam postos em seu plenário. Merece ser recordada a oração de RUI BARBOSA, proferida perante a Corte, em 23 de abril de 1892: Minha impressão, neste momento, é quase superior às minhas forças, é a maior, com que jamais me aproximei da tribuna, a mais profunda com que a grandeza de um dever público já me penetrou a consciência, assustada da fraqueza do seu órgão. Comoções não têm faltado à minha carreira acidentada, nem mesmo as que se ligam ao risco das tempestades revolucionárias. Mas nunca
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118 o sentimento da minha insuficiência pessoal ante as responsabilidades de uma ocasião extraordinária, nunca o meu instinto da pátria, sob a apreensão das contingências do seu futuro, momentaneamente associado aqui às ansiedades de uma grande expectativa, me afogaram o espírito em impressões transbordantes, como as que enchem a atmosfera deste recinto, povoado de temores sagrados e esperanças sublimes. Subjugado pela vocação desta causa incomparável, custa-me, entretanto, a dominar o respeito, quase supersticioso, com que me acerco deste Tribunal, o oráculo da nova Constituição, a encarnação viva das instituições federais. Sob a influência deste encontro, ante esta imagem do antigo areópago transfigurada pela distância dos tempos, consagrada pela América no Capitólio da sua democracia, ressurge-me, evocada pela imaginação, uma das maiores cenas da grande arte clássica, da idade misteriosa em que os imortais se misturavam com os homens. Atenas, a olímpica, desenhada em luz na obscuridade esquiliana, assentando, na rocha da colina de Arés, sobranceira ao horizonte helênico, para o regime da lei nova, que devia substituir a contínua alternativa das reações trágicas, o rito das deusas estéreis da vingança, pelo culto da justiça humanizada, essa magistratura da consciência pública, soberana mediadora entre as paixões, que destronizou as Eumênides atrozes. O sopro, a que a República vos evocou, a fórmula da vossa missão, repercute a tradição grega, divinamente prolongada através da nossa experiência política: “Eu instituo esse Tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra através do sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante.” Contém o presente volume a tramitação completa, nas duas Casas que compunham a Assembléia Geral do Império do Brasil, do projeto que originou a Lei de 18 de setembro de 1828, que criou e declarou as atribuições do Supremo Tribunal de Justiça. A Câmara dos Deputados, ao promover a publicação dos trabalhos legislativos que resultaram na referida
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lei, presta à Corte a mais expressiva das homenagens, que sensibiliza tanto sua atual composição como, e principalmente, toda a cultura jurídica do País. Deseja esta Presidência deixar consignados seus sinceros agradecimentos pelo nobre gesto, que amplia e fortalece os tradicionais laços de harmonia e colaboração existentes entre os Poderes Legislativo e Judiciário, manifesta, outrossim, o seu reconhecimento pela deferência de seu nobre Presidente, Deputado MARCO MACIEL, pelo convite para fazer esta introdução. Brasília, 18 de julho de 1978. Ministro CARLOS THOMPSON FLORES Presidente do Supremo Tribunal Federal” (17) Na sessão solene realizada em 18 de setembro de 1978, em comemoração do sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal, compareceu o Presidente da República, acompanhado de todo o seu ministério, fato então inédito na história do Tribunal. Nessa ocasião, em sessão solene por ele presidida, recebeu das mãos do Presidente da República, Ernesto Geisel, a mais alta condecoração da Nação, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito. Na oportunidade, assim se manifestou o Presidente da República: “Na oportunidade em que se comemoram 150 anos da existência do Supremo Tribunal Federal, o Conselho da Ordem Nacional do Mérito propôs conferir a V. Exa., e eu acedi, o grau de Grã-Cruz da referida Ordem. Este ato é uma homenagem do Poder Executivo ao Poder Judiciário (...) Mas é, principalmente, o reconhecimento dos elevados méritos de V. Exa., Sr. Ministro-Presidente, do trabalho que tem desenvolvido, ao longo de sua vida, como cidadão e como magistrado, em benefício da Nação brasileira.” (18) Ao concluir o relatório da sua Presidência, em verdadeira prestação de contas de sua administração, consignou, em palavras carregadas de emoção, verbis: “Ao concluir este Relatório manifesto a convicção de que procurei corresponder, tanto quanto me foi possível e nos limites das minhas forças, ao mandato
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120 que os Senhores Ministros me confiaram. Após 45 anos de existência dedicada à magistratura, tenho a sensação do dever cumprido. Para isto muito contribuíram, no último biênio, a colaboração e o empenho dos Senhores Ministros, propiciando os resultados atingidos, que exteriorizam a elevada carga de trabalho recebida pela Corte, sem solução de continuidade. Inobstante os esforços desenvolvidos, a massa de feitos que chega, anualmente, não se reduz. Confrontando os elementos concernentes aos anos de 1977 e 1978, verifica-se que ocorreu, no global, um acréscimo de 1.074 feitos, destacando-se as Argüições de Relevância, que ascenderam, de 1.172 a 1.719, com o aumento percentual de 46,67%. De forma generalizada isto ocorre em relação a todos os Órgãos do Poder Judiciário, dos Juizados de 1ª. instância aos Tribunais Superiores, revelando os sacrifícios a que estão expostos os magistrados, numa vida que exige vocação, desprendimento, renúncia e estudo permanente. Esta realidade deve sensibilizar os demais Poderes da República, para que, através de modificações adequadas na legislação, possam criar condições hábeis para o pleno reconhecimento das nobres funções dos Juízes, para a ampliação dos quadros, com o correspondente apoio administrativo e, ainda, com a adequação das normas processuais, possibilitando a realização de uma Justiça mais rápida e eficaz. Quando terminei o Relatório precedente, exteriorizei a esperança de que 1978 pudesse também ser assinalado pela aprovação da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que correspondesse aos anseios dos Juízes. Isto não se tornou possível, mas renovo a crença de que os membros do Poder Legislativo, onde se encontra atualmente o projeto, imbuídos dos propósitos de bem servir ao Brasil, aprovarão, na próxima legislatura, um diploma que corporifique as expectativas da Justiça Nacional. Outrossim, a não aprovação da citada lei obstou o prosseguimento dos trabalhos da Comissão de Regimento, a qual considerou indispensável dita aprovação.
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121 Havia a Secretaria apresentado, em junho último, alentado estudo sobre a reforma, nele incluindo as alterações que sobre ele incidiram a Emenda Constitucional nº 7, o vigente Código de Processo Civil e as novas Emendas Regimentais. De outra parte, a revisão das Súmulas afeta à Comissão de Jurisprudência, à qual foram enviados os estudos procedidos pela Assessoria, não logrou findar seus trabalhos. Confio que as relevantes tarefas, de tão significativo préstimo a todos que versam com a aplicação do direito, terão prosseguimento, embora reconheça que será mais um encargo a acrescer às já penosas atribuições dos Senhores Ministros. Quero consignar que as comemorações dos 150 anos deste Tribunal, com a divulgação correspondente, tornaram-no menos desconhecido, possibilitando que milhões de brasileiros, alcançados pela imprensa escrita, falada e televisionada, tomassem ciência da efeméride. Que esta divulgação não represente apenas um episódio, tornando-se uma constante, é o meu desejo, para que esta Corte, a exemplo do que ocorre em outros países, possa ser respeitada, admirada e amada, como o supremo baluarte dos direitos de cada cidadão. (19)
Aos 26 de janeiro de 1981, no dia mesmo em que completava setenta anos, aposentou-se, após meio século dedicado exclusivamente à magistratura. Na sessão plenária realizada a 11 de março de 1981, por motivo de sua aposentadoria, assinalou em seu discurso o Procurador-Geral da República, Dr. Firmino Ferreira Paz, verbis: “Esta homenagem, que o Supremo Tribunal Federal ora presta Vossa Excelência, Senhor Ministro Carlos Thompson Flores, e a que se associa, por meu intermédio, cordialmente, o Ministério Público Federal, é o testemunho eloqüente do grande apreço, da profunda admiração e do puro respeito, que todos votamos à notável personalidade de Vossa Excelência, ao juiz exemplar, jurista de escol, ao amigo afetuoso, ao patriota sem jaça, e ao brasileiro perante o qual, neste momento, se curva, reverencialmente agradecida, a mais alta expressão da Justiça brasileira, que é o Supremo Tribunal Federal.
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122 Esta homenagem é, a todas as luzes, julgamento público e supremo daquele que, por quase meio século, dedicou todos os momentos de sua vida honrada à distribuição de Justiça a quantos lha pediam. Julgou. Agora, está sendo julgado e proclamado um dos mais eminentes, honrados e cultos juízes do Brasil. Para que alguém, por tantos e tantos anos, sem o mínimo desvio de propósitos, ponha, a serviço de uma causa, força e dedicação constantes, é preciso ideal e viver dele. E o mais nobre, mais sublime, o mais excelso, o mais divino, não há que o de ser justo. Desse ideal, senhores, viveu e vive o eminente Ministro Thompson Flores. Julgar, servindo ao Poder Judiciário, é forma de realizar o Direito, prevenindo ou extinguindo conflitos sociais objeto de demandas forenses. É forma de promover a adaptação dos homens entre si, em convivência social. Não fossem, entre os homens individualmente considerados, ou entre grupos sociais, os conflitos que a vida, em sociedade, provoca, e, mais do que isso, a prevenção ou a extinção desses conflitos, não havia, dentre os processos sociais de adaptação, o Direito. Os conflitos humanos, sejam quais lhes forem os motivos determinantes, são factos. Uns são preveníveis; outros, extintíveis. A prevenção e a extinção, de sua vez, realizam-se em factos. Dessa sorte, facto previne ou extingue facto, é dizer, previne ou extingue conflito social. Opera-se, outrossim, em conseqüência, a adaptação social, fim último do Direito. O que se sabe e aprende, todos os dias, nos Juízos ou Tribunais, é que a função judicial visa a realizar a prevenção ou a extinção dos conflitos entre os homens, para alcançar a adaptação social. Assim, pois, em última análise, o acto judicial de julgar é, também, conceptualmente, Direito. Dessas razões, sucintamente expostas, podemos dizer que o eminente Ministro Thompson Flores, por quase meio século, julgando, e o fazendo com sabedoria e prudência, fora, neste País, por todos os caminhos da judicatura, ascencionalmente, admirável e brilhante
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123 realizador do Direito no Brasil. Ninguém, nesse mister, o terá superado em dedicação, em amor às letras jurídicas, em senso de responsabilidade, em coragem e em grandeza de atitudes. Neste Colendo Supremo Tribunal Federal, último estágio da judicatura exercida pelo nosso homenageado, figuram-lhe, nos anais, os votos brilhantes proferidos pelo eminente Ministro Carlos Thompson Flores, a quem, incontestavelmente, devem as letras jurídicas nacionais grande e brilhante contribuição. Receba, Excelentíssimo Senhor Ministro Thompson Flores, por último, do Ministério Público Federal e de mim próprio, nossas homenagens, em sinal de respeito profundo, sincera amizade e admiração incondicional, a par de nossos votos de muitas e muitas felicidades.” (20)
Do primoroso discurso proferido pelo saudoso Ministro Soares Muñoz, que falou em nome do Tribunal, destaco a seguinte passagem, verbis: “Mas o alto conceito do Ministro Thompson Flores não deflui, unicamente, de sua capacidade de trabalho e do seu amor à justiça, dos seus dotes de inteligência e cultura, da seriedade, isenção e pontualidade com que exerceu a magistratura; outras virtudes e qualidades ornam-lhe também a personalidade, singularizando-o como ser humano admirável. Suas intervenções, no Plenário, na Turma ou em sessões de conselho, sempre se fizeram no momento adequado, com elegância de saber discutir, sem contundência, policiando-se para falar apenas o necessário. O cavalheirismo, a cortesia, a suavidade de maneiras, a modéstia cativante, a tolerância, a afabilidade tornaram-no alvo da amizade dos colegas, da estima dos advogados e do afeto filial dos funcionários da Casa. Em pleno vigor físico e intelectual, com o serviço que lhe fora distribuído rigorosamente em dia, foi surpreendido pela idade-limite e em conseqüência aposentado compulsoriamente. Cumpriu-se, inexoravelmente, o preceito constitucional. O Supremo Tribunal Federal perdeu um grande Juiz. O Ministro Thompson Flores, no entanto, continuará presente nos fastos da Justiça Brasileira, não só como um grande Juiz, mas como um Juiz exemplar.” (21)
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Significativa homenagem foi-lhe prestada pelo editorial do Jornal do Brasil, edição de 29.08.1981, ao enfatizar a necessidade da retomada do processo da reforma do Poder Judiciário, assinalando, verbis: “Há indícios de que o Supremo Tribunal Federal deseja aproveitar a oportunidade de se encontrar na Chefia do Gabinete Civil da Presidência da República seu ex-Presidente, para recolocar, agora em termos próprios e, com todas as probabilidades de se fazer ouvir com a atenção devida, a questão da reforma do Judiciário. O Ministro Xavier de Albuquerque chegou a fazer referência pública e expressa à possibilidade de um novo trabalho nesse sentido, cuja realização, além de corresponder a necessidades concretas da sociedade brasileira, seria ou será um complemento indispensável ao projeto político do atual Governo. É preciso voltar ao “diagnóstico”, que se acha impregnado daquele ideal de Justiça expresso por um dos mais puros juízes – Thompson Flores – em voto proferido no STF: “Justiça que se aproxime, sem excessos ou enganosas formas, do próprio povo, para o qual é ditada e do qual deve estar sempre ao alcance: simples, real, despida de tudo que a possa tornar dificultosa, a fim de que compreenda melhor, sinta-a com mais fervor e possa defendê-la, se preciso, convencido de que ela é o seu baluarte democrático; sua mais sólida garantia.” A aposentadoria não pôs termo à sua atividade em prol do direito e da justiça. De março de 1981 a novembro de 1992 produziu inúmeros pareceres, muitos deles publicados nas revistas especializadas. (22) Questão constitucional interessante foi o mandado de segurança da “Mesa da Assembléia” do Rio Grande do Sul, onde restou examinada a validade da deliberação tomada pelo legislativo daquele Estado quando da eleição da Presidência da Casa. O caso foi de grande repercussão jurídica e política, tendo sido julgado em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal em decisão plenária apertada, tomada pela maioria de um voto. O parecer do Ministro Thompson Flores foi acolhido pela Corte, ao julgar o RE nº 95.778-RS, publicado na RTJ 102/433.
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Pela sua atualidade, impõe-se rememorar excertos do parecer, fundamentado na lição dos clássicos, inclusive Duguit, verbis: “1. Dispõe a Constituição Federal de 1969: “Art. 31. Salvo disposição constitucional em contrário as deliberações de cada Câmara serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria de seus membros.” Igualmente, estatui a Constituição do Estado: “Art. 13. Ressalvados os casos expressos nesta Constituição, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria dos membros da Assembléia. Parágrafo único. O voto será secreto nas eleições e nos casos previstos nesta Constituição.” Lê-se, por fim, no Regimento Interno da Assembléia Legislativa: “Art. 15. A eleição dos membros da Mesa far-se-á, por votação secreta, observadas as seguintes normas: a) presença da maioria absoluta dos Deputados; b) emprego de cédulas impressas ou datilografadas; c) colocação da cédula em sobre carta, na cabina indevassável, e da sobrecarta na urna, à vista do Plenário; d) escrutínio dos votos e proclamação do resultado da eleição; e) obtenção da maioria absoluta de votos em primeiro escrutínio; f) realização de segundo escrutínio entre os dois candidatos mais votados, quando no primeiro nenhum deles houver alcançado a maioria absoluta; g) maioria simples no segundo escrutínio; h) escolha do candidato mais idoso, em caso de empate. § 1.º O Presidente convidará dois Deputados de Bancadas diversas para procederem à apuração. § 2.° A posse dos eleitos será imediata à proclamação do resultado pelo Presidente da sessão.”
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126 2. Esses foram os dispositivos legais invocados pelas partes e com os quais operaram os julgadores, posto que, pela argumentação jurídica que deduziram, não se harmonizassem na conclusão. É certo que, preliminarmente, rejeitaram, além de outras, destituídas de maior importância, a de não conhecimento do mandado, negando que se configurasse no caso questão interna corporis, exclusivamente política. Perdeu ela, a esta altura do andamento do recurso extraordinário, qualquer interesse. E isto porque ao recurso dos vencidos interposto não foi o adesivo dos vencedores no mérito, mas perdedores da prejudicial em questão, e só ele, nos termos do art. 500 do C. Pr. Civ. que, segundo o ensinamento de BARBOSA MOREIRA, abriria ensejo ao reexame daquela prefacial (Comentários ao C. Pr. Civ. vo1. V, FORENSE 3.ª ed., 1978, n.ºs 168 e 176). De qualquer sorte, porém, impende afirmar que, com inteiro acerto, se conduziu, nesse passo, o v acórdão ora recorrido. Com ele está a melhor doutrina nacional e estrangeira, recolhida por CASTRO NUNES, a qual lhe permitiu assim concluir: “Na verdade, os tribunais não se envolvem, não examinam, não podem sentenciar, nem apreciar, na fundamentação das suas decisões, as medidas de caráter legislativo ou executivo, políticas ou não, de caráter administrativo ou policial, sob aspecto outro que não seja o da legitimidade do ato, no seu assento constitucional ou lega1. Mas, nessa esfera restrita, o poder dos tribunais não comporta, em regra, restrição fundada na natureza da medida” (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 607). No mesmo sentido é a jurisprudência do eg. STF de todos os tempos, rememorada pelo eminente e saudoso Ministro LUIZ GALLOTTI, ao relatar o MS n. 1.959, julgado em 23.01.57, invocando decisões anteriores (EDGARD COSTA, “Os Grandes Julgamentos do STF”, vol. III, 1964, ps. 204 e segs.; REVISTA FORENSE, 148, ps. 152 e segs.) Da ementa do julgado, destaco:
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“Desde que se recorre ao Judiciário, alegando que um direito individual foi lesado por ato de outro Poder, cabe-lhe examinar se esse direito existe e se foi lesado. Eximir-se com a escusa de tratar-se de ato político seria fugir ao dever que a Constituição lhe impõe, maxime após ter ela inscrito, entre as garantias fundamentais, como nenhuma outra o fizera, o princípio de que nem a lei poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual.” Dita orientação foi reiterada no RMS n. 11.140, MT, julgado em 10.06.63 (RDA, vo1. 74, ps. 267/71). O princípio aí aludido constava da Constituição de 1946, art. 141, § 4.º, e se repetiu nas de 1967, art. 150 e Emenda n. 1/69, art. 153, em parágrafo, na mesma ordem o 4.° . Cabe, agora, enfrentar o mérito da relação jurídica em apreciação, Objeto do recurso extraordinário, e através do qual os inconformados recorrentes esperam que o eg. STF lhes repare a lesão do direito individual, o qual não lhes atendeu o r. acórdão ora impugnada. 3. Penso, data venia, que não se houve com o costumado acerto a douta maioria do eg. Tribunal, como, de resto, bem mostraram os votos vencidos, totalizando 10, alguns dos quais proficientemente fundamentados. Com efeito. Nem as disposições regimentais, nem os preceitos constitucionais pertinentes, antes transcritos e sobre os quais se armou o dissídio impõe a maioria absoluta de votos da totalidade do Legislativo, para autorizar a proclamação dos candidatos como eleitos, em primeiro escrutínio. O que o art. 31 da Carta Maior estatui e os demais, Constituição do Estado e Regimento Interno, dispõem, em seqüência obrigatória e simétrica, é que as deliberações sejam tomadas por maioria de votos, com a presença da maioria absoluta dos membros que integram o órgão (Câmara e Senado, no plano federal, e Assembléia Legislativa e Câmara Municipal, no plano estadual e municipal, respectivamente).
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128 O mandamento que se contém no citado art. 31 condensa, como tantos outros, princípio organizacional, também chamado básico, essencial ou sensível, ao qual ficaram sujeitos os diplomas de menor alcance, como os dos Estados e Municípios. O que se permitiu, no particular, ao constituinte local e ao serem versadas normas regimentais, foi, sem desfigurar o standard federal, disciplinar, formalmente, a eleição, como modalidade de deliberação, sem jamais, repita-se, afetar a substância daquele, pertinente a matéria eleitoral, ou seja, o quorum para validar as eleições e o quantum dos votos para apuração do resultado. E assim sucedeu. A Constituição do Estado, no art. 13, repetiu a determinação da Federal. art. 31. Apenas, em seu parágrafo único, dispôs sobre a forma de exercício do voto, a qual determinou fosse secreta para as eleições e nas hipóteses por ela previstas. A sua vez, o Regimento Interno minuciou o aspecto formal da eleição: requisitos das cédulas, meio de utilizá-las, designação dos escrutinadores, apuração do resultado e sua proclamação, bem como o momento da posse dos eleitos. É o que se lê no art. 15, b, c, d, e §§ 1.º e 2.°. Identicamente sucedeu com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 7.°, e seus respectivos incisos. E, reitere-se, tinha que, realmente, ser assim, como conseqüência do rígido sistema que, bem ou mal, não vem ao caso averiguar, se iniciou em 1934 e se fez mais sensível com o advento da Carta de 1967, bem como da Emenda n. 1/69, art. 13 e seus incisos, especialmente, o II, e o § 1.º. A propósito, escreve o eminente Ministro OSWALDO TRIGUEIRO, em seu festejado Direito Constitucional Estadual, FORENSE, 1930, ps. 135/6: “A partir da Constituição de 1934, entretanto, o direito federal vem impondo aos Estados um tipo de governo cada vez mais padronizado de tal sorte que o poder de auto-organização essencial à existência do regime federal está reduzido a uma “ficção, que não disfarça convincentemente, o unitarismo de um fato que está asfixiando o Estado.”
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129 E, em outra expressiva passagem, versando sobre o quorum, afirma, p. 149: “A aprovação de qualquer proposição, pressupõe, necessariamente, manifestação da vontade dos membros das Casas legislativas, através do voto. A forma de votação é matéria geralmente definida nos Regimentos Internos que dispõem sobre as várias maneiras de colher os votos dos legisladores, voto público ou secreto voto nominal ou voto simbólico, bem como sobre o quorum exigido para as diversas votações. Em seu exagerado casuísmo, porém, a Constituição Federal vigente (art. 31), estabelece que, salvo disposição em contrário, as deliberações de cada Câmara serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria dos seus “membros, ... funcionando com a presença da maioria (metade mais um) dos presentes (metade da metade e mais um). uma Assembléia de 35 Deputados, para exemplificar, pode aprovar qualquer proposição por apenas 10 votos favoráveis.” No mesmo sentido é o magistério de MARCELO CAETANO, após enumerar numerosos julgados do eg. STF, de um dos quais destacou síntese feliz e muito expressiva do voto do saudoso Ministro RODRIGUES ALCKMIN, proferido na Representação n. 392 RS. da qual fui Relator e cujo acórdão se encontra publicado na RTJ, vol. 66, ps. 659/71), verbis: “A obediência aos princípios federais tem sido um standard da constitucionalidade dos dispositivos das leis maiores dos Estados” (“Direito Constitucional”, FORENSE, II, p. 301) . Dito destaque veio a ser repetido em ementa a posterior julgado, qual seja a Representação n. 949-RN e da qual foi Relator o eminente Ministro CORDEIRO GUERRA (RTJ, 81, p. 332). Na mesma esteira, PONTES DE MIRANDA (“Comentários da Constituição de 1967, com a Emenda 1, de 1969”, ps. 312/3), MANOEL G. FERREIRA FILHO (Coments. à Const. do Brasil, Ed. Saraiva, I, ps. 117 e segs.) e outros.
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4. De outra parte, não há como pretender excluirse da expressão deliberações, da qual se serviram os textos constitucionais em comentário, a matéria referente às eleições. Estas (as eleições) constituem a espécie; aquelas (as deliberações) o gênero. Umas e outras representam a forma pela qual os entes coletivos exprimem a sua vontade, através do voto. CARVALHO SANTOS, em seu “Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro”, vol. 5, ps. 159/61, enumera, com detalhes, as formas várias de deliberação através do voto, tanto no Direito Público como no Privado. Demais, no caso particular do Rio Grande do Sul, o parágrafo único do art. 13 da Constituição dirimiu quaisquer imprecisões, porventura existentes, ao especificar, expressamente as eleições, o que não teria sentido, se das deliberações não cuidasse o artigo ao qual se agregou. Igual dispositivo sé encontra nas constituições dos Estados, além de outros, São Paulo e Pernambuco, arts. 7.º, I e II, e 2.º, parágrafo único, respectivamente. 5. Dessarte, cogente o princípio federal que dispõe sobre as deliberações dos Legislativos, nelas se incluindo, evidentemente, as eleições, todos em perfeita convivência, resta, apenas, apurar o número real de votos do candidato para lhe assegurar a vitória. E outro não pode ser senão o da maioria dos presentes, únicos votantes, satisfeito o quorum deliberativo, ou seja, a presença da maioria absoluta dos componentes do órgão. 6. É mais do que fácil evidenciar esta verdade, de resto já acentuada no desenvolvimento do assunto. Efetivamente. Duas são as condições impostas na apuração do resultado da eleição para os cargos da Mesa. A primeira é o quorum para validar o funcionamento do órgão quando se dispõe a tomar deliberações através do voto; e ele é o da maioria absoluta dos integrantes, ou seja o número imediatamente superior à metade dos Deputados, tal como estatui o art. 15, a, do Regimento, cópia fiel do art. 7.°, I, do Regimento da Câmara dos Deputados.
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131 Ditos instrumentos (Regimentos), explicitaram as expressões das Constituições: “maioria de seus membros” (Federal. art. 31) e “maioria dos membros da Assembléia” (Estadual, art. 13). A outra condição é que os candidatos que disputam as eleições obtenham a maioria absoluta de votos daqueles que formam o citado quorum, ou seja, dos presentes, pois, os ausentes, como é óbvio, não votam, sequer por ficção ou simbolismo. Para que pudessem se servir desse meio (voto simbólico) era mister que houvesse autorização expressa como sucede no eg. STF, através de seu Regimento Interno quando dispõe, art. 12, § 3.°, verbis: “Considera-se presente à eleição o Ministro, mesmo licenciado, que enviar seu voto, em sobrecarta fechada, que será aberta publicamente pelo Presidente, depositando-se a cédula na urna, sem quebra do sigilo.” Tal dispositivo inexiste para as eleições nos Legislativos, nem lhe é peculiar, o que importa reafirmar que os únicos votos computáveis são os dos presentes. É o que, de resto, está expresso no debatido Regimento, art. 15, e, com o acréscimo, “em primeiro escrutínio”, ou como estatui o Regimento da Câmara dos Deputados, art. 7.º, XI, verbis: “ ... maioria absoluta dos votos dos membros presentes para a eleição, em primeiro escrutínio” . Aqui, as locuções regimentais explicitaram as palavras de que se serviram as Constituições “maioria de votos”, iguais em ambas (Federal e Estadual). 7. Acentue-se que a maioria absoluta não constitui uma expressão vaga, imprecisa, indeterminada. Ela exige sempre um padrão de referência, como, de resto, se faz expressa a própria Lei Maior, fonte e manancial primário - e da qual deve brotar a mais pura orientação exegética dos demais preceitos de inferior hierarquia e com os quais se relaciona. Veja-se o que dispõe o art. 116, ao cuidar da declaração de inconstitucionalidade. A maioria absoluta nele introduzida está determinada com o padrão de
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132 referência “de seus membros ou do órgão Especial”. Igualmente o art. 144, a, b e c, e III, quando se utiliza das expressões “maioria absoluta de seus membros, ou dos Desembargadores” ao versar o delicado tema da recusa ao acesso dos juizes. Preceitos outros e muitos poderiam ser trazidos em abono deste entendimento, todos extraídos da Constituição. Dessarte, as expressões de que se serve o Regimento, art. 15, e, “maioria absoluta”, sem qualquer padrão especificativo,· por certo que não quis se subentendesse dos integrantes da totalidade do órgão, como explicitou na alínea a, mas a dos presente, pois desses é que passou a versar, após estatuir o quorum deliberativo. Esta, demais é a conclusão que se extrai da interpretação sistemática de todo o dispositivo, a qual não difere, todavia, da sua exegese gramatical, ou seja da norma, em particular exame, a alínea e. 8. E tanto o quorum deliberativo como o critério para apurar o resultado das deliberações somente foi excepcionado, nas hipóteses previstas na própria Constituição. Assim dispõem os arts. 31 e 13, in principio, respectivamente, das Cartas Federal e Estadual. Em sintonia com eles os arts. 40, I, 42, parágrafo único, 48, 50, 51, § 3.º, da última, aos quais correspondem os arts. 14. § 5.°, 36, 37, § 3.°, 48, 62, 73, § 1.º, da primeira das Constituições. E, note-se, o quorum de exceção que, em todas as citadas disposições se especificou, guarda inteira simetria, obediente o estadual ao federal, e tinha que ser, como de resto, tem entendido o eg. STF em numerosos julgados proferidos em Representações (RTJ, 90, ps. 1/11; 81, ps. 332/6; 57, ps. 358/83;52, ps. 501/27). 9. Por fim, acentue-se que, no fundo, em verdade, o sistema deliberativo dos Legislativos não se alterou no regime republicano, desde a Constituição de 1891. Veja-se a velha mas sempre nova lição de AURELINO LEAL, em sua “Teoria e Prática da Constituição Brasileira”, I, 1925, p. 89:
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133 “Quorum parlamentar. Chama-se quorum o número de representantes necessários ao funcionamento de uma Câmara Legislativa. No art. 18 a Constituição estabelece regra geral de um duplo quorum para as votações: presença da maioria dos membros de cada uma das Câmaras, e o assentimento da maioria absoluta destes. Nas votações a maioria absoluta dos presentes é contada dentro da maioria absoluta dos membros da Câmara.” No mesmo sentido é o magistério de AGENOR ROURE (“A Constituição Republicana”, r, 1920, p. 427), JOÃO BARBALHO, (“Constituição Federal Brasileira”, Comentários, 1924, p. 89) e CARLOS MAXIMILIANO Comentários à Constituição Brasileira”, 2.ª ed., ampliada, p. 298). Com o advento da Constituição de 1946, o critério não se alterou, como mostra PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1946”, II, 1953, p. 238). A transição, a partir de 1934, e, notadamente a da Carta de 1967, foi apenas pelo aspecto absorvente e determinativo, imposto pela nova ordem federativa, a qual limitou aos Estados o poder de auto-organização, como já foi versado, jamais afetando o critério nas deliberações. Assim, sem nenhum proveito a invocação do v. acórdão recorrido aos precedentes, referentes a eleições pretéritas da Mesa, exigindo, para os então eleitos, maioria absoluta de votos da totalidade dos Deputados. O fato, por si, não geraria nenhum direito, nem comprometeria critério diverso em eleições futuras. De qualquer sorte, porém, após o advento da constituição de 1967, como já ficou sustentado, tal critério não poderia prevalecer, mesmo que viesse a ser aceito pelo Regimento, o que não sucede, porque, em tal hipótese, inconstitucional seria o Regimento, por contrariar o já comentado art. 31 da Carta Maior. 10. A longa, e, por vezes, insistente e reiterada argumentação deduzida evidencia o bom direito sustentado pelo impetrante e os litisconsortes
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134 ativos fortes todos nos textos constitucionais da República e do Estado, à sombra dos quais cabe buscar a legítima exegese das normas regimentais pertinentes. Todavia, o v. aresto do eg. Tribunal não lhes reconheceu, negando-lhes o direito líquido e certo que postularam através do mandado de segurança. 11. Para fazê-lo, como se apura da ementa transcrita, fiel ao pensamento da douta maioria, considerou: a) que, segundo o Regimento da Casa a “maioria absoluta” para a eleição da Mesa, em primeiro escrutínio, diz respeito à totalidade dos deputados que compõe o Legislativo; b) que tal conclusão exegética decorre do próprio conceito de “maioria absoluta” que está sempre relacionada ao todo, a menos que haja restrição expressa e esta seria a tradição da Assembléia; c) que a regra regimental assim interpretada não afronta os arts. 31 e 13 das Constituições Federal e Estadual que prevêem “maioria simples” para quaisquer deliberações, menos as administrativas, onde se incluem as eleições, disciplinadas pelo poder de organizar-se, segundo outorga também constitucional, art. 30. 12. Considero que, em assim procedendo, o aresto recorrido deu ensejo ao recurso extraordinário para o eg. STF, com seguro embasamento no art. 119, III, a e c, da Constituição Federal. Quanto à primeira alínea porque contrariou o seu art. 31, combinado com o art. 13 e seus incisos, especialmente o II, e o § 1.º; e quanto à segunda (letra c), eis que o ato impugnado foi, desde a petição inicial, e até antes dela, perante o próprio Legislativo, ao ensejo da eleição, contestado ante a citada Carta, com base nos já referidos artigos, e, não obstante, o acórdão julgou válido o ato incriminado. Realmente. Não esteve bem inspirada a honrada maioria do col. Colegiado local.
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135 Como já se fez acentuar, a regra que se contém no art. 31 da Constituição Federal, ao qual corresponde o art. 13 da Estadual, é cogente aos Estados, cujo poder de auto-organização ficou “limitadíssimo”, na expressão do Ministro OSVALDO TRIGUEIRO, em passagem já transcrita, afetando até os lindes dos Regimentos Internos dos Legislativos. E ao fazê-lo, usando a expressão “deliberações”, compreendeu a todas, salvo aquelas que ela própria, constituição, explicitou, como, de resto, o fez, de forma expressa, a Constituição do Estado, em seu art. 13, melhor elucidado, no particular das eleições, através de seu parágrafo único, como também já foi longamente demonstrado. Assim, seja no pertinente ao poder regimental de auto-organizar-se, seja na função mais ampla de administração, a depender de deliberação do órgão, seja, enfim, no âmbito legiferante, tudo segue a regra segura e límpida do citado art. 31, salvo nas expressas exceções consagradas no texto constitucional, também já comentadas, e nas quais não se incluíram as eleições da Mesa. Orientando-se diversamente, por certo, o acórdão contrariou e de frente o comentado art. 31, ao qual se pode conjugar, como reforço, o art. 13, e seus incisos, notadamente o II e o § 1.°. É o suficiente para justificar só por si o conhecimento do recurso e o seu provimento, como bem o situou e propugnou a petição de recurso extraordinário, a qual tem inteiro apoio nas considerações anteriores deste parecer fundadas na jurisprudência da eg. Corte Suprema, acorde com a melhor doutrina. Mas não é só. O excepcional oferece igual consistência quanto ao segundo fundamento, letra c. O ato do Senhor Presidente da Assembléia ora impugnado é “ato do governo local”, a que se refere a mencionada letra c, no conceito que lhe atribuem os doutrinadores (AMARAL SANTOS. “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, 3.º vol., 3.ª ed. Saraiva, n. 825, ps. 156/7; JOSÉ AFONSO DA SILVA, Recurso Extraordinário no Direito Processual Brasileiro, RT, 1963, n. 99, p. 224).
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136 E dito ato, contestado, nas circunstâncias já referidas, perante o art, 31, c/c o art. 13 e seus incisos especialmente, o II e o § 1º, não logrou sucesso perante o eg. Tribunal, o qual deu por sua validade. Entretanto, a argüição de inconstitucionalidade ao aludido ato é mais do que razoável, o que justifica o conhecimento da irresignação derradeira, nos termos da Súmula n. 285. E ainda, o seu provimento, pelas razões constantes da petitória recursal e amplamente desenvolvidas neste parecer. 13. Dessarte, seja pelo primeiro, seja pelo segundo dos fundamentos deduzidos. ou por ambos, o que seria mais coerente, é de esperar-se o conhecimento e o provimento do recurso extraordinário por essa col. Suprema Corte, deferindo-se o mandado de segurança, nos próprios termos do pedido, fazendo, assim, como sempre, a melhor Justiça. 14. Por último é de notar-se que o r. julgado impugnado, ao impor condenação em honorários de advogado Em ação de mandado de segurança, dissentiu da jurisprudência do eg. STF, cristalizada em sua Súmula, verbete n. 512, o qual foi mantido mesmo após o advento do vigente C. Pr. Civ., como se vê de julgados vários de ambas as Turmas (RTJ, 95, ps. 404 e 428), onde são invocados precedentes outros. Justifica-se aqui o conhecimento e provimento do recurso com assento na letra d do permissivo constitucional.” (23)
Da mesma forma, parecer que enfrentou questão pouco versada na doutrina e na jurisprudência acerca dos limites do poder do Tribunal de excluir candidato aprovado no concurso para a magistratura. A respeito, anotou o Ministro Thompson Flores, invocando a sua longa experiência de magistrado, verbis: “Versa a espécie sobre o citado ato administrativo, na sua fase primeira, antes da indicação dos concorrentes aprovados e classificados para sua regular nomeação. Em dita fase, o procedimento concursal divide-se em outras tantas, as quais integram o que os autores denominam fases progressivas ou sucessivas (O.
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Ranelletti, in Le Guarentigie della Giustizia nella Pubblica Ammnistrazione, 4ª ed., Dott. A. Giuffrè Editore, 1934, p. 117, n. 76). Assemelha-se o concurso a uma espécie de escada, cujos degraus têm área própria e devida destinação. Por eles, degraus, vai ascendendo o concorrente, conquistando, em cada um deles, um relativo direito subjetivo. Parecem-me os concursos para provimento dos cargos públicos, especialmente os dos juízes, de maior qualificação, às licitações nas concorrências públicas, como fazem notar os tratadistas da matéria. Deles, limito-me a indicar, por sua habitual clareza, o sempre consultado Professor Hely Lopes Meirelles, em várias de suas obras, inclusive Pareceres, e das quais destaco seu considerado Direito Administrativo Brasileiro, 5ª ed., ps. 396 e seguintes, e a clássica Licitação e Contrato Administrativo, 3ª ed., ps. 117 e seguintes, todas elas ilustradas com julgados, especialmente do Egrégio S.T.F. 4.1. O que brota da simples leitura do edital em comentário é o que acaba de ser afirmado. Sua clara linguagem e disciplinação, referente às várias fases do certame, mostra a sua racionalidade, permitindo verificar, como nas concorrências públicas já citadas, que, cumpridas que sejam pelo concorrente, completam-se, ultimam-se, a elas não mais se retornando. Certamente não se afirmará que gozam, cumpridas, do poder da res judicata, mas, porque definitivas, não se reabrem. 5. Com efeito. O edital que rege o presente concurso, nº 24/83, é longo, detalhado e bem sistematizado. Proporciona, assim, fácil compreensão. É penoso para o concorrente pelas exigências muitas que lhe impôs cumprir. 5.1. Começa ele disciplinando o pedido de inscrição provisória, n. 1, seguindo-se a chamada “Fase Preliminar”, n. 2. Nessa se realiza a nominada “prova escrita preliminar”, dividida em duas partes devidamente esclarecidas, ns. 2.1 a 2.6. Aos que forem nela aprovados, proporciona-se o direito de requererem a “Inscrição Definitiva”, n. 3.1,
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impondo ao requerente, além de petição detalhada, a apresentação de novos documentos, n. 3, alíneas a e e. Convém, desde já, sublinhar o que estatuem seus sub-itens, 3.2 a 3.4. Dizem eles, verbis: “3.2 O Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em sessão secreta decidirá, conclusivamente, e por livre convicção, a respeito da admissão dos candidatos aprovados na prova escrita preliminar, atendendo às suas qualidades e aptidão para o cargo. 3.3 A Comissão colherá informes sobre os candidatos, procedendo à sindicância da vida pregressa e investigação social. 3.4 Os candidatos aprovados na prova preliminar serão submetidos a entrevista com a Comissão de Concurso”. 5.2 Sucessivamente seguem-se as “Provas Escritas”, n. 4, disciplinadas nos sub-itens 4.1 a 4.6; “Prova Oral”, n. 5.1; a de “Aferição dos Títulos”, n. 5, integrada pelos sub-itens 5.1, alíneas a a n, e 6.2 a 6.5; as dos “Exames de Saúde, Física e Mental e o Psicotécnico”, n. 7. Atinge-se, assim, a cognominada “Nota Final”, n. 8; e, à derradeiro, o “Julgamento do Concurso”, n. 9. Encerrase com os esclarecimentos do prazo de “validade” do concurso, n. 10. Segue-se a da “Nomeação”, n. 11, “Observações Gerais”, ns. 12 a 12.5; e, para encerrar, o de n. 13, o da “Comissão de Concurso”. 6. A requerente submeteu-se a todas elas e as satisfez, cumpridamente, tanto que atingiu àquela da aprovação e subsequente classificação, cabendo-lhe o 51º lugar, em lista que foi divulgada. 6.1 Foi aí que aconteceu o pior, resultando, após dita divulgação, omitido o seu nome ao ser publicada a relação no D.O. de 22.05.85. Continua ela a ignorar o motivo da exclusão, ainda que, em reclamo administrativo, o propugnasse, sendo ele indeferido, o que lhe obstou qualquer gênero de defesa da presuntiva ocorrência da falta, a qual há de ser grave, face ao grau de penalidade
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139 que lhe foi imposta, com o elenco de efeitos, os mais variados e negativos, quanto à sua personalidade. Observo, data venia, que em épocas passadas, como já salientei atrás, diversa era a orientação da Colenda Corte. Vigilante sempre como me impendia o ser, como os demais Colegas, estive sempre atento a repelir concursandos sobre cuja idoneidade moral pairasse dúvida. E isto desde os momentos iniciais de análise da inscrição. Nessa fase, fazendo-o discricionariamente, como já era admissível (M. Petrozziello, in Il Rapporto di Pubblico Impiego, Società Editrice Libraria, 1935, p. CLI). Mas, note-se, procedia o Eg. Tribunal diversamente quando a acusação ocorria em fases posteriores do concurso, quaisquer que fossem elas, mesmo à altura posterior a da aprovação e prestes à indicação dos candidatos já classificados. Ouvia-se, nesse ínterim, o acusado para que a conhecesse, oferecesse defesa e, se o quisesse, apresentasse provas. Em sessão secreta, o Tribunal apreciava o ocorrido e decidia, por maioria de votos, pela sua procedência ou não. Excluía-se o concorrente na primeira hipótese, ou mantinha-se-o no lugar conquistado na segunda. E assim era o seu procedimento habitual, repetido e unânime, isso porque seu ato administrativo era, manifestamente, regrado, em harmonia com os termos da lei e em consonância com as garantias que a Constituição assegurava ao candidato. Em precioso estudo intitulado “L’Esclusione dai Pubblici Concorsi e L’art. 51 della Costituzione”, publicado na renomada Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1952, conclui, em significativo trecho, Giovanni Miele, verbis: “Quindi, di fronte a un atto amministrativo lesivo di un diritto o interesse legittimo v’è sempre la possibilità della tutela giurisdizionale; ma, poichè la lesione di un diritto o interesse legittimo può essere in relazione ai motivi determinanti dell’atto, la persona cui il provvedimento si riferisce deve essere messa in grado di conoscerli. Ne consegue allora, che, allo stesso modo in cui gli altri elementi rilevanti per la legittimità dell’atto risultano o debbono risultare dall’atto stesso, come la
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competenza, l’osservanza delle forme e della procedura, la menzione che è stato udito un parere obbligatorio, così parimenti deve risultare dall’atto la specificazione delle ragioni giustificative che siano giuridicamente rilevanti per la legittimità di esso”. 7. Considero, por isso, data venia, que mal orientada esteve a Egrégia Corte ao proferir a deliberação com respeito à requerente. 8. A análise do edital do concurso não autoriza, data venia, a exclusão comentada. Realmente, e cabe insistir. Em duas oportunidades o respeitável Órgão Especial do Tribunal de Justiça examina e decide a respeito da idoneidade do concorrente: primeiramente, na chamada “Inscrição Definitiva”, ns. 3 e 3.2; posteriormente, a segunda das fases para o exame da honorabilidade do candidato é a do “Julgamento do Concurso”, n. 9, e, em especial, n. 9.1. Convém ter presente essas normas indicadas, as quais me abstenho de transcrever para não estender em demasia o presente pronunciamento, posto que as recordando a cada passo, pois elas são decisivas para apreciar o procedimento recursal. 8.1 Na primeira fase, o poder da Corte é discricionário, tal como o conceitua a doutrina e repetem os julgados dos Tribunais. Na segunda das fases indicadas seu poder é regrado, como em qualquer outro momento, até o da posse do candidato. E, ocorrendo a indicação da falta, o comportamento do Tribunal é diverso, obrigado que está a convocar o acusado, revelando-lhe em que consiste a inculpação. Oferece-lhe, então, oportunidade de defesa e até de produção de provas. Secretamente as examina e decide, já não mais de plano e conclusivamente, como sucede quando dispõe do poder discricionário, posto que com base no livre convencimento, e conclui por sua procedência ou não, com os efeitos daí emergentes e já considerados, como é próprio do ato regrado.
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141 O cuidado que deve orientar o Tribunal no exame da honorabilidade dos candidatos à judicatura é questão que me dispenso de considerar, pois é conhecido o alto proceder com que sempre atua a mais alta Corte de Justiça local. Ora, se a honradez do cidadão merece integrar sua personalidade, admitindo presuntivamente sua ocorrência, com mais forte razão a do funcionário público que dispõe de parcela de autoridade, notadamente o juiz, que vai julgar os atos de seus jurisdicionados, nos mais variados sentidos, seja na família, como marido e pai; seja no ambiente de trabalho, quando pratica tantos atos administrativos, no exercício da função, quanto na tela criminal, quando aplica as mais graves sanções. São os magistrados como a mulher de César, sejam, em realidade, honrados, mas parecerem o ser, como requer a comunidade onde irão praticar o seu delicado ofício. 8.2 Não foi em vão que o Egrégio Tribunal de Justiça, ao ser procedida a adaptação da Constituição do Estado à Carta Federal, propôs - e a Colenda Assembléia Legislativa aceitou - a adaptação que constou do novo texto constitucional do Estado, em seus arts. 109, V, e 115. Todavia, o Governador representou à ProcuradoriaGeral da República arguindo a inconstitucionalidade dos preceitos citados, além de muitos outros. Tomou dita Representação o nº 749 e foi julgada improcedente (Representações no S.T.F., t. II, ps. 206 e seguintes; RTJ, vol. 50, ps. 738 e seguintes). Criou-se, na ocasião, a figura do Juiz Adjunto, estatuindo-se que só se tornaria Juiz de Direito aquele que, depois de ultrapassado o prazo de dois anos da investidura no cargo para o qual havia prestado concurso apenas nas provas intelectuais, prestasse, agora, decorrido o biênio, concurso de títulos. A excelência do novo sistema, salientei então, e com ligeiras modificações de forma, consta hoje da Carta local, Emenda n. 7. 8.3 Invoco o precedente para mostrar que a vigilância dos Órgãos Disciplinares não se finda com os concursos,
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142 sobre os quais se discute neste mandado de segurança. Prorroga-se, ela, pela vida inteira dos magistrados em atividade. E ela se torna quão mais fácil, proveitosa e salutar ao Poder Judiciário quando antes de adquirir o magistrado as prerrogativas de juiz vitalício. Ela já ocorria, há anos, no Estado de São Paulo, no extinto Estado da Guanabara, onde o prazo era de quatro anos, e, pelas virtudes do sistema, outras unidades da federação o aceitaram. É que, até então, precárias eram as condições para examinar de requisitos outros a satisfazer pelo juiz, além daqueles comprovados no concurso de provas. Os que versaram os predicamentos impostos aos bons juízes os destacam em suas obras, votos e artigos de doutrina (Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional; identicamente o salientou o julgado em M.S. n. 2.267, em 30.11.53, publicado na R.D.A., v. 60, ps. 120/3). O Diagnóstico elaborado pelo S.T.F. sobre a Reforma do Poder Judiciário realizada em 1977, quando eu exercia a Presidência daquela Alta Corte, depois do estudo meditado dos mais de noventa volumes com proposições dos Tribunais e mais aquelas que constam hoje de seus arquivos, o salienta. Igualmente o faz a Proposta de Reforma do mesmo Estatuto, em 11.05.56 (in R.D.A., v. 46, ps. 54 e seguintes). Cabe ler, para melhor ilustrar, todo o debate que se fez na Egrégia Suprema Corte quando, larga e profundamente, houve por bem rejeitar a inconstitucionalidade da representação, no particular, para se verificar a importância que aquela Corte emprestou aos predicamentos impostos aos juízes (Rp. n. 749, in R.T.J., v. 50, p. 738 e seguintes). 8.4 Essas observações que acabam de ser feitas para bem evidenciar a exigência mais que indórmita que se reclama quanto aos juízes e dos Órgãos Superiores que sobre eles têm jurisdição, notadamente disciplinar, - faltas de ordem moral e social - acaso ocorrentes, ao menos a eles imputadas, impõe-se, como não poderia deixar de ser, sob pena de contrariar a Constituição, assegurar-lhes toda defesa, dependendo os procedimentos adotados dos
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143 direitos subjetivos que já dispõem, tal como estatuem os diplomas citados. E acentue-se que sempre opera-se veladamente, discretamente e até, por vezes, secretamente, para assegurar, a cada passo, a discrição na sua apuração, em prol do Poder Judiciário. Falam por si alguns julgamentos ocorridos na Suprema Corte, muitos dos quais participei, como se vê das publicações já feitas (R.T.J., v. 85, ps. 986 e segs.; v. 86, ps. 619 e segs.; v.89, ps. 846 e segs.; e v. 109, ps. 48 e segs.). 9. In caso, a requerente foi excluída, cancelando-se a sua inscrição sumariamente, nas circunstâncias já por vezes várias sublinhadas, quando, até então, sua inscrição prevaleceu para justificar as muitas provas que lhe sucedeu. Procedeu a Egrégia Corte como se dispusesse do poder discricionário que já não possuía, o qual era evidentemente regrado. Obrigado, então, ao exercício de atividade sujeita à disciplina legal, seja como se deduz das disposições constantes do edital já comentado, as quais condensam toda a legislação pertinente, seja da própria Constituição, ao calor das quais devem ser consideradas e obedecidas. 9.1 Na espécie já tão examinada, omitindo-se o Colendo Tribunal em proporcionar à requerente, como lhe cumpria, o direito de defender-se, praticou ato administrativo eivado de nulidade mortal, tal como dispõe o Código Civil, art. 145, IV, aplicável também aos atos administrativos, na lição unânime dos autores, como já salientava há anos o Mestre saudoso Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, 5ª ed., 1982, p. 94), combinado com o art. 153, §§ 15, 21 e 4º, da Constituição Federal de 1969. Outro não é o ensinamento de Raphael Alibert, em sua obra clássica Le Contrôle Juridictionnel de L’Administration, Paris, 1926, pp. 221/2, verbis: “Le vice de forme en droit administratif est une nullitté qui provient de la violation de formes édictées par les lois et règlements. Cette nullité existe sans texte et elle est en principe absolue. Les formalités administratives ne sont pas des procédures de pure forme dont il serait loisible à l’administration d’éluder l’accomplissement. Ce sont
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des garanties accordées aux administrés; elles sont pour eux la contre-partie des pouvoirs exorbitants de l’administration, ainsi qu’une assurance contre le risque des décisions hâtives, mal étudiées et vexatoires. Elles sont en principe d’ordre public”. 9.2 É lamentável que a Egrégia Corte tenha procedido contra a lei, realizando o ato impugnado, deslembrada de assegurar o direito de defesa à concorrente, máxime nas circunstâncias em que o fez. Dito direito é inato à criatura humana. O próprio Deus, o mais sábio e justo dos juízes, assim o entendeu, apesar do seu poder total, desde o princípio do mundo. Externou-o ao ser cometido o primeiro homicídio ocorrido sobre a Terra, quando Caim, levado pela inveja, matou seu irmão Abel. São palavras do Senhor, segundo a Bíblia Sagrada, Genesis, cap. 4, n. 9: “E o Senhor disse a Caim: onde está teu irmão Abel ao que Caim respondeu. Eu não sei. Acaso sou eu guarda do meu irmão?” E consta do mesmo livro e capítulo, n. 10: “Disse-lhe o Senhor: Que é o que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama desde a terra até mim.” E, só então, o Senhor o puniu. Não se animou, o maior Juiz, a aplicar-lhe a sanção, como o fez, sem ouvi-lo para que se defendesse. E assim seguiu-se na marcha das gerações. Entre nós, o direito de defesa jamais foi ignorado e deixou de ser reconhecido. Desde o regime republicano, conforme a Constituição de 1891, resultou expresso, art. 72, § 16. Integrou, ele, as demais Constituições que àquela se seguiram: 1934, 1937, 1946, 1967 e Emenda nº 1/69, art. 153, § 15, em pleno vigor. 9.3 Por certo os fatos mais comuns ocorrem nos procedimentos criminais. Mas sempre se reconheceu a necessidade de observar-se o direito de defesa nos processos administrativos, quando do seu exame se
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145 imputa falta grave ao servidor. No presente procedimento, a toda evidência, ele é de aplicar-se, eis que trata de processo semelhante ao qual incidem normas decorrentes do Direito Administrativo. 9.4 Cabe assinalar que mesmo no regime revolucionário instaurado no País em 1964, os Atos Institucionais, embora sobranceiros à própria Constituição, reconheceram o direito de defesa, deixando-o expresso. Assim ocorreu com o primeiro deles, AI n. 1/64, art. 7º, § 4º, com a regulamentação que lhe atribuiu o Decreto nº 53.897, de 27.04.1964, art. 5º (in R.F., v. 206/434), ao impor graves sanções. No S.T.F. concorri com meu voto para anular diversas sanções impostas com base no citado art. 7º, § 4º. E o fundamento central das nulidades dos procedimentos referidos assentou na falta de audiência dos imputados, como o impunha a citada legislação. Destaco de tais julgamentos os primeiros deles, publicados na R.T.J., v. 47/211; v. 50/67; e v. 53, ps. 120 e 379. Inegavelmente o princípio em comentário, direito de defesa, aplica-se ao procedimento do concurso quando, é certo, ocorre acusação sobre o concorrente já admitido em definitivo, depois de procedido o seu respectivo exame, discricionariamente, pelo Tribunal. Certo ele não vem expresso, apesar dos detalhes introduzidos na regulamentação do concurso, seja, no edital, seja em leis outras a ele referentes. Dito direito, que o Padre Vieira acentuava em seus “Sermões” ser “sagrado”, está implícito na sua disciplinação, eis que a Constituição sobre ele incide, projetando-se com toda a força e intensidade. Cabe, aqui, invocar a lição do saudoso mestre Pontes de Miranda, em seus Comentários à Constituição de 1967 c/c a Emenda nº 1/69, t. 4º, p. 624, “c”, verbis: “Nenhuma lei brasileira pode ser interpretada ou executada em contradição com os enunciados da Declaração de Direitos, nem em contradição com quaisquer outros artigos da Constituição de 1967; porém alguns dos incisos do art. 153 são acima do Estado, e
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as próprias Assembléias Constituintes, não os podem revogar ou derrogar. Tais incisos são os que contêm declaração de direitos fundamentais supra-estatais”. 10.1 Certamente se dirá que, em sendo assim, mesmo na primeira fase do certame, havendo dúvida sobre a idoneidade do concorrente, o direito de defesa tinha de lhe ser reconhecido. Sem qualquer razão o argumento porque opera, então, o Tribunal, discricionariamente, com o poder que sempre se lhe reconheceu e sempre constou das leis e regulamentos dos concursos. E inexiste, ademais, qualquer direito do candidato de ser admitido naquele instante prefacial do respectivo procedimento. Jamais daí por diante, quando o seu pedido de inscrição já fora reconhecido como definitivo, tal como ocorreu com a requerente.” (24) A contenda foi solvida pelo Supremo Tribunal Federal, acolhendo o parecer no RE nº 116.070-RS, publicado o acórdão na RTJ 129/883. Ao analisar a prescrição da ação de cobrança de honorários advocatícios, teve oportunidade de expor os seus reconhecidos conhecimentos de direito civil, concluindo, verbis: “A) CONSIDERAÇÕES NECESSÁRIAS 1. O título de crédito que embasou todos os procedimentos dos quais se serviram os consulentes para receberem seus honorários como advogados, foi o contrato que avençaram com Lídio Floriano Melo, através de escritura pública lavrada em 31-5-1952. Com ele, contrato, instruíram a primeira das ações, a executiva, ajuizada contra Lídio em 29-11-1969; dele se serviram, após, para se habilitarem na sobrepartilha da estância “Duas Marias”, iniciada em 12-9-1974; e do mesmo instrumento se serviram para a demanda que intentaram contra os herdeiros de Lídio, a qual findou em acordo, homologado pelo juiz; e foi ele, ainda, que veio a alicerçar a ação sumaríssima, recentemente apreciada, em segunda instância, como ficou referido no capítulo anterior. 2. Das cláusulas avençadas no contrato em questão, entre outras, estatuíram as que impende serem transcritas, e que são as seguintes:
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“....................................................................... QUARTA - Em remuneração de tais serviços o outorgado LYDIO FLORIANO MELLO, por bem desta escritura e na melhor forma de direito, e, na qualidade de testamenteiro no exercício da testamentaria, se obriga a pagar aos outorgantes seus advogados, trinta e cinco por cento (35%) calculado sobre o líquido a ser apurado. - Considera-se líquido, o saldo resultante do valor real da estância “Duas Marias”, acrescido da importância correspondente a indenização devida pela ocupação do imóvel e durante todo o tempo, desde as escrituras de venda ou cessão de direitos hereditários até final liquidação - deduzidas as parcelas correspondentes ao preço, mais os juros moratórios e quaisquer benfeitorias no mesmo prédio rural, realizadas pelo comprador. QUINTA - Entende-se rescindido de pleno direito o presente contrato de honorários de advogados e sujeito, em conseqüência, o outorgado LYDIO FLORIANO MELLO, ao integral pagamento dos mesmos honorários advocatícios: a) (...) b) si esta, sem justa causa, revogar os poderes já outorgados aos mesmos; ......................................................................... OITAVA - Os honorários serão devidos aos advogados ora outorgantes, ressalvada a hipótese da referida cláusula quinta e suas letras - logo após a terminação do serviço judiciais a que se obrigaram e que deverão realizar sem dolo e nem malícia e deverão ser pagos, anual e parceladamente até final liquidação, com o saldo dos arrendamentos produzidos pelo mesmo imóvel rural. - Entende-se saldo, a importância líquida da renda, descontadas as quantias atinentes ao pagamento de impostos e taxas relativos e incidentes sobre o mesmo campo; ...” 3. Através delas, as cláusulas, em conjugação com o mandato recebido, impunha-se aos consulentes a missão de usarem dos procedimentos adequados para fazerem retornar ao acervo hereditário de Narciso Melo a estância
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148 “Duas Marias”, bem como a ele, espólio, incorporarem a indenização que apurassem em liquidação, decorrente da ilegal ocupação daquela área, ou seja, desde a posse até sua efetiva restituição. Daí os precisos termos do pedido, constante da parte derradeira petição inicial, da ação proposta, de nulidade da alienação, anteriormente transcrito, mas que convém repetir, verbis: “...devolverem ao monte da herança a estância de criar denominada “Duas Marias”, devendo, ademais, repor ao monte o valor correspondente à indenização pela fruição e ocupação do prédio rústico, acrescido dos juros legais moratórios, descontada a quantia relativa ao total do preço pago, acrescida, também, de juros legais, tudo na conformidade do que for apurado em liquidação.” 4. Por isso, os honorários contratados, em princípio, somente, seriam devidos com o cumprimento integral daquela pretensão, acolhida, sem restrições, pelo julgado final do Eg. Supremo Tribunal Federal. 5. Todavia, obstados ficaram os consulentes de levarem a bom termo o seu encargo, pela atitude do contratante, Lydio, bem como dos demais herdeiros que, posteriormente, lhes haviam outorgado procuração para a execução amigável do acórdão referido, - revogando, imotivadamente, seus mandatos. 6. A partir de então, ou, mais precisamente, quando fossem notificados dos atos revogatórios, dispensados estavam os consulentes da atividade profissional a que se haviam comprometido, sem prejuízo do direito de receberem a totalidade dos honorários profissionais contratados, tal como dispõe a cláusula quinta, letra b, do contrato, antes também transcrita. 7. Sucede que o contrato de honorários em questão, tendo em vista as condições estipuladas, caracteriza-se como especial, nominado pelos doutores, como contrato cotalício ou quota-litis. Com base nele, o quantum ajustado somente dará direito a seu recebimento, quando ocorrer lucro para o cliente, ou seja, quando a demanda proposta for julgada procedente, ainda que em parte. E é, exatamente sobre o líquido apurado que
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incidirão as percentagens ajustadas, proporcionando sua paga (PONTES DE MIRANDA, Trat. de Dir. Priv., VI, 1955, p. 151). 8. Assim, embora os consulentes se tornassem titulares do direito à totalidade dos honorários contratados, sem necessidade de prosseguirem, como advogados, na execução do acórdão final do Eg. Supremo Tribunal Federal, face à revogação do seu mandato pelos outorgantes, não poderiam eles, os consulentes, exercitá-los, desde logo; e isto porque a percentagem a eles referentes, incidiria sobre o líquido a ser apurado, definido, dito líquido, como o valor real da estância “Duas Marias”, acrescido da importância correspondente à indenização devida pela ilegal ocupação do referido imóvel, durante todo o tempo, desde as escrituras de venda ou cessão de direitos hereditários, até final liquidação, deduzidas as parcelas correspondentes ao preço, mais os juros moratórios e quaisquer benfeitorias no mesmo prédio rural, realizadas pelo comprador, tal como dispõe a cláusula quarta, antes igualmente transcrita. 9. Tudo, pois, está a mostrar que o exercício do direito assegurado aos consulentes, de receberem seus honorários profissionais, estava a depender de dois acontecimentos futuros, quais sejam: 1º) a verificação do valor real da estância a devolver; e 2º) a liquidação do valor da indenização devida pela sua ocupação, como ficou explicitado anteriormente. Eram fatos jurídicos porvindouros, inexistentes à época da revogação do mandato, e, só ocorridos anos após, o último dos quais, recentemente, com a prolação da respectiva sentença de liquidação. É a aplicação do disposto, respectivamente, nos arts. 114 e 118 do Cód. Civil, verbis: “Art. 114. Considera-se condição a cláusula, que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto. ......................................................................... Art. 118. Subordinando-se a eficácia do ato à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.”
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150 A propósito, com propriedade, acentuou o eminente e saudoso Min. Orosimbo Nonato, ao votar, como relator, no RE nº 13.386, do D.F., in Rev. For., 132, p. 420: “...É certo que, na pendência da condição suspensiva, a obligatio não se torna exigível, nihil interim debetur a condição suspensiva impede antes de seu implemento, que o ato desvele sua eficácia (vede Espínola, in Manual Lacerda, vol. III, parte 2ª, p. 294). Como disse Coviello, “il negozio esiste anche prima s’avveri la condizione, ma la sua efficacia rimane sospesa (Man. di Dir. Civ., § 134, p. 426). O que então ocorre é uma expectativa, posto que qualificada, de direito, que se adquirirá com o seu implemento.” Anteriormente, no mesmo sentido, já decidira o Eg. Supremo, ao julgar o Ag. de Pet. 4.192 do D.F., em 05-5-1926, do qual foi relator o eminente e saudoso Min. Edmundo Lins (Rev. de Direito, 83, p. 369/72). E, mais recentemente, no RE nº 83.942, em 19-10-1976, do qual foi relator o eminente Min. Cunha Peixoto (apud M. NOELI FOL. Direitos do Advogado do Paraná, p. 295/304). Esta é, ademais, a lição dos nossos tratadistas. Além de ESPÍNOLA, citado inicialmente, cabe acrescentar: CLÓVIS (Cód. Civ. Coment., I, 1931, p. 365-6); CARVALHO SANTOS (Cód. Civ. Bras. Inter., III, 1937, p. 51-63); CAIO MÁRIO (Inst. de Dir. Civ., I, 1978, p. 487-93) e outros. Inobstante, PONTES DE MIRANDA, cuidando, especificamente, dos contratos cotalícios de honorários, como, no caso, preleciona, in Trat. de Dir. Priv., VI, 1955, p. 151: “... Nos contratos cotalícios de honorários, em que a percentagem há de ser paga afinal, a pretensão somente nasce quando se procede à liquidação. Não há, aí, condição suspensiva; há direito e, ao ser feita a liquidação, pretensão.” 10. Pouco importa que, em 29-11-1969, após a revogação dos mandatos, tenham os consulentes ajuizado contra Lídio Floriano de Melo, ação executiva visando a cobrar seus honorários.
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É que, com o julgamento final da causa, tal procedimento tornou-se ineficaz; com ele, pois, não se podendo operar para o desprezo da condição suspensiva já comentada e constante do contrato. B) DA PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE AÇÃO 1. Como ficou inicialmente esclarecido, a Cda. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada, ao julgar a apelação interposta pelos réus vencidos, herdeiros nomeados de Narciso Melo, houve por bem decidir: a) por unanimidade, rejeitar as prejudiciais suscitadas pelos apelantes, de carência de ação e coisa julgada; e b) por maioria, acolher a de prescrição do direito de ação, também por eles argüída. 2. Conquanto uniformes na conclusão, reconhecendo a prescrição, dissentiram os votos vencedores na sua fundamentação. Operou o do relator com o contrato de honorários, e dele extraiu subsídios para reconhecer que o marco inicial do prazo da prescrição era o da data do julgamento final proferido pelo Eg. Supremo, ou seja, 25-11-1963, posto admitisse que, ainda que fosse ele 29-11-1969, consumada, de qualquer sorte, estaria a prescrição, sem apreciar os motivos que, porventura, tivessem interrompido o prazo qüinqüenal. Mais completo se fez o voto do terceiro juiz, Dr. Lio Schmitt, após seu pedido de vista dos autos. Embora reconhecesse ser encargo do Espólio pagar os honorários dos advogados contratados pelo testamenteiro, concluiu, inobstante, que não estava dito acervo hereditário vinculado às cláusulas do contrato ajustado apenas entre o testamenteiro e os profissionais, dado que sobre dito contrato não foram ouvidos nem o inventariante, nem os herdeiros, nem ocorreu, ademais, homologação judicial. Por isso, concluiu que o direito dos advogados de cobrarem seus honorários defluiu da data em que se verificou a revogação do mandato, quando,
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conseqüentemente, se iniciaria a contagem do prazo para prescrição. Protraiu-o, todavia, para 29-11-1969, data do ajuizamento da primeira ação de cobrança, em questão, ausente que se fizera a notificação do ato revogatório. E, como repeliu qualquer causa suspensiva ou interruptiva do prazo prescricional, aceitou sua consumação. 3. Com todas as vênias dos nobres juízes que formaram a maioria, no julgamento rememorado, tenho que não foram bem inspirados ao acolherem a prejudicial de prescrição. É o que se pretende demonstrar a seguir. 4. Como preleciona CÂMARA LEAL, em sua clássica monografia Da Prescrição e da Decadência (p. 21 e segs.), um dos fundamentos nucleares do instituto da prescrição assenta, desde o Direito Romano, na omissão, na negligência, no descaso, no desinteresse do titular do direito em exercê-lo. Assim tem decidido, também, o Eg. S.T.F. (Rev. For., 124/121-2 e 105/279-82). Foi esse o comportamento dos advogados consulentes? A resposta só pode ser, seguramente, negativa. Com efeito. Desde 1952, ou seja, há 31 anos, se entregaram os consulentes na defesa de seu constituinte, propondo, a primeira das ações por eles ajuizadas, a qual, sempre no bom combate, lograram vitoriar-se, na derradeira instância, o Plenário do Egrégio Supremo. Depois, foram as tratativas amigáveis como queriam os interessados para a execução do acórdão. Já quase exitosos, ao cabo de três anos, viram, imotivadamente, revogados seus mandatos. Daí os procedimentos de que se valeram para se verem pagos. A primeira das ações em 1969. O procedimento administrativo, ao habilitarem seu crédito nos autos da sobrepartilha, iniciada em 1974. A seguir, na outra ação proposta contra os herdeiros de Lídio Floriano Melo, a qual findou por acordo. Por último, a que se iniciou em 1981. E, tudo isso, para receberem seus honorários profissionais pelos serviços prestados. Proporcionaram
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153 seu pertinaz labor vultoso patrimônio aos herdeiros de Narciso Melo, no qual não seriam aquinhoados não fossem, repita-se, seus ingentes e longos esforços, como competentes advogados. Tudo está a evidenciar que o reconhecimento da prescrição não se poderia ter alimentado em boas fontes do Direito. 5. Como ficou bem deduzido nas considerações da seção anterior, se é certo que a revogação dos mandatos originou o direito aos advogados consulentes de receberem a totalidade dos honorários contratados, todavia, seu recebimento estava a depender das condições suspensivas introduzidas na própria avença, somente realizadas posteriormente. Basta ter presentes as cláusulas antes transcritas, que, sem dificuldade, concluir-se-á que, antes da devolução da estância “Duas Marias”, quando seria apurado o seu real valor, e se procedesse à liquidação correspondente à indenização pelo decurso de tempo da ilegal ocupação, satisfeitas não estariam as condições. É, pois, da realização de cada uma delas que se há de contar o prazo da prescrição, nos termos do art. 170, I, combinado com os arts. 114 e 118, todos do Código Civil. Em abono dessa solução, mostram-se, a meu ver, valiosas as considerações expendidas por Guillouard, em obra célebre, verbis: “...toutes les fois qu’une créance est conditionnelle, ou à terme certain ou incertain, la prescription commence non du jour où la créance est née, mais du jour où elle est devenue exigible par l’accomplissement de la condition ou l’arrivée du terme. La raison en est que la prescription suppose une négligence du créancier dans l’exercise de son droit, et on ne peut lui reprocher aucune négligence tant que la créance n’est pas exigible.” (In Traité de La Prescription, A. Pedone Éditeur, Paris, 1901, t. 1º, p. 77, n. 77) E, satisfeitas ambas, há menos de cinco anos da era em que ingressaram em juízo - 08-9-1981, os consulentes, com
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154 o procedimento sumaríssimo a que se refere o acórdão comentado, não se teria ultimado o qüinqüênio estatuído pelo art. 100 da Lei nº 4.215, de 1963. A tal conclusão se chega, operando com o contrato de honorários ajustado entre o testamenteiro e os advogados consulentes. 6. Posto tenha o douto voto do terceiro juiz reconhecido a responsabilidade do Espólio pelo pagamento dos honorários debatidos, invocando para tanto o disposto nos arts. 1760 e 1137, II, respectivamente, do Cód. Civil e do C.P.C., considerou que não estava ele, Espólio, vinculado às cláusulas do contrato e pelas razões já apontadas anteriormente. Daí não encontrar motivos para considerar as condições suspensivas nele introduzidas. 7. Penso, data venia, que o raciocínio, por demasiado simplista, não concluiu com o devido acerto. Admito, ad argumentandum, a desvinculação reconhecida. Todavia, sua razão de ser residiria no pertinente ao prejuízo que, porventura, trouxesse aos herdeiros, ou seja, no valor dos honorários, por serem exorbitantes ou excessivos, pois o dever de pagá-los o reconheceu o nobre juiz no voto em apreciação. Assim, sobre a percentagem de 35% contratada. No mais, as cláusulas são até limitativas para os consulentes. E sua invocação fala por si próprio. Ademais, a base sobre a qual assentaria o cálculo é da própria lei, e, tanto o vencimento ordinário como o extraordinário da avença, igualmente, nela assentam, como se vê, da simples leitura, respectivamente, dos arts. 97, in fine, 100, I, II e V, parte segunda, todos da Lei nº 4.215, de 1963. Assim, também, para o Espólio e os herdeiros, inteiramente válidas eram as condições suspensivas, às quais se impuseram os próprios consulentes e em manifesto favor daqueles. 8. Quando, porém, se venha a aceitar a desvinculação completa e integral do Espólio, aos termos e demais cláusulas do contrato de honorários de advogado, como quer o r. voto, ainda assim, não há, data venia, como reconhecer prescrito esteja o direito dos consulentes,
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obrigando-os a nova demanda, sabe-se lá por quantos anos ainda, para fazerem valer o seu direito, através, então, da ação ordinária de enriquecimento sem causa, direito este nitidamente pessoal, e cuja prescrição é vintenária, nos termos do art. 177 do C. Civ. (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. In: CARVALHO SANTOS. Repert. Enciclop. do Dir. Bras., v. 20, p. 237-42). Efetivamente. Brotam dos autos e dos documentos deles extraídos e que me foram presentes, de forma quase solar, que duas causas interromperam a prescrição do direito dos autores: as do art. 172, III e V, do C. Civ. Dizem elas: “Art. 172. A prescrição interrompe-se: I - (...) II - (...) III - Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário... IV - (...) V - Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.” O primeiro deles, tomado em sua ordem cronológica, é constituído pela já mencionada “CARTA DE COMPROMISSO”, subscrita pelos herdeiros, firmada em 15-9-1972, em instrumento particular, subscrito, também, por duas testemunhas, e jamais impugnado. Dele cumpre destacar duas de suas cláusulas, as de números 2 e 8. Seu texto integral é o que segue: “....................................................................... 2) Os signatários se comprometem a concordar que o imóvel em questão, seja dado em arrendamento ou parceria a terceiros, mesmo por prazo superior ao fixado para a indivisibilidade, para que, com a renda sejam atendidos os encargos do imóvel, inclusive os correspondentes às despesas judiciais e os honorários devidos pela propositura da ação de anulação da cessão ou venda de direitos hereditários a Orivaldo Lara Palmeiro e conseqüente execução da sentença; (grifei)
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......................................................................... 8) Todos os condôminos participarão na proporção de seus quinhões de todas as dívidas, obrigações e despesas contraídas ou feitas no interesse dos condôminos e referentes ao imóvel denominado “Fazenda Duas Marias” excluídas, porém NAIR MELLO e VILMA MELLO GOMES DE OLIVEIRA do que é devido pelos condôminos aos advogados Edgar Wilson Mondadori, Carlos Alberto Mondadori, Cyro de Carvalho Santos, Edilberto Degrazia e Ricardo Talaia O’Donell.” (grifei) Tenho, por inequívoco, o reconhecimento da dívida dos consulentes, referente a seus honorários, pelos herdeiros; e, assim, servindo de causa interruptiva da prescrição, na data de sua lavratura, tal como o requer o citado inciso V do art. 172, do C. Civ., antes transcrito. Trata-se de instrumento pelo qual os condôminos da estância “Duas Marias”, ainda então indivisa, se propunham arrendá-la. Por isso, comprometiam-se, como o denominaram na CARTA, a repartir as rendas que adviriam, as quais caberiam pro rata a cada um, e, bem assim, as despesas, entre as quais precisavam os honorários em questão, tendo até o cuidado de especificar a ação da qual decorriam e da sua própria execução. Dita cláusula 2 casa-se, perfeitamente, com aquela que consta do contrato de honorários, na ordem oitava e antes também transcrita, onde se declina uma das formas do recebimento dos honorários, ou seja, com os recursos das rendas da estância em questão. E reiteraram os herdeiros seu dito compromisso, incluindo outros além dos consulentes, mas que trabalharam nas causas; explicando-se a ressalva de duas delas por que se teriam proposto pagar a parte que julgavam devida, a qual resultou em depósito judicial, procedido em 1974. Nem os comentadores do preceito em menção - art. 172, V, exigem atributos outros para o ato interruptivo. A propósito, sinala CÂMARA LEAL, em sua monografia anteriormente citada, após versar o tema e a doutrina, inclusive no Direito Alemão, baseado em Plank, cuja opinião transcreve (ob. cit. p. 225), verbis:
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“....................................................................... Resumiremos, pois a interpretação do dispositivo legal, dizendo: sempre que o sujeito passivo pratique algum fato ou faça alguma declaração verbal ou escrita, que não teria praticado ou feito, se fosse sua intenção prevalecer-se da prescrição em curso, esse ato ou declaração, importando em reconhecimento direto ou indireto do direito do titular, interrompe a prescrição.” No mesmo sentido são os ensinamentos de CLÓVIS (ob. cit. v. I, p. 444, nº 5); CARVALHO SANTOS (Cód. Civ. Bras. Interp. III, 2. ed., p. 430-1, nº 7); CAIO MÁRIO (Instituições de Dir. Civ. I, 1978, p. 606). E esta tem sido a orientação da jurisprudência, sempre pacífica, do S.T.F. Votando, no julgamento do RE nº 7.952, em 20-71944, assinalava o saudoso Min. Castro Nunes: “... o ato inequívoco pode ser indireto para o reconhecimento...” (Rev. dos Tribs., 162/363). Na mesma linha é o que se lê no julgamento do RE nº 4.416, em 01-8-44, através da palavra de seu eminente e saudoso Min. Orosimbo Nonato. Admitiu ele que o ato interruptivo pudesse até ser virtual, não se fazendo mister fosse ele expresso. O que se faz necessário é que, inequivocamente, se relacione com a dívida reconhecida (Rev. For., 103/53-4). Igualmente, ficou assentado no RE nº 8.558, em julgamento de 17-10-1944, quando aquele eminente Ministro, como relator, admitiu, fundado em autores estrangeiros, que o reconhecimento em observação poderia até mesmo ser verbal, o que autoriza concluir que qualquer meio, desde que inequívoco se faz válido para o fim interruptivo (Rev. For., 105/80-1). É no sentido exposto o pensar dos doutos: BaudryLacantinerie, in Traité Théorique et Pratique de Droit Civil (De La Prescription), Librairie Du Recueil, Paris, 1899, t. XXV, p. 325, n. 529; Henri de Page, in Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, Établissements Émile Bruylant, Bruxelles, 1943, t. 7º, v. II, pp. 1.078/1.080, n. 1.194; L. Guillouard, in. Op. cit., pp. 230/2, nºs 247/248.
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158 Dispensável, dessarte, a invocação de julgados ou opiniões de doutores outros para evidenciar que a CARTA DE COMPROMISSO revela, de forma inequívoca, o reconhecimento da dívida, e, conseqüentemente, por hábil, interrompeu o prazo da prescrição na data em que foi firmada. 9. Cumpre, por fim, verificar da causa final que também teria interrompido o fluxo prescricional. Refirome a do já citado art. 172, III, pela apresentação do título de crédito no juízo de inventário. O inventário, no caso, diz respeito à sobrepartilha, procedida no acervo devolvido: a estância “Duas Marias” e o líquido apurado pela sua ilegal ocupação. Pois foi nesse procedimento administrativo que se verificou a apresentação do título de crédito dos consulentes. Dito título é o mesmo que embasa a presente ação: o contrato de 31-5-1952. Nem os autores dispõem de outro. Em decorrência dele é que o inventariante Lídio, em suas declarações, nos autos da referida sobrepartilha, procedeu à sua descrição, em 16-4-1975. Fê-lo em cumprimento ao disposto no art. 993, IV, f, do C.P.C.; e, mais tarde, no decurso do demorado andamento do feito, se dispôs à separação de bens para seu pagamento. E foi, não somente diante das declarações em apreço como da apresentação, em 21-12-1976, pelos consulentes de seu título de crédito, que, frente às impugnações dos herdeiros e do legatário, Hospital São Patrício, o juiz despachou, encaminhando a pretensão às vias ordinárias, o que ocorreu em 28-8-1980 (fl. 322), dos autos da sobrepartilha em questão. Dessarte, além da interrupção da prescrição anteriormente verificada, com a CARTA de 15-9-1972, outra se operou, posterior, com a citada apresentação do título de crédito, pelos credores, no juízo de inventário, no caso a sobrepartilha. 10. Pouco influi o largo espaço de tempo que medeou entre a citada apresentação do título, em 21-12-1976, e o despacho do magistrado, ocorrido em 28-8-1980, de resto, inferior a cinco anos. É que, enquanto, vigilantes, aguardavam o pronunciamento dos herdeiros e demais
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interessados, e processava-se o feito, até que o juiz decidisse a respeito, persistia seu propósito de cobrar, obstando fluxo prescricional. Tal comportamento dos credores, posto que, em processo de inventário, equipara-se ao ajuizamento da própria ação de cobrança, como se pode extrair da conjugação do art. 1796, §§ 1º e 2º, do C. Civ., e arts. 1018 e seu parágrafo único e 1039, I, in fine, do C.P.C. Neste sentido é a lição dos autores, dos quais invoco apenas CARPENTER (Manual Paulo Lacerda III, já cit., p. 287); ALMEIDA OLIVEIRA (A Prescrição, p. 122); OLIVEIRA CASTRO (Cód. Civ. Interp. pelo S.T.F., II, p. 77) e BRENO FISCHER (A Prescrição nos Tribunais, II, 1957, p. 288 e segs., § 253, invocando excelente julgado do Trib. de Justiça de S. Paulo, in Revista Forense, 108/316-7, da lavra do saudoso processualista Herotildes Lima, cuja expressiva ementa dispõe: “Honorários médicos. Prescrição. Interrupção. A apresentação do crédito de honorários no juízo do inventário produz interrupção da prescrição que só recomeça a correr depois de decidida a remessa do credor às vias ordinárias.” 11. A longa e detalhada exposição, por vezes até demasiado insistente, evidencia que, quando os autores, ora consulentes, ajuizaram sua ação de cobrança contra os herdeiros de Narciso Melo - 08-9-1981 - através do procedimento sumaríssimo, prescrito não se achava o seu direito, mesmo que se levasse em consideração a desvinculação completa entre o contrato de honorários e os herdeiros em questão, ora demandados. E isto porque: a) iniciado o prazo em 29-11-1969 com a propositura da primeira das ações, sofreu interrupção com o reconhecimento da dívida pela “CARTA COMPROMISSO” de 15-9-1972; b) passando o prazo de novo a fluir da última das datas, foi, novamente interrompido em 21-12-76, com a apresentação do título de crédito no juízo do inventário (sobrepartilha);
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160 c) e porque dita interrupção é de efeito prolongado (BRENO FISCHER, ob. e vol. cit. p. 288, primeira parte) só findou em 02-8-1980, quando, pondo termo ao pedido de pagamento, despachou o juiz, encaminhando os credores às vias ordinárias; contando-se daí, de novo, o prazo; d) ajuizada a derradeira ação em 08-9-1981, não decorreram os cinco anos, prazo prescricional estatuído pelo art. 100 da Lei nº 4.215, de 1963, seja da última das datas mencionadas, seja da penúltima delas.” (25)
Os seus pareceres lembram, na forma de deduzir e de concluir, o mesmo estilo dos tempos de juiz: o modo límpido e correntio que notabilizaram as suas sentenças e acórdãos. Em expressiva homenagem que lhe foi prestada pela academia, logo após a sua aposentadoria, o saudoso Desembargador Mário Boa Nova Rosa delineou com fidelidade o perfil do jurista Carlos Thompson Flores, verbis: “O juiz Carlos Thompson Flores, porque juiz ele foi todo, só e sempre, teve a Justiça, com esses conceitos, como o breviário em que assentou a sua fé no primado do Direito. Não tomou, porém, esses princípios, como armadura ou como escudo, mas brandiu-os, como lança ou como gládio, durante toda sua longa, brilhante e prestimosa vida de julgador. Mesmo afastado já da esperança sem temor, da mocidade; mas ignorando também o temor sem esperança dos que não tem mais futuro, acreditou sempre no poder da Lei e na magestade da Justiça. Foi bem o tipo clássico do magistrado de carreira, que fez do hábito de julgar um sincero apostolado e só compreendeu o Direito como uma obrigação superior, pairando acima dos interesses e das paixões. Nunca foi mero aplicador da lei; nem simples compulsador de ementários de jurisprudência; e, muito menos, um insensível aos dramas humanos que a realidade, surpreendentemente, suscita, alguns com aparência de insolúveis. Pelo contrário, timbrou sua fecunda caminhada com provas incontroversas de penetrar no âmago da lei, subtraindo da norma sua essência de justiça, para conciliar o interesse público com as pretensões privadas das partes, não sacrificando o direito, nem sendo rigoroso
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161 ao extremo, nem tolerante em demasia; porque fez dos repositórios de julgados a bússola de suas convicções sobre o contexto social do momento, sem tornar-se subserviente com o fim escuso de aumentar a probabilidade de serem as sentenças mantidas, com um falso halo de prestígio, mesmo contrariando as verdadeiras idéias de seu subscritor não reveladas; sempre se despiu do aparato de autoridade intransigente que, de fato, nunca se impõe, embora possa ser temida, para revestir-se de autoridade branda, mas firme. Proferiu decisões que ficaram assinaladas com a sua marca, pois - como refere Lourenzo Carnelli - nenhum julgador se despoja inteiramente de seus hábitos, inclinações e preferências, que gravitam em torno de suas decisões, sem que ele o queira ou saiba. Pode, se exercitar a centelha divina que Deus põe em sua mente, realizar a função criadora reclamada por Alberto V. Fernandez, advogado e professor argentino, do juiz, para quem as normas jurídicas gerais são esboços, incompletos objetos, obscuros e, às vezes, toscos, que o intérprete estuda, analisa e penetra com toda a ciência ao seu alcance. O pragmatismo de sua longa formação de juiz pareceu, quiçá, formalista ... Mas esse formalismo traduzia a pureza de seus métodos de jurista clínico, que tanto valorizava a perfeição do diagnóstico quanto enfatizava a adequação, a cada mal específico, da terapêutica própria. No mais, mesmo em questões de índole formal, foi benevolente e tolerante, trazendo aos textos rígidos e frios o abrandamento que sua inclinação temperamental impunha. Do juiz profissional, justamente envaidecido de sua carreira e da missão augusta que desveladamente cumpriu; do juiz liberal em quem a ânsia de fazer justiça às partes tornava reparador intransigente das violações à liberdade, não só dos probos e dos justos, mas de todos, sem discriminações nem fronteiras outras que as da lei; do juiz exato na transigência, generoso na severidade, humano na disciplina - de um juiz assim dotado pode se dizer que nasceu para a mais alta Corte de Justiça, indo nela encontrar a mesma atmosfera que seu modo de ser desde sempre respirara.
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(...) No grande volume que é a vida de S. Exª. a sua atuação como juiz ficará assinalada entre duas folhas: a longínqua e modesta pretoria de Herval do Sul e a recente e magnífica presidência da Corte Suprema; mas, ao contrário da flor esmaecida que, para lembrança de alguém, se conserva entre as páginas de um livro, seu exemplo não perderá o viço na memória de seus contemporâneos e servirá de modelo para os porvindouros.” (26) A morte alcançou-o em 16.04.2001, aos 90 anos de idade. Em 15.08.2001, o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul conferiulhe a Comenda Honorífica “Magistrado Exemplar” post mortem, num público reconhecimento aos seus elevados méritos como juiz e jurista. No decorrer de quase meio século, repetindo Bento de Faria, o Ministro Carlos Thompson Flores distribuiu justiça sem os excessos da mediocridade exibicionista, praticou o bem sem alardes; elevou o conceito de nossa Pátria, honrou a sua toga, impôs-se ao respeito e admiração dos seus pares e jurisdicionados, avassalou os corações de quantos serviram ao seu lado e sobretudo os dos que continuarão a fruir o proveito dos seus ensinamentos. Nos merecidos aplausos que rodeiam a longa trajetória do Ministro Carlos Thompson Flores, resplandece a qualidade mestra de todo homem marcante: a fidelidade a si mesmo, à sua vocação e aos seus ideais de justiça. Foi nesse nobre sentimento que acumulou forças para contrariar os poderosos, para amparar os fracos, para desprezar a momentânea e falsa opinião das multidões e para servir o interesse superior da Justiça. Afirmou um magistrado francês que “c’est mal définir la grandeur du magistrat, que de ne la faire connaître que par son pouvoir. Son autorité peut commencer ce tableau, mais sa vertu seule peut l’achever. C’est elle qui nous fait voir en lui l’esprit de la loi et l’áme de la justice; ou plutôt il est, si l’on peut parler ainsi, le supplément de l’une et la perfection de l’autre. Il joint à la loi, souvent trop générale, le discernement des cas particuliers; il ajoute à la justice cette équité supérieure sans laquelle la dureté de la lettre n’a souvent qu’une rigueur qui tue, et l’excès de la justice devient quelquefois l’excès de l’iniquité”. (27) Nenhuma sentença literária seria mais apropriada de esclarecer a magistratura de Carlos Thompson Flores como essa de D’Aguesseau, ao revelar o segredo da projeção de sua jurisprudência que se prolongará pelo tempo afora, pois soube marcar acima dos interesses dos homens e das contingências do momento para representar o mais puro ideal da Justiça, como aquele expresso por Bossuet em presença de Luiz XIV, verbis:
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“Deve ela – a justiça - ser presa a regras. Inegável em sua conduta, conhecendo o verdadeiro e o falso nos fatos que expõe. Deve ser ainda cega em sua aplicação. Sobretudo, deve ser branda algumas vezes, dando lugar à indulgência. Finalmente, a Justiça é insuportável nos seus rigores. A constância a fortalece nas regras; a prudência a esclarece nos fatos; a bondade lhe faz compreender as misérias e as fraquezas. Assim, a primeira a sustenta; a segunda, a aplica; a terceira, a tempera. Todas as três virtudes a tornam perfeita e a completam por seu concurso”. (28) Virtus praestat ceteris rebus. Notas: (1)
In Revista Forense, v. 257, p. 418;
(2)
In Revista Forense, v. 257, p. 419;
(3)
Ribas, Antonio J., in Campos Salles – Perfil Biográfico, Rio de Janeiro, 1896, p. 536;
(4) In RTJ, v. 96/1205-9; (5) In RTJ, v. 92/12-4; (6) In RTJ, v. 91/338-340; (7) In Ransson, G. Essai sur L’Art de Juger, 2ª edição, A. Pedone Éditeur, Paris, 1912, p. 21. (8)
Cf. De. orat., III, 150: “usamos palavras que são próprias”.
(9)
Cf. De. orat., III, 25: “não devemos usar palavras que nosso costume não mais admite”.
(10) Cf. De. orat., III, 10, 39: “aconselho-vos a tomar cuidado afim de que vossa oração não seja nem pobre, nem inculta, nem vulgar, nem obsoleta”. (11) in The Spirit of Liberty – Papers and Addresses of Learned Hand, Collected by Irving Dilliard, 3ª edição, Alfred A. Knopf, New York, 1974, p. 81. (12) Nogueira, Adalício C., in Caminhos de um Magistrado (Memórias), Livraria José Olympio Editora, Rio, 1978, p. 137. (13) In Diário da Justiça da União, edição de 27.03.1981, p. 2.531 (14) In Reforma do Poder Judiciário - Diagnóstico, Supremo Tribunal Federal, 1975, pp. 11/5. (15) In Revista Forense, v. 257, pp. 424-5.
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(16) In Debré, Michel. Trois Républiques pour une France: Mémoires, Albin Michel, 1988, t. II, p. 333. (17) In O Legislativo e a Organização do Supremo Tribunal no Brasil, editado pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, Brasília, 1978, pp. XIX-XXV. (18) In Diário da Justiça da União, edição de 19.10.1978, p. 8.164. (19) In Relatório da Presidência Thompson Flores, Supremo Tribunal Federal, 1977, p. 26/7. (20) In Diário da Justiça da União, edição de 27.03.1981, p. 2.531/2. (21) In Diário da Justiça da União, edição de 27.03.1981, p. 2.531. (22) Após a sua aposentadoria dedicou-se, como jurisconsulto, ao estudo do Direito, emitindo Pareceres em inúmeras questões forenses, sendo que vários desses trabalhos encontram-se publicados em repertórios jurídicos: “Eleição dos Membros da Mesa da Assembléia Legislativa – Interpretação do art. 31 da CF”, in Revista Forense 303/128; “Responsabilidade Civil Contratual”, in Revista de Direito Civil, nº 42/147; “ICM e Compra com Cartão de Crédito”, in Revista de Direito Tributário, nº 34/86; “Desapropriação – Empresa de Ônibus”, in Revista de Direito Público, nº 95/42; “Imunidade Tributária das Listas Telefônicas”, in “O Estado de São Paulo”, Edição de 01/11/87, p. 38; “Ação Popular – Pressupostos Processuais”, in Revista de Processo, nº 61/218; “Montepio da Família Militar - Relação Jurídica entre a Entidade e seus Sócios - Pensões por eles instituídas - Alterações de seu Valor – Validade”, in Revista Forense, v. 351/311-320; “Desapropriação - Homologação de Transação - Efeitos Processuais”, in Revista de Direito Processual Civil, nº 14, pp. 839/846; “Doação Inoficiosa - Art. 1.176 do CC - Querela Inofficiosae Donationis – Requisitos”, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 19/299306; “Concurso – Classificação – Direito Adquirido”, in Revista de Direito Administrativo, v.225, pp.417/425; “Honorários advocatícios. Contrato quota-litis. Ação de cobrança. Prescrição”, in Revista Forense, v.359/181-190; “Tribunal de Justiça – Quinto Constitucional – Composição – Acesso dos Juízes Classistas do Tribunal de Alçada ao Tribunal de Justiça”, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v.21/39-48; “Ato Ilícito Contratual – Indenização – Correção Monetária – Súmula 562 do STF”, in Revista de Doutrina da 4ª Região, publicada pela Escola do TRF/4ª Região – EMAGIS, Edição 05, de 08.03.05; e na Revista do TRF/4ª Região, vol. 55/83-96.
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(23) In Revista Forense, v. 303, pp. 130/4. (24) In Revista de Direito Administrativo, v. 225, pp. 420/5. (25) In Revista Forense, v. 359, pp. 182/8. (26) In Revista Estudos Jurídicos, v. XI, nº 32, ano 1981, pp. 102/3. (27)
In Oeuvres Choisies Du Chancelier D’Aguesseau, Librairie de Firmin Didot Frères, Paris, 1863, pp. 108.
(28) In Oeuvres de Bossuet, Firmin Didot Frères, Paris, 1862, t. I, p. 421.
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Coisa Julgada Inconstiucional - Limite de Aplicação Murilo Brião da Silva Juiz Federal Substituto professor na Escola Superior da Magistratura Federal no Rio Grande do Sul/ESMAFE-RS Resumo: O principal objetivo do presente trabalho é analisar o limite de aplicação do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil diante da garantia fundamental da coisa julgada, mediante estudo da definição de coisa julgada formal e material e respectivos efeitos positivo e negativo, incursionando-se pelo princípio da separação dos poderes, pela função atípica do Poder Judiciário como legislador negativo e pela interpretação das normas constitucionais. Palavras-chave: Coisa Julgada; Coisa Julgada Inconstitucional; Coisa Julgada Inconstitucional e Limite de Aplicação Abstract: The main goal of the present paper is to analyze the limits imposed to the application of article 741, first clause, of the Civil Procedure Code, towards the constitucional warranty of res judicata, by the definition of formal and material res judicata and the respective effects – positive and negative, dabbling-by the principle of the separation of the powers, the function of the Judiciary in atypical “negative legislator” and the interpretation of constitucional norms. Key-words: Res Judicata; Unconstitutional Res Judicata; Unconstitutional Res Judicata and Limits of Application. Sumário: Introdução. 1 Funções Estatais, princípio da separação destas funções, Poder Judiciário: função precípua e atividade atípica. 2 Garantia fundamental, coisa julgada na Constituição Federal e definição de coisa julgada, efeitos positivo e negativo da coisa julgada. 3 Controle de constitucionalidade e interpretação das normas constitucionais. 4 Coisa julgada inconstitucional e o seu limite de aplicação. Conclusão. Referências Bibliográficas.
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Introdução: Sabe-se que a coisa julgada, segundo a Constituição Federal de 1988, é garantia fundamental de primeira dimensão, portanto, erigida constitucionalmente a bem jurídico protegido, diante da sua evidente relevância. Não obstante isso, o artigo 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil, considera inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal, dispondo, assim, acerca da coisa julgada inconstitucional. Dessa forma, o presente trabalho busca objetivamente traçar limite de aplicação desta disposição infraconstitucional, de maneira a compatibilizar-se com o texto Magno. 1. Funções Estatais, princípio da separação destas funções, Poder Judiciário: função precípua e atividade atípica Nossa Carta Política de 1988 traz a existência de Poderes de Estado que, segundo o artigo 2º, “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Entre estes são atribuídas funções estatais, com o objetivo de obstar eventual arbítrio e mácula a direitos e garantias fundamentais da pessoa e buscando a solidez do Estado Democrático de Direito. ALEXANDRE DE MORAES 1 esclarece “... o que a doutrina liberal clássica pretende chamar de separação de poderes, o constitucionalismo moderno determina divisão de tarefas estatais, de atividade entre distintos órgãos autônomos”. Essas tarefas são atribuídas ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário, cuja Constituição Federal confiou parte da soberania do Estado, mediante garantia de independência e autonomia. Segue o referido autor dizendo que “Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado democrático de direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois como afirmou Zaffaroni, ‘a chave do poder judiciário se acha no conceito de independência’.”2
1 2
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 373. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 447.
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Citando Arruda Alvim, MORAES3, ainda refere: Podemos, assim, afirmar que função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a vontade das partes. Ao Poder Judiciário, portanto, como atividade típica, é atribuída a função jurisdicional – julgar, diante de demanda a si submetida. No entanto, possui outras funções atípicas, dentre elas a de natureza legislativa, como a legislativonegativa, a exemplo da possibilidade de excluir do ordenamento jurídico regra legal violadora da Constituição Federal: regra inconstitucional. Como ensinam NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY4: 9. Poder Judiciário. Legislador negativo. O Poder Judiciário só pode atuar como legislador negativo, isto é, deixar de aplicar norma que entenda inconstitucional, declarando essa inconstitucionalidade in concreto (v.g. RE, qualquer ação judicial etc.) ou in abstracto (v.g. ADIn, ADC etc.). Ao Poder Judiciário é vedado atuar como legislador positivo, isto é, determinando ao Poder Executivo ou ao Poder Legislativo fazer ou não fazer alguma coisa, sem que exista norma legal regulando a matéria, como se fosse ele, Judiciário, legislador. A atuação do Judiciário como legislador positivo ofende o preceito constitucional da separação dos poderes. A estipulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade de ato normativo como ex tunc, ex nunc, erga omnes ou inter pars (L 9868/99) não fere o princípio da separação dos poderes. Nesse sentido, o Poder Judiciário exerce tipicamente a tarefa estatal de julgar, vale dizer, de aplicar a lei à hipótese controvertida e sob processo regular, cuja decisão poderá ser coberta pelo manto da coisa julgada, e, atipicamente, quando pertinente, a função de legislador negativo, para excluir do ordenamento jurídico regra legal em descompasso com a Constituição Federal: por isso, chamada de regra inconstitucional.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 448. JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 120. 3 4
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2. Garantia fundamental, coisa julgada na Constituição Federal e definição de coisa julgada, efeitos positivo e negativo da coisa julgada Há classificação doutrinária acerca dos direitos fundamentais em primeira, segunda e terceira gerações, haja vista a respectiva ordem histórica e cronológica de reconhecimento constitucional, existindo quem apregoe também a presença de direitos de quarta, quinta e até de sexta gerações. Cabe antes ressaltar a ocorrência de críticas à denominação gerações, porque denotam entendimento de que os direitos de seguintes gerações superam ou alternam os anteriores. Assim, prefere-se a expressão dimensões, com o objetivo de elucidar aspecto cumulativo entre as diversas gerações de direitos fundamentais, vale dizer, no sentido de que uma geração em realidade é complementada pela posterior. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são aqueles relativos à dita atuação negativa do Estado, ou seja, direitos de defesa ou de proteção, em que não haja intervenção na esfera individual pelo Poder Público. Dentre estes estão aqueles arrolados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. No que toca aos direitos fundamentais de segunda dimensão, importa referir que são aqueles direitos econômicos, sociais e culturais, ou melhor, de atuação estatal positiva na busca da justiça social. Caracterizam-se precipuamente pela outorga aos indivíduos de prestações sociais estatais. Como exemplo podem ser indicados aqueles dispostos no artigo 6º, da atual Magna Carta. Já os direitos fundamentais de terceira dimensão dizem respeito a aqueles com a característica de titularidade difusa, a exemplo do direito ao meio o ambiente (artigo 225 – Constituição Federal de 1988). Acerca dos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões, ALEXANDRE DE MORAES 5 leciona que: Como destaca Celso de Mello, ‘enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos
5
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 26-27.
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171 econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam direitos de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade’ (STF – Pleno – MS nº 22164/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206). Assim, os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Carta e desenvolvidos conforme verificado no item anterior. Referindo-se aos hoje chamados de direitos fundamentais de segunda geração, que são os direitos econômicos, sociais e culturais, surgidos no início do século, Themístocles Brandão Cavalcanti analisou que ‘o começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores das liberdades das nações e das normas da convivência internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc’ (Princípios gerais de direito público. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966. p. 202). Por fim, modernamente, protege-se, constitucionalmente, como direitos de terceira geração os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, que são, no dizer de José Marcelo Vigliar, os interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso (Ação civil pública. São Paulo: Atlas, 1997. p. 42).
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Mais adiante, na mesma obra, página 28, ALEXANDRE DE MORAES, citando Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in Direitos Humanos Fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 57, diz que “a primeira geração seria dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade”. Assim, dentro do tema Teoria da Geração de Direitos, vê-se que a primeira dimensão (direitos de liberdade), surgida com o Estado moderno, liberal, em que existia grande preocupação com a liberdade dos cidadãos, estabeleceu limite para atuação estatal - Estado mínimo. Pregava-se a igualdade formal: perante a lei. O Estado somente poderia agir conforme a lei. A segunda dimensão (direitos sociais) adveio da idéia de Estado Social de Direito, em que se pregava a igualdade material, com o objetivo de se diminuírem as desigualdades sociais. Já a terceira dimensão (direitos difusos) decorreu do desenvolvimento tecnológico da sociedade de massa, em que inexiste um sujeito determinado. Trata-se de direitos de toda a comunidade. Porque tema não diretamente adstrito ao ponto que se busca abordar aqui, irrelevante tecer maiores comentários sobre as dimensões dos direitos fundamentais, especialmente de quarta, quinta e sexta dimensões. Reza a Constituição Federal de 1988 que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como que a lei não prejudicará a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI). A coisa julgada, assim, é garantia fundamental de primeira dimensão e, por essa característica, tem aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal/19886), além de constituir-se em cláusula pétrea, impossibilitando-a sequer de ser objeto de deliberação como proposta de emenda tendente a abolila (artigo 60, § 4º, IV, Constituição Federal/19887). Lembra ALEXANDRE DE MORAES que “... coisa julgada ‘é a decisão judicial transitada em julgado’, ou seja, ‘a decisão judicial de que já não caiba recurso’ (LiCC., art. 6º, § 3º)”8. Ainda, citando CELSO BASTOS, refere que9:
Art. 5ç. (...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais 8 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 106. 9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 106. 6 7
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Na coisa julgada, ‘o direito incorpora-se ao patrimônio de seu titular por força da proteção que recebe da imutabilidade da decisão judicial. Daí falar-se em coisa julgada formal e material. Coisa julgada formal é aquela que se dá no âmbito do próprio processo. Seus efeitos restringem-se, pois, a este, não o extrapolando. A coisa julgada material, ou substancial, existe, nas palavras de Couture, quando à condição de inimpugnável no mesmo processo, a sentença reúne a imutabilidade até mesmo em processo posterior (fundamentos do direito processual civil). Já para Wilson de Souza Campos Batalha, coisa julgada formal significa sentença transitada em julgado, isto é, preclusão de todas as impugnações, e coisa julgada material significa o bem da vida, reconhecido ou denegado pela sentença irrecorrível. O problema que se põe, do ângulo constitucional, é o de saber se a proteção assegurada pela Lei Maior é atribuída tão-somente à coisa julgada material ou também à formal. O art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal, não faz qualquer discriminação; a distinção mencionada é feita pelos processualistas. A nosso ver, a Constituição assegura uma proteção integral das situações de coisa julgada.’ Não se mostra demasiado colacionar o entendimento de SÉRGIO GILBERTO PORTO10, para quem: No teor do § 3º, do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, bem como do art. 467 do Código de Processo Civil, situam-se as definições legais do instituto da coisa julgada. Todavia, não se esgota nesses dispositivos a compreensão do tema. Efetivamente, desde logo, oportuno afirmar que a res iudicata reveste um conceito jurídico cujo conteúdo difere do simples enunciado de suas palavras e extrapola os parâmetros fixados pelo legislador. (...) Como se vê, a definição de coisa julgada envolve algo mais que a simples soma de seus termos, pois representa um conceito jurídico que qualifica uma decisão judicial,
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PORTO, Sergio Gilberto.Coisa Julgada Civil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1996. p. 42-43.
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atribuindo-lhe autoridade e eficácia. Trata-se, em suma, daquilo que, para os alemães, é expresso por Rechtskraft, ou seja, ‘direito e força’, ‘força legal’, ‘força dada pela lei’. E acrescenta: “Assim, a coisa julgada representa, efetivamente, a indiscutibilidade da nova situação jurídica declarada pela sentença e decorrente da inviabilidade recursal”.11 Importa recordar que a coisa julgada é posta sob o prisma formal e material: coisa julgada material e coisa julgada formal. Nesse sentido, PORTO12, sobre coisa julgada formal, revela que: Em torno do tema, é farta a doutrina, e praticamente não diverge. Isso torna possível afirmar que a coisa julgada formal se constitui no fenômeno que torna a sentença imodificável, no processo em que foi prolatada, em face da ausência absoluta da possibilidade de impugnação da decisão, em razão do esgotamento das vias recursais, quer pelo exercício de todos os recursos possíveis, quer pelo não exercício deles, ou quer, ainda, pela não apresentação de algum, bem como por eventual renúncia ou desistência de interposição. De outra banda, diz que coisa julgada material “... se constitui numa qualidade da sentença trânsita em julgado – chamada, pela lei, de eficácia – que é capaz de outorgar ao ato jurisdicional as características da imutabilidade e da indiscutibilidade.”13 Entende-se relevante consignar que esse autor adiciona que: Contudo, como já afirmado, a projeção da coisa julgada material diverge da formal, pois, enquanto esta se limita à produção de efeitos endoprocessuais – internos -, aquela os lança de forma pan-processual – externa -, motivo por que se impõe perante demandas diversas daquela em que se verificou, tornando inadmissível novo exame do assunto e solução diferente a respeito da mesma relação jurídica, seja por outro, seja pelo mesmo juízo que a apreciou.14
PORTO, Sergio Gilberto.Coisa Julgada Civil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1996. p. 44. PORTO, Sergio Gilberto.Coisa Julgada Civil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1996. p. 52. 13 PORTO, Sergio Gilberto.Coisa Julgada Civil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1996. p. 54. 14 PORTO, Sergio Gilberto.Coisa Julgada Civil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1996. p. 55. 11
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Nessa linha de raciocínio, cumpre trazer a diferença entre as funções negativa e positiva da coisa julgada. Aquela emprega à coisa julgada qualidade impeditiva de se novamente julgar a demanda decidida. Ao passo que a esta função positiva – impõe a consideração, em outro julgamento, daquilo posto e decido no julgamento anterior. Sobre isso, OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA15 afirma que: O efeito negativo da coisa julgada opera sempre com exceptio rei iudicatae, ou seja, como defesa, para impedir o novo julgamento daquilo que já fora decidido na demanda anterior. O efeito positivo, ao contrário, corresponde a utilização da coisa julgada propriamente em seu conteúdo, tornando-se imperativo para o segundo julgamento. Enquanto a exceptio rei iudicatae é forma de defesa, a ser empregada pelo demandado, o efeito positivo da coisa julgada pode ser fundamento de uma segunda demanda. Assim, vê-se que a coisa julgada - garantia fundamental de primeira dimensão, clausula pétrea, com aplicabilidade imediata – pode ser definida como a representação da indiscutibilidade da nova situação jurídica declarada pela sentença. Ainda, que a coisa julgada formal se caracteriza pelo fenômeno que torna a sentença imodificável, no processo em que foi prolatada, e a coisa julgada material importa a qualidade de sentença já transitada em julgado que alcança ao provimento jurisdicional os aspectos da imutabilidade e indiscutibilidade. Além disso, a coisa julgada, possui as funções negativa (qualidade impeditiva de se novamente julgar a demanda decidida) e positiva (necessidade de se considerar, em segundo julgamento, aquilo decido no anterior). 3. Controle de constitucionalidade e interpretação das normas constitucionais A Constituição Federal é a base para a formação do ordenamento jurídico. Vale dizer, com ela a legislação infraconstitucional deve ter compatibilidade, para que sobreviva no sistema jurídico. E “A idéia de controle de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais”.16 A Magna Carta está hierarquicamente no topo do sistema legislativo e nela serão buscadas as formas de elaboração de regras infraconstitucionais.
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SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e Coisa Julgada. 2ª Ed. Porto Alegre: Safe, 1988. p. 489. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 577.
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Assim, segundo ALEXANDRE DE MORAES17, com base em Hans Kelsen: O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito. Mas conceitualmente, esse autor refere que “Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”.18 Como espécies de controle de constitucionalidade, no que tange ao momento, poderá ser preventivo (pretende evitar o ingresso de regra inconstitucional no ordenamento) ou repressivo (em que a regra inconstitucional é eliminada do ordenamento). Aqui interessa caminhar apenas pelo controle repressivo de constitucionalidade, adotado por nosso sistema, em que o Poder Judiciário faz o controle de compatibilidade da lei ou ato normativo, já editados, com a Carta Política, para afastá-los, quando contrários a esta. Para tanto, “Há dois sistemas ou métodos de controle Judiciário de Constitucionalidade repressiva. O primeiro denomina-se reservado ou concentrado (via de ação), e o segundo, difuso ou aberto (via de exceção ou defesa).”19 Sabe-se que no Brasil é adotado o controle de constitucionalidade repressivo judiciário misto, porque permitida tanto a forma concentrada quanto a difusa. E quanto ao controle concentrado, a Constituição Federal apresenta várias espécies, por exemplo: “a. ação direta de inconstitucionalidade genérica (art. 102, I, a); b. ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III); c. ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); d. ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, in fine; EC nº 03/93).”20 Assim, a Constituição Federal possui hierarquia superior no ordenamento jurídico, merecendo exclusão regras ou atos normativos que com ela não se compatibilizem. E a idéia de controle de constitucionalidade está adstrita à
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 578. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 579. 19 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 585. 20 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 606. 17 18
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Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, para se verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição (análise de seus requisitos formais e materiais). Para se garantir a compatibilidade lança-se mão de técnica da interpretação ou da hermenêutica constitucional, que poderá se dar no momento repressivo (em que a regra inconstitucional é eliminada do ordenamento) - ou sistemas de controle Judiciário de Constitucionalidade repressiva, que são o reservado ou concentrado (via de ação) e o difuso ou aberto (via de exceção ou defesa) -, ambos adotados no Brasil (misto). Além disso, entende-se importante se incursionar acerca da interpretação das normas constitucionais, visto que bens e direitos protegidos pela Magna Carta podem se envolver em relação de conflito e, diante disso, como solução de compatibilização, para que todos tenham aplicabilidade, é que surge a hermenêutica constitucional como forma de auxílio ao intérprete. Ou seja, como instrumento do controle de constitucionalidade é que se utiliza a hermenêutica constitucional. Mais uma vez, diante da propriedade, MORAES21 revela que: A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade sóciopolíticoeconômica e almejando sua plena eficácia. Canotilho enumera diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais: da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas; do efeito integrador: na solução dos problemas jurídicoconstitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política; da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda;
21
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 44-45.
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178 da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário; da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros; da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais. Aponta, igualmente, com Vital Moreira, a necessidade de delimitação do âmbito normativo de cada norma constitucional, vislumbrando-se sua razão de existência, finalidade e extensão. Esses princípios são perfeitamente completados por algumas regras propostas por Jorge Miranda: a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios; deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade; os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto implicitamente, a fim de colherse seu verdadeiro significado. A aplicação dessas regras de interpretação deverá, em síntese, buscar a harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas, adequando-se à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas.
Não se duvida, portanto, que a interpretação das normas constitucionais constitui forte mecanismo de garantia da supremacia da própria Constituição Federal, pois, por meio dela, analisa-se a necessária compatibilidade de uma lei ou de um ato normativo com a Magna Carta e, consequentemente, garante-se maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas.
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Então, a hermenêutica constitucional existe para a interpretação das normas constitucionais e como método auxiliar de controle de constitucionalidade de lei ou atos normativos, no sentido da verificação de adequação destes com a constituição federal, mediante análise de seus requisitos formais e materiais, além do que, no Brasil, o controle de constitucionalidade repressivo é misto: concentrado e o difuso. 4. Coisa julgada inconstitucional e o seu limite de aplicação De início, para que se admita a aplicação do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, imperativa é a análise de alguns aspectos jurídicos relativos ao controle de constitucionalidade repressivo. Nesse diapasão, ressalta-se que o controle de constitucionalidade em seu momento repressivo (ou jurisdicional) se dá pelos métodos concentrado (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade; Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão; Ação Direta Interventiva; Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental; e Ação Declaratória de Constitucionalidade) e difuso. O método concentrado tem por objeto a lei ou ato normativo em tese, não situação concreta, por isso abstrato, cuja decisão será pelo Pleno ou Órgão Especial (artigo 93, inciso XI, Constituição Federal/198822). Já o método difuso é utilizado por juiz singular, mediante via de defesa contra lei ou ato normativo, em situação concreta. Interessa ressaltar que hoje, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, apesar da decisão se dar no método difuso de constitucionalidade e, por isso, tratar-se formalmente de um processo subjetivo, quando ocorrida com composição plenária e com características do método concentrado, por possuir vocação evidente para generalizar-se a decisão tomada, gera fenômeno que já se denominou “objetivação do controle difuso de constitucionalidade”.23 Assim, mesmo originalmente sendo processo subjetivo, será considerado como se objetivo fosse, diante das peculiaridades e efeitos inerentes gerados. Todavia, aqui, não é exatamente este aspecto que mais importa, mas a natureza do provimento: se de declaração de inconstitucionalidade ou declaração de constitucionalidade. 22 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: XI nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). 23 JR, Fredie Didier; CUNHA, Leonardo José Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Refael. Curso de Direito Processual Civil, Execução. 5ª Vol. Salvador: Jus Podium, 2009. p. 373.
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No julgado eventualmente considerado, deve-se verificar se houve ou não declaração de inconstitucionalidade. Diz o artigo 741, inciso II e parágrafo único, do Código de Processo Civil: Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: (Redação dada pela Lei nº 11.232, de 2005) II - inexigibilidade do título; Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. (Redação pela Lei nº 11.232, de 2005). Esse dispositivo merece interpretação. Antes, porém, cabe referir o que realmente significa interpretar. DE PLÁCIDO E SILVA24 afirma que: INTERPRETAÇÃO. Do latim interpretatio, do verbo interpretare (explicar, traduzir, comentar, esclarecer), é compreendido, na acepção jurídica, como a tradução do sentido ou do pensamento, que está contido na lei, na decisão, no ato ou no contrato. (...) Interpretação, pois, seja a respeito do que fôr, em seu sentido jurídico, exprime a tradução, a revelação, a determinação do pensamento ou da intenção contida em um escrito, para que se tenha a exata aplicação, originariamente desejada. INTERPRETAÇÃO DA LEI.(...) Assim sendo, em sentido amplo, a interpretação da lei deve também ser entendida como sua adaptação aos casos concretos, a fim de que, por essa forma, se obtenha uma justa aplicação dela, segundo pensamento originário do legislador.
24
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Vol II, D-1. 1ª Ed. Rio – São Paulo: Forense, 1963. p. 852-853.
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Dêste modo, também se tem a fixação de sua inteligência verdadeira, que não decorre simplesmente da obscuridade ou ambigüidade do texto, mas de seu ajustamento exato aos casos objetivos. A interpretação da lei, consoante as fontes em que se firma, diz-se autêntica, doutrinária ou judiciária. Autêntica, quando feita pelo próprio legislador ou pela autoridade que expediu o ato. Doutrinária, quando promana dos estudos e pareceres dos juristas e jurisconsultos. Segundo os elementos de que se utiliza o intérprete, se promove a interpretação pela análise das palavras contidas no texto, se pela perquirição de seu pensamento ou por uma investigação dêstes elementos associados a outros, ela se diz gramatical, lógica ou científica. Judiciária, quando se fixa em conseqüência das sentenças e dos julgados proferidos pelos juízes e tribunais. 1. Gramatical. É a interpretação literal, fundada na própria significação das palavras, em que se expressa. É a interpretação à letra ou segundo a linguagem da própria lei. Por ela se procura o pensamento do legislador pela própria construção textual. 2. Lógica. É a que vai perquirir o pensamento do legislador, tendo por fim adaptar aos fatos ocorrentes, tomando-se em consideração os que ela rege, e a analogia e a semelhança entre êles. Consiste, na expressão de IHERING, em procurar o pensamento da lei, passando por cima das palavras. 3. Científica. É a que, associando os elementos gramatical e lógico, procura a exata inteligência da lei, tendo em vista a relação das palavras e do pensamento com a razão natural, justiça, ordem e bem geral, para atingir, por meio de legítimas e fundadas conclusões, o verdadeiro ou mais normal sentido do texto, e adotá-lo como sendo o que exprime a vontade do legislador. É, assim, com o aproveitamento de todos os elementos de que pode dispor, que o intérprete, cientìficamente, por meio de raciocínio, da analise, estudando a formação histórica da própria regra, compreende o melhor sentido da lei, para declarar o pensamento e o intuito do legislador. (...).
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E ao se atentar para o parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, verifica-se que a redação é sempre de cunho negativo: “... declarados inconstitucionais ... ou fundado em aplicação ou interpretação ... tidas ... como incompatíveis com a Constituição Federal.” Vale dizer: esse dispositivo não se aplica aos casos em que a regra não restou julgada inconstitucional ou incompatível com a Constituição Federal. Conforme o dispositivo considerado, pela análise das palavras contidas no texto, acredita-se que a tradução do sentido ou do pensamento que está contido na lei (parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil), para que se tenha a exata e desejada aplicação, deve-se limitar às situações de controle concentrado quando ocorrer declaração de inconstitucionalidade (ou incompatibilidade decorrente de declaração de inconstitucionalidade). Com isso ter-se-á sua adaptação e fixação de sua inteligência verdadeira aos casos concretos, com o fito de, por essa forma (ajustamento exato aos casos objetivos), obter-se justa aplicação, e, por meio das conclusões aqui expostas, atingir o que se entende como o verdadeiro sentido do texto, e adotá-lo como sendo o que exprime a vontade do legislador Nesse sentido, crê-se que o parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil deve-se limitar às situações de controle concentrado quando ocorrer declaração de inconstitucionalidade, e salienta-se desde já a posição de que a possibilidade indicada de julgamento fundado em aplicação ou interpretação tidas como incompatíveis com a Constituição Federal também decorrem de eventual declaração de inconstitucionalidade: incompatível diante da inconstitucionalidade declarada, sobretudo porque se cuida de regra restritiva de garantia fundamental (coisa julgada) que, por isso, exige interpretação restritiva. Até porque, como adverte PAULO ROBERTO DE GOUVÊA MEDINA25: ... representando a via da impugnação ou a dos embargos à execução meios excepcionais que a lei expressamente acolheu, além ou à margem do processo tradicional da ação rescisória, parece claro que a exegese dos dispositivos correspondentes haverá de ser sempre estrita, como sói acontecer em todos os casos de direito excepcional. Em princípio isso parece desimportante, contudo não o é, possuindo inclusive razão jurídica para assim ser disposto, porque, como afirma ALEXANDRE SORMANI, “... a desconsideração da coisa julgada por completo, permitindo-se a sua avaliação (se correta ou não, se justa ou não) traz conotações preocupantes,
25
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Coisa Julgada: garantia constitucional. Revista de Processo, RePro 146, Ano 32, abril de 2007. Revista dos Tribunais. p. 21.
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pois abre ensejo à total insegurança e à ruína do regime democrático”26, ou, nos dizeres de ALEXANDRE ZAMPROGNO, a relativização da coisa julgada “... não pode ser tratada com tal simplicidade ... sob pena de se vulgarizar a utilização do referido instituto, proporcionando, inclusive, que as demandas judiciais se perpetuem em nossos Tribunais.”27 Explica-se. Nosso sistema convive com ambos os métodos repressivos de controle de constitucionalidade: difuso e concentrado. Portanto, é possível que exista disparidade entre uma decisão em controle difuso e outra posterior no concentrado. Diante do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, essa situação admite convivência (manutenção de ambas as decisões) apenas quando o provimento no controle concentrado for de declaração de constitucionalidade (positivo), não quando o for de inconstitucionalidade. É assim porque o Poder Judiciário possui como atuação atípica apenas a de legislador negativo, nunca positivo, sob pena de violação de cláusula constitucional da separação dos poderes. Aqui não se trabalha a excepcional hipótese chamada de ‘ativismo judicial’, porque entende-se não cuidar da situação posta neste texto. Conforme ensina LUÍS ROBERTO BARROSO28: Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. (...) Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso. (...) Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria
SORMANI, Alexandre. Coisa Julgada Inconstitucional. Revista da Ajufe, Ano 23 – Número 90. 2ª semestre/2008. p. 24. 27 ZAMPROGNO, Alexandre. Meios Processuais para Descontituir a Coisa Julgada Inconstitucional. Interesse Público – Ano 5, nº 22, novembro/dezembro de 2003. Porto Alegre: Notadez. 2003. p. 95 28 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. http://www.oab. org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf, p. 6, 17 e 19. Acessado em 19-06-2009. 26
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capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui. (...) Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes. Quando o Poder Judiciário, em atuação atípica, via método concentrado, declara inconstitucional lei ou ato normativo, esses são nulos desde o início - ex tunc, extirpando do sistema aquela base jurídica, apesar de haver possibilidade de se flexibilizar os efeitos concretos (inconstitucionalidade progressiva ou flexibilização temporal), mas isto não é a regra. Refere IVO DANTAS29: Em outras palavras: se a inconstitucionalidade reconhecida em Adin gera a inexistência ou nulidade absoluta da Lei ou Ato, a rigor, não se haveria de falar em Coisa Julgada Inconstitucional, visto ser a mesma uma expressão contraditória, porque inexistente, tal como ensina Cunha Peixoto, citado por Ada Pellegrini Grinover em artigo intitulado Ação Rescisória e Divergência de Interpretação em Matéria Constitucional, verbis: ‘Em verdade, a hipótese é simples. Pretende a recorrente rescindir um acórdão que aplicou dispositivo legal posteriormente declarado inconstitucional. Ora, segundo nos parece, a lei inconstitucional não produz efeito e nem gera direito, desde o início. Assim sendo, perfeitamente compatível é a ação rescisória’ – conclui Cunha Peixoto. (...) Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover no mencionado artigo, após proceder levantamento das posições jurisprudenciais do STF, afirma:
29
DANTAS, Ivo. Da Coisa Julgada Inconstitucional (Novas e Breves Notas). Revista do TRT da 15ª Região, nº 25, 2004. p 261-262.
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185 ‘Transparece, assim, de todos os votos que enfrentaram a questão da inaplicabilidade da súmula 343 ao dissídio jurisprudencial em matéria constitucional, sua única motivação: a lei declarada inconstitucional pelo Supremo, com efeitos ex tunc, é nula e írrita. Se a decisão aplicou a lei, posteriormente declarada inconstitucional, aplicou lei nula e inexistente, e pode por isso ser rescindida. O que equivale a dizer que a Súmula n 343 é tida por inaplicável quando a decisão rescidenda aplica a lei, por considerá-la constitucional, e posteriormente é ela declarada inconstitucional, com efeitos ex tunc. Mas é evidente – continua Grinover – que o raciocínio não se aplica aos casos em que a decisão rescidenda julgou inconstitucional a lei, posteriormente considerada constitucional pelo Supremo. Nesta hipótese, a posterior declaração incidental de constitucionalidade nada nulifica, não se caracterizando a categoria de inexistência, pelo que ficam a salvo da rescisória as decisões que, na constância do dissídio jurisprudencial, consideraram a lei inconstitucional’ – conclui.
Ocorrido isso (declaração de inconstitucionalidade), pelo Supremo Tribunal Federal, descabe ao julgador em controle difuso declarar aquelas mesmas regras constitucionais, porque senão estaria agindo como legislador positivo, já que, quando julgadas inconstitucionais, foram, em regra, eliminadas retroativamente do sistema legal. Todavia, o contrário é perfeitamente possível. Quando o Poder Judiciário, via método concentrado, declara constitucional lei ou ato normativo, nada mais fez do que reafirmar a presunção de constitucionalidade já antes gozada pela regra, presunção inicialmente relativa, depois convertida em absoluta. Ou seja: a regra jamais deixou de ser constitucional (sempre foi constitucional), mudando somente a natureza da presunção: primeiro presunção relativa, que com a atuação via método concentrado tornou-se absoluta: a natureza da presunção nunca alterou a situação perene de constitucionalidade da regra. Ressalta-se: diante disso vê-se que o sistema convive com regra constitucional (presunção relativa ou absoluta) e sua declaração de inconstitucionalidade, no caso concreto, via controle difuso. Caso contrário não haveria motivo para existir o controle repressivo difuso. Até porque aqui, há a regra, que é afastada apenas no caso concreto: a atuação aqui é de legislador negativo. Lembra-se: no Brasil adota-se o controle de constitucionalidade misto.
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Por óbvio que isso se refere às situações já cobertas pelo manto da coisa julgada, porque as demandas ainda não julgadas em definitivo sofreriam o efeito erga omnes do controle concentrado. Por isso que o artigo 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil, tem redação sempre com aspecto negativo. Esse dispositivo, portanto, somente pode ser invocado para atacar a coisa julgada inconstitucional quando o provimento emanado pelo Supremo Tribunal Federal for de declaração de inconstitucionalidade (ou incompatibilidade decorrente de declaração de inconstitucionalidade), pois nesse caso desaparece o fundamento de validade do sistema, e eventual decisão díspar provocaria atuação atípica de legislador positivo do Poder Judiciário. Apesar de se referir ao parágrafo 1º do artigo 475-L, tratando-se de situação legal semelhante a do parágrafo único do artigo 741, ambos do Código de Processo Civil, comunga-se dessa afirmação: “Não é toda hipótese de sentença inconstitucional que pode ser desconstituída com base nesse dispositivo.”30 Ou como prefere OSCAR VALENTE CARDOSO: “... a relativização (ou flexibilização) da coisa julgada consiste no afastamento ou desconsideração desta, em algumas circunstâncias.”31, até porque, como adverte EVANDRO SILVA BARROS32: A elevação da coisa julgada ao nível constitucional demonstra a clara preocupação do legislador em assegurar a estabilidade das relações jurídicas, preservando as decisões judiciais de alterações que viessem a pôr em dúvida a autonomia do sistema; aliás essa garantia decorre também da tripartição dos Poderes, de sorte que cada um atue na esfera de sua competência. Logo, também pelo viés de que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal/1988 - incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004), a teoria da coisa julgada inconstitucional recomenda interpretação restritiva. Dessa forma, vê-se que o princípio da separação das funções Estatais deve servir de baliza para se relativizar a coisa julgada, inclusive para limitar sua aplicação.
JR, Fredie Didier; CUNHA, Leonardo José Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Refael. Curso de Direito Processual Civil, Execução. 5ª Vol. Salvador: Jus Podium, 2009. p. 373. 31 CARDOSO, Oscar Valente. Repercussão Geral, Questões Constitucionais Qualificadas e Coisa Julgada Inconstitucional. Revista Dialética de Direito Processual (RDDP), 72, março – 2009. p. 73. 32 BARROS, Evandro Silva. Coisa Julgada Inconstitucional e Limitação Temporal para a Propositura da Ação Rescisória. Revista de Direito Constitucional e Internacional nº 47. Revista dos Tribunais. ano 12, abriljunho de 2004. p. 55-56. 30
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O posicionamento proposto, ao mesmo tempo, preserva a garantia fundamental da coisa julgada, o controle repressivo difuso de constitucionalidade e a presunção de constitucionalidade do artigo 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil, impedindo sua utilização sem limites. Inclusive, trazendo-se mais um argumento no sentido da necessidade de cautela ao se falar em relativização da coisa julgada, releva citar MAGNO FEDERICI GOMES e RICARDO MORAES COHEM33, quando dizem que: Além disso, deseja-se analisar a coerência da relativização da coisa julgada, pois ela vai de encontro à reforma processual instalada pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Segundo o art. 5º, LXXVIII, CR/1988 (EC 45/2004), criou-se o direito fundamental de todos a um processo com razoável duração de tempo, ou seja, positivou o princípio da celeridade e da efetividade processuais, o que é contrário ao instituto da relativização, por ser mais uma forma impugnativa da decisão, prolongando o trâmite processual e impedindo a solução da controvérsia entre as partes. Mais uma vez releva trazer PAULO ROBERTO DE GOUVÊA MEDINA34 no aspecto em que apregoa: Não se cuida de fazer apologia da segurança jurídica em detrimento da justiça da decisão. Trata-se, apenas, de preservar o respeito à solução definitiva do litígio, que tem na ordem pública o seu fundamento e na paz social o seu fim último. CARINA BELLINI CANCELLA35 afirma que: “... por meio do parágrafo 1º do artigo 475-L e do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, buscou solucionar o conflito entre os princípios da segurança jurídica (coisa julgada) e supremacia da Constituição ...”, mas isso, acrescenta-se aqui, só se dará quando tratar-se de declaração de inconstitucionalidade, porque outras variáveis, também de índole constitucional, a exemplo do controle difuso, da garantia fundamental da coisa julgada e do princípio da separação das funções estatais, merecem valorização.
GOMES, Magno Federici; COHEN, Ricardo Moraes. Relativização da Coisa Julgada: Teorias, Controvérsias, Dilemas e Solução. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. Ano IX, nº 53, mai-jun 2008. p. 84. 34 MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Coisa Julgada: garantia constitucional. Revista de Processo, RePro 146, Ano 32, abril de 2007. Revista dos Tribunais. p. 24. 35 CANCELLA, Carina Belline. Da relativização da coisa julgada inconstitucional. Revista da AGU Ano VII nº 17, Brasília-DF. Jul./set. de 2008. p. 33. 33
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Havendo declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo (que já era presumidamente constitucional), pelo Supremo Tribunal Federal, superveniente à decisão no controle difuso que entendera inconstitucional, verifica-se que, em suma, “no continente” (geral) a regra é constitucional, mas para as partes (conteúdo) é inconstitucional. Essa decisão não pode ser rescindida, porque quando no controle difuso foi julgada inconstitucional, o Poder Judiciário atuou como legislador negativo, o que é permitido pelo sistema. Assim, se definitivamente decidido, deve-se respeitar a coisa julgada, pois esta também é reflexo da supremacia da constituição. Repete-se, visto sua pertinência e importância, ao citar Grinover, IVO DANTAS36: “Mas é evidente – continua Grinover – que o raciocínio não se aplica aos casos em que a decisão rescidenda julgou inconstitucional a lei, posteriormente considerada constitucional pelo Supremo.” O contrário não é verdadeiro. Embora o controle difuso (conteúdo) entendesse constitucional enquanto a lei já era presumidamente constitucional, com a superveniência de declaração de inconstitucionalidade, o “continente” (geral) é esvaziado (nulo - nunca existiu - ex tunc) e, assim, a decisão no controle difuso dizendo constitucional geraria atuação de legislador positivo no caso concreto, pois inexiste a regra legal fixada entre as partes. Aqui sim, incabível manter a coisa julgada (ou o título judicial), uma vez que operada sobre decisão judicial substitutiva da atuação legislativa, ferindo outra cláusula constitucional: separação dos poderes ou funções estatais, hierarquicamente igual à garantia fundamental da coisa julgada, mas que, diante dos princípios da unidade, da máxima efetividade ou da eficiência, da concordância prática ou da harmonização e da força normativa da constituição, neste caso permite a relativização desta última, tudo em homenagem também à supremacia da Magna Carta. Como diz RAUL MACHADO HORTA37: ... é evidente que essa colocação não envolve o estabelecimento de hierarquia entre as normas constitucionais, de modo a classificá-la em normas superiores e normas secundárias. Todas são normas fundamentais. A precedência serve à interpretação da
DANTAS, Ivo. Da Coisa Julgada Inconstitucional (Novas e Breves Notas). Revista do TRT da 15ª Região, nº 25, 2004. p. 262. 37 HORTA, Raul Machado da. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 239-240. 36
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Constituição, para extrair dessa nova disposição formal a impregnação valorativa dos Princípios Fundamentais, sempre que eles forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador. Algo constitucional (geral) poderá ser inconstitucional entre as partes (legislador negativo); porém não poderá algo inconstitucional - geral (nulo; inexistente) ser considerado constitucional entre as partes, porque nesse caso o Poder Judiciário seria legislador positivo. Repete-se: em verdade esse mecanismo de interpretação aqui utilizado permite preservar tanto a presunção de constitucionalidade da regra trazida pelo artigo 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil, quanto a garantia fundamental da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, Constituição Federal/1988), portanto atendendo aos princípios constitucionais da unidade da constituição e da máxima efetividade ou eficiência e, sobretudo, da concordância prática ou da harmonização e da força normativa da constituição. Com isso buscou-se interpretação constitucional realizada de modo a evitar contradições entre suas regras, atribuindo-se sentido com maior eficácia possível mediante coordenação e combinação dos bens jurídicos objeto de discussão, para se evitar o sacrifício total de um em relação ao outro e colhendo, dentre as interpretações possíveis, aquela que garanta maior eficácia e permanência da normas constitucionais. É premissa básica que todas as normas constitucionais desempenham função útil no ordenamento, sendo vedada interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. Ousa-se dizer que interpretação diferente aniquila o instituto da coisa julgada, que é eminentemente constitucional para, em outro extremo, ao mesmo tempo, chamá-la de inconstitucional: geraria a incabível antinomia interna da constituição. Lembrando ALEXANDRE SORMANI38: Sabe-se, ao menos pela interpretação jurídica, que há uma harmonia sistêmica do ordenamento jurídico e o princípio da unidade da Constituição a confirma. Portanto, não é concebível, a princípio, que a Constituição proteja a coisa julgada que traga consigo uma decisão contrária à própria Constituição.
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SORMANI, Alexandre. Coisa Julgada Inconstitucional. Revista da Ajufe, Ano 23 – Número 90. 2ª semestre/2008. p. 33.
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Mas não se pode generalizar a interpretação do que é contrário à constituição, porque isso relativizaria demasiadamente a garantia fundamental da coisa julgada mediante regra infraconstitucional. Como ensina LUIZ GUILHERME MARINONI39: Diante disso, a falta de critérios seguros e racionais para a ‘relativização’ da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua ‘desconsideração’, estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça. Essa ‘desconsideração’ geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbruch citando a seguinte passagem de Sócrates: ‘crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?’. Na verdade, tanto a garantia fundamental da coisa julgada como o controle de constitucionalidade possuem base constitucional, que não admite antinomias, pois “Em face do princípio da unidade da Constituição, não existe hierarquia entre suas normas, tampouco Direito Constitucional absoluto”40. Então, para sopesar a aplicação desses comandos constitucionais, é utilizado princípio da separação dos poderes (ou funções estatais), que é refratária à atuação legislativo- positiva do Poder Judiciário. E ocorrerá atuação legislativopositiva somente quando houver declaração de inconstitucionalidade no método concentrado (ou como se concentrado fosse) e de constitucionalidade no difuso, não ao contrário. Ademais, supremacia constitucional é regra de hermenêutica, a coisa julgada é garantia fundamental, e o princípio da separação dos poderes ou funções estatais é fundamento constitucional. A intangibilidade da coisa julgada não configura um princípio absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer restrições.41 Ambos - coisa julgada e separação dos poderes - são também instrumentos informadores ou condutores da exegese constitucional, a fim de manter a higidez ou supremacia constitucional. Portanto, aqui, mediante conjugação, o princípio da separação dos poderes, ao mesmo tempo, permite a relativização da coisa
MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Material da 7ª aula da Disciplina Processo Civil: Grandes Transformações, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Processual: Grandes Transformações – UNISUL - REDE LFG. p. 2. 40 CARDOSO, Oscar Valente. Repercussão Geral, Questões Constitucionais Qualificadas e Coisa Julgada Inconstitucional. Revista Dialética de Direito Processual (RDDP), 72, março – 2009. p. 73. 41 NASCIMENTO, Oscar Valder do. Por Uma Teoria da Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2005. p. 9. 39
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julgada e limita sua aplicação: relativiza-se a coisa julgada, mas com limite. Lembra-se outra vez GOUVÊA MEDINA42, quando refere: De outro lado, o risco de a coisa julgada contrapor-se à Constituição não será maior do que o de admitir-se seja ela ampla e ilimitadamente questionada, a pretexto de evitar a consagração de inconstitucionalidades. Notadamente no contexto de uma Constituição analítica, como a nossa, em que as questões, quase sempre, comportam enfoque constitucional, a ponto de tornar o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal medida corriqueira (e, com isso, sobrecarregar de processos a nossa mais alta Corte), esse risco não é desprezível. Ao revés, por si só evidencia que, na medida em que se flexibiliza a coisa julgada, admitindo sua revisão ante toda e qualquer argüição de inconstitucionalidade, na verdade põe-se em xeque o princípio da segurança jurídica que ela tem em vista preservar. Por oportuno, acrescenta-se que não será qualquer provimento jurisdicional que autorizará a desconstituição da garantia fundamental da coisa julgada. Deverá ser aquele externado via controle concentrado (ou como se concentrado fosse) que declara a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, porque nesse caso (e somente nesse) é que a regra vergastada (ou o título judicial) nunca deveria ter existido. Ainda na esteira de LUIZ GUILHERME MARINONI43: Não há dúvida que, no direito brasileiro, entende-se, sem grande controvérsia, que a decisão de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc, e assim retroage até o momento da edição da lei. Afirma-se, nesse sentido, que tal decisão não possui caráter desconstitutivo, e por isso não apenas revoga a lei. A sua natureza é declaratória, pois reconhece a nulidade da lei, vale dizer, um estado já existente. E em nota de rodapé do trabalho acima referido, MARINONI44 citando Clèmerson Merlin Clève, acrescentou que:
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Coisa Julgada: garantia constitucional. Revista de Processo, RePro 146, Ano 32, abril de 2007. Revista dos Tribunais. p. 26. 43 MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Material da 7ª aula da Disciplina Processo Civil: Grandes Transformações, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Processual: Grandes Transformações – UNISUL - REDE LFG. p. 5. 44 MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Material da 7ª aula da Disciplina Processo Civil: Grandes Transformações, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Processual: Grandes Transformações – UNISUL - REDE LFG. Nota de rodapé. p. 5. 42
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192 ‘Encontra-se, hoje, superada a discussão a respeito dos efeitos produzidos pela decisão que declara a inconstitucionalidade de ato normativo, se ex tunc ou ex nunc. Já foi afirmado, quando tratou-se da fiscalização incidental, que influenciado pela doutrina e jurisprudência americanas, o direito brasileiro acabou por definir que a inconstitucionalidade equivale à nulidade absoluta da lei ou ato normativo’ (Clèmerson Merlin Clève. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 163).
O Ministro ARNALDO SÜSSEKIND45 já disse que “... o caminho pode ser a mera resistência à execução ou mesmo uma ação específica, porque o que importa é a prevalência da orientação da Corte Suprema em temas constitucionais”, no entanto, afirma-se aqui, se no caso sob exame o Supremo Tribunal Federal não declarou a inconstitucionalidade de nada, não há que se falar em coisa julgada inconstitucional, pois se assim for não existiu reconhecimento da nulidade de lei ou ato normativo com efeitos ex tunc. A coisa julgada é garantia fundamental, que somente seria afastada quando o Poder Judiciário atuar como legislador positivo. Vale ainda, por fim, citar PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, ao dizer que “A denominada ‘coisa julgada inconstitucional’ necessita de uma correta e detalhada disciplina infra-constitucional, sob pena de as primeiras boas intenções de abertura a respeito do tema cumprirem o real intento do autoritarismo e do arbítrio”46. Conclusão Pela análise das palavras contidas no texto do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, entende-se que a correta aplicação deve se limitar às situações de controle concentrado quando ocorrer declaração de inconstitucionalidade ou incompatibilidade decorrente de declaração de inconstitucionalidade, porque a possibilidade indicada de julgamento fundado em aplicação ou interpretação tidas como incompatíveis com a Constituição Federal devem também decorrer de eventual declaração de inconstitucionalidade, especialmente por ser regra restritiva de garantia fundamental que, por isso, exige interpretação restritiva.
45 46
SÜSSEKIND, Arnaldo. Da coisa julgada inconstitucional. Consulex, Ano XIII nº 294. 2009. p. 62. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Nova Execução de Títulos Judiciais e sua impugnação. Material da 3ª aula da Disciplina Teoria Geral do Processo e Recentes Inovações Legislativas, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual: Grandes Transformações – UNISUL – REDE LFG. p. 14.
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Na verdade se está a fazer uma compatibilidade da redação do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil – presumidamente constitucional – com a garantia fundamental da coisa julgada (pois protegida pela Constituição Federal de 1988), com o objetivo de impedir que regra infraconstitucional a esvazie por completo. Ao mesmo tempo, está-se a justificar e preservar a necessária convivência entre os controles de constitucionalidade difuso e concentrado, para que aquele não seja aniquilado, sobretudo quando coberto pela garantia fundamental da coisa julgada, e impedir rediscussão indefinida da matéria e causando insegurança (incerteza) jurídica e perpetuidade da relação jurídica, sobretudo porque a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal/1988 - incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). Vale dizer: não se poderá, portanto, em toda e qualquer situação de controle concentrado (ou como se concentrado fosse), após operada a coisa julgada, desconstituir o título judicial, em princípio, imutável e indiscutível, exceto se isso se deu mediante declaração de inconstitucionalidade. Em suma, é a idéia de continente e conteúdo: quando no continente (controle concentrado) houve declaração de inconstitucionalidade de regra, por ter sido extirpada do sistema jurídico, ao conteúdo (difuso) se mostrará vedado declará-la constitucional, sob pena de atuação legislativo-positiva. Todavia o contrário é cabível: quando o continente (controle concentrado) declara constitucional e o conteúdo (difuso) declara inconstitucional, pois aqui será atividade atípica de legislador negativo. Tudo isso faz com que os controles concentrado e difuso convivam harmonicamente e preserve-se a garantia da coisa julgada e a presunção de constitucionalidade do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, mediante limitação de sua aplicação com base no princípio da separação dos poderes ou funções estatais.
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18. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e Coisa Julgada. 2ª Ed. Porto Alegre: Safe, 1988. 19. SORMANI, Alexandre. Coisa Julgada Inconstitucional. Revista da Ajufe, Ano 23 – Número 90. 2ª semestre/2008. 20. SÜSSEKIND, Arnaldo. Da coisa julgada inconstitucional. Consulex, Ano XIII nº 294. 2009. 21. ZAMPROGNO, Alexandre. Meios Processuais para Descontituir a Coisa Julgada Inconstitucional. Interesse Público – Ano 5, nº 22, novembro/ dezembro de 2003. Porto Alegre: Notadez. 2003.
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Controle Judicial de Constitucionalidade: O Contributo da Constituição de 1891 Edilson Pereira Nobre Júnior Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Professor da Universidade Federal de Pernambuco e da Faculdade Estácio do Recife. Mestre e Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Sumário: 1. O ambiente constitucional reinante no século XIX; 2. Inconstitucionalidade: conceito e competência para o seu reconhecimento; 3. Limitações formais ao controle judicial; 4. Restrições materiais; 05. Síntese conclusiva. Resumo: Neste trabalho aborda-se a importância da Constituição de 1891 para o favorecimento do desenvolvimento do controle de constitucionalidade no Brasil, apontando-se os institutos jurídicos pertinentes consignados no texto constitucional, a competência do Supremo Tribunal, os requisitos específicos de admissibilidade do recurso extraordinário e as conseqüências advindas desse controle, concluindo com uma crítica ao modelo então adotado no Brasil. Palavras-Chave: CONTROLE – CONSTITUCIONALIDADE – BRASIL – CONSTITUIÇÃO – 1891. Abstract: This article approaches the importance of the 1891 Constitution for the incentive to the development of the constitutionality control in Brazil, pointing out the pertinent juridical institutes consigned in the constitution, the competence of the Supreme Court, the specific requisites of the extraordinary resource admissibility and the consequences that come from such control, concluding with a critic to the model used in Brazil so far. Key- words: Control-Constitutionality-Brazil-Constitution-1891 1. O ambiente constitucional reinante no século XIX.
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Os movimentos constitucionalistas irrompidos nos séculos XVII e XVIII produziram três modelos constitucionais distintos e inconfundíveis. O primeiro deles foi o da Inglaterra que alcançou limitar, com a Revolução Gloriosa, alicerçada pelo Bill of Rights, de 13 de fevereiro de 1689, pretensão absolutista da monarquia, através de seu controle parlamentar. Um dos seus traços característicos foi o reconhecimento da supremacia do parlamento, refutando, assim, a doutrina que emanou do Bonham’s case de 16101. Com isto, sepultado restou o desenvolvimento da fiscalização judicial dos atos legislativos. O outro arquétipo, que pode ser sugerido como continuidade daquele de bases britânicas, repousa no oriundo da Revolução Americana, cuja consolidação se deu com a Constituição de 1787. Esta, demais de perfilhar a república presidencialista como forma de governo, consagrou a separação de poderes, com lastro na qual Legislativo, Executivo e Judiciário, estão sujeitos a controles recíprocos. Aliado a isso, o forte receio de abusos por parte do Legislativo, a partir da malsinada experiência com as medidas opressoras que as outrora treze colônias sofreram do parlamento londrino, criou propício clima a que o traço original da organização política estadunidense recaísse no controle de constitucionalidade das leis. Nesse sentido, convergiu doutrina tanto em O Federalista2 quanto com lastro na ordem valorativa implícita na Constituição3, tornando-se, assim, possível o reconhecimento, há aproximadamente duzentos e cinco anos atrás, no célebre Marbury versus Madison, de que a competência da legislatura está limitada pela Constituição, resultando inválida a lei quando com esta contrastar. Portanto, contrariamente à natureza mirífica ostentada na Inglaterra, a lei, para os colonos norte-americanos, significou fonte de opressão, acarretando-se a necessidade do controle da sua compatibilidade com a Constituição, a ser aferido pelos juízes, como a medida do equilíbrio entre os poderes estatais.
Cuida-se de julgado da Court of Common Pleas da Inglaterra, relativo à prisão do médico Thomas Bonham por ordem da respectiva entidade classista (Royal College of Physicians), no qual preponderou a lição de sir Edward Coke, no sentido de que o estatuto da corporação, que previa a medida restritiva da liberdade, afigurava-se inválido por atritar-se com o common law. Tais ensinamentos de Coke foram, em forma de livro (Institutes of the Laws of England, 1628-1644), trazidos às terras da América do Norte, cujos laços se acentuaram com a circunstância de Coke haver sido tutor de Roger William, fundador da colônia de Rhode Island, e cujas obras tiveram grande difusão perante os colonos americanos. Análise pormenorizada do Bonahm’s case, bem assim de sua importância, consta de Fernando Rey Martinez (Una relectura del Dr. Bonham ’case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review. Revista Española de Derecho Constitucional, a. 27, n. 81, p. 163-181, set./dez. 2007). 2 Conferir, especificadamente, texto de Hamilton que constitui o Capítulo LXXVIII. Há versão da obra em português (HAMILTON, Alenxander; MADISON, James; JOHN, Jay. O Federalista – Um comentário à Constituição Americana. Tradução: Reggy Zacconi de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1959). 3 Ver Artigos III, Seção II, e VI. 1
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À derradeira, tem-se o padrão constitucionalista surgido, no continente europeu, a partir da Revolução Francesa. Neste particular, cabe, inicialmente, traçar divisor de águas, entre o pensar dominante com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, e das constituições que lhe seguiram até a tomada do poder por Napoleão, nas quais à vontade das assembléias de representantes do povo se reservava primazia, e o surgimento da restauração monárquica, que implicou no reaparecimento da superioridade do poder real sobre os demais estamentos estatais. Qualquer que fosse a situação dentre as acima mencionadas, de notar-se é que a separação de poderes à francesa sempre repeliu a idéia do juiz analisar a constitucionalidade das leis4. Algumas razões podem ser invocadas: a) o mito da infalibilidade da lei como instrumento de igualdade e justiça; b) a repartição de poderes estaria preservada melhor se o controle dos atos dos demais poderes estatais ficasse a salvo do Judiciário; c) a desconfiança perante as pessoas dos juízes, em face da forte identificação destes com o ancien régime. Proclamada a independência, a nossa primeira Constituição, adotada a monarquia, preferiu o modelo cultivado na França que, à época, não mais era aquele do predomínio dos eflúvios do movimento de 1789, substituído pelo fortalecimento da monarquia ao depois da restauração da dinastia Bourbon. Daí a forte influência recebida da Carta Constitucional de 14 de junho de 18145, fazendo com que, no jogo dos poderes estatais, a Constituição de 25 de março de 1824 privilegiasse sobremodo a pessoa do Imperador, o qual, além da condução do Poder Executivo6, enfeixava, na condição de Chefe Supremo da Nação, o Poder Moderador, chave de toda a organização política, para o fim de que aquele pudesse velar, incessantemente, sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos7.
Prova insofismável disso, a Constituição francesa de 1791, promulgada nos estertores do reino de Luís XVI, em seu Título III, Cap. V, art. 3, dispunha: “3. Os tribunais não podem imiscuir-se no exercício do Poder Legislativo, nem suspender a execução das leis, nem encarregar-se de funções administrativas, nem citar para comparecer diante deles os administradores em razão de suas funções”. Tradução nossa a partir de texto em espanhol disponível em: http://constitucion.rediris.es/principal/constituciones-francia1791.htm#c5. Acesso em 10.11.2008. 5 Referido diploma realçava, em muito, o papel do rei, sendo interessante observar tanto a redação de seu preâmbulo quanto dos arts. 13 a 23, valendo notar exaltação de que a sua pessoa era, na condição de chefe supremo do Estado, inviolável e sagrada. Interessante notar que, em contraste com as constituições marcadamente liberais, a iniciativa do processo legislativo pertencia, com exclusividade, ao rei (art. 16). 6 O art. 102 da Constituição em comento, no decorrer de seus quinze incisos, traçava relevantes competências a serem exercitadas pelo Imperador como chefe do Poder Executivo. 7 Dentre as diversas atribuições inerentes ao Poder Moderador, nos termos do art. 101, I a IX, da Constituição de 1824, encontra-se a notável influência que o Imperador poderia exercer no funcionamento do Legislativo e 4
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E, como se não bastasse, o art. 15, VIII, da Constituição do Império, dispunha, às explícitas, ser atribuição da Assembléia Geral “fazer leis, interpretálas, suspendê-las e revogá-las”. Por sua vez, no rol de competências dos órgãos do poder judiciário, nem mesmo especificadamente quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, havia mínima referência que fosse a permitir compreensão de ser possível verificação de questão de legitimidade constitucional. Tudo isso serve para mostrar que a escolha em favor do modelo francês, levada a cabo pela Carta de 1824, com o acréscimo do clima político reinante, inviabilizou qualquer tentativa para a afirmação da possibilidade dos juízes verificarem o concerto entre aquela e as leis e demais atos normativos. O panorama fático para tanto somente adveio com a proclamação da república em 15 de novembro de 1889. Isto porque os Constituintes de 1891, não podendo adotar o figurino inglês e francês, em face da incompatibilidade que estes mantinham com o regime político escolhido, não tiveram alternativa senão a de buscar inspiração que uma centúria antes influenciou os Estados Unidos. A preocupação com o exame da constitucionalidade das leis estava presente, com relevo, em duas passagens inerentes ao Poder Judiciário. A primeira delas constou do seu art. 59, §1º, que, ao instituir entre nós o recurso extraordinário, prescreveu: Art. 59. Ao Supremo Tribunal Federal compete: (...) §1º Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade das leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas8.
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do Judiciário e das administrações municipais. Não fosse pela titularidade do Poder Moderador, não poderia D. Pedro II haver implantado, entre nós, regime de governo parlamentarista mediante o Decreto 523, de 20 de julho de 1847, sem reforma expressa do texto constitucional. A pujança do Poder Moderador restou imortalizada na pena de Pimenta Bueno: “O Poder Moderador, cuja natureza a Constituição esclarece bem em seu art. 98, é a suprema inspiração da nação, é o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma, de examinar o como os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente com os outros para o fim social, o bem-estar nacional: é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente de todas as instituições fundamentais da nação” (BUENO, José Antônio Pimenta. Marquês de São Vicente, 1. ed. São Paulo/SP: Editora 34. 2002. Coleção Formadores do Brasil, p. 280). O Constituinte restringiu o âmbito do recurso extraordinário gizado pelo Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que, no seu art. 9º, parágrafo único, alínea c, continha mais uma hipótese de cabimento daquele,
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Noutro passo, a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade estava no art. 60, alínea a, que, a pretexto de enumerar a competência da Justiça Federal, dispunha: “Art. 60. Compete aos juízes ou Tribunais Federais processar e julgar: a) as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal”. Complementando a disciplina, acima transcrita, havia o art. 59.2, o qual, à míngua da criação de tribunais federais de segundo grau de jurisdição, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o apanágio de órgão recursal das decisões da justiça federal. Entretanto, a práxis culminou por demonstrar enorme contribuição propiciada pela instituição, no art. 72, § 22, relativo à declaração de direitos, do habeas corpus, ensejando inúmeras oportunidades para que o Judiciário, verificando supostas ilegalidades ou abuso de poder, pudesse confrontar o texto magno com atos normativos e comportamentos estatais concretos. Desse modo, afigura-se interessante visão a ser extraída das observações da doutrina e da prática judiciária que, na sua avidez em procurar o sentido dos preceitos constitucionais acima indicados, buscou não só delimitar o alcance da competência jurisdicional de controlar a compatibilidade dos atos dos poderes públicos com a Constituição, mas também a fixação de parâmetros de atuação. Na execução da tarefa, inevitável o surgimento de algumas indagações, tais como o que, à época, se devia entender por inconstitucionalidade e quais órgãos poderiam conhecê-la? Estavam tais órgãos, no exercício de sua competência, adstritos a limites materiais e formais? As questões terão suas respostas desenvolvidas nas linhas seguintes. Isto sem omitir passagem sobre a nossa inicial experiência com a garantia constitucional do habeas corpus. 2. Inconstitucionalidade: conceito e competência para o seu reconhecimento. Ao comentar o §1º do art. 59 da Constituição republicana, que cogitava da validade de tratados, leis, federais e estaduais, e atos dos governos dos Estados, João Barbalho9 se mantinha convicto em afirmar que o preceito atribuía ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente, competência para aferir acerca da legitimidade constitucional do ato impugnado, ou seja, sua conformidade com a Constituição.
consistente: “Quando a interpretação de um preceito constitucional ou lei federal, ou da cláusula de um tratado ou convenção, seja posta em questão, e a decisão final tenha sido contrária à validade do título, direito e privilégio ou isenção, derivado do preceito ou cláusula”. 9 Constituição Federal Brasileira (1891)-comentada. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 242.
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Nessa hipótese, a lei poderia ser inconstitucional por seu objeto não se situar na competência legislativa da pessoa política que a editou, ou por contrariar as disposições constitucionais. Em segundo lugar, a inconstitucionalidade poderia ter lugar quando aferida a desconformidade do processo parlamentar de elaboração da lei com os respectivos preceitos da Constituição. Pela lição do autor já se antevia divisão, que sobrevive até os dias de hoje, fracionando os tipos de inconstitucionalidade em material e formal10. O fato da competência do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, resultar da impugnação de decisões anteriormente proferidas por juízes e tribunais estaduais mostra, estreme de dúvidas, que a competência para a análise da constitucionalidade das leis não lhe era exclusiva, pertencendo, igualmente, aos demais órgãos do Poder Judiciário. Isto se reforça com a previsão da competência dos juízes federais para conhecer as causas nas quais se fundasse a pretensão, ou a resposta, em dispositivo da Lei Magna. Neste ponto inclusive o art. 13, §10, da Lei 221, de 20 de novembro de 1894, era eloqüente11. A inspiração norte-americana não permitia outra conclusão. Prova disso Amaro Cavalcanti sustentou: O direito de resolver sobre a constitucionalidade de uma lei, tanto cabe ao Supremo Tribunal Federal, como aos tribunais e juízes inferiores, dentro da respectiva jurisdição. Onde quer que a questão for suscitada, o tribunal ou juiz deve pronunciar-se a respeito; porque o direito de aplicar a lei ao caso envolve necessariamente o de conhecer da validade ou legitimidade dela12. O reconhecimento da competência difusa foi além da meditação doutrinária, tendo sido alvo de ênfase jurisprudencial. Assim que, à guisa de motivação do HC 410, julgado em 16 de agosto de 1893, no qual se deferiu ordem impetrada por Rui Barbosa para a soltura de Mário Aurélio da Silveira, imediato do vapor Júpiter, o Min. Freitas Henrique frisou ser da competência
Consultar: José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 48) e Clèmerson Merlin Clève (A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 31-37). 11 O preceito continha o teor seguinte: “Os juízes e tribunaes appreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de applicar aos casos occurrentes as leis manifestamente inconstitucionaes e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”. 12 Regime Federativo e a República Brasileira. Brasília: Universidade de Brasília, 1983. Coleção Temas Brasileiros, v. 48, p. 203. 10
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do Judiciário como um todo dizer da validade, sob o prisma constitucional, das leis cuja aplicação é discutida13. Com isso, evidentemente, não se quer dizer que o Supremo Tribunal Federal ostentava papel idêntico ao dos demais órgãos jurisdicionais no particular da competência examinada. Absolutamente. Seja pela relevância de sua competência originária, ou pela competência recursal última, àquele foi apontada função de guardião-mor da autoridade da Constituição, singularidade divisada pela doutrina de então14, sem contar importante função de velar pelo pacto federativo, firmando a harmonia entre os Estados e a União. No exercício da competência recursal, resultante de influência norteamericana, através do Judiciary Act, assentou-se entendimento de que, para o conhecimento do recurso, importante que a questão da validade ou aplicações de tratados, leis federais e estaduais, a justificar o seu conhecimento, tivesse sido objeto de discussão e deliberação na decisão atacada. Tratava-se do que se convencionou denominar de pré-questionamento, que se consolidou como inabalável pressuposto específico de admissibilidade de dito recurso e que resultou de ponto de vista adotado inicialmente por julgamento de 11 de maio de 1895, tendo alcançado prosseguimento nos Recursos 275, de 26 de outubro de 1898; 670, de 19 de outubro de 1898; 1.303, de 28 de setembro de 1910 e 616, de 18 de novembro de 1911. Tal pressuposto, não assentado em texto explícito, antes resultava como decorrência natural de decisão que contestasse validade de tratado ou lei. E assim se impunha porque, conforme anotado por Pedro Lessa, o emprego da denominação “extraordinário”, só por só,
Interessante transcrever a seguinte passagem do pronunciamento: “Que incumbe aos Tribunais de Justiça verificar a validade das normas que têm de aplicar aos casos ocorrentes e negar efeitos jurídicos àquelas que forem incompatíveis com a Constituição, por ser esta a lei suprema e fundamental do país; Que este dever não só decorre da índole e natureza do Poder Judiciário, cuja missão cifra-se em declarar o direito vigente, aplicável aos casos ocorrentes regularmente sujeitos à sua decisão, se não também é reconhecido no art. 60, letra ‘a’, da Constituição que inclui na competência da Justiça Federal o processo e julgamento das causas em que alguma das partes fundar a ação ou a defesa em disposição constitucional;” (...). Os pronunciamentos jurisprudenciais citados, originários do Supremo Tribunal Federal, têm, com exceção do último deles, sua íntegra disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico= sobreStfConheca StfJulga mentoHistorico&pagina=principalStf. Acesso em 10.11.2008. Por isto, no decurso do trabalho, não serão indicadas as correspondentes fontes. 14 João Barbalho acentuou: “O carácter, attribuído ao supremo tribunal federal, de guarda e oráculo da Constituição nos assumptos submettidos a seo conhecimento e juízo, assigna-lhe tamanha proeminencia e é encarado como tão salutar, que a princípio deo logar a que, por mal comprehender-se o modo porque elle desempenha essa grandiosa funcção, se lhe fizessem pedidos directos de interpretações e consultas sobre intelligencia de disposições legaes” (op. cit., p. 235). O mesmo sucedeu com Amaro Cavalcanti (loc. cit., p. 109) quando, após reconhecer a condição do Supremo Tribunal Federal como órgão supremo do Poder Judiciário, alertou para o dever de máxima correção no cumprimento das prerrogativas e fins que lhe foram traçados pelo sistema político que regia o país. 13
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204 revela bem a principal diferença entre este recurso, que se interpõe de uma justiça para a outra e em casos especiais e muito limitados, e os recursos ordinários de que na mesma justiça, e num grande numero de casos, se utilizam os litigantes para o fim de obter a reforma das decisões da instância inferior pela superior 15.
Nesse diapasão, Carlos Maximiliano16 alertava ser conveniente fixar limites bem estritos ao cabimento do mencionado recurso. Antes, criticou tendência cotidiana do Supremo Tribunal Federal a paulatinamente transformar-se, com a via do recurso extraordinário, numa terceira instância ampla e lenta, justamente pela sua admissão sem maiores restrições17. Por isso, o recurso extraordinário não era cabível quando a decisão do Tribunal do Estado reconhecesse a validade dos tratados e leis federais, mas somente quando houvesse o reconhecimento da ilegitimidade constitucional daqueles. Igualmente, a decisão que deliberasse pela aplicação de tratado ou lei federal, contestada em face de preceito constitucional, não ensejaria o inconformismo recursal. Para tanto, fazia preciso houvesse decisão que os declarasse inaplicáveis ou simplesmente deixasse de aplicá-los. Já em havendo discussão que envolvesse suposta contrariedade entre dispositivo da Constituição e atos dos governos locais, de natureza legislativa ou não, o apelo extremo somente teria cabimento caso a decisão fosse pela validade dos atos impugnados diante da Lei Fundamental. A natureza extrema do recurso extraordinário foi além da percepção da doutrina, encontrando-se no rol das preocupações do legislador, em conformidade com o que se pode ver do art. 24, segunda parte, da Lei 221, de 20 de novembro de 189418. Num ponto, porém, penso ter havido interpretação alargada do art. 59, §1º, alínea b, pelo Supremo Tribunal Federal, pois, como nos informa João Barbalho19, no Recurso Extraordinário 91, julgado em 09 de dezembro de 1896, assentou-se
Do Poder Judiciário. Brasília: Senado Federal. 2003, p.103. Comentários à Constituição Brasileira de 1891. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1918. Edição fac-similar do Senado Federal, 2005, p. 617. 17 Parece que o autor, posteriormente consagrado em obra dedicada à hermenêutica jurídica, já vaticinava o caos que, nos dias atuais, viria instaurar-se no Pretório Excelso, com as estatísticas referentes ao quase concluso ano de 2008, retratando o ingresso de 87.529 processos em contraste ao número de 90.847 julgamentos. O quantitativo não deixa de ser animador quando se observa que, no ano de 2007, foram recebidos 119.324 feitos e julgados 159.522. 18 Eis o aludido preceito: “A simples interpretação ou applicação do direito civil, commercial ou penal, embora obrigue em toda a Republica, como leis geraes do Congresso Nacional, não basta para legitimar a interposição do recurso, que é limitado aos casos taxativamente determinados no art. 9º, paragrapho unico, letra (c) do citado decreto n. 848.” 19 Op. cit., p. 246. 15 16
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que a expressão “leis locais” compreendia não somente as leis promulgadas pelos Estados, englobando também as municipais20. O entendimento, ao que parece, mantém-se ainda hoje por força do art. 102, III, alíneas a e c21. Porém, o próprio João Barbalho22 vislumbrou possibilidade de interposição de recurso extraordinário quando a lide envolvesse discussão sobre a legitimidade de regulamentos, salientando que, em se configurando como normas complementares das leis, contendo medidas adequadas à sua boa execução, dão vigor e eficácia prática às leis federais. Assim, para manter a autoridade destas, dever-se-ia comportar a admissibilidade do apelo extremo23. A exemplo do que atualmente ainda acontece, o recurso extraordinário não estava sujeito a condicionantes de alçada. Não obstante preocupação doutrinária com a excepcionalidade do recurso em tela, poderia ter-se avançado mais, para o fim de limitar-se a abrangência do recurso ao que, atualmente, instituiu-se como repercussão geral pela EC 45/2004, a exemplo do que se tem como o writ of certiorari interposto para a Suprema Corte norte-americana. Sei que, para assim aportar-se, os norte-americanos se serviram da via legislativa, alterando-se, por algumas vezes, o Judiciary Act de 178924. No entanto, nada estava a impedir que, nestas plagas, tal tivesse ocorrido pela via interpretativa à luz do caráter extravagante e singular de tal recurso. 3. Limitações formais ao controle judicial. Competência tão importante, atribuída a um dos poderes do Estado, como a de dizer da constitucionalidade ou não dos atos dos demais poderes, não está isenta de limites. Pelo contrário, se o seu desempenho sucedesse sem restrição alguma, tornaria o Judiciário capaz de subordinar ao seu talante o comportamento do Executivo e do Legislativo.
O mesmo entendimento foi esposado por Carlos Maximiliano (op. cit., p. 617). Consultar: Pleno, RE 206.777- 6/SP, v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 30-04-99; 1ª T., RE 249.070-9/RJ, v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 17-12-99. 22 Op. cit., p. 246. 23 Na moldura atual do recurso extraordinário, o Pretório Excelso (1ª T., RE 265.297 – DF, v.u., rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 01-07-2005, p. 00056; 1ª T., AI – AgR 358.226 - SP, v.u., rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 23-08-2002, p. 00085) tem, em linha de princípio, afastado o seu cabimento nas hipóteses em que se discute possível violação da Constituição por dispositivo regulamentar, ora por reputar ausência de questão de constitucionalidade, porquanto tudo não passaria de confronto entre a lei e o dispositivo que a complementa, ora por ser caso de ofensa indireta, reflexa, do texto magno. 24 É de serem apontadas três modificações legislativas, quais sejam a de: a) 1891, a qual, a par da criação de tribunais intermediários (tribunais de circuito) entre a primeira instância da justiça federal e a Suprema Corte, diminuiu as hipóteses de apelação obrigatória e instituiu o writ of certiorari; b) 1925, que reduziu mais ainda os casos de apelação obrigatória e aumentou a discricionariedade da Suprema Corte para o conhecimento de recursos (discretionary power), instituindo o certiorari by pass; c) 1988, responsável pela eliminação das situações de apelação obrigatória, remanescendo a petition for writ certiorari como única via de acesso recursal à Suprema Corte. 20 21
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Por essa razão, tanto a doutrina quanto a jurisprudência se mantiveram ciosas em traçar limites a serem observados quando da aferição da compatibilidade vertical entre a Constituição e as leis e demais atos estatais. Hão de ser bipartidos em limites formais e materiais. Principiaremos pela análise do modo através do qual o Judiciário há de movimentar-se para exarar declaração de inconstitucionalidade. O primeiro ponto a ser aqui enfatizado é o de que, à vigência da Lei Máxima de 1891, não havia previsão para impugnação em tese de lei ou ato normativo sobre o qual pudesse pesar pecha de inconstitucionalidade. A dicção dos arts. 59 e 60 evidenciava que o controle judicial apenas teria lugar quando da solução dos conflitos de interesses que versassem pretensão resistida. Sem controvérsia concreta, não poderia advir declaração de inconstitucionalidade. A influência norte-americana mais uma vez assim impôs, conforme se poderia, à época, haurir de Cooley, para quem “os tribunais não têm autoridade par julgar de questões abstratas, ou de questões que lhes não tenham sido presentes em juízo, e, por conseguinte, nada têm a ver com as questões que se prendem exclusivamente a autoridades executivas ou legislativas”25. Imprescindível, assim, que, no curso do processo, alguma das partes suscitasse questão constitucional. Em comentário ao art. 60, aliena a, da Constituição de 1891, Pedro Lessa, com argúcia, trouxe infalível definição do que se deveria inferir por questão de constitucionalidade, ensinando: Uma acção proposta com fundamento na Constituição é, pois uma acção baseada directa ou immediata e exclusivamente em um preceito constitucional, e tem por fim evitar a applicação de uma lei, federal ou local, por ser contraria à Constituição, ou annullar actos ou decisões do governo nacional, dos Estados ou dos municipios (1), que igualmente contravêm aos preceitos constitucionaes. Uma acção cuja defesa é apoiada na Constituição é uma acção, em que o réu se defende, invocando directa ou immediata e exclusivamente um artigo constitucional, para o mesmo fim de evitar a applicação de uma lei, federal ou estadual, ou de annullar actos de alguns dos tres governos mencionados, em consequencia do vicio da inconstitucionalidade. 26
Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América. Campinas: Russel, 2002, p. 147. Tradução e anotações de Ricardo Rodrigues Gama à 3ª edição, publicada em 1898. 26 Op. cit., p.130/131 25
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Integrando o significado acima, a portar inconteste atualidade, o autor, cônscio da excepcionalidade do controle judicial em tela, alude à circunstância de que a questão constitucional, para assim qualificar-se, deve ser o único objeto da discussão jurídica, de modo que se há autônoma possibilidade desta ser resolvida com o emprego de outro argumento, não haveria que se cogitar de questionamento de compatibilidade vertical. Daí que, também atento a essa faceta, Amaro Cavalcanti envidou o conselho seguinte: Também, como regra, o judiciário não deverá pronunciar-se contra a validade de uma lei, sem que isso torne-se absolutamente necessário para a decisão da causa. Por isto, em qualquer caso, em que se suscite uma questão constitucional; o tribunal fará melhor, adotando esta última conduta, e deixando a questão da constitucionalidade fora de consideração, até que apareça, algum outro caso, em cuja decisão, seja aquela inevitável27. Considerada a importância e complexidade que envolve declaração de invalidade de ato para cuja formação concorreu manifestação do Legislativo e o Executivo, cujos membros foram escolhidos pelo povo, a doutrina de então28 recorria à recomendação de prudência, adotada pela jurisprudência norte-americana, no sentido de que uma lei somente pudesse ser declarada inconstitucional pela maioria absoluta do tribunal de justiça e não simplesmente pela preponderância de quorum acidental. Não havia disposição magna expressa sobre a matéria, o que veio a surgir somente com a Constituição de 1934, permanecendo a exigência até a Lei Fundamental vigente (art. 97), havendo, na atualidade, o Supremo Tribunal Federal se mostrado rígido quanto à sua observância29. Isso não impedia – e ainda hoje não impede – que o juiz singular pudesse deixar de aplicar uma lei ou ato normativo, ao reconhecer incidentalmente sua
Op. cit., p.204 Para Amaro Cavalcanti (op. cit., p. 203) tal deveria ocorrer porque, no controle de constitucionalidade, não se estava diante apenas da missão ordinária do juiz de julgar acerca da lei invocada sobre um fato, mas antes de um ato do Poder Público, superior à simples função judicial. Também sustentava idêntica preocupação Carlos Maximiliano (op. cit., p. 612). 29 Eis, portanto, o teor da Súmula Vinculante 10: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. 27 28
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inconstitucionalidade. Nem mesmo nos Estados Unidos há qualquer restrição a esse respeito30. Galvaniza atenção a incessante tentativa de delimitar o alcance da ação de habeas corpus. Incorporada ao nosso sistema jurídico com o Código de Processo Criminal do Império (art. 340), assomou ao texto constitucional com o § 22 do art. 72 da Constituição de 1891, assim redigido: “§ 72. Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”. A primeira constatação que o exercício de tal remédio implicou foi justamente diferenciação do que se poderia ter por direitos e garantias fundamentais. A individualidade destas vem realçada por ser instrumento de proteção dos direitos31. Outra particularidade estava em saber se poderia o juiz conceder o writ apenas quando buscasse o impetrante assegurar sua liberdade de locomoção, ou também poderia fazê-lo quando estivesse em disputa o exercício de outros direitos fundamentais? A questão rendeu acirrada controvérsia. A razão de ser da controvérsia, ao que tudo indica, decorrera da insuficiência da tutela proporcionada pela ação sumária especial, haja vista que o art. 13, § 7º32, da Lei 221, de 1894, excluía a competência judicial para suspensão do ato estatal impugnado33, sem contar que, à época, não vicejava forte sentimento doutrinário em favor do reconhecimento dum poder geral da cautela por parte do Judiciário. Carlos Maximiliano34 lançou acerba crítica à tendência que considerava o habeas corpus idôneo à tutela dos direitos em geral.
Elucidativa, a respeito, a leitura de Eduardo Vírgala Foruria(Control abstracto y recurso directo de inconstitucionalidad en los Estados Unidos. Revista Española de Derecho Constitucional, a. 21, n. 62, p. 77/124, mai.-ago. 2001). 31 A esse propósito, inexcedível lição de Rui Barbosa: “A confusão, que irrefletidamente se faz muitas vezes entre direitos e garantias, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve presidir a interpretação dos textos, e adultera o sentido natural das palavras. Direito “é a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar, ou não praticar certos atos”. Garantia, ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados, de ocorrência mais ou menos fácil” (Atos inconstitucionais. 2. ed. Campinas: Russel, 2004. p. 156) 32 Eis o preceito: “A requerimento do autor, a autoridade administrativa que expediu o acto ou medida em questão suspenderá a sua execução, si a isso não se oppuzerem razões de ordem pública.” 33 No particular, o relato de Amaro Cavalcanti: “O pensamento, que se depreende dos dispositivos dessa lei, é, antes de tudo, o de que a eficácia dos atos legislativos e administrativos, assim como o dever de obediência aos mesmos, deverão subsistir sem quebra, até que, por sentença judiciária proferida em processo regular, sejam tais atos declarados, por ventura, nulos ou carecedores de fôrça jurídica. O legislador de 1894 procurou tornar êste seu pensamento o mais claro possível, estatuindo, como advertência especial, no §7º do citado art. 13, que o autor podia requerer a suspensão do ato ou medida impugnada, – mas, dirigindo o seu requerimento à própria autoridade administrativa expedidora do ato, e esta poderá atendê-lo, ‘se a isto não se opusessem razões de ordem pública’. Não reconheceu, entretanto, a mesma faculdade à autoridade judiciária” (Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1956. Tomo II, p. 783-784). 34 Op. cit., p. 734. 30
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Porém, o Supremo Tribunal Federal, de fato, deferiu várias impetrações para que fossem assegurados outros direitos fundamentais que não a liberdade individual. Houve resistências, mas parcelares. Noutras ocasiões se conhecia do pedido, a pretexto de que, embora não sendo a liberdade de locomoção a utilidade imediata, sua proteção estava vinculada, de modo insuperável, ao desempenho de outro direito fundamental. Atraente a menção a alguns precedentes: a) HC 1.794, de 14 de janeiro de 1903, no qual prevaleceu ponto de vista no sentido de que o remédio jurídico impetrado não poderia ser utilizado como para afastar proibição de ingresso no país, como o caso do banimento imposto aos membros da família real pelo Decreto 78 – A, de 21 de dezembro de 1889; b) RHC 2.244, de 31 de janeiro de 1905 (rel. Min. Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro), sede onde, com fundamento no art. 72, §11, da Constituição, protegeu-se o impetrante contra ameaça de constrangimento legal decorrente da iminência de entrada de autoridade sanitária em casa do paciente, sem o consentimento deste, haja vista inexistir lei que a autorizasse; c) RHC 2.793, de 08 de dezembro de 1909 (rel. Min. Canuto Saraiva), interposto de decisão de juiz federal que negou habeas corpus impetrado contra ato do Presidente da República, consubstanciado no Decreto 7.689, que permitiu ao Prefeito do Distrito Federal o exercício de suas atribuições sem a colaboração do Conselho Municipal, por considerar este inexistente, tendo por lastro a legalidade do ato cuja execução é impugnada, não obstante o voto do Min. Pedro Lessa, para quem a negativa da ordem se impunha porque a finalidade buscada não foi garantir a liberdade individual, mas resolver questão de investidura em funções legislativas; d) HC 2.990, de 25 de janeiro de 1911 (rel. Min. Amaro Cavalcanti), cuja ordem foi deferida para assegurar aos impetrantes o direito de ingresso na Câmara Municipal do Distrito Federal, com vistas a que pudessem ingressar no edifício do Conselho Municipal para exercerem suas funções até o término do mandato; e) HC 2.794, de 11 de dezembro de 1909 (rel. Min. Godofredo Cunha), deferido para permitir aos pacientes o ingresso no edifício do Conselho Municipal para exercerem os direitos decorrentes de seus diplomas, frisando o Min. Amaro Cavalcanti a hipótese ser de proteção da liberdade de locomoção, a qual constituía um meio para o exercício duma multiplicidade de direitos; f) HC 3.061, de 29 de julho de 1911, onde se concedeu a ordem para assegurar aos impetrantes a livre locomoção e ingresso no edifício da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro35; g) HC 3.137, de 20 de janeiro de 1912, reputado prejudicado, não
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Em voto vencido, o Min. Godofredo Cunha salientou que, em sendo os fatos idênticos aos que ensejaram o deliberado no HC 2.984, o novo pedido de habeas corpus somente poderia ser recebido como reclamação para execução do primeiro acórdão. É, assim, possível visualizar em tal pronunciamento embrião do que, mais tarde, tem-se como reclamação para preservação da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l, CF), medida de extrema e presente relevância no controle de constitucionalidade em face da introdução do efeito vinculativo da ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, da ADPF e da súmula vinculante.
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obstante o reconhecimento, de passagem, de que o remédio ajuizado possui aptidão para garantir liberdade individual necessária ao exercício de funções políticas (rel. Min. Epitácio Pessoa); h) HC 3.536, de 06 de maio de 1914 (rel. Min. Oliveira Ribeiro), cuja concessão implicou o direito constitucional do impetrante, Senador Rui Barbosa, para publicar seus discursos proferidos da tribuna do Senado pela imprensa, onde, como e quando lhe convier, tendo o Min. Godofredo Cunha votado pelo não conhecimento do pedido, porquanto o habeas corpus é destinado tão-só a tutelar a liberdade pessoal; i) HC 3.697, de 16 de dezembro de 1914 (rel. Min. Enéas Galvão), cujo deferimento assegurou ao Senador Nilo Peçanha o direito para que ingressasse nas dependências do palácio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, a fim de exercer suas funções de presidente do Estado até o término do mandato; j) HC 4.781, de 05 de abril de 1919 (rel. Min. E. Lins), concedido para que o Senador Rui Barbosa, juntamente com os demais impetrantes, pudesse, no Estado da Bahia, exercer direito de reunião e de palavra publicamente nas praças, ruas, teatros e quaisquer recintos. Procurando evitar a elasticidade da garantia individual, a Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926 alterou a redação do art. 72, § 22, da Constituição, que passou a constar: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”36. Com isso, advieram inúmeras tentativas voltadas ao surgimento de nova garantia constitucional, justamente para preservar, com maior intensidade, outros direitos fundamentais diferentes da liberdade individual, resultando-se, com a Constituição de 16 de julho de 1934 (art. 113, nº 33), no mandado de segurança37. 4. Restrições materiais. Passando-se aos óbices de conteúdo, interesse despertou o de saber se o Judiciário poderia enveredar pelo conhecimento de questões políticas. Mesmo à míngua de norma proibitória expressa, como se deu nas Constituições de 1934 (art. 68) e 1937 (art. 94), foi freqüente o evocar, por ocasião
Respondendo, por ocasião de discurso pronunciado na Câmara dos Deputados no ano de 1926, ao que denominou de fulminações da “esquerda parlamentar” contra o projeto de revisão constitucional, frisou Francisco Campos, quanto à restrição explicitada para o habeas corpus, que: “A natureza do habeas-corpus, repito, está legitimamente restaurada no texto da reforma. Nem nunca foi outra coisa, o habeas-corpus, nas nossas tradições judiciárias, senão o remédio destinado a assegurar, proteger e tutelar a liberdade de locomoção” (Direito constitucional. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956. v. II, p. 368). 37 Cf. narrativa constante de estudo de nossa autoria (Mandado de segurança coletivo e sua impetração por partido político, Revista Cuestiones Constitucionales, Ciudad Universitaria, n. 16, p. 282-283, rodapé 2, jan./jun. 2007). 36
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das contestações de atos emanados do titular da Presidência da República, da exceção, consoante a qual, no exercício do controle jurisdicional, haveria zona imune à penetração deste, qual seja a da matéria essencialmente política. Esse mito foi superado pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal. Em sua memorável peleja contra os atos perpetrados pelo Presidente Floriano Peixoto, é sabido que Rui Barbosa não se cansou em alardear mensagem de que a ação do Executivo e do Legislativo tinha como forçado encerro a Constituição. Dentre os inúmeros pleitos que deduzira judicialmente, é de serem destacadas razões apresentadas em ações de reparação civil propostas perante a Justiça Federal em favor das pessoas atingidas pelos atos de reforma e demissão vazados através dos Decretos de 07 e 12 de abril de 1892. Foi levantada objeção de não possuir o Judiciário a competência para o exame do pleito, por envolver assunto de natureza política. Forte no ensinamento de Marshall38, Rui soube bem enquadrar a exceção, reduzindo-a para situações onde o Congresso ou o Executivo emitem comportamentos em assuntos sujeitos, por força da Constituição, à sua livre discrição, não atingindo, por isso, direitos fundamentais do cidadão. Tanto que deixou claro, por isso, ser inadmissível impugnação direta duma lei, porque, se assim pudesse ser realizado, exorbitaria o judiciário o alcance de sua competência, o que não impediria os atingidos de resguardarem seus direitos individuais contra os atos embasados no comando legal. A proteção dos direitos individuais, em nenhum instante, poderia ser obstada pela alegação do exercício de função política pelo Executivo ou Legislativo, poderes que, por serem órgãos políticos do regime, têm suas funções, sem exceção, adornadas pelo adjetivo político. Isto seria o mesmo que permitir que aqueles fundassem e desenvolvessem o reino do arbítrio39. O pensar acima, após iniciais reveses, alcançou receptividade no Supremo Tribunal Federal. Inicialmente se mencione o HC 300, de 27 de abril de 1892,
Incisivo, Marshall, no Marbury vs. Madison, de 24 de fevereiro de 1803, elucidou imperiosa distinção: “... quando os responsáveis dos ministérios são agentes políticos, ou de confiança do Executivo, limitando-se a executar a vontade do Presidente, ou, em geral, atuando em casos nos quais o Executivo dispõe dum âmbito constitucional ou legal de discricionariedade, nada pode estar mais claro que estes atos são somente politicamente fiscalizáveis. Porém, quando a lei estabelece um dever específico, e existem direitos individuais que dependem do cumprimento deste dever, está igualmente claro que o cidadão que se considere prejudicado tem o direito de recorrer às leis de seu país em busca de uma reparação” (tradução nossa a partir de versão espanhola disponível em: www.der.uva.es. Acesso em 31-10-2008). 39 A teorização desenvolvida sobre o assunto por Rui Barbosa é encontradiça em os Atos Inconstitucionais (p. 105-119). Devido à extensão dos fundamentos que a ampara, interessante transcrever-se parte das conclusões: “Atos políticos do Congresso, ou do Executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da justiça, consideram-se aqueles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo. Em prejuízo 38
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impetrado por Rui Barbosa em favor do Senador Almirante Eduardo Wandenkolk e outros, detidos e desterrados por ordem do Marechal Vice-Presidente da República, conforme os Decretos de 10 e 12 do referido mês. O Pretório Excelso denegou o pedido sob consideração de incompetência, afirmada com base nos seguintes argumentos: a) antes do juízo político do Congresso não poderia o Judiciário examinar o uso que fez o Presidente da República da atribuição constitucional de lançar mão do estado de sítio, uma vez não ser da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se em questões políticas; b) ainda que, na situação criada pelo estado de sítio, possam estar envolvidos alguns direitos individuais, tal não habilita o poder judicial a intervir para nulificar os atos presidenciais, visto ser impossível isolar esses direitos da questão política que os envolve. Na assentada, é de registrar voto vencido do Min. Pisa e Almeida que, fundado no art. 80, entendia que a competência prevista neste dependia de lei, ainda não editada. Por ocasião do HC 1.073, de 02 de abril de 1898, impetrado em favor de parlamentares e militares, o Supremo Tribunal Federal, novamente instado a pronunciar-se sobre coações determinadas (prisões e desterros) em estado de sítio decretado em 1897, deferiu a ordem, expondo, timidamente, que tal medida não está isenta de observância à Constituição, seja porque não poderia suspender imunidade parlamentar, a qual é inerente à função de legislar e, com isto, importa essencialmente à autonomia e independência do Poder Legislativo, seja porque a ação judiciária suspensa durante o estado de sítio, com o fim deste se restabelece e revigora. Sem embargo do voto do relator, Min. Lúcio Mendonça, limitar o campo de atuação judicial à cessação do estado de sítio, a parecer, assim, inclinar-se pela incompetência como regra do Supremo Tribunal Federal, o Min. Macedo Soares, ao depois de realçar a arbitrariedade do estado de sítio em causa, frisou que o Judiciário possui competência para sua apreciação, para o fim de verificar se a competência presidencial foi além do demarcado pela Constituição, salientando que, mesmo antes do exame congressual, aquele pode exercer sua função de controle, caso, por ato inconstitucional, esteja em jogo liberdade individual40.
destes o direito constitucional não permite arbítrio a nenhum dos poderes. Se o ato não é daquele que a Constituição deixou à discrição da autoridade, ou se, ainda que o seja, contravém às garantias individuais, o caráter político da função não esbulha do recurso reparador as pessoas agravadas. (...) A violação de garantias individuais, perpetrada à sombra de funções políticas, não é imune à ação dos tribunais. A estes compete sempre verificar se a atribuição política, invocada pelo excepcionante, abrange em seus limites a faculdade exercida.” (op. cit., p. 118-119). 40 Considerando-se que talvez tenha sido esta a primeira manifestação, com robustez, do afastamento da imunidade do controle judicial dos atos ditos políticos, interessante transcrição de passagem do pronunciamento: “Em face de nosso atual regimen, é indiscutível a competência do Poder Judiciário Federal para manter a inviolabilidade da Constituição, que não pode flutuar à mercê dos caprichos dos dois outros
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Outra oportunidade recaiu no HC 1.974, de 14 de janeiro de 1903, impetrado em favor de Gastão de Orleans e demais membros da ex-dinastia brasileira de Bragança, para que pudessem, sem prejuízo de suas liberdades físicas, ingressar e demorar no território nacional, ao argumento de que o Decreto 78 – A, de 21 de dezembro de 1889, foi revogado pela Constituição de 1891, havendo o Supremo Tribunal Federal não conhecido do pedido. Dentre os diversos votos que se alinharam com a maioria, destaque-se o do Min. João Barbalho, para quem o decreto cuja execução era impugnada, surgindo do triunfo do movimento republicano, constituía conseqüência necessária da abolição do Império e complementar da proclamação da República, motivo pelo qual a contestação de seu caráter puramente político significaria subversão de princípios e desconhecimento dos fatos, capaz de pôr em risco a estabilidade e segurança do novo regime. Situava-se o tema, ao entender do referido julgador, inteiramente fora da missão constitucional do Supremo Tribunal Federal41. Digno de nota foi o HC 2.990, de 25 de janeiro de 1911, impetrado em favor de membros do Conselho Municipal do Distrito Federal, para que pudessem ingressar no prédio do referido órgão legislativo para o fim de exercer suas funções até o término dos seus mandatos, o que foi obstado por Decreto do Presidente da República, de 04 de janeiro do mencionado ano. A ordem foi concedida com base no voto do relator, Min. Pedro Lessa, o qual inferiu que o ato impugnado não era daqueles de natureza política, entregue unicamente à discrição do Legislativo, ou Executivo, ensejando-se, assim, a competência do Judiciário para a sua análise. A ofensa injusta à liberdade pessoal justificava o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
órgãos da soberania nacional. Assim, pois, se as medidas discricionárias do chefe do Poder Executivo, durante o estado de sítio, têm os seus limites na lei fundamental, que da mesma sorte indica nesta grave emergência da vida social qual o procedimento que assiste ao Congresso, é manifesto que a inobservância de tais preceitos abre espaço à intervenção do Poder Judiciário. O estado de sítio não significa a suspensão de todas as garantias, mas tão somente daquelas que se acham mencionadas no art. 80, n.2, da Constituição, e de cujo emprego o Presidente da República “logo que se reúna o Congresso, motivando-as lhe relatará”. Por conseguinte, tudo que for além de tais medidas dará então lugar a intervenção do Poder Judiciário, antes ou depois do juízo político do Congresso, por não se tratar mais de atos praticados dentro da órbita constitucional, porém de violência à liberdade individual, que tem no habeas corpus, o meio legítimo de fazer cessar esse constrangimento. E nem seria admissível que, tendo o nosso estatuto político, por intuitiva precaução, restringido a ação do Poder Executivo, durante o estado de sítio, pretender-se condenar à inércia o Poder Judiciário Federal diante de quaisquer abusos que porventura se pudesse praticar à sombra dessas medidas de salvação pública.” 41 Entendimento similar se deu no HC 2.437, de 11 de maio de 1907, no qual foi negado pleito de regresso ao Brasil formulado por D. Luiz de Orleans e Bragança, havendo ficado vencidos os Ministros Amaro Cavalcanti e Alberto Torres, este com talentosa declaração de voto-vencido, concluindo pela desconformidade do Decreto 78 – A, de 1889, com a então vigente Constituição.
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De ressaltar-se o HC 3.601, de 29 de julho de 1911, e o HC 2.984, impetrados por deputados da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em detrimento de suposta intervenção federal que implicou suspensão dos trabalhos legislativos por ação da força pública federal que, ocupando o edifício da referida repartição legislativa, vedava-lhes o ingresso em dito recinto. Em ambas situações, o Supremo Tribunal Federal deferiu a ordem, havendo, na primeira das oportunidades citada, o relator, Min. Amaro Cavalcanti afastado óbice inerente ao conhecimento pelo Judiciário de matérias políticas, argumentando que esta regra somente se aplica quando, no caso concreto, o ato impugnado é da atribuição exclusiva de dado poder político, nos termos expressos da Constituição e que, na situação presente, aquele se reduzia a um simples ato de coação, praticado pela força federal a instâncias do Presidente da República, privando os impetrantes de ingressaram no edifício legislativo e, portanto, de exercerem suas funções. Quanto ao segundo dos julgamentos, apesar da prevalência de idêntico ponto de vista, veio a lume voto-vencido do Min. Godofredo Cunha que, ressaltando o caráter político do ato de intervenção federal, sustentava a impossibilidade de verificação de sua ilegalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Limitação da qual não se deve perder de vista se constitui em advertência no sentido do órgão judicial, ao se deparar com exame de questão constitucional, agir com bastante cautela e somente propender pela solução da incompatibilidade da lei com a Norma Ápice quando tal se mostrar evidente e acima de meras dúvidas. Essa lição, encontradiça em Amaro Cavalcanti42, tem, mais uma vez, seu lastro na experiência norte-americana, e resulta do caráter excepcional do controle de constitucionalidade, mostrando ao juiz o dever de procurar, o máximo possível, salvar o texto da lei ou do ato normativo impugnado43. Daí resulta o princípio da conservação que tem seu substrato na interpretação conforme a Constituição. Caso, dentro de alguns dos seus possíveis significados, o texto questionado possua um que se harmonize com a Lei Máxima, a declaração de inconstitucionalidade haverá de ser evitada.
42 43
Op. cit., p. 203. É como diz García-Pelayo (Derecho constitucional comparado. 3ª reimpressão. Madri: Alianza Editorial, 1993, p. 431), comentando o sistema americano, quando o juiz se depara com a possibilidade duma lei ser suscetível de duas interpretações, gravitando em torno da invalidade e da validade do texto legal, deverá preferir esta última.
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Dentre valiosas recomendações doutrinárias, já se atentava para o seguinte: a) a validade da legislação nunca deveria ser aferida em face dos motivos que influenciaram na sua adoção, quaisquer que fossem 44; b) não poderia cogitar-se de ofensa à Constituição pela contrariedade de princípios abstratos de justiça45. Não é possível olvidar impressão então prevalecente sobre qual a eficácia duma declaração de inconstitucionalidade de lei proferida pelo Judiciário, emane ou não do Supremo Tribunal Federal. Pedro Lessa46, atento ao praticado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, afirma que, ao julgar demanda fundada em preceitos constitucionais, reconhecendo incidentalmente inconstitucionalidade duma lei, o Judiciário não a invalida como ato autônomo. Apenas despreza sua aplicação, invalidando ato que nela teve seu embasamento. Essa declaração incidental, até por força do princípio da conservação dos atos jurídicos, pode dirigir-se à lei em sua totalidade ou a alguma de suas partes. Ora, o fato de parcela duma lei ser inconstitucional não implica, só por só, que o restante assim seja, salvo se veicule disposições que guardem conexão ou dependência entre si. Compartilha desse ponto de vista Amaro Cavalcanti47, porquanto, mesmo apontando a nulidade da lei como decorrência da declaração de sua inconstitucionalidade, manifesta-se por, igualmente, circunscrever a eficácia da decisão ao caso sob julgamento, embora a decisão possa obrigar os particulares e os demais ramos do Poder Público, se estes figurem como partes ou interessados na questão. Para Carlos Maximiliano48, é a nulidade o efeito da declaração de inconstitucionalidade em última instância duma lei. Porém, não especificou o autor se tal ocorre apenas no caso concreto ou se com eficácia erga omnes. Apesar dessa omissão, interessante notar ser possível atribuir àquele contributo que pode, entre nós, ser apontado como embrionário para a afirmação do que, na atualidade, convencionou-se denominar efeitos prospectivos da declaração de inconstitucionalidade.
Cf. Amaro Cavalcanti (op. cit., p. 206). Assim Carlos Maximiliano (op. cit., p. 617), referindo-se ao cabimento do recurso extraordinário. 46 Op. cit., p. 138-139. 47 Op. cit., p. 207. 48 Op. cit., p. 120-121. 44 45
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Isso porque, como sustém o autor49, a lei ou ato estatal, enquanto não declarado inconstitucional, porta presunção de legitimidade, a atuar em favor daqueles que, civil, criminal ou administrativamente, agiram de acordo com os seus comandos. Ao enumerar as impressões doutrinárias relativas aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade – as quais tiverem inspiração no modelo americano, até por ser o único que então teorizava sobre a possibilidade do controle judicial – a doutrina e jurisprudência brasileira padeceram de defeito de importação. Isso se dá à medida que se observa que os norte-americanos, apesar de terem limitado a eficácia da declaração à controvérsia, indiretamente, por força da regra da obrigatoriedade do precedente, transpunham a tal deliberação eficácia contra todos e vinculativa. Os textos nacionais, mesmo tendo praticamente recolhido sua sistematização sobre o assunto da práxis norte-americana, em nenhum instante atentaram que, em face do papel do Supremo Tribunal Federal de guardião-mor da autoridade e uniformidade interpretativa da Constituição, que os arts. 59 e 60 deixavam entrever, pudesse as suas decisões possuir algo mais do que a mera inaplicação da lei para o caso concreto. Tal equívoco, diante da multiplicidade de causas ajuizadas com fundamento constitucional – tendo em vista que, a partir de 1934, o âmbito da regulação fundamental legal foi cada vez mais se ampliando, para atingir muitos assuntos além da organização dos poderes e dos direitos fundamentais de primeira geração -, submetidas ao descortino de inúmeros órgãos judiciais, monocráticos ou colegiados, acarretou intransponível necessidade de instituição: a) de competência – atualmente objeto de acesa discussão sobre sua utilidade – do Senado Federal para suspender, no todo ou em parte do território nacional, execução de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal; b) da ação declaratória de constitucionalidade, com a finalidade de inserir, nestas plagas, o instituto do efeito vinculante, o que se deu com a promulgação da EC 03/93; c) extensão, igualmente por força de mais uma mudança formal do texto sobranceiro (EC 45/2004), do efeito vinculativo às decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade; d) da súmula
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Loc. cit., p. 121.
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vinculante, cuja elaboração e aplicação vem fomentando perplexidades não só à comunidade jurídica, mas à sociedade como um todo. A adoção integral da lição americana, sem dúvida, teria simplificado – e muito – nosso atabalhoado sistema de fiscalização de constitucionalidade, assegurando maior estabilidade e segurança jurídica na aplicação dos comandos constitucionais. Outra particularidade consistia em saber se o Judiciário poderia atuar de ofício, sem suscitação da questão de constitucionalidade por quaisquer das partes50. Carlos Maximiliano se inclinou contra a possibilidade51. Em sentido oposto, Lúcio Bittencourt52 afirmou que tal advertência não se deveria compreender como vedação peremptória. A nulidade da lei inconstitucional não estava a obstar que, uma vez levada uma questão a juízo, pudesse o magistrado, mesmo à míngua de tal matéria não constar da causa de pedir, reconhecer inconstitucionalidade duma lei se entendesse relevante para o julgamento da causa. O que estaria interditado ao Judiciário era assim operar sem que exista demanda instaurada a pedido da parte interessada53. Particularidade interessantíssima, para a qual o Supremo Tribunal Federal à época já se mostrava atento, concernia a saber se era possível o dispositivo acoimado de inconstitucional ser emenda constitucional. Melhor explicando, competiria ao Judiciário controlar a observância, pelo poder constituinte derivado, das limitações impostas através da ação do poder constituinte originário. Cogitava-se, pela via do habeas corpus, da validade da Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926, cuja inconstitucionalidade consistiria no não respeito ao quorum do art. 90 da Constituição. O Pretório Excelso, por maioria de votos, denegou a ordem54. Na oportunidade, assomou pronunciamento vencido do
Sem embargo de representar limite formal, a sua conexão com a temática dos efeitos das decisões de inconstitucionalidades faz com que seu tratamento seja deslocado como conseqüência daqueles. 51 Incisivo o comentário do autor: “Interprete da Constituição, e mais autorizado que os outros, é o Poder Judiciário. Não age, todavia, sponte sua; pronuncia-se contra a validade de actos do Executivo ou do Congresso Nacional quando os prejudicados o reclamam, empregando o remédio juridico adequado à especie, obedecendo aos preceitos formaes para obter o restabelecimento do direito violado” (loc. cit., p. 116). 52 O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 113. 53 A admissibilidade do Judiciário, de ofício, verificar possível inconstitucionalidade constitui, na atualidade, entendimento preponderante no Pretório Excelso (Pleno, RE – ED 219.934 – SP, v.u., rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 26-11-2004, p. 6). 54 Tratou-se do HC 18.178, julgado nas sessões de 27 e 29 de setembro e 01 de outubro, assim ementado: “Na tramitação parlamentar da Reforma Constitucional não foi violada cláusula alguma da Constituição da República. O quorum de approvação das emendas à Constituição é de dois terços dos votos dos congressistas presentes. O poder judiciário continúa competente para conhecer de habeas-corpus durante o estado de sítio desde que as medidas tomadas pelo Executivo ultrapassem os limites fixados no art. 80 da Constituição”(Revista Forense, v. XLVII, fascículos 277 a 282, jul.-dez. 1926, p. 748). 50
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Min. Guimarães Natal, expondo, com pujança argumentativa, a possibilidade do controle jurisdicional das reformas à Constituição55. 05. Síntese conclusiva. Expostas estas linhas, emergem alguns remates, a saber: a) evadindo-se do norte que guiara a elaboração da Constituição de 1824, assaz apegada ao constitucionalismo francês da Restauração, a Lei Maior de 1891, moldada sob a inspiração do modelo norte-americano, favoreceu ao desenvolvimento do controle judicial de constitucionalidade, fenômeno que, materializado através da previsão do recurso extraordinário (art. 59, §1º) e da competência da Justiça Federal (art. 60, a), teve notável incremento com a garantia do habeas corpus; b) em face do incipiente, mas salutar, desempenho do controle jurisdicional, restou consagrada bipartição do conceito de inconstitucionalidade (formal e material), bem assim a afirmação de que a competência verificadora se espargia, difusa, dentre todos os juízos e tribunais, sem prejuízo de que, quanto ao Supremo Tribunal Federal, fosse reconhecida sua qualidade de guardião-mor da supremacia constitucional; c) no que concerne à competência recursal do Pretório Excelso, em virtude do reconhecimento da sua natureza excepcional, foram agregados requisitos específicos com a finalidade de restringir sua admissibilidade, tais como o préquestionamento e interpretação restritiva das hipóteses do art. 59, §1º, alíneas a e b;
55
Pela sua incontestável importância histórica, transcrevemos relevante trecho da deliberação: “A primeira questão a se examinar é a de saber se o Judiciário tem ou não competencia para conhecer da arguição de inconstitucionalidade da reforma constitucional. Para mim, não há a menor dúvida que tem. Nos termos do art. 60, letra a, da Constituição desde que seja submetida ao conhecimento do Judiciário uma causa em que a parte funde a acção, ou a defesa na Constituição, não poderá elle se esquivar ao dever de verificar se o preceito constitucional, invocado pela parte, effectivamente a protege, ao de fazer valer o direito da parte contra qualquer lei do Congresso, que o violou, violando o dispositivo garantido. A Constituição não distingue nas leis as que podem das que não podem ser arguidas de inconstitucionalidade. Por tanto, todas o podem, inclusive a lei da reforma constitucional que é, como todas as leis, disciplinada também, em sua elaboração, por preceitos constitucionaes, que, para a sua validade, deverão ser rigorosamente observados. E´ do regimen politico que adoptamos, de poderes limitados, que nenhuma funcção será relativamente exercida sem que se contenha estrictamente dentro da órbita que traça a Constituição ao poder que a exerce. E por força do citado dispositivo da letra a do art. 60, ao Judiciario é que incumbe, quando a isso regularmente provocado, pronunciar a inefficiencia do acto exorbitante e desconforme com os preceitos constitucionaes. Mais que as leis ordinárias as destinadas a alterar a Constituição deveriam ser sujeitas, como foram, a exigências de tal modo rigorosas, que, de um lado, difficultassem as alterações, assegurando a estabilidade das instituições políticas, do outro trouxessem a certeza de que ellas representavam a aspiração nacional traduzida por uma respeitável maioria de suffragios. Essas exigências consagrou-as o legislador constituinte no art. 90 da Constituição e sem sua fiel observância a reforma não poderá prevalecer contra os textos primitivos, que ella alterou” (Revista Forense, v. XLVII, fascículos 277, a 282, jul.-dez. 1926, p. 769/770).
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d) a atividade de controle, submetida a limites de forma, somente poderia ser desempenhada na presença de litígio entre partes, para cuja solução fosse indispensável apreciar questão de legitimidade constitucional, sendo adotado posicionamento consoante o qual, à vista da relevância que o assunto envolvia, os tribunais somente deveriam declarar inconstitucionalidade quando houvesse concordância da maioria absoluta de seus membros; e) grande importância, no exercício do controle de constitucionalidade, foi a da via do habeas corpus, a qual, demais de permitir nítida diferenciação entre direitos e garantias individuais, teve, até a Emenda Constitucional de 1926, seu âmbito alargado para permitir a defesa não só da liberdade de locomoção, mas de outros direitos fundamentais a esta conexos; f) resultante da atividade de controle se pode apontar, dentre outros, o afastamento da imunidade absoluta dos atos políticos, uma vez que, em lesando direitos individuais, seria possível a atuação do Judiciário, a tendência à conservação, o máximo possível, dos atos estatais questionados, dada sua presunção de legitimidade, a nulidade como efeito do reconhecimento da inconstitucionalidade e a possibilidade de ser suscetível de questionamento a validade de emenda constitucional. Evadindo-se à forma adotada para este tópico, não poderia omitir que de tudo isso restou evidenciado, à época, o elevado grau de desenvolvimento do sistema americano de controle da constitucionalidade, tanto que a ausência de atenção de nossa doutrina e jurisprudência para a regra da observância dos precedentes, que poderia ser extraída pela posição proeminente do Supremo Tribunal Federal na guarda da Lei Fundamental, fez com que, décadas mais tarde, se tornasse demasiado e formalmente complexo nosso modelo, com a transposição para o texto constitucional da (desnecessária) ação declaratória de constitucionalidade, da competência do Senado Federal, atualmente acoimada de anacrônica56 e da dupla previsão, no texto sobranceiro, de efeito vinculativo. Porventura tal se deveu às condições políticas e sociais de nossa prática republicana que, contrariamente à tradição norte-americana, não criou clima propício a que a interpretação constitucional levada a cabo pelo Supremo Tribunal Federal se erigisse à condição de moderadora da atividade dos poderes públicos e das relações jurídicas entre particulares. Fica registrado o lamento.
56
Ver MENDES, Gilmar Fererreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1.082.
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A cooperação jurídica internacional em matérias penal e as dificuldades enfrentadas no direito brasileiro
Marco Bruno Miranda Clementino Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Membro do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. Especialista, Mestre e Doutorando em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Resumo: O artigo trata da cooperação jurídica internacional em matéria penal, sob o enfoque da globalização das relações internacional e do surgimento de crimes transnacional, com ênfase nas dificuldades enfrentadas no direito brasileiro no que diz respeito à matéria. Abstract: The article broaches international legal assistance in criminal matters, focusing international relations’ globalization and the appearance of transnational crimes. It also emphasizes difficulties faced in Brazilian Law on this matter. Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. GLOBALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS: O ILÍCITO TRANSNACIONAL (EXTRATERRITORIAL). 3. CRIME E TERRITORIALIDADE PENAL. 4. NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. 5. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL: CONCEITO, FUNDAMENTO E CARACTERÍSTICAS. 6. CLASSIFICAÇÃO. 6.1. QUANTO À POSIÇÃO DO SOLICITANTE. 6.2. QUANTO AO CANAL UTILIZADO. 6.3. QUANTO À NATUREZA DA COOPERAÇÃO. 7. AUTORIDADE CENTRAL. 8. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL NO BRASIL. 9. INSTRUMENTOS LEGAIS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. 10. CONCLUSÃO. 11. BIBLIOGRAFIA.
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1. INTRODUÇÃO É lugar comum nos escritos dos autores que se dedicam ao direito penal internacional uma postura de verdadeiro apelo à comunidade jurídica para que repense o direito penal sob o paradigma de uma sociedade global, que transcende à figura do Estado clássico. Esses autores têm se preocupado com o dado empírico de que, se os fatos humanos não mais respeitam as fronteiras, é evidente que esse fenômeno abrange os fatos maculados pela ilicitude, inclusive pela ilicitude máxima, que é o crime. Quintano Ripollés, a esse respeito, chega a afirmar, sob a premissa do conceito de crime segundo Carnelutti, que as normas penais realizam apenas parcialmente o objetivo de eliminar o mal em suas formas de manifestação antissocial externas 2. O presente trabalho também traz a marca dessa preocupação, decorrente da constatação de que o crime efetivamente não mais respeita as fronteiras e de que ainda não se vê consolidada no direito penal uma estrutura dogmática que lhe permita fazer face, com o mínimo de eficiência, às particularidades do contexto de transnacionalização das relações jurídicas. É verdade que essa dificuldade é encontrada no direito público como um todo, mas isso não afasta a necessidade de a questão ser posta também no direito penal, sobretudo se se considerar a importância de seu objeto. Assim, essas premissas filosóficas são estabelecidas como justificativa para abordagem do objeto específico sobre o qual se propõe discorrer: a cooperação jurídica internacional em matéria penal. Instituto do direito penal internacional, em cuja teoria se insere, a cooperação jurídica internacional tem adquirido relevância entre os estudiosos do direito penal não apenas por significar uma resposta à preocupação dos autores já referidos, mas também pela inequívoca utilidade que lhe tem sido reconhecida no combate à criminalidade transnacional, até pela peculiaridade de ser implementada pelos próprios Estados e sem a necessidade de intervenção de organizações internacionais. A proposta do trabalho é, assim, a de resgatar, sob esse pano de fundo, a descrição do fenômeno da cooperação jurídica internacional, enfatizando particularmente o modo como o instituto vem sendo utilizado no direito brasileiro e as dificuldades que vêm sendo enfrentadas tendo em vista o modelo dogmático atual.
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RIPOLLES, Antonio Quintano. Tratado de Derecho Penal Internacional e Internacional Penal. Madrid: Instituto Francisco de Vitória, 1957. v. 2.
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2. GLOBALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS: O ILÍCITO TRANSNACIONAL (EXTRATERRITORIAL) A sofisticação dos canais de comunicação entre os indivíduos inaugurou um novo momento nas relações jurídicas privadas, marcado pelo seu cada vez maior caráter transnacional. Contratos são celebrados à distância, por meios antes tidos por não-convencionais, a exemplo da internet, incrementando a volatilidade da atividade financeira. Contudo, enquanto o direito privado cada vez menos se guia pela noção de território, ainda há muita resistência em se desenvolverem, no âmbito do direito público, instrumentos ágeis e seguros para acompanhar a revolução verificada naquele. Essa circunstância, não raras vezes, abre também espaço à prática concreta de ilícitos cuja operacionalização transcende às noções clássicas de soberania e de territorialidade. O século XX mostrou que o conceito clássico de soberania estava em xeque. Com o massacre de Hiroshima e a corrida atômica, a sociedade internacional se viu desprotegida da cortina da soberania estatal, enxergando os Estados, cada vez mais marcados pela interdependência, como entidades permeáveis à interferência externa. O receio de novos conflitos inaugurou um novo momento nas relações internacionais, mediante o rompimento dos paradigmas clássicos de soberania dos Estados nacionais, cuja maturação, a partir da Idade Média, já vinha ocorrendo havia séculos. Com a evolução tecnológica, foi possível, dentro dessa perspectiva, avançar para uma sociedade global, cujos contornos, ao longo de toda a segunda metade do século XX, infiltraram-se sobre todos os domínios na vida em sociedade, com notáveis reflexos na economia e na política, a ponto de se construir uma verdadeira rede de interesses, uma “estrutura de rede”, como prefere Castells3, com mecanismos funcionais em nível globalizado, sob uma visão sistêmica do mercado4, dissociados da estruturas de poder governamentais. A referência de Castells a “rede” é bastante feliz do ponto de vista terminológico porque, nessa visão sistêmica, é praticamente impossível identificar quais são os protagonistas desse processo, que ocorre simultaneamente em todo o planeta. O interessante é que essa noção de imbricação ou de entrelaçamento está sempre revelada nos modelos materiais5 engendrados pelos pensadores para explicar o fenômeno da globalização, dado esse caráter sistêmico. Ulrich Beck,
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CASTELLS, Manuel. Para o Estado-Rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. In: PEREIRA, L. C. Bresser et al. (Org.). Sociedade e Estado em transformação. Brasília: Unesp, 1999. FARIA, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. Modelos materiais são aqueles pelos quais se procede à representação de um sistema complexo por outro que se supõe mais simples “e do qual se diz também que possui determinadas propriedades semelhantes às que foram escolhidas para o estudo no sistema complexo original” (ROCHER, Guy. Sociologia geral. Lisboa: Editorial Presença, 1971).
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por exemplo, indiretamente remete no discurso a “tranças” e “laços” como núcleo semântico de adjetivos de que faz uso para definir a globalização sob uma perspectiva mais política. Globalização, segundo ele, “significa os processos em virtude dos quais os Estados soberanos se entremesclam e se imbricam mediante atores transnacionais e suas respectivas probabilidades de poder, orientações, identidades e entrelaçados vários”6 e 7. “É possível que algo de novo esteja ocorrendo, comparável às inovações que vimos no Acordo de Vestfália e depois da morte de Alexandre”, disse em 1992 Adam Watson8, comentando a sociedade internacional sob os efeitos da globalização. E, de fato, tem sido impiedoso o impacto da rede global sobre as estruturas funcionais e de poder, fator que tem recebido severas críticas de muitos pensadores. É que esse “algo de novo” tem se caracterizado sobretudo pela perda das capacidades de governo dos Estados nacionais e pelo déficit democrático que isso tem gerado. Para Claus Offe, “as fronteiras, ao que parece, perderam não apenas sua característica de limite, mas também a sua característica protetora, e portanto capacitadora de respostas independentes e autônomas”9. Na verdade, o autor centra sua crítica justamente na transposição, para dentro das realidades locais, de forças de conexões ou redes transnacionais que estão fora do controle das políticas locais. Os riscos vão desde a falta de transparência sobre as ações e seus respectivos atores ao comprometimento do controle social. Mas o “algo de novo” de Adam Watson, quase quinze anos depois, ainda é “novo”, por mais tautológica e redundante que possa parecer a afirmação. É “algo de novo” no sentido de que o pensamento ainda não conseguiu superar a idéia de que se vive um momento de transição de modelo, sem uma definição precisa dos paradigmas que irão informar a política, a sociedade e o direito do futuro. Com efeito, esse “algo de novo” será a síntese da relação dialética dessas duas tendências: a primeira, de formação da “estrutura de rede”, de um “Estadorede”10 que se penetra na estrutura do Estado nacional; a segunda, como reação nacional a esses interesses hegemônicos, de agrupamento de Estados por afinidades culturais e proximidades geográficas, assim como em função de interesses econômicos convergentes.
BECK, Ulrich. ¿Que es la globalización? Falacias del globalismo. Respuesta a la globalización. Barcelona: Paidós, 2004. p. 29. 7 Tradução livre: “Por su parte, la globalización significa los procesos en virtud de los cuales los Estados nacionales soberanos se entremezclan y se imbrican mediante actores transnacionales y sus respectivas probabilidades de poder, orientaciones, identidades y entramados varios”. 8 WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p. 430. 9 OFFE, Claus. A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade. In: PEREIRA, L. C. Bresser et al. (org.). Sociedade e Estado em transformação. Brasília: Unesp, 1999. p. 123-124. 10 CASTELLS, Manuel. Para o Estado-Rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. In: PEREIRA, L. C. Bresser et al. (Org.). Sociedade e Estado em transformação. Brasília: Unesp, 1999. 6
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Até pela transitoriedade do momento histórico, põe-se uma contradição: de um lado já existe certo consenso entre os pensadores acerca da necessidade de uma atuação global no controle de ilícitos com projeções para além da noção de território; de outro, as estruturas de poder nacionais, quando chamadas a atuar, relutam em desapegar-se dos paradigmas tradicionais. É inegável que existem avanços, porém pontualmente a partir de certos órgãos e não como uma linha uniforme de atuação institucional. Aliás, quanto a essa questão, importa destacar que tal não se resume às estruturas brasileiras de poder. Aqui e acolá – mesmo em países mais desenvolvidos – é possível verificar resistências a essas mudanças. 3. CRIME E TERRITORIALIDADE PENAL Não obstante se reconheça a existência (inclusive com eventuais previsões legislativas nacionais) de mais de um critério definidor de jurisdição para a prevenção e repressão penais, como a personalidade ativa, a personalidade passiva e a jurisdição universal, é lugar comum que a adoção do critério territorial é o que comumente prevalece. Jiménez de Asúa demonstra com propriedade essa íntima relação entre o direito penal e o conceito de territorialidade numa perspectiva histórica, inclusive entre os povos antigos, quando a repressão penal decorria do poder normativo exercido no seio das cidades11. Desse modo, o direito penal internacional, afora algumas iniciativas um tanto rudimentares no decorrer da História, constitui uma realidade recente e ainda em fase de consolidação, razão por que não se pode afirmar haver consenso sequer em torno da terminologia mais adequada para designar o fenômeno e a respectiva disciplina jurídica. A propósito da terminologia, convém ressaltar que se tem verificado na literatura especializada uma dicotomia entre direito penal internacional e direito internacional penal, cada qual identificando uma realidade diferente e cujo elemento primordial de distinção tem como referencial a instância decisória da produção normativa, o que remete a discussão também à questão das fontes. Pela dicotomia, o direito penal internacional engloba normas de direito interno, criadas pelo poder político estatal, conferindo legitimidade às jurisdições nacionais para julgar crimes internacionais, enquanto o direito internacional penal indica o conjunto de normas produzidas no plano internacional como forma de repressão aos crimes internacionais. A priori, parece incoerente a concepção de um sistema normativo interno para regulação de crimes internacionais. Trata-se, no entanto, de um problema aparente, resolvido pelo caráter de complementaridade do direito internacional penal. E, a esse respeito, é importante frisar que a ordem internacional tem se 11
ASÚA, Luis Jiménez de. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial Losada, 1950.
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caracterizado, numa visão habermasiana, pela limitação consensual da soberania estatal, o que justifica a complementaridade das jurisdições internacionais. Portanto, sob a ótica da complementaridade, faz sentido o estabelecimento, no direito interno, de normas repressivas de crimes internacionais. Assim, o Estado nacional não descura do cumprimento de sua obrigação internacional na persecução penal de tais ilícitos, evitando a atuação complementar das instâncias internacionais. Nesse sentido, um exemplo interessante de normatização de direito penal internacional é o Código Penal Internacional alemão de 2002, pelo qual a República Federal da Alemanha, entre outros objetivos, adaptou o seu sistema jurídico interno para viabilizar o cumprimento do Estatuto de Roma, pelo qual foi criado o Tribunal Penal Internacional, assegurando a observância, nos limites de competência daquele Estado, do direito penal humanitário12. Por outro lado, há exemplos de normas de direito penal internacional que ensejam problemas na ordem internacional. No direito espanhol, por exemplo, reconhece-se o princípio de jurisdição universal, especificamente no artigo 23.4 da Lei Orgânica do Poder Judicial, tendo sido aplicado em alguns casos concretos, entre os quais o mais emblemático consiste, sem dúvida, no pedido feito ao Reino Unido para extradição do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, hoje falecido, acusado pela prática de crimes contra cidadãos espanhóis durante o período em que esteve no poder. O pedido do magistrado Baltazar Garzón, após aprovação pelas instâncias jurisdicionais (High Court e House of Lords), foi enfim negado pelo ministro do Interior britânico, no exercício da discricionariedade própria do instituto. Em alguns casos, são as interpretações sobre a abrangência da jurisdição nacional sobre o direito penal internacional que causam alguns problemas, inclusive de ordem diplomática. O caso Eichmann, julgado pela Corte Distrital de Jerusalém, é um exemplo dessa afirmação. Otto Adolf Eichmann, expoente nazista, estava desaparecido desde após a Segunda Guerra Mundial, até que foi encontrado e capturado pelo Mossad em Buenos Aires. Levado a Israel, foi julgado por tribunal interno em 1962, sob a justificação de um suposto “direito de punir de Israel” pelas atrocidades praticadas contra judeus no Holocausto. O certo é que o direito penal não pode fechar os olhos para a realidade de que a criminalidade mais sofisticada tende a adquirir contornos de transnacionalidade, o que exige o desenvolvimento de mecanismos mais
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GEIGER, Hansjörg. O Tribunal Penal Internacional e os aspectos do novo Código Penal Internacional alemão. In: SILVA, Pablo Rodrigo Alflen (org.). Tribunal Penal Internacional: Aspectos fundamentais e o novo Código Penal Internacional alemão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004.
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adequados à prevenção e repressão desses ilícitos que transcendem à mera territorialidade estatal. Isso pressupõe uma visão “negociada” entre os Estados visando à criação de níveis de prevenção e repressão que se ajustem às particularidades do novo modus operandi da criminalidade internacional, mas também uma postura cooperativa dos agentes públicos nacionais, de modo a se tentar superar as limitações naturais impostas pelo critério territorial de definição da jurisdição penal. A propósito, Cervini lembra que, já em outubro de 1986, no Congresso Internacional de Defesa Social, realizado em Buenos Aires, Adolfo Beria Di Argentine sustentava o recrudescimento da internacionalização do delito, assim como que o fenômeno se manifestava de duas formas: de uma parte, apontava o autor que a delinquência passou a apresentar as mesmas características em todos os Estados, como sequestros de pessoas, roubos em grande escala, entre outros (criminalidade por contaminação); de outra, as condutas criminais passaram a manter ramificações que se estendem mundo afora (criminalidade internacional). Não há dúvida, pois, que uma nova criminalidade vem se disseminando pelo mundo, uma criminalidade que, como a globalização, não mais respeita as fronteiras nacionais e desafia as estruturas estatais de repressão, exigindo sejam repensados novos mecanismos de combate desapegados do critério da territorialidade e desatrelados do conceito clássico de soberania dos Estados. 4. NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL Quintano Ripollés, ao contextualizar a cooperação jurídica internacional em matéria penal, dizia ainda em 1957 que negar sua necessidade “equivaleria a tolerar os criminosos fugissem de avião e o juiz e a polícia os perseguissem em diligência”13. Na verdade, a advertência do autor é a de que os Estados não podem fechar os olhos para a realidade, pois sendo eles os depositário e executores de uma ordem de moralidade e justiça, da qual o crime é, por sua vez, a mais categórica negação, a realização daqueles valores em um marco local apenas medianamente e de um modo fragmentário cumpre tão elevados fins.
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RIPOLLES, Antonio Quintano. Tratado de Derecho Penal Internacional e Internacional Penal. Madrid: Instituto Francisco de Vitória, 1957. v. 2. p. 116.
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No entanto, Cervini explica que cooperação jurídica internacional não consiste propriamente numa descoberta recente14. Na verdade, a exigência da contemporaneidade vem propiciando o surgimento da cooperação jurídica internacional sob uma roupagem diferente e mais adequada aos novos contornos de “um mundo globalizado e, por conseguinte, multicultural”15. Curiosamente, a primeira manifestação, ainda que rudimentar, de norma internacional com repercussão penal foi veiculada num dos tratados mais antigos de que se tem notícia: o Tratado de Paz celebrado, em 1280 a.C., entre o Faraó Ramsés II do Egito e Hatussili III, rei dos Hititas16. Nesse tratado, estabeleceu-se uma cláusula de extradição recíproca entre delinquentes fugitivos. Cervini lembra que, num marco histórico posterior, “os primeiros aportes clássicos sobre o tema já podem ser encontrados incidentalmente em Bartolo e, de forma mais precisa, na obra de Grotius e na de seus seguidores, Puffendorf e Woll”17. Enfim, no século XIX, com a internacionalização das sociedades, a temática foi ganhando relevância nas relações internacionais18, notadamente com o aprimoramento dos mecanismos de cooperação judicial internacional (carta rogatória, extradição, homologação de sentença estrangeira), até que, no século XX, terminou se consolidando como uma alternativa de combate à delinquência internacional. 5. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL: CONCEITO, FUNDAMENTO E CARACTERÍSTICAS Cooperação jurídica internacional pressupõe intercâmbio entre Estados com vistas a garantir a estabilidade e a segurança das relações transnacionais. Como afirma Carolina Yumi, “tem por premissas fundamentais o respeito à soberania dos Estados e a não-impunidade dos delitos”19.
CERVINI, Raul. Princípios da Cooperação Judicial Internacional em assuntos penais. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 30, jun-set 1993. BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Breves considerações sobre o Anteprojeto de Lei de Cooperação Jurídica Internacional. Direito Federal. Brasília, n. 84, 2006. p. 65. 16 BASSIOUNI, M. Cherif. Projet de Code Penal International. Revue Internationale de Droit Pénal. Pau: Association Internationale de Droit Pénal, 1981. Disponível em: < http://www.penal.org/pdf/livr-intro-1.pdf>. Acesso em: 02 ago 2008. 17 CERVINI, Raul. Princípios da Cooperação Judicial Internacional em assuntos penais. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 30, jun-set 1993. p. 184. 18 ARAÚJO JÚNIOR, João Marcelo. Cooperação internacional na luta contra o crime. Transferência de condenados. Execução de sentença penal estrangeira, Novo conceito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 10, 1995. 19 SOUZA, Carolina Yumi. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: considerações práticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 71, 2008. p. 300. 14
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Gênero da cooperação internacional, a cooperação jurídica internacional concretiza-se, segundo Araújo Júnior e Cervini, “quando o aparelho judicial de um Estado soberano recorre ao auxílio, à assistência, que lhe possa ser prestada por outros Estados, através da atividade jurisdicional”20. Essa cooperação pode ocorrer em relação a determinadas questões que estejam submetidas à jurisdição de determinado Estado, inclusive as questões relativas à persecução penal, admitindo-se, pois, a cooperação jurídica internacional em matéria penal. Araújo Júnior e Cervini explicam que muito já se debateu em termos de fundamento da cooperação jurídica internacional em matéria penal. Inicialmente, prevaleceram, aliás para o direito penal internacional como um todo, teorias de inclinação utilitarista, tais como a da reciprocidade, a da realização da justiça e a da cortesia internacional (comitas gentium). Hoje essas teorias são tidas por superadas, tendo florescido formulações mais recentes21. Com efeito, para uma parcela da doutrina, o fundamento da cooperação jurídica internacional em matéria penal repousa no “respeito ao processo, como concentração estrita e formal de atos, criada pela sociedade para dirimir as controvérsias que ocorrem em seu seio, seja qual for a sua natureza, com o objetivo de promover a Justiça”22. Segundo outra parte da doutrina, a existência de uma cooperação jurídica internacional decorre da própria razão de ser do direito penal internacional, dada pragmaticamente a realidade de que alguns crimes transcendem às fronteiras estatais, exigindo-se mecanismos adequados para a respectiva persecução pelos agentes para tanto competentes. A cooperação jurídica internacional abrange todo e qualquer intercâmbio praticado entre dois ou mais Estados soberanos, sejam eles legislativos, administrativos ou judiciais. No que diz respeito aos atos judiciais, incluemse tanto os atos não-decisórios ou de mera comunicação processual (citações, intimações, entre outros) quanto os efetivamente decisórios, nestes incluídos os destinados à instrução probatória. É importante frisar, no entanto, que somente autoridades públicas podem recorrer à cooperação, sendo vedado seu manejo por particulares, mesmo que com o objetivo de municiar a defesa. A cooperação jurídica internacional implica essencialmente a produção de medida extraterritorial por iniciativa de um determinado Estado. Assim, do ponto de vista da soberania, um Estado somente tem jurisdição sobre seu território, a cooperação configura a pedra de toque da própria juridicidade da medida produzida no território de outro Estado.
ARAÚJO JÚNIOR, João Marcelo. CERVINI, Raul. Cooperação Penal Internacional: Conceitos e Limites. Revista da Faculdade de Direito. Rio de Janeiro, n. 5, 1997. p. 190-191. 21 Idem ibidem. 22 Idem ibidem. p. 193. 20
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Nesse sentido, a cooperação deve ser vista como uma forma de assistência para solução de determinado problema. Embute, pois, um sentido de assistência ou de auxílio. Apenas, como se trata de um problema com reflexos extraterritoriais, a solução respectiva depende do concurso de pelo menos duas ordens jurídicas distintas, de modo que a questão seja tratada juridicamente em ambas. Com efeito, para que ostente validade um ato praticado em outro Estado, mitigando, a rigor, o critério de territorialidade definidor da jurisdição, é necessário que a medida extraterritorial a ser produzida observe as exigências jurídicas da ordem jurídica respectiva. Dessa forma, um sistema jurídico absorve um fato ou ato jurídico assim qualificado por outro, desde que validamente consumado neste último. A doutrina faz referência a certos níveis ou graus de cooperação (ou de assistência). Correspondem a um grau mais brando as medidas de assistência mais leves ou simples, abrangendo aquelas ditas de mera tramitação (notificações) ou de obtenção de provas (diligências em geral). Num segundo grau estão aquelas medidas que implicam algum gravame em relação a bens e pessoas. Por fim, no terceiro e mais elevado grau compreendem-se aqueles atos cooperativos extremos, “susceptíveis de causar gravame irreparável a direitos e liberdades próprios daqueles alcançados por tais medidas”23. Sob o prisma filosófico, é possível afirmar que a cooperação jurídica internacional configura mais um exemplo de um fenômeno de que se tem notícia em vários domínios das relações internacionais: a relativização do conceito clássico de soberania. O detalhe é que esse fenômeno embute um paradoxo, já que, ao mesmo tempo em que o Estado cede parcela de sua soberania externa, tal se dá comumente tendo em vista a consecução de um objetivo fixado por ele próprio e não por terceiros. É bastante curioso o fenômeno, pela dialética que lhe dá contornos. Diante do contexto global de ataque às fronteiras estatais, os Estados reagem através de instrumentos como a cooperação jurídica internacional em matéria penal, pela qual se sacrificam alguns paradigmas muito particulares da figura do Estado nacional, em prol de finalidades determinadas nos centros decisórios interna corporis da estrutura estatal. Assim, o Estado até se despe de suas formas tradicionais de exercício do poder político, mas não há dúvida de que o faz com o fim de se manter instância de decisão.
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O raciocínio se aplica à cooperação jurídica internacional em matéria penal. Diante do dado da realidade de que o ilícito conseguiu superar o controle fronteiriço, o Estado percebeu que a forma tradicional de imprimir a persecução penal não mais era suficiente para o cumprimento adequado de seus objetivos. Nesse sentido, o Estado adotou mecanismos diferenciados de realização dos necessários atos de investigação, sacrificando o padrão tradicional próprio do direito interno, assegurando, porém, seu monopólio no combate à criminalidade, que se pode afirmar, numa visão axiológica extrema, tratar-se do Antiestado, por representar a violação mais gravosa da ordem jurídica estatal. Enfim, convém registrar que, a despeito de algumas iniciativas pontuais diferenciadas, a cooperação jurídica internacional ocorre normalmente pela via bilateral, através de acordos bilaterais de cooperação ou com base princípio da reciprocidade. No entanto, existe a possibilidade de estabelecimento da cooperação sob uma perspectiva mais ampla, caracterizada pela multilateralidade. Aliás, se retomada a noção de “rede” proposta por Castells e já exposta neste trabalho, é possível que também a cooperação jurídica internacional em matéria penal tenha que caminhar para a adoção dessa lógica24, que tem dominado a discussão sobre os caminhos para fazer frente à globalização entre os teóricos da ciência política e da sociologia25. Na “estrutura de rede” global, somente mecanismos bem articulados, também sob esse sentido de “rede”, podem atender com eficiência ao controle da multiplicidade de relações jurídicas que se formam. A União Européia, dado o avanço do processo de integração e, por óbvio, das exigências que isso implica, já conta com iniciativas que trazem na essência essa lógica, a exemplo da Rede Judicial Européia26 e do EUROJUST, pelos quais se articulam trocas de informações e experiências entre os Estados envolvidos, estreitando os laços e aprimorando a eficiência da cooperação jurídica entre eles. No Brasil, afora alguns tratados celebrados no âmbito de organizações internacionais, como o MERCOSUL (Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do MERCOSUL, incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto nº 3468/2000), a grande maioria dos instrumentos de cooperação jurídica internacional atende à lógica da bilateralidade, celebrados apenas pontualmente conforme o interesse específico entre os Estados envolvidos, em nenhum caso chegando, pois, a constituir propriamente uma rede.
CASTELLS, Manuel. Para o Estado-Rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. In: PEREIRA, L. C. Bresser et al. (Org.). Sociedade e Estado em transformação. Brasília: Unesp, 1999. 25 BLANCO, Ismael; GOMÀ, Ricardo (org.). Gobiernos locales y redes participativas. Barcelona: Ariel Social, 2002. 26 BORJÓN NIETO, José Jesus. Cooperación internacional contra la delincuencia organizada transnacional. México: INACIPE, 2005. 24
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6. CLASSIFICAÇÃO Classificações atendem ao critério de utilidade e não se justificam pela sua natureza científica. Assim, tendo em vista alguns aspectos práticos e até com o objetivo de melhor estruturar o estudo da temática, a doutrina faz referência a algumas classificações para a cooperação jurídica internacional (em matéria penal). As principais se utilizam dos seguintes critérios: quanto à posição do solicitante, quanto ao canal utilizado, quanto à natureza da cooperação. 6.1. QUANTO À POSIÇÃO DO SOLICITANTE Segundo o critério da posição do solicitante, a cooperação jurídica internacional se classifica em ativa e passiva. O determinante, nesta classificação, é o interesse predominante no processo de cooperação: o nacional ou o estrangeiro. Assim, se a cooperação se dá de forma a atender o interesse nacional, a cooperação será ativa; de outra parte, se o interesse que prevalecer for o estrangeiro, a cooperação será passiva. Nesse sentido, por cooperação ativa se denomina a cooperação que é solicitada pela autoridade brasileira à estrangeira (tendo-se, por óbvio, o Estado brasileiro como referencial). Da mesma forma, a cooperação ativa é a expressão utilizada para identificar a regulamentação, no direito interno e perante órgãos nacionais, de “procedimentos que visem à solicitação de atos estrangeiros no exterior”27. Por outro lado, a cooperação passiva diz respeito à prestação a Estado estrangeiro de atos de cooperação. A autoridade estrangeira solicita auxílio à brasileira, que as presta segundo o direito interno brasileiro, de modo que a cooperação passiva consiste em atividade instrumental à função jurisdicional estrangeira28. 6.2. QUANTO AO CANAL UTILIZADO A cooperação também é classificada pela doutrina quanto ao canal utilizado, subdividindo-se, nesse ponto, em direta (ou informal) e indireta (ou formal). Quanto à primeira, assim se designa a cooperação que se procede diretamente entre as autoridades públicas envolvidas, sem a necessidade do concurso de instâncias formais, como a via diplomática, ou mesmo do Poder Judiciário. É chamada indireta, por outro lado, a cooperação realizada em observância de padrões institucionalmente estabelecidos, como forma de assegurar a validade da providência a ser viabilizada. PERLINGEIRO, Ricardo. Cooperação jurídica internacional e auxílio direto. Revista CEJ. Brasília, n. 32, jan-mar 2006. 28 Idem ibidem. 27
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Para Carolina Yumi, a cooperação informal comumente ocorre nas hipóteses em que já existe um canal institucional aberto entre os dois órgãos envolvidos. Segundo ela, isso se dá normalmente entre órgãos como a Interpol e o Grupo de Egmont (que congrega as unidades de inteligência financeira). No mais, em matéria penal, afirma a autora que a cooperação formal tem lugar com o uso das cartas rogatórias e do auxílio direto29. 6.3. QUANTO À NATUREZA DA COOPERAÇÃO Uma terceira classificação é construída com base no critério da natureza da cooperação, caso em que se desdobra em jurisdicional e administrativa. Essa classificação, por sua vez, vai sofrer uma nova subdivisão quando condicionada pelo sujeito responsável pela iniciativa da cooperação: o juiz ou a parte. Assim, do ponto de vista teórico, a cooperação jurisdicional pode ser de iniciativa do juiz ou da parte (embora esta seja bastante restrita), o que também é possível ocorrer com a cooperação administrativa, em que a iniciativa pode ser de um ou de outro. 7. AUTORIDADE CENTRAL Uma peculiaridade da cooperação jurídica internacional é o estabelecimento de uma autoridade central para coordenar as atividades respectivas em nome de um determinado Estado. Não existe previamente, no direito internacional, a indicação de um padrão para determinação das autoridades centrais no direito interno. Cada Estado tem a liberdade de escolher o órgão que, segundo seu direito interno, tenha condição de atuar com mais eficiência na coordenação das atividades de cooperação. Tampouco é necessária a existência de um órgão que centralize todas as atividades de cooperação jurídica internacional, seja qual for a matéria sobre a qual recaia a providência a ser solicitada. A liberdade que cada Estado tem de escolher internamente o órgão que irá atuar como autoridade central se expressa também na faculdade de indicar um órgão para cada matéria sobre a qual deseje promover a cooperação. Assim, a autoridade central pode pertencer a qualquer dos poderes, dependendo mais propriamente da organização interna de cada Estado do que de qualquer exigência do direito internacional.
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No direito brasileiro, a autoridade central para a cooperação jurídica internacional em geral (seja ativa, seja passiva), com algumas ressalvas, é o Departamento de Cooperação Jurídica Internacional e de Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça, criada pelo Decreto nº 4991/2004, sem prejuízo de algumas situações pontuais em que a competência se atribui ao Ministério Público Federal ou ao Conselho Nacional de Justiça. A autoridade central tem função de articulação e de coordenação. Por um lado, a autoridade central lidera as ações do governo sobre a cooperação jurídica internacional, notadamente quanto à concepção política do instrumento (inclusive em negociações externas); de outro lado, as ações de coordenação executiva da cooperação jurídica internacional entre os diversos órgãos envolvidos, abrangidos os três poderes, também são efetivadas pela autoridade central. 8. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL NO BRASIL É induvidosa a pretensão do Brasil de figurar nas relações internacionais como um Estado cooperativo, além de inequívoca a boa vontade das autoridades federais de combate ao crime organizado. Todavia, ainda remanesce um problema que precisa ser equacionado para que seja possível ao Brasil efetivamente exercer a cooperação com um mínimo de eficiência e segurança: a sistematização legal da matéria. Com efeito, não existe no direito brasileiro nenhum ato legislativo que sistematize minimamente um procedimento para a cooperação jurídica internacional em matéria penal, providência que seria de extrema importância não apenas para evitar contestações de validade dos atos de cooperação (sejam aqueles prestados pelo Brasil a terceiros, sejam aqueles prestados por terceiros ao Brasil), senão também para incutir no agente público brasileiro uma cultura de cooperação internacional. O apego a paradigmas tradicionais por vezes conduz a estreitezas interpretativas, impondo obstáculos no percurso travado na busca da cooperação. No campo penal, isso pode representar o problema, haja vista a notável volatilidade e capacidade de fuga do ilícito transnacional. Ora, o ilícito transnacional sempre se reveste de uma roupagem financeira, estruturando-se essencialmente no capital circulante. Com a abertura das fronteiras, é elevada a capacidade de transmudação e de deslocamento das estruturas criminosas, o que exige do Estado uma atuação cada vez mais ágil e eficiente. De qualquer forma, não se pode afirmar que o direito brasileiro não oferece suporte normativo à cooperação. Já na Constituição Federal de 1988, estabelece-se, no artigo 4º, IX, a cooperação entre os povos para o progresso da
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humanidade como princípio fundamental da República Federativa do Brasil nas relações internacionais. Na legislação infraconstitucional, existe a prescrição de alguns instrumentos pontuais de cooperação internacional em matéria penal. A Lei nº 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores (lei de lavagem de dinheiro), prevê a possibilidade de cooperação “na hipótese de existência de tratado ou convenção internacional e por solicitação de autoridade estrangeira competente”, caso em que o juiz determinará “apreensão ou o sequestro de bens, direitos ou valores oriundos de crimes descritos no art. 1º, praticados no estrangeiro” (art. 8º). Ainda na legislação interna infraconstitucional, o Código de Processo Penal dedica o seu Livro V às relações jurisdicionais com autoridade estrangeira, nele regulando os institutos da carta rogatória e da homologação de sentença estrangeira. No mais, a cooperação jurídica internacional em matéria penal pelo Brasil se materializa através da aplicação de tratados internacionais, multilaterais e bilaterais, devidamente incorporados ao direito interno. Entre os multilaterais, destacam-se a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal e seu Protocolo Facultativo (Decreto nº 6340/2008), a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 5687/2006), a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto nº 5015/2004) e seus protocolos adicionais (Decretos nº 5016/2004, 5017/2004e 5941/2006), a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes (Decreto nº 154/91) e o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do MERCOSUL. Quanto aos bilaterais, há tratados celebrados com vários Estados de destaque nas relações internacional, inclusive com os Estados Unidos. O costume internacional também pode ser fonte de cooperação jurídica internacional, desde que fundamentada no princípio da reciprocidade. No entanto, o acertamento da cooperação mediante tratado tem se mostrado mais vantajoso na prática, por permitir o estabelecimento de um procedimento formal que facilite a comunicação entre os agentes de cada Estado, muitas vezes até simplificando os trâmites30. Ademais, havendo documento normativo, com força obrigacional entre os Estados Partes, estes têm maior espaço de criação de mecanismos mais adequados aos fins a que se propõem. Diante dessa preocupação com a ausência de sistematização legislativa sobre o tema, o Ministério da Justiça, em novembro de 2008, lançou um Manual de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos com o objetivo de divulgar entre os agentes envolvidos os mecanismos utilizados no combate à
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criminalidade que transcende ao território brasileiro, mas que algum liame com este mantenha. Esse documento, por óbvio, é desprovido de densidade normativa e figura como mera recomendação. No mais, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 1982/2003, de autoria do Deputado Antônio Valverde a partir de anteprojeto elaborado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), pelo qual se tem a pretensão de promover uma sistematização normativa mais adequada à matéria, atenta às dificuldades contemporâneas impostas pela globalização das relações internacionais. Embora tramitando já há algum tempo, o projeto ainda não foi aprovado sequer na Câmara dos Deputados. 9 . I N S TRU M E NT O S L E G A I S D E C O O P E R A ÇÃ O J UR Í D I C A INTERNACIONAL O direito interno brasileiro prescreve alguns instrumentos legais por meio dos quais a cooperação jurídica internacional se efetiva, sendo sua utilização prática dependente da medida que se visa a implementar. Os principais de que dispõem as autoridades envolvidas nesse processo são a carta rogatória, o auxílio direto e a homologação de sentença estrangeira, além da extradição, que prescinde de maiores comentários, até por se tratar de um instrumento já consolidado e que não tem causado maiores perplexidades na doutrina. Inicialmente, convém diferenciar carta rogatória de homologação de sentença estrangeira. A carta rogatória constitui num pedido formal de assistência formulado de uma autoridade judiciária de um Estado à de outro. Pressupõe, pois, a prévia determinação pela autoridade judiciária estrangeira de determinada medida a ser cumprida fora da extensão territorial de sua jurisdição. Instrumento já tradicional, a carta rogatória tramita pela via diplomática e, antes de produzir efeitos no território nacional, deve receber um prévio exequatur pelos tribunais nacionais. A análise não adentra propriamente o mérito da medida requerida pela autoridade judiciária estrangeira, consistindo em mero juízo de delibação acerca do conteúdo respectivo. Há, portanto, mera análise formal dos requisitos legais. O que então difere a carta rogatória da homologação de sentença estrangeira? É que a sentença proferida por autoridade estrangeira, se submetida ao procedimento de homologação, está apta a surtir efeitos em território nacional, possibilitando sua execução pela autoridade judiciária brasileira e sob os procedimentos executórios do direito interno. Na verdade, não se pode afirmar que o procedimento de homologação de sentença estrangeira configura um instituto que se reveste de praticidade,
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em função do elevado grau de burocracia a que o submete a legislação, o que de certo modo o torna incompatível com as exigências de agilidade e eficiência no combate à criminalidade internacional. É que, não bastasse a necessidade de tramitação pela via diplomática e de concessão de exequatur, somente após esses trâmites prévios é que seria possível iniciar a execução pelo juiz brasileiro. No entanto, a autoridade estrangeira que postulasse assistência ao Brasil deparava-se com uma dificuldade posta pela jurisprudência brasileira, decorrente da posição firmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), competente para concessão de exequatur das cartas rogatórias até a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004, de que esse instituto não poderia ser manejado para efetivação de medidas executórias. Felizmente, esse vetusto posicionamento, que chegou a ser tachado de medieval31, foi modificado posteriormente pelo STJ quando este passou a apreciar a concessão de exequatur após edição da Emenda Constitucional nº 45/200432. Dessa forma, predomina hoje na jurisprudência que a assistência via carta rogatória pode ser implementada em relação a atos decisórios e não-decisórios do juiz estrangeiro, pelo que as medidas executórias podem ser efetivadas sem a necessidade do recurso ao procedimento de homologação da sentença estrangeira. Nesse sentido, a carta rogatória configura o instrumento por excelência da cooperação jurídica internacional em matéria penal, aquele que pode ser utilizado independentemente da existência de qualquer tratado celebrado entre os Estados envolvidos ou da existência de autoridade centrais de coordenação das atividades de cooperação nos Estados envolvidos. No entanto, em face da dificuldade que se gerava diante do posicionamento vetusto do STF, o Brasil foi obrigado a se estruturar, sob pena de ganhar reputação de Estado não-cooperativo perante a ordem internacional, e a conceber uma autoridade central para coordenar suas ações no que diz respeito ao tema. Através da autoridade central, as dificuldades referentes ao manejo da carta rogatória puderam ser frequentemente contornadas por meio de recurso ao auxílio direto. Este, como instrumento de cooperação jurídica internacional, é empregado nos casos em que a assistência é prestada através da autoridade central, normalmente em decorrência de documentos normativos internacionais (bilaterais ou multilaterais) que tenham celebrado os Estados envolvidos. O
MADRUGA FILHO, Antenor P. O Brasil e a Jurisprudência do STF na Idade Média da Cooperação Jurídica Internacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 54, 2005. 32 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CR 438/EX. Corte Especial. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário da Justiça da União, Brasília, p. 224, 24 set 2007, Seção 1. 31
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auxílio direto se efetiva a partir do contato informal entre autoridades com atribuições voltadas à persecução penal (e não entre autoridades judiciárias), sendo a cooperação efetuada sem a necessidade de exequatur, porém mediante a atuação direta da autoridade judiciária interna. Assim, por meio do auxílio direto, elimina-se todo o procedimento formal da carta rogatória, inclusive o exequatur, sendo que o exame do mérito da providência para a qual se solicita assistência deve ser integralmente submetido à apreciação pelo juiz brasileiro. É verdade que muitos pedidos de auxílio direto são encaminhados à autoridade central brasileira sob a rotulação de carta rogatória33. É certo, porém, que essa rotulação não interfere na natureza jurídica do instrumento utilizado, de forma que, ainda que o auxílio direto seja solicitado com nomenclatura diversa, deve como tal ser processado. Todavia, também quanto ao auxílio direto há sinais da jurisprudência do STF impondo algumas dificuldades. A propósito, é bastante preocupante a decisão proferida no HC 8558834, no sentido de que toda a cooperação jurídica internacional em matéria penal deve se realizar através de carta rogatória e de homologação de sentença estrangeira, inviabilizando o emprego do auxílio direto, que tem se revelado muito mais eficaz para essa finalidade. É verdade que não se pode afirmar tratar-se de posicionamento consolidado do tribunal, mas não há dúvida de que a questão merece atenção.
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DIPP, Gilson Langaro. Carta rogatória e cooperação internacional. Revista CEJ. Brasília, n. 38, jul-set 2007. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 85588. Relator: Ministro Marco Aurélio. Diário da Justiça da União, Brasília, p. 95, p. 15 dez 2006.
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10. CONCLUSÃO Nesse sentido, algumas conclusões podem ser tomadas a partir do desenvolvimento da temática no presente trabalho: a) A facilitação das comunicações decorrente do auxílio da tecnologia tem conduzido ao fenômeno de transnacionalização das relações jurídicas, dificultando o controle pelo Estado das ações dos indivíduos. b) O fenômeno da transnacionalização implica a fuga do controle do Estado de relações jurídicas que, muitas vezes, atentam contra a ordem jurídica, quiçá em seu grau máximo, propiciando o surgimento de um ilícito transnacional e até mesmo de uma criminalidade internacional. c) O direito penal sempre teve apego, como regra, ao critério territorial, questão que precisa ser superada se se pretende um combate eficiente à criminalidade internacional. d) A cooperação jurídica internacional em matéria penal, nesse contexto, tornase uma alternativa viável e necessária. e) Operacionalizando-se sob a forma de intercâmbio entre os Estados, a cooperação jurídica internacional traz embutida a noção de assistência, de auxílio, mediante solicitação de um Estado a outro. f) A cooperação jurídica internacional em matéria penal deve ser utilizada com vistas à produção de uma medida extraterritorial, relativa a atos decisórios ou não, daí a necessidade de recurso aos agentes público do Estado em cujo território os atos respectivos devem surtir efeitos. g) A cooperação pode ocorrer em nível bilateral ou multilateral, sendo possível sua realização mesmo sem que haja previsão em tratado internacional, com base no costume internacional e observância da reciprocidade. h) A doutrina aponta algumas classificações sobre a cooperação jurídica internacional em matéria penal, entre as quais se destacam as que levam em conta a posição do solicitante, o canal utilizado e a natureza da cooperação. i) Embora não haja propriamente uma regra genérica de direito penal internacional estabelecendo a obrigatoriedade de previsão de uma autoridade central em cada Estado, essa prática tem sido comumente observada, inclusive pelo Brasil, através da criação do Departamento de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça. j) A República Federativa do Brasil tem se mostrado preocupado com o tema e vem demonstrando boa vontade em cooperar perante a sociedade internacional, embora ainda se identifique alguma dificuldade em fazê-lo pelo fato de não haver sistematização legislativa sobre o tema.
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k) A ausência de sistematização normativa coloca em xeque a segurança jurídica tanto da cooperação prestada pelo Brasil quanto pela cooperação recebida de Estados terceiros. l) A cooperação jurídica internacional em matéria penal se expressa primordialmente através da carta rogatória, da homologação de sentença estrangeira, da extradição e do auxílio direto. m) Durante muito tempo, a cooperação via carta rogatória ficou bastante prejudicada em função do posicionamento do STF segundo o qual seria inviável a concessão de exequatur para medidas de caráter executório. n) Esse posicionamento incentivou o uso do auxílio direto, que até hoje não recebeu regulação específica por ato legislativo interno, viabilizando-se em muitos casos apenas através da reciprocidade entre Estados. o) Embora o STJ, depois de receber, por Emenda Constitucional nº 45/2004, a competência para exequatur de cartas rogatórias, hoje as admita em relação a medidas executórias, existe a necessidade de melhor disciplina legislativa da matéria, a fim de promover maior segurança a esse trabalho.
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Direito & Economia: Uma Análise Essencial Marcelo Guerra Martins Juiz Federal desde novembro de 1997 Titular da 9ª Vara Federal de Execuções Fiscais de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Resumo: O Direito e a Economia são fenômenos sociais muito antigos que interagem constantemente por meio de estímulos e feedbacks recíprocos desde as primeiras comunidades humanas minimamente organizadas. Devido à inafastável escassez dos recursos materiais, os indivíduos e a própria sociedade, sob um juízo racional de custo-benefício, diuturnamente, devem fazer escolhas em torno das diversas opções que se descortinam. Dentro dessa conjuntura, o Direito atua no sentido de disciplinar os modos pelos quais os diversos bens e as comodidades em geral circulam com a finalidade de propiciar uma ambiência o mais pacífica possível. Esta interrelação somente passou a ser estudada cientificamente a partir da segunda metade do século XX nos Estados Unidos, com destaque para a Escola Fundacional (ou Escola de Chicago), a Escola Pragmática, uma evolução daquela primeira, a Escola Regulatória (ou Escola de New Haven ou de Yale) e a Escola da Public Choice, seguida pelas Escolas da Economia Institucional e da Nova Economia Institucional. O assunto é pouco tratado no Brasil e aguarda-se o seu desenvolvimento. Palavras chave: Direito e Economia, Análise Econômica do Direito, escassez, escolhas. Title: Law and Economics: an essential analysis Abstract: Law and Economics are old social structures that interact amongst themselves through reciprocal stimulus and feedbacks since
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the appearance of minimally organized human communities. Due to being unable to ignore the scarcity of material resources, individual beings and even the own society, under a rational cost-benefit analysis, often need to make choices amongst the multiple options that arise. In this juncture, Law regulates the way which the various assets and goods in general circulate on the market in order to allow the most pacific living possible. This interconnection only begun to be studied scientifically since the middle of the twentieth century on the United States, emphasizing the Chicago School, the Pragmatic School, a development of the previous one, the Normative School (or New Haven School or Yale School) and the Public Choice School, followed by the Institutional and New Institutional School of Economics. The subject is relatively new on Brazil and on hold for its development. Key-words: Law and Economics, scarcity, choices. Sumário: Introdução. Os fenômenos sociais do Direito e da Economia e suas principais relações. Direito & Economia, Direito e Economia e Law and Economics – expressões sinônimas. Conclusão.
INTRODUÇÃO Ainda que, há muitos séculos, tenham se estabelecido uma série de relações – nem sempre harmônicas - entre as normas jurídicas e os atos econômicos, apenas a partir da segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, é que se passou a estudar cientificamente o entrelaçamento entre as ciências que estudam tais fenômenos. A disciplina que foi encarregada desse estudo foi denominada Law and Economics, expressão que, no Brasil, assumiu três denominações distintas, quais sejam, Direito & Economia, Direito e Economia e, ainda, Análise Econômica do Direito. Este artigo procurará apresentar, em um primeiro momento, os ininterruptos estímulos e feedbacks que englobam os fenômenos sociais do Direito e da Economia e, a seguir, as principais escolas científicas que se propõem a analisar, de maneira sistematizada e organizada, esse interrelacionamento. É o que se passa a expor na esperança de despertar a atenção dos leitores acerca de um tema que começa a ser difundido na doutrina brasileira.
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1 - OS FENÔMENOS SOCIAIS DO DIREITO E DA ECONOMIA E SUAS PRINCIPAIS RELAÇÕES Se, na colocação de Paulo de Barros CARVALHO1, “As regras do direito existem para organizar a conduta das pessoas, umas com relação às outras”, conclui-se que mesmo as primeiras sociedades humanas vivenciaram o fenômeno. Noticia Fustel de COULANGES2 que “Entre gregos e romanos, do mesmo modo que entre os hindus, desde o princípio, espontaneamente, a lei surgiu como especialidade de sua religião”. É oportuno relembrar nesse instante que um dos primeiros conjuntos de normas escritas e sistematizadas de que se tem conhecimento data do décimo oitavo século antes de Cristo e é composto pelas duzentas e oitenta e duas regras inscritas no amplamente reconhecido Código de Hamurabi. Uma vez que o presente trabalho é dirigido principalmente a juristas, não será realizada uma descrição do que se constitui o fenômeno social do Direito, na medida em que seus operadores, ainda que de forma intuitiva, geralmente conseguem separar as normas jurídicas das sociais e morais, o que é suficiente para compreender o tema central deste texto. Assim, passa-se a tecer brevíssimas considerações sobre as bases do fenômeno econômico, ou seja, no que se constitui, em essência, a Economia. É necessário ter por pressuposto que os recursos materiais de um indivíduo nunca serão suficientes para atender a todos os seus desejos sem qualquer tipo de restrição, visto que, sob essa ótica, os anseios podem tender ao infinito. É que mesmo os milionários encontram limites para realizar suas pretensões e devem necessariamente moldá-las, de alguma forma, à sua capacidade financeira de aquisição e manutenção dos mais variados bens. Tal situação é denominada “regra da escassez”. Logo, qualquer pessoa que deseja obter certa comodidade (v.g. uma refeição, um remédio, um automóvel, uma máquina fotográfica, uma viagem, um lote de ações de uma companhia aberta etc.) usualmente age racionalmente e compara as possibilidades de aquisição que despontam diante de si a fim de escolher aquela que, em seu juízo, mais agregar benefícios e utilidades, isso é, corresponder ao melhor custo-benefício. Em resumo, essa maneira de agir, que normalmente é encontrada na maioria das pessoas, apresenta-se como uma “atividade econômica”, independentemente do nome que lhe é atribuído pela ciência (v.g. ação-racional,
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CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 2. COULANGES. Fustel de. A cidade antiga. Trad. Fernando Aguiar. 8. ed.. Lisboa: Livraria Clássica, 1954, p. 284-285. v. 1.
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comportamento hedonista, egoístico, auto-satisfatório etc.). Nesse sentido, expõe Max WEBER3 que: “uma atividade é econômica quando está orientada a procurar ‘utilidades’ (bens e serviços) desejáveis ou as probabilidades de disposição sobre as mesmas”, ou seja, ainda de acordo com o autor, a ação econômica está: “condicionada e orientada pela escassez de meios: para satisfazer o desejo de certas utilidades, cujos meios, quando somente se dispõe deles com limitação, devem submeter-se à gestão econômica”4. Logo, à medida que uma pessoa (ou a própria sociedade) escolhe certa necessidade para contemplar, independentemente de sua relevância ou urgência, é intuitivo, para que não se diga obrigatório, concluir que outra provavelmente remanescerá pendente, isso é, toda e qualquer opção implica, de alguma maneira, ainda que mínima, numa simultânea renúncia ao exercício de outra possibilidade e este ônus é denominado pelos economistas de “custo de oportunidade” ou trade off, segundo explica Gregory N. MANKIW5. Por conseguinte, a organização da Economia em qualquer sociedade implica na resolução de algumas questões elementares, mas de fulcral importância no desenho social que se pretende imprimir. Dessa forma, conforme sugerido por Vanessa BOARATI6, é preciso que se tomem decisões acerca dos seguintes tópicos: 1) O que será produzido? Devido à insuficiência dos recursos materiais, não é possível atender a todas as necessidades e ou desejos simultaneamente e é preciso fazer opções e escolhas sobre a quantidade e qualidade dos bens e serviços que serão confeccionados num dado momento histórico. 2) Como será produzido? Frente a diversos processos produtivos possíveis em que cada um apresenta custo e resultado diferente, de modo a evitar o desperdício e se atingir um patamar de maior eficiência, é de rigor decidir quais meios de produção devem ser aplicados para cada finalidade desejada. 3) Quem serão os destinatários do que foi produzido? Significa resolver como será a distribuição da renda na sociedade com a determinação de como o produto resultante da ação econômica dos indivíduos deve ser dividido.
WEBER, Marx. História geral da economia. Trad. Klaus Von Puschen. São Paulo: Centauro, 2006, p. 9-10. Destaque-se que a “ação econômica” não envolve, necessariamente, a presença ou a circulação de dinheiro, posto que as diversas operações podem ocorrer na forma de trocas de bens em espécie, como ocorria no início da Idade Média, época em que o feudo produzia quase tudo que seria consumido pelas famílias e em que havia poucas e esporádicas trocas em mercados semanais mantidos junto a mosteiros ou castelos controlados pelo bispo ou o senhor local. Disto se fazem cabíveis os termos “economia natural” (desconhece o dinheiro) e “economia monetária” (utiliza o dinheiro de forma preponderante) sugeridos por WEBER. In: WEBER, Marx. op. cit., p. 13. 5 MANKIW, Gregory N.. Introdução à economia. Trad. Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Thomson, 2007, p. 5. 6 BOARATI, Vanessa. Economia para o direito. Barueri: Manole, 2006, p. 15-16. 3 4
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Aqui entra em cena uma série enorme de questões que incluem, por exemplo: O mercado será predominantemente livre ou existirá algum nível de controle sobre a fixação dos preços praticados pelos agentes econômicos? Se a opção for pela existência do controle, em quais setores isso se operará e sob qual intensidade? Qual a extensão dos direitos de propriedade? Uma vez que, pela tributação, é possível redistribuir parte da riqueza produzida, como se edificará o sistema tributário? O maior enfoque será dado às exações que gravam a propriedade e a renda ou, noutro sentido, será o consumo de bens e serviços objeto de maior rigor fiscal? Em adição, quais serviços e benefícios serão fornecidos gratuitamente pelo Estado à população? Portanto, o “agir economicamente” de um indivíduo ou de uma sociedade composta por milhões de pessoas se resume a fazer escolhas e administrar os trade offs. É nesse contexto que se apresenta uma das primeiras e mais básicas relações entre o Direito e a Economia, qual seja, a estipulação, por aquele, das “regras do jogo” que deverão ser observadas pelos atores econômicos, independentemente de perceber apenas um salário mínimo ou de se tratar de uma companhia transnacional. Neste amplíssimo campo, merece destaque a disciplina jurídica da propriedade e dos contratos, pois, sem a garantia daquela, ou diante da ineficácia da regra geral que estatui a obrigatoriedade dos pactos, não se pode conceber um sistema social de intercâmbio de bens, comodidades e utilidades minimamente eficaz e, sobretudo, pacífico. Além dessa interação primordial, de um modo geral o diálogo Direito-Economia se caracteriza pelos seguintes conteúdos: a) conteúdo de proibição: há várias atividades que, por representarem risco à saúde ou algum tipo de conflito com o interesse público, ou mesmo por razões políticas, tem sua prática completamente vetada pelo Direito (v.g. produção e o comércio de substâncias entorpecentes, exploração de jogos de azar, a “lei seca”, que tornou ilícito o fabrico, transporte, importação ou exportação de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos em 1919). Em todos os casos, verificase uma circunstância peculiar, qual seja: a interdição total de qualquer atividade econômica representa um conflito aberto entre as forças de mercado (a oferta e demanda por determinado bem ou serviço) e as respectivas normas impeditivas. Logo, o simples fato de certa proibição ter sido normativamente posta não garante sua observância automática, seja por produtores, fornecedores ou mesmo pelos consumidores envolvidos. Aqui, conforme Cristiano CARVALHO7: “o sistema econômico pode reagir tanto no sentido de acolher as ordens jurídicas, como no sentido de desobedecer-lhes ou burlá-las”.
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CARVALHO, Cristiano. Teoria do sistema jurídico: direito, economia e tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 265.
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Infere-se que a resistência à proibição cresce segundo o potencial dos ganhos envolvidos na atividade ilícita, ou seja, quanto maior for o potencial de lucro, mais difícil será ao Direito se fazer valer. Cite-se, como exemplo, a bilionária “indústria das drogas”. De fato, é muito raro que uma norma jurídica consiga banir completamente alguma atividade econômica, ainda que o Estado inquine a conduta de criminosa e institua mecanismos de fiscalização e repreensão. Usualmente, o que se observa é a permanência de um mercado “paralelo”, o que indica que nesses casos o diálogo entre o Direito e a Economia é conflituoso; b) conteúdo de proteção contratual: o contrato é uma figura antiqüíssima que se caracteriza pelo acordo de vontades e tem por objeto, segundo Raquel SZTAJN e Haroldo Malheiros Dulcrec VERSOÇA 8: “assegurar e regular a pacífica circulação de riqueza; evitar a violência na alocação eficiente dos bens na economia; e a promover sua transferência entre as pessoas de forma lícita, uma vez que obriga as pessoas por suas declarações e promessas”. Dessa feita, o contrato se apresenta como uma promessa capaz de gerar legítimas expectativas de comportamento entre as partes envolvidas, cuja eficiência estará relacionada às previsões de incentivos e/ou sanções para as hipóteses de descumprimento do pacto. É bem sabido que o conteúdo do contrato, isto é, as promessas e obrigações assumidas pelas partes, não pode ferir mandamentos de “ordem pública” ou “leis imperativas”, que, ao restringirem a liberdade de disposição das cláusulas, dirigem, de algum modo, a formação das avenças e vedam a inclusão de preceitos que o legislador entenda prejudicial a uma das partes, presumidamente mais fraca em termos econômicos. Segundo Orlando GOMES 9: O processo de conversão de leis supletivas em imperativas ensejou a elaboração de novo princípio do Direito Contratual, o da regulamentação legal do conteúdo dos contratos, hoje admitido, sem maior relutância, em relação a certas espécies contratuais. Consiste em regular o conteúdo do contrato por disposições legais imperativas, de modo que as partes, obrigadas a aceitar o que está predisposto na lei, não possam suscitar efeitos jurídicos diversos.
SZTAJN, Raquel. VERSOÇA, Haroldo Malheiros Dulcrec. A incompletude do contrato de sociedade. In: Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro. n. 131, jul./set. 2003, p. 9. 9 GOMES, Orlando. Contratos. 15. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 33. 8
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E, se o Direito trata dos limites e da extensão da possibilidade das pessoas agirem de forma econômica, é porque o Direito e a Economia são sistemas que trabalham sob objetivos nem sempre coincidentes. Enquanto, em essência, a ação econômica busca maximizar os benefícios do agente pela atuação mais eficiente e menos custosa possível, o Direito busca harmonizar esse desejo, inegavelmente um tanto quanto egoísta, com o interesse geral de todos. No Direito brasileiro, há vários exemplos de normas cujo teor autoriza a interferência externa (via de regra por meio da atuação judicial) no conteúdo das promessas contratuais, das quais merece especial destaque o Código de Defesa do Consumidor que, dentre outras várias previsões, traz dispositivos muito claros sobre o direito de revisão contratual nos casos em que a prestação a cargo do consumidor for desproporcional àquela da outra parte, de maneira a resultar numa vantagem excessiva (v.g. arts. 6º; 39, V e 51, IV). O diálogo entre Direito e Economia é mais cordial quando se estiver diante do elemento proteção contratual, mas, ainda assim, nem sempre é de fácil desenlace. Em muitas hipóteses, o equilíbrio entre a eficiência econômica e a equidade objetivada pela intervenção legal e judicial é tarefa árdua. Áreas como, por exemplo, a locação para fins residenciais, são férteis para que a relação entre o Direito e Economia se problematize. Oportuno, nesse ponto, conferir uma hipótese formulada por Richard POSNER10: uma regra que facilite aos inquilinos pobres o rompimento dos contratos de locação com senhorios ricos irá induzir estes últimos a aumentar os aluguéis a fim de suportar o impacto dos custos mais altos impostos pela regra, e os inquilinos vão suportar o preço dos custos elevados. Na verdade, a principal redistribuição realizada por tal regra pode abranger desde o inquilino prudente e responsável, que pode obter pouca ou nenhuma vantagem dos direitos jurídicos adicionais a serem usados contra os senhorios – direitos que podem permitir que um inquilino evite ou adie o despejo pelo não-pagamento do aluguel -, até o inquilino inconseqüente. Trata-se de uma redistribuição extravagante. Exemplo notável, para não dizer trágico, acerca do tema, e que possui, inclusive, graves repercussões sociais, são as denominadas “guerras urbanas” travadas na Holanda no final da década de 70 do século passado, ocasião em que aproximadamente 3.000 pessoas invadiram diversos imóveis desocupados, o que
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POSNER, Richard A.. Problemas de filosofia do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 483.
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causou severos choques com as forças policiais quando da retomada dos bens pelos respectivos proprietários. Conforme retrata Bruno Meyerhof SALAMA11, à época, os imóveis encontravam-se não habitados porque a legislação protegia excessivamente os locatários, o que culminou na preferência de muitos proprietários em simplesmente deixarem seus imóveis fechados. A relação Direito e Economia também é moldada pelas decisões oriundas das diversas Cortes de Justiça na solução dos casos concretos que a si são trazidos. Nessa linha, embora uma decisão judicial deite seus efeitos jurídicos apenas sobre as partes que compuseram uma determinada relação processual12, conforme, inclusive, preceituam os arts. 467 a 474 do CPC, os efeitos econômicos quase sempre extrapolam os limites dos autos e acabam por influenciar em algum grau as estratégias negociais de agentes que se enquadram em circunstâncias análogas a certo decisum, desde simples agricultores, até grandes companhias abertas. Dispensar atenção ao tópico é de suma importância, eis que, segundo expõe Armando Castelar PINHEIRO13: “variações na qualidade dos sistemas legais e judiciais são importantes determinantes do ritmo de crescimento e desenvolvimento dos países”. Com efeito, Luciano Benetti TIMM afirma que14: a excessiva intervenção judicial pode originar externalidades negativas (i.e., efeitos a serem suportados por terceiros), porquanto o risco da perda ou a perda efetiva do litígio pela parte “mais forte” tende a “respingar” ou ser repassado à coletividade, que acaba pagando pelo mais fraco judicialmente protegido (como ocorre paradigmaticamente com as taxas de juros bancários, com os contratos de seguro e como aconteceu em casos de contratos de financiamento de soja no Estado de Goiás), sem, entretanto, receber o benefício compensatório de maior bem-estar. A proposta deste trabalho não é de que os juízes deixem de intervir nas relações contratuais discutidas nas causas a si distribuídas, mesmo porque o
SALAMA, Bruno Meyerhof. O que é pesquisa em direito e economia? In: Cadernos Direito GV. v. 05, mar. 2008, p. 21. Disponível em: <http://www.direitogv.com.br/AppData/Publication/caderno%20direito%2022. pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 12 Evidentemente, há exceções a esta regra geral, como é o caso das demandas cujas decisões ostentam amplitude erga omnes, tais como a “ação civil pública” (art. 16 da Lei 7.347/85) e as “ações diretas” de competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, §2º, da Constituição de 1988). 13 PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito & economia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 22. 14 TIMM, Luciano Benetti. Ainda sobre a função social do direito contratual no Código Civil brasileiro: justiça distributiva versus eficiência econômica. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito & economia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 66. 11
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sistema jurídico nacional assim permite, notadamente frente às causas legais de nulidade ou anulabilidade. Nesse sentido, apenas se busca constatar o risco da intervenção judicial resultar em distorção econômica num determinado mercado, bem como a possibilidade de terceiros alheios à lide sofrerem algum tipo de resultado nocivo independentemente de sua vontade ou da prática de qualquer ato que pudesse justificar o prejuízo. Os casos de financiamento do plantio e cultivo de soja no Estado de Goiás são deveras esclarecedores. Vários produtores daquele Estado firmaram contratos de venda antecipada de soja15 com indústrias processadoras do grão, oportunidade em que se fixou o preço a ser pago por essas quando do recebimento do produto. Todavia, em abril de 2004, após o expressivo aumento das cotações internacionais da commodity, muitos agricultores apresentaram demandas judiciais de revisão dos valores contratuais firmados anteriormente sob a alegação de onerosidade excessiva ou mesmo de lesão enorme no contrato, uma vez que a majoração, a posteriori, do valor da soja permitiria às indústrias um lucro muito maior do que o esperado inicialmente, sem que o produtor pudesse participar de parte desse sobre-valor. Alguns produtores obtiveram vitórias no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, com a consequente revisão de suas avenças com fulcro na função social do contrato e boa-fé objetiva (v.g. 1ª Câmara Cível, apelação cível nº 79.859-2/188, j. 24/9/2004, DJ 26/11/2004, Rel. Des. Jeová Sardinha de Moraes; 1ª Câmara Cível, apelação cível nº 82.254-6/188, j. 22/2/2005, DJ 17/3/2005, Rel. Des. Leobino Valente Chaves). Por conta da desconfiança gerada em torno da indicada ferramenta de financiamento, o instrumento praticamente desapareceu do mercado e, nos anos seguintes, os produtores em geral passaram a se sujeitar à venda já durante a safra e isso pode ter contribuído, por exemplo, para manter os preços mais baixos do produto internamente. Ademais, ainda que a tendência do Superior Tribunal de Justiça seja reverter o resultado de tais demandas (v.g. REsp. nºs 803.481 e 783.404), a dificuldade em se obter essa modalidade especial de financiamento perdura até hoje. Em estudo realizado especificamente sobre os contratos “da soja verde”, Cristiane Leles REZENDE e Décio ZYLBERSZTAJN16 constataram o seguinte:
O sítio eletrônico do jornal Valor Econômico informa que estes contratos são conhecidos como “CPRs de gaveta” ou “contratos de soja verde” e noticia que em passado recente chegaram a financiar 80% da safra de soja do Centro-Oeste do país e foram vitais para o avanço do grão na região. Disponível em: <http:// www.mmk.com.br/midia/Informa/2006-02-15.pdf>. Acesso em: 25 mar 2009. 16 REZENDE, Cristiane Leles. ZYLBERSZTAJN, Décio. Pacta sunt servanda?: o caso dos contratos de soja verde. In: Berkeley Program in Law & Economics, paper 050207´06, 2007, p. 28-29. Disponível em: <http://www.pensa. org.br/anexos/biblioteca/182007111522_Alacde_ChristianeLRBrasilia07.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2008. 15
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Em entrevistas com os agentes foi constatado que durante os quinze últimos anos estes agentes negociaram sem que houvesse problemas relevantes. Porém, no momento da colheita das safras 2002/2003 e 2003/2004 o preço praticado no mercado spot estava muito mais alto do que o contratado, ao contrário do que aconteceu nos anos anteriores. [...] Entretanto, muitos produtores se sentem prejudicados em relação à reação das empresas que, segundo eles, foi indiscriminada, atingindo todos os produtores, mesmo aqueles que sempre cumpriram seus contratos. [...] A maior parte dos produtores entrevistados declarou que sentiu efeito das quebras contratuais dos outros produtores. As conseqüências mais citadas foram a maior exigência de garantias para crédito e custeio, maior dificuldade para negociar com a empresa e a redução do volume de contratos de venda antecipada efetuados. De acordo com produtores e indústrias a redução no volume de contratos a termo se deve às seguintes razões: a) preço baixo da saca de soja, devido ao excesso de oferta; b) expectativa do produtor de elevação de preços durante a safra, como aconteceu em 2003 e 2004; c) ocorrência de quebra ou descumprimento de contrato nas duas últimas safras. Ainda não há consenso na jurisprudência acerca da rescisão dos contratos de compra e venda. Foi observado que as indústrias/tradings efetuaram no ano que seguiu, menos contratos de compra antecipada de soja verde, quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Em conclusão, em termos coletivos, os produtores do Estado de Goiás (inclusive aqueles que judicialmente em um primeiro instante se saíram exitosos em suas pretensões) perderam, em relação aos anos seguintes, uma opção17 até então usual para o financiamento de sua safra futura de soja.
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Ao que tudo indica, de acordo com o que foi ventilado na Oficina de Trabalho citada por REZENDE e ZYLBERSZTAJN, esta opção era de fato importante, uma vez que o financiamento governamental seria insuficiente. In: REZENDE, Cristiane Leles. ZYLBERSZTAJN, Décio. op. cit., p. 21.
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Conforme expõe Gustavo AMARAL18, a atuação judicial em tais hipóteses, em verdade, enfrenta um conflito entre a micro (o caso sub judice) e a macro justiça (os casos que, em potencial, se encontram na mesma circunstância). O autor defende que: “A justiça do caso concreto deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia”. Seja qual for a escolha, é de rigor que os juízes a compreendam e a tenham bem fixada em seus veredictos, uma vez que, na ênfase de Gilson Wessler MICHELS19: “Não há desenvolvimento da sociedade que não esteja ancorado num quadro institucional baseado em regras estáveis e legítimas, que propiciem segurança jurídica e recebam aceitabilidade social”; c) conteúdo de regulação de determinada atividade econômica: presumese que num mercado constituído ao mesmo tempo por um grande número de ofertantes e demandantes em torno de bens ou serviços não exclusivos ou facilmente substituíveis, o preço representa o ponto de equilíbrio entre os interesses dos respectivos pólos em determinado instante. Assim, essa é a opção mais eficiente de se alocar os bens na sociedade20. Porém, há tempos se sabe que o mercado em funcionamento apresenta algumas falhas, ou seja, a suposta mão invisível21, que cuidaria do equilíbrio perfeito retro acenado, não tem pulso suficiente para neutralizar o surgimento de circunstâncias prejudiciais capazes de interferir na suposta melhor alocação possível dos bens circuláveis. Logo, nota-se que o Estado, essencialmente, por meio da edição de normas jurídicas variadas, tenta minimizar essas discrepâncias com a finalidade de garantir que os agentes econômicos operem numa ambiência que procure acompanhar os princípios e diretrizes traçadas pelo art. 170 da Constituição de 1998.
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 39. MICHELS, Gilson Wessler. Desenvolvimento e sistema tributário. In: BARRAL, Welber (org.). Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005, p. 226. 20 A este respeito José Paschoal ROSSETTI assevera que: “Os economistas admitem que uma economia em que todos os setores de produção estejam operando com base em estruturas perfeitamente competitivas é a que pode alcançar o emprego mais eficiente dos escassos recursos disponíveis”. In: ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia. 12. ed.. São Paulo: Atlas, 1987, p. 303. 21 Trata-se de uma figura hipotética idealizada por Adam SMITH no final do século XVIII que se constituiria no resultado do conjunto de ações econômicas existentes na sociedade em que cada agente busca, em primeiro lugar, seu próprio interesse. De acordo com tal concepção, explica Fábio NUSDEO que no mercado seria a mão invisível que “guiaria os seus operadores para as aplicações mais corretas de recursos, correção essa que eles, movidos apenas pelo espírito hedonista, não conseguiam discernir ou não procurariam conscientemente alcançar, mas para cujo resultado favorável contribuíam à sua própria revelia”. In: NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 122. 18 19
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Nos termos do exposto por Fábio NUSDEO22, as principais falhas capazes de afetar o equilíbrio mercadológico e que por isso devem ser combatidas por meio da intervenção normativa dizem respeito a essas ocorrências: 1) rigidez de fatores (v.g. caso ocorra aumento na demanda por determinado produto, a reação dos fabricantes para majorar a oferta raramente é imediata); 2) falta de acesso às informações relevantes (v.g. o vendedor de um automóvel usualmente sabe muito mais acerca do veículo do que o comprador. Noutra banda, o acionista controlador possui acesso muito mais amplo à situação financeira da empresa do que os minoritários); 3) concentração econômica (v.g. uma empresa que seja a única fabricante de certo produto. Trata-se do chamado monopólio23); 4) externalidades (v.g. a indústria que polua o meio ambiente e não arque com os custos da respectiva reparação, com a consequente transferência do ônus à coletividade); 5) utilização de bens coletivos ou públicos24 (v.g. se a fórmula de um novo medicamento não receber a garantia de uma patente, inegável fruto do sistema jurídico, não haverá estímulo a que novos investimentos destinados a descobertas posteriores sejam ultimados). d) conteúdo de incentivo ou inibição de certos comportamentos do agente econômico: é possível, ainda, que normas jurídicas objetivem incentivar ou inibir certos comportamentos econômicos que o legislador entende como desejáveis ou não. Assim, não há uma determinação ou mesmo uma proibição expressa para que atividades ocorram ou cessem. Os instrumentos aqui utilizados se assemelham àqueles empregados na domação de animais, quais sejam: prêmios e punições, dependendo do ato praticado. Desde a concepção do welfare state, isto é, a partir do final da década de vinte do século passado, normas com tais características passaram a ser muito comuns principalmente em áreas como a tributação25, em que por meio do sistema imposicional o Estado atua efetivamente sobre a ordem econômica e
Idem, p. 142 e seg. De acordo com o que coloca Milton FRIEDMAN: “O monopólio implica ausência de alternativas e inibe, portanto, a liberdade efetiva da troca”. In: FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Trad. Luciana Carli. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 33. 24 Enquanto que para os juristas o bem público é aquele que pertence a uma pessoa jurídica de direito público, segundo o art. 98 e seg. do Código Civil, os economistas designam como público qualquer bem que seja não-rival e não-exclusivo, independentemente de sua titularidade, ou seja, qualquer um pode se beneficiar do bem. Narra André Felipe COÊLHO que: “Para a Ciência Econômica, bem público ou coletivo é o bem para o qual o princípio da exclusividade não se aplica, ou seja, ele poderia ser simultaneamente consumido por mais de um indivíduo sem diminuir o seu consumo por qualquer pessoa”. In: COÊLHO, André Felipe Canuto. A necessária interação entre o direito e a economia diante da regulação do Estado na ordem econômica. In: Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n. 27, 2007, p. 197. 25 Destaque-se o art. 146-A da Constituição de 1988, incluído pela Emenda 42/2003, cuja redação estabelece: “Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. 22 23
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social, tentando moldá-la segundo os desígnios constitucionais. Com isso, a antes tradicional finalidade fiscal dos tributos, até então vistos essencialmente como ferramentas para o sustento exclusivo das despesas estatais típicas, passa a repartir cada vez mais espaço com a extrafiscalidade, com a possibilidade da instituição de exações muito mais vocacionadas a induzir comportamentos do que representar fonte substancial de receita. Neste tópico, merecem, ainda, destaque os vetustos tributos aduaneiros que, aliás, já eram praticados há mais de dois mil anos pelos Romanos por meio da imposição da portorium, conforme narra J.M. Othon SIDOU26. Outras exações também comportam a função extrafiscal, como, por exemplo, o IPI, cujas alíquotas devem ser graduadas segundo a essencialidade dos produtos (art. 153, §3º, I, da CF/88), o ITR, que deve incidir de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas (art. 153, §4º, da CF/88) e o IPTU, de modo a estimular que os proprietários promovam o adequado aproveitamento dos imóveis subutilizados por meio da majoração progressiva do gravame no tempo (art. 182, §4º, II, da CF/88). Em adição, expedientes como isenção, alíquota zero, crédito presumido, draw back e outros, também são ferramentas aptas a estimular ou inibir os comportamentos dos diversos agentes econômicos, ao aceitar-se como pressuposto a existência de um desejo generalizado de se gastar o mínimo possível com o pagamento dos tributos. Ficam, pois, afastadas quaisquer dúvidas em torno do real e inafastável acoplamento estrutural entre os sistemas sociais Direito e Economia, ambos operando de maneira continua e recíproca sob inúmeros e diuturnos estímulos e respostas. Em breve resumo, na feliz síntese de Gustav RADBRUCH27: “O direito não é uma forma, dentro da qual a matéria das relações sociais se deixa moldar docilmente, mas a forma que essa matéria assume irresistivelmente”, ou seja, conforme assevera Sandra MOCELLIN28 (1998, p. 1.032), se: de um lado a legislação condiciona as decisões e o comportamento da unidade econômica, seja no nível desagregado (microeconomia), seja no nível agregado (macroeconomia); de outro, o legislador e o intérprete não podem ignorar as proposições econômicas (tradução livre).
SIDOU, J.M. Othon. A natureza social do tributo. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 24. RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Trad. Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes: 1999, p. 32. 28 MOCELLIN, Sandra. Economia criminale e atto economico: brevi considerazioni. In: Revista Trimestrale di 26 27
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E assim ocorre, na explicação de J. M. SIDOU29, porque: “Sem economia a idéia de Estado seria um vazio despido de objetivismo, do mesmo modo como seria teratológica toda concepção de um Estado sem direito ou sem política, isto é, sem corpo de administração”. 2 - DIREITO & ECONOMIA, DIREITO E ECONOMIA, ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E LAW AND ECONOMICS – expressões SINÔNIMAS O aumento, cada vez maior, da complexidade das relações entre o Direito e a Economia motivou o estudo do fenômeno em moldes científicos por meio da Law and Economics, pois, segundo indica Marlon TOMAZETTE30, esse diálogo é: “fundamental para a solução de uma série de problemas que se apresentam hoje em dia, tanto para o direito quanto para a economia”. A esse respeito, segundo POSNER31, até 1960 o movimento era quase sinônimo de Direito da concorrência ou antimonopólio. Em suas palavras: “o novo direito e economia teve início com o primeiro artigo de Guido Calabresi acerca da responsabilidade civil por atos ilícitos e com o trabalho de Ronad Coase sobre o custo social” (tradução livre). Teriam sido esses, então, os primeiros esforços para aplicar sistematicamente a análise de cunho econômico a áreas do Direito que não cuidavam explicitamente de relações econômicas, o que é confirmado por SZTAJN32, que coloca o próprio POSNER como um dos co-fundadores da moderna Law and Economics. Essa divisão entre a “velha” e a “nova” Análise Econômica do Direito, a partir de 1960, é expressamente admitida por Guido CALABRESI33: “ante o fato de se aplicar os instrumentos próprios da análise da ciência econômica a normas que, ao menos declaradamente, o escopo econômico seja estranho” (tradução livre). De fato, conforme narra COÊLHO34, nos idos das décadas de quarenta e cinqüenta do século XX, a “velha escola” do Direito e Economia centrava seus estudos em temas jurídicos com viés eminentemente econômico, tais como: antitruste, comercial, regulação e tributário. Irradiação dessa novel visão houve, destarte, para SIDOU, J.M. Othon. op. cit., p. 7. TOMAZETTE, Marlon. A viabilidade da análise econômica do direito no Brasil. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas. nº 75. 2007, p. 179. 31 POSNER, Richard A.. El análisis económico del derecho. 2. ed. Trad. Eduardo L. Suárez. México: Fondo de Cultura Económica, 2007, p 55. 32 SZTAJN, Raquel. Law and economics. In: ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Raquel (org.). Direito & economia. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p. 74. 33 CALABRESI, Guido. Il futuro dell´analisi economica del diritto. In: Sociologia del diritto, n. XVII-1-2, 1990, p. 47. 34 COÊLHO, André Felipe Canuto. op. cit., p. 4. 29 30
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as áreas como: responsabilidade civil e infortunística, penal, processual, família e sucessões, ambiental, criança e adolescente, administrativo, trabalho, etc. Quanto à metodologia elementar de trabalho, SZTAJN35 conclui que: “Comum aos estudos de Law and Economics é a percepção da importância de recorrer a alguma espécie de avaliação ou análise econômica na formulação de normas jurídicas visando a torná-las cada vez mais eficientes”. Nesse diapasão, em linhas gerais, as pesquisas tem como premissa a circunstância de o ser humano agir racionalmente, dentro do mencionado usual juízo acerca dos custos e benefícios, em todas suas ações e, ainda, de reagir aos incentivos promovidos pelas normas jurídicas. Logo, afirma COÊLHO36 que: “no contexto da Análise Econômica do Direito, faz-se um paralelo entre preços e normas jurídicas no sentido de que essas, assim como aqueles, atuam como estímulos à atividade dos indivíduos”. Aqui, explicam Alexandre Ditzel FARACO e Fernando Muniz SANTOS37 que: Trata-se de um apoditismo, ou seja, uma premissa básica, a qual, evidentemente, pode ser contestada em termos concretos. Todavia, essa premissa é necessária pois permite investigar padrões comportamentais, e , assim, avaliar a previsibilidade das condutas, o que torna possível a teorização a respeito dos comportamentos humanos, em face da escassez. Assim, ao considerar-se como ponto de partida o fato de que os indivíduos reagem aos incentivos em geral, seja para agirem, seja para se absterem de qualquer ato, é possível explicar, mesmo que de maneira não absoluta ou definitiva, por exemplo, a diferença nas taxas médias de homicídios entre países diversos. Então, um pressuposto da ciência econômica – a reação humana a estímulos do ambiente - contribui para elucidar assuntos ligados à criminologia. Nesse ponto, segundo João Luiz ROTH38, o Brasil possui 322 policiais por grupo de 100.000 habitantes, média superior à dos Estados Unidos, cujo patamar está em torno de 283. Contudo, como explicar que o número médio de homicídios é maior no Brasil? A resposta possivelmente se relaciona com o fato de, mais uma vez conforme o autor39, os Estados Unidos solucionarem aproximadamente 70% dos homicídios, contra apenas 3% do Brasil.
SZTAJN, Raquel. op.cit., p. 75. COÊLHO, André Felipe Canuto. op.cit., p. 10. 37 FARACO, Alexandre Ditzel. SANTOS, Fernando Muniz. Análise econômica do direito e possibilidades aplicativas no Brasil. In: Revista de Direito Público da Economia. n. 09, jan./mar. 2005, p. 31. 38 ROTH, João Luiz. Por que não crescemos como os outros países?: custo Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43. 39 ROTH, João Luiz. op.cit., p.43. 35 36
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Não obstante fatores outros possam contribuir para o número médio dos homicídios em determinada região (v.g. policiamento preventivo eficiente, fechamento de bares e casas noturnas após certo horário, conscientização social acerca do respeito pela vida humana, etc.), é intuitivo considerar que a quantidade de casos esclarecidos, nos quais se identifique o autor e seja aplicada a respectiva pena, influi de alguma maneira na taxa média. É difícil, nesse sentido, negar que a expectativa da impunidade possa contribuir para sua majoração. Por outro lado, a Law and Economics admite um espectro positivo e outro normativo (ou prescritivo). Conforme SALAMA apresenta40: O Direito e Economia Positivo se ocupa das repercussões do Direito sobre o mundo real dos fatos; o Direito e Economia Normativo se ocupa de estudar se, e como, noções de justiça se comunicam com os conceitos de eficiência econômica, maximização da riqueza e maximização de bem-estar. Partindo dessas considerações, FARACO e SANTOS41 afirmam que as pesquisas desenvolvidas na área possuem os seguintes objetivos e ou finalidades essenciais: a) explicar fatos econômicos que constem de previsões legais, como, por exemplo, o conceito de “mercado relevante de bens ou serviços” utilizado pelo art. 20, II, da Lei 8.884/94. Nesse caso, a partir de uma construção oriunda da ciência da Economia, o jurista consegue melhor compreender a dicção legal. A não utilização desse arsenal científico poderia gerar uma aplicação equivocada do dispositivo pelas autoridades competentes, seja no âmbito administrativo, seja no judicial, sem falar que essa ignorância majora a possibilidade da construção de dispositivos legais inoperantes; b) antever certos efeitos econômicos que uma determinada norma jurídica ou mesmo decisão são aptos a gerar. Num esclarecedor exemplo citado por Paula Andrea FORGIONI42: quando da formulação de texto normativo que fixe em patamar demasiadamente baixo a multa incidente sobre atrasos no pagamento das despesas condominiais, entende a AED43 ser obrigatório ponderar que o estímulo à inadimplência será a conseqüência econômica esperada e que, portanto, faltarão os recursos necessários à manutenção dos serviços comuns. SALAMA, Bruno Meyerhof. op.cit., p. 9 FARACO, Alexandre Ditzel. SANTOS, Fernando Muniz . op. cit., p. 27-28. 42 FORGIONI, Paula Andrea. Análise econômica do direito: paranóia ou mistificação? In: Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, n. 77, mai./jun. 2006, p. 54. 43 AED corresponde à abreviação de Análise Econômica do Direito. 40 41
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Até aqui foi estudada preponderantemente a Law and Economics em sua dimensão positiva, isso é, o conhecimento econômico foi utilizado apenas para constatar certas realidades encontráveis no mundo, sem, contudo, colocar-se em cena a preocupação de modificá-las num sentido ou noutro. c) propor o conteúdo de normas jurídicas ou decisões com o objetivo de alcançar possíveis resultados, ou seja, com base nas previsões dos efeitos econômicos decorrentes de certas opções, conforme indicado no item “b” acima, é possível aos estudiosos sugerirem quais os supostamente melhores caminhos a serem seguidos conforme a concepção de eficiência, equidade e justiça de cada um. Logo, a dimensão normativa (ou prescritiva) da Law and Economics aqui se sobressai. É certo, ainda, que os resultados dessas pesquisas podem servir de valioso apoio aos legisladores e aplicadores do Direito em suas atividades basilares, uma vez que poderão, com maior acuidade, identificar a probabilidade dos objetivos que anseiam serem ou não conseguidos a partir da norma (ou decisão) que se pretende edificar. Ao retomar o exemplo da obrigação condominial acima transcrito, partindo-se da consciência de que a intensidade da multa pelo atraso no respectivo pagamento pode influir na taxa de inadimplência, é possível melhor capacitar o legislador na fixação dos limites dessa penalidade, bem como auxiliar o juiz em eventual decisão acerca de sua excessividade ou não. Não que tais constatações sempre obriguem a fixação das multas em patamares sempre elevados, pois podem existir razões - sobretudo políticas para que assim não ocorra, mas, indiscutivelmente, mesmo que sob motivos que desbordam da eficiência econômica, a tomada de uma opção é feita com maior segurança quanto aos resultados que advirão. Frente a tais considerações, FARACO e SANTOS44 enfatizam que: o instrumental teórico da economia permite ao operador jurídico avaliar se, no caso, os meios previstos normativamente para alcançar o compartilhamento servem ao fomento desse propósito ou não. Caso o operador jurídico restrinja sua análise à conformidade estrutural entre as normas em questão, nada terá a dizer a respeito do cumprimento, por essas normas, das finalidades perseguidas pelo legislador ou pelo administrador ao editá-las. O movimento da Law and Economics não está isento de matizes epistêmicos, o que permite identificar em seu cerne escolas que operam sob paradigmas relativamente diferentes, notadamente quando em cena o modelo teórico
44
FARACO, Alexandre Ditzel. SANTOS, Fernando Muniz . op. cit., p. 48.
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normativo (ou prescritivo). Nesse ponto, SALAMA45 identifica três versões possíveis: a) fundacional; b) pragmática; e, c) regulatória. Conforme as linhas mestras da escola fundacional, o objetivo primordial do Direito, no qual inclusive repousaria seu fundamento (daí a expressão “fundacional”), é contribuir para a maximização da riqueza, notadamente pela garantia da propriedade e da obrigatoriedade dos contratos, uma vez que, ausentes tais figuras, mínguam os intercâmbios econômicos de mercado. Nos termos do que defendido por esse modelo, FORGIONI46 enfatiza que: os mercados funcionam de forma mais eficiente se ligados a um ambiente institucional estável, no qual os agentes econômicos podem calcular, i. e., razoavelmente prever o resultado de seu comportamento e o daqueles com quem se relacionam. Daqui se deduz que a maneira mais eficiente do Direito maximizar a riqueza é intervir o mínimo possível nas relações do mercado, em que apenas se justifica a atuação normativa para neutralizar as respectivas falhas na tentativa de criar uma ambiência econômica como se falhas não ocorressem. E, numa versão mais radical, não deveria ser vetado por lei, por exemplo, a compra e venda de órgãos humanos para transplante, crianças para adoção, entorpecentes e outras substâncias nocivas à saúde etc. A explicação para tamanha liberalidade é mencionada por FORGIONI47, isso é, para os fundacionistas: As decisões individuais dos agentes econômicos são marcadas pelo desejo egoístico de satisfação de suas necessidades; a solução “geral e natural” encontrada pelo mercado corresponde à consideração global dessas preferências. Em vez da hercúlea e impossível tarefa de buscar o “justo” ou o “adequado”, o normal funcionamento do mercado trará a resposta a ser adotada em cada situação. É admitida mais de uma solução [=decisão] correta desde que todas [e cada uma delas] levem ao mesmo resultado.
SALAMA, Bruno Meyerhof. op.cit., p. 28 e seg. FORGIONI, Paula Andrea. op. cit., p. 37. 47 Idem. p. 47. 45 46
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O mais relevante defensor da versão fundacional foi POSNER, precursor da chamada “Escola de Chicago” da Law and Economics, de acordo com FARACO e SANTOS48. Em verdade, como consignado por Marcos Vinício Chein FERES49: Richard Posner elegeu o critério da eficiência econômica como único a ser levado em conta no momento da decisão judicial. Esta deve ter por fim a maximização da riqueza, despojando-se de quaisquer outros valores e princípios que não se coadunam com a certeza e objetividade fundamentais a um mais preciso processo judicial. É, pois, relevante ter em mente que o liberalismo norte-americano acentuado acaba por influir na escolha desse único valor a garantir, grosso modo, ao mais eficiente ganho de causa. As principais críticas à teoria fundacional são condensadas por FORGIONI50 ao asseverar que: “A sociedade civil não se resume ao mercado, há princípios [jurídicos] que não atendem à lógica econômica e que também compõem a chamada ‘ordem jurídica do mercado’”. No mesmo caminho, a lição de FERES51: “É evidente que a social wealth, enquanto fim em si, não atende aos reclamos da justiça, enquanto valor, que leva em consideração as diferenças entre as pessoas e a distribuição”. Disto resulta que o próprio POSNER, por volta de 1990, reviu a proposta da maximização de riqueza como fundamento prioritário do Direito e instituiu, por conseguinte, a versão pragmática da Law and Economics, nos termos do que noticia SALAMA52: O Posner pragmático, portanto, reconheceu que, por mais que se tente justificar a defesa das liberdades individuais com base em critérios de eficiência (por exemplo, sustentando que no longo prazo o Estado Democrático de Direito promove o desenvolvimento econômico e as liberdades individuais), haverá casos em que a repulsa ao trabalho escravo, à exploração de menores, à tortura, às discriminações raciais, religiosas ou sexuais, etc. terá que ser feitas em bases outras que não a eficiência.
FARACO, Alexandre Ditzel. SANTOS, Fernando Muniz . op. cit., p. 37. FERES, Marcos Vinício Chein. Do princípio da eficiência econômica. In: Revista do IBRAC. v. 08, n. 08, 2001, p. 34. 50 FORGIONI, Paula Andrea. op. cit., p. 59. 51 FERES, Marcos Vinício Chein. op. cit., p. 37. 52 SALAMA, Bruno Meyerhof. op.cit., p. 33. 48 49
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Dessa forma, a versão pragmática revela uma compreensão do Direito como instrumento voltado à consecução de certos fins sociais, ainda com especial destaque à maximização da riqueza por meio da liberdade econômica, mas com temperamentos frente a valores sociais assentados e tidos por intransponíveis, que podem variar segundo as circunstâncias de tempo e local. Por fim, a escola regulatória considera o Direito como uma ferramenta de amparo na concretização de políticas públicas, isto é, a eficiência econômica não serve como embasamento angular para a aferição do “justo jurídico”, no entanto, questões de distribuição e equidade influem no resultado obtido. Logo, por exemplo, na discussão sobre a legalização da prostituição, não são levados em conta exclusivamente os custos e benefícios econômicos que poderiam surgir deste labor (ora, no mínimo, poder-se-ia esperar um aumento na arrecadação do Imposto Sobre Serviços), mas participam da decisão dilemas eminentemente éticos e morais. Essa linha é defendida pela “Escola de New Haven” ou “de Yale” e tem Guido CALABRESI como um dos principais expoentes. Nas palavras de FERES53: é interessante, ainda, apontar que, enquanto a escola posneriana defende a abordagem positiva da análise econômica do Direito, Calabresi constrói o prédio de sua teoria sob o ponto de vista normativo. Ao invés de explicar o mundo tal como é, intenta-se melhorá-lo, operar mudanças a fim de atingir-se a almejada justiça, com eficiência econômica e distribution. Assim, a preocupação, para tal autor, é o comportamento regulado que desempenha importante função na formulação de políticas e contribui para a análise econômica normativa do Direito. Enquanto a “Escola de Chicago” é considerada positivista, a “Escola de Yale” adentra fortemente no terreno prescritivo ou normativo, ou seja, ao partir do pressuposto de que o ser humano usualmente reage a incentivos, procura indicar qual conteúdo normativo seria o mais adequado para atingir certos objetivos, sem deixar, entretanto, de temperar a inspiração da eficiência econômica com os valores sociais de relevo assentados, ainda que variem no tempo e no espaço. Entretanto, ainda que as teorias fundacional (de Chicago) e regulatória (de Yale) possam apresentar soluções distintas para os problemas que lhes são postos, FERES54 indica que ambas buscam, em última instância, dar ao sistema jurídico um fundamento marcadamente econômico. Essa assertiva pode ser complementada com as palavras de SALAMA:
53 54
FERES, Marcos Vinício Chein. op.cit., p. 34-35. Idem. p. 35.
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A questão, portanto, não é tanto se eficiência pode ser igualada à justiça, mas sim como a construção da justiça pode se beneficiar da discussão de prós e contras, custos e benefícios. Noções de justiça que não levem em conta as prováveis conseqüências das suas articulações práticas são, em termos práticos, incompletas. Num certo sentido, o que a Escola de Direito e Economia de New Haven buscou é consagrar a ética conseqüencialista da Economia com a deontologia da discussão do justo. A variação epistemológica encontrada no movimento da Law and Economics não se esgota nas visões retro apresentadas. Assim é que, conforme noticia SZTAJN55: às duas correntes incorpora-se a Escola da Public Choice (ou da Escolha Pública, cujo foco está voltado para a Ciência Política), a que se segue a Escola denominada Economia Institucional e, mais recentemente, a da Nova Economia Institucional, na qual se destacam Douglas North e Steven Medema. Em linhas gerais, os pesquisadores ligados a essa linha consideram que as instituições de uma sociedade, isso é, as “regras do jogo”, não apenas as normas, mas, sobretudo, o modo como elas são usualmente aplicadas, por influírem nos custos de troca e produção, deixam suas marcas na dinâmica econômica e implicam, destarte, na necessidade de se levar em conta essa interação nos respectivos estudos e análises do tema. Nessa toada, conforme apontam ZYLBERSZTAJN e SZTAJN56: Em contraste com a lógica do paradigma neoclássico, mecanismos de coordenação econômica, dados por instituições políticas e legais, restringem as necessidades, as preferências e as escolhas dos atores econômicos: a ação individual não é soberana tal como querem os neoclássicos, mas é influenciada pelas instituições formais e informais. Além disso, com ênfase na lição de Oliver WILLIAMSON57: “Ainda que não seja unanimidade, a Análise Econômica do Direito é largamente reconhecida como um caso de sucesso”. No Brasil, embora ainda em fase inicial, o assunto caminha a passos firmes com destaque para os estudiosos já citados acima, quais sejam, PINHEIRO, SALAMA, TIMM, SZTAJN, ZYLBERSZTAJN e outros.
SZTAJN, Raquel. op.cit., p. 77. ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Raquel. Análise econômica do direito e das organizações. In: ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Raquel (org.). Direito & economia. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p. 63. 57 WILLIAMSON, Oliver. Por que direito, economia e organizações? In: ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Raquel (org.). Direito & economia. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p. 16. 55
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CONCLUSÃO Como se pôde observar, o Direito e a Economia são fenômenos sociais muito antigos que interagem constantemente por meio de estímulos e feedbacks recíprocos desde as primeiras comunidades humanas minimamente organizadas. Essa interrelação somente passou a ser estudada cientificamente apenas a partir da segunda metade do século XX nos Estados Unidos por meio da Law and Economics (Direito & Economia, Direito e Economia ou Análise Econômica do Direito). A teoria fundacional, ou Escola de Chicago da Law and Economics, teve POSNER como precursor e elegeu, nos seus primórdios, os critérios da eficiência econômica e maximização de riqueza como únicos a serem levados em conta no momento da decisão judicial. Já a escola pragmática origina-se de uma evolução concebida pelo próprio POSNER nos idos dos anos 90 do século XX sob o reconhecimento de que haverá casos em que a eficiência econômica deverá ceder frente a valores sociais tidos por instransponíveis. A escola regulatória, por sua vez, que tem como expoente CALABRESI, também conhecida como Escola de New Haven ou de Yale, cujos estudos revelam a nota da normatividade ou prescrição, considera o Direito como uma ferramenta de amparo na concretização de políticas públicas, e não como expoente da eficiência econômica como único ou primordial embasamento para a aferição do “justo jurídico”. Por fim, a Escola da Public Choice, seguida pela Escola da Economia Institucional e a da Nova Economia Institucional, com destaque para Douglas NORTH e Steven MEDEMA, considera relevante o papel desempenhado pelas instituições de uma sociedade e o modo como elas usualmente funcionam para explicar as relações entre o Direito e a Economia. Assim, embora seja um ramo relativamente novo no Brasil, a Law and Economics começa a marcar forte e decisiva presença na doutrina nacional.
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O Mecanismo do Julgamento Conjunto como Instrumento de Cooperação Judiciária Penal Europeia Carlos Wagner Dias Ferreira
Juiz Federal no Rio Grande do Norte, desde novembro de 1997 Doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra Mestre em Direito Constitucional pela UFRN Professor Assistente da UFRN Resumo: O presente trabalho tem o propósito de analisar a viabilidade e a possibilidade de adoção, no âmbito da cooperação judiciária penal europeia, de um mecanismo de julgamento conjunto por vários juízes nacionais que possuam competência em seus respectivos Estados-membros, para processar e julgar crimes transnacionais que afetem interesses, bens e valores da União Europeia, como forma de aprimorar a já existente figura do reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal. Palavras-chaves: Crimes transnacionais. Interesses, bens e valores da União Europeia. Cooperação judiciária penal europeia. Julgamento conjunto. Reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal. Abstract: This paper aims to investigate the feasibility and possibility of adoption within the European criminal judicial cooperation, a mechanism for joint trial of several national judges who have competency in their respective Member States, to adjudicate transnational crimes affect interests, assets and values of the European Union as a way to improve the existing figure of the mutual recognition of judicial decisions in criminal matters. Key-words: Transnational crimes. Interests, assets and values of the European Union. European criminal judicial cooperation. Joint trial . Mutual recognition of judicial decisions in criminal matters. Sumário: 1. Considerações preambulares. 2. Da criminalidade internacional aos crimes transnacionais de hoje na União Europeia. 3. Origens históricas de uma justiça criminal transfronteiriça. 3. Origens históricas de uma justiça criminal transfronteiriça. 4. Contornos da cooperação judiciária europeia. 5. Multiplicidade de ações criminais e concorrência de jurisdições. 6. Do reconhecimento mútuo de decisões judiciais ao julgamento conjunto de ações criminais múltiplas na União Europeia. 7. Considerações finais. 8. Referências.
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1. Considerações preambulares No passado, a dinamicidade da sociedade, sobretudo as relações e as interações entre os indivíduos e com o Estado, era demarcada essencialmente pelo espaço e pelo território. Com isso, para concretizar maior coesão social, inclusive territorial, surgiu a figura do Estado, calcado justamente no poder denominado de soberania. O crime, em regra, não ultrapassava as fronteiras do Estado ou, quando isso acontecia, era reconhecido, normalmente, como um crime internacional. Historicamente, até mesmo em decorrência do princípio da soberania dos Estados, o processamento e o julgamento de contendas criminais sempre estiveram associados à territorialidade da prática do crime. O Poder Jurisdicional dos Estados, por conseguinte, só desencadearia persecuções criminais nos limites de seu espaço territorial. No entanto, essa realidade tem se alterado com uma velocidade impressionante. Existem crimes, como o tráfico internacional de drogas, pessoas e mercadorias e produtos ilegais ou contrabandeados, os crimes de informática, a lavagem de dinheiro (ou branqueamento de capitais), a corrupção, a exploração sexual de mulheres e crianças e a criminalidade organizada, que desafiam várias jurisdições criminais nacionais concomitantemente. Como bem ilustra Otfried Höffe, o terrorismo e o contrabando de armas, o narcotráfico, o tráfico de pessoas há muito não se encontram circunscritos unicamente no âmbito das fronteiras de apenas um Estado. Tem se tornado comum ver nos meios de comunicação notícias de um delito econômico cometido em Singapura, com a prisão do suspeito em Frankfurt e logo condenado na Grã-Bretanha1. Aliado a isso, a União Europeia, em busca de consolidar a sua integração econômica, cultural, social, política e jurídica, encontra-se estruturada sobre os pilares fundamentais da liberdade, da segurança e da justiça. Um dos objetivos centrais da União Europeia é garantir um elevado nível de segurança e, para tanto, como pontifica María Alcale Sánchez, deve ser obtido com a adoção das seguintes medidas distribuídas em quatro níveis: a) em princípio, impõe-se a prevenção e a luta contra a delinquência, o racismo e a xenofobia; b) em segundo plano, estabelecer mecanismos de coordenação e cooperação entre autoridades policiais e judiciais; c) em seguida, promover o reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal; e, por fim, d) patrocinar a aproximação das legislações penais2.
1 2
Derecho Intercultural. Barcelona: Gedisa, 2000, pág. 9. Derecho Penal e Tratado de Lisboa. Revista de Derecho Comunitário Europeu. Vol. 30. Año 12. Mayo/ Agosto. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008, pág. 357.
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Entrementes, a liberdade de circulação de pessoas, de produtos, mercadorias, serviços, capitais e, por que não dizer, de valores e culturas, tem acarretado, cada vez mais, de igual sorte, o aumento da incidência de crimes com reflexos em vários países que integram a União3. Enquanto a liberdade já eliminou as amarras do espaço em um mar sem limites, a justiça, como terceiro pilar da União Europeia, ainda navega em meio a um pequeno lago condenado aos lindes fronteiriços. Um dos grandes desafios, pois, ao combate à criminalidade em solo europeu, consiste no fato de que a Europa, com os seus 27 (vinte e sete) EstadosMembros, por mais que forme um único conglomerado supranacional, possui, em realidade, 27 (vinte e sete) culturas diferentes e, como consequência disso, no mínimo, 27 (vinte e sete) visões diversas de como valorar o comportamento delituoso. Essa problemática é resolvida no plano interno de cada Estado-Membro com o desempenho do papel uniformizador da jurisprudência dos tribunais de cúpula no campo nacional, daí porque essa questão ganha fôlego quando se trata de multiplicidade de acusações penais em vários países concomitantemente e eventual conflito entre jurisdições nacionais. Por isso mesmo, o presente ensaio apreciará se o julgamento conjunto ou colegiado de vários juízes que integram o Poder Judiciário de seus respectivos Estados-Membros da União Europeia pode ser considerado medida harmonizadora adequada às disparidades e divergências de concepções e juízos de valor próprias de cada cultura. O juiz, por se encontrar imerso na cultura de seu país, reflete em suas decisões penais absolutórias e condenatórias os elementos culturais. Recentemente, entrou em vigor o Tratado de Lisboa em dezembro de 2009, destinado a regular o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que instituiu novos parâmetros normativos para a cooperação judiciária em matéria penal nos arts. 82º a 86º. E, consequentemente, torna-se fundamental aquilatar se essa disciplina normativa dá ensejo à instituição desse instrumento tendente à cooperação judiciária em matéria penal. Neste sentido, almeja este estudo analisar a viabilidade e a possibilidade de adoção, no âmbito da cooperação judiciária penal europeia, de um mecanismo de julgamento conjunto por vários juízes nacionais que possuam competência em seus respectivos Estados-membros, para processar e julgar crimes transnacionais que afetem interesses, bens e valores da União Europeia.
3
Atualmente, vinte e sete Estados fazem parte da União Europeia, sendo eles: Áustria, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Chipre, República Checa, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia e Suécia.
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2. Da criminalidade internacional aos crimes transnacionais de hoje na União Europeia A prática de crimes fora dos limites territoriais sempre acompanhou a própria história do homem ao longo do tempo, não se constituindo, assim, em fenômeno atual ou recente da maior circulação de pessoas e de produtos e capitais. O que se alterou significativamente por força do tempo foi o objeto de tutela do bem jurídico-penal. No passado, os delitos além fronteiras, embora também praticados por particulares e por agentes do poder público, visavam tutelar bens jurídicos diretamente ligados a interesses dos Estados na arena internacional. Enquanto que, nos últimos tempos, o foco deixou de ser prioritariamente o Estado, como se observou mais intensamente no passado, passando a proteção jurídica recair sobre a figura do indivíduo na sua convivência societária sadia e harmoniosa em um espaço nacional e internacional de profunda interação. A história dos crimes internacionais, como lembra M. Cherif Bassiouni, remonta à época da pirataria do Século XVII e da escravatura do Século XIX e a fórmula dos “crimes contra as Leis de Deus e do Homem” o primeiro esquema elaborado por teólogos e juristas, para caracterizá-lo. O Direito criminal internacional, no Século XX, desenvolveu-se tão rapidamente que terminou abrangendo, embora não afetasse a paz e a segurança internacional nem atentasse contra a humanidade, crimes que tinham caráter essencialmente transnacional, dentre os quais o tráfico de drogas, os crimes cibernéticos e o crime organizado4. Hodiernamente, à luz do pensamento de Antonio Cassese, os crimes internacionais devem, cumulativamente, apresentar as seguintes características: a) representar uma violação às regras básicas internacionais; b) ter a intenção de proteger valores considerados importantes para a comunidade internacional e consequentemente ser obrigatórias para todos os Estados e indivíduos; c) existir um interesse universal na repressão a esses crimes; e d) ter o autor praticado o crime no gozo de capacidade. Assim, segundo entende, entrariam no conceito de crimes internacionais os crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, as distintas formas de tortura perpetradas em guerra ou com perfil contra a humanidade, agressão e algumas formas extremas de terrorismo5. O próprio Antonio Cassese, contudo, adverte que não se reconhece como crimes internacionais o tráfico ilícito de drogas e de substância psicotrópicas, o comércio ilegal de armas, contrabando de materiais nucleares e potencialmente mortíferos ou lavagem de dinheiro (branqueamento de capitais). Isso se deve ao
Perspectives on International Criminal Justice. Virginia Journal of International Law. Vol. 50. Number 2. Winter 2010. Virginia: University of Virginia, págs. 284, 285 e 287. 5 International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003, págs. 23/24. 4
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fato de que, para serem considerados internacionais, devem estar tipificados e disciplinados em tratados ou resoluções de organizações internacionais. Além disso, normalmente, indivíduos privados ou organizações criminosas e, portanto, particulares, é quem os pratica, não envolvendo, assim, a figura do Estado6. Esse elenco que não se amolda à categoria dos crimes internacionais pode, a despeito disso, ser enquadrado no rol de crimes transnacionais ou transfronteiriços, quando se verificar que o seu desenrolar transcende os limites meramente territoriais de um Estado nacional qualquer, seja porque um único delito por sua própria natureza se estende por mais de um país (e.g., tráfico internacional de drogas e de pessoas), seja porque, em outros casos, há conexão entre crimes (v.g., lavagem de dinheiro ou branqueamento de capitais). Mas o reconhecimento do que sejam crimes transnacionais está a depender da circunstância de se avaliar em quais Estados eles foram perpetrados, em razão da inúmeras peculiaridades ínsitas à cooperação internacional. Daí a necessidade de se definir que crimes poderiam ser considerados como transnacionais no âmbito da União Europeia. O art. 83º.1 do Tratado de Lisboa, por sua vez, embora não conceda poderes ao Parlamento Europeu e ao Conselho para instituir tipos criminais e, portanto, normas penais incriminadoras, permitiu que, por intermédio de suas diretivas de tais órgãos, pudessem estipular regras mínimas atinentes à definição de infrações penais e das sanções em domínios de criminalidade particularmente grave com dimensão transfronteiriça que derive da natureza ou das incidências desses delitos, ou ainda da necessidade de as combater. Para tanto, aponta os domínios de criminalidade a serem objetos de cooperação judiciária, assim delineados: terrorismo, tráfico de seres humanos e exploração sexual de mulheres e crianças, tráfico de droga e armas, branqueamento de capitais (lavagem de dinheiro), corrupção, contrafacção de meios de pagamento, criminalidade informática e criminalidade organizada. María Alcale Sánchez esclarece que os delitos de competência europeia seriam aqueles que tivessem dimensão transfronteiriça no solo europeu e que, assim, projetasse efeitos em mais de um Estado-membro da União. Muitas delas derivariam da própria natureza dos crimes praticados, na medida em que afetariam bens diretamente ligados à essência da União Europeia, tais como o tráfico de drogas, de pessoas ou de capitais. Outros casos justificar-se-iam por motivos de política criminal, traduzida na necessidade em dado momento de combater um específico e determinado segmento de deliquência7.
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Op. cit., pág. 24. Op. cit., págs.. 359/360.
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No entanto, por mais que se estabeleça um catálogo de crimes particulares à dimensão jurídica do espaço da União Europeia, mesmo assim, ao menos por enquanto, não se cogita da confecção de um Código Penal Europeu. Na ótica de Claus Roxin, ainda está longe de se confeccionar um Código penal europeu aplicável frente à criminalidade geral em toda a Europa ou só para os Estados da União Europeia. Antes de tudo, devido à ausência de competência das instâncias da União Europeia de elaborar normas penais incriminadoras. Nem sequer se mostra desejável, como defende Roxin, por comprometer a diversidade da cultura jurídico-penal típica da União Europa8. 3. Origens históricas de uma justiça criminal transfronteiriça A história também marcou com tintas indeléveis a trajetória da justiça criminal no universo internacional, mas um traço que parece não se apagar reside nas nódoas política e econômica, presentes nos julgamentos realizados pelos tribunais ou órgãos internacionais, como denunciam uma longa lista de acontecimentos no curso do tempo. Para se ter um panorama geral dessa realidade, Bassiouni secciona a história da justiça criminal internacional em três estágios (fases). O primeiro lapso temporal compreende o interregno de 1268 a 1815, o segundo de 1919 a 2012 e o terceiro e último de 2012 em diante. A primeira fase, que poderia ser denominada de período histórico inicial e caracterizada por três eventos marcantes ocorridos nos anos de 12689, 147410 e 181511, é exaltado por ter presenciado julgamentos
La Ciencia del Derecho Penal ante las Tareas del Futuro. In: La Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio. Coord. Francisco Muñoz Conde. Valência: Tirant to Blanch, 2004, pág. 416. 9 Em 1268, ocorreu o julgamento de Conradin von Hohenstaufen, um nobre alemão, que morava desde os 16 (dezesseis) anos de idade na Itália. Ele foi julgado e condenado por transgredir os ditames do Papa, em virtude de ter atacado um governante francês, que havia saqueado e matado civis italianos em Tagliacozzo, perto de Nápoles. O julgamento foi essencialmente político, pois Conradin rebelou-se contra a decisão do Papa Clement IV, que tinha fortes hostilidades com a família Hohenstaufen, de oferecer o Reinado da Sicília ao francês Charles d’Anjou (BASSIOUNI, M. Cherif, op. cit., pág. 297). 10 Em 1474, outro julgamento igualmente político marcou a justiça criminal internacional, desta vez, com o objetivo de preservar o Sacro Império Romano. Peter von Hagenbach era um condottiere holandês, uma espécie de líder mercenário, e foi contratado pelo Duque de Burgundy para levantar um exército na intenção de ocupar a cidade de Breisach, na Alemanha, a fim de cobrar impostos de sua população. O duque havia adquirido a cidade em troca de serviços prestados para o Sacro Império Romano. Desinteressada no destino das pessoas da distante cidade alemão, o duque ordenou a Peter que coletasse mais tributos, gerando uma rebelião. Com isso, o duque determinou a Peter que saqueasse a população, cometesse estupros e queimasse a cidade. Peter obedeceu rigorosamente as ordens superiores. O ataque foi tão horrendo que Peter, um holandês, foi acusado de ter praticado “crimes contra as Leis de Deus e do Homem”, tendo os vinte e seis Estados que integravam o Sacro Império Romano acionado juízes internacionais para processálo, em virtude de crimes cometidos na Alemanha por ordem de um governante francês. A defesa de Peter tentou alegar e provar que ele apenas tinha cumprido ordens, mas não obteve qualquer sucesso, tendo sido, ao final, condenado a ser morto e esquartejado (BASSIOUNI, M. Cherif, op. cit., pág. 298). 11 O ano de 1815 traz a lume o julgamento de Napoleão Bonaparte, após a sua derrota em Leipzig e a tomada de Paris entre os anos de 1813 e 1814 por tropas aliadas da Áustria, Inglaterra, Prussia e Russia. 8
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com conotação genuinamente política e, sobretudo, por satisfazer interesses de governantes e de Estados12. O segundo estágio histórico, para Bassiouni, iniciou-se após a 1ª Guerra Mundial, com o julgamento do então imperador alemão Wilhelm von Hohenzollern, derrotado na guerra pela força aliada e responsabilizado pessoalmente por ter cometido crime contra a humanidade. Essa dimensão dos crimes internacionais foi reforçada com o término da 2ª Guerra Mundial nos vários julgamentos realizados por tribunais internacionais instalados ad doc. Além desses julgamentos, inúmeros outros se seguiram na segunda metade do Século XX e no início do Século XXI13. E o terceiro, consoante o pensamento de Bassiouni, com previsão de se principiar em 2012, será caracterizado pelo encerramento dos trabalhos de dois tribunais internacionais (International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia – ICTY e o International Criminal Tribunal for Rwanda – ICTR) pelo Conselho de Segurança da ONU, devido ao corte do financiamento previsto para aquele ano. A partir de 2012, todos os tribunais de perfil “mixed-model” serão fechados, em razão do elevado custo de sua manutenção. Os gastos com a justiça criminal internacional têm chegado à casa dos bilhões de dólares, enquanto que os encargos com o sistema de justiça criminal nos Estados nacionais não ultrapassam 5% (cinco por cento) do orçamento geral. Se for cotejar, nestes termos, os custos entre os sistemas, sairá em desvantagem a justiça criminal internacional14. Não obstante isso, a ideia da jurisdição universal mereceu destaque como um dos quatros temas debatidos no XVIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal, ocorrido em Istambul, na Turquia, em setembro de 2009. Duas linhas de entendimento doutrinário antagonizaram-se durante o evento. De um lado, uma corrente concebendo a jurisdição universal como instrumento necessário, único e eficiente no combate à impunidade de crimes, concretizado através da ampliação do âmbito geográfico de aplicação. De outro, em sentido diametralmente oposto, juristas alertavam que um abuso da jurisdição universal por questões políticas, conduzida pela ansiedade internacional, tornarla-ia impossível de ser aplicada, sem que houvesse qualquer referência aos autores ou sem um processo penal justo e eficiente desencadeado pelo Estado-repressor15. Sem embargo de ter a resolução resultante do congresso refletido as posições contrapostas, Anna Petrig critica – e isso é o mais interessante de tudo - o fato
Op. cit., pág. 301/302. Op. cit., pág. 304. 14 Op. cit., págs. 308/309. 15 PETRIG, Anna. Bericht über die Verhandlungen der IV. Sektion: Internationales Strafrecht: Weltrechtsprinzip. Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft. Band 122. Heft 3. Berlin: De Gruyter, 2010, pág. 59. 12 13
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de não terem os debates enfrentado questões de especial relevo, como o abuso da jurisdição universal para resolver questões políticas e a falta de vontade para julgar crimes graves16. Se, nos crimes internacionais, a solução inicial adotada para combatê-los repousou na instituição de órgãos jurisdicionais igualmente internacionais, o mesmo, ao que tudo indica, não se pode dizer quanto aos crimes transnacionais perpetrados no âmbito da União Europeia. A criação de uma espécie de Tribunal Penal Europeu parece não se constituir na melhor solução e nem mesmo no caminho que se almeja, até mesmo para evitar o fim para o qual tem trilhado os tribunais internacionais com as restrições orçamentárias. De fato, a União Europeia ainda não deu sinais de que, no futuro breve ou longíquo, irá instituir uma jurisdição universal europeia, com a criação de um Tribunal para processar e julgar crimes transnacionais cometidos na Europa ou que afetem bens, valores e princípios da União. Ulrich Sieber, ao refletir sobre o futuro do Direito penal europeu, aborda a existência de três modelos de Direito penal transnacional: modelo de cooperação (Kooperationsmodelle), modelo supranacional (Supranationale Modelle) e modelo misto ou híbrido (Mischformen). O modelo da cooperação é caracterizado por um sistema jurídico-penal nacional e um regime no qual as decisões judiciais de um sistema de Direito penal de um Estado produzem efeitos no sistema de outro Estado. Em formato diverso, o modelo supranacional possui um âmbito territorial mais amplo de aplicação, não alcançando apenas os territórios específicos dos Estados, mas o espaço europeu. Por isso mesmo, deixa de aplicar as legislações nacionais dos Estados em particular, para ensejar a produção uniforme do Direito penal por meio de um órgão jurisdicional supranacional recém-criado. E, por fim, o modelo híbrido, que tem se revelado como a tendência a ser adotada na União Europeia, na visão de SIEBER, emerge da coexistência entre as jurisdições central (supranacional) e local (nacional). Representa, em outras linhas, uma tentativa de compatibilizar os modelos cooperativo e supranacional17. Mas, a bem da verdade, as sociedades atuais, e a comunidade europeia não foge a essa regra, até mesmo por necessidade, caminham a passos largos para serem mais cooperativas, afastando-se do pensamento de criar um órgão jurisdicional criminal supranacional na esfera da União Europeia, até mesmo pelos custos financeiros altíssimos que essa medida iria implicar.
16 17
Op. cit., pág. 63. Die Zukunft des Europäischen Strafrechts: Ein neuer zu den Zielen und Modellen des europäischen Strafrechtssystems. Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft. Band 121. Heft 1. Berlin: De Gruyter, 2009, págs. 17, 22 e 23.
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4. Contornos da cooperação judiciária europeia O processo de integração da União Europeia, para ser concretizado como uma verdadeira área de liberdade, segurança e justiça, deve pressupor, necessariamente, a cooperação judiciária (e policial) europeia em matéria criminal, com o aprimoramento dos instrumentos que tornem mais céleres e efetivos os mecanismos de persecução criminal na luta contra a criminalidade transfronteiriça. Como lembra Jürgen Wolter, os principais objetivos da cooperação judicial europeia devem repousar, de forma intensificada, no reconhecimento mútuo de decisões judiciais e na eliminação de conflitos de competência entre os seus Estados-membros18. De acordo com o art. 82º. 1 do Tratado de Lisboa, a cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia encontra-se amparada no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros. Roxin, a propósito, chega a dizer que só se pode combater com êxito a criminalidade internacional de forma conjunta e que regulações distintas e em diferentes intensidades, como, por exemplo, no campo da fraude e da evasão fiscais, dificultam ou impossibilitam a luta dos Estados contra os crimes que extrapolam os seus limites territoriais19. Para consubstanciar a cooperação judiciária entre os Estados-Membros, além do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal, a Europa teve que instituir vários instrumentos e órgãos, dentre os quais, podem ser destacados, a figura dos magistrados de ligação, a Eurojust e o mandado de detenção europeu. Os magistrados de ligação, nos dizeres de João Davin, seriam aqueles juízes reconhecidos pelos demais Estados-Membros, com a missão de eliminar as arestas existentes no âmbito da cooperação judiciária, agilizando o cumprimento de pedidos de auxílio judiciário solicitados, através de contatos diretos com os serviços competentes e com as autoridades do Estado de acolhimento, além de promover intercâmbios de informações e de dados estatísticos destinados ao conhecimento mútuo dos sistemas jurídicos20.
Policía e Justicia Penal en la Unión Europea. In: Política Criminal en Europa. Coord. Víctor Gómez Martín. Barcelona: Atelier, 2004, pág. 145. 19 Op. cit., pág. 420/421. 20 A Criminalidade Organizada Transnacional: A Cooperação Judiciária e Policial na EU. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2007, pág. 142. 18
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Com papel semelhante, a Eurojust, por seu turno, é um órgão de cooperação judiciária da União Europeia responsável, em síntese, por coordenar ações de investigação e procedimentos criminais, promovendo várias medidas, como as que se encontram bem traçadas no art. 85º.1 do TFUE, tais como abrir investigações criminais e propor a instauração de ações penais conduzidas pelas autoridades nacionais competentes e reforçar a cooperação judiciária, mediante a resolução de conflitos de jurisdição. O mandado de detenção europeu corresponde a uma ordem exarada por um Estado-Membro com a finalidade de que outro Estado detenha e entregue uma pessoa procurada nos termos de um procedimento criminal. Davin, apoiado na paradigmática Decisão-quadro nº 1 do art. 1º, proferida pelo Conselho da Europa, assevera que o mandado de detenção europeu tem o objetivo de substituir o sistema da extradição por um outro de simples entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentença ou de procedimento penal entre autoridades judiciais21. A cooperação judiciária europeia, porém, apenas caminha no sentido de eliminar entraves meramente procedimentais ou formais, sem se preocupar, portanto, com aspectos de teor material extremamente essenciais ao sucesso da luta contra a criminalidade transnacional no âmbito europeu. Aliás, é natural que o início dessa aproximação cooperativa comece por mecanismos estritamente formais, especialmente com a quebra do paradigma da territorialidade. Tanto é verdade que o TFUE estabelece, alicerçado nas diferenças entre as tradições e os sistemas jurídicos dos Estados-Membros, regras procedimentais mínimas, porém abre margem, na esteira do disposto na alínea “d”, do nº 2, do art. 82º, para disciplinar regras mínimas incidentes sobre “outros elementos específicos do processo penal, identificados previamente pelo Conselho da União Europeia através de uma decisão”. Neste cenário, já é chegado o momento de intensificar a cooperação judiciária para compreender a forma de julgamento, de avaliação dos tipos penais e de dosimetria da pena. María Alcale Sánchez suscita essa problemática quando assevera que a maior desuniformização dos Direitos penais dos Estados-membros da União Europeia encontra-se em matéria de pena, a ponto, por exemplo, de haver situações paradoxas segundo as quais, mesmo sendo temporária, as penas na Espanha são mais perpétuas do que as penas perpétuas alemã (art. 57.a StGB) ou italiana (art. 22 del Codice Penale). Sánchez invoca, para resolver tais disparidades, uma ensinança de Terradillos Basoco através da qual defende 21
Op. cit., pág. 149.
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“una política criminal unida en la diversidad, que respetando identidades históricamente fraguadas, supere lãs antiguas divisiones”22. Porém, todos esses mecanismos não conseguem evitar o problemático fenômeno da multiplicidade de demandas criminais e, consequentemente, da divergência de critérios, parâmetros e juízos de valoração em relação aos mesmos delitos transnacionais debatidos nos casos. 5. Multiplicidade de ações criminais e concorrência de jurisdições O grande problema da diversidade cultural na apreciação de tipos penais é que o combate necessita de uma certa uniformização de procedimentos e de reprimendas, para que não haja migrações de práticas criminosos de um Estado-Membro para outro, em razão de interpretação mais benéfica dada em determinado julgado. A crescente incidência de crimes transnacionais no território da União Europeia põe à baila um problema altamente complexo, que é o da multiplicidade de ações ou persecuções criminais em relação a um mesmo fato delituoso, seja na sua extensão, seja por ser conexo a outras condutas tidas como criminosas. Em outras palavras, o fenômeno diz respeito à concorrência de jurisdições dos Estados-Membros que instauram processos penais quanto a um crime ou mais ou conexos a ele ou a eles, praticados em seus respectivos territórios. Essa questão, em se tratando de integração europeia, é de extrema relevância e definir o Estado jurisdicional competente, inegavelmente, traz inúmeras vantagens, inclusive de política criminal, pois, como bem assinala Maria Fletcher, a escolha do Estado-Membro que irá processar caso criminal determina o direito material e processual a ser aplicado. A definição de onde tramitar a ação criminal afeta os interesses de todas as partes envolvidas, como os advogados, as vítimas, as testemunha, os órgãos de acusação, a polícia e os juízes. E mais, aflora acirrada divergência de entendimentos quanto ao local competente para processar e julgar as ações criminais, o que acaba por comprometer as relação internacionais entre os Estados e minar o princípio fundamental do ne bis in idem23. Sem falar que, como complementa Fletcher, medidas comuns da União Europeia podem reduzir restrições e encargos que recaem sobre os indivíduos nas situações de múltiplas persecuções criminais, devido aos custos mais 22 23
Op., pág. 360. The Problem of Multiple Criminal Prosecutions: Building an Effective EU Response. In: Yearbook of European Law. Vol. 26. New York: Oxford University Press, 2007, pág. 34.
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elevados decorrentes de múltiplas representações legais por advogados, de medidas coercitivas contra a pessoa e a propriedade e de problemas psicológicos associados à demora dos procedimentos e à falta de uma conclusão definitiva. Assim, para ela, a adoção de instrumentos comuns voltados à escolha de um único órgão jurisdicional para processar criminalmente em tais hipóteses, ao lado de uma interpretação extensiva do princípio do ne bis in idem, certamente, reforçaria a defesa dos direitos fundamentais do acusado ou do investigado em harmonia com a área de justiça da União Europeia. E de quebra, mesmo que fossem dois ou mais os escolhidos, ainda tornar mais eficiente e rápidas as investigações nacionais e subseqüentes demandas criminais24. De acordo com as diretrizes da Eurojust, em princípio, a acusação deve ser processada na jurisdição onde a maior parte do crime ocorreu ou onde se concretizaram os maiores danos e prejuízos. Para tanto, leva em consideração vários critérios, dentre os quais: a localização do acusado, a possibilidade de extradição ou de se entregar, a centralização de muitos suspeitos em uma única jurisdição e a assistência e proteção a testemunhas e vítimas. Inclusive, como assinalado por Valsamis Mitsilegas, nem sempre a imediata centralização dos procedimentos em um único Estado-membro pode ser reputada como a melhor solução em casos complexos, sendo, no mais das vezes, mais apropriado que investigações e acusações se desenrolem em duas ou mais jurisdições25. É evidente que sempre se almeja um sistema processual mais rápido e efetivo no combate à criminalidade transfronteiriça em um contexto que tem se caracterizado por intensa concorrência entre jurisdições nacionais examinando o mesmo fato delituoso que apresente desdobramentos em vários EstadosMembros. Todavia, a estratégia utilizada pela União Europeia de mobilizar a criação de um órgão de cooperação judicial (Eurojust), para coordenar ações cooperativas e de mútuo auxílio entre os Estados-Membros, só dizem respeito a mecanismos de conteúdo unicamente procedimental, sem maiores preocupações quanto ao juízo valorativo de crimes e sanções penais. 6. Do reconhecimento mútuo de decisões judiciais ao julgamento conjunto de ações criminais múltiplas na União Europeia Dentre os instrumentos mais impactantes para a cooperação judiciária europeia, sem dúvida alguma, é forçoso ressaltar que o papel exercido pelo 24 25
Op. cit., pág. 39/40. The Transformation of Criminal Law in the “Area of Freedom, Security and Justice”. In: Yearbook of European Law. Vol. 26. New York: Oxford University Press, 2007, págs. 28/29.
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reconhecimento mútuo das decisões judiciais ganhou maior realce e notoriedade na luta contra a criminalidade transnacional. Como acentua Valsamis Mitsilegas, o reconhecimento mútuo das decisões judiciais, nos últimos anos, constituiu no motor da integração europeia em matéria criminal e foi proposta pelos próprios Estados-membros, sendo uma alternativa à harmonização do direito criminal, sobretudo na concretização do terceiro pilar estruturante da União Europeia. Mitsilegas assinala que a principal vantagem do reconhecimento mútuo das decisões judiciais é a sua automaticidade, já que o juiz de um Estado-membro é obrigado a executar a decisão de um juiz de outro Estado-membro, com base apenas em uma rápida análise formal, com um mínimo de formalidade e com motivos limitados para recusa26. Profetiza Ulrich Sieber que o modelo de cooperação europeia do futuro ostentará um regime jurídico cooperativo de reconhecimento transnacional mútuo de decisões judiciais (com normatizações europeias para reconhecimento mútuo e efeitos direitos das decisões, cooperação policial e disponibilidade de informações da persecução criminal), competência e concorrência entre vários subsistemas jurídico-penais, incluindo as regras do processo penal e a harmonização necessária do direito penal27. É inegável os significativos avanços que a cooperação judiciária europeia tem alcançado no território da União, sobretudo com a introdução de instrumentos como o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal e o mandado de detenção europeu. Mas, ainda assim, há uma problemática ainda a merecer acurados estudos: a divergência judicial de valorações jurídico-penais. Tal problemática não passou despercebida por Otfried Höffe, ao destacar que a maneira de infligir uma pena ou impor as consequências do direito penal é algo muito diferente segundo as sociedades e as épocas. Porém, o próprio Höffe pondera que, mesmo assim, o direito penal ostenta uma dimensão sócio-cultural universal e grande parte do que se considera como delito está presente em todas as culturas28. Como se não bastasse, além das diferenças e da relutância dos Estadosmembros de adotarem modelos comuns, ainda resta o problema da falta de mútua confiança entre os sistemas legais na União Europeia, que, inclusive, repercute
Op. cit., págs. 14 e 15. Op. cit., pág. 66. 28 Op. cit., pág. 97. 26 27
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no desenvolvimento do reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria criminal, consoante denuncia Valsamis Mitsilegas29. Claus Roxin ressalta que, a despeito de os vários Estados regularem de forma diversa os tipos penais, a circunstância de ter que se apoiar em uma dogmática da teoria geral do Direito penal acaba por igualar os problemas e fazer com que os argumentos em favor ou contra a uma dada solução passem a possuir uma validez internacional, com a possibilidade de se chegar a um consenso internacional de regras iguais ou semelhantes30. Ora, se as polícias de vários Estados-Membros atuam de maneira conjugada sob a coordenação da Europol, por que também não se pensar o mesmo em relação à atividade jurisdicional? Por que não avaliar a possibilidade de uma atuação conjugada dos juízes que teriam competência criminal para processar e julgar delitos em seus respectivos Estados-membros, em virtude do princípio da territorialidade? Se, de um lado, não se pode negar ou modificar a realidade europeia de múltiplas e diversas culturas jurídico-penais, e longe se afigura a possibilidade de criação de um órgão jurisdicional supranacional (Tribunal europeu criminal), até mesmo por questões financeiras em face da enorme estrutura que deveria já hoje possuir, e, por outro lado, impõe-se uma necessidade indiscutível de se obter uma certa uniformização de critérios e parâmetros de valoração de tipos penais, remanesce, portanto, cogitar a criação de um instrumento de cooperação judiciária que permita a apreciação conjunta ou conjugada por um colegiado formado de juízes competentes para processar e julgar o caso em seus respectivos Estados-Membros. Neste caso, o julgamento conjunto seria realizado unicamente pelos juízes competentes criminalmente – talvez até mesmo por meio dos denominados magistrados de ligação europeus - dos respectivos Estados-Membros em que estivessem sido instauradas as múltiplas persecuções criminais, segundo o princípio da territorialidade, para processar e julgar os crimes transnacionais. A Eurojust poderia coordenar e patrocinar esse julgamento conjunto, fornecendo infraestrutura a tanto necessária, porquanto, como sinaliza Jürgen Wolter, esse órgão de cooperação judiciária europeia deve converter-se, além de órgão de informação e de auxílio, em centros de coordenação na persecução penal da criminalidade transnacional grave desencadeada em processos penais em curso em seus respectivos Estados-membros31.
Op. cit., pág. 21. Op. cit., págs. 403/404. 31 Op. cit., págs. 159/160. 29 30
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Para Sabino Cassese, a soberania dos Estados se diluiu e hoje o poder público busca se reorganizar através de novas formas e estruturas plurais e policêntricas, uma vez que os ordenamentos jurídicos nacionais não conseguem resolver os seus problemas com as suas respectivas legislações internas, ainda mais porque sobre os sistemas nacionais sobrepairam numerosos ordenamentos em distintos níveis. Daí porque afirma que, na falta de um ordenamento jurídico superior que imponha a ordem, cada um dos sistemas deve encontrar dentro de si mesmos os instrumentos de cooperação com o resto32. E, evidentemente, os tribunais não fogem a esse cenário. Sabino Cassese anota que, como estão presentes além de seus limites territoriais e cada vez mais cruzando as fronteiras, os tribunais vêm assumindo uma destacada função na definição das relações que se mantém entre os diversos ordenamentos jurídicos, a ponto de se falar com frequência em “diálogo judicial” ou “conversa judicial”, de “coordenação interjudicial” e de uma “comunidade de juízes”33. Daí a relevância de se permitir o julgamento conjunto dos vários juízes que compõem os Poderes Judiciários dos Estados-Membros em cujos crimes transnacionais tivessem sido praticados em seus respectivos territórios. Recursos tecnológicos e da informática, como audiências e julgamentos por videoconferência, poderiam eliminar os entraves e óbices advindos da distância. Uma maior aproximação dos juízes dos vários Estados-Membros, redundando em intensa interação e troca de impressões a respeito dos crimes transfronteiriços praticados no caso, seria, indubitavelmente, benéfico para a agilização, efetividade e, sobretudo, para a justiça criminal no caso concreto. À semelhança do que já vem ocorrendo há muito com os doutrinadores de academias universitárias e de institutos de pesquisa, os juízes precisam de constante e intenso contato, diálogo e recíproca interação, no intuito de buscar, nas diferentes culturas típicas do solo europeu, uma harmonização de critérios, parâmetros e juízos de valor acerca de crimes transnacionais. Muito provavelmente, a adoção do mecanismo do julgamento conjunto, mediante um colegiado de juízes nacionais dos Estados-Membros envolvidos territorialmente, pode se constituir no caminho mais prodigioso e alvissareiro no combate à criminalidade transfronteiriça. 7. Considerações finais Diante de tudo que fora visto neste trabalho, pode-se inferir que a adoção do mecanismo do julgamento conjunto por um colegiado de vários juízes que
32 33
Los Tribunales ante la Construcción de un Sistema Jurídico Global. Sevilla: Global Law Press, 2010, pág. 15. Op. cit., págs.. 16/17.
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integram o Poder Judiciário dos Estados-Membros é medida harmonizadora adequada às disparidades e divergências de concepções e juízos de valor próprias de cada cultura que compõe a União Europeia. A liberdade de circulação de pessoas, de produtos, mercadorias, serviços, capitais e, por que não dizer, de valores e culturas, tem acarretado, cada vez mais, de igual sorte, o aumento da incidência de crimes com reflexos em vários países que integram a União Europeia. Não se pode negar ou modificar a realidade europeia de múltiplas e diversas culturas jurídico-penais, e longe se afigura a possibilidade de criação de um órgão jurisdicional supranacional (Tribunal europeu criminal), até mesmo por questões financeiras em face da enorme estrutura que deveria já hoje possuir, e, por outro lado, impõe-se uma necessidade indiscutível de se obter uma certa uniformização de critérios e parâmetros de valoração de tipos penais. O grande problema da diversidade cultural na apreciação de tipos penais é que o combate necessita de uma certa uniformização de procedimentos e de reprimendas, para que não haja migrações de práticas criminosos de um Estado-Membro para outro, em razão de interpretação mais benéfica dada em determinado julgado. Por esse motivo, é de recomendar, sob a coordenação da Eurojust, o julgamento conjunto realizado unicamente pelos juízes competentes criminalmente – talvez até mesmo por meio dos denominados magistrados de ligação europeus - dos respectivos Estados-Membros em que estivessem sido instauradas as múltiplas persecuções criminais, para processar e julgar os crimes transnacionais. Com a utilização do mecanismo de julgamento conjunto de juízes de vários Estados-Membros, é certo que a cooperação judiciária europeia está muito mais estruturada para enfrentar os desafios impostos pela crescente e engenhosa criminalidade transnacional no espaço da União Europeia.
8. Referências - BASSIOUNI, M. Cherif. Perspectives on International Criminal Justice. Virginia Journal of International Law. Vol. 50. Number 2. Winter 2010. Virginia: University of Virginia. Págs. 270/323. - CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. - CASSESE, Sabino. Los Tribunales ante la Construcción de un Sistema Jurídico Global.
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Sevilla: Global Law Press, 2010. - DAVIN, João. A Criminalidade Organizada Transnacional: A Cooperação Judiciária e Policial na EU. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2007. - FLETCHER, Maria. The Problem of Multiple Criminal Prosecutions: Building an Effective EU Response. In: Yearbook of European Law. Vol. 26. New York: Oxford University Press, 2007. Págs. 33/56. - HÖFFE, Otfried. Derecho Intercultural. Barcelona: Gedisa, 2000. - MITSILEGAS, Valsamis. The Transformation of Criminal Law in the “Area of Freedom, Security and Justice”. Yearbook of European Law. Vol. 26. New York: Oxford University Press, 2007. Págs. 1/32. - PETRIG, Anna. Bericht über die Verhandlungen der IV. Sektion: Internationales Strafrecht: Weltrechtsprinzip. Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft. Band 122. Heft 3. Berlin: De Gruyter, 2010. Págs. 59/64. - ROXIN, Claus. La Ciencia del Derecho Penal ante las Tareas del Futuro. In: La Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio. Coord. Francisco Muñoz Conde. Valência: Tirant to Blanch, 2004, Págs. 389/421. - SÁNCHEZ, María Alcale. Derecho Penal e Tratado de Lisboa. Revista de Derecho Comunitário Europeu. Vol. 30. Año 12. Mayo/Agosto. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. Págs. 349/380. - SIEBER, Ulrich. Die Zukunft des Europäischen Strafrechts: Ein neuer zu den Zielen und Modellen des europäischen Strafrechtssystems. Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft. Band 121. Heft 1. Berlin: De Gruyter, 2009. Págs. 1/67. - SILVEIRA, Alessandra. Tratado de Lisboa. 2ª Edição. Lisboa: Quid Juris, 2010. - WOLTER, Jürgen. Policía e Justicia Penal en la Unión Europea. In: Política Criminal en Europa. Coord. Víctor Gómez Martín. Barcelona: Atelier, 2004. Págs. 141/166.
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Legitimidade e
Despolarização da demanda Antonio do Passo Cabral
Professor de Direito Processual Civil da UERJ. Doutorando em Direito Processual pela UERJ e pela Ludwig-Maximilians Universität (Munique, Alemanha). Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador da República. Ex-Juiz Federal. E-mail: antoniocabral@prrj.mpf.gov.br tel: (21) 2107-9300, 2107-9376
Resumo: O presente artigo tem como objetivo estudar a aplicabilidade da migração entre os pólos da demanda, já prevista nas ações populares, para o processo civil em geral. Para tanto, foram analisados os requisitos da legitimidade e do interesse de agir, e verificados diversos problemas práticos que a teoria tradicional a respeito das condições da ação traz para o processo. Para tratar do tema, propomos uma análise mais fluida, pelos conceitos de legitimatio ad actum e zonas de interesse. Palavras-Chave: Migração de pólos. Ação Popular. Legitimidade ad actum. Zona de interesse. Despolarização da demanda. Abstract: The following article has the objective of studying the migration permitted to the defendant in the brazilian citzen action, which allows him to proceed as a plaintiff, for the civil procedure in general. For these purposes, the standing to sue under brazilian Law comes into the core of the problem, for many practical issues arise when the traditional theory is brought up. To be able to treat this theme correctly, we make a proposition of a more fluid analysis of standing to sue in Brazil through the concept of “zones of interest”. Key-Words: Brazilian civil procedure. Citizen Action. Standing to sue. Zones of interest. “Despolarização do processo e ‘zonas de interesse’: sobre a migração entre pólos da demanda”
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Sumário: 1. O problema: é possível migrar de um pólo para outro da demanda? O art.6º §3º da lei da ação popular. 2. A legitimidade ontem e hoje: da legitimidade ad causam à legitimidade ad actum. 3. Despolarização da demanda. 4. Interesse de agir ontem e hoje: do interesse-necessidade às zonas de interesse. 4.1. Interesse: necessidade, adequação ou utilidade? 4.2. De adversários a co-jogadores: soluções cooperativas, requerimentos conjuntos, interesses simultaneamente contrapostos e comuns, sujeitos imparciais. 4.2.1. Interesses dinamicamente cambiantes: soluções cooperativas e requerimentos conjuntos. 4.2.2. Interesses simultaneamente contrapostos e comuns no mesmo pólo. 4.2.2.1. Hipóteses de litisconsórcio e intervenção de terceiros. Litisconsórcio necessário no pólo ativo. 4.2.2.2. Ações coletivas e as dissidências internas. 4.2.2.3. Procedimentos concursais. 4.2.3. O “interesse jurídico” dos intervenientes e os sujeitos “desinteressados”. A atuação imparcial com base no interesse público. 4.3. Os problemas teóricos da doutrina tradicional sobre o interesse de agir. 4.4. Zonas de interesse. 5. Sugestões para o desenvolvimento do tema. 5.1. Pressupostos para a migração entre pólos e a atuação despolarizada. Migrações sucessivas e migrações pendulares. Revogabilidade de atos processuais e admissibilidade. 5.2. Encargos de sucumbência. Remessa necessária. Impossibilidade de migração. 6. Breve conclusão. 1. O problema: é possível migrar de um pólo para outro da demanda? O art.6º §3º da lei da ação popular. O tema que nos ocupa neste pequeno trabalho é o da possibilidade de atuação dos sujeitos processuais independentemente do pólo da demanda em que originariamente posicionados, ou seja, verificar se é dado aos atores do processo migrar de um pólo para outro ou atuar, em conjunto ou solitariamente, em posições jurídicas típicas do outro pólo. No ordenamento positivo brasileiro, as únicas hipóteses previstas para este tipo de migração interpolar são aquelas do art.6°§3° da lei da ação popular (4.717/65), estendido pelo art.17 §3°da lei 8.429/92 às ações de improbidade administrativa.1 Com efeito, a lei da ação popular inicialmente prevê uma hipótese de litisconsórcio necessário no pólo passivo, determinando que devem ser citados, na condição de réus, o agente público que praticou o ato, o ente público ao qual
1
NEIVA, José Antonio Lisbôa. Improbidade Administrativa. Estudo sobre a demanda na ação de conhecimento e cautelar. Niterói: Impetus, 2ª Ed., 2006, p.58-60; RODRIGUES, Geisa de Assis. “Da ação popular”, in FARIAS, Cristiano Chaves de e DIDIER JR., Fredie (Coords.). Procedimentos especiais cíveis: legislação estravagante. São Paulo: Saraiva, 2003, p.262.
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vinculado este agente, e ainda os beneficiários do ato que se aponta ilegal ou lesivo. Em seguida, prevê a possibilidade do ente público, em concordando com o autor popular, migrar para o pólo ativo e passar a atuar em conjunto com o demandante. A aplicabilidade de um tal instituto ao processo civil em geral teria indiscutíveis repercussões práticas, já que algumas faculdades processuais somente são autorizadas àqueles sujeitos que figuram em determinadas posições, como a exceção de incompetência,2 os embargos de terceiro, a reconvenção, dentre muitos outros. Além disso, a interpretação e aplicação de outros muitos institutos seria diversa se confirmada a hipótese ora estudada: desde a fixação do interesse em recorrer, passando pela alteração da verba de sucumbência, até a incidência ou não da remessa necessária. O tema é relevante também para a atuação processual do amicus curiae e das agências reguladoras, que possuem faculdades imparciais no interesse público da fiscalização e regulação; bem como para a atuação processual de litisconsortes quando, no âmbito daquela pluralidade de sujeitos, haja interesses contrapostos ou divergências estratégicas. Inexistem estudos de fôlego, de que tenhamos notícia, sobre a questão proposta. Encontramos apenas referências esparsas aqui e ali, sempre no bojo de estudos circunscritos à análise de outros temas, como a ação popular, a improbidade administrativa, e o amicus curiae.3 Em doutrina, até onde nos consta, foi Rodrigo Mazzei aquele que procurou tratar de maneira extensiva deste instituto específico da migração entre pólos da demanda, tendendo para uma aplicação ampliativa dos dispositivos da ação popular e da improbidade administrativa para outras ações coletivas.4 Não obstante, ao indagarmos sobre as premissas básicas da possibilidade da migração entre pólos da demanda, tanto a experiência da atuação habitual da administração pública como um exame rápido de jurisprudência fazem aflorar posições mais restritivas.
Assim, p.ex., a doutrina afirma que só o réu pode excepcionar a incompetência relativa, sendo que tal faculdade não existe para o MP, porque reside na esfera de disponibilidade das partes, não sendo matéria de ordem pública; e também não pode ser manejada pelo autor, porque para este a faculdade precluiu na indicação do órgão jurisdicional realizada na petição inicial. Entende-se que o assistente da parte poderia excepcionar. Cf.NERY JR. Nelson. “Legitimidade para argüir a incompetência relativa”, in Revista de Processo, ano 13, n.52, out-dez, 1988, p.216-218. 3 DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Podivm, vol.4, 2a Ed., 2007, p.247 e ss; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. São Paulo: RT, 5ª Ed., 2003; GOMES JR., Luiz Manoel. “Ação Popular – alteração do pólo jurídico da relação processual – considerações”, in Revista Dialética de Direito Processual, vol.10, janeiro, 2004, p.120 e ss; BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva., 2ª Ed., 2008, p.260 e ss; NEIVA, José Antônio Lisboa. “Questões processuais envolvendo propriedade industrial”, in Revista Jurídica Consulex, ano VI, n.128, maio, 2002, p.22 e ss. 4 Ainda que não o tenha feito para o processo civil em geral, restringindo sua proposta às ações coletivas. Cf.MAZZEI, Rodrigo. “A ‘intervenção móvel’ da pessoa jurídica de direito público na ação popular e ação de improbidade administrativa (art.6°, §3º da LAP e art.17§3º da LIA)”, in Revista Forense, ano 104, vol.400, 2
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Sem embargo, na praxe forense, vemos que o Estado (especialmente através de seus diversos entes fiscalizatórios, como as agências reguladoras), quando posicionado no pólo passivo, recusa-se a atuar em conjunto com o autor ou mesmo reconhecer o acerto de seus argumentos. Tais órgãos sentem-se “obrigados” a defender o ato impugnado pelo tão só fato de figurarem como réus. De outro lado, parte da jurisprudência afirma, em hipóteses diversas, que um determinado sujeito, quando figura em tal tipo de ação, “somente pode ser réu” ou “sempre atua como assistente litisconsorcial do autor”, e por aí em diante. Podem ser aventadas diversas razões para justificar a conclusão por estes entendimentos restritivos: a) uma concepção estática da relação jurídica processual; b) a legitimidade ad causam e o interesse de agir necessaariamente relacionados com o direito material, petrificados e “fotografados” no momento da propositura da demanda; c) o conceito de interesse-necessidade, fulcrado na lide e numa lesão praticada pelo réu; d) a estabilização subjetiva da demanda; e) o litisconsórcio necessário ligado à relação material; f) o conceito de citação como um chamado a “defender-se”; dentre outros. Imaginemos, por hipótese, que estes argumentos estejam corretos: se a atuação despolarizada não se aplica ao processo em geral, qual então a justificativa para que o ordenamento permita a migração entre os pólos na ação popular e na improbidade administrativa? Geralmente se aponta a migração como uma medida salutar às mudanças políticas, facultando, na sucessão de governos, que o poder público tivesse a liberdade de atuar em qualquer pólo, não ficando obrigado a defender um ato praticado na administração anterior quando concordante com o autor.5 Ora, então devemos aceitar que se trata de um instituto processual “partidário”? Assim não pensamos. Enfrentaremos a questão buscando salientar alguns pontos principais, especialmente no que tange: I) ao dinamismo da relação processual, que nos permite tratar a legitimidade e o interesse em aspectos cambiáveis no tempo e sem uma rigidez absoluta; II) reconhecer que esse dinamismo nos faz identificar situações processuais em que determinados sujeitos, p.ex., tenham, simultaneamente, interesses comuns e contrapostos, ainda que figurem no mesmo pólo da demanda, o que demonstra que somente cabe, no processo
nov-dez, 2008, p.228 e ss; Idem, “Ação popular e o microssistema da tutela coletiva”, in DIDIER JR, Fredie e MOUTA, José Henrique (Coord.). Tutela Jurisdicional Coletiva. Salvador: Jus Podivm, 2008, p.385-388. 5 Cf.GRINOVER, Ada Pellegrini. “Ação civil pública e ação popular: aproximações e diferenças”, in SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e interesse público. São Paulo: RT, 2003, p.140; NEIVA, José Antonio Lisbôa. Improbidade Administrativa. Op.cit., p.58-60.
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moderno, uma compreensão dinâmica do interesse e da legitimidade; para tanto, trabalharemos o tema da legitimidade ad actum e o conceito, que ora propomos, de “zonas de interesse”. Em seguida, formularemos algumas sugestões para o início do estudo do tema, rascunhando parâmetros que possam guiar a aplicação das idéias anteriormente desenvolvidas. 2. A legitimidade ontem e hoje: da legitimidade ad causam à legitimidade ad actum. A razão moderna para que continuemos a trabalhar com “condições da ação” vem sendo relacionada a questões éticas e de economia processual, para evitar a instauração de processos sem qualquer probabilidade de êxito e para inibir ações temerárias que pudessem molestar outros indivíduos sem qualquer limite. Com a abstração do direito de ação e a consagração da teoria da asserção, o preenchimento das condições da ação passou a ser aferido pelas alegações do próprio litigante. Neste contexto, os abstratistas buscaram o desenvolvimento das condições da ação como um limite mais objetivo, um filtro para o exercício dos direitos processuais que fosse baseado no direito material e verificado à luz do ordenamento, e não das alegações do sujeito.6 Partia-se da idéia de que a norma jurídica é atributiva, conferindo a determinado sujeito uma posição de vantagem e o autorizando a agir, em seu próprio nome, para atingir os efeitos que o ordenamento lhe assegura.7 Assim, o poder de praticar um ato seria decorrente da norma material, e nela deveriam ser buscadas as condições que limitam a prática do ato e o poder jurídico que o justifica. E a legitimidade é a condição da ação que reflete o filtro subjetivo para a atuação judicial. Com efeito, existe um modelo subjetivo abstrato que o ordenamento estabelece como padrão para cada tipo de processo e que deve ser observado para a instalação do contraditório. Esse esquema é definido pelas chamadas situações legitimantes, que correspondem algumas ao autor, outras ao réu, outras aos intervenientes.8 O exame de legitimidade é, portanto, uma comparação entre a situação de fato de cada sujeito do processo e a situação legitimante a ele correspondente. Se coincidirem, dir-se-á legitimado o sujeito.
MANDRIOLI, Crisanto. Corso di Diritto Processuale Civile. Torino: G.Giappichelli, 30ª Ed., 2000, p.53-54; GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. São Paulo: Dialética, 2003, p.21-28. 7 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. “Titularidade do direito, legitimação para agir e representação processual”, Op.cit., p.93-94. 8 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária”, in Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara, ano III, n.9, set-dez, 1969, p.41-42; FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Padova: CEDAM, 8ª Ed., 1996, p.299; MONACIANI, Luigi. Azione e legittimazione. Milano: Giuffré, 1951, especialmente p.310 e ss; DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. São Paulo: Malheiros, 7ª Ed., 2002, p.23, nota 22, e p.31. 6
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De regra, as situações legitimantes são identificadas com a própria relação jurídica material que se submete ao Judiciário como objeto do processo. Este é o formato da legitimidade ordinária, aferida a partir de um juízo comparativo entre o padrão subjetivo do direito material e a situação de fato descrita no processo por cada sujeito.9 A ultrapassada apreensão civilista do fenômeno processual identificava as partes com os titulares da relação jurídica de direito material alegada e discutida no processo. Naquele modelo privatista, o autor era o credor e o devedor era réu.10 Perquirir a quem caberia agir em relação a um determinado direito era buscar saber quem era o titular do próprio direito,11 sobretudo no parâmetro de então, no qual o direito de ação refletia um aspecto ou elemento do próprio direito material: a ação era o direito material reagindo a lesões, “armado para a guerra”. Com a constatação de que a relação jurídica processual era diversa daquela oriunda do direito material, bem como a teorização sobre as sentenças de improcedência e as ações declaratórias negativas, tal concepção foi abandonada. Hoje, por influência da concepção abstrata da ação, sabemos que não necessariamente coincidem a legitimidade ativa e passiva com as figuras do credor e do devedor.12 Claro que o titular do direito, ou ao menos quem exerce a pretensão, é aquele que tem as melhores condições para reclamá-lo,13 mas é igualmente certo que nem sempre aquele que busca o Judiciário para a proteção de um suposto direito tem razão. Outra prova inegável da superação deste paradigma, já em tempos mais recentes, foram as ações coletivas para a proteção de interesses transindividuais. Em sua disciplina, consagra o legislador a legitimidade extraordinária (através do mecanismo
ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p.5-12; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária”, in Revista dos Tribunais, ano 58, v. 404, junho de 1969, p.9-10; TARUFFO, Michele. “Some remarks on group litigation in comparative perspective” in Duke Journal of Comparative and International Law, n.11, 2001, p.415; TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. São Paulo: RT, 2a Ed., 2000, p.130-131. 10 WATANABE, Kazuo. “Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir”, in Revista de Processo, ano IX, n.34, abril-junho, 1984, p.197. 11 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. “Titularidade do direito, legitimação para agir e representação processual”, in Revista dos Tribunais, ano 89, vol.771, janeiro, 2000, p.93. 12 Tradicionalmente, na execução, as figuras do credor e devedor, que seriam os legitimados, deveriam coincidir com aqueles referidos no título, o que atualmente vê-se não ocorrer em todos os casos. Cf.MEIRELES, Edilton. “Função do título executivo e a legitimidade na execução”, in Revista Ltr, vol.64, n.5, maio, 2000, passim; FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.332-333. 13 É o “adequado portador” da pretensão. Cf.ZANETI JR. Hermes. “A legitimação conglobante nas ações coletivas: a substituição processual decorrente do ordenamento jurídico”, in ASSIS, Araken de et alii (Coords.). Direito Civil e Processo. Estudos em homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008, p.863. 9
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da substituição processual) de associações civis, órgãos públicos e do Ministério Público.14 Através da substituição processual, o ordenamento autoriza que certos sujeitos, mesmo não posicionados em situações com eficácia legitimante, possam postular em favor de direitos dos quais sequer afirmam ser titulares.15 Nesses processos, não há coincidência, nem mesmo em tese, entre direito material e situação legitimante. Por esses e muitos outros exemplos, o direito moderno apresenta situações que não conseguem ser transpostas ao modelo tradicional da legitimidade, um modelo tipicamente privatista do autor-credor contra o réu-devedor, com base num direito subjetivo e em interesses materiais privados contrapostos.16 A partir dessas constatações, tiveram os estudiosos que buscar outros critérios para aferir a “pertinência subjetiva” do exercício das faculdades processuais. Nesta tarefa, vêm seguindo caminhos diversos. Alguns autores têm tentado desvincular as condições da ação do direito material, analisando a legitimidade e o interesse, p.ex., como requisitos pura ou preponderantemente processuais,17 geralmente a partir da visão geral do processo como participação de sujeitos em contraditório.18 Semelhante opção acadêmica tem sido seguida pela doutrina alemã, tratando o interesse dentro dos pressupostos processuais e a legitimidade extraordinária como um direito autônomo de condução do processo.19
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. “Legitimidade processual e legitimidade política”, in SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e interesse público. São Paulo: RT, 2003, p.104-106. 15 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária”, Op.cit., p.42-43. 16 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. “Titularidade do direito, legitimação para agir e representação processual”, Op.cit., p.91. 17 GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. “Existem legitimações puramente processuais?”, in Revista Dialética de Direito Processual, n.65, agosto, 2008, p.113; FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.316; DIDIER JR., Fredie. “Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto”, in Revista Forense, ano 96, vol.351, jul-set, 2000, p.74-75. 18 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.306-307. 19 Os alemães simplesmente desconsideram, no exame do que conhecemos como legitimidade extraordinária, o cotejo com a situação legitimante, bastando o direito ou capacidade autônomos de condução do processo (Prozessführungsrecht), que a lei pode atribuir a quem não tem ligação com o direito material. Cf. LEIPOLD, Dieter. “Die Verbandsklage zum Schutz allgemeiner und breitgestreuter Interessen in der Bundesrepublik Deutschland”, in GILLES, Peter (Hrsg). Effektivität des Rechtsschutzes und verfassungsmäßige Ordnung. Berlin: Carl Heymanns, 1983, p.66, que afirma que a postulação em nome da coletividade não se coaduna com conceitos clássicos, sendo mais próxima da legitimação do autor popular: “Der Verband nimmt Interessen der Allgemeinheit wahr, wenn er – außerprozessual oder prozessual – gegen den Verwender oder Empfehler vorgeht. Da jeder Bürger auch Verbraucher ist, leuchtet es übrigens auch nicht ein, von einem ‘Gruppeninteresse’ zu sprechen. Die Wahrnehmung von Interessen der Allgemeinheit ist nicht gut mit der Figur der Prozeßstandschaft zu erfassen; denn dann müßte es sich um ein fremdes, einem anderen zustehendes materielles Recht handeln. Eher ließe sich von einer selbständigen Prozeßführungsberechtigung oder einer (personell) ‘eingeschränkten Popularklage’ sprechen (...)”; GREGER, Reinhard. “Verbandsklage und Prozeßrechtsdogmatik – Neue Entwicklungen in einer schwierigen Beziehung”, in Zeitschrift für 14
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Abrir mão totalmente das situações extraprocessuais, em especial dos interesses materiais existentes fora do processo, não nos parece a solução mais adequada.20 É que o processo não se constrói em torno de si mesmo, nem seus institutos são vazios de significado substancial, mas antes deve haver uma relação de funcionalidade intrínseca entre processo e norma material. No que tange à legitimidade, nossa proposta é manter o filtro subjetivo, porém reduzindo o espectro de análise para a prática de cada ato processual isoladamente. Como pertine ao exercício de um poder jurídico, o ordenamento remete a legitimidade à específica situação concreta onde tal poder será exercido.21 Se a legitimidade é um atributo transitivo, 22 verificado em relação a um determinado estado de fato, pensamos que, a partir do conceito de situação legitimante, enquadrado no pano de fundo da relação processual dinâmica, é possível reduzir a análise da legitimidade a certos momentos processuais específicos, vale dizer, não mais um juízo de pertinência subjetiva da demanda (a legitimatio ad causam), mas referente ao ato processual específico (a legitimatio ad actum).23 Em razão do dinamismo da relação processual,24 é só na sua verificação casuística que a legitimidade encontra sua completa e mais pura finalidade. Se a função desse limite subjetivo ao exercício de funções processuais é analisar a correspondência entre o modelo legal e a situação de fato, a legitimidade só pode ser precisa em cada caso concreto e para cada ato processual. Como afirma Fazzalari, a par das discussões sobre a abstração ou concretude da ação, devemos reputar que a situação material pretérita deve ser abstraída quando da análise dos atos processuais, e estes não pressupõem necessariamente a relação material.25 A situação substancial é relevante como
Zivilprozeß, 113.Band, Heft 4, 2000, p.400, nota n.5, e p.402, onde diz que o BGH, tribunal alemão similar ao STJ brasileiro, prefere falar numa dupla natureza da substituição processual (Doppelnatur), ao mesmo tempo ligada à pretensão (ao direito material) e ao Prozeßführungsbefugnis. Na doutrina brasileira, Cf.ZANETI JR. Hermes. “A legitimação conglobante nas ações coletivas: a substituição processual decorrente do ordenamento jurídico”, Op.cit., p.860-862; ARMELIN, Donaldo. “Ação Civil Pública: legitimidade processual e legitimidade política”, in SALLES, Carlos Alberto de (Org). Processo Civil e Interesse Público. São Paulo: RT, 2003, p.120. 20 Ao menos no modelo abstrato de ação, que é dominante na doutrina brasileira. 21 Cf.MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p.202-203. 22 PINTO, Nelso Luiz. “A legitimidade ativa e passiva nas ações de usucapião”, in Revista de Processo, ano 16, n.64, out-dez, 1991, p.24; GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. “Existem legitimações puramente processuais?”, Op.cit., p.110. 23 DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.127. 24 CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.171 e ss. 25 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.275.
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pressuposto de alguns atos processuais, mas não todos, e a ela se juntam outros requisitos processuais definidores de situações legitimantes não necessariamente vinculadas a um direito subjetivo ou a uma relação jurídica material. Na verdade, a colocação dos atos em seqüência faz com que, com exclusão do primeiro ato da série, cada ato processual dependa, para ser praticado, de requisitos e pressupostos que somente poderão ser corretamente compreendidos a partir da análise da cadeia formativa dos atos anteriores e da múltipla e difusa implicação entre eles.26 Além disso, as situações legitimantes são todas cambiantes ao longo do processo, e o controle da legitimidade não pode se dar senão na dinâmica do contraditório.27 3. Despolarização da demanda. Não obstante, inúmeros ordenamentos e muitos autores sempre estiveram apegados a uma polarização da demanda, vinculando estaticamente a atuação dos sujeitos do processo à correlata posição que aquele sujeito ocupa na relação jurídica material. Na doutrina de origem germânica, consagrou-se um princípio ou sistema de dualidade de partes (Zweiparteienprinzip), pois, se ninguém pode litigar consigo mesmo, o processo só seria possível no âmbito de uma plurissubjetividade direcionada àqueles indivíduos que conflitam em torno de uma relação jurídica material.28 Ainda que a pluralidade de sujeitos seja nota característica do processo, parece-nos ser necessária uma análise mais dinâmica da relação processual, desprendida desta rigidez bipolar.29 A situação legitimante, nessa ordem de idéias, poderia ser analisada sob o prisma das funções e das específicas posições processuais em que praticados atos no processo (ônus, direito, poder, faculdade, etc.), ou do complexo de alternativas que estejam abertas para o sujeito numa determinada fase processual.30 Tradicionalmente, o complexo desses poderes era descrito como “ação”, o que dificulta a correta compreensão de um fenômeno dinâmico como a relação processual.
Idem,, p.271, 276 e 422. Idem, p.277 e 308. 28 BLOMEYER, Arwed. Zivilprozessrecht. Erkenntnisverfahren. Berlin: Duncker & Humblot, 2ª Ed., 1985, p.65; HABSCHEID, Walther J. Schweizerisches Zivilprozess- und Gerichtsorganisationsrecht. Basel und Frankfurt am Main: Helbing und Lichtenhahn, 2a Ed., 1990, p.7. 29 GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.52. 30 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.422-423; DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.127. 26 27
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É que o poder de ação é o mesmo poder de praticar um ato jurídico processual,31 apenas considerados a partir de momentos distintos e atos diversos. Portanto, existem “ações” de vários sujeitos, intrincadas e descontinuamente exercidas, umas reagindo às posições dos demais, sem contar aquelas “ações” que são exercidas em formato reduzido, como ocorre com os intervenientes ulteriores, muitos dos quais detentores de menos poderes que as partes.32 Nesse contexto, falar em legitimidade ativa e passiva é retomar institutos pandectísticos ou ainda recordar a superada visão da ação como direito potestativo do autor contra o réu.33 Se a legitimidade está ligada à prática de atos processuais e aos poderes que os sujeitos possuem para praticá-los, só pode ser considerada “ativa”,34 e nos parece de todo incorreto polarizar o conceito. Note-se que é variável a força legitimante de uma situação subjetiva para habilitar o sujeito a assumir posição ativa ou passiva. Por vezes uma mesma situação pode ser considerada legitimante para ajuizar uma ação mas não para figurar como réu. É a hipótese mais comum na legitimidade extraordinária.35 Ademais, por vezes a norma não permite ao sujeito deflagrar o processo, iniciando-o, mas lhe faculta prosseguir ou suceder o sujeito que formulou a demanda inicial, ou ainda intervir ulteriormente no curso do mesmo procedimento. Sobre o tema, veja-se a súmula 365 do STF, que afirma que pessoa jurídica não pode propor ação popular, baseada na idéia de que se trata de direito inerente à cidadania. Mas a lei admite que a pessoa jurídica de direito público, inicialmente citada como ré, possa mudar de pólo e atuar como autora.36 O mesmo ocorre com o Ministério Público, que não é legitimado para ajuizar a ação popular, mas pode prosseguir na sua condução caso haja desistência da ação pelo autor.37
Já fazia observação semelhante BÜLOW, Oskar von. “Die neue Prozessrechtswissenschaft und das System des Civilprozessrechts”, in Zeitschrift für deutschen Cvilprozeß, XXVII, 1900, p.242. Na literatura moderna, FAZZALARI, Elio. “La dottrina processualistica italiana: dall’’azione’ al ‘processo’ (1864-1994)”, in Rivista di Diritto Processuale, n.4, 1994, p.912 ss, e, no Brasil, a sempre esclarecedora pena de DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.127-128. 32 GRECO, Leonardo. “Ações na execução reformada”, in SANTOS, Ernani Fidelis dos, et alii (Coords.). Execução civil: estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Jr. São Paulo: RT, 2007, p.85085; FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.425-426. 33 É a opinião também de FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.428-429. 34 Com razão, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, vol.I, 2ª ed., 1999, p.105. 35 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária”, Op.cit., p.50-51. 36 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. “Titularidade do direito, legitimação para agir e representação processual”, Op.cit., p.92. 37 RODRIGUES, Geisa de Assis. “Da ação popular”, Op.cit., p.256-257. 31
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Impende, então, haver uma evolução da relação processual para além da polarização autor-réu, credor-devedor, Caio-Tício, ativo-passivo, analisando-se o filtro das condições da ação para cada ato processual por praticar. Deixando a dogmática um pouco de lado, é forçoso reconhecer que a polarização tem algumas vantagens do ponto de vista prático. Em primeiro lugar, ressalta o formato dialético do processo, cujo caráter argumentativo pressiona à contraposição de teses e alegações. Ademais, facilita a aplicação e o controle do correto e isonômico exercício do contraditório, permitindo verificar mais facilmente a contagem de prazos, dar vistas a todos sucessivamente, etc. A par destas vantagens, que são, friso, eminentemente práticas e não teóricas, penso que uma pequena mudança cultural e da praxe judiciária resolveria, sem maiores problemas, qualquer empecilho que a despolarização da demanda trouxesse ao cotidiano forense. Resta ainda a discussão sobre a estabilidade da demanda, que poderia ser rompida ou excepcionada, a depender do momento da migração.38 Além disso, discute-se se haveria liberdade para o sujeito “escolher” de que lado ou em que pólo atuará. Vejamos estas objeções. A estabilização da demanda, objetiva ou subjetiva, tem a finalidade de assegurar o adequado exercício do contraditório e da ampla defesa, evitando surpresas às partes e possibilitando um planejamento estratégico de cada um.39 Porém, pensamos que, respeitadas as avaliações já feitas e as expectativas criadas aos sujeitos do processo, pode haver uma flexibilização dessa estabilidade para viabilizar a migração de pólo. O juiz procederá à análise da conveniência e admissibilidade da alteração subjetiva da demanda, valorando os potenciais prejuízos às partes e ao andamento do processo. Neste sentido foi a evolução legal alemã no que tange ao juízo de admissibilidade de alteração da demanda pelo autor, mesmo depois da citação do réu. Primeiramente, a ZPO vinculava ao consentimento do réu a possibilidade de alteração, à semelhança do atual sistema brasileiro (arts.42, 264, 294 do CPC); posterior alteração legal deu ao juiz o poder de autorizar a mudança, mesmo sem o consentimento do demandado, mas desde que não houvesse prejuízo à sua defesa; hoje há ainda mais poderes de direção ao juiz para realizar um verdadeiro juízo de “conveniência”, vedando a mutatio libelli se o magistrado verificar, com base na economia processual, que pode resultar em morosidade do processo, por exemplo.40 Como defendem DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Op.cit., p.248. TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. Op.cit., p.191 e ss. 40 Sobre o tema, veja-se, em língua italiana, o preciso relato de COMOGLIO, Luigi Paolo. “Premesse ad uno studio sul principio di economia processuale”, Op.cit., p.614 e 616-617. 38
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Mais adiante veremos como a combinação da despolarização da demanda com uma abordagem modernizada do interesse processual pode auxiliar na análise de admissibilidade, conveniência e oportunidade da migração. 4. Interesse de agir ontem e hoje: do interesse-necessidade às zonas de interesse. Numa demanda despolarizada, e num processo em que seja possível a migração entre pólos, como fica o interesse de agir? Cabe aqui fazermos alguma referência ao interesse de agir na acepção clássica, as dificuldades de enquadrar esta perspectiva tradicional no processo da atualidade, e finalmente verificar se o interesse de agir é um obstáculo à migração interpolar. Antes de iniciar o tópico, cabe destacar que é patentemente diferente o conceito de interesse material (a relação entre uma necessidade humana e os bens aptos a satisfazê-las41, que reside nas normas do direito substantivo e cuja proteção ou reparação é a finalidade da demanda), e outro conceito, o interesse processual ou interesse de agir, que é mais ligado ao provimento que se pede ao juiz para a satisfação dos interesses materiais. O interesse processual ou interesse de agir, neste sentido, é freqüentemente descrito como um “interesse de segundo grau”, um “interesse instrumentalizado” em função do interesse primário de proteção da situação jurídica de direito material.42 4.1. Interesse: necessidade, adequação ou utilidade? Embora lembre o adágio romano de minimis non curat praetor, a origem do interesse de agir é francesa, onde a figura surgiu historicamente nos brocardos “pas d’intérêt pas d’action” e “l’intérêt est la mesure des actions”,43 uma máxima que pretendia impedir que questões ociosas ou que poderiam ser resolvidas no corpo social fossem trazidas ao Judiciário, degradando a função judicial ao papel de um mero consultor das partes privadas.44
É célebre a abordagem de CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di diritto processuale civile. Padova: CEDAM, ristampa, volume I, 1930, p.3 ss. 42 Em sentido semelhante, LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad..Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.154-155; MANDRIOLI, Crisanto. Corso di Diritto Processuale Civile. Op.cit., p.51; FABIANI, Ernesto. “Interesse ad agire, mero accertamento e limiti oggettivi del giudicato”, in Rivista di Diritto Processuale, 1998, p.548. 43 MOREL, René. Traité Élémentaire de Procédure Civile. Paris: Sirey, 10ª Ed., 1949, p.31; GARSONNET, E., e CÉZAR-BRU, Ch. Précis de Procédure Civile. Paris: Sirey, 9ª Ed., 1923, p.92-93; BERRIAT SAINTPRIX, M. Cours de Procédure Civile e Criminelle. Bruxelles: Stapleau, 5ª Ed., tomo I, 1823, p.172 e ss; LANFRANCHI, Lucio. “Note sull’interesse ad agire”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano XXVI, n.3, 1972, p.1119; MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Origini, metamorfosi e nuovi ruoli. Trento: Alcione, 2005, p.22; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, tomo I, 2ª Ed., 1979, p.169-170. 44 SATTA, Salvatore. “A proposito dell’accertamento preventivo”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano XIV, 1960, p.1400-1401; DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.283; MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.25. 41
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No âmbito da doutrina processual do último meio século, o debate sobre o interesse de agir girou entre duas concepções e orientações diversas. Aquela do interesse de agir como “estado de lesão” do direito alegado, que produziu o conceito de interesse-necessidade (Rechtsschutzbedürfnis, “bisogno di tutela”); e aquela que entende o interesse como utilidade do processo para o autor, seja como meio, seja como resultado (interesse-adequação e interesse-utilidade).45 A concepção do interesse-necessidade nasceu de uma visão do processo como ultima ou extrema ratio para o autor:46 a demanda só deveria ser admissível se o autor não tivesse outros meios próprios para satisfazer seu direito material sem a intervenção estatal pelo processo.47 Exigia-se uma efetiva lesão ao direito do autor para que a causa fosse levada ao juiz. Vê-se, portanto, que o interesse era classicamente ligado ao inadimplemento ou incumprimento.48 Aos poucos o conceito foi evoluindo e hoje prevalece a noção, de influência tedesca,49 do interesse de agir como um filtro de eficiência através do qual o legislador deseja evitar o dispêndio de atividade jurisdicional inútil.50 Trata-se de uma perspectiva utilitária do interesse de agir, fulcrada nos binômios “interesseutilidade” e “interesse-adequação”, que residem na relação entre o provimento requerido e a situação de fato alegada.51 No Brasil, coube a Dinamarco a popularização da idéia de interesseadequação,52 largamente abraçada pela doutrina53 e que corresponderia à análise
MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.5. GRUNSKY, Wolfgang. Grundlagen des Verfahrensrechts. Bielefeld: Gieseking, 2ª Ed., 1974, p.390; FABIANI, Ernesto. “Interesse ad agire, mero accertamento e limiti oggettivi del giudicato”, Op.cit., p.553-554, especialmente interessante no que tange à jurisprudência da Cassazione italiana. 47 WACH, Adolf. “Der Rechtsschutzanspruch”, in Zeitschrift für deutschen Cvilprozeß, XXXII, 1904, p.30; GRASSO, Eduardo. “Note per un rinnovato discorso sull’interesse ad agire”, in Studi in onore di Gioacchino Scaduto. Padova: CEDAM, Diritto Pubblico, IV, 1970, p.335-336; BLOMEYER, Arwed. Zivilprozessrecht. Erkenntnisverfahren. Op.cit., p.201; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Op.cit., p.169. 48 Inicialmente, ligava-se a um dano, geralmente pecuniário. Posterioremente, até o séc.XX, a ênfase foi sendo dada à necessidade jurídica da tutela. Cf.GARSONNET, E., e CÉZAR-BRU, Ch. Précis de Procédure Civile. Op.cit., p.92; JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. München: C.H.Beck Verlag, 28ª Ed., 2003, p.144; MANDRIOLI, Crisanto. Corso di Diritto Processuale Civile. Op.cit., p.52; LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Op.cit., p.155. 49 É também a visão prevalente na doutrina italiana, na interpretação do art.100 do Codice. Cf.MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.115. 50 POHLE, Rudolf. “Zur Lehre vom Rechtsschutzbedürfnis”, in Festschrift für Friedrich Lent zum 75. Geburtstag. Müenchen: CH Beck, 1957, p.197 ss; JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.143. 51 ATTARDI, Aldo. “Interesse ad agire”, in Digesto delle discipline privatistiche. Sezione Civile, IX, Torino, 1993, p.517-518; RICCI, Edoardo F. “Sull’accertamento della nullità e della simulazione dei contratti come situazioni preliminari”, in Rivista di Diritto Processuale, 1994, p.661. 52 Cf.DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, vol.II, 3ª Ed., 2003, p.305. 53 Cf.ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. Op.cit., p.59; FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação. Enfoque sobre o interesse de agir. São Paulo: RT, 3ª Ed., 2005, p.154-155. 45
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da pertinência da utilização daquele meio procedimental se comparado com outros mais econômicos ou eficazes. Neste sentido, é comum a utilização do interesse-adequação na hipótese do autor formular pedido declaratório se já houve inadimplemento ou quando se requer condenação se já existente título executivo.54 Vê-se que existe um grande divisor de águas entre as concepções do interesse como necessidade ou como utilidade. Trata-se de interpretações diversas, consideradas por muitos até mesmo “desomogêneas”55: uma perspectiva focada na inevitabilidade do processo, um extremo remédio acessível apenas quando o sujeito não tenha um meio extrajudicial para a satisfação do direito;56 e a opinião que põe relevo nos efeitos que o processo poderia produzir para o requerente.57 O interesse-necessidade retratava uma visão individualista, inspirado sobre o ideal liberal que ressalta a relação de direito material deduzida em juízo, ao afirmar-se uma lesão a direito de titularidade do sujeito, num contexto conflituoso próprio da “lide” em sentido carneluttiano.58 Nesta perspectiva, o processo era visto como unicamente direcionado à proteção do direito material dos litigantes, e a ação só poderia ser abstrata, desvinculada dos direitos afirmados no processo, os direitos subjetivos pré-existentes à sentença.59 Posteriormente, passou-se a teorizar o interesse a partir da visão do juízo, como um meio de gestão processual para economizar tempo e energia dos serviços judiciários.60 O interesse-utilidade passou a regrar a atividade estatal, evitando povoar as prateleiras dos juízos com processos “sem sentido” e que poderiam ser solucionados, se não espontaneamente, pelo menos com menor empenho de energia e custos financeiros.61
Ainda que não com a denominação de “interesse-adequação”, Cf.ATTARDI, Aldo. L’interesse ad agire. Padova: CEDAM, 1958, p.24-25; SCHÖNKE, Adolf. Lehrbuch des Zivilprozessrechts. Karlsruhe: C.F. Müller, 7ª Ed., 1951, p.167; MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 10ª Ed., 2005, p.446; NIKISCH, Arthur. Zivilprozeßrecht. Tübingen: Mohr, 1950, p.142. 55 MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.9. 56 MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Comentários ao Código de Processo Civil. Op.cit., p.446; DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.284. 57 Moniz de Aragão diz que qualquer das concepções do interesse são defensáveis à luz do CPC brasileiro, sobretudo pela redação do art.4º. Não obstante, alinha-se pela teoria que adota a concepção utilitária do interesse Cf.MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Comentários ao Código de Processo Civil. Op.cit., p.446-448. 58 CARNELUTTI, Francesco. Istituizioni del nuovo processo civile italiano. Roma: Foro Italiano, 2ª Ed., 1941, p.8. 59 LANFRANCHI, Lucio. “Note sull’interesse ad agire”, Op.cit., p.1127. 60 SCHÖNKE, Adolf. Lehrbuch des Zivilprozessrechts. Op.cit., p.167. 61 MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, in Rivista di Diritto Processuale, 1995, p.207; MOREL, René. Traité Élémentaire de Procédure Civile. Op.cit., p.31; TESHEINER, José Maria Rosa. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: RT, 2001, p.25; GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.39-40. 54
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Esse caminho foi trilhado como um consectário do princípio de economia processual, reputando inadmissíveis requerimentos inúteis ou antieconômicos.62 O requerente não poderia pretender uma providência que, mesmo se acolhida, o colocasse na mesma posição processual em que se encontrava ante litem. Nem se poderia acionar o Judiciário para a apreciação de uma questão se houver um meio judicial ou extrajudicial mais barato, simples ou rápido para resolver a questão.63 No mesmo diapasão, o desenvolvimento do conceito de interesseadequação permitiria uma verificação pelo juízo da efetividade do mecanismo manejado, sempre que existisse uma pluralidade de meios à disposição do sujeito.64 4.2. De adversários a co-jogadores: soluções cooperativas, requerimentos conjuntos, interesses simultaneamente contrapostos e comuns, sujeitos imparciais. Antes de apontarmos os desacertos teóricos que a clássica compreensão do interesse apresenta para o direito processual, queremos destacar algumas situações práticas em que não conseguimos aplicar, com total precisão, o conceito de interesse de agir. Trata-se de situações processuais em que a atuação do sujeito é permitida sem que estejamos presos à lide, à lesão ou à utilidade do processo necessariamente ligada ao direito material do litigante. 4.2.1. Interesses dinamicamente cambiantes: soluções cooperativas e requerimentos conjuntos. Com o desenvolvimento de postulados de cooperação e boa-fé, genericamente aplicáveis aos sujeitos do processo, 65 repercutiu a idéia colaborativa do contraditório que norteia a moderna compreensão do princípio,
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COMOGLIO, Luigi Paolo. “Premesse ad uno studio sul principio di economia processuale”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Anno XXXII, n.2, junho, 1978, p.608 e ss; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Op.cit., p.168-169. LÜKE, Wolfgang. Zivilprozessrecht. München: C.H.Beck, 9ª Ed., 2006, p.154-155; BAUMBACH, Adolf. Elementarbuch des Zivilprozesses. München: C.H.Beck, 2ª Ed., 1941, p.26; JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.144; BLOMEYER, Arwed. Zivilprozessrecht. Erkenntnisverfahren. Op.cit., p.201; GRUNSKY, Wolfgang. Grundlagen des Verfahrensrechts. Op.cit., p.394. Deve-se ter cuidado, não obstante, em não ferir a estratégia processual do litigante: em muitos casos, sobretudo no processo civil, onde estamos freqüentemente diante de interesses disponíveis, o sujeito pode escolher livremente sua linha defensiva sem que o Estado-juiz possa nela se intrometer. Assim, há um espaço de liberdade na escolha, p.ex., entre ação monitória e ação de cobrança, sem que se possa autoritariamente tolher a alternativa do sujeito requerente. Cf.MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.126. BAUMGÄRTEL, Gottfried. “Treu und Glauben im Zivilprozeß”, in Zeitschrift für Zivilprozeß, 86.Band, Heft 3, 1973; LENT, Friedrich. “Zur Unterscheidung von Lasten und Pflichten der Parteien im Zivilprozeß”, in Zeitschrift für Zivilprozeß, 67.Band, Heft 5, 1954, p.344-345; LÜKE, Gerhard. “Betrachtungen zum Prozeßrechtsverhältnis”, in Zeitschrift für Zivilprozeß, 108 Band, Heft 4, 1995, p.443; MÜLLER, Thomas
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impondo a co-participação dos sujeitos processuais.66 Assim, hoje o processo não é mais teorizado em torno do conflito ou da lide, mas a partir da agregação, da boa-fé, da conjugação entre interesses privados e interesses públicos.67 Paralelamente, começaram a ser fomentadas, no Brasil e no estrangeiro, a adoção de soluções processuais cooperativas, como a arbitragem, as convenções sobre a prova, acordos sobre as suspensões do processo e de prazos, etc. Nesse sentido, a jurisprudência francesa desenvolveu o contrat de procédure, um acordo entre os sujeitos processuais em que todos deliberam sobre as regras que disciplinarão aquele processo específico, fixando prazos para alegações e julgamento, dispensa de recursos, meios de prova que serão utilizados, etc.68 Trata-se de instituto através do qual os sujeitos do processo, a despeito dos interesses materiais que os movem, atuam em conjunto para específicas finalidades processuais que a todos aproveitem. Na mesma senda, os ordenamentos francês e belga, já de algum tempo, e o regime processual experimental português, recentemente implementado, admitem, p.ex., a formulação de requerimentos conjuntos pelas partes.69 Hipótese similar ocorre com a recente disposição do art.114 §2º da Constituição da República de 1988, na redação da emenda constitucional 45/2004, no que se refere a requerimento conjunto de instalação de dissídios coletivos de natureza econômica na Justiça do Trabalho. Ora, em todas estas hipóteses, estamos diante de casos em que, ainda que possuam interesses materiais contrapostos, para aqueles fins específicos e naquele momento processual, a atuação conjunta pareceu a alternativa estratégica mais adequada para os sujeitos do processo. É visível que uma apreensão estática do interesse-necessidade não é possível aqui.
M. Gesetzliche und prozessuale Parteipflichten. Zürich: Schultess, 2001, p.35 e ss; CABRAL, Antonio do Passo. “O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva”, in Revista de Processo, Ano 30, vol.126, agosto de 2005; DIDIER JR. Fredie, “O princípio da cooperação: uma apresentação”, in Revista de Processo, ano 30, n.127, set.2005; MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009. 66 CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno, Op.cit., p.215 e ss; NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008, p.212 e ss, onde fala em “comparticipação”. 67 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.55-58. 68 Cf.FERRAND, Frédérique. “The respective role of the judge and the parties in the preparation of the case in France”,in TROCKER, Nicolò e VARANO, Vicenzo (Ed.). The reforms of civil procedure in comparative perspective. Torino: G.Giappichelli, 2005, p.21; CADIET, Loïc. “Conventions relatives au procès en droit français”, in Revista de Processo, ano 33, n.160, junho, 2008, p.74; CAPONI, Remo. “Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LXII, n.3, supplemento, 2008, p.99 ss. 69 Cf. SILVA, Paula Costa e. “A ordem do juízo de D.João III e o regime processual experimental”, in Revista de Processo, n.156, fevereiro, 2008, p.246; CADIET, Loïc. “Conventions relatives au procès en droit français”, Op.cit., p.72.
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Devemos lembrar, com Brüggemann, que há casos no processo, como estes, em que não se observa uma efetiva contraposição de interesses, mas apenas uma “rivalidade formal”, casos em que os sujeitos do processo não são oponentes (Gegenspieler), mas co-jogadores (Mitspieler).70 4.2.2. Interesses simultaneamente contrapostos e comuns no mesmo pólo. O segundo grupo de situações que pensamos ser interessante para demonstrar a insuficiência do conceito de interesse de agir no processo moderno, é aquele que põe em evidência a existência simultânea, em um mesmo pólo da demanda, de interesses materiais comuns e contrapostos entre certos sujeitos. Vale dizer, mesmo quando componham o pólo ativo ou passivo (por conta da polarização inicial), diversos sujeitos podem ter simultâneas pretensões e áreas de interesses materiais comuns, bem como outras esferas de discordância, o que, como se verá, justificará, para a prática de um determinado ato, a migração de pólo ou atuação processual despolarizada como se no pólo oposto figurassem. Isso ocorre em várias hipóteses: em litisconsórcio e intervenção de terceiros; quando há atuação de sujeitos formais que representam uma comunidade de indivíduos, como cooperativas, condomínios,71 sociedades empresariais por ações; nas ações coletivas e nas ações de grupo; ou ainda nos procedimentos concursais, como a falência, a insolvência civil, etc. Vejamos, sem pretensão exaustiva, alguns destes aspectos. 4.2.2.1. Hipóteses de litisconsórcio e intervenção de terceiros. Litisconsórcio necessário no pólo ativo. Muitas hipóteses de intervenção de terceiros posicionam os sujeitos em situações processuais inusitadas em que, simultaneamente, possuem interesses contrapostos e comuns. Pense-se na oposição, cujo direcionamento “bifronte”72 forma uma segunda demanda, in simultaneus processus, do opoente contra autor e réu (os opostos), os quais têm interesses comuns na oposição mas na demanda principal são adversários.73
BRÜGGEMANN, Dieter. “Unausgebildete Gegnerschaftsverhältnisse”, in Zeitschrift für Zivilprozeß, 81.Band, 1969, p.458-459, 466 e 471-473. 71 Com efeito, nas relações condominiais é freqüente a existência de pretensões comuns e dissidências entre condomínio (a comunidade) e algum condômino ou terceiro. Sobre o tema, Cf.BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Condomínio de edifício de apartamentos: capacidade para ser parte e legitimação para agir. Caução”, in Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p.185. 72 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Intervenção de terceiros. São Paulo: Malheiros, 4ª Ed., 2006, p.55. 73 Idem, p.91. 70
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Veja-se a denunciação da lide, que tem uma dupla finalidade ao integrar o terceiro ao processo: com ela, o denunciante exerce um direito de regresso contra o terceiro, instaurando um segundo litígio; mas, ao mesmo tempo, o denunciante traz o terceiro ao processo para colaborar, contra um adversário comum, para a defesa de seu direito na ação principal.74 Denunciante e denunciado terão, ao mesmo tempo, áreas de interesse comuns, nas quais estarão processualmente aliados (inclusive em termos argumentativos) e outras esferas conflituosas. Pense-se ainda a hipótese de denunciação da lide simultânea, por autor e réu, a um mesmo sujeito na condição de litisdenunciado. Por exemplo, numa demanda acerca de um acidente automobilístico, a denunciação feita por ambas as partes a uma mesma seguradora. Este sujeito (no caso, a seguradora), estará posicionado na estranha situação de ser confrontado por dois interesses materiais incompatíveis; e tem, ao menos em tese, interesse jurídico para atuar como assistente de ambas as partes na ação principal. Mas essas situações não ocorrem apenas nas intervenções de terceiros. Vários casos de litisconsórcio denotam a simultânea existência de interesses comuns e contrapostos dentro do grupo, frisando-se que tais situações são mutáveis no tempo ao longo de todo o processo. Cândido Dinamarco foi pioneiro, no direito nacional, em identificar casos de grande litigiosidade interna entre os próprios litisconsortes.75 Ocorrem, p.ex., nas consignações em pagamento, quando há dúvida sobre quem é o credor e os vários supostos credores, citados como réus, vêm, ao mesmo tempo, contestar o valor do crédito e a qualidade de credor que os demais réus ostentam. No mesmo pólo, interesses comuns e contrapostos. Mas a situação é alterável: aparecendo mais de um suposto credor, e se nenhum deles impugnar o quantum mas apenas a condição de credor, declara-se extinta a obrigação e o processo segue entre os supostos credores, agora adversários únicos.76 Outro caso curioso é do litisconsórcio ativo necessário. Imaginemos uma ação de rescisão de contrato entre três pessoas, com a iniciativa de apenas um dos contratantes, que posiciona os outros dois como litisconsortes, ainda que um deles, por hipótese, concordasse com o autor mas não desejasse litigar. Pense-se ainda no caso de herdeiros de um imóvel terem que ajuizar ação possessória ou a hipótese de atuação processual de um cônjuge sem a presença do outro.77
CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. São Paulo: Saraiva, 17ª Ed., 2008, p.102. DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.34 e 397-398. 76 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial do mérito. Instrumentos de brevidade da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2008, p.406-407. 77 PINTO, Nelso Luiz. “A legitimidade ativa e passiva nas ações de usucapião”, Op.cit., p.26. Em verdade, como notou Greco, são múltiplas as posições processuais do cônjuge, sem que o ordenamento regule claramente 74 75
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Como o exercício da ação é uma posição de vantagem (descrita como um direito ou um poder), geralmente entende a doutrina ser impossível a imposição de um litisconsórcio necessário no pólo ativo: a ação só pode ser movida por quem espontaneamente deseja exercê-la. Porém, como solucionar a divergência caso um dos litisconsortes necessários, cuja ausência pode nulificar o processo, recuse-se a propor a demanda junto aos demais? Tem-se aventado a solução de citar o litisconsorte relutante no pólo passivo.78 Neste caso, o litisconsorte figura no pólo passivo apenas formalmente, pois seus interesses materiais estão alinhados com o pólo oposto. Observe-se que não há nem mesmo pedido formulado contra o litisconsorte renitente, mas apenas sua integração na relação processual para que a participação (forçada) evite a invalidação ou ineficácia da sentença. Parece-nos que, em muitos destes casos, a faculdade de migrar para o pólo oposto deve ser aberta. Leonardo Greco expressamente admite a possibilidade de mudança de pólo para o litisconsorte ativo necessário. No exemplo da rescisão contratual, afirma que “um deles, citado, pode aderir ao pedido do autor e atuar de fato como seu litisconsorte contra o terceiro contratante causador da rescisão, não sendo justo submetê-lo aos direitos, deveres e ônus de réu (sucumbência, interesse em recorrer, por exemplo). O fato de não ter subscrito a inicial juntamente com o autor não pode forçá-lo a receber o tratamento de réu, se não deu causa à rescisão e não podia sozinho satisfazer a pretensão rescindente do autor”.79 Estes casos evidenciam a incorreção do conceito legal de citação (art.213 do CPC). O réu, aqui, não é citado para defender-se, mas para participar, pouco importando a posição processual em que o fará. 80 4.2.2.2. Ações coletivas e as dissidências internas. Rodolfo de Camargo Mancuso já salientou a peculiaridade dos direitos coletivos de serem foco de grande litigiosidade interna, em razão da pluralidade de indivíduos a que tocam e pelas diferenças no impacto que a violação aos direitos de cada qual pode gerar.81
e com precisão cada uma delas. Cf.GRECO, Leonardo. Processo de Execução. Rio de Janeiro: Renovar, vol.I, 1999, p.339-340; DONOSO, Dênis. “Alienação de bens do cônjuge alheio à execução: análise crítica ao novo art.655-B do CPC, sua (in)constitucionalidade e instrumentos de defesa”, in Revista Dialética de Direito Processual, n.68, novembro, 2008, p.30-31. 78 DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.222 e ss, com críticas ao uso da adcitatio para estes fins. 79 GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.52. 80 Sobre este tema, especialmente na citação na ação popular, Cf.RODRIGUES, Geisa de Assis. “Da ação popular”, Op.cit., p.286. 81 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT, 6ª Ed., 2004, p.100.
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Nas ações coletivas, as dissidências internas, diante do mecanismo de substituição processual, tornam-se um problema ainda mais sensível. Isso porque a diferença de formato da legitimidade ordinária para a extraordinária distancia enormemente a estratégia processual da vontade da coletividade substituída. A análise da legitimidade extraordinária é aferida na lei, sem uma necessária ligação do litigante com o direito material ou afinidade de seus interesses próprios com aqueles da parte substituída.82 Nosso modelo é frontalmente oposto ao modelo do common law, em que a legitimidade é verificada pelo juiz no caso concreto.83 Lá, um dos requisitos apreciados pelo julgador ao verificar a adequacy of representation é a proximidade entre o autor e a coletividade substituída. Na fase inicial do processo, denominada de certification, se as alegações e atos do autor não refletirem os interesses de toda a classe, o juízo, verificando o dissenso, pode dividir a coletividade em subclasses, que atuarão com independência para vindicar seus específicos interesses.84 No Brasil, e em qualquer sistema onde a legitimidade extraordinária é dada pela lei, sem requisitos rígidos de afinidade de interesses dentro da classe e desta com o condutor do processo, sempre haverá possibilidade de dissenso e conflitos internos na coletividade. Trata-se de uma situação tão normal que muitos procedimentos coletivos modernos vêm tentando solucionar o problema das divergências internas, como ocorre nas chamadas “ações de grupo” de formato não representativo.85 Nestes procedimentos, existe a nomeação de líderes do grupo, que conduzirão o processo como uma espécie de porta-voz da classe. Não obstante, ao mesmo tempo, o procedimento admite que os indivíduos que
Não desconsideramos que uma certa proximidade deva existir entre o substituto processual e a coletividade. Os requisitos do ordenamento nacional em certa medida levam este dado em consideração, como no caso das associações. Não obstante, outras considerações, em função da eficiência da tutela, da hipossuficiência dos substituídos e da relevância dos direitos a serem protegidos fazem com que a legitimidade extraordinária, que no Brasil é dada pela lei, seja freqüentemente atribuída a órgãos sem uma necessária relação de proximidade com a coletividade substituída, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Claro que, de lege ferenda, somos favoráveis a um exame casuístico e judicial da legitimidade, nos moldes do modelo norte-americano das class actions, mas não enxergamos espaço para restrições de legitimação à luz de nosso direito positivo. 83 Sobre o papel do juiz no sistema norte-americano, Cf.GRINOVER, Ada Pellegrini. “Ações coletivas iberoamericanas: novas questões sobre legitimação e coisa julgada”, in Revista Forense, ano 98, vol.361, maio-junho, 2002. 84 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: RT, 2002, p.82. 85 Como a Group Litigation inglesa e o Musterverfahren alemão. Sobre o tema, confira-se o nosso “O novo Procedimento-Modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas”, in Revista de Processo, vol.147, maio de 2007. Na literatura posterior, GOTTWALD, Peter. “About the extension of collective legal protection in Germany”, in Revista de Processo, v.32, n.154, dezembro, 2007, p.89-93. 82
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compõem a classe acrescentem argumentos à atuação do líder, franqueando uma participação que é tanto mais necessária quanto maior a existência de conflito interno.86 4.2.2.3. Procedimentos concursais. Certamente é nos procedimentos concursais que vemos a maior quantidade de interesses que simultaneamente podem se mostrar contrapostos e comuns. É que, de um lado, o grupo tem o objetivo comum de obter a satisfação de seus interesses pelo adversário. Porém, ao mesmo tempo, como a consecução de seus interesses se dá pela comunhão de uma massa única de bens, à qual só podem acessar na ordem dos créditos e de acordo com as preferências legais, existem evidentes interesses contrapostos.87 Assim, ao impugnar o crédito de outro co-credor, o que pretende o impugnante é diminuir o valor que o outro tem a receber, assegurando ativos maiores para suportar o pagamento a si mesmo. É uma situação, já denominada de “plúrima impugnação”,88 que ocorre comumente nos procedimentos de falência e insolvência civil.89 Todas essas situações mostram que merece haver nova reflexão sobre o interesse de agir nestes procedimentos. Isso sem contar a curiosa hipótese de “auto-falência” e “auto-insolvência”, que são procedimentos contenciosos em que o próprio devedor requer e deflagra o procedimento concursal para satisfação de créditos alheios (art.753 do CPC e arts.97 e 105 da Lei 11.101/05), onde o formato clássico da necessidade-utilidade é insuficiente.90 4.2.3. O “interesse jurídico” dos intervenientes e os sujeitos “desinteressados”. A atuação imparcial com base no interesse público. Tradicionalmente, como visto, a atuação dos sujeitos do processo sempre foi vinculada ao direito material. Assim, historicamente houve uma ligação necessária entre o exercício de posições processuais e o comprometimento do sujeito com a vitória de um dos interesses materiais em disputa.
CABRAL, Antonio do Passo. “O novo Procedimento-Modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas”, Op.cit., p.135 e ss. 87 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: RT, 11ª Ed., 2007, p.829. 88 FUX, Luiz. O novo processo de execução: o cumprimento de sentença e a execução extra-judicial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.461. 89 GRECO, Leonardo. Processo de Execução. Op.cit., p.574-575; REIS, José Alberto dos. Processo de Execução. Coimbra: Coimbra Ed., 1985, reimpressão. 90 GRECO, Leonardo. Processo de Execução. Op.cit., p.562. 86
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Nesse sentido, foi consagrada a compreensão do requisito do interesse de agir para a intervenção de um terceiro no processo. O interveniente deveria demonstrar seu interesse jurídico na demanda, ou seja, deve comprovar a repercussão que a discussão do processo poderá ter sobre uma relação jurídica titularizada por ele. Assim, o interesse jurídico sempre foi concebido como um “interesse fundado em uma relação jurídica” de direito material (Rechtsbeziehung begründetes Interesse).91 Não caberia um mero interesse econômico ou altruístico, tampouco a intenção de esclarecer matéria de fato ou de direito.92 Modernamente, contudo, a atuação de muitos entes, seja na condição de parte ou de terceiro interveniente, vem desmistificando a conceituação tradicional do interesse jurídico. De fato a atuação do amicus curiae pode ser indicada, atualmente, como um exemplo interessante de sujeito desinteressado, pois sua participação não é vinculada a uma relação material.93 Trata-se, como já percebeu Athos Gusmão Carneiro, de uma intervenção com base no interesse público.94 É similar a posição da Administração Pública nas ações populares e de improbidade administrativa, que motivou a previsão legal expressa de possibilidade de mudança de pólo na demanda.95 Nestas ações, o interesse geral na boa gestão pública, na legalidade, na moralidade administrativa, exige uma postura processual que possa ser convencida imparcialmente, com neutralidade sem comprometimento necessário com um interesse material que não a mais eficiente realização do interesse público.96
JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.344-345. Veja-se o art.50 do CPC. CARNEIRO, Athos Gusmão. “Mandado de Segurança – Assistência e amicus curiae”, in Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n.24, jul-ago, 2003, p.36; BAUR, Fritz e GRUNSKY, Wolfgang. Zivilprozeßrecht. Kriftel: Luchterhand, 10. Auflage, 2000, p.102: “Ein nur wirtschaftliches oder ideelles Interesse genügt nicht. Ein rechtliches Interesse ist vor allem anzunehmen in den Fällen der Rechtskrafterstreckung einer Regreßforderung oder Regreßverbindlichkeit”. Cf.HIRTE, Heribert. “Der amicus-curiae-brief - das amerikanische Modell und die deutschen Parallelen”, in Zeitschrift für Zivilprozeâ, 104. Band, Heft 1, 1991, p.43; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. Op.cit., p.59. 93 Contra a qualidade de assistente ao amicus curiae, CARNEIRO. Athos Gusmão. “Da intervenção da União Federal como amicus curiae. Ilegitimidade para, nesta qualidade, requerer a suspensão dos efeitos da decisão jurisdicional. Leis n.8.437/92, art.4o e n. 9.469/97, art.5º”, in Revista Forense, vol.363, setembrooutubro, 2002, p.183. 94 CARNEIRO, Athos Gusmão. “Mandado de Segurança – Assistência e amicus curiae”, Op.cit., p.41; CABRAL, Antonio do Passo. “Pelas asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, um terceiro especial”, in Revista de Direito Administrativo, vol.234, dezembro de 2003, também publicado na Revista de Processo, vol.117, setembro-outubro de 2004, p.25. 95 No mesmo sentido, DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Op.cit., p.248.Percebeu Cássio Scarpinella Bueno, com propriedade, a similitude, no ponto, da atuação da administração pública com o amicus curiae. Cf.BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.268. Sobre os imperativos éticos na administração pública moderna, confira-se OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública, corrupção, eficiência. São Paulo: RT, 2007, p.43 e ss. 96 Já tivemos oportunidade de ligar a imparcialidade à neutralidade do sujeito, ou seja, seu distanciamento ou alheação dos interesses em jogo, sem considerações sobre se tal sujeito efetivamente pratica um 91 92
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O mesmo pode ser sustentado para a atuação judicial das agências reguladoras. Por serem órgãos fiscalizadores, que devem compor interesses variados em prol do bem comum, não podemos imaginar que atuem vinculadas ou presas a um determinado interesse material polarizado. Qualquer que seja a posição processual em que se encontrem no processo, as agências atuam inspiradas no interesse público da regulação e fiscalização, e exercem suas faculdades processuais com imparcialidade. Por esse motivo, alguns autores chegam a aproximar a atuação das agências àquela do amicus curiae, como faz Kazuo Watanabe a respeito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Segundo o autor, por proteger interesses de toda a coletividade no campo do mercado de capitais, sua atuação é sempre desvinculada de um específico interesse material.97 Cássio Scarpinella Bueno e Osvaldo Hamilton Tavares sustentam, com propriedade, tratar-se de intervenção na qualidade de amicus curiae, orientada à interpretação dos fatos em causa e esclarecimento ao juiz, pelo órgão técnico que é a CVM, das repercussões jurídicas no mercado de capitais.98 Fredie Didier Jr., a nosso entender com razão, afirma que, assim como a CVM, a intervenção judicial do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) também se dá na condição de amicus curiae.99 Assim também já nos manifestamos, apesar da redação do art.89 da Lei 8.884/94, que menciona ser caso de assistência.100 Parece-nos evidente que a autarquia intervém sem estar vinculada a um determinado interesse material de qualquer das partes, mas sim no interesse público, social, geral,101 devendo atuar imparcialmente.102 O mesmo pode ser dito de outras agências e órgãos fiscalizatórios, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial nas ações de nulidade de marcas e patentes. Aqui a situação é ainda mais curiosa porque a lei, ao mesmo tempo,
ato processual na condição de parte. Sobre o tema, Cf. CABRAL, Antonio do Passo. “Imparcialidade e impartialidade. Por uma teoria sobre a repartição e incompatibilidade de funções no processo civil e penal”, in Revista de Processo, vol.149, julho, 2007, p.341 e ss. 97 WATANABE, Kazuo. “Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir”, Op.cit., p.202-203. 98 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.272 e ss; TAVARES, Osvaldo Hamilton. “A CVM como ‘amicus curiae’”, in Revista dos Tribunais, n.690, abril, 1993, p.287 e ss. 99 DIDIER JR., Fredie. “A intervenção judicial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (art.89 da Lei Federal 8.884/1994) e da Comissão de Valores Mobiliários (art.31 da Lei Federal 6.385/1976)”, in Revista de Processo, n.115, maio-junho, 2004, p.151 e 156-158. É verdade que o autor admite que, em algumas hipóteses de litígios coletivos, as agências e autarquias, por serem co-legitimadas para o ajuizamento das ações, interviriam na qualidade de assistente litisconsorcial. Discordamos, apenas nesta parte, do ilustre autor. Em nosso sentir, quando a atuação do sujeito processual for imparcial, pouco importa a natureza dos interesses materiais discutidos no processo, pois sua intervenção será sempre a título de amicus curiae. 100 CABRAL, Antonio do Passo. “Pelas asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, um terceiro especial”, Op.cit. 101 Sobre as diferenças de conceitos de interesse público, geral, social, etc., Cf.MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. Op.cit., p.35 e ss. 102 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.327-329.
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permite o ajuizamento da ação pelo INPI (arts.56 e 173 da Lei 9.279/96), mas também afirma que, quando não for autor, o INPI “intervirá no processo” (arts. 57 e 175), divergindo a doutrina103 e a jurisprudência sobre se essa intervenção se dá na qualidade de litisconsorte,104 assistente105 ou amicus curiae.106 Não podemos concordar com parcela da doutrina que afirma que o INPI “só poderia ser réu” (litisconsorte passivo) nas ações de nulidade, ao argumento de que a disponibilidade ou escolha a respeito da qualidade em que participará do processo não é facultada ao ente, sob pena de gerar uma “indesejada subjetividade”.107 Discordamos, com todas as vênias, destas opiniões. À administração pública, direta ou indireta, é dado rever seus atos, desde que o faça fundamentadamente e respeitando interesses de terceiros. Não se trata de uma escolha arbitrária, mas uma opção discricionária que, como qualquer ato administrativo, deve ser motivada. Ademais, se atuam com base no interesse público, alheias e distantes dos interesses materiais em disputa, não faz sentido afirmar que “só podem ser réus” ou “só podem ser assistentes” em qualquer processo, até porque, seja autor ou réu, o INPI não defende um interesse material próprio.108 Se o conceito legal de citação não impõe a defesa, mas apenas infunde participação, a atuação despolarizada aqui também se impõe. Portanto, é plenamente cabível, para as agências e os órgãos públicos fiscalizatórios, a troca de pólo ou o exercício provisório de posições processuais do pólo oposto ao que posicionadas as agências, sem que haja qualquer óbice processual para tanto. Aliás, foi essa a ratio dos dispositivos da lei da ação popular e da improbidade administrativa.109
NEIVA, José Antônio Lisboa. “Questões processuais envolvendo propriedade industrial”, Op.cit., p.23. Confira-se jurisprudência em SCHMIDT, Lélio Denicoli. “O INPI nas ações de nulidade de marca ou patente: assistente ou litisconsorte?”, in Revista de Processo, ano 24, n.94, abril-junho, 1999, p.202. 105 TRF da 2ª Região, 3ª Turma – AC 89.02.01119-4, Rel.Des.Fed.Castro Aguiar, DJ 13.07.1995; 4ª Turma – AC 2001.02.01.040801-0, Rel.Des.Fed.Benedito Gonçalves, DJ 25.09.2003; 1ª Turma – AI 89.02.03047-4, Rel. Des.Fed.Célio Erthal, DJ 18.04.1991; 1ª Turma – AC 93.02.06442-5, Rel.Des.Julio Martins, DJ 07.10.1993 106 Cf.BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.294 e ss. 107 ABRANTES, Guilherme de Mattos. “A legitimidade ativa e passiva nas ações de nulidade de marcas e patentes”, in Revista dos Tribunais, ano 94, vol.842, dezembro, 2005, p.68-69. 108 Não podemos concordar com SCHMIDT, Lélio Denicoli. “O INPI nas ações de nulidade de marca ou patente: assistente ou litisconsorte?”, Op.cit., p.212-213. Pensamos, com André Muniz de Souza e Cássio Scarpinella Bueno, que o INPI, como ente fiscalizatório que é, deve atuar impessoalmente, ou seja com neutralidade. O fato de impugnar-se ato administrativo oriundo do INPI não faz com que possamos identificar qualquer interesse material da autarquia. Com razão, BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.296 e ss; SOUZA, André Muniz de. “O INPI como interveniente especial nas ações de nulidade: nova interpretação conforme a Lei de Propriedade Industrial”, in Revista de Processo, n.119, 2005,p.142-143. Concordamos apenas parcialmente, no ponto, com Scarpinella Bueno, que defende, em alguns casos, a participação do INPI a título de parte. 109 Embora prevendo de lege ferenda a aplicabilidade da migração, nos moldes da lei da ação popular e da lei de improbidade administrativa, afirma Neiva, para o INPI, que a migração não seria possível porque a lei 103 104
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E deve haver nova concepção do interesse de agir para os terceiros intervenientes, não mais presa à relação jurídica material como no formato do “interesse jurídico”, vinculado ao privatista modelo do direito subjetivo oitocentista. 4.3. Os problemas teóricos da doutrina tradicional sobre o interesse de agir. Os problemas apresentados pela teorização tradicional do interesse de agir são muitos e não é nossa intenção, em estudo de pequenas proporções como este, apontá-los todos. Alguns, entretanto, são dignos de nota, sobretudo porque as situações apresentadas no item 4.2. são ilustrativas em demonstrar a insuficiência da caracterização do interesse de agir na atualidade. Inicialmente, vê-se que o conceito de lesão ou estado de lesão como critério para o interesse-necessidade retrata uma visão civilista do direito de ação, que só surgiria como reação à violação ao direito material (actio nata).110 Trata-se de um conceito forjado na teoria do processo de conhecimento e voltado unicamente para a ação condenatória. A lesão é evidentemente um dado que não cabe bem na teorização da ação declaratória, por exemplo.111 Além disso, desconsideram-se outros tipos de processo, como os processos cautelar e de execução. De outro lado, a relação do interesse-necessidade com a lesão tem o grande defeito de permitir a confusão entre o mérito e as condições da ação. Embora comumente, em respeito à abstração do direito de ação, muitos autores se esforcem em diferenciar a existência da lesão (que toca o mérito) e a afirmação da ocorrência da lesão (que seria suficiente para preencher o interesse), 112 ainda se vêem constantes contradições doutrinárias.113 Afinal, podemos realmente diferenciar a “lesão ocorrida” da “lesão afirmada”?
9.279/96 usou a expressão “intervirá”, o que excluiria a atuação como parte. NEIVA, José Antônio Lisboa. “Questões processuais envolvendo propriedade industrial”, Op.cit., p.27. Discordamos do argumento de lege lata, que consideramos apegado em demasia à literalidade da lei. 110 Cf.FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação. Op.cit., p.147. 111 Por isso, Chiovenda prefere, ao invés de falar em “lesão”, mencionar que o interesse na ação declaratória decorre de um “estado de fato contrário ao direito”, imputável ao réu por uma relação de causalidade e que, caso não seja definido por sentença, poderá gerar um prejuízo ao autor. CHIOVENDA, Giuseppe. “L’azione nel sistema dei diritti”, in Saggi di Diritto Processuale. Milano: Giuffré, Reedição de 1993, vol.I, nota 68, p.81-82. Sobre o tema, Cf.TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Op.cit., p.21 e 100 e ss, 128; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Op.cit., p.228. O problema já foi percebido na doutrina brasileira, como se vê na excelente obra de CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Interesse de agir na ação declaratória. Curitiba: Juruá, 2002. 112 SCHÖNKE, Adolf. Lehrbuch des Zivilprozessrechts. Op.cit., p.168; LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Op.cit., p.155-156; MANDRIOLI, Crisanto. Corso di Diritto Processuale Civile. Op.cit., p.52. 113 Dificuldade que começou com o próprio Bülow, quando estudou os requisitos formais da ação como condições de sua existência. Cf.BÜLOW, Oskar von. “Die neue Prozessrechtswissenschaft und das System des
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Será que a lesão existe in rerum natura ou a lesão reside apenas no plano das qualificações jurídicas?114 Outrossim, o interesse-necessidade prende-se ao conceito de lide, a um conflito de interesses pré-existente e que confrontaria as partes. Sabemos que a lide não é essencial à jurisdição e que, ainda que se verifique, não precisa subsistir em todos os momentos do processo.115 Ora, se por vezes os litigantes têm simultaneamente interesses materiais comuns e contrapostos; se os litigantes podem ter interesses contrapostos em um momento, e posteriormente terem interesses comuns; se existem sujeitos do processo, como as agências reguladoras e o amicus curiae, que atuam imparcialmente sem qualquer comprometimento com o direito material em disputa; por todas essas razões, vê-se que a existência de um conflito de interesses com outro sujeito não pode ser um requisito para a atuação processual. O apego à contraposição de direitos, própria do conceito de interessenecessidade, dificulta, p.ex., a compreensão de faculdades processuais das agências e órgãos públicos quando atuam em juízo. É realmente difícil, na compreensão privatista do interesse de agir (e com ela, do interesse em recorrer), admitir que a intervenção da CVM como amicus curiae permita à agência recorrer das decisões judiciais (art.31 §3º da Lei 6.385/76).116 E é esse apego que opõe resistência à ampliação das possibilidades de migração de pólo na demanda. A “necessidade de tutela” não se adéqua também aos estudos sobre a legitimidade passiva, ligada ao interesse-necessidade pelo conceito de lesão.117 Diz-se, a esse respeito, que o “interesse em contestar”, previsto no art.4°do CPC brasileiro e na segunda parte do art.100 do Codice peninsular, não possui significado próprio porque o réu teria interesse pelo tão só fato de ter sido colocado na posição de réu, e com isso se acaba resumindo o interesse na legitimidade.118 Sigamos em frente.
Civilprozessrechts”, Op.cit., p.236 e ss. Confira-se a dificuldade em diferenciar a afirmação das condições da efetiva existência delas em JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.143-144; REIS, José Alberto dos. “Legitimidade das partes”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano IX, 1925-1926, p.109, 112-113, 125; GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. “Existem legitimações puramente processuais?”, Op.cit., p.114. Sobre o tema, Cf.GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.18-19; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. Op.cit., p.57-58. 114 Como Satta já chamara atenção: SATTA, Salvatore. “A proposito dell’accertamento preventivo”, Op.cit., p.1397. 115 Já há muito tempo se verificou que existem processos sem lide. Cf.CHIOVENDA, Giuseppe. “L’azione nel sistema dei diritti”, Op.cit., p.34, nota 6. 116 Note-se a perplexidade de DIDIER JR., Fredie. “A intervenção judicial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (art.89 da Lei Federal 8.884/1994) e da Comissão de Valores Mobiliários (art.31 da Lei Federal 6.385/1976)”, Op.cit., p.159-160, que chega a indagar-se “para quê” e “para quem” recorreria a CVM. 117 REIS, José Alberto dos. “Legitimidade das partes”, Op.cit., p.113. Chiovenda tenta abordar a legitimidade passiva a partir dos efeitos próprios da coisa julgada que o autor, pela ação declaratória, deseja obter. Cf.CHIOVENDA, Giuseppe. “L’azione nel sistema dei diritti”, Op.cit., nota 68, p.83. 118 Como faz, p.ex., SATTA, Salvatore e PUNZI, Carmine. Diritto Processuale Civile. Padova: CEDAM, 30ª Ed., 2000, p.99-100. Sobre o tema, cf.MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.165-166; GRASSO, Eduardo. “Note per un rinnovato discorso sull’interesse ad agire”, Op.cit., p.345-346.
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No que se refere ao interesse-adequação, parece-nos evidente que a adequação do procedimento não pode ser indicativa de interesse. O equívoco já foi apontado pela doutrina: se um sujeito usou o meio inadequado, isso não significa que não tenha interesse; pode até ter atuado com excesso, mas pelo tão só fato de ter manejado um instrumento mais custoso, demorado ou incisivo, não podemos afirmar que atuou sem interesse processual.119 Aliás, o conceito de interesse-adequação parece estar na “contramão da história” quanto à instrumentalidade das formas. Sem embargo, quando o sistema permite e estimula a aplicação da fungibilidade de meios e conversão de procedimentos, perde em importância qualquer filtro ou restrição à prática de atos processuais pela inadequação formal.120 O problema dessa visão publicista do interesse de agir é acabar justificando qualquer decisão, ainda que arbitrária, fundamentada na economia de atividade processual. Lembremos que deve haver respeito às estratégias legítimas e aos espaços de liberdade válidos para que o sujeito faça escolhas procedimentais sem que o Estado possa retirar-lhe as opções. Como afirma Fredie Didier Jr., “o pior dessa concepção é o incentivo (ou, posto de modo politicamente mais correto, a válvula de escape) que se dá ao magistrado para não admitir o processamento de demandas sob o fundamento de equívoco na escolha do procedimento”.121 Isso ocorre frequentemente com a extinção, por motivo de “inadequação”, de mandados de segurança, processos cautelares, ações monitórias e outros, quando entende o Tribunal, a seu próprio juízo, que outro seria o mecanismo mais adequado. Além das objeções ao interesse-necessidade e interesse-adequação, temos que também o interesse-utilidade não responde às características do moderno
Note-se que a preocupação de não legitimar o réu pelo tão só fato de ser réu não passou despercebida a Fredie Didier Jr. Mas o autor também não apresentou critérios claros para definirmos a legitimidade passiva. Cf.DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.288-289. De fato, por vezes ocorre o contrário, e alguns autores resumem a legitimidade no interesse (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Op.cit., p.306 e ss; Idem, Litisconsórcio. Op.cit., p.129; DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.278; LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Op.cit., p.157; MOREL, René. Traité Élémentaire de Procédure Civile. Op.cit., p.30-31) ou ainda fazem decorrer um do outro, por vezes até por meio de presunções. Cf.GRASSO, Eduardo. “Note per un rinnovato discorso sull’interesse ad agire”, Op.cit., p.341-342. 119 Com razão DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.286; GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.36. 120 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. “Fungibilidade de meios: uma outra dimensão do princípio da fungibilidade”, in NERY JR., Nelson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: RT, 2001, p.1090-1094; Idem, “O óbvio que não se vê: a nova forma do princípio da fungibilidade”, in Revista de Processo, ano 31, n.136, julho de 2006, p.135; JAUERNIG, Othmar. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.126; LAMY, Eduardo Avelar de. Princípio da fungibilidade no processo civil. São Paulo: Dialética, 2007. 121 DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. Op.cit., p.287.
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direito processual. Hoje é até comum a referência que une ou reconduz a necessidade à utilidade ou vice-versa,122 confundindo, até certo ponto, a causa do interesse (seu elemento genético), e o escopo ou resultado a que pretende o interessado.123 Enfim, parece não haver clareza a respeito de qual a diferença do interesse-necessidade para o interesse-utilidade. No mais, a fronteira entre o útil e o inútil não é um quid pré-existente ao qual o juiz possa se agarrar,124 mas é um dado desenvolvido no curso do procedimento, dinamicamente delineado no contraditório. Se as dinâmicas interações da relação processual fazem de cada contexto situacional um específico ponto de interesses materiais diversos e cambiantes, devemos também no estudo do interesse de agir reduzir a esfera de análise para cada ato ou para “módulos” e momentos processuais precisos, desvinculando a abordagem do interesseutilidade de uma imutável relação jurídica material, retratando uma realidade pré-processual que pode ter sido, em outro momento e no curso do processo, completamente alterada. As condições da ação foram historicamente ligadas à relação de direito material do momento da propositura porque a situação material deve ser afirmada no primeiro ato do processo como causa de pedir (as “alegações de fato e de direito”).125 Não obstante, a vinculação aos “direitos subjetivos” ou a “relações jurídicas” limita inadequadamente o que entendemos ser, hoje, a correta apreensão das condições da ação, sobretudo legitimidade e interesse.126
Não é possível prender a realidade da vida, rica e em constante alteração, ao “marco zero” do momento em que a ação foi ajuizada. Deve-se atentar, paulatinamente, para as mutações por que pode sofrer a relação jurídica material, bem como as múltiplas pretensões e situações jurídicas correlatas que surgem no curso do processo. O raciocínio utilitário da verificação do interesse de agir, portanto, deve atentar para cada módulo ou “zona de interesse” pertinente ao ato ou conjunto de atos que o sujeito deseja praticar. Impõe-se que o julgador se desprenda da
Cf.FABIANI, Ernesto. “Interesse ad agire, mero accertamento e limiti oggettivi del giudicato”, Op.cit., p.563; GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.40. 123 Com razão, no ponto, GRASSO, Eduardo. “Note per un rinnovato discorso sull’interesse ad agire”, Op.cit., p.325-326. 124 MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, Op.cit., p.208. 125 DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. O juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p.278; FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Op.cit., p.273. 126 É o que transparece na mais inovadora contribuição em tema de interesse de agir na ação declaratória, proposta por TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Studien zur Fortentwicklung des Rechtsschutzverständnisses. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p.12-15. 122
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narrativa inicial, porque a ação é individuada num momento mas o interesse se verifica como um posterius, caracterizado pelo resultado útil do efetivo exercício da ação e da defesa em outra posição temporal.127 Por fim, a teoria sobre o interesse de agir no que tange aos terceiros é inadequada ao processo moderno, limitando o contraditório e a participação à exigência privatista de um prejuízo que o sujeito possa sofrer em relações jurídicas materiais próprias. Ao expurgar o interesse econômico, ou qualquer outra utilidade jurídica que não remeta ao conceito de “relação jurídica material”, o conceito de interesse jurídico segrega do acesso à Justiça um sem número de situações em que interesses materiais colaterais surgem em decorrência do processo e aos indivíduos envolvidos não é aberta a porta do Judiciário. Na execução, p.ex., existem múltiplos interesses de vários sujeitos, como os remidores, credores-adjudicadores, arrematantes, licitantes, todos titulares de interesses materiais decididos no processo.128 Muitas vezes, estes indivíduos possuem interesses materiais e/ou econômicos na execução, e que pretendem ver protegidos, sem que o ordenamento, nos moldes da teoria tradicional, permita sua atuação processual. Araken de Assis identifica a existência de interesses materiais a serem tutelados em execução sem que pudessem ser encaixados na disciplina tradicional das intervenções de terceiros. Isso fica evidente na leitura das regras sobre a responsabilidade patrimonial, que submete interesses materiais de terceiros à atividade executiva, sem necessariamente assegurar-lhes legitimidade e interesse de agir.129 Ora, urge haver também uma nova concepção do interesse processual para os terceiros intervenientes, quando se vê, na jurisprudência de outros países, uma tendência de abrandamento do conceito de interesse jurídico para reputar suficiente o interesse econômico.130 4.4. Zonas de interesse. Por todo o exposto, é manifestamente insatisfatória a consideração clássica do interesse de agir, seja aquela fulcrada na premissa egoísta do interesse jurídico Assim também LANFRANCHI, Lucio. “Note sull’interesse ad agire”, Op.cit., p.1134. GRECO, Leonardo. Processo de Execução.Op.cit., p.341. 129 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. Op.cit., p.398-399. 130 Assim a referência de Blomeyer para o interesse na ação declaratória. Cf.BLOMEYER, Arwed. Zivilprozessrecht. Erkenntnisverfahren. Op.cit., p.214. Confira-se a crítica à teoria tradicional do interesse de agir em TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Op.cit., p.17-19. 127 128
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para os terceiros, na premissa privatista e polarizada do interesse-necessidade, no autoritarismo contrário à instrumentalidade do interesse-adequação. Devemos ampliar a compreensão do interesse processual, conciliando com a abordagem proposta da legitimatio ad actum, autorizando uma apreensão dos filtros das condições da ação a partir de visão mais dinâmica da relação processual e voltada para cada um dos atos processuais.131 Por isso, não podemos concordar com a idéia de que o interesse processual é “único e imutável”, somente podendo assumir um formato no curso do processo.132 Em nosso entender, o interesse processual reflete a utilidade cambiante da tutela jurisdicional na vida dos litigantes, uma realidade constantemente sujeita a alterações às quais o processo deve estar apto a responder, facultando a atuação que o litigante repute como a mais adequada para a satisfação de suas situações de vantagem. É fato que o interesse está sempre ligado a um resultado, porque o raciocínio empreendido é utilitário. Como observou Maurício Zanóide de Moraes, o ato interessado é sempre teleologicamente orientado, até porque a causa do ato e o resultado projetado surgem logicamente no mesmo momento,133 ainda que o resultado não venha a ser produzido. Todavia, a utilidade do interesse processual não é aquela definida e propagada tradicionalmente, ligada à relação jurídica, ao direito subjetivo, ou qualquer outro formato privatista. A utilidade que deve nortear o estudo do interesse de agir é uma utilidade processualmente relevante, na óptica do litigante, não do Estado, para atingir um resultado que o próprio litigante entende favorável ao seu complexo de situações jurídicas, processuais ou substanciais. Devemos estudar o interesse de agir, tanto para as partes quanto para os terceiros, como um filtro mais amplo do que atualmente vem considerado, compreendendo o complexo de atividades que são permitidas aos sujeitos ao longo de todo o curso do procedimento, franqueando sua atuação desde que o ato específico tenha atual e concreta utilidade para o requerente.134 Se dinamicamente analisado, e verificado para cada ato ou posição processual, o conceito de “zona de interesse” pode ser fecundamente aplicado em diversas hipóteses.
Dinamarco já percebera que o interesse de agir deve ser aferido para cada ato do processo. Cf.DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.128 e nota 23. Como afirma Maurício Zanóide de Moraes, em lição para o processo penal, mas aplicável também ao processo civil, “hodiernamente, no processo penal, o estudo das várias espécies de interesse está crescendo como forma de verificação da utilidade e pertinência não só do processo como um todo, mas também de cada ato do iter procedimental”. MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. Op.cit., p.73. 132 Como afirma FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação. Op.cit., p.199-200, ainda que considere que o interesse processual possa desaparecer até o fim da litigância. 133 MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. Op.cit., p.64-67. 134 MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.167-168.
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Essa aplicação dinâmica do interesse de agir parece ser adotada pela jurisprudência norte-americana no que tange ao requisito de “standing to sue”, similar ao nosso interesse processual. Algumas decisões têm verificado o standing para diversos aspectos de um mesmo caso. Assim, uma parte pode ter interesse em contestar alguns aspectos de um ato administrativo, mas não outros.135 O mesmo tem sido observado na admissibilidade de litigância conjunta (joinder) com base em juízos de eficiência e conveniência da atuação em multiplicidade subjetiva.136 Eis aqui a necessidade que temos de reestudar ou aprimorar a teoria do litisconsórcio, cujas linhas tradicionais não se conseguem aplicar com justeza à migração entre os pólos da demanda, p.ex.137 Ao pensarmos nas finalidades específicas de cada ato, e das múltiplas zonas de interesse existentes para as partes e para os terceiros, podemos consentir numa maior flexibilização da estabilização subjetiva da demanda, ampliando, em algumas hipóteses, os poderes do litisconsorte em migrar para outro pólo.138 É claro que o princípio dispositivo e a liberdade do autor em formular a demanda devem ser principiologicamente preservados, mas abrir o conceito de interesse processual para admitir a migração de pólo nem sempre interfere substancialmente na demanda e talvez tenha muito menos efeitos processuais deletérios que as alterações objetivas da demanda. De outro lado, as zonas de interesse, ao analisarem um ou alguns atos processuais, permitem a segmentação da participação processual, permitindo a atuação e a intervenção para finalidades específicas no processo, desde que úteis ao postulante. A abordagem pode servir para a solução dos chamados “temas de decisão”, parcelas de uma situação jurídica substancial139 ou pré-questões (Vorfragen), ou seja, situações jurídicas prévias, premissas para a questão principal140 e que são diversas daquela ligação quase sagrada que a doutrina tradicional faz entre o direito subjetivo (ou a relação jurídica) e as condições da ação.141
Cf.FRIEDENTHAL, Jack.H., KANE, Mary Kay e MILLER, Arthur R. Civil procedure. St.Paul: West, 3ª Ed., 1999, p.336. Idem, p.339-339. 137 Como notaram DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Op.cit., p.248. 138 Sobre o litisconsórcio nas ações populares e nas ações de improbidade administrativa, e a discussão sobre se o litisconsorte pode ou não “escolher” de que lado vai participar, Cf.MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. Op.cit., p.174; GOMES JR., Luiz Manoel. “Ação Popular – alteração do pólo jurídico da relação processual – considerações”, Op.cit., p.122-126; BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.261-262. 139 Edoardo Ricci fornece o exemplo da nulidade de cláusula contratual, que pode ser premissa para outros direitos, como p.ex., ao ressarcimento. Cf.RICCI, Edoardo F. “Sull’accertamento della nullità e della simulazione dei contratti come situazioni preliminari”, Op.cit., p.655 e nota 8, onde aborda a controvérsia sobre a natureza declaratória ou constitutiva sobre a ação de nulidade contratual. 140 TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Op.cit., p.130-132. 141 CHIOVENDA, Giuseppe. “Azioni e sentenze di mero accertamento”, in Saggi di Diritto Processuale. Milano: Giuffré, Reedição de 1993, vol.III, p.26-27. 135
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A partir desta “desrelacionalização” do interesse de agir, podemos enxergar inúmeras situações em que haveria zona de interesse a permitir a atuação de um sujeito desvinculada da lide, da lesão a um direito subjetivo e da polarização da demanda. Isso é especialmente defendido, na literatura italiana e alemã, para a tutela declaratória, onde há realmente maior dificuldade para identificar a “zona de tutela” que permite o ordenamento. 142 Especialmente na ação declaratória, o interesse de agir não pode ficar ligado ao direito subjetivo, e deve ter seus pressupostos estudados em outra perspectiva que não aquelas criadas historicamente para a ação condenatória.143 Com a ampliação do interesse processual pelas zonas de interesse, a tutela declaratória ganha novos contornos e grande utilidade que a tutela condenatória não tem, perdendo-se a pecha de ser uma tutela “suplente” à condenatória.144 Pensamos que o desenvolvimento dessas idéias pode ser útil, na tutela declaratória, também para os direitos submetidos a condição ou termo, que existem e podem ser declarados judicialmente mesmo na inexistência de qualquer lesão.145 Também podem servir para nortear o interesse processual no modelo de fracionamento da resolução do mérito, admitindo-se a cognição e decisão, com força de coisa julgada, para um singular aspecto ou uma específica pré-questão de uma relação jurídica material. Porém, deve-se observar que a utilidade do provimento deve ser atual e concreta, proibindo a solução de uma questão abstrata, imaginariamente projetada como um problema distante. Para autorizar a legítima atuação judicial deve haver um interesse “concreto, efetivo e atual” na tutela jurídica,146 ou seja,
LÜKE, Wolfgang. Zivilprozessrecht. Op.cit., p.155; MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, Op.cit., p.209-210. A discussão se trava, p.ex., em matéria de direito laboral e previdenciário, como em pedidos de declaração de um estado de fato (uma doença, p.ex.), que se entende que só pode ser certificado se em face de um requerimento final de concessão de licença ou adicional de insalubridade, etc. Cf.MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.145. A jurisprudência destes dois países já admitiu o fracionamento de questões de mérito em julgamentos, o que pode ser observado em certos arestos do Bundesarbeitsgericht e da Cassazione. 143 TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Op.cit., p.12-13. 144 MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, Op.cit., p.210. 145 WACH, Adolf. “Der Rechtsschutzanspruch”, Op.cit., p.15. 146 WACH, Adolf. Der Feststellungsanspruch. Ein Beitrag zur Lehre vom Rechtsschutzanspruch. Reimpressão do original, 1888, p.15, 52-54; BÜLOW, Oskar von. “Die neue Prozessrechtswissenschaft und das System des Civilprozessrechts”, Op.cit., p.216: “Das wird denn auch sowohl durch das, was Wach (Handbuch, s.21) über die Abhängigkeit des Rechtsschutzanspruchs von der ‘Rechtsposition’ der Partei und (s.19 u.22) über das zum Rechtsschutzanspruch erforderliche, den Anspruch auf prozessualischen Rechtsschutz begründende ‘wirkliche, nicht eingebildete Rechsschutzinteresse’ bemerkt, bestätigt, wie durch seine Erklärung (Feststellungsanspruch,s.15), der Rechtsschutzanspruch sei ‘geknüpft an konkrete ausserprozessualische Thatbestände”. Cf.VERDE, Giovanni. “Sulla ‘minima unità strutturale’ azionabile nel processo (a proposito di giudicato e di emergenti dottrine)”, in Rivista di Diritto Processuale, 1989, p.577. 142
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se o requerente tiver alguma utilidade prática no requerimento, ainda que toque apenas parcela da relação material.147 O conceito mais amplo de zona de interesse pode ser útil também, para além da tutela declaratória, seja para ampliar a esfera de aplicação do interesse de agir para os procedimentos probatórios de mera certificação fática (sem alegação de periculum in mora)148 seja ainda nos casos em que a fattispecie constitutiva do direito material é de formação progressiva, e que não poderia, como óbvio, ser analisada estaticamente.149 Nesta hipótese, pode haver interesse em resolver uma controvérsia em torno de uma determinada parcela da situação material, que somente surgirá em sua integralidade no futuro justamente porque ainda em desenvolvimento. Exemplo comum na prática brasileira é visto no direito previdenciário, especialmente diante da sucessão de emendas constitucionais e regras de transição que geram enorme insegurança sobre qual será o regime jurídico a ser aplicado a um determinado indivíduo. Por exemplo: o “direito subjetivo” à aposentadoria só surge depois de muitos anos e do preenchimento de diversos requisitos; se existe uma divergência ou um estado de incerteza sobre um determinado aspecto, que atinge a esfera jurídica do envolvido, as demandas sofrem grande resistência do Judiciário porque “não há direito adquirido a regime jurídico”, e portanto são extintas por falta de interesse. Mas será justo obrigar o indivíduo a contribuir 30 anos, na esperança de aposentar-se, p.ex., com integralidade de vencimentos, para somente então afirmar-lhe que não tem direito? Não seria legítimo admitir a discussão judicial anterior, acerca daquele aspecto divergente, e assegurar estabilidade àquela situação jurídica? Parece-nos evidente que sim. As zonas de interesse podem servir ainda para os casos, em que não seja tão simples identificar com precisão todas as posições subjetivas correlatas que estejam em jogo ou que possam sofrer interferências da discussão no processo. Nestes casos, como não há uma referência subjetiva clara que permita um juízo de comparação direto com algum sujeito determinado (o que ocorre no direito subjetivo ou na relação jurídica), não se pode trabalhar a legitimidade e o interesse de agir nos mesmos moldes clássicos.150 Assim, como afirma
GRUNSKY, Wolfgang. Grundlagen des Verfahrensrechts. Op.cit., p.371-372; MARINELLI, Marino. La claosola generale dell’art.100 C.P.C. Op.cit., p.142, 147. 148 MONTESANO, Liugi. “Questioni preliminari e sentenze parziali di merito”, in Rivista di Diritto Processuale, vol. XXIV, II, 1969, p.597-600; TRZASKALIK, Christoph. Die Rechtsschutzzone der Feststellungsklage im Zivil- und Verwaltungsprozeß. Op.cit., p.13. No direito brasileiro, destaque-se a recente obra de YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação de prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. 149 MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, Op.cit., p.203. 150 RICCI, Edoardo F. “Sull’accertamento della nullità e della simulazione dei contratti come situazioni preliminari”, Op.cit., p.657-658: “Come è noto, si contendono qui il campo due tesi: quella che identifica il legittimato attivo e il legittimato passivo negli effettivi titolari (attivo e passivo) del thema decidendum; e quella che preferisce 147
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Merlin, devemos recorrer à dinâmica jurídica para solucionar a possibilidade de formulação de pretensões multilaterais.151 Para casos como estes, os ordenamentos do common law acenam com um procedimento próprio de litigância plurissubjetiva, denominado interpleader, que pode ser utilizado quando os “contra-interessados” são indefinidos,152 e que permite atuações dinâmicas, como o ingresso no processo ou a retirada da litigância de acordo com as circunstâncias e a estratégia do momento.153 Dinamarco, no Brasil, chamou atenção para o raro tratamento dado para a figura do litisconsórcio alternativo ou eventual, que poderia servir a estes casos.154 Em sentido semelhante, Luiz Fux menciona a relevância do estudo da participação de terceiros no processo de execução, quando as obrigações têm “titulares ocultos”, quando entram em cena a teoria da aparência e a desconsideração da personalidade jurídica.155 Por fim, o conceito de zonas de interesse pode servir para uma maior compreensão do interesse processual nas ações populares, nas ações de improbidade, e em todas as atuações processuais desvinculadas de um interesse material específico. Nestas, o interesse de agir deve continuar ligado a premissas de utilidade, embora voltados para o interesse público ou “interesse cívico”.156 A expressão “utilidade para o interesse público”, prevista no art.6º §3º da lei da ação popular, é a positivação desta concepção ampliativa de interesse processual. E é a zona de interesse, ao lado da legitimidade para o ato, que permite a aplicação ampliativa da migração interpolar.
valorizzare la prospettazione contenuta nella domanda, considerando legittimato attivo chi si afferma titolare attivo della situazione controversa (anche se non lo è), e titolare passivo chi è presentato nell’atto introduttivo del processo come titolare passivo della stessa situazione (anche se non lo è). Ma si può parlare di titolarità attiva o passiva (effettiva o semplicemente affermata) della situazione giuridica dedotta nel processo, solo a patto che tale situazione giuridica possa essere riferita a soggetti determinati; e quando si discute della nullità e della inefficacia per simulazione come situazioni giuridiche meramente preliminari, la constatata non riferibilità ad alcun soggetto rende improponibile l’intera costruzione”. 151 WATANABE, Kazuo. “Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir”, Op.cit., p.202; MERLIN, Elena. “Mero accertamento di una questione preliminare?”, Op.cit., p.213-215. Isso ocorre também nos interesses coletivos lato sensu. Cf.GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. Op.cit., p.52. A jurisprudência brasileira já afirmou que, nestes casos, a ação pode ser dirigida contra qualquer indivíduo, seja proprietário, possuidor, promissário comprador, qualquer um que tenha “relação jurídica próxima” ao imóvel, que depois poderá regredir, se for o caso, contra quem deve suportar em caráter final a condenação. Confira-se, STJ – REsp n.194.481-SP, Rel.Min.Ruy Rosado de Aguiar. 152 FRIEDENTHAL, Jack.H., KANE, Mary Kay e MILLER, Arthur R. Civil procedure. , Op.cit., p.779 e ss. 153 Confira-se maiores detalhes e exemplos em FRIEDENTHAL, Jack.H., KANE, Mary Kay e MILLER, Arthur R. Civil procedure, Op.cit., p.782-785. 154 DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. Op.cit., p.390 e ss. 155 FUX, Luiz. O novo processo de execução: o cumprimento de sentença e a execução extra-judicial.Op.cit., p.110-111. 156 Assim, ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de. “O conteúdo eficacial da sentença da ação popular: sobrevive uma ação de direito material coletiva?”, in DIDIER JR, Fredie e MOUTA, José Henrique (Coord.). Tutela Jurisdicional Coletiva. Salvador: Jus Podivm, 2008, p.402. Em sentido diverso, GRINOVER,
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5. Sugestões para o desenvolvimento do tema. Não pretendemos, neste momento em que nos encaminhamos ao fim da exposição, ampliar o tratamento das possibilidades de migração entre pólos ou atuação despolarizada. Não obstante, algumas conseqüências e hipóteses podem e devem ser colocadas como ponto de partida para ulterior análise. Como dissemos anteriormente, ainda que a polarização tenha uma função dialética de formalizar o debate e facilitar a aplicação cotidiana do contraditório, não podem os sujeitos do processo, em determinadas situações, ficarem presos à polaridade inicial. Entendemos que as migrações serão permitidas se alguns requisitos se demonstrarem presentes. 5.1. Pressupostos para a migração entre pólos e a atuação despolarizada. Migrações sucessivas e migrações pendulares. Revogabilidade de atos processuais e admissibilidade. Os primeiros pressupostos que devem ser preenchidos para que seja autorizada a alteração de pólo são, como vimos anteriormente, a legitimatio ad actum e a zona de interesse do requerente. A estes requisitos, somam-se outros. O tema mereceria uma reflexão mais aprofundada, mas já podemos adiantar alguns pontos que pensamos poderem nortear a aplicação prática das idéias expostas. Em primeiro lugar, a depender da condição do sujeito, a migração entre pólos pode ser sucessiva, ou seja, se e quando o sujeito processual convencerse do acerto das razões de outros sujeitos e decidir pela atuação conjunta consigo. Essa é a situação dos sujeitos desinteressados, como o amicus curiae e os órgãos da administração pública. Tais entes não ficam presos a um pólo, podendo migrar novamente se assim se convencerem, sempre em prol do interesse público. Por essa razão, Mazzei denomina a hipótese da lei da ação popular como sendo de uma intervenção “móvel”, em que a alteração de pólo é permitida mais de uma vez e em qualquer sentido.157 Quando estivermos diante de soluções cooperativas na condução do processo, como os acordos de procedimento e requerimentos conjuntos, os sujeitos do processo podem unir-se temporariamente para a prática de atos
Ada Pellegrini. “Ação civil pública e ação popular: aproximações e diferenças”, Op.cit., p.142, considerando que os objetivos da ação popular são similares aos da ação civil pública ajuizada pelo MP, onde evidentemente este aspecto cívico não se observa. 157 MAZZEI, Rodrigo. “A ‘intervenção móvel’ da pessoa jurídica de direito público na ação popular e ação de improbidade administrativa (art.6°, §3º da LAP e art.17§3º da LIA)”, Op.cit., loc.cit.
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processuais, devendo ser-lhes reconhecida zona de interesse para tanto. Esta migração pode ser chamada de pendular, já que, após a prática do(s) ato(s) em conjunto, os sujeitos retornam à polaridade inicial, retomando o formato clássico de contraposição de posições. Por outro lado, a atuação despolarizada, independente de qualquer referência à lide, ao direito subjetivo ou à pretensão, é o caminho a ser seguido nos casos de fracionamento do mérito, já que todas as partes e terceiros podem ter interesse e legitimidade para impugnar um elemento da relação jurídica sub judice, desde que respeitada a utilidade atual e concreta para a esfera jurídica do interessado. Em todas estas categorias ou espécies de migração, muitas outras questões seriam dignas de análise. A moldura apresentada é apenas uma referência genérica. Contudo, haverá outros muitos casos em que, apesar da possibilidade geral de migração, diante de específicas situações processuais, a mudança de pólo não será autorizada. A vedação geralmente observar-se-á para a proteção de direitos de terceiros ou para a preservação da confiança legítima das partes na manutenção de comportamentos anteriores. Entram em jogo as preclusões, não só as temporais, como também as lógicas e consumativas. Assim, pensamos que a troca de governos não permite uma desmedida, sucessiva e incompatível troca de pólos pelo ente público, se tiver sido criada expectativa legítima, aos demais sujeitos, de manutenção de condutas processuais já tomadas.158 Deve ser analisada também a revogabilidade dos atos processuais, e se, ao mudar de pólo, as condutas processuais tomadas pelo sujeito a partir de então seriam compatíveis com atos anteriormente praticados. Lembremos que o exercício da defesa, p.ex., torna litigiosa a coisa, impõe ônus probatórios, exige programação e avaliações que passam desde a coleta de provas (p.ex., documentos) até a formulação de alegações para a linha argumentativa do litigante. Deve haver preservação do contraditório e ampla defesa, dos direitos de terceiros, e também se impõe um juízo de eficiência, evitando que o processo, por conta da migração, tenha que retornar a etapas anteriores.
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Luiz Manoel Gomes Jr., que afirma que o ente pode passar do pólo passivo para o pólo ativo, mas não o inverso. Mancuso e Bueno entendem ser possível a migração para que o amadurecimento da questão, ao longo do processo, possibilite uma melhor tomada de posição da administração pública em torno da melhor realização do interesse público. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. Op.cit., p.174-176; BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro. Op.cit., p.263-264. Concordamos com os ilustres professores. Desde que a questão não seja uma mera divergência político-partidária, o dinamismo da relação processual impõe que a migração seja possível durante o processo. Porém, como afirmamos no texto, deve haver respeito aos direitos de terceiro, como também pode ser que, à luz das preclusões e da irrevogabilidade de atos processuais, não seja mais possível a troca de pólo em um dado momento do procedimento.
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5.2. Encargos de sucumbência. Remessa necessária. Impossibilidade de migração. No que se refere às conseqüências da aplicação deste formato despolarizado, algumas linhas introdutórias também podem ser desenvolvidas aqui. Em nosso entender, a transferência de pólo é capaz de fazer escapar dos encargos de sucumbência. A atuação conjunta pela satisfação de um mesmo interesse material corrói a idéia vetora da causalidade para a condenação nas despesas processuais e permite, se não a exclusão total do migrante do pagamento das despesas, ao menos sua redução. É claro que, se a migração ocorrer em momento muito precoce do processo, pode-se sustentar a redução substancial da condenação nas despesas (art.21, parágrafo único, CPC); se ocorrer num marco temporal adiantado, próximo da decisão definitiva, a migração não deve ser considerada para estes fins, caso contrário poderia ser usada como um subterfúgio para eximir-se do pagamento diante da iminente derrota. Aplicável aqui é a disciplina de condenação proporcional nos encargos da sucumbência prevista em lei para partes e terceiros, a depender da intensidade de sua atuação em favor do interesse material derrotado (arts.19 §1º, 20 §1º, 21, 23, 32, todos do CPC). Impõe-se diferenciar ainda se estamos diante da migração num quadro de litisconsórcio. Isso porque, quando não há pluralidade de partes, existe necessidade de impor a um dos litigantes os custos do processo e vemos com dificuldade a redução, mesmo proporcional, destes custos. No entanto, quando houver litisconsórcio, a migração pode reduzir proporcionalmente a condenação do migrante, sem deixar de impor aos demais litisconsortes o custo econômico da litigância, aplicável a estes o princípio da causalidade. No que tange à remessa necessária, também este instituto pode sofrer repercussões da migração entre pólos. Isso porque, ao migrar da posição de réu para juntar-se ao autor, a atuação conjunta da administração pública com o autor faz entender que a função protetiva159 que o duplo grau obrigatório possui em relação à sucumbência estatal não se observa mais. Por fim, cabe destacar que, na exata medida em que houver pedidos formulados contra o sujeito do processo, não pode este pretender migrar para outro pólo para escapar da responsabilidade ou de uma sentença de procedência favorável ao requerente. Seria inimaginável que estivesse no âmbito da vontade do requerido a disposição sobre o pedido de outrem. Se sua migração pode reduzir-lhe os encargos de sucumbência, não apaga o pedido formulado, a não ser que dele disponha o próprio requerente. A situação prática
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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, vol IV, 3ª Ed., 2008, p.332.
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seria resolvida se nos acostumarmos a ver sentenças condenatórias de sujeitos que passaram a figurar no pólo ativo após a migração. 6. Breve conclusão. Nosso objetivo, no presente estudo, foi identificar se existe a possibilidade de migração interpolar na demanda, ou ainda se seria defensável uma atuação dos sujeitos do processo que poderia ser definida como “despolarizada”. Parece-nos, como já antecipado, que a resposta é afirmativa. Ao indagarmos quais seriam as dificuldades para imaginar a prática de atos processuais sem uma referência polar ou bipolar, identificamos uma situação doutrinária de desenvolvimento insuficiente da legitimidade ad causam e do interesse de agir, conceitos jurídico-processuais construídos sob premissas antigas e que não conseguem responder aos contornos modernos do processo civil. Estas condições da ação não se amoldam a procedimentos executivos e de certificação fática, bem aos acordos procedimentais e soluções cooperativas. Além disso, são institutos que limitam por demais a intervenção de terceiros e que não se coadunam com as técnicas declaratória e de fracionamento da resolução do mérito. Na impossibilidade de estendermos, nesta sede, todos os temas correlatos, as objeções à tese e suas infindáveis aplicações práticas, deixaremos para outra oportunidade um tratamento mais abrangente. Esperamos, contudo, que de todo o exposto possamos ter despertado a atenção dos leitores não só para este tema quase inexplorado das migrações entre pólos da demanda, mas também para a constatação que o estudo das condições da ação ainda não está superado. Muito ainda há para desenvolver. As novas e futuras gerações são e serão chamadas a estudar a ação à luz da multiplicidade de mecanismos de tutela hoje existentes, e diante das realidades processuais cambiantes, que refletem, no processo, o dinamismo da vida moderna.
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Pensão por Morte e Exclusão da Concubina do Rol de Dependentes Oscar Valente Cardoso Juiz Federal Substituto do JEF Cível de Chapecó/SC. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC. Especialista em Direito Público e em Direito Constitucional. Pós-graduando em Direito Processual Civil e em Comércio Internacional. Resumo: Os dependentes previdenciários são divididos em três classes, em divisão que se assemelham à ordem civil de vocação hereditária, ou seja, a existência de dependente em uma classe afasta aqueles das classes mais remotas. Têm direito aos benefícios de pensão por morte e auxílio-reclusão, além dos serviços de reabilitação profissional e social. O artigo analisa aspectos da pensão por morte, e a inclusão – ou não – da concubina como dependente, com base no tratamento dispensado ao assunto pelos tribunais e pela doutrina especializada. Abstract: In Brazilian social welfare, dependents are divided into three categories, and have the right to death pension benefit, a prison benefit, services of professional and social rehabilitation. This article examines the death pension benefit, and the inclusion – or not – of concubines as dependents. Sumário: 1. Introdução – Aspectos Introdutórios da Pensão por Morte – 3. Concubinato e União Estável: Delimitação dos Conceitos – 4. Direito da Concubina à Pensão por Morte – 5. Conclusões. 1. Introdução
A 1ª Turma do STF, bem como diversas Turmas do STJ, recentemente decidiram questões envolvendo a delimitação dos beneficiários da pensão por morte, e a situação jurídica da concubina nessas situações.
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Busca-se, neste artigo, após abordar algumas questões essenciais à compreensão do benefício, examinar a matéria, bem como os fundamentos da decisão do STF e do STJ, as posições dos TRF, de Turmas Recursais e da doutrina, para, ao final, acrescentar argumentos e contribuir para a discussão do tema. 2. Aspectos Introdutórios da Pensão por Morte A pensão por morte está prevista nos arts. 74/79 da Lei nº 8.213/91, e regulamentada nos arts. 105/116 do Decreto nº 3.048/99, além de ter fundamento constitucional no art. 201, V, que assegura, em seu § 2º, o valor não inferior a um salário mínimo (com exceção da divisão em cotas, a ser mencionada adiante). Possui três requisitos para a sua concessão: a) óbito do segurado; b) qualidade de segurado (não necessariamente na data do falecimento); c) e a qualidade de dependente do postulante do benefício. Independentemente de estar exercendo atividades laborativas ou aposentado, o falecimento do segurado é suficiente para atender o primeiro requisito (caput do art. 74 da Lei nº 8.213/91). Não somente a morte biológica2 gera direito ao benefício, mas também o óbito presumido, com ou sem declaração de ausência. O art. 6º do atual Código Civil dispõe que “a existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”. Por sua vez, conforme o art. 7º: “Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até 2 (dois) anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”. Verificam-se, assim, três situações de morte: biológica (art. 6º), presumida com declaração de ausência (art. 6º), e presumida sem decretação de ausência 2
Há controvérsia no direito civil e na medicina legal acerca do termo adequado para designar o óbito que põe fim à personalidade: morte biológica, clínica, natural, cerebral, encefálica, etc. Por não se tratar de assunto com interesse para este artigo, opta-se por utilizar a primeira expressão, em contraposição à morte presumida.
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(art. 7º). Fala-se ainda em morte civil para designar a exclusão dos indignos da sucessão, nos termos do art. 1.816 do Código Civil3, porém, tal situação não produz efeitos no direito previdenciário. Por ser exigida somente a qualidade de segurado, a concessão da pensão por morte independe de carência (art. 26, I, da Lei nº 8.213/91, e art. 30, I, do Decreto nº 3.048/99), ou seja, basta que o segurado tenha recolhido uma contribuição, para que o benefício seja devido aos seus dependentes. Ainda, mesmo que não tenha recolhido contribuição no mês de sua morte, os dependentes terão direito ao benefício se estiver mantida a qualidade de segurado, conforme as regras do art. 15 da Lei nº 8.213/914. Além disso, entende-se que, caso o segurado preencha os requisitos e tenha o direito (em tese) ao recebimento de qualquer modalidade de aposentadoria (por invalidez, por tempo de serviço/contribuição, por idade e especial), seus dependentes têm direito à pensão por morte, ainda que ocorra a perda da qualidade de segurado na data do óbito5. Nesse sentido, o art. 102, § 2º, da Lei nº 8.213/91 prevê que “não será concedida pensão por morte
O citado dispositivo prevê que “são pessoais os efeitos da exclusão; os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão”. Na lição de Sílvio de Salvo Venosa: “Não temos também a denominada morte civil, embora haja resquício dela, como, por exemplo, no art. 157 do Código Comercial e no art. 1.599 do Código Civil de 1916 (novo, art. 1.816). Por esse dispositivo do Código Civil, os excluídos da herança por indignidade são considerados como se mortos fossem: seus descendentes herdam normalmente” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 2. ed. v. 1. São Paulo:Atlas, 2002, p. 188). 4 Sobre o assunto: “(...) 1. A qualidade de segurado indica a existência de vínculo entre o trabalhador e a Previdência Social, cabendo ao art. 15 da Lei nº 8.213/91 estabelecer condições para que ele mantenha tal qualidade no chamado período de graça, no qual há a extensão da cobertura previdenciária, independentemente de contribuições. (...) 4. Ocorrendo o óbito durante o chamado ‘período de graça’, não há falar em perda da qualidade de segurado do de cujus, razão pela qual seus dependentes fazem jus à pensão por morte” (STJ, AgRgRD no REsp 439021/RJ, 6ª Turma. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 18/09/2008, DJe 06/10/2008). Da mesma forma: “(...) Apenas é possível a concessão de pensão por morte nos casos em que falecido possua, na data do óbito, qualidade de segurado ou direito adquirido a qualquer aposentadoria” (TNU, Incidente de Uniformização 200563060152932, rel. Juiz Federal Cláudio Roberto Canata, j. 29/10/2008, DJ 16/01/2009). Nesse sentido: 1ª Turma Recursal do Amazonas, Processo 200232007002245, rel. Juiz Federal Vallisney de Souza Oliveira, j. 02/09/2002, DJ 12/09/2002; 1ª Turma Recursal da Bahia, Processo 200433007246010, rel. Juíza Federal Cynthia de Araújo Lima Lopes, j. 24/09/2004; 1ª Turma Recursal de São Paulo, Processo 200261840024665, rel. Juiz Federal Aroldo José Washington, j. 25/05/2004; 2ª Turma Recursal de São Paulo, Processo 200361840067801, rel. Juiz Federal Ricardo de Castro Nascimento, j. 02/03/2004. Doutrinariamente: “(...) é necessário que na data do óbito esteja presente a qualidade de segurado, isto é, que o falecido não tenha perdido esta qualidade” (DUARTE, Marina Vasques. Direito previdenciário. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005, p. 210). 5 Nesse sentido entende o STJ: “(...) 1. É da jurisprudência da Terceira Seção que a pensão por morte é garantida aos dependentes do de cujus que tenha perdido a qualidade de segurado, desde que preenchidos os requisitos legais de qualquer aposentadoria antes da data do falecimento, o que, na hipótese, não ocorreu” (Ag no REsp 775352/SP, 6ª Turma, rel. Min. Nilson Naves, j. 30/10/2008, DJe 15/12/2008). Também: Ag no REsp 964594/SC, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. 28/02/2008, DJe 31/03/2008; EREsp 263005/RS, 3ª Seção, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 24/10/2007, DJe 17/03/2008. Igual é o entendimento da TNU: “(...) Apenas é possível a concessão de pensão por morte nos casos em que falecido possua, na data do óbito, qualidade 3
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aos dependentes do segurado que falecer após a perda desta qualidade, nos termos do art. 15 desta Lei, salvo se preenchidos os requisitos para obtenção da aposentadoria na forma do parágrafo anterior”6. Especificamente, caso se alegue que o falecido estava incapacitado e teria direito à aposentadoria por invalidez, deve-se demonstrar que a incapacidade teve início durante o período de manutenção da qualidade de segurado7. A pensão por morte, ao lado do auxílio-reclusão, da pensão por morte e dos serviços de reabilitação profissional e social, é um benefício concedido aos dependentes do segurado do RGPS. Enquanto os segurados possuem vinculação direta com a Previdência Social, por exercerem uma atividade considerada de filiação obrigatória (ou espontânea e facultativamente efetuarem sua inscrição), os dependentes têm uma ligação indireta, derivada do vínculo que têm com o segurado. Portanto, o benefício de pensão por morte é devido a quem tem uma ligação com o segurado, mas não qualquer espécie de vínculo. Dependentes, no rol do art. 16 da Lei nº 8.213/91 (e do art. 16 do Regulamento) são: a) cônjuge, companheiro(a) e filho(a) não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido (dependentes preferenciais); b) os pais; c) o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido. Essa divisão assemelha-se à ordem de vocação hereditária existente no direito civil (art. 1.829, CC), na qual a existência de dependente de uma das classes afasta os dependentes das classes seguintes (ou mais remotas) do direito ao benefício previdenciário (art. 16, § 1º, da Lei nº 8.213/91). A renda mensal da pensão por morte corresponde a 100% do valor da aposentadoria que o segurado estiver percebendo no momento do óbito; caso não seja aposentado, o benefício será de 100% do valor da aposentadoria por invalidez que seria devida ao segurado na data de seu falecimento8. de segurado ou direito adquirido a qualquer aposentadoria” (Incidente de Uniformização 200563060152932, rel. Juiz Federal Cláudio Roberto Canata, j. 29/10/2008, DJ 16/01/2009). Igualmente: Incidente de Uniformização 2002618400070558, rel. Juiz Federal Joel Ilan Paciornik, j. 10/10/2005, DJ 14/11/2005. 6 O §1º do citado dispositivo prevê: “A perda da qualidade de segurado não prejudica o direito à aposentadoria para cuja concessão tenham sido preenchidos todos os requisitos, segundo a legislação em vigor à época em que estes requisitos foram atendidos”. 7 Sobre o assunto: “PREVIDENCIÁRIO. PEDIDO DE PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO FACULTATIVO. JULGAMENTO DE IMPROCEDÊNCIA. PERDA DA QUALIDADE DE SEGURADO ANTERIOR À ECLOSÃO DO MAL QUE RESULTOU NA MORTE. ADEQUADA APLICAÇÃO DO ART. 15, CAPUT E INCISO VI DA LEI Nº 8.213/1991. (...) A sentença de improcedência confirmada pela 1ª Turma Recursal do Paraná deu a solução jurídica adequada à realidade do caso. De fato, trata-se de pedido de pensão por morte, feito por dependente de segurado facultativo que perdeu a qualidade de segurado antes mesmo de contrair a doença que resultou em sua morte” (Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Incidente de Uniformização 200670950031700/PR, rel. Juíza Federal Maria Isabel Pezzi Klein, j. 13/03/2007, DE 26/03/2007). 8 Nos termos do art. 75 da Lei nº 8.213/91: “O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei”. Igualmente dispõe o § 3º do art. 39 do regulamento: “O valor mensal da pensão por morte ou do auxílio-reclusão será de cem por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, observado o disposto no § 8º do art. 32”.
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Havendo mais de um dependente, o benefício é dividido em cotas individuais iguais, ainda que sejam inferiores ao salário-mínimo (art. 77 da Lei nº 8.213/91, e art. 113 do Decreto nº 3.048/99). O art. 74 da Lei nº 8.213/91 versa sobre o início do benefício: a) a data do óbito do segurado, se a pensão por morte for requerida até trinta dias após; b) a DER, caso o pedido seja formulado em prazo superior a trinta dias a partir da data do falecimento; c) da decisão judicial, nas hipóteses de declaração de morte presumida. Se o dependente for incapaz, o benefício será devido desde o óbito, mesmo que pleiteado em lapso temporal superior a 30 dias9. A extinção da pensão ocorre com a cessação da qualidade de dependente, em quatro principais situações: a) o óbito do pensionista; b) pela emancipação10 do filho ou do irmão, ou quando completar os 21 anos de idade11; c) a cessação da invalidez do dependente que recebia o benefício em virtude dessa condição, verificada por meio de perícia; d) e a adoção, por outrem, do filho que recebia o benefício de pai e/ou mãe biológicos (art. 77, § 2º, da Lei nº 8.213/91, e art. 114 do regulamento). O revogado art. 105, I, ‘b’, do regulamento, preceituava expressamente que o benefício de pensão por morte seria devido desde o óbito ao dependente menor de 16 anos de idade, independentemente da DER, e também caso formulasse o requerimento em até 30 dias após completar essa idade. Sobre o assunto: “PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CONJUGE E FILHAS DO de CUJUS. ESPOSO FALECIDO. DIB DATA DO ÓBITO. INTERESSE de MENOR ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. INOCORRÊNCIA de PRESCRIÇÃO OU DECADÊNCIA. NÃO APLICAÇÃO DO ART. 74 DA LEI 8.213/91. RECURSO PROVIDO. DIB FIXADA NA DATA DO ÓBITO COM EFEITOS FINANCEIROS DIFERENCIADOS” (1ª Turma Recursal do Mato Grosso, Processo 200836007002828, rel. Juiz Federal José Pires da Cunha, j. 06/02/2009, DE 19/02/2009). Ainda: “(...) Em se tratando de pensionista menor impúbere, a data de início do benefício de pensão por morte será sempre a data do óbito do instituidor, não incidindo a regra do art.74, II, da Lei 8.213/91, visto que contra o incapaz não corre prazo prescricional” (Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Incidente de Uniformização 200670950126565, rel. Juíza Federal Luísa Hickel Gamba, j. 22/08/2008, DE 10/09/2008). 10 O art. 114, II, do Decreto nº 3.048/99 excetua da emancipação a colação de grau científico em curso de ensino superior. Logo, nessa situação, o dependente continua a receber o benefício, até completar os 21 anos de idade, ou se emancipar por alguma das demais hipóteses previstas no parágrafo único do art. 5º do Código Civil (concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos; casamento; exercício de emprego público efetivo; e estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria). 11 Sobre o assunto, surgiu teoria defendendo a possibilidade de recebimento da pensão pelo dependente até os 24 anos de idade, desde que seja estudante de curso universitário. Todavia, esse entendimento não encontrou acolhida nos tribunais. A Súmula nº 74 do TRF preceitua que “extingue-se o direito à pensão previdenciária por morte do dependente que atinge 21 anos, ainda que estudante de curso superior”. A Súmula nº 30 das Turmas Recursais do Espírito Santo prevê: “O fato do dependente do segurado falecido ser estudante universitário, não autoriza a prorrogação da pensão por morte até os 24 anos de idade, levando-se em conta que, após esta data, há a possibilidade de prosseguimento dos estudos concomitantemente ao desenvolvimento de atividades laborativas. Ademais, não se aplica na hipótese a regra prevista no art. 35, § 1º da Lei 9.250/95, tendo em vista que a norma se refere especificamente ao Imposto de Renda”. Similar é o teor da Súmula nº 37 da 1ª Turma Recursal de Minas Gerais: “É incabível a extensão do pagamento da pensão por morte ao estudante universitário maior de vinte e um anos de idade”. 9
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3. Concubinato e União Estável: Delimitação dos Conceitos O concubinato, no direito de família, sempre foi relacionado com a união entre homem e mulher, sem a formalização do casamento. Orlando Gomes salientava que a família podia derivar de três fontes (casamento, concubinato e adoção), e que o concubinato correspondia à união estável12. Distinguia-se, assim, o concubinato “puro” (não adulterino) do “impuro” (ou adulterino), que era aquele em que a pessoa vivia com o cônjuge e, ao mesmo tempo, mantinha relacionamento com concubino(a). Todavia, esse não é o sentido atual do termo, segundo o art. 1.727 do novo Código Civil: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. Por isso, reconhecida a união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, da Constituição, e art. 1.723, CC), há quem adote só uma modalidade de concubinato, que era aquele designado de impuro ou adulterino13. Porém, o concubinato não se limita a esse caso, e mesmo com a regulamentação do novo Código Civil abrange outras situações, sendo o casamento somente uma delas. Com fundamento nos impedimentos listados pelo art. 1.521, CC, há concubinato caso a relação seja entre: a) ascendentes e descendentes, seja o parentesco natural (consanguíneo) ou civil (de outra origem, como, por exemplo, a adoção); b) os afins em linha reta14; c) o adotante com quem foi cônjuge do adotado, e o adotado com quem o foi do adotante; d) os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e os demais colaterais, até o terceiro grau, inclusive; e) o adotado com o filho do adotante; f) as pessoas casadas; g) e cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. O § 2o do art. 1.723 esclarece ainda que as causas suspensivas do casamento15 não impedem a
GOMES, Orlando. Direito de família. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 33 e 42. Nesse sentido é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves: “A expressão ‘concubinato’ é hoje utilizada para designar o relacionamento amoroso envolvendo pessoas casadas, que infringem o dever de fidelidade (adulterino)” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: direito de família. v. 2. 8. ed. São Paulo; Saraiva, 2002, pp. 155-156). 14 A afinidade consiste no vínculo de parentesco existente com os parentes do cônjuge ou companheiro. Nos termos do § 1º do art. 1.595 do CC, “o parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro”. Assim, considerando que o impedimento envolve os afins em linha reta, só abrange os ascendentes e descendentes, não sendo vedado o casamento ou união estável com irmão de ex-cônjuge ou companheiro. 15 O art. 1.523, CC, prevê que: “Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas”. Nessas situações o casamento não é nulo ou anulável, mas apenas irregular, e tem obrigatoriamente o regime de separação de bens (art. 1.641, I, do CC). Busca-se, com isso, tutelar os interesses do ex-cônjuge, dos sucessores, de terceiros, de tutelados ou curatelados, e podem deixar de ser aplicados, quando se comprovar a inexistência de prejuízo para tais pessoas (parágrafo único do art. 1.523). 12 13
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existência de união estável. Portanto, na configuração atual, o concubinato só será adulterino (“impuro”) se for simultâneo ao casamento (item ‘f’), e não adulterino nas demais hipóteses (nas letras ‘a’ a ‘e’ também se denomina o concubinato de incestuoso, por derivar o impedimento de relações de parentesco). No entanto, não resta dúvida que o concubinato não se confunde com a união estável, pois abrange relações entre pessoas impedidas de casar. Dentre as limitações impostas pelo Código Civil, a concubina de testador casado não pode ser nomeada herdeira ou legatária, a menos que este, sem que haja culpa daquela, esteja separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos (art. 1.801, III). Porém, o testador pode arrolar como herdeiro ou legatário o filho de sua concubina, desde que também seja seu filho (art. 1.803). Em síntese, o concubinato não gera direitos no direito de família16, podendo somente produzir efeitos nos direitos reais e das obrigações. Explica-se: por ser considerado uma sociedade de fato, mas não uma entidade familiar, a concubina não pode ser equiparada à esposa ou companheira, mas pode pleitear seus direitos reais ou decorrentes de obrigação, principalmente a constituição de patrimônio comum. Nesse sentido, a Súmula 380 do STF preceitua que “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. No direito previdenciário, o § 3º do art. 16 da Lei nº 8.213/91 dispõe que “considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal”. Por sua vez, o art. 226, § 3º, da Constituição preceitua que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. No mesmo sentido, o art. 1.723, do Código Civil prevê que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Do texto constitucional, destaca-se que a união estável pressupõe a possibilidade de conversão em casamento, logo, a contrario sensu, não se pode reconhecê-la quando existir impedimento para o matrimônio. Portanto, a legislação previdenciária expressamente segue o preceito
16
Excepcionalmente, alguns institutos vinculados ao direito de família podem ser aplicados ao concubinato, como a separação de corpos: “CONCUBINA. SEPARAÇÃO DE CORPOS. MANDADO DE SEGURANÇA. A CONCUBINA TEM O DIREITO LIQUIDO E CERTO DE VER APRECIADO SEU PEDIDO DE SEPARAÇÃO DE CORPOS, CUJO PROCESSO NÃO PODE SER EXTINTO SOB A ALEGAÇÃO DE QUE TAL PROVIDENCIA SOMENTE CABE AOS CASADOS, ESTANDO ELA LIVRE PARA SEGUIR O SEU CAMINHO, ABANDONANDO LAR E FILHOS” (STJ, ROMS5422/SP, 4ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 24/04/1995, DJ 29/05/1995, p. 15517).
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constitucional (e não poderia ser diferente), portanto, não se pode reconhecer a dependência de pessoa impedida de casar com o segurado, tampouco conferir proteção à situação ilegal de concubinato. Recentemente, o Decreto nº 6.384/2008 alterou a redação do § 6º do art. 16 do Decreto nº 3.048/99: em sua redação originária previa que “considerase união estável aquela verificada entre o homem e a mulher como entidade familiar, quando forem solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, ou tenham prole em comum, enquanto não se separarem”; em seu texto atual: “Considera-se união estável aquela configurada na convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com intenção de constituição de família, observado o § 1º do art. 1.723 do Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002”. Apesar de retirar a locução “quando forem solteiros, separados judicialmente, separados ou viúvos” como requisito para o reconhecimento da união estável, não se pode dizer que o INSS deverá reconhecer a união estável entre concubinos, mesmo que o segurado ainda conviva com seu cônjuge. A interpretação do regulamento, em compatibilidade com a lei regulamentada, permite afirmar somente que o Decreto nº 6.384/2008 passou a admitir o reconhecimento da união estável entre concubinos a partir do momento em que o segurado estiver separado de fato (o que não era aceito pela redação anterior, que exigia a separação judicial, mas já era permitido pela redação genérica do § 3º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, em uma interpretação conforme a Constituição e a regulamentação do assunto no Código Civil). Excepcionalmente, em relação à pessoa casada, afasta-se o concubinato, logo, pode ser configurada a união estável, se estiver separada de fato ou judicialmente (§ 1o do art. 1.723)17. Portanto, apenas nessa hipótese o concubinato pode ser convertido em união estável: quando o segurado, impedido de manter união estável por ser casado, estiver separado (de fato ou judicialmente); esclarece-se que a separação judicial é causa de término da sociedade conjugal, mas somente o divórcio e o óbito de um dos cônjuges são causas de dissolução do casamento, nos termos do art. 1.571, caput e § 1º, do novo Código Civil. Por outro lado, relações afetivas (ainda que não eventuais) entre ascendentes, descendentes, afins em linha reta, irmãos, e as demais previstas no art. 1.521, do Código Civil, não podem caracterizar a união estável, mesmo que as duas pessoas não sejam casadas. Flávio Tartuce sustenta que “(...) o reconhecimento da separação de fato dos cônjuges, pelo desaparecimento do amor e do afeto, os amantes podem ser 17
Flávio Tartuce sustenta que a separação extrajudicial prevista no art. 1.124-A do CPC também está abrangida por esse dispositivo do CC (TARTUCE, Flávio. Separados pelo casamento. Um ensaio sobre o concubinato, a separação de fato e a união estável. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2119, 20 abr. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12653>. Acesso em: 21 abr. 2009).
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alçados à condição de companheiros, surgindo uma entidade familiar nos termos do art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988”18. Em outras palavras, com a mera separação de fato da pessoa impedida de casar, os concubinos podem ter direito ao reconhecimento da união estável19; caso contrário, os institutos não se confundem. 4. Direito da Concubina à Pensão por Morte A possibilidade – ou não – da pessoa que vive em concubinato ter direito à pensão por morte do segurado falecido constitui questão controvérsia nas turmas recursais e tribunais brasileiros de segunda instância, contudo, está pacificada nos tribunais superiores. A 1ª Turma do STF possui precedentes sobre o assunto, abrangendo o RGPS e o regime estatutário, negando o direito à concubina, e distinguindo o concubinato da união estável: “COMPANHEIRA E CONCUBINA - DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL - PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO - SERVIDOR PÚBLICO - MULHER CONCUBINA - DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrandose impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina” (RE 397762/BA, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 03/06/2008, DJ e 11/09/2008). Por outro lado, a 2ª Turma do STF, no julgamento do RE 135780/SP, entendeu-se que a separação de fato do de cujus por período superior a 20 anos, a ausência civil de sua esposa, e a convivência em concubinato durante esse intervalo posterior, motivam o direito da concubina à pensão por morte (o que não contraria a decisão anterior, tendo em vista que a separação de fato permite o reconhecimento da união estável): TARTUCE, Flávio. Separados pelo casamento. Um ensaio sobre o concubinato, a separação de fato e a união estável. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2119, 20 abr. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto.asp?id=12653>. Acesso em: 21 abr. 2009. 19 “CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. ALIMENTOS. COMPANHEIRO CASADO. No caso de pessoa casada a caracterização da união estável está condicionada à prova da separação de fato. Agravo regimental não provido” (STJ, AgRg no Ag 670502/RJ, 3ª Turma, rel. Min. Ari Pargendler, j. 19/06/2008, DJe 15/08/2008). 18
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“PRINCÍPIO DA LEGALIDADE - VIOLÊNCIA CONFIGURAÇÃO - PENSÃO - EX-CONTRIBUINTE CASADO - DIREITO DA CONCUBINA - LEI COMPLEMENTAR N. 500/87-SP. Não é crível que órgão investido do oficio judicante admita a existência de diploma legal dispondo em determinado sentido e decida de forma diametralmente oposta. Os provimentos judiciais são formalizados a partir de interpretação da lei regedora da espécie. Isto ocorre quando o acórdão proferido revela a analise de situação concreta em que ex-contribuinte estava separado de fato e vivendo em concubinato há mais de vinte anos, resultando no reconhecimento, com base em legislação local - Lei Complementar n. 500/87-SP, do direito da concubina a pensão, posto que contemplada como beneficiária obrigatória de contribuinte solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado. A referencia ao terceiro ‘status’ encontra justificativa socialmente aceitável não em simples apego a forma, mas na necessidade de serem afastadas situações ambíguas, o que não se configura quando a convivência decorrente do casamento haja cessado há duas décadas, momento em que teve inicio o concubinato” (RE 135780/SP, 2ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/02/1994, DJ 24/06/1994, p. 16637). Em decisão não unânime mais recente, com ementa similar ao citado RE 397762/BA, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal manteve o entendimento de que a concubina não tem direito ao benefício de pensão por morte. No RE 590779/ ES, também relatado pelo Min. Marco Aurélio, concluiu-se que a concubina não tem direito sequer à cota de pensão por morte de segurado que era casado e ainda convivia com sua esposa na data do óbito. Por quatro votos contra um, o STF reformou decisão da Turma Recursal do Espírito Santo, e ratificou o seu entendimento sobre o assunto. No caso concreto, a autora do processo originário pretendia o recebimento de cota da pensão por morte, sob a alegação de que conviveu durante mais de 30 anos com o segurado falecido, paralelamente ao período em que esteve casado, e com ele teve uma filha. No acórdão recorrido se reconheceu a existência de união estável, o que foi afastado pelo STF. O relator, em seu voto, destacou que o concubinato é costumeiramente “(...) ligado à união estável, instituto por vezes, em visão distorcida, potencializado a ponto de suplantar o próprio casamento e os vínculos deste decorrentes”20. Afirmou ainda que a união estável protegida pelo art. 226, § 3º, da Constituição, não 20
RE 590779/ES, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 10/02/2009, DJe 26/03/2009.
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abrange relação de concubinato, a qual não pode prevalecer sobre a proteção conferida ao casamento21. Em suas palavras, “o concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequências, do casamento. Gera, quando muito, a denominada sociedade de fato”. Acompanhando o relator, o Min. Menezes Direito ressaltou que a manutenção contínua pelo segurado de dois relacionamentos, com a esposa e a concubina, impede o reconhecimento de união estável em relação à segunda: “Não há união estável quando existe duplicidade”. No mesmo sentido foram os votos do Min. Ricardo Lewandowski e da Min. Cármen Lúcia, a qual afirmou que “(...) se há outra mulher, não há como estabilizar a relação. Outra mulher é sempre um fator de instabilidade”. Por outro lado, o Min. Carlos Britto, que proferiu o voto vencido, asseverou que “(...) se há um núcleo doméstico estabilizado no tempo, é dever do Estado ampará-lo como se entidade familiar fosse, como real entidade familiar (...)”. Em situações semelhantes, envolvendo – ou não – segurados do RGPS, as 3ª. 4ª e 5ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça seguiram o entendimento do STF: “(...) - A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que esteja o companheiro(a) separado de fato, enquanto que a figura do concubinato repousa sobre pessoas impedidas de casar. - Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino.
21
Extrai-se de seu voto: “Sob o ângulo da busca a qualquer preço da almejada justiça, considerado enfoque estritamente leigo, não merece crítica o raciocínio desenvolvido. Entrementes, a atuação do Judiciário é vinculada ao Direito posto. Surgem óbices à manutenção do que decidido a partir da Carta Federal. Para ter-se como configurada a união estável, protegida pela Constituição, torna-se necessária prática harmônica com o ordenamento jurídico em vigor. Tanto é assim que, no artigo 226 da Lei Fundamental, tem-se como objetivo maior da proteção o casamento. Confiram com o próprio preceito que serviu de base à decisão da Turma Recursal. O reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar pressupõe possibilidade de conversão em casamento. A manutenção da relação com a autora se fez à margem e, diria mesmo, mediante discrepância do casamento existente e da ordem jurídicoconstitucional. À época, em vigor se encontrava, inclusive, o artigo 240 do Código Penal, que tipificava o adultério. A tipologia restou expungida pela Lei nº 11.106/05. (...) Abandonem a tentação de implementar o que poderia ser tida como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe o respeito às balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil (...)”.
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330 - Não há, portanto, como ser conferido status de união estável a relação concubinária concomitante a casamento válido” (REsp 931155/RS, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07/08/2007, DJ 20/08/2007, p. 281)22.
“CIVIL - FAMÍLIA - RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE MULHER E HOMEM CASADO, MAS NÃO SEPARADO DE FATO - IMPOSSIBILIDADE - OFENSA AO ARTIGO 226, § 3º, DA MAGNA CARTA MATÉRIA AFETA AO STF – ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO ÀS LEIS 8.971/94 E 9.278/96 - SÚMULA 284/STF - INFRINGÊNCIA À DISPOSITIVOS DA LEI 10.406/02 FATOS OCORRIDOS NA VIGÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ANTERIOR - INCIDÊNCIA DESTA – DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL – COMPROVAÇÃO” (REsp 684407/ RS, 4ª Turma, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 03/05/2005, DJ 27/06/2005, p. 411)23. “RECURSO ESPECIAL. MILITAR. PENSÃO POR MORTE. RATEIO ENTRE CONCUBINA E VIÚVA. IMPOSSIBILIDADE. I - Ao erigir à condição de entidade familiar a união estável, inclusive facilitando a sua conversão em casamento, por certo que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional não contemplaram o concubinato, que resulta de união entre homem e mulher impedidos legalmente de se casar. Na espécie, o acórdão recorrido atesta que o militar convivia com sua legítima esposa. II - O direito à pensão militar por morte, prevista na Lei nº 5.774/71, vigente à época do óbito do instituidor, só deve ser deferida à esposa, ou a companheira, e não à concubina. Recurso especial provido” (REsp 813175/RJ, 5ª Turma, rel. Min. Felix Fischer, j. 23/08/2007, DJ 29/10/2007, p. 299)24.
No mesmo sentido: “(...) Há distinção doutrinária entre ‘companheira’ e ‘concubina’. Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse. Concubina é a mulher que se une, clandestinamente ou não, a homem comprometido, legalmente impedido de se casar. Na condição de concubina, não pode a mulher ser designada como segurada pelo cônjuge adúltero, na inteligência dos artigos 1.177 e 1.474 do Cód. Civil de 1916. Precedentes” (REsp 532549/RS, 3ª Turma, rel. Min. Castro Filho, j. 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269). 23 Do mesmo órgão julgador: “PREVIDENCIARIO. CONCUBINATO. PENSÃO. 1. AS PESSOAS TEM MANEIRAS INFINDAS DE VIVER SE AMANDO; O CONCUBINATO, NÃO OBSTANTE A PALAVRA QUE E FEIA, E APENAS UMA DELAS. EMBORA A CONFIGURAÇÃO, PARA FINS LEGAIS, DESSE ESTADO DE EMOÇOES DISPENSE ENDEREÇOS, (SUMULA 382, STF), HA NO CASO DESTES AUTOS EVIDENTE TENTAÇÃO AO REEXAME DE PROVAS, O QUE NÃO SE ADMITE EM RECURSO ESPECIAL, (SUMULA 7, STJ). 2. RECURSO CONHECIDO MAS IMPROVIDO” (REsp 27592/SP, 5ª Turma, rel. Min. Edson Vidigal, j. 08/06/1994, DJ 19/12/1994, p. 35324). 24 Igualmente: “(...) A concubina se distingue da companheira, pois esta última tem com o homem união estável, em caráter duradouro, convivendo com o mesmo como se casados fossem. A proibição inserta no artigo 1.719, III do Código Civil não se estende à companheira de homem casado, mas separado de fato” (REsp 192976/RJ, 4ª Turma, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 26/09/2000, DJ 20/11/2000, p. 299). 22
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Recentemente, a 5ª Turma ratificou sua posição: “PROCESSO CIVIL. ANÁLISE DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. NÃO CABIMENTO. TEMA NOVO EM AGRAVO REGIMENTAL. PRECLUSÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA EM RECURSO ESPECIAL. POSSIBILIDADE. ARTIGO 557 DO CPC. 1. A ofensa a princípios ou dispositivos constitucionais haveria de ser suscitada em sede de recurso extraordinário, nos termos do art. 102, III, da Constituição Federal. 2. Inviável, em sede de regimental, a apresentação de argumento que, sequer, foi ventilado nas contra-razões ao recurso especial. 3. Pacífica a possibilidade de o relator decidir monocraticamente o mérito do recurso, amparado em súmula ou jurisprudência dominante deste Tribunal Superior ou do Supremo Tribunal Federal. PREVIDENCIÁRIO. CONCUBINATO ADULTERINO. RELAÇÃO CONCORRENTE COM O CASAMENTO. EMBARAÇO À CONSTITUIÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL APLICAÇÃO. IMPEDIMENTO. 1. A jurisprudência desta Corte prestigia o entendimento de que a existência de impedimento para o matrimônio, por parte de um dos componentes do casal, embaraça a constituição da união estável. 2. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp 1016574/ SC, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. 03/03/2009, DJe 30/03/2009). Nesse julgamento, com base em precedentes do próprio STJ e do STF, o relator aplicou o art. 557, § 1º-A do CPC25, e monocraticamente decidiu os recursos interpostos por ambas as partes, dando provimento ao recurso especial interposto pelo INSS e julgando improcedente o pedido inicial26. Em consequência, a autora interpôs agravo regimental, que foi julgado pelo órgão colegiado, o qual, por quatro votos contra um, manteve a decisão do relator e negou provimento ao recurso. Na decisão, a 5ª Turma manteve o entendimento de que o concubinato não pode ser equiparado à união estável, tendo em vista que há o impedimento para o casamento de um dos conviventes (casamento, sem separação judicial
“§ 1o-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”. 26 REsp 1016574/SC, decisão monocrática, rel. Min. Jorge Mussi, j. 28/10/2008, DJe 04/11/2008. 25
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ou de fato). Em seu voto, o Min. Jorge Mussi destacou que “não há como prevalecer a argumentação da agravante, de ser possível aproveitar à concubina os direitos decorrentes da união estável. Na hipótese, ficou claro que a alegada união concorreu com o casamento”. De outro lado, em seu voto vencido, o Min. Napoleão Nunes Maia Filho salientou que a união estável independe do estado civil dos conviventes. De outro lado, há um precedente da 5ª Turma do STJ aparentemente reconhecendo a divisão da pensão por morte entre a esposa e a concubina: “RECURSO ESPECIAL. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. PARTILHA DA PENSÃO ENTRE A VIÚVA E A CONCUBINA. COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL E A NÃO SEPARAÇÃO DE FATO DA ESPOSA. CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO. ‘Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo’. Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime, no plano da assistência social Acórdão recorrido não deliberou à luz dos preceitos legais invocados. Recurso especial não conhecido” (REsp 742685/RJ, 5ª Turma, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 04/08/2005, DJ 05/09/2005, p. 484). Nesse caso concreto, todavia, houve reconhecimento da união estável entre a concubina e o segurado falecido pelo próprio INSS, o que motivou o julgado do juízo a quo. Porém, no STJ, o relator sequer conheceu o recurso especial, por ausência de prequestionamento, logo, o mérito da controvérsia não foi apreciado. O TRF da 1ª Região tem precedentes no sentido de não ser possível o direito da concubina à pensão por morte, tampouco a equiparação do concubinato à união estável: “CONSTITUCIONAL. DIREITO DE FAMÍLIA. PENSÃO POR MORTE. VIÚVA. MATRIMÔNIO NÃO FOI DISSOLVIDO ATÉ O ÓBITO DO CÔNJUGE. CONCUBINA. INEXISTÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL. IMPOSSIBILIDADE. 1 - O art. 1.727 do Código Civil prevê que relações não eventuais entre o homem e a mulher - impedidos de casar, constituem concubinato, ao qual não se iguala a união estável, por não estar coberto pela garantia dada pela Constituição Federal.
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333 2 - O concubinato não pode ser caracterizado como união estável, uma vez que o matrimônio não foi dissolvido, óbice do art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988” (AC 199901000281162/MG, 2ª Turma, rel. Juíza Federal Adverci Rates Mendes de Abreu, j. 17/12/2008, DJ 09/03/2009, p. 132)27.
Por outro lado, o mesmo tribunal tem decisões reconhecendo o direito à pensão da concubina, mas confundindo o concubinato com a união estável: “PREVIDENCIÁRIO. SEPARAÇÃO DE FATO. COMPANHEIRA QUE DEMONSTRA A EXISTÊNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO DA ESPOSA E DA CONCUBINA AO RATEIO DA PENSÃO POR MORTE. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PRESUMIDA. ART. 13, LEI Nº 3.807/60. 1. Demonstrada, pela Apelada, a existência da união estável por cerca de nove anos. 2. A dependência econômica da esposa e da companheira é presumida, a teor do art. 13 da Lei nº 3.807/60. 3. É legítima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos (Súmula 159 do extinto Tribunal Federal de Recursos). Precedentes (TRF 1ª Região, 1ª Turma, AC 2000.01.00.068288-4/BA, Rel. Convocado Juiz Federal Itelmar Raydan Evangelista DJ de 03/09/2007, p.10)” (AC 199701000287754/MG, 2ª Turma, rel. Des. Federal Francisco de Assis Betti, j. 02/04/2008, DJ 14/08/2008, p. 10)28.
No mesmo sentido: “CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - PENSÃO POR MORTE - QUALIDADE DE DEPENDENTE - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL A JUSTIFICAR O LITISCONSÓRCIO ENTRE VIÚVA/MEEIRA E CONCUBINA - LEI Nº 8.112/90. 1. ‘Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse. Concubina é a mulher que se une, clandestinamente ou não, a homem comprometido, legalmente impedido de se casar’ (STJ, REsp 532.549/RS, Rel. Min Castro Filho, DJ de 20/6/2005). 2. Prevalecem os interesses da viúva, cujo matrimônio não foi dissolvido até o óbito do cônjuge, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa da segunda à pensão por morte instituída pelo de cujus” (AC 200001000500524/MA, 2ª Turma, rel. Juíza Federal Kátia Balbino de Carvalho Ferreira, j. 29/10/2007, DJ 13/12/2007, p. 91). 28 Nesse sentido: AC 200138000362530/MG, 1ª Turma, rel. Juiz Federal Itelmar Raydan Evangelista, j. 19/05/2008, DJ 02/09/2008, p. 18; AC 200201990308342/MG, 2ª Turma, rel. Juiz Federal Iran Velasco Nascimento, j. 17/10/2007, DJ 22/11/2007, p. 26. Ainda: “(...) 3. O estado civil de casado do falecido não constitui óbice à concessão do benefício à apelante, em conjunto com a viúva, desde que as provas produzidas não deixem dúvidas acerca da existência de um relacionamento estável e duradouro, o que ocorreu no caso dos autos. Com efeito, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, confere ao Estado o dever de oferecer proteção especial à família, sendo certo que negar o direito à apelante tão-somente por esse fato é desconhecer por completo uma realidade fática que concretamente existiu” (AC 199841000031765/RO, 1ª Turma, rel. Juíza Federal Sônia Diniz Viana, j. 02/07/2008, DJ 29/07/2008, p. 35). 27
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No TRF da 2ª Região também se encontram diversos julgados não diferenciando o concubinato da união estável29. De outro lado, examinando adequadamente a questão: “(...) I - Sendo separado judicialmente o instituidor do benefício, e mantendo convivência duradoura também com outra mulher, caracterizada está a situação de estabilidade do relacionamento. II - Havendo prova de que o de cujus convivia de forma estável com a concubina, e que esta fosse sua dependente econômica, não obstante fosse separado judicialmente e prestasse alimentos à sua ex-esposa, faz jus a companheira ao pensionamento a ser partilhado com os demais dependentes” (REO 199751010038379/RJ, 1ª Turma, rel. Des. Federal Abel Gomes, j. 09/12/2003, DJ 21/01/2004, p. 50)30. O mesmo ocorre no TRF3, que possui decisões não distinguindo os institutos31, e outras aplicando-os corretamente 32. No TRF4 encontram-se precedentes diferenciando a união estável do concubinato, mas entendendo ser cabível a concessão da pensão por morte para quem vive em ambas as condições:
“(...) I – Comprovada a vida em comum, ainda que não exclusiva, faz jus a concubina à pensão estatutária decorrente da morte do seu instituidor, porque a mantença de duas famílias pelo instituidor, na ocasião de seu falecimento, não constitui óbice ao pagamento do benefício” (AC 200051010325369/RJ, 6ª Turma, rel. Des. Federal André Fontes, j. 12/11/2003, DJ 16/09/2004, p. 122). Também: AGTAC 200402010082853/RJ, 2ª Turma Especializada, rel. Des. Federal Sandra Chalu Barbosa, j. 20/02/2008, DJ 26/02/2008, p. 942; AMS 200102010206012/RJ, 8ª Turma Especializada, rel. Des. Federal Raldênio Bonifácio Costa, j. 13/05/2008, DJ 27/05/2008, p. 335. 30 Igualmente: “(...) 1 – No presente caso, a esposa do finado servidor público foi obrigada a ratear a pensão por morte com suposta companheira dele (ou ‘convivente’, como estabelece a Lei nº 9.278/96). Trata-se do chamado concubinato adulterino. 2 – Dispõe o artigo 226, parágrafo 3º, da vigente Constituição da República que ‘para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento’. 3 – Permitir que suposta amásia de servidor receba pensão pela sua morte, em detrimento da esposa legítima seria permitir o absurdo. A norma constitucional prevê que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento, o que, obviamente, é impossível se um dos conviventes for casado.” (AC 200102010142708/RJ, 2ª Turma, rel. Des. Federal Antonio Cruz Netto, j. 29/05/2002, DJ 11/07/2002). 31 “(...) I - O direito ao benefício de pensão por morte de servidor público federal civil, ainda que o óbito tenhase dado na vigência da Lei 1.711/52, passou a ser devido, a partir do advento da Constituição Federal de 1988, a quem ostente a condição de concubina, companheira ou convivente, conforme o caso” (AI 200103000374327/SP, 2ª Turma, rel. Juíza Federal Cecília Mello, j. 03/03/2009, DJ 19/03/2009, p. 596). Ainda: “(...) 1. Nos termos da legislação em vigor, só se defere a pensão por morte à concubina quando não paire dúvida acerca da existência da ‘união estável’” (AC 200103990426491/SP, 2ª Turma, rel. Juíza Federal Marisa Santos, j. 25/02/2003, DJ 02/04/2003, p. 504). 32 “PENSÃO POR MORTE - ESPOSA E FILHOS FRUTO DE CASAMENTO E DE CONCUBINATO BENEFICIÁRIOS - CONCUBINA NÃO BENEFICIÁRIA FACE À AUSÊNCIA DE REQUISITO LEGAL RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A fruição da pensão por morte tem como requisito a implementação de todos os pressupostos legais. 2. A Autora - concubina do falecido segurado - não faz jus à pensão por morte do de cujus consoante artigo 10, §3º do Decreto nº 89.312/84,vigente na data do óbito. Os filhos menores, frutos do concubinato com o de cujus, são beneficiários na qualidade de dependentes” (AC 90030338779/ SP, 5ª Turma, rel. Juíza Federal Leide Cardoso, j. 14/10/2002, DJ 17/01/2003, p. 1285). 29
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335 “PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. ESPOSA E CONCUBINA. RATEIO. POSSIBILIDADE. 1. Para a concessão do benefício de pensão por morte, no caso de companheira, há necessidade de comprovação de união estável. 2. Na hipótese, ainda que verificada a ocorrência do concubinato impuro, não se pode ignorar a realidade fática, concretizada pela longa duração da união do falecido com a concubina, ainda que existindo simultaneamente dois relacionamentos, razão pela qual é de ser deferida à autora o benefício de pensão por morte na quota-parte que lhe cabe, a contar do ajuizamento da ação” (AC 200072040009150/SC, 5ª Turma, rel. Des. Federal Rômulo Pizzolatti, j. 12/08/2008, DE 15/09/2008)33.
Por outro lado, também há neste tribunal julgados confundindo-os34. Já o TRF da 5ª Região equipara a concubina à companheira, expressamente presumindo sua dependência econômica em relação ao segurado35. A Súmula 159 do extinto TFR prevê que “é legitima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”. Porém, não pode ser aplicada a situações de concubinato, tendo em vista que os requisitos referidos no enunciado são aqueles previstos no art. 11 do Decreto nº 89.312/84, que demanda a vida em comum, entre outras exigências (designação da companheira como dependente e convívio por no mínimo 5 anos, ou filho em comum, etc.). A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, seguindo a orientação do STF, decidiu recentemente que a concubina não tem direito à pensão por morte, considerando que a relação que o segurado mantinha era paralela ao seu casamento (Processo 200640007098359, rel. Juíza Federal Jacqueline Bilhalva, j. 24/04/2009).
Nesse sentido: AC 200072050037475/SC, Turma Suplementar, rel. Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, j. 14/03/2007, DE 03/04/2007; AC 200370000003363/PR, 3ª Turma, rel. Juíza Federal Vânia Hack de Almeida, j. 10/04/2006, DJ 02/08/2006, p. 367; APELREEX 200571000100884/SC, 6ª Turma, rel. Juiz Federal Alcides Vettorazzi, j. 29/10/2008, DE 06/11/2008. Por outro lado, a 5ª Turma entendeu ser devida a restituição de valores pagos à concubina a título de pensão por morte, em situação na qual esta induziu em erro o INSS, ao se qualificar como companheira do segurado falecido: AC 200271080037873/RS, 5ª Turma, rel. Des. Federal Rômulo Pizzolatti, j. 29/07/2008, DE 25/08/2008. 34 AC 200372080116834/SC, 3ª Turma, rel. Juíza Federal Vânia Hack de Almeida, j. 13/03/2007, DE 11/04/2007; AC 200271000143018/RS, 4ª Turma, rel. Juiz Federal Márcio Antônio Rocha, j. 05/03/2008, DE 24/03/2008. 35 Concedendo a pensão, sem diferenciar o concubinato da união estável: AR 200505000045913/CE, Pleno, rel. Des. Federal Marcelo Navarro, j. 03/09/2008, DJ 29/09/2008, p. 188; AC 200383000212302/PE, 1ª Turma, rel. Des. Federal José Maria Lucena, j. 06/03/2008, DJ 13/06/2008, p. 112; AC 200481000209170/PB, 3ª Turma, rel. Des. Federal Geraldo Apoliano, j. 31/05/2007, DJ 29/08/2007, p. 855; AC 200282010046660/PB, 4ª Turma, rel. Des. Federal Marcelo Navarro, j. 29/07/2008, DJ 18/08/2008, p. 1035. 33
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Entre as Turmas Recursais também há controvérsia, com entendimentos antagônicos sobre a possibilidade – ou não – de a concubina ter direito à pensão por morte. A 2ª Turma Recursal de Santa Catarina acolheu tal pedido: “PENSÃO POR MORTE. CONCUBINATO IMPURO OU ADULTERINO. EFEITOS PREVIDENCIÁRIOS. POSSIBILIDADE. RATEIO DO BENEFÍCIO ENTRE ESPOSA E COMPANHEIRA. TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O benefício da pensão visa, precipuamente, à proteção da família. O conceito de entidade familiar alargou-se substancialmente com o passar dos anos, seja pela inserção de novos, por assim dizer, tipos familiares, no texto Constitucional (união estável e núcleos monoparentais); seja pela própria realidade sociológica, a nos apresentar situações não-abrangidas pelo ordenamento e que, nem por isso, devam ficar à margem da tutela jurisdicional. As ‘famílias’ decorrentes do chamado concubinato impuro é caso típico. 2. Pouco importa se o relacionamento existente entre recorrente e segurado ocorrera simultaneamente à vigência e constância do casamento deste com a esposa. O que importa é que foi mais que um flerte; um namoro; uma relação episódica e efêmera. Esta convivência, pública e notória, é hábil a gerar efeitos previdenciários” (Processo 200772950096314, rel. Juiz Federal Marcelo Cardozo da Silva, j. 19/11/2008). Nesse sentido há precedentes da 1ª Turma Recursal do Distrito Federal36 e da 1ª Turma Recursal do Espírito Santo37. A 1ª Turma Recursal da Bahia38 e a 2ª Turma Recursal de São Paulo39 têm julgados confundindo o concubinato com a união estável e, consequentemente, admitindo o direito da concubina à pensão. Seguindo o entendimento contrário existem decisões da 1ª Turma Recursal de Goiás40 e da 1ª Turma Recursal de Rondônia, sendo que nesta o
“(...) Demonstrado o concubinato e, bem assim, a dependência econômica, é de se reconhecer em favor da Recorrida o direito à percepção da pensão vitalícia, observada a divisão com outra beneficiária” (Processo 200234007059870, rel. Juiz Federal Marcus Vinícius Reis Bastos, j. 27/11/2002, DJ 27/11/2002). Ainda: Processo 200234007059230, rel. Juiz Federal Marcus Vinícius Reis Bastos, j. 06/11/2002, DJ 26/08/2003. 37 Processo 200350500046149/01, rel. Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik. 38 “(...) 1. A convivência longa e contínua entre um homem e uma mulher em regime de concubinato, sem qualquer obstáculo para o matrimônio caracteriza a união estável, objeto de especial proteção da lei e da Constituição Federal” (Processo 200433007230677, rel. Juiz Federal Carlos D’Avila Teixeira, j. 24/09/2004, DJ 03/10/2004). 39 Processo 200261840010100, rel. Juiz Federal Ricardo de Castro Nascimento, j. 02/03/2004. 40 Processo 200735007138095, rel. Juíza Federal Maria Divina Vitória, j. 04/09/2008, DJ 25/09/2008. 36
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relator destaca que “(...) se não é possível se outorgar validade jurídica a dois casamentos, também não é admissível fazê-lo em relação a ‘duas uniões estáveis’ eventualmente configuradas” (Processo 200741007001570, rel. Juiz Federal Élcio Arruda, j. 28/08/2007, DJ 12/09/2007). Doutrinariamente, o assunto também gera divisão. Para Marcelo Leonardo Tavares, apesar do impedimento legal, pode ser reconhecida a união estável mesmo que uma das pessoas seja casada41. Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior sustentam que o conceito de companheiro e companheira é mais amplo do que a união estável, e o art. 201, V, da Constituição, assegura a pensão por morte aos companheiros, independentemente de viverem – ou não – em união estável42. Para Marina Vasques Duarte, “mesmo quando se trata de concubinato impuro a jurisprudência tem aceito a divisão do benefício com a esposa legítima, ainda que a norma civil refute o concubinato impuro”43 (porém, como visto, o tema não constitui unanimidade, e é afastado pelos tribunais superiores). Por outro lado, Simone Barbisan Fortes e Leandro Paulsen afirmam que a união estável só pode ser reconhecida se o segurado estiver, ao menos, separado de fato, devendo ainda o dependente comprovar a união estável44. Ivan Kertzman45, Lamartino Fraca de Oliveira46, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari47, Ítalo Romano Eduardo, Jeane Eduardo e Amauri Teixeira48 seguem esse entendimento.
TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito previdenciário. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 71-77. “A Constituição, bem se vê, não restringiu o direito à pensão apenas aos companheiros que vivam em união estável, mas se ao referido dispositivo for aplicada uma interpretação que o considere constitucional, v.g., no caso de o segurado ser casado e possuir uma companheira que dele dependa, esta não poderia ser beneficiária para efeito de pensão previdenciária, pois a vigência do casamento dele impede o reconhecimento da união estável, tornando-se inclusive mais restrita que a situação anterior, pois a jurisprudência já havia se consolidado, pelo menos desde a Súmula 159 do extinto TFR, admitindo o amparo previdenciário da companheira do segurado casado” (ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo; Comentários à lei de benefícios da previdência social. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 83). 43 DUARTE, Marina Vasques. Direito previdenciário. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005, p. 59. 44 “Portanto, não fica vedada ao segurado formalmente casado, mas separado de fato, a constituição de relação de companheirismo ou união estável, com produção de efeitos previdenciários, em especial o enquadramento do companheiro(a) na condição de dependente preferencial, para fins de gozo de benefícios. Porém, ao contrário do que ocorre no usual dos casos de dependência preferencial, em tais condições o companheiro(a) deverá comprovar a dependência econômica” (FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Leandro. Direito da seguridade social: prestações e custeio da previdência, assistência e saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 79). 45 KERTZMAN, Ivan. Curso prático de direito previdenciário. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 248. 46 “Todavia, se o segurado que for casado tiver uma companheira, enquanto vivo não poderá realizar inscrição desta, senão teríamos a legalização indireta da bigamia” (OLIVEIRA, Lamartino França de. Direito previdenciário. São Paulo: RT, 2005, p. 216). 47 “É considerada união estável aquela verificada entre homem e mulher como entidade familiar, quando forem solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, ou tenham prole em comum, enquanto não se separarem” (CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 5. ed. São Paulo: LTr, 2004, p. 186). 48 EDUARDO, Ítalo Romano. EDUARDO, Jeane Tavares Aragão; TEIXEIRA, Amauri Santos. Curso de direito previdenciário. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 261. 41 42
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5. Conclusões Viu-se que há imprecisão em grande parte dos tribunais regionais federais e das turmas recursais no tratamento dos conceitos de concubinato e união estável, utilizados como se fossem sinônimos. Contudo, salientou-se que o art. 1.727 do novo Código Civil, superando a anterior classificação que também confundia os termos, designou o concubinato como as relações entre o homem e a mulher impedidos de casar. Os impedimentos estão listados no art. 1.521, CC, e são doutrinariamente divididos em concubinato adulterino e incestuoso (além de outra hipótese isolada, do cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio, consumado ou tentado, contra o seu consorte), sendo uma dessas situações a da pessoa casada. Ademais, o art. 226, § 3º, da Constituição, que reconhece a união estável como entidade familiar, ressalta na parte final que a legislação infraconstitucional deve facilitar sua conversão em casamento. Assim, como coadunar o dispositivo constitucional com o concubinato, que impede o casamento? Logo, não resta dúvida que o concubinato não se confunde com a união estável, pois abrange relações entre pessoas impedidas de casar. Se a união estável pressupõe a possibilidade de conversão em casamento, a contrario sensu, não se pode reconhecê-la quando existir impedimento para o matrimônio. Do mesmo modo, a legislação previdenciária segue o preceito constitucional (§ 3º do art. 16 da Lei nº 8.213/91), não reconhecendo a dependência de pessoa impedida de casar com o segurado, tampouco tutelando a situação ilegal de concubinato. Em uma situação, todavia, o concubinato pode se converter em união estável: quando a pessoa casada se separar de fato ou judicialmente, o que afasta o impedimento previsto no art. 1.521, VI, do Código Civil. Não há como se reconhecer a união estável se uma das pessoas for casada e não estiver, no mínimo, separada de fato; caso contrário, há concubinato. Como afirmado pelo Min. Menezes Direito em seu voto no RE 590779/ES, julgado pela 2ª Turma do STF, “não há união estável quando existe duplicidade”. Apesar de entendimento diverso em TRF’s e Turmas Recursais, prevalece no STF e no STJ a tese de que o concubinato não produz direitos no direito de família (com algumas exceções), tampouco no direito previdenciário, mas sim nos direitos reais e das obrigações. Trata-se de uma sociedade de fato, e não uma entidade familiar, motivo pelo qual a concubina não tem direito à pensão por morte.
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Sistema Progressivo - mecanismo de transformação e reintegração (ou o que se espera dele) Alexandre Pontieri Advogado em Brasília/DF; Pós-Graduado em Direito Tributário pelo CPPG - Centro de Pesquisas e Pós-Graduação da UniFMU, em São Paulo; Pós-Graduado em Direito Penal pela ESMP-SP - Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. apontieri@yahoo.com; alexandrepontieri@gmail.com
Resumo: o presente trabalho faz uma análise crítica sobre o sistema progressivo das penas, questionando se sua finalidade como mecanismo de transformação e reintegração do preso à sociedade é aplicado na prática, ou se não é uma mera ilusão. Abstract: This paper makes a critical analysis of the progressive system of penalties, questioning whether its purpose as a mechanism of transformation and reintegration of prisoners into society is applied in practice, or if it is a mere illusion. Palavras-chave: Breves considerações sobre o sistema progressivo das penas; Das Penas; Respeito à Dignidade Humana do Preso; Sistema Progressivo; Trabalho do Preso; Reabilitação do preso através do estudo. Key-words: Brief observations on the progressive system of penalties; Punishments; Respect for Human Dignity of Arrested; Progressive System; Work Arrested; Rehabilitation of the offender through the study.
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Sumário: 1- Breves considerações sobre o sistema progressivo das penas; 2 - Das Penas; 3 - Respeito à Dignidade Humana do Preso; 4 - Sistema Progressivo; 5 - Trabalho do Preso; 6 - Reabilitação do preso através do estudo; 7 – Conclusão; 8 - Bibliografia e Obras consultadas; 9 - Outras Fontes de Pesquisa. * Alexandre Pontieri “A prisão perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece. É uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime”. (Lins e Silva, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 1998) 1- Breves considerações sobre o sistema progressivo das penas O sistema progressivo das penas sempre mereceu atenção especial, principalmente com a evolução do pensamento da intervenção mínima do Direito Penal. Com o surgimento da Lei nº 8.072/90, denominada Lei dos Crimes Hediondos, viu-se surgir uma verdadeira distorção das finalidades das penas, qual seja, a ressocialização do infrator penal. A Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, no tópico que disciplina a “Aplicação da Pena” assim dispõe: “sob a mesma fundamentação do Código vigente o Projeto busca assegurar a individualização da pena sob critérios mais abrangentes e precisos. Transcende-se assim, o sentido individualizador do Código vigente, restrito à fixação da quantidade da pena, dentro de limites estabelecidos para oferecer ao arbitrium iudices variada gama de opções, que em determinadas circunstâncias pode envolver o tipo da sanção a ser aplicada”. E, continua a mesma Exposição de Motivos: “As penas devem ser limitadas para alimentarem no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da disciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal. Restringiu-se, pois, no artigo 75, a duração das penas privativas da liberdade a 30 (trinta) anos, criando-se, porém, mecanismo desestimulador do crime, uma vez alcançado este limite. Caso contrário, o condenado à pena máxima pode ser induzido a outras infrações, no presídio, pela consciência da impunidade, como atualmente ocorre. Daí a regra de interpretação contida
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no artigo 75, § 2º: “sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, computando-se, para esse fim, o tempo restante da pena anteriormente estabelecida”. A Constituição Federal em seu artigo 5º, XLI, assim dispõe: A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; Temos que, a individualização da pena é um Princípio da Humanidade da Pena e da Dignidade da Pessoa Humana. Assim, a individualização da pena é um princípio constitucional que está sendo desrespeitada em face de uma lei ordinária, a denominada lei dos crimes hediondos. Nas palavras de Montesquieu, “nem o Estado, nem sua Soberania são um fim em si mesmos; mas, estão a serviço do homem, e são limitados pelos direitos humanos”. A determinação do cumprimento da pena em regime prisional fechado, sem possibilidade de progressão para o mais benéfico representa um atentado ao Princípio da Individualização da Pena, redundando em tratamento que não atende à finalidade essencial da sanção criminal, que é a obtenção da ressocialização do condenado, ou, pode ser considerado um posicionamento correto, dentro das normas constitucionais? Não podemos esquecer o caráter ressocializador da pena e a dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa esteja presa, o que aos olhos de muitos pode parecer horrível, pois, para estas pessoas, onde já se viu um preso ter direitos? Sim, um preso tem direitos e devem ser respeitados de acordo com a Carta Magna. Cremos que o Estado Brasileiro carece de políticas públicas sérias, e o alto nível de exclusão social faz aumentar cada vez mais a criminalidade1, que depois será combatida com leis confusas e desprovidas de aspectos jurídicos
1
“O Direito Penal é o Direito à liberdade. É o conjunto de leis que estabelece o espaço de liberdade do indivíduo. O Direito Penal não pode ser utilizado como instrumento de solução dos problemas sociais; ele não pode distribuir riqueza. É preciso haver uma política social. Não peçam ao Direito Penal aquilo que ele não pode dar.”: Marco Antonio de Barros, Abalos à Dignidade do Direito Penal, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 87, nº 747, p. 485, 1998, apud Professor José Francisco de Faria Costa, excerto de anotações de aulas do curso Direito Penal Patrimonial Comercial, ministradas no Curso de Pós-Graduação, USP, setembro de 1997.
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e humanos. Assim, vamos focar nosso trabalho nestes aspectos, procurando buscar a melhor solução para um problema que precisa de respostas urgentes, sob pena de explosão do abarrotado sistema prisional brasileiro e conseqüências imprevisíveis. 2 - Das Penas Como definição, temos que “pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos”.2 “A reforma penal de 1984, tal como o fizera o CP de 1940, não adotou o sistema progressivo, mas um sistema progressivo (forma progressiva de execução), visando à ressocialização do criminoso. Assim, o art. 33, § 2º, afirma que “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado”.3 Isso é o que disciplina o art. 112 da Lei de Execução Penal4: “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso a ser determinada pelo juiz quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão”. O art. 126 da LEP5 dispõe: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena”. Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt, “a reforma penal adotou, como se constata, um sistema progressiva de cumprimento da pena, que possibilita ao próprio condenado, através de seu procedimento, da sua conduta carcerária, direcionar o ritmo de cumprimento de sua sentença, com mais ou menos rigor. Possibilita ao condenado ir conquistando paulatinamente a sua liberdade, ainda durante o cumprimento da pena, de tal maneira que a pena a ser cumprida não será sempre e necessariamente a pena aplicada. A partir do regime fechado, fase mais severa do cumprimento da pena, possibilita o Código a conquista progressiva de parcelas da liberdade suprimida”.6 Essa posição vai de encontro com o pensamento preconizado pela Escola da Nova Defesa Social que, como ensina o Professor Mirabete, “tem buscado
Damásio E. de Jesus, Direito Penal – parte geral, 1º volume, 25ª edição, Editora Saraiva, 2002, p. 519, apud, Soler, Derecho penal argentino, Buenos Aires, TEA, 1970, v. 2, p. 342. 3 Ob. Cit., p. 521. 4 Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. 5 Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. 6 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal – parte geral, 5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2
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instituir um movimento de política criminal humanista fundado na idéia de que a sociedade apenas é defendida à medida que se proporciona a adaptação do condenado ao meio social (teoria ressocializadora). Adotou-se, como assinala Miguel Reale Júnior, outra perspectiva sobre a finalidade da pena, não mais entendida como expiação ou retribuição de culpa, mas como instrumento de ressocialização do condenado, cumprindo que o mesmo seja submetido a tratamento após o estudo de sua personalidade. Esse posicionamento especialmente moderno procura excluir definitivamente a retributividade da sanção penal”.7 3 - Respeito à Dignidade Humana do Preso Atualmente parcela considerável da população, com o grande reforço dos meios de comunicação, considera inadmissível que os presos do sistema carcerário tenham direitos. É muito comum ouvirmos a seguinte afirmação: “os direitos humanos só servem para os presos”. Conforme preceitua a Constituição Federal, em seu artigo 1º, III, um dos Princípios Fundamentais, é o da “dignidade da pessoa humana”. Como nos ensina o Professor Uadi Lammêgo Bulos, “seja como for, a dignidade da pessoa humana é o carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988”. 8 A própria Constituição Federal assegura o respeito à integridade física dos presos quando dispõe, em seu artigo 5º, XLIX, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. E o artigo 38 do Código Penal, “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. O Estado não pode ser vingativo, deve, sim, resgatar o preso ao convívio social, dentro dos ditames dos Direitos Humanos. Todo tipo de reintegração ou reinserção social do condenado faz parte dos escopos do estado democrático de direito9. A execução da pena não pode ser visto como algo estático, inerte, sem dinâmica, sem vida.
p. 479-480. Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Parte Geral, Editora Atlas, 17ª edição, São Paulo, 2001, p. 245. 8 Uadi Lammêgo Bulos, Constituição Federal Anotada, Editora Saraiva, 5ª Edição, 2003, p. 82. 9 Artigo 5º, 6: “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”, Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) (Pacto de San José da Costa Rica)Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. 7
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A Lei de Execução Penal10 representa como lembra René Ariel Dotti, “um marco divisório entre a marginalização absoluta do condenado e a oportunidade para que ele exerça os seus direitos”.11 “Trata-se, portanto, de individualizar a observação como meio prático de identificar o tratamento penal adequado em contraste com a perspectiva massificante e segregadora, responsável pela avaliação feita através das grades: olhando para um delinqüente por fora de sua natureza e distante de sua condição humana” 12. Assim, se o Estado deseja seguir sua Carta Política, deve atentar criteriosamente para que sejam cumpridos os Princípios que lhe servem de norte. Chega a ser compreensível que um cidadão deseje que um criminoso receba penas cruéis, degradantes, humilhantes e, até mesmo venha a receber a pena de morte. Agora, o que não se pode admitir de um Estado que se presta a ser Democrático de Direito, é que esse Estado descumpra os ditames erigidos em sua Constituição Federal, além de Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos ratificadas e amparadas em nosso sistema legal13. 4 - Sistema Progressivo O sistema progressivo das penas faz parte de nossa estrutura penal, alimentando no preso a idéia de que poderá atenuar sua pena, desde que tenha comportamento adequado e mostre-se apto a reintegrar a sociedade, depois de haver cumprido sua pena. A Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 já tratava da matéria dispondo: “Para a individualização da pena, não se faz mister uma prévia catalogação, mais ou menos teórica, de espécies de criminosos, desde que ao juiz se confira um amplo arbítrio da aplicação concreta das sanções legais. Neste particular, o projeto assume um
Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Notas sobre a inconstitucionalidade da Lei nº 10.792/2003, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado na execução penal, Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo, nº 78, setembro de 2004, p. 61, apud René Ariel Dotti em palestra proferida no Curso “Reforma da Lei de Execução Penal”, promovido pelo IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e pela Apamagis – Associação Paulista dos Magistrados, no dia 18 de maio de 2004. 12 René Ariel Dotti, Bases e alternativas para o sistema de penas, Curitiba, 1980, pp. 162-163. 13 Uadi Lammêgo Bulos, Constituição Federal Anotada, Editora Saraiva, 5ª Edição, 2003, p. 263, assim dispõe: “Ao aludir que a “lei regulará a individualização da pena”, o constituinte levou em conta a dignidade da pessoa humana, considerada como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista, preocupada com o desenvolvimento, a igualdade, o bem-estar e a justiça. Por isso, inadmite-se investidas contra o pórtico da dignidade do homem. Trata-se do princípio humanitário, tão enfatizado pela Carta das Nações Unidas, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 10 11
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sentido marcadamente individualizador. O juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somente o fato criminoso, nas suas circunstâncias objetivas e conseqüências, mas também o delinqüente, a sua personalidade, seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau da culpa e os motivos determinantes (art. 42). O réu terá de ser apreciado através de todos os fatores, endógenos e exógenos de sua individualidade moral e da maior ou menor intensidade da sua mens rea ou da sua maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao juiz incumbirá investigar, tanto quanto possível, os elementos que possam contribuir para o exato conhecimento do caráter ou índole do réu – o que importa dizer que serão pesquisados o seu curriculum vitae, as suas condições de vida individual, familiar e social, a sua conduta contemporânea ou subseqüente ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilidade de vir ou tornar o agente a praticar fato previsto como crime). Esta, em certos casos, é presumida pela lei, para o efeito da aplicação obrigatória de medida de segurança: mas, fora desses casos, fica ao prudente arbítrio do juiz o seu reconhecimento (art. 77)”. O Código Penal de 196914, que acabou não sendo recepcionado em nosso ordenamento jurídico assim dispunha: “Manteve-se o sistema de dupla pena privativa da liberdade (reclusão e detenção), não obstante as sérias objeções contra o mesmo apresentadas. As múltiplas conseqüências dessa distinção, inclusive em matéria processual, desaconselhavam a unificação das penas privativas da liberdade. Sem compromissos de natureza doutrinária, afirma-se que as penas devem ser executadas de modo que exerçam sobre o condenado uma individualizada ação educativa, no sentido de sua recuperação social. Constitui tendência muito viva, e acertada, nas legislações penais, a da ampliação dos poderes discricionários do juiz na aplicação da pena, com vistas à realização de uma Justiça material e à escolha da medida adequada para que se cumpram os fins das penas, dos quais não se exclui a justa retribuição. O sistema da lei vigente, obrigando à imposição da pena de reclusão, sem alternativas, é um dos motivos determinantes das graves distorções que atualmente se verificam na aplicação das leis penais. Os juízes resistem à aplicação de penas inadequadas e injustas. A experiência com as prisões abertas é definitivamente vitoriosa, em nosso País e no estrangeiro. O projeto expressamente declara que as penas de detenção e reclusão podem ser cumpridas em estabelecimento penal aberto, sob regime de semiliberdade e confiança, desde que o condenado seja primário e de nenhuma ou escassa periculosidade, e a duração da pena imposta não seja superior a seis anos. Fixou-se esse limite, amplo, tendo-se em vista os estudos recentes que revelam não
pela Carta da Organização dos Estados Americanos, pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, dentre outros que erigiram a pessoa física à própria razão de ser da sociedade”. 14 Decreto-lei 1.004, de 21 de outubro de 1969, com as alterações introduzidas pela Lei 6.016, de 31 de dezembro de 1973, retificada no Diário Oficial de 6 de março de 1974.
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ter o quantum da pena grande significação na escolha dos delinqüentes mais aptos ao regime de prisão aberta. A internação em estabelecimento penal aberto pode também constitui fase de execução, precedendo à concessão do livramento condicional do condenado de bom comportamento, que demonstre readaptabilidade social”. E, mais recentemente, a Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal15: “A fim de humanizar a pena privativa da liberdade, adota o projeto o sistema progressivo de cumprimento da pena, de nova índole, mediante o qual poderá dar-se a substituição do regime a que estiver sujeito o condenado, segundo seu próprio mérito. A partir do regime fechado, fase mais severa do cumprimento da pena, possibilita o projeto a outorga progressiva de parcelas da liberdade suprimida. Mas a regressão do regime inicialmente menos severo para outro de maior restrição é igualmente contemplada, se a impuser a conduta do condenado. Sob essa ótica, a progressiva conquista da liberdade pelo mérito substitui o tempo de prisão como condicionante exclusiva da devolução da liberdade. Reorientada a resposta penal nessa nova direção – a da qualidade da pena em interação com a quantidade – esta será tanto mais justificável quanto mais apropriadamente ataque as causas de futura delinqüência. Promove-se, assim, a sentença judicial a ato de prognose, direcionada no sentido de uma presumida adaptabilidade social.” A Lei de Execução Penal não ficou distante dessa posição, assim dispondo: “Do Objeto e da Aplicação da Lei de Execução Penal Artigo 1º - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.16 As lições da Professora Maria Thereza Rocha de Assis Moura nos ensina que, “a individualização da pena constitui corolário da aplicação da garantia do devido processo legal, consubstanciado no direito à limitação do jus puniendi do Estado que, não obstante sua conotação nitidamente de direito material, tem indiscutíveis e inafastáveis reflexos na persecução penal”.17
Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. 17 Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Ob. Cit., p. 65. 15 16
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O sistema penal brasileiro consagra a progressividade no cumprimento da pena, observando o princípio constitucional da individualização da pena. Seguindo a mesma lógica de raciocínio o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos18, em seu artigo 10, incisos 1 e 3: “Artigo 10 – 1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana; (...) 3. O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros.” De forma análoga, dispõe o artigo 5º da Convenção Americana de Direitos Humanos19: “Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. (...) 6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.” A Lei nº 8.072/90 que define os crimes hediondos distancia-se sobremaneira da corrente moderna de Defesa Social. A Nova Defesa Social encontra sua expressão na fórmula “prevenção do crime e tratamento do delinqüente”, adotada pelas Nações Unidas. A progressão do regime prisional deve visar o desenvolvimento de um trabalho voltado para a ressocialização do condenado. Deve-se observar aos princípios da proporcionalidade, humanidade e ressocialização. A negação da progressão do regime prisional só faz aumentar a superpopulação carcerária e o cada vez mais promíscuo ambiente prisional. A pena deve seguir critérios orientados para a prevenção e ressocialização do indivíduo. 5 - Trabalho do Preso A Constituição Federal no seu artigo 170 dispõe, “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. 18 19
Aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16/12/1966. Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da costa Rica, em 22/11/1969 – ratificada pelo Brasil em 25/9/1992.
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O trabalho sempre esteve inserido na vida da sociedade. O trabalho seja ele manual ou, intelectual, garante ao indivíduo dignidade dentro de seu meio familiar e social. O artigo 39 do Código Penal garante que: o trabalho do preso será sempre remunerado, sendo-lhe garantidos os benefícios da Previdência Social. Nesta linha de raciocínio, as lições do Professor Celso Delmanto: “O trabalho é direito e dever dos presos. Será sempre remunerado (em valor não inferior a três quartos do salário mínimo), mas devendo a remuneração atender à reparação do dano do crime, assistência à família etc. (LEP, art. 29). Garante-lhe, ainda, este art. 9 do CP, os benefícios da Previdência Social. Assim, embora o trabalho do preso não fique sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (LEP, art. 28, § 2º), ele tem direito aos benefícios previdenciários”20. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal, assim dispõe sobre o trabalho: Art. 28 – O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. § 1º. Aplicam-se à organização e aos métodos de trabalho as precauções relativas à segurança e à higiene. § 2º. O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 29 – O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a ¾ (três quartos) do salário mínimo. § 1º. O produto da remuneração pelo trabalho deverá atender: a) à indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; b) à assistência à família; c) a pequenas despesas pessoais; d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista nas letras anteriores.
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Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 5ª edição, Editora Renovar, 2000, p. 75.
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§ 2º. Ressalvadas outras aplicações legais, será depositada a parte restante para constituição do pecúlio em cadernetas de poupança, que será entregue ao condenado quando posto em liberdade. Art. 30 – As tarefas executadas como prestação de serviço à comunidade não serão remuneradas. O trabalho serve para dignificar a vida de qualquer ser humano, principalmente dentro de uma sociedade capitalista e cada vez mais consumista. Privar o ser humano do trabalho é privá-lo de seus sonhos e construção de perspectivas presentes e futuras. Assim, o entendimento de que, “dadas as nossas péssimas condições carcerárias, não será incomum o condenado querer trabalhar e o Estado não lhe dar condições para isso. Nesta hipótese, desde que comprovadas essas circunstâncias, entendemos que o condenado fará jus à remição” . 21 O trabalho penitenciário existe em nosso sistema? Pelo menos em tese sim. “Infelizmente, devemos dizer que as disposições da lei sobre o trabalho penitenciário constituem uma bela e generosa carta de intenção que não está, e dificilmente estará algum dia, de acordo com a realidade. A ociosidade é comum e generalizada em nossas prisões”22 O trabalho e a educação aos presos são os melhores meios para propiciar sua reeducação e recuperação, sendo considerado por muitos estudiosos como “passaporte” para a reinserção social. Neste diapasão a Lei de Execução Penal trata do instituto da remição através do trabalho, ao dispor em seu artigo 126: “o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena”. Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete, “a remição é uma nova proposta inserida na legislação penal pela Lei nº 7.210/84, que tem como finalidade mais expressiva a de abreviar, pelo trabalho, parte do tempo da condenação”23. E, continua o mesmo autor: “como a remição é instituto criado pela Lei de Execução Penal, tem ela caráter geral, abrangendo todos os condenados sujeitos a esse diploma legal. Como na Lei nº 8.072/90, não existe restrição à possibilidade de o condenado pro crime hediondo ou equiparado obter esse benefício”24.
Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 5ª edição, Editora Renovar, 2000, p. 75. Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Geral, 14ª edição, Editora Forense, 1993, p. 298. 23 Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Parte Geral, Editora Atlas, 17ª edição, São Paulo, 2001, p. 261. O autor ainda comenta que, o instituto da remição está consagrado no Código Penal espanhol (art. 100) e sua origem remonta ao direito penal militar da guerra civil espanhola, estabelecido que foi pelo decreto de 28/5/1937 para os prisioneiros de guerra e os condenados por crimes especiais. 24 Ob. Cit., p. 262. 21 22
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Como ressocializar ou reintegrar um egresso do sistema penal ao convívio social se não se lhe proporcionar meios de reingresso? Assim, as lições que podemos extrair de José Antônio Paganella Boschi e Odir Odilon Pinta da Silva, in “Comentários à Lei de Execução Penal”, citado em Agravo do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais25: “Todo ser humano, uma vez capacitado à atividade laboral para a manutenção de sua própria subsistência e sua perfeita integração na sociedade, de onde é produto, tem necessidade de fugir à ociosidade através do trabalho. A esta regra não escapa o condenado à pena restritiva de liberdade, cujo trabalho, como dever social e condição da dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva (art. 28 da LEP). Educativa porque, na hipótese de ser o condenado pessoa sem qualquer habilitação profissional, a atividade desenvolvida no estabelecimento prisional conduzi-lo-á ante a filosofia da Lei de Execução Penal, ao aprendizado de uma profissão. Produtiva porque, ao mesmo tempo em que impede a ociosidade, gera ao condenado recursos financeiros para o atendimento das obrigações decorrentes da responsabilidade civil, assistência à família, despesas pessoais e, até, ressarcimento ao Estado por sua manutenção. O trabalho durante a execução da pena restritiva da liberdade, além dessas finalidades, impede que o preso venha, produto da ociosidade, desviar-se dos objetivos da pena, de caráter eminentemente ressocializador, embrenhando-se, cada vez mais nos túneis submersos do crime, corrompendo-se ou corrompendo seus companheiros de infortúnio.” Assim o disposto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. E, no referido Agravo de nº 450.318/0 do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, discutiu-se sobre a possibilidade do condenado trabalhar externamente, uma vez que apresentou pedido de trabalho externo, com a justificativa de que necessitava do trabalho para ajudar no sustento da família, tendo já uma proposta de emprego em uma oficina mecânica na cidade de Itabirito. O preso se ausentaria da prisão durante o dia e retornaria à noite, após o trabalho. Manifestou-se de forma muito coesa a Juíza de primeira instância com os seguintes fundamentos:
25
Agravo nº 450.318-0 da Comarca de Itabirito, Juiz Relator: Alexandre Victor de Carvalho do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerias, julgado em 3/8/2004.
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“Mantenho a decisão recorrida por entender que o trabalho externo não é vedado ao preso em regime fechado ainda que em entidade privada (art. 36 da LEP – Lei 7.210/84). Trabalhar sob observação, com o Juízo informado através da atuação do Conselho da Comunidade e das polícias civil e militar, constitui modalidade de acautelamento capaz de suprir a deficiência da fiscalização direta”. E, o Relator do Agravo, mantendo a decisão de primeiro grau, citou alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça: “Tem-se, assim, que a lei, às expressas, admite o trabalho externo para os presos em regime fechado, à falta, por óbvio, de qualquer incompatibilidade, por isso que acolhe o benefício, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina. E tal ausência de incompatibilidade há de persistir sendo afirmada ainda quando se trate de condenado por crime hediondo ou delito equiparado, eis que a Lei 8.072/90, no particular do regime de pena, apenas faz obrigatório que a reprimenda prisional seja cumprida integralmente em regime fechado, o que, como é sabido, não impede o livramento condicional e, tampouco, o trabalho externo.” (STJ – HC 29680/DF, Relator Ministro Hamilton Carvalhido). “O regime fechado de cumprimento de pena não é incompatível com o trabalho do condenado, inclusive o externo, nos termos dos artigos 36 e 37 da LEP, sendo imprescindível, por óbvio, o atendimento dos requisitos objetivos a serem avaliados pelo Juízo da Execução. Recurso conhecido e provido.” (STJ – Resp. 183075/MG, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca). “Ora, saliento que o regime integralmente fechado imposto ao réu, em face de sua condenação pro crime hediondo, não é incompatível com a possibilidade de trabalho externo, consoante preceitua o art. 36, da Lei de Execuções c/c art. 34, parág. 3º, do Código Penal. De outro lado, não há, na Lei de Crimes Hediondos, qualquer vedação à possibilidade de trabalho externo. Nesta esteira, aliás, já se pronunciou esta Turma.” (STJ – HC 19602/DF, Relator Ministro Jorge Scartezzini). Como fazer o condenado reingressar à sociedade, se o Estado e a própria sociedade não criam mecanismos para efetivar sua reinserção. A Lei de Execução Penal e a Constituição Federal traçam os caminhos que devem ser seguidos para reintegrar o condenado ao convívio social. Ocorre que, o que vemos diariamente é completamente o contrário. Prisões abarrotadas, fugas, rebeliões e ausência total de perspectivas para os detentos. Existe uma omissão Estatal em todos os sentidos, quer por seus Órgãos de atuação quer por meio de seus Agentes. Assim, o voto do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 190465/PB:
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“A lei (em qualquer setor jurídico) só realiza sua finalidade se existirem as condições que atuam como verdadeiras pressupostos. O Juiz, no caso, não pode imitar o avestruz; precisa encarar a realidade de frente. E mais. Ajustar o fato à norma. Há de evidenciar criatividade, buscando ajustar o fato à finalidade da lei, obediente, fundamentalmente, a este método: realizar o interesse da sociedade através do interesse do condenado. Aliás, com isso, projeta os parâmetros do art. 59 do Código Penal: necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime. Urge, então, para alcançar a finalidade da execução – adaptar o delinqüente ao convívio social conforme as regras da sociedade. Se o condenado, analisados, evidente, a personalidade, projetando juízo de previsibilidade, o Juiz constatar que a continuação do exercício do trabalho é preferível à ociosidade perniciosa dos presídios (regra geral), recomenda-se (insista-se: as precaríssimas condições do sistema penitenciário não podem ser esquecidas) não comete nenhuma ilegalidade ao adotar a solução individualizada (a lei não se esgota na expressão gramatical, compreende também a finalidade e o propósito da melhor solução social). Interpretar finalística e realisticamente a lei, ainda que leve a situação favorável, não é decisão piegas. Ao contrário, realiza concretamente a direção da norma jurídica, tantas vezes esquecida: ordenar a vida em sociedade, sem esquecer o aspecto pragmático.” O trabalho serve para afastar o condenado da inércia, do ostracismo, dos pensamentos negativos, e faz, talvez, com que venha a recuperar sua autoestima e valorização como ser humano. O Estado brasileiro mostra-se cada vez mais omisso em relação às questões do sistema prisional. O Estado do Rio Grande do Sul merece receber um olhar diferenciado no que diz respeito ao Sistema Prisional e Execução Penal. No mês de julho de 2004 ocorreu em Porto Alegre o Encontro de Execução Penal, do qual participaram diversos juristas brasileiros com o objetivo de discutir e melhorar a Lei de Execução Penal e adequá-la às suas finalidades. Na ocasião do encontro foram destacados alguns aspectos positivos da reinserção dos condenados ao convívio social como, por exemplo, a criação de postos de trabalho para apenados, a assinatura de convênios entre o Poder Público e empresas privadas, convênios com Instituições Educacionais, maior participação da sociedade através de seus Conselhos Comunitários e Organizações NãoGovernamentais etc26.
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Disponível em: www.tj.rs.gov.br
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6 - Reabilitação do preso através do estudo A Lei de Execução Penal27 disciplina a assistência educacional aos presos, assim dispondo: “Art. 17 – A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado28. Art. 18 – O ensino de primeiro grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da unidade federativa. Art. 19 – O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição. Art. 20 – As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. Art. 21 – Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos”. Nas palavras do Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Oswaldo Henrique Duek Marques, “não resta dúvida de que o ensino escolar e a profissionalização são indispensáveis à reinscrição social do egresso, principalmente porque são meios aptos a garantir seu sustento e o de sua família. Entretanto, em alguns casos, é preciso que o condenado seja efetivamente “reeducado”, isto é, que amadureça e se torne consciente de si próprio e de suas responsabilidades, o que só pode ser atingido pelo processo de individuação. Com efeito, esse processo traduz toda a caminhada do indivíduo em busca de tornar-se pessoa, integrada com seu momento histórico, com atitudes e posturas que traduzem o potencial intrínseco do ser humano”29 .
Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça no Resp 595858, entendeu que o condenado que freqüenta estudo formal tem o direito de remir (resgatar) parte do tempo de execução da pena. O próprio STJ no HC 30623/SP já havia entendido no mesmo sentido ao julgar: “Criminal. HC. Remição. Freqüência em aulas de Curso Oficial - Telecurso. Possibilidade. Interpretação extensiva do art. 126 da Lei de Execução Penal. Ordem concedida. I. A Lei de Execuções Penais previu a remição como maneira de abreviar, pelo trabalho, parte do tempo da condenação. II. A interpretação extensiva ou analógica do vocábulo “trabalho”, para abarcar também o estudo, longe de afrontar o caput do art. 126 da Lei de Execução Penal, lhe deu, antes, correta aplicação, considerando-se a necessidade de se ampliar, no presente caso, o sentido ou alcance da lei, uma vez que a atividade estudantil, tanto ou mais que a própria atividade laborativa, se adequa perfeitamente à finalidade do instituto. III. Sendo um dos objetivos da lei, ao instituir a remição, incentivar o bom comportamento do sentenciado e a sua readaptação ao convívio social, a interpretação extensiva se impõe in casu, se considerarmos que a educação formal é a mais eficaz forma de integração do indivíduo à sociedade. IV. Ordem concedida, para restabelecer a decisão de primeiro grau de jurisdição”. DJ 24/5/2004, p.00306. 29 Oswaldo Henrique Duek Marques, Fundamentos da Pena, Editora Juarez de Oliveira, 2000, p. 80-81. 27 28
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A educação é um dos principais caminhos que conduz o homem para a evolução. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 205: “Artigo 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A educação deve buscar o desenvolvimento do indivíduo, capacitando-o para o exercício da cidadania. Assim, os agentes políticos do Estado podem até alegar que não podem inserir todos os detentos no competitivo mercado de trabalho diante da alegação do grande desemprego em nível mundial. Porém, não podem os mesmos agentes negar o acesso dos presos ao estudo. Deve existir uma mobilização de toda a sociedade, principalmente das instituições de ensino privado, que se proliferam pelo País afora, para que estas, em parceria com o Setor Público, venham a cooperar na formação e ressocialização dos presos. Qual a perspectiva que um detento tem em tentar voltar ao convívio social, se o próprio aparato estatal não lhe proporciona mecanismos de reinserção. É fato notório que na grande maioria das cidades brasileiras os presos são submetidos a tratamento degradante, cruel e desumano em absoluto contraste com nossa ordem constitucional. Misturam-se, ainda, presos provisórios com condenados definitivos, violando-se o texto Constitucional e a Lei de Execução Penal, que em seu artigo 88 assim dispõe: “O condenado será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”. Podemos constatar diariamente por meio de programas televisivos e da mídia em geral, um massacre de notícias “sanguinárias” sobre o dia-a-dia das grandes capitais brasileiras. A população vive em verdadeiro clima de guerra, refugiando-se em seus lares e compactuando com os chamados movimentos de “lei e ordem”30 que imperam nesses tipos de programas, que se dizem de utilidade pública. Ninguém está negando a existência ou não da criminalidade. Todos nós sabemos que ela está aumentando, mas não podemos, nem devemos nos deixar influenciar por verdadeiros “messias” em nome da paz pública.
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Alberto Zacharias Toron ob. Cit., apud as lições de Heleno Cláudio Fragoso, in, a Reforma da Legislação Penal, na Revista de Direito Penal (RDP), RJ, 1983, nº 35, p. 12, “o abandono da filosofia correcional que inspirou, desde seu surgimento, a pena privativa de liberdade, bem como o aumento constante da criminalidade, sobretudo da criminalidade violenta, tem explicado o movimento da Law and Order, que defende a imposição de penas severas com o endurecimento do sistema, fundado em critérios puramente retributivos”.
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Chega até a ser compreensível entender o porquê de algumas pessoas do povo queiram ou exijam penas duras, cruéis, vingativas, desumanas, ou, até mesmo a pena de morte, pois, afinal, é uma resposta humana, traduzida com sentimentos e conceitos já definidos que cada um traz dentro de si. Acreditamos que é chegado o momento para mudanças estruturais, tanto da legislação, como na execução das penas. Deve o Estado, através de seus agentes, proporcionar meios de ressocializar o preso. Não podemos “lavar as mãos” achando que o problema está resolvido. Cesare Beccaria, quando da publicação de seu Dos Delitos e Das Penas nos dizia, “um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em conseqüência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade”31. E, continua o mesmo Cesare Beccaria: “a própria atrocidade da pena faz com que tentemos evita-la com uma ousadia tanto maior quanto maior é o mal em que incorremos e leva a cometer outros delitos mais para escapar à pena de um só. Os países e os tempos em que se infligiam os suplícios mais atrozes sempre foram aqueles das ações mais sanguinárias e desumanas, pois o mesmo espírito de ferocidade que guiava a mão do legislador conduzia a do parricida e do sicário”32. Manter os presos sem a perspectiva de progressão em seus regimes prisionais é aniquilar totalmente suas esperanças de retorno ao convívio social. Cada detento traz consigo características próprias de sua personalidade, formação, convívio familiar e social etc., não podendo o aparelho estatal trata-los como se fossem uma única pessoa criminosa33. E, ainda, nas lições de Beccaria: “quereis prevenir os delitos? Fazei com que as leis sejam claras, simples e que toda a força da nação se concentre em defende-las e nenhuma parte dela seja empregada pra destruí-las. Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens. Fazei com que os homens as temam, e temam só a elas”34.
Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. p. 91-92. Ob. Cit., p. 92. 33 Uadi Lammêgo Bulos, ob. Cit., p. 263, “pelo princípio constitucional criminal da individualização punitiva, a pena deve ser adaptada ao condenado, consideradas as características do sujeito ativo e do crime. Tal vetor compactua-se com o ditame da personalidade, ou seja, o crime imputa-se, apenas, ao seu autor, sendo ele o único elemento suscetível de sofrer a sanção”. 34 Ob. Cit., p. 131. 31 32
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Encarcerar um criminoso sem perspectivas de progressão no regime prisional não significará sua total aceitação e cumprimento da pena. Este se verá com dois caminhos a seguir: 1) cumprir todo o regime, sem a esperança de melhorar para antecipar sua saída e tentar uma nova vida; 2) rebelar-se contra o sistema imposto. Cremos que a segunda hipótese será a mais procurada por quase todos os criminosos, pois sabemos o quão deficiente é o nosso sistema prisional.
7 - Conclusão O sistema penal mostra-se cada vez mais promíscuo e ineficiente. Existe um alto custo para sua manutenção sem, todavia, apresentar uma resposta eficaz do que seria sua finalidade, ou seja, a ressocialização e reinserção do condenado novamente ao convívio social. Investe-se muito em nada, criando-se a falsa esperança que tudo está sob controle, vendendo a idéia de que a rigidez penal está conseguindo acabar com a criminalidade. Tudo cai por terra quando somos noticiados das diversas rebeliões que se estendem pelo País afora. Existe, ainda, uma consciência popular, que só acredita no direito quando este coloca o criminoso na cadeia, e a mídia, de forma irresponsável, alimenta a idéia da rigidez penal de forma inconseqüente. A sociedade civil, bem como o Ministério da Justiça, os Conselhos das Comunidades, Patronatos, Conselhos Penitenciários, Ministérios Públicos, Advogados, OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, Juízes de Execução Penal, e, também os Desembargadores, Ministros dos Tribunais Superiores e Empresários da iniciativa privada devem, pelo menos, iniciar um efetivo debate na busca de soluções efetivas ao caos do sistema prisional. Muito ainda poderia ser dito, mas, com a realização desse trabalho, esperamos ter acendido uma pequena faísca diante do grande incêndio de discussões que podem ser produzidas. 8 - Bibliografia e Obras consultadas Barros, Marco Antonio de. Abalos à Dignidade do Direito Penal, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 87, nº 747 Bastos, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Editora Saraiva, vol. 2, 2000
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Beccaria, Cesare. Dos Delitos e das Penas, São Paulo, Editora Martins Fontes, 1998. Bitencourt, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral, 5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1999 Bulos, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada, 5º edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2003 Delmanto, Celso. Código Penal Comentado, 5ª edição, Editora Renovar, 2000 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Editora Objetiva, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2001 Dotti, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas, Curitiba, 1980 Fragoso Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral, 14ª edição, Editora Forense, 1993 Franco, Alberto Silva. Tortura – Breves Anotações sobre a Lei 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 5, nº 19, 1997 Foucault , Michel. Vigiar e Punir, 24º edição, Petrópolis, Editora Vozes, 2001 Jesus, Damásio Evangelista de. Direito Penal – parte geral, 1º volume, 25ª edição, Editora Saraiva, 2002 Leal, João José. A Lei dos Crimes Hediondos e a Formação de um Subsistema Punitivo Marginal ao Código Penal, Revista Jurídica, Blumenau, v. 7, nº 14, 2003 Marques, Oswaldo Henrique Duek. Breves considerações sobre a criminalização da Tortura. Boletim IBCCrim, São Paulo nº 56, 1997 Marques, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena, Editora Juarez de Oliveira, 2000 Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Parte Geral, Editora Atlas, 17ª edição, São Paulo, 2001 Moura, Maria Thereza Rocha de Assis. Notas sobre a inconstitucionalidade da Lei nº 10.792/2003, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado na execução penal, Revista do Advogado nº 78 da Associação dos Advogados de São Paulo, 2004 Toledo, Francisco de Assis. Direito Penal e o novo Código Penal Brasileiro, Fabris Editor, 1985 Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral 5ºed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004
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9 - Outras Fontes de Pesquisa: Constituição Federal, Legislação Federal, e sites na Internet como, por exemplo: Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Estaduais e Federais, Planalto, Senado Federal, Ministério da Justiça, Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo entre outros.
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AJUFE Utilidade Pública Federal Decreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p. 15057) Presidente: Gabriel Wedy Diretor da Revista: José Lázaro Alfredo Guimarães Capa: Editora Impetus Ltda. Pintura da Capa: Coleção Ana Maria F. G. Santos M inas Gerais N úmero de Registro: A crílico sobre tela, 80 x 100 cm. – Chegada da Cavalgada ao Serro. A ssinada * Paiva Frade Arte e Leilões Barrocão • Simone R ibeiro Diagramação e Projeto Gráfico: Editora Impetus Ltda. Impressão e Acabamento: Gráfica Millennium Ltda. – Me. Obs.: Os textos e sua revisão são de responsabilidade de seus autores.
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