Revista Direito Federal nº 93

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Associação dos Juízes Federais do Brasil Ano 26 - Número 93 2º semestre de 2013


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Direito Federal Utilidade Pública Federal Decreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.15057) Presidente: Nino Oliveira Toldo Diretor da revista: José Antonio Lisbôa Neiva Edição: Lúcio Vaz Ilustrações: Kleber Sales Projeto Gráfico e diagramação: Vaz Comunicação Revisão: Gabriela Artemis Impressão e Acabamento: Gravo Papers Obs.: Os textos são de responsabilidade de seus autores.

Associação dos Juízes Federais do Brasil SHS Quadra 6, Bloco E, Conj. A, sala 1305 a 1311 Brasil 21, Edifício Business Center Park 1, Brasília-DF CEP 70322-915 Tel.: (61) 3321-8482 Fax: (61) 3224-7361


Diretoria da Ajufe Biênio 2012/2014 Nino Oliveira Toldo

Presidente

Ivanir César Ireno Júnior

Vice-presidente da 1ª Região

José Arthur Diniz Borges

Vice-presidente da 2ª Região

José Marcos Lunardelli

Vice-presidente da 3ª Região

Ricardo Rachid de Oliveira

Vice-presidente da 4ª Região

Marco Bruno Miranda Clementino

Vice-presidente da 5ª Região

Vilian Bollmann

Secretário-geral

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Primeiro secretário

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Tesoureiro

José Antonio Lisbôa Neiva

Diretor da Revista

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Diretora Social

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Diretora de Relações Internacionais

Adel Américo Dias de Oliveira

Diretor de Assuntos Legislativos

Alexandre Vidigal de Oliveira

Diretor de Relações Institucionais

Antônio André Muniz M. de Souza

Diretor de Assuntos Jurídicos

Bruno Teixeira de Paiva

Diretor de Esportes

André José Kozlowski

Diretor de Assuntos de Interesses dos Aposentados

Décio Gabriel Gimenez

Diretor de Comunicação

Emanuel Alberto Gimenes

Diretor Administrativo

George Marmelstein Lima

Diretor de Tecnologia da Informação

Jader Alves Ferreira Filho

Coordenador de Comissões

Américo Bedê Freire Junior

Diretor de Prerrogativas

Francisco Alexandre Ribeiro

Suplente

Paulo César Villela S. Rodrigues

Suplente

Maurício Yukikazu Kato

Suplente

Rafael Wolff

Suplente

Francisco Barros Dias

Suplente

Alessandro Diaferia

Membro do Conselho Fiscal

César Arthur C. de Carvalho

Membro do Conselho Fiscal

Warney Paulo Nery Araújo

Membro do Conselho Fiscal

Joaquim Lustosa Filho

Membro do Conselho Fiscal (Suplente)



Diretoria da Ajufe

Colégio de Delegados Seccionais Régis de Souza Araujo Antônio José de Carvalho Araújo Jaiza Maria Pinto Fraxe Fábio Moreira Ramiro José Eduardo de Mello Vilar Filho José Márcio da Silveira e Silva Francisco de Assis Basílio de Moraes Gabriel Brum Teixeira José Magno Linhares Moraes Pedro Francisco da Silva Wesley Wadim Passos Ferreira de Souza Antônio Carlos de Almeida Campelo Bianor Arruda Bezerra Neto Alessandra Anginski Cotosky Polyana Falcão Brito Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho Caio Márcio Gutterres Taranto Hallison Rêgo Bezerra Murilo Brião da Silva Herculano Martins Nacif Marcos Silva Rosa Taís Vargas Ferracini de Campos Gurgel Waldemar Cláudio de Carvalho

Acre Alagoas Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima São Paulo Tocantins



Índice Palavra do presidente......................................................................................................11 Palavra do diretor............................................................................................................13 Seção de Doutrina...........................................................................................................15 A execução coletiva de direitos individuais homogêneos...............................................17 A construção do direito na jurisprudência do supremo tribunal federal: limites e possibilidades no uso das sentenças aditivas.......................................................................43 Soltura de “balões sem fogo”: a inconstitucionalidade de leis municipais que autorizam essa prática e a tipicidade criminal da conduta..............................................................75 Conflitos ambientais decorrentes de empreendimentos de infraestrutura.................103 Férias judiciais - a análise crítica no Brasil e no mundo.................................................127 Julgar é calcular? Reflexões sobre a inadequação da razão calculadora como critério preponderante das decisões judiciais.................................................................................157 A segurança jurídica e o efeito vinculante perante o próprio supremo tribunal federal....183 Improbidade administrativa: uma leitura do art. 11 da lei 8.429/92 à luz do princípio da segurança jurídica....................................................................................................207 O princípio constitucional da precaução: origem, conceito e análise da crítica............223 Suprema hipertrofia.......................................................................................................271 Lavagem de dinheiro: algumas considerações sobre novas abordagens....................297



Palavra do Presidente Prezados colegas,

Estamos retomando neste final de ano a produção da Revista Direito Federal, agora com novo projeto gráfico, incluindo ilustrações exclusivas para cada artigo. Esta publicação abre espaço para o associado publicar artigos técnicos com temas de interesse do meio jurídico e de toda a sociedade. Os artigos publicados nesta edição demonstram, uma vez mais, a qualificação técnica e a cultura jurídica dos magistrados federais. Os textos elaborados pelos nossos juízes federais abordam os assuntos mais variados, como segurança jurídica, sentenças aditivas, improbidade administrativa, conflitos ambientais, soltura de balões e prerrogativas dos magistrados. Produtos da própria experiência e da reflexão dos magistrados, certamente contribuirão para um debate lúcido e equilibrado, no caminho do aperfeiçoamento das ciências jurídicas. A Revista Direito Federal é mais uma contribuição da Ajufe para o fortalecimento do Poder Judiciário e do Estado Democrático de Direito, buscando sempre melhor atender o jurisdicionado, que é a razão de ser da magistratura. Abraços aos colegas e boa leitura.

Nino Toldo Presidente da Ajufe



Palavra do Diretor Caros associados, É com imensa satisfação que mais um exemplar da Revista de Direito Federal ganha corpo com uma variedade de temas jurídicos, reflexo da excelência da magistratura federal. A tutela coletiva ganha espaço em escrito sobre a execução coletivizada dos direitos individuais homogêneos, em harmonia com trabalhos voltados para a tutela do direito material ambiental, de amplitude difusa, referentes à inconstitucionalidade de legislações municipais que autorizariam o uso de “balões sem fogo” – com adequação típica da conduta na esfera penal –, aos conflitos de índole ambiental decorrentes de empreendimentos de infraestrutura, apresentando o autor sugestão quanto a método mais apropriado para a composição dos litígios e, por fim, aspectos relacionados ao importante princípio da precaução, com suporte em tratados e convenções internacionais e incorporado ao nosso direito ambiental. O direito constitucional mereceu destaque em virtude dos temas relacionados à construção do direito pela Suprema Corte – com os limites e possibilidades das sentenças aditivas – e à segurança jurídica e aplicabilidade do efeito vinculante ao próprio Supremo Tribunal Federal. Merece registro, ainda, estudo sobre a hipertrofia da mais alta Corte – além das fronteiras do próprio Poder Judiciário. O atualizado tema referente à improbidade administrativa mereceu artigo preocupado com os desdobramentos de uma configuração de ato ímprobo apenas com base no caput do artigo 11 da Lei nº 8.249/92, sem a devida adequação aos princípios da legalidade e segurança jurídica. No tocante à atividade judicante em si, pertinente o estudo sobre a inadequação da razão calculadora como critério preponderante das decisões judiciais, notadamente em virtude de aspectos relacionados ao contorno humanístico dos julgamentos judiciais. É extremamente relevante, por outro lado, texto que se debruça no tema relativo às férias dos juízes, com fulcro em detalhado estudo da legislação de diversos países, para afastar pensamento equivocado quanto a um direito da magistratura. Por fim, o direito penal ganhou espaço em artigo relacionado a novas abordagens do delito de lavagem de dinheiro. A qualidade dos trabalhos certamente agradará o nível de exigência e qualificação de nossos associados. Atenciosamente, José Antonio Lisbôa Neiva



Seção de Doutrina




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Rogério Tobias de Carvalho Juiz Federal e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor do livro Imunidade tributária e contribuições para a seguridade social, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006.

Resumo: este artigo acadêmico se dedica ao estudo da tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos na fase de cumprimento, assumindo posição firme pela liquidação e pela execução coletiva da sentença, em prol da efetividade do processo. Aborda-se de forma pragmática e objetiva a doutrina e a jurisprudência consolidada do STJ e do STF, resolvendo dificuldades operacionais e propondo soluções criativas que não ofendam ao devido processo legal. Palavras-chave: liquidação. Execução coletiva. Sindicato. Substituição processual. Abstract: this paper presents a study on the collective protection of individual rights in phase of compliance, taking firm stand for the liquidation and collective enforcement of the judgment in favor of the effectiveness of the process. Discusses, pragmatically and objectively, consolidated doctrine and jurisprudence of the STJ and the STF, resolving operational difficulties and offering creative solutions that do not offend due process of law. Keywords: liquidation. Collective enforcement proceeding. Syndicate. Processual substitution.

1. Introdução O processo civil brasileiro nasceu individualista, privatista, inspirado na tradição românico-germânica. Até hoje, a ação individual é a regra que orienta, informa e colore todo o sistema processual brasileiro (artigo 6º do Código Processual


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Civil)1. Não é fácil superar esse paradigma, desligar-se da ideia de que o processo não serve ao autor ou a seus direitos, mas sim é um instrumento eminentemente estatal, posto à disposição da sociedade para realização do ideal de Justiça.2 A Constituição de 1988 obrigou os intérpretes a filtrarem a legislação infraconstitucional,3 de forma a fazer uma leitura compatível com o atual modelo de Estado Democrático Constitucional, que consagra direitos de terceira dimensão. Nesse cenário, a dicotomia antes absoluta entre o público e o privado já não consegue explicar e oferecer instrumentos compatíveis com a solução de demandas de massa. Os antigos remédios processuais, idealizados para resolver briga entre vizinhos, não têm mais eficácia terapêutica contra os litígios envolvendo centenas, às vezes milhares, de pessoas, que batem às portas do Poder Judiciário em busca de uma solução rápida e célere para seus males. A individualidade processual foi quebrada a partir do momento em que se legitimou uma terceira pessoa para mover ação em benefício coletivo. Dentro desse cenário, evoluímos muito no Brasil, em alguns aspectos de forma pioneira, para a criação de uma teoria geral do processo coletivo, desde a legislação pioneira entre os países da civil law, com a Lei nº 6.513/77, que reformou a Lei nº 4.717/63 (ação popular). Entretanto, ainda padecemos de uma regulação una, dentro do próprio Código de Processo Civil, que torne o sistema atual, que engloba tanto a tutela individual como a coletiva, mais harmônico, coerente e de fácil interpretação e aplicação. Atualmente, o modelo de que dispomos é formalmente muito complexo, com regras espalhadas em vários diplomas legais. Temos um tronco principal, eminentemente individualista (CPC), de onde se irradiam ramos menores que regu1   “Em sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, na tarde desta terça-feira (25/9), o ministro Teori Zavascki, indicado por Dilma Rousseff para o Supremo Tribunal Federal, apontou como ponto importante para atacar a morosidade da Justiça o aperfeiçoamento do sistema de processo coletivo. ‘Nossa cultura é formada à base de ações individuais. Temos de evoluir nesse sentido’, defendeu” (HAIDAR, 2012). 2   “As ações coletivas foram concebidas em homenagem ao princípio da economia processual. O abandono do velho individualismo que domina o direito processual é um imperativo do mundo moderno. Através dela, com apenas uma decisão, o Poder Judiciário resolve controvérsia que demandaria uma infinidade de sentenças individuais. Isto faz o Judiciário mais ágil. De outro lado, a substituição do indivíduo pela coletividade torna possível o acesso dos marginais econômicos à função jurisdicional. Em a permitindo, o Poder Judiciário aproxima-se da democracia.” (Superior Tribunal de Justiça. ROMS nº 1.903/SP. 2ª Seção. Relator: ministro Humberto Gomes de Barros. DJU: 29/6/1998). 3   Sobre o tema, consulte-se Schier (1999).


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lam tipos de ações coletivas específicas (ACP, ação popular, ação de improbidade administrativa, MS, ADI, ADC, ADPF etc.) ou trazem regras gerais específicas ou aplicáveis à tutela coletiva, como o CDC e as leis nº 8.437/92 e 9.494/97, que tratam de tutela de emergência em face da fazenda pública, entre outros. Pairando sobre e moldando todo esse sistema, temos a Constituição da República de 1988, da qual se extraem diversos princípios processuais e regras, com eficácia plena e direta, bem como aqueles que tratam do mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX), da ação popular (artigo 5º, LXXIII), da representação e da substituição processual (artigos 5º, LXX e 8º, III), da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII), entre outros. Não é de se admirar que, diante do formato pouco metodológico do nosso sistema de tutela coletivo, ainda tenhamos muito que evoluir no que se refere à execução coletiva da sentença coletiva, transformando a promessa de jurisdição adequada às demanda de massa em realidade para quem dela necessita. A execução individual de uma sentença coletiva, quando desnecessária, reflete, na maioria dos casos, num mero preconceito individualista. Submeter a execução de um direito individual homogêneo, assegurado na sentença coletiva, a prévio processo de liquidação pelo rito comum ordinário seria uma ode à irracionalidade do sistema processual. Este trabalho acadêmico dedica-se a contribuir justamente nessa seara, mais especificamente em demonstrar a possibilidade de se executar coletivamente as sentenças proferidas em ações em que tenham sido assegurados direitos e interesses individuais homogêneos — opção que é plenamente compatível com a legislação atual, não viola os princípios da segurança jurídica e da ampla defesa, e se adapta à busca permanente de uma jurisdição célere, de qualidade e adequada às demandas de massa. 2. Execução coletiva: conceito, possibilidades e limites O objeto deste estudo é limitado à execução judicial de direitos individuais homogêneos. Não temos a pretensão de alcançar todos os direitos coletivos stricto sensu, muito menos os difusos (artigo 81, parágrafo único, incisos I e II do CDC). Tem nossa especial atenção a execução dos títulos produzidos em ações coletivas, mandamentais ou ordinárias, propostas por


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entidades sindicais em defesa de sua categoria e/ou de seus filiados. A doutrina majoritária entende que a ação coletiva só compreende a fase de conhecimento, permitindo-se a atuação dos legitimados extraordinariamente como substitutos processuais. Como a demanda se limitaria ao núcleo homogêneo dos direitos individuais, a sentença ali proferida seria, sempre e obrigatoriamente, de natureza genérica. Na fase executiva, ou de cumprimento, a execução seria individual. Os legitimados do artigo 82 do CDC só poderiam atuar como representantes processuais na execução, e não mais como substitutos. Em linhas gerais, essa corrente sustenta que seria impossível a execução coletiva, pois a sentença seria genérica, não prescindindo de fase de conhecimento prévia para identificação dos credores e liquidação das obrigações.4 O que normalmente se compreende como execução coletiva é aquela que tem por título a sentença condenatória cuja obrigação destina-se a um fundo coletivo (artigo 13 da Lei nº 7.347/85), com arrimo nos artigos 98, § 2º, II, c/c 100, parágrafo único, todos do CDC, a denominada fluid recovery. Nessa hipótese, a legitimação extraordinária seria subsidiária e condicional, quando não houver interessados na execução individual (OLIVEIRA, 2008, p. 119). 5 Alguns, de forma exótica, tentam fazer sinônimos execução coletiva e litisconsórcio ativo multitudinário na fase de execução. Outros, de forma mais elaborada, imaginam uma categoria híbrida, em que a execução é ini-

4   “A tutela de direitos individuais homogêneos tem como instrumento básico a ação civil coletiva, procedimento especial com quatro características fundamentais. Primeira, a repartição da atividade cognitiva em duas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada ao juízo de cognição sobre as questões fáticas e jurídicas relacionadas com o núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados; e outra, a da ação de cumprimento, desdobrada em uma ou mais ações, promovida em caso de procedência do pedido na ação coletiva, destinada a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= margem de heterogeneidade) e a efetivar os correspondentes atos executórios. A segunda característica da ação coletiva é a legitimação ativa por substituição processual. A demanda, na sua primeira fase, é promovida por órgão ou entidade autorizado por lei para, em nome próprio, defender em juízo direitos individuais homogêneos. Apenas na segunda fase (ação de cumprimento) é que a legitimação se dá pelo regime comum da representação. A terceira característica diz respeito à natureza da sentença, que é sempre genérica [...]” (ZAVASCKI, 2007, p. 286). Consulte-se, ainda, Araújo Filho (2000, p. 118-119). 5   “Consoante liquidação visto, se, decorrido o prazo de um ano, poderão os legitimados do art. 82 promover a execução da sentença coletiva genérica relacionada aos direitos individuais homogêneos (art. 100 do CDC). O produto desta execução reverterá ao FDD e se chama fluid recovery (“indenização fluida”) ou recuperação fluida – já que se trata dos valores referentes aos titulares dos direitos individuais recuperados para o FDD para garantir o princípio da tutela integral do bem jurídico coletivo, conforme parágrafo único do art. 100 do CDC” (DIDIER JR., 2012, p. 397).


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ciada pelo legitimado extraordinário; mas o pagamento é efetuado às pessoas físicas beneficiárias do título executivo judicial. Tais conceitos não atendem ao preceito insculpido no artigo 8º, III, da Constituição de 1988, que se projeta também às demandas executórias. Sentimo-nos mais confortáveis com a corrente que entende ser incorreta e “incompreensível que toda a economia processual gerada na fase de conhecimento se perca quase que integralmente com o ajuizamento de liquidações e execuções individuais” (REZENDE, 2012, p. 255). Entendemos que é prioritário e preferencial que a execução se dê, sempre que possível, na forma coletiva. A execução coletiva é aquela promovida pelo mesmo ente legitimado para a fase de conhecimento. A parte é o sindicato, sendo esse o único a figurar no sistema de distribuição e autuação processual, e em nome de quem deve ser paga a obrigação afirmada na sentença. A liquidação do julgado, a identificação dos sujeitos passivos da obrigação, e o rateio da condenação e efetivo pagamento são questões processuais que se resolvem dentro da ação de execução, mas não infirmam ou prejudicam a figura do sindicato como substituto processual da categoria que representa, dos seus filiados, de parte deles, ou de apenas um associado, se assim entender atuar. A matéria, normalmente entregue aos processualistas, não se resolve apenas na esfera técnico-processual, tendo estirpe constitucional. Caberia ao Supremo Tribunal Federal, último intérprete da Constituição, dar a palavra final sobre a questão. Quando chegou à Suprema Corte, a possibilidade de os sindicatos atuarem como substitutos processuais, também na fase de cumprimento, causou efusivos e enriquecedores debates, com votos difíceis de contrapor nas duas direções. Atualmente, após o STF ter lançado suas luzes sobre o disposto no artigo 8º, III, da Constituição de 1988, não há mais dúvidas quanto ao amplo alcance e o sentido da legitimação extraordinária autorizada aos sindicatos e imposta ao legislador ordinário, ao intérprete e ao aplicador da lei. Embora se possa manter posições doutrinárias contrárias, e mesmo criticar cientificamente a suprema decisão, não há como negar a existência do preceito constitucional expresso que prevê a execução coletiva do título judicial assim originado, atuando o sindicato como substituto processual na fase de cumprimento. Isso decorre do artigo 8º, III, da Constituição de 1988, de acordo com a mais extensiva interpretação que lhe deu o STF:


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23 PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido e provido. (STF, RE nº 193.503, DJ em 12/8/2007, rel.: min. Joaquim Barbosa, grifo nosso)

Naquele histórico julgamento, que na verdade resolveu uma série de recursos extraordinários6 e demorou cerca de 10 anos para chegar ao veredicto final, restaram vencidos, expressamente, os ministros Nelson Jobim, Cezar

6   Informativo de Jurisprudência nº 431, do STF: “Sindicato e Substituição Processual – 3. Concluído julgamento de uma série de recursos extraordinários nos quais se discutia sobre o âmbito de incidência do inciso III do art. 8º da CF/88 (“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais e administrativas;”) - v. Informativos 84, 88, 330 e 409. O Tribunal, por maioria, na linha da orientação fixada no MI nº 347/SC (DJU de 8/4/94), no RE nº 202.063/PR (DJU de 10/10/97) e no AI nº 153.148 AgR/PR (DJU de 17/11/95), conheceu dos recursos e lhes deu provimento para reconhecer que o referido dispositivo assegura ampla legitimidade ativa ad causam dos sindicatos como substitutos processuais das categorias que representam na defesa de direitos e interesses coletivos ou individuais de seus integrantes. Vencidos, em parte, os Ministros Nelson Jobim, Cezar Peluso, Eros Grau, Gilmar Mendes e Ellen Gracie, que conheciam dos recursos e lhes davam parcial provimento, para restringir a legitimação do sindicato como substituto processual às hipóteses em que atuasse na defesa de direitos e interesses coletivos e individuais homogêneos de origem comum da categoria, mas apenas nos processos de conhecimento, asseverando que, para a liquidação e a execução da sentença prolatada nesses processos, a legitimação só seria possível mediante representação processual, com expressa autorização do trabalhador. RE nº 193.503/SP. RE nº 193.579/SP. RE nº 208.983/SC. RE nº 210.029/RS. RE nº 211.874/RS. RE nº 213.111/SP. RE nº 214.668/ES, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 12/6/2006 (RE nº 214.668)”.


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Peluso7, Eros Grau, Gilmar Mendes8 e Ellen Gracie, que pretendiam afastar a substituição na fase executiva. Prevaleceu o voto da maioria, tendo o acórdão sido redigido pelo ministro Joaquim Barbosa, que se não se dispôs a interpretar a Constituição a partir do processo civil.9 10 11 O Superior Tribunal de Justiça, no EResp 760.840, teve a oportunidade de reorientar sua jurisprudência com a do Supremo Tribunal Federal, uma vez que, em curto espaço de tempo, decidira em direções distintas várias vezes. Com efeito, em 6/5/2009, a Corte Especial, ao julgar o EREsp nº 1.082.891/ RN (relator: min. Fernando Gonçalves, DJe 21/5/2009), conferiu aos sindicatos a qualidade de substituto processual, tanto na fase de conhecimento quanto na execução. Em 28/5 e 17/6/2009, o mesmo colegiado decidiu em

7   “O processo de execução envolve de regra uma complexidade irredutível, decorrente da irredutibilidade de cada caso. Isto é, não existem dois empregados credores que se encontrem em situações absolutamente idênticas na execução. Pode ser até diferenças de horas de contratação, por exemplo, mas duvido muito que haja coincidência absoluta nestes casos. Portanto, na fase de execução, como esta complexidade é irredutível, é preciso que se examine caso por caso. É impossível a execução coletiva de direitos individuais” (voto do ministro Cezar Peluso). 8   “Supor esta autonomia dos sindicatos, sem limites, na verdade, é transformar isso numa república sindical; é mais do que isso: é desvalorizar a ideia de autodeterminação que está presente em toda a Constituição [...] Nesse sentido, parece certo que o sindicato, na qualidade de substituto processual, não poderá praticar atos de disposição dos direitos estritamente individuais dos trabalhadores por ele representados. E esse problema surgirá justamente no momento processual em que os direitos individuais postulados em juízo perdem o seu caráter comum ou homogêneo, individualizando-se conforme a situação específica de cada trabalhador” (voto do ministro Gilmar Mendes). 9   “As objeções são de ordem processual, e não me impressiono com objeções de ordem processual”, para, posteriormente, proclamar que “argumentos processuais [...] não me parecem aptos a nulificar o que está dito expressamente na Constituição. Se adotarmos essa tese, estaremos não só restringindo o acesso à justiça, claro, sob a ótica processual, e não constitucional. Estaremos criando uma fragilidade adicional que a Constituição quis eliminar com conceder ao sindicato a substituição processual” (voto do ministro Joaquim Barbosa). 10   Com a perspicácia de sempre, o min. Marco Aurélio, em seu singelo voto, fez uma pergunta constrangedora e, para alguns, inconveniente: “É de se perguntar, a partir do bom senso: a quem interessa obstaculizar, na execução, a substituição? A quem interessa obstaculizar a substituição pelo sindicato dos integrantes da categoria justamente diante de algo que não deveria ocorrer se estivéssemos em estágio cultural mais adiantado: o descumprimento de uma decisão judicial, lei entre as partes, transitada em julgado? Não sei a quem socorreria esta visão, mas, evidentemente, haverá o envolvimento de inadimplentes quanto ao que decidido após o exercício, à exaustão, do direito de defesa”. 11   “A Constituição deve ser servida pelo direito ordinário, e não este se servir da Constituição” (voto do ministro Ayres Brito).


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sentido oposto nos EREsp nº 847.319/RS e 901.627/RS, ambos relatados pelo min. Luiz Fux, restringindo a atuação do sindicato, na fase de execução, apenas como representante processual de seus filiados. Em agosto do mesmo ano, o STJ inverteu novamente sua orientação no AgRg nos ERESp 1.077.723/RS (rel.: min. Felix Fischer, DJe 13/8/09), invocando o EREsp nº 1.082.891/RN e devolvendo ao sindicato a condição de substituto processual na fase de execução. Eis o julgado: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DISSONÂNCIA ENTRE ENTENDIMENTOS RECENTEMENTE MANIFESTADOS NO ÂMBITO DA CORTE ESPECIAL. LEGITIMIDADE DO SINDICATO PARA ATUAR EM JUÍZO NA DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. RECONHECIMENTO, PELO STF, DA ATUAÇÃO DO SINDICATO COMO SUBSTITUTO PROCESSUAL DOS TRABALHADORES, TANTO DURANTE O PROCESSO DE CONHECIMENTO, COMO NA FASE DE LIQUIDAÇÃO OU CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. ACOLHIMENTO DE TAL ENTENDIMENTO TAMBÉM NO ÂMBITO DO STJ. - A jurisprudência da Corte Especial do STJ tem se apresentado inconstante quanto à qualificação jurídica da atuação do sindicato na fase de cumprimento de sentença proferida em ação coletiva. Há precedentes tanto no sentido de considerar que nessas hipóteses o sindicato atua como substituto processual dos trabalhadores (EREsp 1.082.891/RN; AgRg no EResp 1.077.723/RS) como no sentido de qualificar tal atuação como mera representação (EREsp 847.319/RS; EREsp 901.627/RS). - O STF firmou seu entendimento no sentido de que, tanto na fase de conhecimento, como na de liquidação ou de cumprimento da sentença proferida em ação em que se discutem direitos individuais homogêneos, a


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Revista da Ajufe atuação do sindicato se dá na qualidade de substituto processual, sem necessidade de prévia autorização dos trabalhadores (RE nº 193.503/SP; RE nº 193.579/SP; RE nº 208.983/SC, RE nº 210.029/RS; Re nº 211.874/ RS; RE nº 213.111/SP – Informativo de Jurisprudência/ STF nº 431). Em que pesem os robustos argumentos de ordem técnico processual manifestado pelos Ministros que proferiram voto-vencido naquela oportunidade, prevaleceu a ideia de máxima ampliação da garantia constitucional à defesa coletiva dos direitos e interesses dos trabalhadores em Juízo. - Pacificada a questão no Supremo Tribunal Federal, é importante que, por um critério de coerência, respeitando-se o ideal de uniformização da jurisprudência nacional, que o STJ pacifique também sua jurisprudência no mesmo sentido. Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp nº 760.840/RS, Rel.: ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/11/2009, DJe 14/12/2009). (grifo nosso)

Corroborando e fortalecendo essa posição, o STJ voltou a decidir, em 2011, da mesma forma, também por sua Corte Especial, em acórdão agora lavrado pelo ministro Luiz Fux, um dos que ressalvaram seu entendimento pessoal no julgamento transcrito acima, juntamente do ministro Teori Zavascki, para acolher o entendimento da maioria e do STF: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ATUAÇÃO DO SINDICATO. SUBSTITUTO PROCESSUAL. FASE DE CONHECIMENTO. LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DE SENTENÇA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. 1 A atuação dos sindicatos na fase de conhecimento, liquidação e execução de sentença, proferida em


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27 ações versando direitos individuais homogêneos, se dá na qualidade de substituto processual, sem necessidade de prévia autorização dos trabalhadores. 2 A Corte Especial no julgamento dos Embargos de Divergência EREsp nº 760.840/RS, acolhendo o entendimento emanado do Egrégio Supremo Tribunal Federal, assentou que: “Processual civil. Embargos de divergência em recurso especial. Dissonância entre entendimentos recentemente manifestados no âmbito da Corte Especial. Legitimidade do sindicato para atuar em juízo na defesa de direitos individuais homogêneos. Reconhecimento, pelo STF, da atuação do sindicato como substituto processual dos trabalhadores, tanto durante o processo de conhecimento, como na fase de liquidação ou cumprimento de sentença. Acolhimento de tal entendimento também no âmbito do STJ. - A jurisprudência da Corte Especial do STJ tem se apresentado inconstante quanto à qualificação jurídica da atuação do sindicato na fase de cumprimento de sentença proferida em ação coletiva. Há precedentes, tanto no sentido de considerar que nessas hipóteses o sindicato atua como substituto processual dos trabalhadores (EREsp nº 1.082.891/RN; AgRg no EREsp nº 1.077.723/RS), como no sentido de qualificar tal atuação como mera representação (EREsp nº 847.319/RS; EREsp nº 901.627/RS). - O STF firmou seu entendimento no sentido de que, tanto na fase de conhecimento, como na de liquidação ou de cumprimento da sentença proferida em ações em que se discutam direitos individuais homogêneos, a atuação do sindicato se dá na qualidade de substituto processual, sem necessidade de prévia autorização dos trabalhadores (RE nº 193.503/SP; RE nº 193.579/SP; RE nº 208.983/SC; RE nº 210.029/RS; RE nº 211.874/


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Revista da Ajufe RS; RE nº 213.111/SP - Informativo de Jurisprudência/ STF nº 431). Em que pesem os robustos argumentos de ordem técnico processual manifestado pelos Ministros que proferiram voto-vencido naquela oportunidade, prevaleceu a ideia de máxima ampliação da garantia constitucional à defesa coletiva dos direitos e interesses dos trabalhadores em juízo. - Pacificada a questão no Supremo Tribunal Federal, é importante que, por um critério de coerência, respeitando-se o ideal de uniformização da jurisprudência nacional, que o STJ pacifique também sua jurisprudência, no mesmo sentido. Embargos de divergência conhecidos e providos” (EREsp 760840/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/11/2009, DJe 14/12/2009). 3 “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado” (Súmula 168/STJ). 4 Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EREsp nº 747.702/PR, rel.: min. Luiz Fux, Corte Especial, j. 16/2/2011, DJe 8/4/2011, grifo nosso)

O mesmo Ministro Luiz Fux, que foi presidente da Comissão do Senado para a Reforma do CPC, e agora já alçado a membro do STF, teve oportunidade de relatar acórdão em RE em que foi novamente decidida a questão. O resultado reproduziu e reforçou o entendimento de 2007: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL. REPRESENTAÇÃO SINDICAL. ART. 8º, III, DA CF/88. AMPLA LEGITIMIDADE. COMPROVAÇÃO DA FILIAÇÃO NA FASE DE CONHECIMENTO. DESNECESSIDADE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.


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29 1 “O artigo 8º, III, da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos” (RE nº 210.029, Pleno, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 17/8/07). No mesmo sentido: RE nº 193.503, Pleno, Relator para o acórdão o Ministro Joaquim Barbosa, DJ de 24/8/7. 2 Legitimidade do sindicato para representar em juízo os integrantes da categoria funcional que representa, independente da comprovação de filiação ao sindicato na fase de conhecimento. Precedentes: AI nº 760.327-AgR, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 3/9/10 e ADI 1.076MC, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 7/12/00). 3 A controvérsia dos autos é distinta daquela cuja repercussão geral foi reconhecida pelo Plenário desta Corte nos autos do recurso extraordinário apontado como paradigma pela agravante. O tema objeto daquele recurso refere-se ao momento oportuno de exigir-se a comprovação de filiação do substituído processual, para fins de execução de sentença proferida em ação coletiva ajuizada por associação, nos termos do artigo 5º XXI da CF/88. Todavia, in casu, discute-se o momento oportuno para a comprovação de filiação a entidade sindical para fins de execução proferida em ação coletiva ajuizada por sindicato, com respaldo no artigo 8º, inciso III, da CF/88. [...] 4 Agravo regimental a que se nega provimento. (RE nº 696.845 AgR. Rel.: min. Luiz Fux, 1ª Turma, j.


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Revista da Ajufe 16/10/2012, DJe 19/11/2012, grifo nosso)

3. Dificuldades, limites e possibilidades da execução coletiva Como vimos, no atual estágio da jurisprudência do STJ e do STF reconhece-se, com segurança e clareza, a capacidade e a legitimidade de o sindicato atuar na fase de execução como substituto processual. Apesar de a matéria ter sido decidida de forma firme e definitiva pelas mais altas cortes de Justiça do país, na prática forense a ação coletiva movida por entidade associativa ou sindical, tanto na fase de conhecimento quanto na executiva, padece das mais variadas dificuldades. Essas dificuldades são explicadas muito pelo ranço individualista a que já nos referimos, injustificável na sociedade moderna e democrática que hoje experimentamos. Mais ainda, por faltar certa dose de ousadia e criatividade ao Judiciário, de forma a vencer resistências e embaraços operacionais que a jurisdição coletiva sempre apresenta. Cada problema deve ser pensado e resolvido tendo por norte o respeito e a valorização do interesse coletivo12, sem que seja exigido sacrifício do direito do credor de pagar apenas o que é devido, e a quem é devido. Uma dificuldade real advém do atraso tecnológico operacional dos órgãos de representação de pessoas jurídicas de direito público. Essas não mantêm controle próprio do contencioso judicial dos servidores públicos e/ou segurados da Previdência Social. Tal descontrole seria impensável na iniciativa privada. Os governos, de forma geral, têm trabalhado em todas as frentes contra a execução coletiva, opondo dificuldades legislativas13 e, em muitos casos, abusando do seu direito de defesa e recurso.

12   “Com base então na vertente zetética e na crítica, procuramos analisar a sistemática da ação coletiva não só trazendo os problemas verificados e pensados no trato cotidiano da matéria, como também vislumbrando esse viés da ciência jurídica como instrumento fundamental para transformação da sociedade. A cultura do respeito aos direitos e interesses das coletividades somente poderá ser alcançada mediante um avanço no estágio civilizatório de nossa sociedade, onde a cultura do egoísmo e da individualidade seja suplantada pela cultura do respeito e da valorização dos interesses dos demais componentes da coletividade” (REZENDE, 2012, p. 252). 13   Dignas de nota são as restrições doutrinariamente aberrantes impostas pela Medida Provisória nº 2.180-35/01, que, confundindo conceitos básicos de processo civil, limitou a eficácia da coisa julgada erga omnes que advém da sentença coletiva aos “limites da competência territorial do órgão prolator” (Lei nº 9.494/97, art. 2º).


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É conveniente para a União, suas autarquias, e estados-membros valerem-se do sistema de distribuição do Poder Judiciário para pesquisar a existência de litispendência ou coisa julgada em ações individuais. Embora tal sistema seja público – e, portanto, disponível a todos –, não podem os órgãos de representação judicial depender exclusivamente dessa ferramenta para realizar, de forma ampla, a defesa dos seus constituintes. O ideal seria que a advocacia pública mantivesse um controle próprio sobre esse passivo, em banco de dados alimentados em tempo real e em total sintonia com o sistema de administração de recursos humanos da administração direta e indireta – na esfera federal, o Sistema de Administração de Pessoal (Siape), gerido pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Entretanto, isso ainda é uma utopia. Apesar de termos adentrado no 3º milênio, os órgãos públicos ainda não conseguiram se equipar de forma a poderem se emancipar dos sistemas de distribuição de processos do Poder Judiciário. Daí a aversão que têm os advogados e os procuradores públicos de ter de responder a execuções coletivas, em que o nome do beneficiário do título não é inserido no sistema de distribuição do Poder Judiciário, embora a informação esteja disponível no processo, até mesmo em mídia eletrônica. A natureza da sentença coletiva merece acurada reflexão. Ela seria, obrigatoriamente, genérica? Aparentemente sim, ante o disposto nos artigos 95 e 98, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, que, interpretados literalmente, sempre nos levariam a uma sentença indeterminada, condicionando sua execução a nova atividade jurisdicional de cognição. 14Nessa toada, haveria uma condição prévia de procedibilidade da execução de todas as sentenças coletivas, ou seja, a liquidação prévia e individual do título executivo judicial. Mas teria o legislador pretendido obrigar o juiz, em qualquer hipótese, a proferir uma sentença genérica e vincular sua execução a uma liquidação individual, em todas as hipóteses? A resposta é negativa. 14   “Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados. [...] Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções. § 1° A execução coletiva far-se-á com base em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do trânsito em julgado” (grifo nosso).


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Com efeito, não faz sentido remeter o jurisdicionado ao início de sua longa jornada depois que teve acolhido seu pedido numa sentença coletiva, com suficiente grau de determinação de seus beneficiários, impondo-lhe uma nova ação de conhecimento, com todas as formas processuais e pródigo sistema recursal a ele inerentes. Nesse sentido, leciona Aluisio Gonçalves de Castro Mendes: Requisito que se procura defender, com origem no direito norte-americano, é que, como condição da ação coletiva, deve haver predominância de questões comuns em relação às individuais, bem como superioridade da tutela coletiva em comparação com a individual. A redação cogente, se interpretada em sentido estrito, do artigo 95 da Lei nº 8.078/90, ao estabelecer que a sentença seja sempre genérica, acaba dando prevalência a um tratamento individualista para os direitos individuais homogêneos, supondo sempre a impossibilidade de resolução coletiva e julgamento exauriente no processo coletivo de conhecimento. É claro que há casos em que a própria identificação das vítimas ou a determinação dos danos não é possível em um primeiro momento... Porém, nem sempre haverá a ausência de determinação dos beneficiários da sentença e liquidez da condenação. (MENDES, 2010, p. 289) No mesmo sentido, leciona Cássio Scarpinella Bueno: Mesmo que se trate de tutela jurisdicional de direitos e interesses individuais homogêneos, sendo proferida sentença “certa e determinada”, não há razão para a liquidação do art. 97 do Código do Consumidor, passando-se, desde logo, à execução, que será promovida, consoante o caso, pelas próprias vítimas ou pelos legi-


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33 timados coletivos (art. 98 do Código do Consumidor). (BUENO, 2012, p. 255)

O que nos move a defender a tutela coletiva na fase executiva são as mesmas razões que nos conduzem a ela na fase de conhecimento. A efetividade do processo está totalmente vinculada à da execução. Sem a conversão para o mundo dos fatos da obrigação declarada na sentença, o que nos sobra é a descrença no Poder Judiciário e a derrota do processo enquanto modo de pacificação social. Nesse sentido, leciona Ada Pellegrini Grinover: Uma sentença genérica que não seja idônea a pacificar com justiça e um processo coletivo incapaz de solucionar a controvérsia de direito material não podem encontrar guarida num ordenamento processual moderno, como o é o brasileiro. A técnica processual deve ser utilizada, então, para evitar e corrigir eventuais desvios de caminho de um processo que há de ser aderente à realidade social. Não será demais lembrar que um provimento jurisprudencial desprovido de utilidade prática desprestigia o processo e constitui em engodo para a generosa visão do acesso à justiça. O acesso à justiça não pode ser uma promessa vã. Facilitá-lo, por intermédio de ações coletivas, é um grande avanço, assimilado pelo direito processual brasileiro. Mas admitir ações civis públicas inidôneas para gerar provimentos jurisdicionais efetivamente úteis, só pode levar ao descrédito do instrumento, à frustração dos consumidores de justiça, ao desprestígio do Poder Judiciário. (GRINOVER, 2002, p. 28) Essa nossa preocupação com a ausência de efetividade, no momento do cumprimento da obrigação reconhecida na sentença, é também compartilhada com Ariane Fernandes de Oliveira:


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Revista da Ajufe A questão da falta de efetividade no ordenamento jurídico atormenta a todos. A importância do processo executivo consiste em ser este o sucedâneo natural das obrigações e outros direitos, e ainda pela intensa repercussão social. Após ter seu direito declarado (em sentido amplo), o próximo passo é vê-lo realizado no mundo fático, a mera declaração não satisfaz àquele que confiou ao Estado a tutela jurisdicional, posto que lhe é vedado fazer justiça com as próprias mãos. É necessário lembrar que apenas com a implementação da execução é que se viabiliza o escopo político do processo que é a pacificação social. (OLIVEIRA, 2008, p. 90)

A ação coletiva é a única forma adequada para lidar com demandas de massa. Assim, na nossa compreensão, toda tutela coletiva, para ser efetiva, deve continuar assim até o momento da satisfação do título. Essa é a regra que sobressai da racionalidade do microssistema da tutela coletiva brasileira. Não por outro motivo, o Projeto de Lei nº 5.139/09, no artigo 3º, IX, adota, como princípio basilar do processo coletivo, “a preferência da execução coletiva”.15 A exceção individual, prevista no artigo 98 do CDC, destina-se à situação em que o direito não for divisível, tampouco seu titular determinável logo de pronto. Enfim, trata-se de uma regra insculpida, a priori, para os direitos difusos e os coletivos stricto sensu; e não para os individuais homogêneos, que são, em essência, não apenas determináveis, mas, sobretudo, divisíveis. Em verdade, como o nome da categoria já denota, são individuais. Mas o maior entrave real é mesmo o grau de determinação dos beneficiários da sentença, bem como a evidência dos elementos ou critérios de liquidação do título executivo. Aí repousam, verdadeiramente, as limitações e as possibilidades de execução coletiva. Com efeito, o próprio título executivo, em razão da complexidade formal 15    O PL nº 5.139/09 ainda tramita na Câmara dos Deputados, tendo sido aprovado parecer de mérito pela sua rejeição no âmbito da CCJ. Foi interposto recurso regimental ao Plenário pelo seu então presidente, deputado Antônio Carlos Biscaia, ainda pendente de apreciação (fonte: <www.camara.gov.br>).


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e material da causa, pode determinar que sua execução se dê na forma individual. Mesmo não havendo previsão na sentença, o juízo ao qual foi distribuída uma execução, originária de um título coletivo, pode concluir que a forma de execução individual é a recomendável, ou mesmo a única possível, se houver necessidade de se provar fato novo. Isso ocorreu, por exemplo, na ação ordinária coletiva tombada como Ação Civil Pública nº 97.0018400-5, 16que tramitou perante a 7ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro. A sentença ali proferida, mantida por acórdão do TRF da 2ª Região, vinculou sua execução a prévia liquidação de forma individual. Resigne-se. Não havia outro modo de se executar o título, que garantia a vantagem de 28,86% a servidores públicos federais, haja vista o grande número de pessoas jurídicas que compunham o polo passivo daquela ação, movida pelo Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal no Estado do Rio de Janeiro em face da União, Susep, INSS, CRF, Ibama, Cefet, entre outros. Mas essas hipóteses são excepcionais e assim devem ser vistas. A regra geral deve ser a execução coletiva do título coletivo. Por mais que seja conveniente ao credor ou ao próprio Juízo “desmembrar” e mandar à livre distribuição as execuções, essa hipótese é deletéria para o jurisdicionado, que vai ficar privado de receber o que lhe é devido, no menor tempo possível, de acordo com o que lhe assegura a Constituição Federal (artigo 5º, LXXVIII). 4. Procedimentos saudáveis e soluções viáveis O ideal é que, desde a instrução na fase de conhecimento de uma ação coletiva até o momento da sentença, o juiz adote uma salutar preocupação com as questões que possam influenciar, positiva ou negativamente, durante a fase de execução. Entretanto, nem sempre isso é possível. Partimos da premissa de que a execução de sentença coletiva, na tutela de

16   Dentro dos limites objetivos deste trabalho, não há espaço para desenvolver o tema. Contudo, entendo que andou bem tanto a 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro como o TRF da 2ª Região quando reconheceram a natureza de ação civil pública naquela movida por sindicato da categoria, enquadrando-o como espécie da entidade associativa genérica prevista no artigo 5º da Lei nº 7.347/85 (vide AC nº 1997.51.01.018400-1, relator: desembargador federal José Neiva, citando precedentes do STJ).


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direito individual homogêneo, é regra e é obrigatória. Sua liquidação deve se dar na forma do artigo 475-B, do CPC, mediante apresentação de cálculos pelo credor, através de memória discriminada e explicativa, bem como de documentos pessoais que lhe vincule como beneficiário final ao título (contracheque, comprovante de matrícula, portaria de nomeação etc.). Essa providência, no nosso sentir, afasta a pertinente e justa preocupação de que o devedor, de alguma forma, seja prejudicado e não tenha como exercer plenamente seu direito de defesa nas execuções coletivas. A propósito, leia-se o voto-vista do min. Teori Zavaschi no acórdão proferido no tantas vezes citado EREsp nº 760.840: Todavia, é importante ressaltar o seguinte: a circunstância de estar o Sindicato legitimado a atuar em regime de substituição processual não significa que a execução possa ser promovida por valor global, de forma impessoal e indivisa, sem identificação subjetiva e material dos titulares individuais e dos correspondentes créditos a serem executados. Em outras palavras: a autorização para promover a execução por regime de substituição processual não dispensa a prévia formação do título executivo, com as características próprias, notadamente no que se refere à identificação dos credores e o valor dos respectivos créditos. Realmente, ainda que se admita que as entidades sindicais possam atuar, na fase executiva, em regime de substituição processual, não há como evitar que, nessa fase, a execução se dê em benefício particular do empregado ou do servidor beneficiado. É ele, e não o sindicato, o titular do direito material, o que acarreta a indispensabilidade de cognição a respeito da sua respectiva situação jurídica particular. É indispensável, até para a salvaguarda do direito à devida quitação em favor de quem paga, que seja identificado o credor a quem o pagamento é feito, bem como a natureza e a quantidade


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37 da prestação quitada. Tal exigência se mostra ainda mais inafastável em face da possibilidade, admitida expressamente em nosso sistema normativo, de coexistência de ações coletivas e de ações individuais (e, portanto, também das respectivas execuções), com o mesmo objeto. Não se pode retirar do executado o direito de alegar litispendência ou coisa julgada e de opor outras exceções ou objeções (v.g., pagamento, prescrição, compensação) que possa ter em face de quem a execução beneficia. Portanto, contraria a natureza das coisas imaginar uma execução por um valor global, sem identificação dos credores ou sem discriminação das prestações individualmente devidas. (STJ, EREsp nº 760.840, rel.: min. Nancy Andrighi, j. 4/11/2009, DJU 14/12/2009)

Em verdade, em muitos casos, essa preocupação é meramente teórica: sequer é discutida durante o processo de conhecimento e só é levantada durante a execução. Isso ocorreu, por exemplo, na execução promovida no Processo nº 2000.51.02.005036-5, em fase de execução pelo sindicato autor, na 1ª Vara Federal de Niterói. A petição inicial do processo de conhecimento já se fizera acompanhar de listagem de filiados do sindicato, emitida pelo sistema de informação da própria ré, Universidade Federal Fluminense (UFF), no processo de conhecimento, com base na consignação da mensalidade sindical. Por outro lado, naquele processo, os cálculos de liquidação tiveram por base planilhas financeiras extraídas do Siape, também fornecidas pela UFF. Enfim, tanto os cálculos da exequente quanto da executada tinham uma origem comum. Com o mandado de citação na execução, seguiu mídia em CD com os nomes e CPFs de cada beneficiário do título, em ordem alfabética, de forma a facilitar o controle pelo devedor. Os cálculos individuais foram juntados aos autos físicos, de forma discriminada e consolidada, agregando os honorários de sucumbência. Outros percalços que normalmente se verificam têm a ver com a complexidade irredutível a que se referiu o min. Cezar Peluso quando do julgamen-


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to da matéria no STF (vide nota 7). Não se está aqui sustentando uma utopia, muito menos um milagre da redução dos processos. Uma execução coletiva não é um remédio universal que cure todos os males da jurisdição. Tampouco pode ser imposta, de forma absoluta, como único meio de satisfação das sentenças coletivas. Como já se asseverou antes, o próprio juiz prolator da sentença de conhecimento pode, diante das circunstâncias, determinar a execução individual. O mesmo pode fazer o juiz da execução, se entender que a homogeneidade de origem, que justifica o tratamento comum, não alcança todos os substituídos. Isso ocorre, por exemplo, quando há óbito e necessidade de sucessão/ habilitação, pagamento em ação individual já conhecido ou qualquer outra situação excepcional que recomende uma execução exclusiva. Quanto mais morosa a prestação jurisdicional, mais esses casos se multiplicam. Quanto mais rápida, menos frequentes esses casos, motivo pelo qual as ações coletivas deveriam receber um tratamento preferencial – o que não acontece nem legalmente nem nos cartórios, os quais normalmente tratam tais processos como ações individuais.17 A execução individual, nos casos em que a homogeneidade se perdeu, foi necessária na ACP nº 2000.51.02.005036-5, tendo sido ajuizadas dezenas delas por herdeiros e sucessores, de forma a completar a execução total do título. Enfim, aproveitou-se ao máximo a homogeneidade do direito individual assegurado na sentença na execução coletiva, permitindo que cerca de 2 (dois) mil jurisdicionados recebessem, de forma célere, um valor médio de R$ 25 mil. Quando não foi mais possível, promoveram-se execuções individuais. Caso a opção fosse, de forma generalizada, pelas execuções individuais, mais de 2 (duas) mil ações teriam sido movidas contra a fazenda pública (UFF), e o acervo da 1ª Vara Federal de Niterói teria mais do que duplicado. Pior que isso: a celeridade e a efetividade do processo teriam sido sacrificadas desnecessariamente. Quanto à certeza de que o pagamento chegaria até o seu destinatário geral, a discussão envolve o déficit de legitimidade que a pluralidade sindical 17   Na Justiça Federal, não há classe específica para tombar ações coletivas movidas por associações e sindicatos. Essas são classificadas, para efeitos de controle processual e estatístico, como individuais.


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propicia (sindicatos fantasmas). Por outro lado, evidencia a tutela exagerada que o Estado mantém sobre o trabalhador, impedindo sua emancipação diante da organização sindical. No caso concreto (Processo nº 2000.51.02.005036-5), o Juízo da 1ª Vara Federal de Niterói determinou a abertura de uma conta-corrente especial e exclusiva, vinculada ao processo, que só poderia receber os recursos advindos do precatório, não se misturando com outros recursos do sindicato. Na outra ponta, os débitos nessa conta foram limitados aos pagamentos aos beneficiários finais do título executivo, conforme relação com nome e CPFs enviada à instituição bancária. Por fim, exigiu-se prestação de contas, em razão do interesse público presente na execução de direitos coletivos, mesmo que individuais homogêneos. Todas essas deliberações, bem como outras questões incidentes, foram resolvidas em audiência, de forma célere, transparente e objetiva. Outra providência que o juízo da execução pode tomar, sem malferir a legislação processual, é elastecer o prazo para que o embargante apresente seus cálculos individualizados. Assim, no trintídio do artigo 1-B da Lei nº 9.494/97, o devedor apresentaria os fundamentos de direito e contábeis que pretenda impugnar, bem como o cálculo de algum paradigma. Posteriormente, num prazo razoável, a depender da quantidade de beneficiários do título, faz-se a juntada dos cálculos faltantes em momento posterior.18 Enfim, salvo algum óbice legislativo infraconstitucional intransponível, não há limites à criatividade do juízo da execução em cumprir o disposto no artigo 8º, III, da Constituição da República de 1988, em prol da celeridade e da efetividade da jurisdição. 5. Conclusão É prioritário e preferencial que a execução de sentença coletiva se dê na

18   Esse procedimento foi adotado na ação de execução coletiva contra a fazenda pública tombada sob nº 0001861-63.2011.4.02.5102, também da 1ª Vara Federal de Niterói. Foi determinada a citação para opor embargos no prazo legal, em que deveriam “constar os fundamentos de direito e contábeis que pretenda impugnar, facultando-lhe apresentar seus cálculos em até 90 (noventa) dias, ante o grande número de beneficiários do título”. Posteriormente, essa execução foi extinta.


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forma coletiva. A execução coletiva é aquela promovida pelo mesmo ente legitimado para a fase de conhecimento. A parte é o sindicato, sendo esse o único a figurar no sistema de distribuição e autuação processual, e em nome de quem deve ser paga a obrigação afirmada na sentença. A liquidação do julgado, a identificação dos sujeitos passivos da obrigação, o rateio da condenação e a certeza do pagamento ao destinatário final são questões processuais que se resolvem dentro da ação de execução, mas não infirmam ou prejudicam a figura do sindicato como substituto processual da categoria que representa, dos seus filiados, de parte deles, ou de apenas um associado, se assim entender atuar. Salvo exceções, em ações coletivas de direitos individuais homogêneos não cabe a exigência de prévia ação de conhecimento para liquidação por artigos (artigo 475-E do CPC), ante sua desnecessidade e grave prejuízo que causaria ao jurisdicionado final. Os beneficiários finais dos títulos executivos (quis debeat), em que haja sido reconhecido direito individual homogêneo cuja obrigação é determinada (an debeatur), são facilmente identificáveis, não sendo necessário nenhum esforço cognitivo que não seja pressuposto processual para aptidão de uma petição inicial de uma ação de execução (quantum debeatur). O direito individual homogêneo a ser satisfeito continua, em essência, individual, e não difuso ou coletivo stricto sensu. Submeter tais jurisdicionados a uma nova ação de conhecimento é juridicamente incorreto e humanamente cruel. Cabe ao juiz da execução promover o andamento da ação de forma transparente e objetiva, mantendo a marcha processual regular e firme na efetivação do processo de execução. Durante a tramitação da ação, o surgimento de obstáculos operacionais deve ser superado de forma criativa, construindo-se soluções para cada situação, à mercê da instrumentalidade do processo – sempre possibilitando ao devedor exercer, na sua plenitude, o direito de defesa. Referências ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos, Rio de Janeiro: Forense, 2000. BUENO. Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual


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A construção do direito na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades no uso das sentenças aditivas


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Newton Pereira Ramos Neto Doutorando pela PUC/SP. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB. Professor da UFMA. Juiz Federal.

1. Introdução É inegável que a jurisdição constitucional brasileira deu um salto de qualidade nos últimos anos, especialmente a partir de uma virada jurisprudencial em relação à efetividade de seus mecanismos de controle1 e do esvaziamento de uma visão meramente formal do dogma da separação de poderes.2 Desse modo, a hermenêutica constitucional ingressou definitivamente na vida cotidiana do cidadão, não havendo mais praticamente nenhuma discussão sobre temas relevantes que não passe pelo crivo do Supremo Tribunal Federal. Inventada pelos modernos, a Constituição passa a ser reinventada pela jurisdição constitucional, dada as dimensões política e jurídica que assumiu e os novos contornos que passou a apresentar pela ópera daquela jurisdição.3 Para isso contribuiu decisivamente a larga produção científica elaborada recentemente sobre o controle brasileiro de constitucionalidade, que foi capaz de sedimentar alguns pressupostos teóricos e, sobretudo, problematizar algumas questões cujo exame revela-se imprescindível para o equilíbrio da tensão existente entre os mecanismos de fiscalização e seus limites democráticos. A essa doutrina deve-se acrescentar a incessante busca pela construção de um modelo de jurisdição constitucional adequado à realidade brasileira, concebi-

1   Como ressalta Bruce Ackerman, no contexto das constituições europeias do pós-guerra e nas demais constituições mundiais que delas sofreram influxo, o perfil dos Tribunais Constitucionais voltou-se ao asseguramento da efetividade dos direitos e compromissos assumidos em um texto constitucional fruto do rompimento com sistemas autocráticos de governo (ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 68). 2   O princípio da separação dos poderes, tal como concebido tradicionalmente, sustentava-se como sistema de balanceamento entre as funções estatais, de modo a garantir a liberdade individual, nos termos do modelo liberal de Estado. Partia-se de premissas distintas daquelas que acalentaram a formação do Welfare State, que concebe o Poder Público como prestador de serviços e exige, em consequência, um controle do adimplemento das obrigações estatais. 3   SAMPAIO. José Adércio Leite. As sentenças intermediárias de constitucionalidade e o mito do legislador negativo. In: SAMPAIO. José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.). Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 161.


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do sob inspiração de sistemas alienígenas, mas não uma mera reprodução mal acabada do que acontece na vida constitucional fora do Brasil.4 Impõe-se reconhecer, assim, que vivemos um momento de verdadeira euforia constitucional. Atualmente, todas as relações jurídicas podem ser discutidas sob o prisma da Constituição. A era dos princípios, com a fluidez inerente ao exame de sua densidade jurídica, trouxe severas dificuldades no campo da interpretação constitucional. Superados os esquemas lógico-dedutivos do positivismo, tornou-se hercúlea a tarefa de definição do conteúdo da norma regente do caso concreto, especialmente à luz de uma necessária racionalidade argumentativa5 e do reconhecimento de que o texto é a mera ponta do iceberg, sendo a posição do intérprete decisiva para a exata compreensão do preceito incidente na realidade social.6 Logicamente, essa mudança de olhar teria consequências na atividade judicial, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a quem o legislador constituinte conferiu a tarefa de “guardião da Constituição”. Ocorreu, nesse contexto, a maximização da função da Corte Suprema, que passou a exercer papel destacado no exame da validade e do conteúdo das normas e relações jurídicas apreciadas sob o crivo de uma Constituição normativa, não mais vista como uma mera “promessa” – que, como tal, poderia ser cumprida ou não –, mas sim como um documento a ser levado a sério.7

4   A riqueza do controle de constitucionalidade brasileiro está exatamente no aproveitamento das experiências internacionais bem-sucedidas – controle difuso e concentrado -, o que confere ao nosso sistema signficativa pluralidade e fomenta a democratização do debate público sobre a validade das normas jurídicas. 5   Para um exame do constitucionalismo moderno à luz do pós-positivismo e da constitucionalização de direitos, vide, entre outros, CARBONELL. Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madri: Ed.Trotta, 2003; SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999; BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, volume 240 – abril/junho de 2005; MAIA, Antônio Cavalcanti. Nos vinte anos da Carta Cidadã: do Pós-positivismo ao Neoconstitucionalismo. In: Cláudio Pereira de Souza Neto; Daniel Sarmento; Gustavo Binenbojm. (Org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 117-168. 6   Sobre a distinção entre norma e texto da norma (programa normativo), vide MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 7   DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução por Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Entre nós, surgiu o “constitucionalismo brasileiro da efetividade”, expressão cunhada por Cláudio Pereira de Souza Neto para referir-se a uma estratégia teórica de superação da dicotomia norma/realidade social, com vistas à atribuição de máxima eficácia à norma constitucional. (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 285-326).


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Esse fenômeno, por um lado, tem grandes aspectos positivos, já que permitiu o reconhecimento e a efetivação de direitos que contribuem sobremaneira para a emancipação social e para a realização do compromisso constitucional de construção de uma sociedade justa e igualitária. Por outro lado, todavia, vem demonstrando o apequenamento dos demais poderes diante do “terceiro gigante”8, o que revela uma crise no equilíbrio das funções estatais que, acaso não debelada, pode conduzir à implosão do edifício da democracia construído em mais de 200 anos de luta. Assim, se houve um passo decisivo na busca por critérios mais precisos de exercício do controle de constitucionalidade, é chegado o momento de refletirmos seriamente sobre os limites do juiz constitucional no Estado Democrático de Direito, a fim de evitar que passemos de um marasmo jurídico para uma histeria judicial. Isto é, de um modelo de jurisdição constitucional excessivamente contido para outro politicamente invasivo, que não respeite a autonomia do cidadão e de seus órgãos de representação popular. Permanecem, portanto, em nosso cenário jurídico-constitucional, diversas questões cujo enfrentamento é condição essencial para o equacionamento do problema: como conciliar o exercício da jurisdição constitucional contemporânea com um ideal de democracia representativa? Qual o papel do juiz nessa quadra do desenvolvimento histórico? Teria ele posição privilegiada em relação ao legislador? Deve esse magistrado, no exercício de sua tarefa hermenêutica, conter-se na moldura do legislador negativo, sob pena de violação à separação de poderes, ou prestigiar a qualquer preço a efetividade da Constituição, especialmente os direitos fundamentais ali contidos? Neste ensaio, enfrenta-se o desafio de, em poucas linhas, demonstrar-se alguns aspectos que contribuíram para a expansão da jurisdicional constitucional e, sobretudo, o estágio em que nos encontramos hodiernamente: a criação de mecanismos de decisão que, sem negar a postura ativista necessária do juiz constitucional, construam soluções para os limites de atuação do Judiciário no cumprimento de sua missão, de modo que essa postura não venha a ser a própria negação de seu papel democrático no quadro atual do constitucionalismo.

8   CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução por Carlos Alberto Álvares de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 47.


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Assim, não se pretende aqui demonstrar a verdade banal, embora negada ou ocultada em todas as épocas, da atividade “criativa” dos tribunais.9 Antes, pretende-se discutir como essa função deve ser exercida a fim de compatibilizar-se com um modelo ideal de Estado Democrático de Direito. A tarefa é difícil porque o tema é complexo, não havendo fórmulas prontas que permitam a enunciação de verdades. Seu exame, por outro lado, implica necessariamente no rompimento de velhos paradigmas.10 Mas é preciso avançar. E avançar a partir do questionamento das pré-compreensões fenomênicas, porque é assim que a ciência se desenvolve, ainda que a passos lentos, próprios da instabilidade dos terrenos transitivos pelos quais caminhamos durante a travessia entre o velho e o novo. Se o presente texto conseguir de algum modo estimular o debate, sua missão já estará cumprida. 2. A jurisdição constitucional moderna: a ascensão do judiciário no contexto da crise da realização dos direitos

9   Essa afirmação é de Mauro Cappelletti nas premissas de seu trabalho Juízes legisladores? No mesmo sentido, FISHER, Louis. Constitutional Dialogues: Interpretation as Political Process. Princeton: Princeton University Press, 1988, p. 37 e ss. As aspas foram propositalmente colocadas para ilustrar a necessidade de que a visão do papel do Judiciário como uma atividade criativa do Direito seja acolhida com reservas em razão dos perigos que uma compreensão generalizada encerra. Numa concepção democraticamente adequada e à luz do pós-positivismo, a construção da resposta judicial ocorre dentro ou a partir do próprio sistema normativo, no âmbito de seu modelo de regras e princípios, considerando-se, para tanto, a integridade do Direito (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003) e sua interpretação como uma teia inconsútil (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 180 e ss). Pelo menos nessa perspectiva, não há que se falar em livre criação judicial do Direito, no sentido proposto por Hart, como mecanismo de solução dos denominados hard cases, para os quais não há uma regra clara de incidência e caberia ao magistrado decidir a partir de razões morais, éticas etc., exercendo nítida competência legislativa (HART, Herbert L.A. Conceito de Direito. 2 ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, v. 71, 1958, p. 593.). Não se desconhece, entretanto, que a dicotomia entre revelação e criação do Direito não faz sentido no paradigma pós-positivista, já que o Direito hoje deve ser reconhecido como uma constante prática construtiva e evolutiva. 10   A expressão é surrada, mas de uso ainda essencial para a compreensão do marco histórico pelo qual passa o constitucionalismo contemporâneo, especialmente a necessidade de redefinição da temática ora abordada. Para uma exata apreensão do termo, vide KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. 2. ed., enlarged. Chicago and London: University of Chicago Press, 1970. Há uma versão em português: A estrutura das revoluções científicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.


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Sob a perspectiva do liberalismo, entendia-se a lei como mecanismo de demarcação da esfera de intervenção estatal, uma ferramenta de contenção da ideologia que norteou o Estado absolutista. Ali, as constituições adquiriram um matiz de instrumento quase que exclusivamente regulatório da atividade do Estado, em vista da necessidade de organização das competências e de limitação do poder em face dos direitos fundamentais recentemente reconhecidos. Nessa época, a filosofia positivista atribuía ao juiz o papel de mero ventríloquo, a quem cabia apenas enunciar o conteúdo linguístico dos códigos, cuja literalidade supostamente seria capaz de dar solução aos mais variados litígios.11 O papel do Judiciário altera-se significativamente com o declínio do paradigma liberal, de modo especial a partir da expansão do constitucionalismo na segunda metade do século XX12. As cláusulas compromissórias próprias do Estado do bem-estar social implicaram em atribuição de maior ênfase à função do Poder Executivo no campo da realização dos direitos fundamentais. Mais adiante, a partir da constatação do déficit de efetividade das cartas constitucionais em virtude da postura omissiva do poder político, passou-se à construção de uma hermenêutica voltada ao incremento do papel do Judiciário nessa seara.13 No período do pós-guerra, portanto, o processo inaugurado com a era das codificações – na qual a lei era exatamente a ferramenta de contenção de um Poder Judiciário que historicamente não inspirava confiança – se inverte, passando o magistrado a construir direitos a partir das denominadas cláusulas programáticas, de nítido caráter aberto14, numa tendência 11   Sobre o tema, vide CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, mai. 1999. 12   No caso brasileiro, esse fenômeno tem outro marco inicial: o processo de redemocratização a partir da Constituição de 1988. Nesse sentido, BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado, n. 13, jan./mar. 2009. 13   Cf. GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. 14   “A indeterminação do Direito, por sua vez, repercutiria sobre a relação entre os Poderes, dado que a lei, por natureza originária do Poder Legislativo, exigiria o acabamento do Poder Judiciário, quando provocado pelas instituições e pela sociedade civil a estabelecer o sentido ou a completar o significado de uma legislação que nasce com motivações distintas às da ‘certeza jurídica’. Assim, o Poder Judiciário seria investido, pelo próprio caráter do Estado Social, do papel de ‘legislador implícito’. (VIANNA, Luiz Werneck et all. A judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 21). Na


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de “normativização” da teoria da Constituição.15 É dizer, no contexto da crise do Estado Social, e notadamente diante de uma demanda por novos direitos fundamentais,16 que a jurisdição constitucional é alçada ao patamar de um legislador concorrente ou subsidiário, no dizer de Habermas,17 na sua forma negativa e positiva, no sentido da realização da ordem constitucional a partir de uma pauta axiológica de convicções tidas como majoritárias na sociedade.18 A complexidade da vida passa a ser resolvida sob a perspectiva de um “instrumentalismo constitucional” – basta a solução estar prevista na Constituição – e a crença no Poder Judiciário como “Salvador da República”.19 Transitamos, assim, da desconfiança no Judiciário para o descrédito do Le-

mesma linha, ressalta Mauro Capelletti que a consagração de direitos econômicos e sociais, notadamente a partir de cláusulas de conteúdo indeterminado, também é elemento que contribui decisivamente para o protagonismo judicial da era contemporânea (CAPELLETTI, Mauro. Op. cit., p. 68). 15   Para Gilberto Bercovici, uma das poucas teorias constitucionais que tentou escapar dessa normativização foi a teoria da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, proposta por Peter Häberle. Nessa teoria, sustenta-se que todos os setores da sociedade estão vinculados ao processo de interpretação constitucional, de modo que não se pode limitar ou reduzir os intérpretes do texto constitucional aos atores jurídicos e participantes formais do processo constitucional (BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: Cláudio Pereira de Souza Neto; Gilberto Bercovici; José Filomeno de Moraes Filho; Martonio Mont’Alverne Barreto Lima. (Org.). Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 109). 16   Sobre a demanda por novos direitos fundamentais, a exemplo dos coletivos e difusos, vide PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira (Org.). O novo direito administrativo brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2003, v. 1, p. 7-367. 17   HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. Tradução por Manuel Jiménez Redondo Madrid: Trotta, 2005, p. 326 e ss. A citação serve para ilustrar a tendência hodierna de atuação dos tribunais constitucionais. Todavia, como se registrará mais à frente, entendemos que o equilíbrio entre a autonomia pública (soberania popular) e a privada (direitos humanos), especialmente em países periféricos como o Brasil, exige uma postura ativa do Judiciário até como forma de se assegurar a liberdade do indivíduo, historicamente privado de direitos sociais básicos. Assim, a presente reflexão centra-se mais no como agir (limites de atuação) o Judiciário do que no por que agir (legitimidade). 18   Sobre a Constituição como ordem concreta de valores, vide ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução por Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 81 e ss. 19   BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 77.


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gislativo, numa espécie de “demonização” do processo político deliberativo.20 Diante da paralisia histórica das instâncias políticas e de sua incapacidade de realizar propósitos tão audaciosos de uma Constituição extremamente compromissória – fenômeno por si só capaz de oportunizar um sentimento de fracasso constitucional –, o Judiciário passou a ocupar os espaços vazios, funcionando, hoje, como a imagem paternal de uma sociedade órfã e sua mais alta instância moral, na feliz expressão de Ingeborg Maus.21 De um lado, essa perspectiva atual da jurisdição constitucional permitiu o reconhecimento de que, a partir de uma leitura axiológica do direito, cabia ao Judiciário realizar as promessas consagradas no texto constitucional, tornando-as realidade vívida. De outro, ensejou a inclusão de argumentos políticos no discurso judicial, a partir de ferramentas argumentativas como a ponderação de interesses e o princípio da proporcionalidade,22 cuja utilização acrítica pode nos conduzir a um retorno às tradições do positivismo, em que se reconhecia a existência de uma discricionariedade judicial a ser utilizada sempre em busca da solução que pareça mais justa.23

20   BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 103. Há quem afirme, inclusive, que o constitucionalismo dirigente, ao pretender conter todos os princípios e possibilidade de conformação do ordenamento, favoreceria o crescimento do papel político do tribunal constitucional, que se autoconverteria em “senhor da Constituição” (BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos, 1993). 21   MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov 2000. 22   Uma tendência de “subjetivação” da interpretação constitucional na prática dos tribunais é patente. No recentíssimo julgamento acerca da legislação que proíbe a importação de pneus usados (ADPF 101, rel. Min. Cármen Lúcia, julgada em 24/06/09), o Min. Eros Grau, em seu voto-vista, fez considerações sobre a ponderação de princípios, ressaltando que esta se dá “pelo subjetivismo de quem a opera.” Disse, ademais, que “princípios de direito não podem ser ponderados entre si, apenas valores podem submetidos a esta operação. Os princípios são normas, mas quando estão em conflitos com eles mesmos são valores”, de modo que pode haver grave incerteza jurídica em razão da técnica da ponderação entre princípios relativos aos conflitos entre direitos fundamentais, pois a opção por um e não por outro é perigosa e ocorre de acordo com o intérprete. 23   Na mesma linha, ressalta José Adércio Leite Sampaio que, por meio da razoabilidade, a Constituição escrita se esvaziou de conteúdo, abrindo-se janelas de incertezas nos discursos de aplicação constitucional. Com efeito, assevera o autor que “a ‘Constituição judicial da razoabilidade’ é, portanto, uma ‘Constituição ad hoc’ e relativa (SCACCIA, 2000:379). A ‘Constituição do caso’ e ‘do juiz’ acaba por desnortear a própria teoria constitucional, pois em que bases se permite falar consistentemente em um poder constituinte originário, se a


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Daí a necessidade de demarcação dos limites da jurisdição constitucional, especialmente no que tange a uma possível atividade quase normativa, já que aqui é maior o ponto de tensão entre o exercício da função jurisdicional e a atividade parlamentar. Com isso, busca-se não reduzir a importância que o Poder Judiciário alcançou no espaço democrático atual, uma vez que é inegável constituir a função jurisdicional elemento-chave no equilíbrio entre a atividade política e a realização do texto constitucional. Ao contrário, encontrar o ponto exato em que essa função é exercida de modo legítimo no ambiente democrático é tarefa essencial para que a jurisdição constitucional continue a gozar do prestígio e da relevância que lhe atribuíram as mais diversas instâncias sociais e políticas no decorrer dos tempos. 3. Do dogma do legislador negativo ao reconhecimento do papel contemporâneo da jurisdição constitucional No modelo proposto por Kelsen no início do século XX sustentava-se que o Tribunal Constitucional deveria limitar-se a excluir do ordenamento a norma considerada inconstitucional, como uma espécie de função legislativa em “sentido negativo”.24 Essa visão encontrou um reforço após a Segunda Guerra Mundial. Considerando a experiência traumática anteriormente vivida, sob inspiração do modelo austríaco, passou-se a defender, na Alemanha, o caráter jurisdicional e não “paralegislativo” do Tribunal Constitucional.25

sua obra for uma simples referência vaga entre os espectros de uma razoabilidade sem fim à disposição dos poderes constituídos?” (SAMPAIO, José Adércio Leite. O retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 94-95). Por sua vez, lembra Virgílio Afonso da Silva, sem firmar posição contrária à utilidade do referido princípio como ferramenta argumentativa no contexto da decisão judicial, que “a invocação da proporcionalidade é, não raramente, um mero recurso a um tópos, com caráter retórico, e não sistemático. Em inúmeras decisões, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se à fórmula ‘à luz do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional.’” (SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, nº. 798, ano 91, p. 23-50, abr. 2002, p. 31). 24   KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução por Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 261. 25   MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça Constitucional. O contencioso constitucional português entre o modelo misto e a tentação do sistema de reenvio. Tomo II. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 247.


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Não haveria, assim, espaço para a flexibilização da nulidade da norma incompatível com a Constituição. De modo acrítico, a visão kelseniana passou a ser reconhecida como uma ideia imanente à jurisdição constitucional e ao postulado da separação de poderes. Entre nós, tal tendência ensejou inclusive a edição da Súmula 339 pelo Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”. Aliás, a perspectiva do legislador negativo ligava-se à noção de conformidade funcional e ao modelo de “constituição-moldura”, no qual caberia à Corte Constitucional limitar-se a verificar se o legislador obedece a seus limites de atuação no âmbito da moldura estabelecida pelo constituinte.26 Essa ideia, portanto, própria do constitucionalismo liberal e das constituições sintéticas, até mesmo soa estranha no ambiente das constituições dirigentes, que impõem um sem-número de prestações ao Poder Público perfeitamente sindicáveis na seara judicial. O fato, porém, é que a práxis judiciária nos mais diversos sistemas revelou que referido dogma encontrava-se em fase de superação – se é que, realmente, algum dia efetivamente vingou. As Cortes Constitucionais construíram técnicas de decisão que, expressa ou veladamente, importam no reconhecimento de algum papel criativo dos tribunais. A própria necessidade de tutela dos direitos fundamentais e de princípios constitucionais – entre os quais a segurança jurídica e a igualdade – demonstrou que nem sempre a solução mais adequada é o simples afastamento da norma inconstitucional, que pode gerar uma situação de inconstitucionalidade mais grave do que a manutenção da norma no ordenamento. Pensada nesse contexto, a gênese do modelo de decisões manipulativas decorreu exatamente do interesse crescente dos Tribunais Constitucionais pelos “efeitos colaterais” de suas decisões,27 notadamente a necessidade de, dentro dos limites democráticos, dar-se a maior efetividade possível à Constituição. Por essa razão, a solução encontrada foi a mitigação do binômio cons-

26   Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 129. 27   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 248.


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titucionalidade/inconstitucionalidade como efeito da incompatibilidade da norma com o texto constitucional, na medida em que o interesse público decorrente da sanção de nulidade, segundo o fundamento teórico ora majoritário, precisa harmonizar-se com outros interesses também tutelados na ordem jurídica.28 Desse modo, o reconhecimento do fracasso do dogma do legislador negativo mais se impõe à vista da ideia praticamente assente de que há uma “via intermediária” no reconhecimento da inconstitucionalidade das leis, que ensejará exatamente o uso das decisões com caráter manipulativo.29 4. As sentenças do controle de constitucionalidade Em linhas gerais, e tendo por base a modelação de sentido da norma sob julgamento ou dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, as sentenças do controle de constitucionalidade podem ser divididas em sentenças de nulidade e manipulativas.30 Estas se diferem das primeiras exatamente porque nelas se busca uma via intermediária de solução para o caso constitucional, preservando-se parte do domínio normativo acaso existente, enquanto que nas primeiras a decisão é de tipo “extremo”,31 já que se limitam a expurgar 28   Não é nossa intenção, nos limites estreitos do presente trabalho, discutir se a mitigação dos efeitos da inconstitucionalidade viola o código binário do Direito, transigindo com seu caráter deontológico, como o faz parcela da doutrina (MEYER, Emílio Peluso Neder. A decisão no controle de constitucionalidade. 1. ed. São Paulo: Método, 2008.). A assertiva acima desenvolvida tem como finalidade apenas demonstrar como, diante do atual estágio de aplicação da teoria da inconstitucionalidade das normas – inclusive com o reconhecimento dessa “terceira via” de decisão por diversas ordens constitucionais (vide, e.g., o nº. 4 do art. 282º da Constituição Portuguesa) -, é importante a discussão sobre o papel criativo dos tribunais e os limites a ele inerentes sob o viés democrático. 29   Veja-se que o fenômeno acima descrito em muito contribuiu para a superação do dogma restritivo, mas não se pode dar a ele um tom de exclusividade. É que, mesmo na ótica de uma inflexível sanção de nulidade da norma constitucional, é possível que se reconheça o papel criativo da jurisdição. Com efeito, notadamente nos casos de nulidade parcial, da interpretação da Corte Constitucional pode resultar um sentido da norma não pensado ou não reconhecido antes da decisão judicial. 30   De forma diferente, José Adércio Leite Sampaio, por exemplo, chama as segundas de “sentenças intermediárias”, que se subdividiriam em sentenças normativas (aditivas, aditivas de princípio e substitutivas) e transitivas (SAMPAIO, José Adércio Leite. Op. cit., p. 163). 31   Conforme terminologia de SEGURA, Angel Latorre & DIEZ-PICAZO, Luis. La Justicia Constitucional en el Quadro de las Funciones del Estado. In: Justiça Constitucional e espécies. Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Constitucionalidade de Normas. Lisboa: Tribunal Constitucional, 1987, p. 198.


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do mundo jurídico o ato tido por inconstitucional. Assim, a referida técnica de decisão, para além da formulação de um juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, comporta efeitos transformadores sobre a relação de significado ou sobre as consequências jurídicas produzidas pelo preceito normativo que é objeto da decisão.32 No âmbito das sentenças manipulativas, encontram-se três modelos gerais: as sentenças restritivas dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade, as sentenças interpretativas (que abrangeriam a interpretação conforme e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto) e as sentenças com efeitos aditivos.33 Em todas essas modalidades, como dito alhures, existe um sentido de preservação da norma impugnada. Nas sentenças aditivas, há uma censura ao silêncio inconstitucional do legislador, com a junção de uma norma obtida mediante construção jurisprudencial,34 exprimindo, portanto, “poderes tendencialmente normativos”.35 Nela, pois, reconhece-se a inconstitucionalidade da norma, nos termos originariamente veiculados, juntando-se, porém, um quid normativo extraído do ordenamento que permite à norma sobreviver a partir de sua reconstrução em termos constitucionalmente válidos. A inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição, o que justifica o acréscimo sob a via interpretativa feito pelo órgão jurisdicional.36

32   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., 109. 33   Todavia, no âmbito da doutrina estrangeira, a classificação é variadíssima, não havendo um consenso acerca de um critério classificatório e conceitual. Sobre o tema, especialmente as diversas classificações e conceitos, vide, e.g., VEGA, Augusto de la. La sentencia constitucional en Itália. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003. 34   Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Op. cit., p. 110. Para o autor, contudo, referidas sentenças não são admissíveis no modelo português, diferentemente do que ocorre na França, onde é possível ao Conselho Constitucional, no exercício do controle preventivo, reconstruir a norma com o sentido determinado aditivamente. Em Portugal, para o autor, somente seriam admissíveis sentenças “atípicas” desprovidas de efeitos constitutivos, como é o caso das sentenças “apelativas” e “orientadoras”. 35   CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1017. 36   MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição. Tomo VI. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 88.


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Observa-se, aliás, que as sentenças aditivas surgiram para evitar um estado de inconstitucionalidade mais grave imputável ao legislador ou à própria decisão de inconstitucionalidade. Foi essencialmente, pois, para dar resposta à necessidade de suprimento das omissões relativas inconstitucionais – normalmente violadoras do princípio da igualdade – ou lacunas geradas pela própria decisão de inconstitucionalidade que nasceram as decisões com efeitos aditivos.37 Em linhas gerais, portanto, o quadro que permite o uso das sentenças aditivas, segundo sua longa construção na doutrina estrangeira, pode ocorrer em duas situações.38 Primeiro, quando a decisão de acolhimento do Tribunal elimina uma norma sem que seja possível a repristinação do direito anterior e do vazio normativo possa resultar lesão a direitos e expectativas legítimas dos cidadãos, bem como a interesse público relevante. Segundo, nos casos em que a legislação estipule sacrifícios ou benefícios a uma dada categoria de destinatários, silenciando quanto à inclusão de outras categorias em idêntica situação fática. Como variação das sentenças aditivas, temos as substitutivas e as aditivas de princípio. As sentenças substitutivas possuem natureza dupla: primeiro, declara-se a inconstitucionalidade enquanto prevê ou sinala algo diferente daquilo que deveria ser estabelecido; segundo, mediante decisão aggiuntiva, acrescenta-se novo conteúdo normativo compatível com o texto constitucional. Nas sentenças substitutivas, considera-se que a “tarefa legislativa” é ainda superior àquela exercida nas sentenças aditivas, posto que nestas o Tribunal Constitucional altera o âmbito normativo do preceito, respeitando, todavia, do ponto de vista formal, o dispositivo anteriormente existente. Nas sentenças substitutivas, por seu turno, a norma criada importa em desconsideração parcial do texto então vigente.39 Declara-se, assim, a inconstitucionalidade parcial da norma, conjugando-se o critério diverso de decisão com 37   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 263. 38   Sem que se pretenda aqui esgotar todas as possibilidades historicamente já concebidas na doutrina e jurisprudência estrangeiras. O objetivo é apenas ilustrar as situações nas quais corriqueiramente ocorre a utilização dessa modalidade de sentença manipulativa. 39   BRUST, Léo. Uma tipologia das sentenças constitucionais. Revista da AJURIS, ano XXXIII, n. 102, junho de 2006, p. 238.


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o segmento da norma não julgado inconstitucional.40 Em relação às sentenças aditivas de princípio, ao invés de importarem em modificação direta da norma sob exame, elas apenas declaram a inconstitucionalidade da omissão do legislador, fixando um princípio diretivo da atividade a ser posteriormente desenvolvida pelo Parlamento. A decisão da Corte Constitucional, no caso, passa a valer como diretriz principiológica a que os tribunais ordinários podem fazer alusão quando do exame de casos concretos até o futuro advento da legislação.41 Na Itália, como lembra Carlos Blanco de Morais,42 após um período de ampla utilização que ocorreu até a metade da década de 1980, houve um questionamento no seio da comunidade jurídica quanto aos efeitos “normativos” da sentença que assumiria caráter geral. A partir de então, o Tribunal Constitucional passou a utilizar-se da decisão com efeitos aditivos apenas quando a operação reconstrutiva decorresse diretamente de uma norma constitucional (solução constitucionalmente obrigatória). Nos casos em que a omissão legislativa ensejasse uma pluralidade de opções integrativas, aquela Corte passou a utilizar-se das sentenças aditivas de princípio.43 Ou seja, mesmo no país onde as sentenças aditivas encontraram maior acolhida, hoje se reflete sobre a necessidade de estabelecimento de limites para a integração normativa realizada por ato do Judiciário, como forma de evitar-se a invasão da esfera de liberdade do legislador, notadamente em face de um histórico de uso das sentenças aditivas a partir de parâmetros discricionários.44 Assim, enquanto no Brasil apenas se inicia o debate sobre o reconhecimento da utilização de técnicas dessa natureza, na doutrina e jurisprudência estrangeira a discussão gira em torno exatamente dos limites e das possibilidades dessa mesma utilização. 40   CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 1019. 41   BRUST, Léo. Op. cit., p. 245. 42   Op. cit., p. 260. 43   Sobre esse ponto especificamente, há importante manifestação do Presidente da Corte Constitucional italiana, Renato Granata, em La giustizia costituzionale nel 1997. Conferenza stampa del 11 febbraio 1998. Disponível em: www.cortecostituzionale.it/informazione/interventi_dei_presidenti. 44   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 398.


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A vantagem das sentenças aditivas de princípio, pelo menos no que diz respeito a seu possível conflito com a atividade parlamentar, é patente: no âmbito do controle concentrado, impede o efeito traumático de o Poder Judiciário diretamente interferir na atividade do legislador com efeitos erga omnes; no controle difuso, equivale aos efeitos das sentenças aditivas em sentido estrito, já que a diretriz apontada pela Corte Constitucional limitar-se-á aos efeitos inter partes. Por outro lado, trata-se de proposta alternativa capaz de conter eventuais abusos no exercício da jurisdição constitucional diante da realidade irreversível do ativismo judicial. Não nos ocuparemos das sentenças restritivas dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade e das sentenças interpretativas, na medida em que elas já sofreram amplo desenvolvimento na doutrina pátria – sem que com isso se esteja a dizer que o estudo relativo a essas modalidades de decisão não seja inçado de dificuldades e que ainda mereça ampla discussão. Já o estudo das chamadas sentenças aditivas clama por uma urgente sistematização no constitucionalismo brasileiro, na medida em que se observa, especialmente no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, uma paulatina utilização dessa técnica de decisão, embora muitas vezes sob a roupagem de interpretação conforme.45 Não se justifica, porém, a confusão terminológica.46 Na interpretação conforme a Constituição, ao pretender-se dar um significado ao texto normativo compatível com a Constituição, a decisão se localiza no âmbito da interpretação da lei. Não há aqui, portanto, a extensão da norma examinada para situações que foram intencionalmente excluídas do raio de ação do texto normativo, como ocorre nas decisões com efeitos aditivos.

45   Com efeito, nem sempre há uma exata correspondência entre aquilo que a doutrina expõe, aquilo que a jurisprudência sustenta aplicar e aquilo que a jurisprudência de fato aplica (AFONSO DA SILVA, Virgílio. La interpretación conforme a la constitución: entre la trivialidad y la centralización judicial. Cuestiones Constitucionales, v. 12, p. 3-28, 2005, p. 14). 46   Não se desconhece que tais classificações foram concebidas ainda no início da segunda metade do século XX e que resultam de certo apego semântico ao texto normativo. Assim, embora tais distinções afigurem-se questionáveis a partir da virada hermenêutica, quando se passa ao reconhecimento de que vivemos em uma comunidade de princípios – cuja interpretação pode conduzir a algum afastamento do texto nas mais variadas formas –, mantém-se a referida classificação no presente trabalho como forma de facilitar a definição dos limites do STF no uso das sentenças aditivas.


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Na declaração de nulidade parcial sem redução de texto, por sua vez, o conteúdo decisório se situa no âmbito da aplicação da lei, pretendendo excluir de sua esfera de incidência algumas situações ou pessoas. Assim, enquanto a inconstitucionalidade parcial reduz o âmbito subjetivo ou objetivo da norma impugnada, mediante a inserção de cláusula restritiva, a sentença aditiva trilha exatamente o caminho oposto, ampliando o âmbito de aplicação do preceito, incluindo sujeitos ou situações.47 Na doutrina, diversas críticas são apontadas à utilização das sentenças aditivas. Em linhas gerais, afirma-se, inicialmente, que as sentenças aditivas seriam um expediente utilizado para, mediante suposta operação interpretativa, usurpar-se a função do legislador. Por outro lado, não haveria princípios constitucionais invocáveis a permitir uma posição aristocrática do Tribunal que objetive impor unilateralmente e com eficácia erga omnes as normas destinadas a colmatar lacunas derivadas da inconstitucionalidade da lei.48 Tais críticas seriam inteiramente procedentes na hipótese de uso das sentenças aditivas sem parâmetros objetivos de legitimação do suprimento da omissão por parte da Corte Constitucional. Por isso, como passaremos a demonstrar, defende-se uma utilização moderada das sentenças aditivas, sempre sob a perspectiva da racionalidade possível no âmbito do discurso judicial e a partir de critérios restritivos. 4. Limites do papel criativo no âmbito das sentenças aditivas É fato inconteste que toda declaração de inconstitucionalidade importa, de certo modo, em inovação no ordenamento jurídico. Nos casos de inconstitucionalidade parcial, é plenamente possível que da sentença resulte uma norma distinta da desejada ou imaginada pelo legislador, sendo árdua a tarefa da Corte Constitucional de estabelecer os limites de sua atuação nesta seara.49 Assim, o reconhecimento de que os Tribunais exercem atividade de algum 47   SAMPAIO, José Adércio Leite. Op. cit., p. 177. 48   Sobre o tema, vide, entre outros, ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. II Mulino, 1995, e MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999. 49   SAMPAIO, José Adércio Leite. Op. cit., p. 179.


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modo criativa a partir do sistema jurídico concebido parece uma questão um tanto quanto pacífica no âmbito da doutrina, pelo menos à luz de uma concepção substancialista de democracia.50 No caso das sentenças aditivas, se a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade invariavelmente acarreta um resultado hermenêutico mais afastado da literalidade do texto normativo, há, nesse âmbito, um ponto de maior fricção entre a atividade legislativa e a jurisdicional. O debate principal, portanto, deve girar em torno dos limites de atuação dos tribunais, de modo a evitar uma invasão da liberdade de conformação atribuída constitucionalmente ao legislador. No caso brasileiro, afora alguns precedentes conduzidos pelo Min. Gilmar Mendes,51 em que efetivamente se inicia o enfrentamento da possibilidade de utilização de decisões com efeitos aditivos em nosso modelo de controle de constitucionalidade, o fato é que o STF tem-se limitado a utilizar referida técnica de decisão, à semelhança do que ocorre na Alemanha, invocando a interpretação conforme ou a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, como já ressaltado antes. Embora não se possa afirmar com certeza, talvez isso se deva a alguma dificuldade de reconhecer-se o efetivo papel criativo (rectius, integrativo) dos tribunais, com a superação do dogma do legislador negativo tão arraigado a nossa cultura jurídica.

50   Com efeito, no modelo de concepção de democracia moderna debatem-se duas correntes principais: o substancialismo, de autores como Ronald Dwokin e John Rawls, e o procedimentalismo, de Ely e Habermas. Para fins do presente trabalho, como já ressaltado, entende-se que uma intervenção mais direta dos tribunais na realização dos direitos é medida essencial especialmente em países de elevado déficit social como o Brasil. Veja-se que, mesmo em uma concepção procedimentalista, a autonomia privada dos cidadãos pressupõe o asseguramento de mínimos existenciais capazes de realizar efetivamente os ideais de igualdade e liberdade. Na medida em que inexistem garantias básicas de saúde, educação etc. não se pode falar em liberdade individual que permita a participação legítima dos cidadãos nos processos públicos decisórios (autonomia pública). Sem condições básicas de existência digna que garantam a emancipação social, portanto, é impossível conceber-se o adequado funcionamento do processo democrático. Nesse mesmo sentido, entre outros: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. cit., p. 323 e ss 51   Vide, nesse sentido, voto proferido no MI 670-9/ES, rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes, em que o ministro defende a legitimidade da utilização de decisões com efeitos aditivos no âmbito da Suprema Corte (julgado em 25/10/2007), discutindo, inclusive, seus limites. Embora paradigmático o julgado, parece-nos que, no caso do mandado de injunção, segundo o delineamento estabelecido pelo legislador constituinte, não se trata de decisão com efeitos aditivos, mas sim de verdadeira sentença normativa, ainda que com efeitos concretos, como tentaremos demonstrar mais adiante.


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O primeiro precedente do STF que representa uma espécie de rompimento com o dogma do legislador negativo parece ter sido o julgamento do RMS 22.307/DF.52 No caso, discutia-se se o advento das Leis nºs. 8.622/93 e 8.627/93 implicou revisão geral dos vencimentos dos servidores militares, com a preterição dos servidores civis. Entendeu-se, na oportunidade, que de fato se tratava de revisão geral e, como tal, extensível às demais categorias de servidores em razão do postulado da isonomia, principalmente na sua versão instituída no art. 37, XV, da CF.53 O mesmo ocorreu no julgamento do RE 476.390-7/DF,54 em que o voto do relator, Min. Gilmar Mendes, fora pelo parcial provimento da irresignação para, dando interpretação conforme à Constituição, determinar que as regras da Lei nº. 10.404/02, referentes à gratificação de desempenho de atividade técnico-administrativa – GDATA percebida por servidores públicos federais em atividade, fossem também aplicadas a servidores inativos. Já na ADin 2.652-6/DF, 55o Supremo Tribunal Federal entendeu que a alteração procedida no art. 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil pela Lei nº. 10.358/2001, na parte em que ressalva “os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB” da imposição de multa por descumprimento de decisões judiciais, constitui discrímen injustificado em relação aos profissionais vinculados aos entes estatais. Daí o pedido ter sido julgado procedente para o fim de, “sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal” (sic) no sentido de que a ressalva aplica-se a todos os advogados independentemente de estarem sujeitos a outros regimes jurídicos. Em ambos os casos, como se vê, o Supremo considerou que não havia decisão de caráter aditivo porque se tratava de “mera” materialização de norma constitucional ou porque ocorreu apenas interpretação conforme a Cons-

52   Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 13.07.97. 53   Em seu voto, o Min. Maurício Corrêa, embora com a extensão de vantagens remuneratórias de dados servidores para outras categorias, não reconheceu que o Supremo atuava positivamente ao dizer que se limitou a aplicar o dispositivo constitucional. 54   Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 29.06.2007. 55   Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU de 14.11.2003.


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tituição, que se deve limitar a extrair do texto constitucional os sentidos constitucionalmente admissíveis da norma impugnada.56 A preocupação que tal aspecto sugere não se reduz, entretanto, a um mero preciosismo conceitual. Na realidade, o não reconhecimento, na jurisprudência da Excelsa Corte, do uso de sentenças com efeitos aditivos pode conduzir à “importação” da referida técnica de decisão sem maior aprofundamento teórico acerca dos limites que no direito estrangeiro vêm sendo traçados para esse modelo. Com efeito, ao mascararem-se os efeitos aditivos da sentença sob o argumento de tratar-se de interpretação conforme, justifica-se a decisão a partir da ideia de que a solução dada ao caso decorre de mera atividade interpretativa do dispositivo enunciado, com o raciocínio subjacente de que não se está a inovar o ordenamento jurídico. A solução judicial, pois, estaria adormecida no “espírito” da norma, assertiva que, para além de constituir um mero apego semântico ao texto – que pretensamente seria capaz de salvar-nos das dificuldades interpretativas –, concede ao intérprete maior liberdade na busca por aquele resultado. Como consectário disso, na jurisprudência mais recente daquele tribunal, tem sido comum a proposta de acréscimo de cláusulas ou condições ao texto normativo que, embora pareçam viáveis do ponto de vista da justiça do caso concreto, não são decorrentes de uma solução constitucionalmente obrigatória. Portanto, não podem ser concebidas pelo Judiciário como forma de depurar a lei questionada da pecha de inconstitucionalidade. Nesse contexto, no rumoroso julgamento da ADin 3510/DF,57 referente 56   Gilmar Mendes, ao comentar a não observância pelo Tribunal Constitucional alemão dos limites da interpretação conforme, assevera que “as ‘decisões fundamentais do legislador’, as suas valorações e os objetivos por ele almejados estabelecem também um limite para a interpretação conforme a Constituição. Não se deve conferir a uma lei com sentido inequívoco significação contrária, assim como não se devem falsear os objetivos pretendidos pelo legislador. O princípio da interpretação conforme a Constituição não contém, portanto, uma delegação ao Tribunal para que proceda à melhoria ou ao aperfeiçoamento da lei. Qualquer alteração do conteúdo da lei mediante pretensa interpretação conforme à Constituição significa uma intervenção mais drástica na esfera de competência do legislador do que a pronúncia de nulidade, uma vez que esta assegura ao ente legiferante a possibilidade de imprimir nova conformação à matéria.” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 290). 57   Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 04/06/2008.


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ao uso em pesquisas de células-tronco, diversos votos proferidos naquela instância foram no sentido de acrescer condições relativas à possibilidade de utilização dos embriões. Tais adições justificar-se-iam como forma de aprimorar a lei, tornando-a compatível com o sistema constitucional.58 Portanto, impõe-se o incremento do debate sobre os critérios de utilização das sentenças aditivas, especialmente no momento em que há uma tendência perfeccionista do Tribunal Constitucional na análise dos casos levados à sua apreciação.59 Conforme o desenvolvimento da matéria na doutrina e jurisprudência estrangeiras, a Corte Constitucional deve evitar o espaço reservado à atividade legislativa, uma vez que é comum o texto constitucional, através de normas vagas, atribuir ao legislador a escolha dos meios de realização da Constituição. Uma vez feita a opção, não cabe ao Judiciário, salvo manifesta violação a regra ou princípio constitucional, interferir no espaço conformador do Parlamento, objetivando a realização de metas coletivas. É dizer, deve agir não segundo critérios políticos, comportando-se como legislador, mas a partir dos parâmetros de interpretação e construção jurídicas inerentes à hermenêutica constitucional.60 Assim, em que pese o fato de as decisões aditivas sempre implicarem, de alguma forma, certa intervenção no domínio normativo por ato do Tribunal Constitucional, somente se reconhece legitimidade em sua utilização quando elas se limitem a revelar ou a indicar um princípio ou uma regra constitucional vocacionado para o preenchimento de um vazio jurídico carente de integração imediata.61 Noutras palavras, a disposição omitida na norma

58   No processo em que se discutia a constitucionalidade da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.388-4/RO, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 26/03/2009), as condições propostas a partir do voto do Min. Menezes Direito, ao nosso ver, buscaram tão somente compatibilizar o usufruto dos índios com outros interesses resguardados na Constituição e com a legislação em vigor. No particular, pois, o STF parece ter-se limitado a interpretar o texto constitucional e o ordenamento jurídico. 59   SILVA, Alexandre Garrido da. Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo Tribunal Federal diante de questões políticas e científicas complexas. Revista de Direito do Estado, n. 12, p. 107-142, 2008, p. 110. 60   MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 91. 61   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 241.


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declarada inconstitucional deve ser imposta pela lógica do sistema legislativo e constitucional para legitimar seu acréscimo ao texto examinado.62 Nesse contexto, as sentenças aditivas mostram-se legítimas tão somente quando perseguem a concretização de direitos a partir de argumentos de princípio.63 Ainda que sua utilização decorra de inclusão de hipótese que não estava no estado de intenção do legislador64 – como deve ocorrer na interpretação conforme, que se situa nos lindes teleológicos definidos pelo ordenamento –, a adição operada judicialmente decorre de solução constitucionalmente obrigatória (a rime obbligate).65 Essa perspectiva permite o uso das sentenças aditivas sem recurso a uma “discricionariedade judicial” própria do positivismo. Fora dessa hipótese – quando calcadas, pois, as sentenças aditivas em argumentos de políticas –, elas não se coadunam com o Estado Democrático de Direito.66 Veja-se que o silêncio parcial do legislador equivale a uma regra implícita excludente de certos destinatários,67 de modo que fica autorizada a intervenção jurisdicional porque, na prática, o juízo de desvalor dar-se-á sobre a exclusão realizada pelo Parlamento. Em situações distintas, ou não há inconstitucionalidade ou a solução do Tribunal Constitucional deverá ser a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ablativos, já que, havendo um espaço de atuação discricionária para o legislador, não há como o Judi62   Cf. SAMPAIO. José Adércio Leite. Op. cit., p. 168. 63   “Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. (...) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo.” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 129). 64   Cf. SAMPAIO. José Adércio Leite. Op. cit., p. 177. 65   Cf. SAMPAIO. José Adércio Leite. Op. cit., p. 168. Sobre a concepção de solução constitucionalmente obrigatória (a rime obbligate), vide CRISAFULLI, Vezio. Lezioni di Diritto Costituzionale. v. II. Padova: Cedam, 1984, p. 402 e ss. 66   Sobre a inclusão de questões políticas no discurso judicial, ressalta Dworkin também que “my own view is that the Court should make decisions of principle rather than policy – decisions about what rights people have under our constitucional system rather than decisions about how the general welfare is best promoted – and that it should make these decisions by elaborating and applying the substantive theory of representation taken from the root principle that government must treat people as equals.” (The Forum of Principle. In New York University Law Review, n. 56, 1981) 67   Cf. MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 386.


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ciário, sem malferimento da separação de poderes, fazer a opção que cabia ao Parlamento ter realizado à vista da escassa densidade da norma constitucional que serve de parâmetro no exame judicial. No julgamento dos Mandados de Segurança nºs. 26.602, 26.603 e 26.604,68 que tratavam da fidelidade partidária, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, manteve o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que a troca de partidos configurava hipótese de perda de mandato, em que pese não haja previsão expressa na Constituição. No caso, a simples existência de divergência sobre o mandato pertencer ou não ao partido – premissa para a vedação alegada no feito – justificava uma decisão minimalista da Corte,69 no sentido de que a decisão sobre os efeitos da troca de partido deveria decorrer de manifestação expressa do legislador constituinte. Na ocasião, o Min. Eros Grau, especificamente, ponderou que as hipóteses de perda de mandato estão taxativamente enumeradas na Constituição. Assim, embora do ponto de vista da moral e da ética a decisão do Tribunal pareça correta, o fato é que aquela Corte recorreu a argumentos metajurídicos para chegar à conclusão final, imiscuindo-se em matéria que dependia de decisão do legislador, após o devido debate democrático nos foros políticos. 70 Da mesma fora, não se vê como democraticamente admissível a opção judicial de, a pretexto de “salvar-se” uma lei inquinada de inconstitucionalidade, acrescer-se condições à norma voltadas à otimização de sua aplicação. É dizer: não cabe ao Judiciário “melhorar” o conteúdo normativo do

68   Rel. Min. Eros Grau, DJU de 17.10.2008. 69   Sobre o minimalismo judicial, vide SILVA, Alexandre Garrido da. Op. cit., p. 115. 70   O mesmo parece ter ocorrido por ocasião da edição das Súmulas Vinculantes 11 (uso de algemas) e 13 (nepotismo). Na primeira, ao determinar-se a justificação por escrito quando da utilização do instrumento e a nulidade do ato em decorrência do uso abusivo das algemas sem que haja norma jurídica criando respectivamente a obrigação e o efeito processual concebido na decisão judicial. Na segunda, porque a exclusão da aplicação da súmula à nomeação de parentes para cargos de secretários municipais, de estado e Ministros do Executivo também não possui previsão legislativa. Ao nosso ver, no primeiro caso, eventuais abusos deveriam ter como efeito a apuração com base na Lei nº. 4.898/65 (abuso de autoridade). No segundo, o Tribunal deveria ter-se limitado a considerar que a vedação do nepotismo é consectário lógico do princípio da moralidade, sem enveredar sobre considerações relativas à conveniência de contratação de parentes para cargos estratégicos, valoração típica da atividade legislativa.


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preceito, sob argumentos de incremento da eficácia do dispositivo ou maior adequação da norma aos fins propostos. Tal perspectiva, a par de violar o caráter deontológico do Direito, adiciona ao discurso judicial argumentos de nítido teor político, quando se sabe que, salvo situações excepcionais, ou a lei é constitucional – embora a opção legislativa não pareça a melhor ao julgador – ou não é. Não há espaço, portanto, para o acréscimo de norma criada ex nihilo pelo Tribunal Constitucional,71 que deve se limitar a aferir a coerência legislativa, reconhecendo direitos preexistentes na teia inconsútil do sistema jurídico. Por seu turno, mesmo nos casos em que o vazio normativo decorrente da decisão de acolhimento da alegação de inconstitucionalidade possa causar um estado mais grave de inconstitucionalidade, temos que a legitimidade do Tribunal para adicionar elementos à lei inquinada de inconstitucional somente existe quando é possível extrair, do texto constitucional, uma hipótese objetiva de acréscimo à legislação como forma de torná-la compatível com a Constituição, como já ressaltado. É que, afora essa situação, não possui o Tribunal Constitucional, à semelhança do que ocorre na esfera legislativa, liberdade de agir no sentido de vincular os cidadãos através de cláusulas ou condições legislativas cuja imposição dependa de algum juízo discricionário.72 Daqui pode-se concluir também que não cabe ao Tribunal inventar uma disciplina normativa inexistente, mas sim buscar apoio no próprio ordenamento jurídico, ainda que através da materialização de princípios constitucionais, para suprir a omissão legislativa.73 Ou seja, a solução constitucionalmente obrigatória ou decorre de regra expressa ou implícita do texto constitucional ou da necessidade de prestigiar-se um princípio constitu-

71   MORAIS, Carlos Blanco. Op. cit., p. 368. 72   Como lembra Jorge Pereira da Silva, o Tribunal Constitucional alemão tem sido restritivo quanto ao uso das sentenças aditivas especialmente quando a revelação das regras integrativas das lacunas pressupõe uma escolha discricionária. (SILVA, Jorge Pereira da. Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas. Lisboa: Universidade Católica, 2003, p. 221). Nesse sentido também a doutrina majoritária italiana, v.g., CRISAFULLI, Vezio. Op. cit. Esse, inclusive, é o sentido da expressão a rime obbligate, ou seja, solução constitucionalmente obrigatória. 73   MAZZAROLLI, Ludovico. Il giudice delle leggi tra predeterminazione costituzionale e creatività. Padova: Cedam, 2000, p. 76.


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cional vitimado a partir da lei impugnada, como no caso das omissões parciais violadoras do princípio da igualdade. Assim, é o ponto de partida do Tribunal (premissa constitucional vinculante) e o critério de argumentação (argumentos de princípio) que permitirão o reconhecimento ou não da legitimidade da decisão com efeitos aditivos. A ideia de que os argumentos de princípio legitimam as decisões aditivas afasta, por outro lado, o óbice decorrente da feição contramajoritária do Poder Judiciário. De fato, em se tratando de questões políticas (é dizer, o atendimento de metas coletivas), a seara própria para sua solução reside no Parlamento. Cuidando-se, porém, de manifesta violação a princípio, a decisão judicial limita-se a corrigir a diretriz legislativa, de modo a fazer cumprir o texto constitucional. Na medida em que a decisão judicial deva ser a menos original possível,74 no caso não se trata propriamente de inovação legislativa, mas tão somente de ampliação do sentido da norma a fim de compatibilizá-la com o texto constitucional. Em conclusão, se é possível afirmar-se que, diante da ausência de regra, é viável encontrar-se solução judicial para os conflitos nos princípios, por que não se diria o mesmo quando editada regra que não contemplou certa categoria ou grupo em seu âmbito de aplicação, quando as circunstâncias fáticas e a exigência de isonomia assim recomendavam? Utilizadas devidamente, as sentenças aditivas, antes de negá-la, reafirmam a supremacia constitucional ao racionalmente realizar o texto da Constituição. Nessa linha, entre anular uma lei que privilegia poucos ou alargar seu raio de alcance, deve o Tribunal optar por essa última possibilidade, diretriz que, para além de prestigiar o princípio da igualdade, realiza a dignidade da pessoa humana nas suas mais variadas vertentes.75 Veja-se que não se trata de discutir se o fator de discrime é justo ou injusto, a partir de uma visão intuicionista – em que a decisão seria tomada exclusivamente à luz do caso concreto, sem calcar-se necessariamente em

74   Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 133. 75   TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. 1. ed., São Paulo: Saraiva, 2005, v. 1, p. 99.


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pressupostos aplicáveis a situações similares –, no dizer de Rawls,76 uma vez que a concessão de direitos ou vantagens, em princípio, é opção política a ser feita na seara própria. Cuida-se, em verdade, de corrigir-se a diretriz legislativa quando preterida parcela da sociedade que se encontra em identidade de situação, já que o princípio da igualdade determina a valoração equânime das circunstâncias sempre que os destinatários da norma se encontram em mesma base fática. Não se trata, portanto, de corrigir decisões políticas, já que uma estratégia política para se atingir um objetivo coletivo não precisa tratar todos os indivíduos da mesma maneira.77 Como exceção da assertiva acima desenvolvida, temos, no ordenamento brasileiro, o caso do mandado de injunção, embora aqui se deva falar mais propriamente em sentença normativa e não com efeitos meramente aditivos. É que para o writ o próprio legislador constituinte atribuiu ao Poder Judiciário o suprimento in concreto da lacuna legislativa. Nesse caso, por expressa opção do legislador constituinte – pelo menos à luz de uma interpretação que busque dar alguma utilidade à referida ação mandamental –, concebeu-se um mecanismo de suprimento da inatividade legislativa com maior liberdade de atuação do Tribunal. Portanto, aqui cabe à Corte Constitucional um espaço mais amplo de criação, podendo suprir a lacuna legislativa a partir de um parâmetro aplicável a hipótese semelhante ou mesmo conceber um modelo legislativo específico para o caso até a efetiva atuação do Parlamento. Em contrapartida, porém, e a fim de evitar-se um sufocamento da atividade legislativa por ato do Tribunal, emprestou-se efeitos inter partes a esse mecanismo jurisdicional. 5. Conclusão A partir do exposto, vê-se que a nova perspectiva da jurisdição constitucional, por um lado, importou em incremento da tensão existente entre a 76   RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução por Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 77   Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 137. É o que ocorre, v.g., com a concessão de incentivos fiscais a determinados setores econômicos a fim de fomentar-se dada atividade. Trata-se de opção política insindicável pelo Poder Judiciário e, portanto, não extensível a outros setores, salvo se houver manifesta incongruência com o texto constitucional.


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atividade das Cortes Constitucionais e do Parlamento, tensão essa que encontra terreno propício, sobretudo, a partir da utilização das chamadas sentenças manipulativas. Por outro lado, essa postura do Judiciário exige uma autocontenção a fim de se salvaguardar as opções legítimas realizadas pelo Legislativo. Com isso, parece possível evitar-se uma concepção global da jurisdição constitucional capaz de desequilibrar o modelo democrático de atuação das instituições concebido pelo legislador constituinte. Nesse contexto, conceder ao Tribunal Constitucional um ilimitado poder interpretativo da Constituição, que possibilite extrair dela aquilo que não foi dito ainda que principiologicamente, seria ultrapassar a visão do juiz “boca da lei” para transformá-lo em um Oráculo de Delphos, a própria ideologia do texto constitucional, elevando as convicções subjetivas do julgador a normas constitucionais. Não pode a Corte, assim, funcionar como uma “câmara de revisão constitucional” supostamente apta a ditar o futuro com os valores que, em sua visão, devem ser adotados pela maioria de amanhã. Haveria nessa ideia, inclusive, o risco de que pretensões vencidas no sufrágio eleitoral fossem incorporadas ao ordenamento através de sentenças “paralegislativas”, extrapolando o Judiciário seu papel de garante da Constituição. Essa compreensão mitigada das sentenças aditivas, se não impede, pelo menos reduz consideravelmente uma apropriação do político pela técnica. Obsta uma fratura “tectônica” capaz de minar a possibilidade de caminharem juntas política e justiça a partir do necessário diálogo que a jurisdição constitucional deve travar com as instâncias políticas. Reconhece-se, assim, que a busca do consenso em uma Corte Constitucional é uma forma muito mais rudimentar de solução de conflitos políticos do que todas as perspectivas criadas no âmbito da democracia moderna. Com efeito, no campo democrático, há um Parlamento legitimamente escolhido pela população, cuja atividade deve levar em conta os múltiplos interesses hauridos em um ambiente de pluralismo social e que não podem ser negligenciados por uma interpretação única realizada no âmbito judicial. Portanto, limitando-se a jurisdição constitucional a realizar direitos extraídos do ordenamento a partir de um discurso racionalmente adequado, impede-se que o Judiciário volte aos tempos de desconfiança já relegados às


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Soltura de “balões sem fogo”: a inconstitucionalidade de leis municipais que autorizam essa prática e a tipicidade criminal da conduta.


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Marcelo Honorato Juiz Federal Substituto (JFPA), Especialista em Direito Processual (UNAMA), Direito Constitucional (IDP), Direito do Estado (UNIDERP), Bacharel em Direito (UFPA), Bacharel em Ciências Aeronáuticas (AFA).

Resumo: a prática da soltura de balões sem fogo tem sido autorizada por algumas leis municipais, representando significativa dificuldade para a navegação aérea. Este artigo demonstrará que normas municipais que permitam tal conduta incidem em plena inconstitucionalidade formal, à medida que ingressam em competência legislativa privativa da União. Também será analisada a perfeita subsunção da conduta de soltar balões sem fogo ao crime de atentado contra a segurança do transporte aéreo, na modalidade de dificultar a navegação aérea. Por fim, o artigo apontará as medidas judiciais necessárias para a recuperação da segurança da navegação aérea, em razão da existência de leis municipais que autorizam a prática baloeira sem fogo. Palavras-chave: Direito Aeronáutico. Delito de atentado contra a segurança do transporte aéreo. Soltura de balões sem fogo. Abstract: the practice of releasing balloons without fire has been authorized by some municipal laws, representing significant difficulty for air navigation. This article will demonstrate that local laws permitting such conduct suffer in formal unconstitutionality, because legislate in matters of deprivation of Union. Also will be analyzed the perfect subsumption of conduct of launch balloons without fire to the crime of attack on the safety of air transport, in the form of hinder of navigation. Finally, the article will indicate the judicial action to recover the safety of air navigation, by reason of the existence of municipal laws allowing the practice of launch balloons without fire. Keywords: Aviation Law. Crime of attack on the safety of air transport. Release of balloons without fire.


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1. Introdução A soltura de balões de ar quente, no Brasil, é uma prática com raízes culturais e históricas, isso desde o início da caminhada da humanidade na conquista do espaço aéreo. No campo histórico, foram vários os brasileiros que se dedicaram, de forma alvissareira, ao desenvolvimento de balões, engenhos que precederam à invenção do avião e apontaram para a possibilidade do voo do homem. Ainda no século XVIII, foi sob os olhos do padre Bartolomeu de Gusmão que bolhas de sabão ganharam impulso vertical, ao aproximarem-se da chama de uma vela, quando então o padre brasileiro despertou-se pela possibilidade do voo do “mais leve que o ar”. Bartolomeu de Gusmão, em 8 de agosto de 1709, após duas tentativas frustradas, apresentou à Corte Portuguesa, no pátio da Casa da Índia, um engenho que alcançaria o voo vertical, inaugurando o primeiro voo do “mais leve que o ar”, invento batizado de “passarola”. A dirigibilidade dos balões teve como um de seus precursores o também brasileiro Júlio César Ribeiro de Sousa, paraense que concebeu o balão de forma assimétrica e com centro de gravidade deslocado à frente, proporcionando, assim, dirigibilidade aos balões. Em 12 de julho de 1884, fabricou seu grande balão, denominado de Santa Maria de Belém, mas que acabou se incendiando; porém, em 1886, construiu o balão Cruzeiro, na França, artefato que foi objeto de várias demonstrações públicas. Alberto Santos Dumont, brasileiro mais notável na história da aviação mundial, além da construção dos primeiros balões dirigíveis com motor a gasolina, tendo obtido, inclusive, a conquista do Prêmio Deustsch, em 1901, ao voar e contornar o mais famoso monumento europeu, a Torre Eiffel, ainda fez a conexão da dirigibilidade dos balões com suas invenções do voo do “mais pesado que o ar”: o avião. A operação de balões de ar quente dirigíveis manteve-se no mundo contemporâneo como prática desportiva e turística, os chamados balonistas ou piloto de balão livre, operação essa que requer piloto habilitado, nos termos


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do Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica nº 611. Porém, dentre as várias modalidades de balonismo, permaneceu no seio cultural brasileiro a prática de soltura de balões não dirigíveis, os chamados “baloeiros”, conduta ainda mais adensada quando das festividades juninas. Ocorre que a soltura de balões não dirigíveis tornou-se incompatível com o uso seguro do espaço aéreo, tanto pela fragilização que produz no controle das aeronaves em voo, como também pelo risco à flora nacional e às indústrias petrolíferas, nos casos em que, além da não controlabilidade, se emprega o balão sustentado com fonte de fogo. Com o advento da Lei 9.605/98, a conduta de soltar balões que possam causar incêndio e não dirigíveis passou a ser tipificada, nos termos de seu artigo 42, situação que criou um freio social a essa perigosa prática; porém, a capacidade inventiva humana ultrapassou o requisito da necessidade de uma fonte de chama na estrutura dos balões, quando então se desenvolveram os chamados “balões sem fogo”, atenuando, mas não excluindo, a capacidade de causar incêndios. Os balões sem fogo são sustentados pela energia solar, que aquece a parte superior do balão, geralmente pintada com cores escuras, de forma a manter o ar interno aquecido. Tal classe de balões mantém incólume a sua mais perigosa característica para a segurança da aviação: a não controlabilidade, que gera insegurança tanto quando está em voo, como ao ocorrer a sua queda. Este artigo abordará a questão da constitucionalidade de normas municipais que autorizam a conduta de soltar balões sem fogo, especialmente quanto ao seu aspecto formal, ou seja: o fiel respeito às regras constitucionais que condicionam o exercício legislativo. Além disso, será também analisada a conduta de soltura de balões sem fogo, essencialmente quanto aos reflexos na segurança da aviação e à tipicidade delitiva de tal prática, especialmente sob o escol de dificultar a navegação aérea.

1   AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL (Brasil), Regulamento brasileiro de aviação civil (RBAC) 61: Licenças, habilitações e certificados para pilotos. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www2.anac.gov.br/biblioteca/rbac/RBAC%2061.PDF>. Acesso em: 27 maio 2013.


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2. Da incontitucionalidade formal de leis municipais que legislem sobre direito aeronáutico As constituições de Estados Federados sempre trazem em seu âmago regras que distribuem poderes e competências entre os entes que os compõem: União, Estado e municípios (esses últimos nem sempre previstos com autonomia em ordenamentos jurídicos estrangeiros), trato político então denominado de Pacto Federativo. A Constituição Federal de 1988 tem diversas dessas regras, como a previsão de intervenção federal e estadual e a distribuição de competências administrativas e legislativas. Essa última, a distribuição de competências legislativas, além de formar um pacto de convivência política, procura harmonizar socialmente a Nação. É que a competência legislativa é distribuída também se considerando a necessidade de harmonia na vida social dos cidadãos de todo o país, quando o pressuposto fático-legislativo assim o exigir. Como exemplo, podemos citar as regras trabalhistas, que requerem uniformidade nacional, pois não há razão alguma para que um trabalhador residente no estado de São Paulo tenha direitos sociais diferentes de um gaúcho. Nesse sentido, a Carta Constitucional concedeu a competência de legislar sobre direito trabalhista privativamente à União Federal, já que tal matéria requer harmonia nacional (art. 22, inciso I da CF/88). Outras matérias, igualmente carecedoras de uniformidade nacional, foram objeto de exclusividade legislativa à União: Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; Excepcionalmente, poderá a União Federal, através de lei complementar, permitir que os estados legislem sobre “questões específicas”, então submetidas à competência exclusiva federal, como prevê o parágrafo único do art. 22 da Carta da República:


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Revista da Ajufe Parágrafo Único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Ou seja, a competência suplementar, quanto às matérias previstas no art. 22 da CF/88 (competência privativa da União), somente é exercitável i. se houver lei complementar federal concedendo tal competência; ii. pelos estados e; iii. para questões específicas, portanto, não poder haver tal suplementação de forma geral. Interessante registrar que ao município cabe legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, inciso I da CF/88); suplementar a legislação federal e estadual, no que couber (art. 30, inciso II); e promover o ordenamento do uso do solo (art. 30, inciso VIII, CF/88), no entanto, tais competências não podem ser exercidas em matérias legislativas privativas da União, já que o interesse local deve dar guarida à uniformidade nacional concretizada pela União Federal, no exercício de sua competência legislativa exclusiva, salvo o estado, que, havendo lei complementar, poderá suplementar tais matérias em pontos específicos. A competência legislativa municipal de suplementar as normas federais e estaduais, considerando o interesse local, somente é exercitável quando se tratar de matérias de competência concorrente (art. 23 da CF/88), sob pena de se estar contrariando diretamente o parágrafo único do art. 22, que permitiu a competência suplementar de matérias privativas da União somente aos estados. Portanto, a expressão “no que couber”, constante do art. 30, inciso II da CF/88, tem justamente a força de limitar tal competência suplementar do município aos assuntos em que exista previsão de competência concorrente, pois, nesses casos, o interesse local foi considerado pela Carta Constitucional como possível de ser harmonizado pela legislação supletiva dos municípios. Nesse sentido, se pronunciou o Supremo Tribunal Federal ao declarar inconstitucional lei municipal que tratava de matéria de competência exclusiva da União, afastando eventual competência genérica suplementar dos municípios: EMENTA: Recurso extraordinário. – A competência


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81 para legislar sobre trânsito é exclusiva da União, conforme jurisprudência reiterada desta Corte (ADI 1.032, ADIMC 1.704, ADI 532, ADI 2.101 e ADI 2.064), assim como é a competência para dispor sobre a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança (ADIMC 874). – Ora, em se tratando de competência privativa da União, e competência essa que não pode ser exercida pelos Estados se não houver lei complementar – que não existe – que o autorize a legislar sobre questões específicas dessa matéria (artigo 22 da Constituição), não há como pretender-se que a competência suplementar dos Municípios prevista no inciso II do artigo 30, com base na expressão vaga aí constante “no que couber”, se possa exercitar para a suplementação dessa legislação da competência privativa da União. – Ademais, legislação municipal, como ocorre, no caso, que obriga o uso de cinto de segurança e proíbe transporte de menores de 10 anos no banco dianteiro dos veículos com o estabelecimento de multa em favor do município, não só não diz respeito, obviamente, a assunto de interesse local para pretender-se que se enquadre na competência legislativa municipal prevista no inciso I do artigo 30 da Carta Magna, nem se pode apoiar, como decidido na ADIMEC 874, na competência comum contemplada no inciso XII do artigo 23 da Constituição, não estando ainda prevista na competência concorrente dos Estados (artigo 24 da Carta Magna), para se sustentar que, nesse caso, caberia a competência suplementar dos Municípios. Recurso extraordinário não conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei 11.659, de 4 de novembro de 1994, do Município de São Paulo (RE 227384, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00068)


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Pois bem, o direito aeronáutico é uma das matérias em que a Constituição Federal de 1988 concedeu competência legislativa exclusiva à União Federal, compondo então o Pacto Federativo. Como inexiste lei complementar abrindo a competência suplementar aos estados, e a competência municipal suplementar somente é exercitável diante de matérias de competência concorrente, os demais entes políticos não podem legislar sobre tal matéria, pois que interesses regionais e locais devem se curvar à legislação nacional sobre o tema, respeitando, então, o Pacto Federativo. Sob essa ótica é que devem ser analisadas as normas municipais que vêm autorizando a soltura de balões sem fogo, como a Lei n 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, portanto, o poder legislativo municipal legislando sobre direito aeronáutico, competência privativa da União. É que da simples leitura da Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, observa-se que a norma ingressou em matéria típica de direito aeronáutico, pois permitiu a soltura de determinado tipo de balão no espaço aéreo2, definiu as dimensões dos balões a figurarem no espaço aéreo3 e, por fim, estabeleceu os horários em que tais objetos poderão voar, ou seja, ingressarem e permanecerem no espaço aéreo4. Logicamente que não se está diante de norma que regula o uso do solo, essa sim, competência do poder legislativo municipal. Pelas características acima discriminadas, constata-se que os efeitos da lei municipal são produzidos inteiramente no espaço aéreo, criando direitos e deveres em relação ao uso de tal dimensão espacial, portanto, matéria típica de direito aeronáutico. Além disso, a autorização de soltura de balões e a estipulação de horários 2   Art. 1º Fica permitida a soltura de balões artesanais e ambientais sem fogo no Município do Rio de Janeiro. 3   Art. 4º Os modelos citados abaixo devem obedecer às seguintes medidas: I - Truff, Modelado, Lapidado, Mixirica e Hally: Tamanho mínimo cinco metros; Tamanho máximo dez metros; II - Pião Carrapeta e Careca: Tamanho mínimo oito metros; Tamanho máximo doze metros. 4   Art. 5º Ficam estabelecidos os horários de cinco às dez horas e de vinte às duas horas para soltura dos balões.


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para o voo de tais artefatos baloeiros interferem igualmente na operação dos demais vetores aéreos, consequentemente, representam inovação às regras de navegação aérea, cuja competência legislativa é também privativa da União Federal (art. 22, inciso X da CF/88). No que tange a eventual interesse local em matéria de direito aeronáutico, possível fundamento para sustentar a emissão de norma municipal sobre a soltura de balões, alguns elementos devem ser destacados: i. a norma editada produz seus efeitos inteiramente no espaço aéreo, logo, está-se diante de matéria restrita à competência exclusiva da União: direito aeronáutico e navegação aérea; ii. tanto direito aeronáutico como a navegação aérea não foram objeto de concessão de suplementação legislativa, pois inexiste lei complementar federal sobre a matéria; iii. a competência suplementar dos municípios é aplicável somente em matérias de competência concorrente, não sendo o caso do direito aeronáutico e da navegação aérea, competências privativas da União; e, iv. ainda que houvesse a abertura de competência suplementar, essa capacidade legislativa seria restrita aos estados, não havendo previsão para atuação dos municípios. Quando um Ente Federado legisla sobre matéria em que não possui competência, está-se diante de uma inconstitucionalidade formal orgânica, como bem pontua o constitucionalista Pedro Lenza5: A inconstitucionalidade formal orgânica decorre da inobservância da competência legislativa para a elaboração do ato. Nesse sentido, para se ter um exemplo, o STF entende como inconstitucional lei municipal que discipline sobre o uso de cinto de segurança, já que se trata de competência legislativa da União, nos termos do art. 22, XI, legislar sobre trânsito e transporte. Sendo assim, o município ou o estado, esse último se inexistente lei complementar concedendo competência suplementar, ao legislar sobre ma5   LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 130.


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térias privativas da União, incide em imediata usurpação de competência, caso em que a Suprema Corte Brasileira tem declarado a inconstitucionalidade formal de tal norma, como leis municipais que legislem sobre direito penal, de trânsito, do trabalho, matérias essas que necessitam de uniformidade nacional, tal qual o direito aeronáutico. Abaixo, vários precedentes bem ilustram o entendimento do Pretório Excelso: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ARTS. 10, § 2º, ITEM 1; 48; 49, CAPUT, §§ 1º, 2º E 3º, ITEM 2; E 50. CRIME DE RESPONSABILIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. (...) 2. A definição das condutas típicas configuradoras do crime de responsabilidade e o estabelecimento de regras que disciplinem o processo e julgamento das agentes políticos federais, estaduais ou municipais envolvidos são da competência legislativa privativa da União e devem ser tratados em lei nacional especial (art. 85 da Constituição da República). Precedentes. Ação julgada procedente quanto às normas do art. 48; da expressão “ou nos crimes de responsabilidade, perante Tribunal Especial” do caput do art. 49; dos §§ 1º, 2º e 3º, item 2, do art. 49 e do art. 50, todos da Constituição do Estado de São Paulo. 3. Ação julgada parcialmente prejudicada e na parte remanescente julgada procedente. (ADI 2220, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011) EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. (...) DISPENSA DO EXAME TEÓRICO PARA OB-


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85 TENÇÃO DA CARTEIRA DE MOTORISTA. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. OFENSA AO ART. 22, XI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (...) 3. Inconstitucionalidade de artigo que dispensa do exame teórico para obtenção de carteira nacional de habilitação os alunos do segundo grau que tenham obtido aprovação na disciplina, sob pena de ofensa à competência privativa da União prevista no art. 22, XI, da Constituição do Brasil. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. (ADI 1991, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2004, DJ 03-12-2004 PP-00012 EMENT VOL-02175-01 PP-00173 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 44-51 RTJ VOL 00192-02 PP-00550) EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 2.769/2001, do Distrito Federal. Competência Legislativa. Direito do trabalho. Profissão de motoboy. Regulamentação. Inadmissibilidade. Regras sobre direito do trabalho, condições do exercício de profissão e trânsito. Competências exclusivas da União. Ofensa aos arts. 22, incs. I e XVI, e 23, inc. XII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei distrital ou estadual que disponha sobre condições do exercício ou criação de profissão, sobretudo quando esta diga à segurança de trânsito. (ADI 3610, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2011, DJe-182 DIVULG 2109-2011 PUBLIC 22-09-2011 EMENT VOL-02592-01 PP-00077 RTJ VOL-00219- PP-00180)


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De tudo até então exposto, é relevante registrar que a inconstitucionalidade formal incidente a leis municipais que tratem de direito aeronáutico não decorre de qualquer fundamento quanto ao conteúdo de tais normas, ou seja, se são normas boas ou ruins. Longe disso, a inconstitucionalidade formal decorre do simples vício de ausência de competência do órgão emissor em legislar sobre determinada matéria. Alguns municípios, no passado, legislaram sobre regras de trânsito, no intuito de prover maior segurança ao transporte urbano rodoviário, logo, contribuindo positivamente para a defesa da vida e dos sistemas de saúde, como o caso julgado no Recurso Extraordinário (RE 221384) acima destacado, em que o município de São Paulo obrigava o uso de cinto de segurança e proibia o transporte de crianças até 10 anos no banco dianteiro dos veículos, medidas salutares. Porém, em virtude de tal matéria ser de competência legislativa exclusiva da União, concluiu o STF por sua inconstitucionalidade formal, pois o vício de competência aniquila por completo a norma, sem que seja possível sequer analisar o mérito da norma legal criada. No mesmo sentido, o julgado abaixo transcrito, em que o estado do Rio Grande do Sul legislou sobre trânsito, sem lei complementar que permita tal suplementação, ainda que objetivando medida positiva ao meio social – a notificação pessoal dos motoristas quando flagrados pela não utilização do cinto de segurança: EMENTA: – Recurso extraordinário. Lei estadual que determina o uso obrigatório de cinto de segurança nas vias públicas do Estado. Inconstitucionalidade. – O Plenário desta Corte, ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade nº 2101, declarou a inconstitucionalidade de Lei estadual que tornava obrigatória a notificação pessoal dos motoristas pela não-utilização de cinto de segurança, por cuidar ela de matéria específica de trânsito, invadindo competência exclusiva da União, salientando, ainda, que, enquanto não editada a lei complementar prevista no parágrafo único do artigo 22 da Carta Federal, não pode o Estado legislar


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87 sobre trânsito. – Em sentido análogo, o julgamento da ADIMEC 874. Recurso extraordinário não conhecido, e declarada a inconstitucionalidade da Lei 10.521/95 do Estado do Rio Grande do Sul. (RE 215325, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00067 EMENT VOL-02077-01 PP-00155)

Portanto, a inconstitucionalidade formal em que incide a Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, não decorre da análise sobre eventual perigo que a soltura de balões possa gerar a aviação. Neste momento, não se está analisando o acerto ou equívoco quanto à prática da soltura dos balões sem fogo, mas apenas que o Ente municipal não possui competência para legislar sobre direito aeronáutico e interferir na navegação aérea, matérias privativas da União Federal, pois insertas no inciso I do art. 22 da Constituição do Brasil de 1988, assunto, aliás, que requer uniformidade nacional, sem a possibilidade de exercício suplementar legislativo pelos municípios, que apenas suplementa matérias de competência concorrente. Com base nos fundamentos acima, conclui-se que a Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, incidiu em vertente inconstitucionalidade formal, pelo vício de competência do órgão legislativo, editor da norma, já que os municípios não possuem competência para legislar sobre direito aeronáutico e navegação aérea, matérias privativas da União. 3- Da tipificação penal da conduta de soltar balões sem fogo A conduta de soltar balões não dirigíveis, no campo da legislação penal especial, é tipificada pela Lei de Crimes Ambientais (art. 42 da Lei 9605/98), na parte em que estão elencados os delitos contra a flora: Art. 42. Fabricar, vender, transportar ou soltar ba-


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Revista da Ajufe lões que possam provocar incêndios nas florestas e demais formas de vegetação, em áreas urbanas ou qualquer tipo de assentamento humano: Pena - detenção de um a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

Com o advento dos balões não dirigíveis sem fogo, o elemento normativo do tipo “que possam provocar incêndios (...)” acabou por ser parcialmente subtraído, diminuindo a sua capacidade delitiva, mas não a excluindo. Tal inteligência decorre do fato que a norma penal não pune a conduta de soltar balões de fogo, mas sim aqueles que “possam provocar incêndios”, capacidade essa que se mantém incólume nos balões sem fogo, em razão de que a queda do balão sobre a infraestrutura do sistema elétrico nacional (redes de transmissão, centrais de distribuição etc.) poderá gerar um incêndio, ainda mais facilitado pelo material inflamável que constitui tais balões, geralmente papel de seda. Característica marcante dos balões é justamente a sua não controlabilidade, com isso, o local de queda sempre será uma incógnita, mantendo ativa a sua capacidade de causar incêndios. Além disso, a característica de não dirigibilidade dos balões sem fogo conserva íntegro o risco de acidente aeronáutico, em razão do lançamento de obstáculo no espaço aéreo, sem capacidade de controle humano, ou seja, a não dirigibilidade aérea. Explico. A soltura de um balão de ar quente não dirigível representa a inserção de objeto perigoso no espaço aéreo, tendo em vista a ausência de controle da rota em que ele trafegará, tanto que se emprega o verbo “soltar”, à medida que inexiste controle sob o artefato baloeiro após a sua liberação. Com isso, o Sistema de Controle do Espaço Aéreo tem que redobrar a atenção, assim como os aeronavegantes, no intuito de evitar uma colisão da aeronave com o balão. O perigo decorre da probabilidade da ocorrência de impacto de um balão de ar quente com uma aeronave. Ainda que tal artefato tenha baixa densidade, a colisão pode representar situação catastrófica, em razão da velocidade que geralmente se deslocam as aeronaves no nível de voo que os balões


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voam. O cenário torna-se ainda mais crítico se o balão atingir algum dos motores da aeronave, pois as paletas compressoras de ar possuem alta velocidade circular, imprimindo maior energia à colisão. Considerando6 a média altitude que os balões de ar quente se deslocam (cerca de 17 mil pés) e a velocidade em que as aeronaves operam em tal nível de voo (150 a 250 Kt, ou seja, 270 a 450km/h), e, ainda, considerando o diâmetro do corpo (quanto maior a dimensão, menor a densidade corpórea), tem-se que a colisão pode gerar uma força de 2,26 toneladas (balão de 10kg) até 100 toneladas (balão de 50kg)7. O impacto, pontualmente considerado, não é a única preocupação, mas sim o local que sofrerá a colisão, pois a ingestão do balão e de seus acessórios por alguma das turbinas pode ensejar desde um simples apagamento de motor até um incêndio no conjunto propulsor, cujas consequências qualquer pessoa é capaz de deduzir. A quantidade de balões também influi no grau de risco, pois aeroportos como o de Guarulhos, em São Paulo8, já teve notificação da existência de vários balões no espaço aéreo, simultaneamente, quadro a dificultar gravemente a navegação aérea9. Além disso, como os balões têm sua futura rota de deslocamento subordinada às condições meteorológicas, portanto incontroláveis pelo homem, há plena possibilidade de a sua soltura ocorrer em local com boa visibilidade, mas, após deslocarem-se a esmo, virem a voar em ambientes de visibilidade restrita, local em que as aeronaves estão operando sob condições instru-

6   DE DEUS, D. A. A. Balões de ar quente não tripulados. In: CURSO DE SEGURANÇA DE VOO, 60., 1996, Brasília. Aulas eletrônicas...Brasília: 1996. 1 CD-ROM. p. 16-18. 7   Fórmula matemática desenvolvida pelo Centro Tecnológico da Aeronáutica – CTA: F = 3,137 . r . V2 . (D/2)2, sendo D = [(2 . M) / (p . r)]1/3 e r = densidade do corpo (kg/m3) , M = massa do corpo (kg); D = diâmetro do corpo (m); F = força de impacto resultante (N); V = velocidade do avião. Ibid., p. 19. 8   Ibid., p. 19. 9   VARIG 155 (PP-CJN), Curitiba-Guarulhos, que reportou, em 14. jan.1999, a existência de 15 balões, entre 17.000 a 4.000 pés, durante a descida e aproximação para pouso em São Paulo.


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mentais, ou seja, sem contato visual com obstáculos10, agravando ainda mais o perigo à navegação aérea11. Observando-se os dados estatísticos disponíveis na página virtual do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos12 (CENIPA), constata-se que, no ano de 2012, ocorreram 143 avistamentos de balões pelos aeronavegantes e, neste ano corrente de 2013, já existem 53 reportes; ou seja, a cada três dias, uma aeronave é exposta ao perigo baloeiro e, grande parte das vezes, tem que realizar alguma manobra evasiva, como aumentar a rampa de aproximação ou comandar desvios laterais mais agressivos. No intuito de desviar dos obstáculos baloeiros, alguns pilotos 13chegam a reportar o desacoplamento do piloto automático 14ou o acionamento do alarme de colisão da aeronave com o solo15, em razão da severidade da manobra evasiva. Todos esses aspectos demonstram que o perigo baloeiro representa sério problema para a aviação, gerando, no mínimo, dificuldade para a navegação aérea, tanto que torres de controle e notificações escritas de aeroportos emitem advertências aos aeronavegantes quanto à ocorrência de balões nas áreas de aproximação de aeroportos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Desse modo, observa-se que a conduta de soltar balões também se relaciona à segurança do transporte aéreo e, nesse sentido, o art. 261 do Código Penal Brasileiro traz o seguinte tipo penal:

10   Ibid. p.11. 11   Mensagem Telegrafada ao CENIPA, em 02.jan.1999, reportou o cruzamento de um mesmo balão por duas aeronaves, nas proximidades do Aeroporto Internacional do Galeão: o Brasil Central (PT-MRU) às 18h00 e o VARIG (PP-VPU) às 19h28, demonstrando a longa autonomia de voo dos balões e, com isso, a capacidade de deslocarem-se a maiores distâncias. 12   BRASIL. Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Estatística do Risco Baloeiro. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.cenipa.aer.mil.br/cenipa/baloeiro/ pesquisa>. Acesso em: 27 maio 2013. 13   Ibid., p-22-23. 14   Relatório de Perigo do CENIPA apresentado pelo voo da VARIG (PP-VPZ), em 01junho 2003, onde o Comandante da Aeronave reportou o avistamento de 12 (doze) balões na Terminal do Rio de Janeiro, ocorrendo a necessidade de desacoplar o piloto automático para efetivar os desvios dos balões. 15   Relatório de Perigo do CENIPA apresentado pelo voo da TAM (PT-MRO), em 01junho 2003, onde o Comandante da Aeronave reportou o acionamento do GPWS na função “sink rate”, em razão de desvio de balão na final do ILS da pista 09R, em Guarulhos.


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Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea: Pena - reclusão, de dois a cinco anos. Trata-se de um crime que viola a incolumidade pública, cuja conduta torna-se típica em dois tipos penais: a mera violação da segurança, colocando em perigo determinada aeronave (primeira parte), e atos que tenham, no mínimo, capacidade de impedir ou de dificultar a navegação (segunda parte). Em relação ao núcleo do tipo penal que descreve a conduta de expor a perigo aeronave, exige-se, para sua configuração, a existência de atos que coloquem determinado aparelho aéreo em situação real de perigo, logicamente, trata-se de perigo concreto. A conduta de soltura de balões sem fogo e não dirigíveis somente preencherá os elementos normativos da primeira parte do tipo penal do art. 261 do CP se tal ato gerar uma situação de risco para determinada aeronave, como a realização de manobras evasivas, o desvio da rampa ideal de aproximação para pouso e o desligamento de piloto automático, casos esses até já retratados nas referências deste artigo. Ou seja, não basta soltar os balões sem fogo, o tipo penal da primeira parte do art. 261 exige a inserção de determinada aeronave em situação de perigo concreto. Já o segundo núcleo do delito (impedir ou dificultar a navegação aérea) requer apenas a realização de condutas que criem empecilhos à navegação, situação que, por si só, já se deduz o perigo à coletividade, por isso, classifica-se como um crime de perigo abstrato em relação às aeronaves, mas concreto em relação ao sistema de navegação aérea. Entende o legislador que a simples dificuldade de navegar já detém perigo suficiente para abalar a segurança da aviação, visto tratar-se de transporte altamente sensível a pequenas alterações, como variações meteorológicas, presença de pássaros, complexidade tecnológica, comunicação eficiente e habilidade motora dos pilotos, portanto, dispensada a comprovação de que


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determinada aeronave tenha sido atingida diretamente por algum balão, pois a dificuldade de navegar já cria perigo suficiente a ser penalizado pela norma criminal. A configuração de crimes de perigo abstrato em face da segurança da aviação não é novidade. O delito de exploração de rádios clandestinas é um exemplo de tipo penal de perigo abstrato, com repercussão direta na segurança da aviação. É que a conduta de operações clandestinas de rádios representa uma conduta que vilipendia a segurança do espectro eletromagnético e gera sério risco à segurança da aviação, modal de transporte que depende da confiabilidade dos sistemas de comunicação e de navegação, esse último que também emprega o espectro eletromagnético para a sua orientação. Nesses casos, a simples ausência de autorização estatal para explorar o campo eletromagnético deduz em risco à segurança das telecomunicações, que tem a aviação como usuária mais exigente. A mera operação clandestina torna despicienda a demonstração de que se produziu situação concreta de perigo em face de determinada aeronave, sendo suficiente a conduta de utilizar o espectro eletromagnético sem autorização estatal. Nesse sentido: PROCESSUAL PENAL. RÁDIO COMUNITÁRIA. EXPLORAÇÃO CLANDESTINA DE SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES. ARTIGO 183 DA LEI N. 9.472/1997. DELITO DE PERIGO ABSTRATO. DESNECESSIDADE DE DANO A TERCEIROS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. O delito tipificado no art. 183 da Lei n. 9.472/97 é formal, de perigo abstrato e dispensa a demonstração de dano efetivo ao bem jurídico tutelado pela norma, qual seja, a segurança dos meios de telecomunicação, para sua consumação. O crime, pela sua natureza, ocorre com a instalação e utilização do equipamento, sendo desnecessária a realização de perícia in loco para aferir a potência do transmissor. 2. Recurso do Ministério Público Federal provido.


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93 (ACR 595820114013000, DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 DATA:28/05/2012 PÁGINA:254.) PENAL - PROCESSO PENAL - APELAÇÃO CRIMINAL DO ACUSADO - ART. 183, DA LEI Nº 9.472/97 - DESENVOLVER CLANDESTINAMENTE ATIVIDADES DE TELECOMUNICAÇÃO - CRIME DE PERIGO DE LESÃO - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – NÃO APLICAÇÃO - RÁDIO COMUNITÁRIA - NECESSÁRIA A AUTORIZAÇÃO - RECURSO DO ACUSADO DESPROVIDO. (...) IV - O crime é formal, pois independe de um resultado danoso, bastando a simples conduta do agente, ainda que a norma preveja o resultado. Também é classificado como crime de perigo abstrato, pois se consuma tão somente com a possibilidade do dano. É certo que o exercício clandestino da atividade em questão, por si só, expõe a risco a eficiência dos serviços de telecomunicação e por consequência, a segurança da sociedade em geral. V - Impossível reconhecimento do postulado da insignificância, tendo em vista que o desenvolvimento de rádio comunitária, sem o devido conhecimento pelo Ente Federal, é considerado pelo legislador como forma clandestina de agir, de tal gravidade a ponto de reclamar a proteção da esfera penal. E com toda razão, já que se trata de perigo real de interferência em freqüências de rádio e na comunicação entre aeronaves e as torres de comando, o que não pode se incluir no conceito de crime de bagatela. (...) (ACR 200951680019031, Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO, TRF2 - SEGUNDA TURMA ES-


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Revista da Ajufe PECIALIZADA, E-DJF2R - Data::23/11/2012.)

O elemento subjetivo é o dolo, sendo possível ainda a tipificação pelo elemento culpa (art. 261, §3º do CP). Interessante que o dolo não está ligado, exclusivamente, ao “querer” produzir a situação de perigo à aviação, mas sim ao ter conhecimento de que a sua conduta gera um quadro de perigo às aeronaves, pois o elemento volitivo pode ser preenchido pelo “dolo eventual”. Nesse sentido, versa a doutrina penalista16: Assim, a conduta do agente deve ser praticada, tendo ele o conhecimento de que, com seu comportamento, cria uma situação de perigo à incolumidade pública. No que tange ao tipo penal de criar dificuldade à navegação aérea, o dolo está em ter conhecimento de que a soltura de balões sem fogo e não dirigíveis é capaz de causar embaraço à navegação aérea, cenário suficiente para gerar o perigo à incolumidade pública, em que a mera conduta de dificultar a navegação já detém o lastro necessário a gerar perigo, considerando a extrema confiabilidade que a aviação requer para exercer seu mister. Portanto, ao soltar determinado balão, mesmo sem fonte de chama, o agente tem ciência de que está inserindo objeto no espaço aéreo capaz de produzir embaraços à navegação aérea, os quais requerem alta atenção dos aeronavegantes, por conseguinte, gerando dificuldade à navegação aérea, elemento objetivo do tipo. Ainda que o agente não deseje produzir a situação de perigo, tem conhecimento da dificuldade que impõe à navegação aérea e admite o resultado de perigo, em face de seu prazer pessoal em “soltar o balão”, nada mais que o chamado crime de egoísmo, em que o objetivo pessoal do agente supera os resultados possíveis de serem gerados. É importante deixar claro que o agente, ao soltar balões sem fogo e não dirigíveis, tem ciência de estar dificultando a navegação aérea. Ainda que não deseje tal resultado, consente que possa ocorrer tal embaraço, incidin16   GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 5. ed. Niterói: Impetus, 2009, v.I, p.83.


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do na figura do dolo eventual, como bem salienta a Exposição de Motivos do Código Penal, citado pelo criminalista Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado de Direito Penal17: O dolo eventual é, assim, plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo; ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento. No que tange ao tipo penal culposo, para a sua completa tipicidade, requer-se a ocorrência de resultado material, como é próprio desse tipo penal, consubstanciado na deflagração de sinistro (art. 261, §3º). A soltura de balões de forma acidental é rara, mas pode ser exemplificada no ato do técnico meteorologista que, ao aguardar o momento oportuno para soltar o balão meteorológico, se descuida, e o solta em momento incorreto, gerando um acidente aeronáutico. Porém, a culpa não é, definitivamente, o elemento subjetivo da conduta de soltar balões sem fogo, pois não se trata de soltura inadvertida ou não intencional, mas realizada conscientemente, cujo resultado de fragilização da navegação aérea é conhecido e aceito pelo agente. Diante de todos os elementos expostos, deduz-se que o agente que solta, conscientemente, “balão sem fogo” incide no delito de dificultar a navegação aérea, pois tem ciência que seu artefato causa empecilho à navegação aérea, apesar de não visar tal resultado, com ele consente, pois privilegia seu interesse pessoal na prática baloeira, incidindo no tipo penal do art. 261, segunda parte, do Código Penal Brasileiro, sem prejuízo de ainda tipificar-se a conduta com base no art. 42 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), haja vista a manutenção da capacidade de os balões sem fogo em causar incêndios, quando a queda do artefato ocorra sobre a rede de energia elétrica.

17   CAMPOS, Francisco. Exposição de motivos ao Código Penal. apud BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v.1, p. 321.


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4- Da existência de lei municipal autorizandoa conduta de soltar balões sem fogo e suas repercussões no direito penal O sistema jurídico brasileiro alberga, em seu alicerce axiológico, o princípio jurídico da presunção de constitucionalidade de leis e atos do poder público18, princípio esse que mantém o convívio social sustentado pelas regras de direitos e deveres emanados dos poderes constituídos. Sem tal presunção, os cidadãos poderiam negar-se a cumprir as normas e, com isso, o caos social voltaria a imperar na humanidade, pela ausência de segurança jurídica, elemento basilar dos estados politicamente organizados. Depois de vigente a lei, somente a partir de uma atuação direta do Supremo Tribunal Federal é que a presunção de constitucionalidade pode ser afastada, em consequência de decisão que declare a inconstitucionalidade da norma, sem sede de controle concentrado de constitucionalidade. Ainda que juízes e tribunais, incidentalmente, possam também exercer o controle abstrato de constitucionalidade, os efeitos de tais decisões são restritos ao caso em apreço, portanto, não afastam a presunção geral de constitucionalidade da norma. Em decorrência do referido princípio da presunção de constitucionalidade das leis, a Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, que autoriza a soltura de balões sem fogo, dá suporte de licitude ao exercício de tal prática, extraindo o elemento antijurídico da tipicidade da conduta. Ou seja, ainda que a soltura de balões sem fogo preencha os elementos materiais do crime contra a incolumidade pública, previsto na segunda parte do art. 261, dificultando a navegação aérea, a tipicidade não se completa, pois há norma legal que autoriza tal prática, estando então o cidadão no exercício regular de direito (art. 23, inciso III, segunda parte, do Código Penal). Não somente a dogmática tradicional da lei substantiva penal brasileira provê lastro legal apto a afastar a tipicidade, mas também a teoria constitucionalista do delito19, em que a imputação objetiva da conduta requer a

18   CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito constitucional. 1 ed. Salvador: Jus pudvim, 2008, p. 398 19   GOMES, Luiz Flávio, Direito penal – parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 1, p. 77.


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presença de um risco proibido e, como visto, inexistente, já que há lei civil que autoriza a conduta. Também a teoria da tipicidade conglobante20, do jurista Zaffaroni, afasta a tipicidade material, à medida que essa dogmática retira o caráter delitivo de determinada conduta, se há qualquer outra norma a permitindo, devendo os atos serem analisados globalmente, ou seja, sob todas as óticas normativas. Por outro lado, constatou-se, no tópico inicial deste artigo, que a citada Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, falece de constitucionalidade, em razão do vício ausência de competência do Poder Legislativo municipal, que não possui competência legislativa para regular direito aeronáutico, nem em sede de competência suplementar, visto que tal assunto é objeto de competência privativa da União e não concorrente, cabendo apenas aos estados eventualmente a suplementar, isso se houver lei complementar federal permitindo tal exercício legislativo. Assim, o quadro se desenha da seguinte forma: a conduta de soltar balões sem fogo dificulta a navegação aérea, incidindo no tipo penal do art. 261 (segunda parte), e também pode causar incêndio, amoldurando-se também ao tipo penal constante do art. 42 da Lei de Crimes Ambientais; porém, há lei municipal que autoriza tal prática, e, ainda que seja uma norma formalmente inconstitucional, mantém-se a presunção de sua constitucionalidade, até que a Suprema Corte Brasileira declare a inconstitucionalidade da norma. Portanto, atualmente, os sujeitos que colocam em risco a navegabilidade aérea no território da cidade do Rio de Janeiro, sob a conduta de soltar balões sem fogo, não respondem por crime algum, ainda que estejam dificultando conscientemente a navegação das aeronaves que operem na cidade carioca, que, aliás, abriga três grandes aeroportos públicos (Aeroporto do Galeão, Aeroporto Santos Dumont e Aeroporto de Jacarepaguá) e um aeroporto militar (Aeroporto Militar do Campo dos Afonsos). Também afasta-se eventual responsabilidade penal por delito ambiental, quando a soltura do balão conformar-se aos ditames da normas municipais citadas, ainda que, flagrantemente, eivadas de inconstitucionalidade formal. Digno de nota é o fato de que, no ano de 2014, o Brasil sediará evento des20   Ibid., p. 89.


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portivo mundial, a Copa do Mundo de Futebol21, aspecto que gerará um considerável incremento no tráfego aéreo. Sendo o município do Rio de Janeiro, editor de norma autorizadora da soltura de balões sem fogo, uma das cidades sedes dos jogos mundiais, percebe-se que o cenário requer dedicada atenção, especialmente pelo período em que as competições ocorrerão: os meses de junho e julho, justamente o bimestre em que ocorrem as festividades juninas e julinas, eventos que têm a soltura de balões como prática rotineira. Considerando a necessária segurança que a aviação requer, é salutar que a Autoridade Aeronáutica represente à Advocacia-Geral da União, para que a Presidência da República, órgão legitimado para manejar ações diretas de controle de constitucionalidade, ingresse com uma ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei Municipal n° 5.511/2012, no Supremo Tribunal Federal. Relevante registrar que não existe monopólio na propositura de ações de controle direto de constitucionalidade, visto que a Carta Política de 1988 também atribui tal legitimação a órgãos, como Sindicatos e Associações de classe de âmbito nacional (art. 103, inciso IX, da CF/88) e também o Ministério Público Federal e Militar, esses através do Procurador-Geral da República (art. 103, inciso VI, da CF/88). Importantíssimo que a ação de controle de constitucionalidade orquestrada também abranja pedido de medida cautelar urgente (art. 10, §3º da Lei nº 9.868/99), tendo em vista o elevado risco de acidente que a norma inconstitucional imprime à aviação. Somente após tal manobra processual, quando então a Suprema Corte Constitucional venha a declarar a inconstitucionalidade da lei municipal, mesmo que sob o escopo cautelar, é que os agentes da conduta de soltar balões sem fogo, no território da cidade do Rio de Janeiro, poderão ser penalmente responsabilizados. 5. Conclusão Diante de todos os argumentos jurídicos e aeronáuticos acima expostos,

21   ÉDÉRATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Informações para a Copa do Mundo de 2014. Disponível em: <http://pt.fifa.com/worldcup/matches/matchschedule. html>. Acesso em: 31 maio 2013.


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conclui-se que as normas municipais, autorizadoras da prática da soltura de balões sem fogo, incidem em inconstitucionalidade formal manifesta, em razão da usurpação da competência privativa federal em legislar sobre direito aeronáutico (art. 22, inciso I da CF/88). Ainda que houvesse lei complementar federal autorizando o exercício de competência suplementar em matéria aeronáutica, tal complementação é restrita aos estados, nos termos do parágrafo único do art. 22 da Carta Constitucional Brasileira, logo, sem previsão de exercício complementar aos municípios, que apenas suplementam matérias em que a competência seja concorrente (art. 23 c/c art. 30, inciso II da CF/88). Desse modo, a Lei Municipal n° 5.511, de 17 de agosto de 2012, do município do Rio de Janeiro, ao editar lei em que todos seus efeitos são produzidos no espaço aéreo, incluindo inovações à navegação aérea, acabou por ingressar em matéria eminentemente de direito aeronáutico, incidindo em inconstitucionalidade formal, por vício de competência legislativa. Por outro lado, demonstrou-se, ainda, que a conduta de soltar balões sem fogo produz dificuldade à navegação aérea, considerando o perigo de colisão de tal artefato baloeiro com as aeronaves, exigindo maior atenção e até manobras evasivas dos aeronavegantes. Desse modo, tal ato tem perfeita subsunção ao tipo penal previsto no art. 261, segunda parte, do Código penal Brasileiro: “Praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea”. Tal delito não requer a comprovação de colisão ou quase colisão do balão com qualquer aeronave, pois se completa com a simples inserção do balão no espaço aéreo, já que, por si só, produz empecilho à navegação aérea. Há que registrar, ainda que a conduta de soltar balão sem fogo se mantém tipificada no art. 42 da Lei de Crimes Ambientais, à medida que a queda de tais balões sobre a infraestrutura do sistema elétrico nacional pode causar incêndios, consequência que não se pode afastar, haja vista a indeterminação de seu local de queda e também a constituição do artefato em materiais inflamáveis. No entanto, diante da presunção de constitucionalidade que as normas legais detêm, esteio do estado democrático de direito, a conduta delitiva tem sua antijuridicidade expulsa, impedindo que ocorra a tipicidade material, pois o agente acaba por atuar mediante o exercício regular de direito, uma


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conduta permitida e sustentada por norma não penal. Portanto, é necessário que a presunção de constitucionalidade seja afastada, pelo emprego de ações de controle de constitucionalidade, articulada por qualquer dos legitimados a manejarem tal ação constitucional, como a Presidência da República, o Procurador-Geral da República e sindicatos e associações nacionais, dentre outros elencados no art. 103 da Carta Política de 1988. Nestes tempos de pleno acesso ao Poder Judiciário, os diversos órgãos reguladores e fiscalizadores da aviação e os prestadores de serviços aéreos também devem se despertar para a operação do direito como ferramenta de prevenção de acidentes aeronáuticos, e esse é um dos casos em que tal estratégia é a solução para o resguardo da segurança da navegação aérea. Referências bibliográfias AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL (Brasil), Regulamento brasileiro de aviação civil (RBAC) 61: Licenças, habilitações e certificados para pilotos. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www2.anac.gov.br/biblioteca/rbac/ RBAC%2061.PDF>. Acesso em: 27 maio 2013. BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BRASIL. Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Balões de ar quente não tripulados. Brasília: Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, 2006. BRASIL. Constituição (1988). BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei n° 2.848, de 1940. BRASIL. Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Estatística do Risco Baloeiro. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.cenipa.aer.mil.br/cenipa/baloeiro/pesquisa>. Acesso em: 27 maio 2013. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. Matéria Constitucional. RE 227384, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00068. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. ADI 2220, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em


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16/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Matéria Constitucional. ADI 1991, Relator: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2004, DJ 03-12-2004 PP-00012 EMENT VOL-02175-01 PP-00173 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 44-51 RTJ VOL 00192-02 PP-00550. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Matéria Constitucional. ADI 3610, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2011, DJe-182 DIVULG 21-09-2011 PUBLIC 2209-2011 EMENT VOL-02592-01 PP-00077 RTJ VOL-00219- PP-00180. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Matéria Constitucional. RE 215325, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00067 EMENT VOL-02077-01 PP-00155. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Matéria Criminal. ACR 595820114013000, DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 DATA:28/05/2012 PAGINA:254.) BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Matéria Criminal. ACR 200951680019031, Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::23/11/2012. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito constitucional. 1 ed. Salvador: Jus pudvim, 2008. DE DEUS, D. A. A. Balões de ar quente não tripulados. In: CURSO DE SEGURANÇA DE VOO, 60., 1996, Brasília. Aulas eletrônicas...Brasília: 1996. 1 CD-ROM. GOMES, Luiz Flávio, Direito penal – parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 5. ed. Niterói: Impetus, 2009. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. RIO DE JANEIRO (Município). Lei Municipal n° 5.511, de 2012.



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Eduardo Souza Mestrando em Justiça Administrativa e Meio Ambiente pela Universidade Federal Fluminense (UFF/PPGJA) Juiz Federal em Nova Friburgo/RJ

Sumário: 1. Infraestrutura e desenvolvimento econômico brasileiro; 2. Conflitos ambientais; 3. A teoria do desenvolvimento sustentável; 4. Prática dos conflitos ambientais decorrentes dos empreendimentos de infraestrutura Resumo: apresenta a importância do setor de infraestrutura para o desenvolvimento econômico brasileiro, que se reflete em vultosos investimentos financeiros com os quais a iniciativa privada é chamada a colaborar. Analisa os conflitos ambientais subjacentes a esse setor, marcados pela complexidade das questões discutidas e pela dificuldade de resposta da dogmática jurídica. Aborda a compreensão, entre nós, da teoria do desenvolvimento sustentável e sua aplicação nos conflitos ambientais relacionados ao setor da infraestrutura. Riassunto: Indica l’importanza del settore delle infrastrutture per lo sviluppo economico brasiliano, che si riflette in notevoli investimenti con cui l’iniziativa privata è chiamata a lavorare. Analizza i conflitti ambientali di fondo in questo settore, segnato dalla complessità dei temi trattati e la difficoltà di risposta giuridica dogmatica. Abborda l’intesa, tra di noi, della teoria dello sviluppo sostenibile e la sua applicazione nel settore delle infrastrutture connesse conflitti ambientali. Palavras-chave: Infraestrutura. Conflitos ambientais. Desenvolvimento sustentável. Parole-chiave: Infrastrutture. Conflitti ambientali. Sviluppo sostenibile


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1. Infraestrutura e Desenvolvimento Econômico Brasileiro O setor da infraestrutura 1(transportes, logística, energia, aeroportos, portos, saneamento básico, entre outros) hoje representa para o Brasil um problema e, ao mesmo tempo, uma grande oportunidade. Problema porque é voz corrente que um dos grandes empecilhos ao desenvolvimento nacional é a nossa inexistente ou obsoleta infraestrutura física. A oportunidade surge porque a necessidade de investimento nos diversos setores estruturais, como transportes e energia, abre uma porta para variados componentes do desenvolvimento econômico, como a geração de empregos, o fomento à iniciativa privada, os estímulos aos negócios e o desenvolvimento do mercado de capitais. Apenas para se ter ideia da dimensão financeira desses empreendimentos, o Estado brasileiro parece estar consciente das carências do setor, tanto que, foram estimadas, para o período 2010-213, inversões da ordem de R$ 274 bilhões, com um crescimento acumulado de 37,3% frente ao período 2005-20082. É bem verdade que o déficit de investimento no setor é um problema global, pois os países desenvolvidos precisam adaptar/modernizar sua infraestrutura, havendo previsão por parte da OCDE de investimentos na ordem de US$ 30 bilhões até 2030. Para países periféricos, o tema é mais premente, até porque o investimento em infraestrutura vem acompanhado de crescimento econômico, aumento do bem-estar social e boas expectativas de retornos financei-

1   “Um ponto importante a ser discutido, antes de se começar a estudar os impactos da infraestrutura sobre a economia, é a qualificação adequada do termo infraestrutura econômica e quais os setores por ele contemplados. De acordo com o Banco Mundial, infraestrutura econômica abrange os principais setores que subsidiam os domicílios e a produção, a saber: energia, transportes, telecomunicações, fornecimento de água e saneamento e, algumas vezes, setores de habitação e hidrocarbonetos (STRAUB, 2008). Para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ela engloba os setores de energia elétrica, telecomunicações, saneamento e logística (rodovias, ferrovias e portos) (BORÇA JR.; QUARESMA, 2010). Já para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), esse termo é bem abrangente e inclui a prestação de serviços públicos de abastecimento de água, energia elétrica, gás natural, coleta de resíduos, tecnologias de informação e comunicação (TICs), rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, drenagem e irrigação (SÁNCHEZ, 2009)”. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Infraestrutura econômica no Brasil: diagnósticos e perspectivas para 2025. Brasília: Ipea, 2010, p.15. 2   BORÇA JR., G.; QUARESMA, P. Perspectivas de investimento na infraestrutura. 2010-2013. Rio de Janeiro: BNDES, fev. 2010 (Visão do Desenvolvimento, n. 77).


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106 ros para os investimentos a longo prazo3. Com efeito,

“Os investimentos em infraestrutura impactam na economia por meio de canais diretos – como a expansão da capacidade de abastecimento ou o escoamento da produção – e indiretos (a melhoria na produtividade total dos fatores), propiciando o desenvolvimento econômico e social da nação.”4 Quanto à oportunidade de retorno para os investimentos, a aposta na infraestrutura pressupõe disposição para envolver significativo volume de recursos por longo tempo. Normalmente, os contratos de concessão pública, por exemplo, perduram 15 ou 20 anos. A necessidade de investimento no setor volta ao centro do debate, mormente em se tratando de um país emergente, integrante do BRICs, cuja história demonstra certa negligência para com o tema, bastando saber que a nossa atual infraestrutura foi basicamente legada por governos militares, em que as prioridades não eram estabelecidas democraticamente, e cujos resultados são questionáveis, a exemplo de obras inacabadas ou canhestramente executadas (hidroelétrica de Balbina, por exemplo). Tem se estabelecido consenso de que as melhorias na infraestrutura não podem prescindir da participação da iniciativa privada. De fato, o vulto financeiro que quase sempre caracteriza os investimentos no setor, como a construção de grandes obras, aliado ao peculiar aspecto temporal em que o retorno só vem a longo prazo, antecedido por significativo período para recuperação/amortização do investimento, torna praticamente inviável que tal carga recaia quase que exclusivamente sobre o Estado, como acontece atualmente5. Cobra-se um maior 3   ESTRELLA, Frederico. Infraestrutura e a tripla oportunidade. Valor Econômico, São Paulo, 8 mai. 2013. p. A14. 4   INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. op. cit., p.17. 5   Segundo levantamento da Consultoria Internacional InterB, o governo, aí incluído bancos públicos como a Caixa Econômica Federal e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, é responsável por cerca de 65% dos recursos aportados no setor de infraestrutura. Cf. SOARES, Elisa. Estudo indica que recursos públicos bancam 65% do gasto em infraestrutura. Valor Econômico, São Paulo, 17 set. 2013. p. A5.


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papel do capital privado6 no financiamento desses grandes projetos de infraestrutura, devendo o direito, enquanto saber tecnológico, criar meios que permitam conferir aos investidores segurança e retorno financeiro aos seus investimentos. Nesse passo, a iniciativa privada é chamada a colaborar com o Estado como agente fundamental na promoção da infraestrutura do país, mediante parcerias ou novos arranjos contratuais (as parcerias público-privadas são fortes exemplos dessa tendência), fornecendo elementos para o que se vem chamando de um novo ramo do direito, o “direito da infraestrutura”. Com efeito, é essa a mais recente proposta do professor Arnold Wald, conhecido jurista, e Eduardo Sampaio, economista, em trabalho conjunto, no qual asseveram: “Esse novo direito empresarial administrativo, que estamos construindo, com elementos do direito comercial, econômico e administrativo e da economia, é indispensável nos grandes projetos de infraestrutura”7. O Estado, entretanto, nesse modelo, não pode ser completamente alijado ante a substancial importância atribuída à iniciativa privada no setor da infraestrutura. Para além de parcerias com o investidor8, lhe cabe zelar por vasto espectro de interesses de toda a sociedade, atuando na regulação, na planificação e no financiamento do setor9, sendo que entre os interesses a

6   “O setor privado é essencial e constitui a única maneira para mobilizar uma grande quantidade de recursos financeiros, além do conhecimento e da capacidade gerencial, para um melhor desenvolvimento em infraestrutura. Uma melhor estrutura de PPIs, aliada a melhores projetos de concessão e aos instrumentos de administração de risco discutidos anteriormente, é passo fundamental para trazer de volta o setor privado.” FAY, M.; MORRINSON, M. Tendências recentes e principais desafios. Banco Mundial. Departamento de Infraestrutura, Finanças e Setor Privado. Região da América Latina e do Caribe, ago. 2005, p. 13. 7   WALD, Arnold; SAMPAIO, Eduardo. O direito da infraestrutura. Valor Econômico, São Paulo, 28 fev. 2013. Legislação e Tributos, p. E2. 8   Conforme síntese de Heidemann e Salm, Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, p. 24-26, até as primeiras décadas do século 20, a promoção do progresso esteve, mormente, a cargo das forças da economia de mercado sob o comando teórico da economia política. O século 19 foi o tempo em que a filosofia e a prática do liberalismo tiveram sua expressão áurea. Naquela época, o Estado praticamente não tinha um papel a exercer em relação à economia. A partir da década de 20, a crise econômica mundial propicia participação do Estado na economia, regulando ou intervindo diretamente. 9   “Los cambios que se produjeron em las economías de La región durante La década de los años 90 incluyeron modificaciones em los modelos tradicionales de provisión de La infraestructura y SUS servicios, anteriormente caracterizados por uma participación casi excluyente del Estado. Estos câmbios han generados um desafio respecto al nuevo papel que


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serem resguardados se encontra a proteção ambiental. Está ele estruturado por princípios e regras, a começar por normas constitucionais, que, na seara ambiental, implicaram a escolha do desenvolvimento sustentável como diretriz vinculante para ele, Poder Público, e para a coletividade (art. 225 c/c art. 170, da CF). De fato, até pelo porte dos empreendimentos, que costumam ter significativo impacto ambiental, ou seja, por gerarem profundas alterações na natureza, faz-se necessária a interferência do Poder Público zelando por interesses da sociedade como um todo. Pense-se, por exemplo, na construção de uma hidroelétrica, não raro alterando o curso natural de rios, inundando áreas ocupadas por comunidades locais, tais como povos indígenas, além dos inexoráveis impactos na flora e na fauna local. Não é à toa, por exemplo, que relatório produzido pela Organização das Nações Unidas aponta os empreendimentos relacionados à infraestrutura como um dos setores mais danosos ao meio ambiente10. Os investimentos na construção, melhoria ou reforma da infraestrutura são férteis propiciadores de conflitos ambientais na sua mais larga expressão, ou seja, os conflitos deles decorrentes afetam não apenas a natureza em seu aspecto físico (rios, vegetação, espaços físicos etc.), mas também em seu aspecto humano, daí que também são conflitos sociais. O vulto e a complexidade desses conflitos demandam tratamento criterioso, com o qual devem contribuir as mais diversas áreas do saber humano11 (geografia, engenharia, política, economia, sociologia le corresponde asumir al sector público, fundamentalmente em lo referente a la regulación, la planificación y el financiamento de la infraestrutura y SUS servicios. Si bien es um tema que genera debate, existe uncrescente consenso de que el Estado debe adecuarse a esta nueva realidad” BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO (BID). Um nuevo impulso para la integración de la infraestructura regional em América del Sur. Disponível em: <http://www. iadb.org/intal/publicaciones/infraestructura_bid.pdf>. Acesso em 02.mar. 2013. 10   UNITED NATIONS. Human Rights Council. Analytical study on the relationship between human rights and the environment. Disponívelem <http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session19/A-HRC-19-34_en.pdf >. Acesso em: 19 set. 2012. 11   No sentido de que a ecologia envolve diversos campos do conhecimento, Enrique Leff traz os seguintes elucidativos comentários: “As ciências não vivem num vazio ideológico. Tanto por sua constituição a partir das ideologias teóricas e as cosmovisões do mundo que plasmam o terreno conflitivo das práticas sociais dos homens, como pelas transformações tecnológicas que se abrem a partir das condições econômicas de aplicação do conhecimento, as ciências estão inseridas dentro de processos ideológicos e discursivos onde se debatem num processo contraditório de conhecimento/desconhecimento, do qual derivam sua capacidade cognoscitiva e seu potencial transformador da realidade. A articulação destes processos de conhecimento com os processos institucionais, econômicos e políticos que condicionam o potencial tecnológico e a legitimidade ideológica de suas aplicações está regida pelo con-


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etc.), não podendo o Direito (ciência jurídica) ser indiferente a essa constatação, inclusive devendo o jurista oferecer suas contribuições sempre que possível tendo em mente a ótica interdisciplinar em que tais conflitos se manifestam. 2 – Conflitos Ambientais No Brasil, o Direito Ambiental hodiernamente está munido com um considerável arsenal legislativo, desde a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) até a legislação esparsa mais recente (como a lei dos crimes ambientais, Lei 9.605/1998). Afora as disposições constitucionais, calha destacar o advento da Lei 7.347/85, que criou a ação civil pública, inaugurando o processo coletivo ambiental. Apesar desse arsenal legislativo, não se pode deixar de reconhecer o elevado grau de complexidade inerente à temática ambiental. Os conflitos ambientais, cada dia mais variados e profícuos, são erigidos em uma atmosfera de incertezas, em que a ciência ainda não é capaz de dar respostas prontas e totalmente seguras sobre as demandas ecológicas, restando aos operadores o recurso a um instrumental principiológico, no qual se sobressai a pouca certeza, própria desses tipos de normas. A dramaticidade do constante recurso a princípios pode ser exemplificada com o debate relacionado ao princípio da precaução, definido no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

fronto de interesses opostos de classes, grupos sociais, culturas e nações. (...) A complexidade dos problemas ambientais gerados pela racionalidade econômica dominante e a necessidade de analisá-los como sistemas socioambientais complexos criaram a necessidade de integrar a seu estudo um conjunto de conhecimentos derivados de diversos campos do saber”. (LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2001, p. 68/83).


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Entende-se que tal princípio trabalha o risco numa perspectiva de contenção. Ora, o tratamento ecológico do risco é frontalmente diverso da perspectiva econômica, em que o risco é fundamental para o lucro, representando uma oportunidade para inovação e consequentemente para a geração de riqueza12. Como reconhece Beck13, na sociedade contemporânea, marcada pela contraposição segurança vs. medo (distinta da sociedade de classe, em que os valores em choque são igualdade vs. desigualdade), são várias as causas como também são variados os agentes do risco, esse último ostentando a nota da invisibilidade (v.g., riscos decorrentes da produção nucelar ou de alimentos transgênicos). Nesta sociedade, o poder do conhecimento ou da informação é decisivo, suscetível de ser manipulado ou apropriado por interesses, estando a política em última instância subjacente a esse poder. Nesse contexto de (in)certezas, o direito se propõe a ser, numa visão dogmática, um saber tecnológico, no qual se coloca como problema central a decidibilidade dos conflitos. Os procedimentos que o Direito institucionaliza virão conformar os conflitos que surgem na convivência. Na lição de Ferraz Júnior14: A institucionalização do conflito e do procedimento decisório confere aos conflitos jurídicos uma qualidade especial: eles terminam. Ou seja, a decisão jurídica é aquela de lhes pôr um fim, não no sentido de que os elimina, mas que impede sua continuação. Ela não termina por meio de uma dissolução, mas os soluciona, pondo-lhes um fim (cf. Ballweg, 1970:105). Ao contrário de outros conflitos sociais, como os religiosos, os políticos, 12   A ideia de risco no direito ambiental assume graves contornos visto que está associada à perspectiva de irreversibilidade de efeitos negativos nunca antes previstos. No dizer de Derani (Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 268) risco e tempo formaram fatores indissociáveis da prática econômica. Tempo de investimento, planejamento, retorno de capital, ou risco do negócio, da concorrência, são temores enfrentados por todos os agentes econômicos. No entanto, na seara ambiental, essa relação de tempo e risco está voltada ao próprio agente, ou melhor, à própria espécie humana. 13   BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 21-103. 14   FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 328.


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111 os econômicos, os conflitos jurídicos são tratados dentro de uma situação em que eles encontram limites, não podendo mais ser retomados ou levados adiante indefinidamente (ver, por exemplo, a noção de coisa julgada).

Sucede que alguns conflitos ambientais, à vista da atmosfera de incerteza que os envolve, não se permitem a sua resolução definitiva, pois a despeito de uma eventual composição, pelas partes interessadas, não implica o seu desaparecimento da realidade. Na verdade, uma coisa seria a composição do conflito, outra coisa seria a solução do problema ambiental a ele subjacente, como ensina Joan Martinez Alier15: Nos conflitos políticos internacionais carentes de substância real, como os que degeneram em disputas entre os países pela posse de uma franja de território inútil, alcançando um acordo de paz e demarcando-se uma nova fronteira, tanto o conflito quanto o problema desaparecem. Em algumas ocasiões, como a ameaça do CFC para a camada de ozônio nos últimos vinte anos ou as emissões transfronteiriças de dióxido de enxofre na Europa, foram alcançados acordos que resolvem tanto o conflito como o problema. No entanto, em outros casos, solucionar o conflito não equivale necessariamente a solucionar o problema. Pelo contrário, a resolução do conflito pode levar à perpetuação do problema. Os conflitos ambientais internos ou internacionais são solucionados mediante o estabelecimento de regimes de descontaminação, ou regime de acessos aos recursos naturais, tais como a água ou a pesca. Em outras palavras, é obtido algum tipo de acordo sobre os padrões ambientais e sobre as regras de conduta dos atores. Esses padrões não conduzem necessariamente para a sustentabilidade, podendo conduzir ao aquecimento global, ou a perder a biodiversidade ou ao esgotamento aquífero.

15   ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valorização. Tradução de Maurício Waldman. São Paulo: Contexto, 2007, p. 137.


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Revista da Ajufe Exemplificando, um conflito internacional sobre direitos de pesca pode ser resolvido com a ampliação das cotas do pescado, agudizando ainda mais o problema da sobrepesca.

A consciência dessa complexidade que marca os conflitos ambientais não impede o reconhecimento de que, à primeira vista, sobressai em seu núcleo o confronto ecologia vs. economia16. Se a função do direito é reduzir a economia à ética, como dizia Carnelutti17, poder-se-ia dizer que o Direito Ambiental é a sua tentativa mais ousada, pois não raro implica paralisar ou ao menos repensar a própria atividade econômica. De fato, as mais incisivas, e, por isso mesmo, ameaçadoras intervenções humanas na natureza têm por base interesses materiais. Afora alguns casos de perversão, que não raro teimam em se revelar nos homens, normalmente quem derruba uma centenária árvore, por exemplo, o faz não por sadismo, mas sim para transformá-la em lenha, seja para cozinhar seu alimento próprio, seja para consumi-la no forno de alguma fábrica, ou simplesmente para aproveitar o espaço por ela ocupado. A economia supõe escassez de meios e ilimitação de necessidades. Cada sociedade deve constante e diuturnamente decidir quais necessidades e em qual extensão merecerão satisfação (o que produzir); quais dos seus recursos escassos serão mobilizados para gerar aqueles bens escolhidos (como produzir) e, finalmente, uma vez disponibilizado um conjunto de bens à comunidade, como irá ela distribuí-lo entre os seus vários grupos e, dentro deles, a cada um de seus integrantes (para quem produzir)18. O direito surge como instrumento de escolhas19. Na economia, são falaciosas as 16   Sobre o conflito economia-ecologia, Derani (op.cit., p.118) anota que: “Ecologia está assentada numa descrição de tempo e espaço, e os processos de transformação de matéria-prima são exercidos sobre um conjunto finito. A economia, ou melhor, o modo de produção moderno, não leva em consideração tempo e espaço, tomando os recursos naturais como infinitos e inesgotáveis, justificando a necessidade de um contínuo crescimento, que se revela por uma geração constante de valor- início e finalidade de toda a produção”. De fato, na esteira dessa autora, cuja ideia norteia esse trabalho, entende-se que o conflito entre ecologia e economia é ideológico e não material, devendo o texto constitucional ser revelado em sua globalidade. 17   CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Trad. A Rodrugues Queiró Athur A Trindade. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006, p. 98. 18   NUDEO, Fabio. Economia do meio ambiente in PHILIPPI JR; ALVES, Alaôr Caffé (Org.). Curso interdisciplinar de direito ambiental. Barueri: Manole, 2005, p. 197-198. 19   O direito é tão necessário à economia que se qualifica como uma instituição e um instrumento através do qual Estado e mercado servem-se mutuamente para a reprodução do sistema em que estão inseridos (DERANI, Cristiane. op. cit, p. 93)


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compreensões de escolhas naturais, resultando, essencialmente, políticas a forma como a sociedade decide o seu problema econômico (o que, como e para quem produzir), de forma, que, como ensina Nusdeo20, o sistema econômico, no fundo, em essência, é o sistema jurídico. O Estado assume relevante papel, sobretudo quando se constata aquilo que se denomina falhas do mercado. A natureza econômica do fenômeno ambiental, nos sistemas de índole descentralizada, consistiria, pois, numa mescla ou sobreposição de duas falhas do mercado: as externalidades21 e o suprimento de bens coletivos. Para efeitos do presente estudo, é suficiente guardar a noção de que, no que tange aos bens ambientais, eles também são coletivos ou públicos. No entanto, há uma particularidade essencial: o seu suprimento é em grande parte fixo, ou seja, a sua disponibilidade não pode ser aumentada indefinidamente22. Concluindo esse tópico, acompanhamos a síntese de Henri Acselrad23, para quem os conflitos ambientais, sob ótica econômica, podem ser focalizados em duas vertentes básicas, consistente na distribuição de externalidades e no acesso a recursos naturais. 3. A teoria do desenvolvimento sustentável A adoção do eixo econômico como ponto de partida para compreender o direito ambiental, aproximando-o do direito econômico, é deliberadamente uma opção do nosso trabalho. Com efeito, optamos por nos afastar de uma visão mítica da natureza24, que a coloca como um totem, sacralizando-a, optando por 20   Op.cit, p. 199. 21   As externalidades são definidas por três elementos. Em primeiro lugar, pelo comportamento de uma empresa ou indivíduo, que acarreta mudanças no lucro ou no bem-estar de outra empresa ou individuo; em segundo, pelo fato de esse comportamento não ter preço, isto é, não ser objeto de transações no mercado. E, finalmente, por seu caráter involuntário, ou até mesmo acidental. (CALDERONI, S. op.cit., p. 576/577). Comumente, os efeitos da produção sobre o ambiente são qualificados como externalidades, no caso negativas, externalidades essas que não são consideradas pelo empreendedor, daí que seria necessário obrigá-lo, por meio do Estado, a arcar com esse custo, donde se fala em internalizar a externalidade, a ideia básica da chamada contabilidade ambiental (DERANI, Cristiane. op.cit, p. 160) 22   NUSDEO, Fabio; op.cit, p. 212/213. 23   Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 18. 24   O recurso ao mito foi trabalho por DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. 3.a ed. São Paulo: Editora Hucitec/Usp, 2001. Esse autor apontou em relação à construção de espaços ambientais alijados da presença humana a revelação de um modo geral


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um saber funcional, orientado ao tratamento do conflito sob essa faceta. Como se sabe, na ecologia, vislumbraram-se três modos de encarar a natureza. Na terminologia de Joan Martinez Alier25, a primeira corrente, denominada “culto ao silvestre”, encara a natureza na esfera do sagrado para algumas culturas e como um valor incomensurável. Na segunda corrente, cataloga-se o chamado “evangelho da ecoeficiência”, defendendo o crescimento econômico sem descurar dos aspectos ambientais, promovendo uma composição entre a ecologia e a economia. Por fim, a corrente denominada “ecologia dos pobres” ou “justiça ambiental”, que relaciona a questão ambiental com as demandas por justiça social. Para Antonio Carlos Santana Diegues26, a despeito de compreensões outras como as de inspiração marxista ou radical (ecologia profunda), é relevante a distinção entre conservacionistas e preservacionistas. Com os primeiros, inspiradores do que veio a ser a teoria do desenvolvimento sustentável, prevalece a ideia de que se deve procurar o maior bem para o benefício da maioria, incluindo as gerações futuras, mediante a redução dos dejetos e da ineficiência na exploração e consumo dos recursos naturais não renováveis, assegurando a produção máxima sustentável27. Os preservacionistas puros, por sua vez, pregam reverência à natureza no sentido de pensar a natureza: “O conceito de mito utilizado neste trabalho está longe da noção de ‘falácia’, ‘ilusão’ ou conhecimento equivocado que lhe é atribuído pelo senso comum. A noção de mito naturalista, da natureza intocada, do mundo selvagem diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado ‘puro’ até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza. O homem seria, desse modo, um destruidor do mundo natural e, portanto, deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitariam de uma ‘proteção total’”(DIEGUES, op. cit., p.53). Em semelhante sentido, o exposto por Cristiane Derani (op.cit., p. 258): “Evitar que a matéria relativa à proteção do meio ambiente caia no discurso de uma ‘ecologia mística’, dissociada de valores sociais, políticos, econômicos, aparecendo apenas como floreados egoístas e descontextualizados pelo belo e sadio. Não se pode jamais conceber as relações com a natureza dissociadas das relações sociais que a fundamentam”. 25   Op.cit. p. 130. 26   Op.cit. 27   “Gifford Pinchot, engenheiro florestal treinado na Alemanha, criou o movimento de conservação dos recursos, apregoando o seu uso racional. Na verdade, Pinchot agia dentro de um contexto de transformação da natureza em mercadoria. Na sua concepção, a natureza é frequentemente lenta e os processos de manejo podem torná-la eficiente; acreditava que a conservação deveria basear-se em três princípios: o uso dos recursos naturais pela geração presente; a prevenção de desperdício; e o uso dos recursos naturais para benefício da maioria dos cidadãos. Essas ideias foram precursoras do que hoje se chama de “desenvolvimento sustentável”. Como afirma Nash (1989), o conservacionismo de Pinchot foi um dos primeiros movimentos teórico-práticos contra o “desenvolvimento a qualquer custo” (op.cit., p. 29).


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da apreciação estética e espiritual da vida selvagem (wilderness). Ela pretende proteger a natureza contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano.28 Ainda no campo da política, ou melhor dizendo, da alta política, em que se situam as escolhas constitucionais, a sociedade brasileira fez a escolha do desenvolvimento sustentável, pois ao lado do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, da CF 1988), outros princípios também são expressamente abrigados pela mesma Constituição, entre os quais se pode exemplificar com o princípio da propriedade e da livre-iniciativa (art. 170, II e parágrafo único, da CF 1988). A Constituição é imbuída de um caráter conciliatório. Na clássica lição de José Afonso da Silva29: São dois valores aparentemente em conflito que a Constituição de 1988 alberga e quer se realizem no interesse do bem-estar e da boa qualidade de vida dos brasileiros. Antes dela, a Lei 6.938, de 31.8.1981 (art. 1º e 4º), já havia enfrentado o tema, pondo, corretamente, como o principal objetivo a ser conseguido pela Política Nacional do Meio Ambiente a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico. A conciliação dos dois valores consiste, assim, nos termos deste dispositivo, na promoção do chamado desenvolvimento sustentável, que consiste na exploração equilibrada dos recursos naturais, nos limites da satisfação das necessidades e do bem-estar da presente geração, assim como de sua conservação no interesse das gerações futuras. O conceito de desenvolvimento sustentável começa a ser gestado, no âmbito das Nações Unidas, em 1973, em Estocolmo, que resultou em uma declaração contendo princípios gerais30. Posteriormente, mediante o Informe

28   Idem, ibidem, p.30. 29   SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. 4ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 26-27. 30   Princípio 13 Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional dos recursos e melhorar assim as condi-


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Brundtland, o conceito foi mais bem explicitado. Assenta-se em dois pilares: a) justa distribuição de riqueza nos países e entre países e b) uma interação de valores sociais em que se interrelacionam interesses particulares de lucro e interesses de bem-estar coletivo31, procurando maximizar o ganho econômico sem comprometer os recursos naturais. Na lição de Cristiane Derani32: Os criadores da expressão desenvolvimento sustentável partem da constatação de que os recursos humanos são esgotáveis. Por outro lado apoiam-se no postulado de que crescimento constante da economia é necessário para expandir-se o bem-estar pelo mundo. Subjaz a essa teoria a crença na possibilidade de o homem produzir riqueza material sem comprometer a sua base natural, além de expressar um pacto intergeracional, pois assegura direitos a quem nem sequer existe (futuras gerações). Corrige uma deturpação de uma visão econômica limitada, individualista, paradoxal ao seu princípio, na medida em que a economia pressupõe escassez, mas considerava o recurso natural como se ilimitado fosse33, e paradoxal a própria etimologia, pois ecos vem do grego, significando lar, sendo inconcebível uma gestão destrutiva do lar. A Constituição pretende impor um modo de ser ao Estado e ao seu direito. Embora não se desconheça que a questão ambiental está intimamente ções ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque integrado e coordenado de planejamento de seu desenvolvimento, de modo que fiquem asseguradas a compatibilidade entre o desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente humano em benefício de sua população. Princípio 21 Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação de sua própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdição nacional. 31   DERANI, CristianeC. Op. cit. 1997, p.127. 32   Idem, p. 128. 33   Inicialmente, os recursos naturais foram considerados como recursos abundantes ou bens livres (CALDERONI, Sabeta. Economia Ambiental in PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo; ROMERO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet. Curso de gestão ambiental. Barueri: Manole, 2004. P. 571-616).


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ligada à esfera internacional34 ou global, em que é decisivo o modo como se correlacionam as forças políticas e de produção entre países/economia centrais e periféricos, o Estado brasileiro está adstrito a uma série de imposições em prol do meio ambiente35. Ressalte-se, entretanto, que tais imposições não são destinadas exclusivamente ao Estado, ou Poder Público, na dicção constitucional, mas também à coletividade ou à sociedade civil. Trata-se de uma explicitação do conceito de cidadania, que implica para o cidadão uma dimensão não apenas de direitos, mas também de deveres36, podendo-se relacionar entre tais deveres aqueles relacionados ao ambiente, no que a doutrina de direito ambiental chama de princípio da cooperação. Com efeito, a defesa e a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado são postas em nossa ordem jurídica como imperativo do Poder Público e da coletividade, erigindo uma verdadeira responsabilidade social dos particulares. O art. 225 indica algumas medidas fundamentais que devem ser observadas durante este percurso, porém não o caminho propriamente dito. Esse caminho é definido pela instituição de políticas e normas 34   “Desta maneira, o discurso do desenvolvimento sustentável busca gerar um consenso e uma solidariedade internacional sobre os problemas ambientais globais, apagando interesses opostos de nações e grupos sociais em relação ao usufruto e manejo dos recursos naturais para o benefício das populações majoritárias e grupos marginalizados da sociedade.”(LEFF; 2001; p. 70) 35   No art. 225, da CF, há uma série de imposições: § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento) II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento) IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 36   PHILIPPI JR., Arlindo; SAMPAIO, Carlos Alberto Cioce; FERNANDES, Valdir (Org.). Gestão de natureza pública e sustentabilidade. Barueri: Manole, 2012, p. 96.


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ordinárias, visando especificar como e em que medida esse fim pode e deve ser alcançado. Os caminhos a serem adotados são decisões políticas37. A própria Constituição é enfática ao interrelacionar economia e meio ambiente. Com efeito, ao dispor sobre ordem econômica, atrelou-a à dignidade do homem, fundando-a, dentre outros em variados princípios, entre os quais, a proteção do meio ambiente. Como bem ressalta Cristiane Derani38, o desenvolver de cada princípio da ordem econômica está necessariamente contribuindo para a realização dos princípios do capítulo do meio ambiente e vice-versa, porque a realidade não se segmenta em capítulos. Por sua vez, no capítulo do meio ambiente, o art. 225 da CF assegura de forma frontal o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, consagrando simultaneamente um direito social e individual. O meio ambiente surge também como um patrimônio coletivo ou bem de uso comum do povo. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico constitucionalmente protegido. Esse bem não pode ser desmembrado em parcelas individuais. Seu desfrute é necessariamente comunitário e reverte ao bem-estar individual39. O compromisso do desenvolvimento sustentável marca uma fé no progresso da tecnologia. Como se sabe, os tempos atuais são marcados por um excepcional progresso científico e tecnológico, sendo igualmente certo que este ostenta, em relação ao meio ambiente, uma dupla face, vez que pode ser fator de proteção como de destruição. Não se pode desprezar visões otimistas, pois é possível que, através do crescimento econômico, se aumentem também os meios para a proteção ambiental (novas tecnologias, maior conhecimento científico)40. Cumpre não olvidar, entretanto, que a apropriação da natureza se faz conforme o estado da técnica. Essa, entretanto, diferentemente do que faz supor o senso comum, é influenciada pela cultura e pelas estruturas de poder de uma determinada sociedade41. Assim, é preciso que a sociedade reste vigilante e atenta para impor um rumo benéfico ao progresso tecnológico, visto que o 37   DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 262. 38   Op.cit., p. 150-151. 39   Idem, p. 259. 40   Idem, ibidem. 41   ACSERALD, Henry. op.cit.


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direito, enquanto instrumento de escolhas, constitucionalmente já relacionou o desenvolvimento científico e tecnológico à promoção do bem público e à solução dos problemas brasileiros (entre os quais o conflito entre produção e meio ambiente)42. Deve, assim, estruturar a produção de tecnologia, adequando-a a fins sociais e revestindo-a de valores éticos presentes na sociedade43. O direito deve ser instrumento dessa escolha por ele próprio manifestada. Um segundo campo para sua atuação é a viabilização desssa escolha constitucional de um desenvolvimento nacional sustentado, devendo construir, no seio de políticas públicas, instrumentos técnicos e jurídicos que permitam a maior participação social nessa direção. Como ensina Cristiane Derani44: O direito como instrumento normativo de uma sociedade traria, então, a árdua tarefa de ”reorganizar” o construído dilema exposto na contradição entre economia e ecologia. A manifestação das atividades econômicas está interligada com a estrutura política de uma sociedade. Tanto a estrutura política como a econômica se encontram na expressão e na organização no direito. Assim, por exemplo, mecanismos de controle e participação da sociedade no planejamento ambiental das atividades econômicas. Introduzir essa ideia na prática ambiental significa uma releitura dos instrumentos legais de intervenção ambiental já consagrados na legislação, tal como ocorre com os instrumentos previstos na Lei 6.938/1981, que institui a Política Nacional do meio ambiente. Nesse particular, por atuar na fase mais embrionária da gestão ambiental, cabe destacar a Avaliação de Impacto Ambiental, chamada AIA (art. 9, III, Lei 6.938/1981). A AIA se constitui num adequado foro de ponderações e con42   Art. 218 - O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. § 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. § 2º - A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. 43   DERANI, Cristiane. Op.cit., p.178 44   Idem, p. 149.


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tribuições, não sendo óbice, ou representando paralisação, é sim um processo constitutivo seja pela conformação de uma atividade, seja pela conformação de uma política, ou na produção de um planejamento45. 4, Prática dos Conflitos Ambientais Decorrentes dos Empreendimentos de Infraestrutura Em tais conflitos, parece-nos que a ponderação constitucional do desenvolvimento sustentável deve ser implementada sem visões radicais que privilegiem apenas uma espécie de interesse. A título de exemplo, no setor elétrico brasileiro estão em jogo, num contexto de uma economia emergente, legítimas demandas de desenvolvimento, decorrentes, inclusive, de uma inclusão social sem precedentes na história do país. Com efeito, a melhoria de vida conquistada por expressiva faixa populacional, que passou a ter acesso a bens de consumo, reclama as condições materiais para a manutenção desse crescimento46, o que implica investimento no setor recentemente marcado pela constante ameaça de apagões. Por outro lado, a nossa matriz energética é predominantemente baseada nas fontes hídricas47, reflexo de nosso considerável potencial hidroelétrico, proporcionado por um extenso território rico em rios. Tal fonte energética é notoriamente limpa, ou seja, menos poluente que as demais, e economicamente mais viável. 45   DERANI, Cristiane. idem, p.172. 46   Não se pode, entretanto, deixar de apontar alguns excessos decorrentes do processo social de produção, o maior deles a questão do consumismo. O consumismo representa o resultado de necessidades construídas pela força do marketing, instrumento de que os interesses econômicos se valem para impor gostos ou preferências os quais muitas das vezes não trazem utilidade real para o indivíduo, apenas satisfazendo desejos de posse de bens ou serviços, não tanto pelo bem ou serviço, mas pelo efeito psicológico e social a eles relacionados, como o sentimento de pertencimento, de exclusividade, glamour, distinção etc. Esse consumismo induz o incremento da produção, o esgotamento de recursos, além de um custo de oportunidade (pois no desenvolvimento de um celular ultrafino, por exemplo, há “gasto de cérebros” que poderiam estar desenvolvendo um novo aparelho ortopédico...). 47   “O sistema elétrico brasileiro é historicamente composto por uma presença significativa de fontes renováveis de energia. Com efeito, cerca de 89% da geração do Sistema Interligado Nacional (SIN) é oriunda dessas fontes, sendo os 11% restantes majoritariamente formados por térmicas, cujo consumo implica na emissão atmosférica de volumes comparativamente elevados de gás carbônico (CO2) e de outros gases causadores de efeito estufa.” (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. A Expansão das Usinas a Fio d’Água e o Declínio da Capacidade de Regularização do Sistema Elétrico Brasileiro. Rio de Janeiro: FIRJAN, Ago 2013, P. 3).


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O crescimento da demanda por energia, agravada por uma economia que, bem ou mal, se fundou no aumento do consumo, gerou pressões que se reverteram em projetos no intento de ampliar a oferta de energia. O governo planejou diversos empreendimentos hidroelétricos,48 apelando à iniciativa privada, através de concessões, ante os vultos financeiro e técnico desses empreendimentos. Sobretudo na Região Norte do país, onde se concentra expressiva parcela de comunidades indígenas, afluíram sérios conflitos, que, como é de praxe, foram judicializados, com duvidosos efeitos para o país. Paradigmático o caso da usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará, em que a construção da hidroelétrica viu-se envolta em grande mobilização social, culminando em uma ampla judicialização. As obras teriam trazidos consideráveis impactos sobre povos indígenas, população ribeirinha e parte da população urbana de Altamira, tais com doenças transmissíveis, piora na qualidade de vida, destruição de locais sagrados, remoção de comunidades etc. Esses impactos resultaram numa ampla e intricada disputa judicial, com o ajuizamento de 11 (onze) ações civis públicas até o presente momento, destacando-se o Ministério Público como um tenaz agente litigioso. Os métodos do parquet são altamente discutíveis, consistente numa estratégica dispersão de litígios, questionado o empreendimento de forma extremamente minunciosa, desde questões jurídicas gerais (necessidade de prévia oitiva dos indígenas, problemas nas licitações etc.) até questões ambientais propriamente ditas (descumprimento de condicionantes ambientais etc.). Apenas para exemplificar, em uma dessas ações chegou-se à conclusão, por exemplo, de que o empreendimento não se situava em área indígena, tendo o julgador, em sentença que rechaçou a pretensão do Ministério Público, expressado crítica quanto à pulverização, dispersão, superposição e não racionalização das medidas judiciais49: (...) No mesmo diapasão, já se manifestou o TRF da 1ª

48   “Dos 34 novos empreendimentos hidrelétricos previstos para entrar em operação até 2021, 15 estão na Amazônia legal” VIALLI, Andrea. Amazônia é forte de energia e de polêmica. Valor Setorial Energia, São Paulo, ago. 2013, p. 86. 49   BRASIL. Seção Judiciária do Pará. Processo nº : 25997-08.2010.4.01.3900 (Ação Civil Pública). Juiz Federal Arthur Pinheiro Chaves. Belém, PA. Disponível em: http://www.conjur.com. br/2013-jan-25/justica-federal-belo-monte-nao-area-indigena. Acesso em: 14 jun. 2013.


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Revista da Ajufe Região, no julgamento da AC n.º 2006.39.03.000711-9/PA, ocasião na qual a relatora, Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, asseverou taxativamente em seu voto que: “No que interessa diretamente à solução da lide, isto é, se o impacto da construção da usina de belo Monte em terras indígenas ocorrerá, é questão pacífica que a obra não será empreendida dentro da área indígena. Outro fato incontroverso é que a terra indígena Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu estão à jusante da primeira barragem, que desvia as águas do Rio Xingu do seu curso norma”. (...) Assevera-se, de início, que no estágio atual dos acontecimentos a grande questão que se coloca em relação à área de Belo Monte e entorno, quer no que concerne ao modo de via tradicional indígena, quer em relação à proteção do meio ambiente, é a do acompanhamento efetivo e eficaz da implementação de todas as medidas voltadas à proteção lançadas no EIA/RIMA, nos inúmeros estudos e pareceres a cargo da Funai, do Ibama e demais órgão competentes envolvidos, bem como nas Licenças Prévia e de Instalação. De outra banda, a pulverização, dispersão, superposição e não racionalização do ajuizamento de medidas judiciais sucessivas possuem efeito contrário ao de proteção por todos desejado, estimulando-se, ademais, a perpetuação de conflito social na região.

Essa ampla “cruzada ambiental” patrocinada, sobretudo, pelo Ministério Público resultou em mudanças na concepção do empreendimento, com a adoção da modalidade de usinas a fio d’água, situação que gerou questionamentos sobre a própria viabilidade econômica da usina50, visto que talvez não compense os investimentos finan-

50   “Em respeito ao futuro, com a demanda prevista para seguir em trajetória ascendente e a ampliação do parque hidráulico sustentada quase exclusivamente por usinas a fio d’água, a expectativa é que seja registrada uma perda ainda mais significativa da capacidade de regularização do sistema no futuro. Com efeito, estimativas do Sistema FIRJAN apontam que a capacidade de regularização do sistema atingirá 3,35 meses em 2021 — uma queda de 32% em relação a 2012, e de 50% frente a 2001, conforme apresenta a Figura 3” (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, op.cit., p. 9.).


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ceiros a serem despendidos ante a redução da produção energética proporcionada por usinas idealizadas sob essa modalidade, que por não disporem de reservatórios de dimensão significativa, tornam mais vulnerável a produção aos ciclos hidrológicos. O caso em questão é representativo de uma postura que tem se revelado a praxe dos conflitos socioambientais, consistente na sua excessiva judicialização, o que tem trazido consequências maléficas, vez que o caminho judicial não tem se mostrado o melhor ambiente para o trato de questões desse jaez. Basta dizer que a complexidade de tais assuntos quase sempre demanda o envolvimento de equipes multiprofissionais, dificuldade que assoma por exemplo na prova pericial em juízo, de produção complicada, cara e de resultados questionáveis. Um outro complicador a ser observado diz respeito ao chamado tempo do processo. Com efeito, em razão do nosso sistema processual, com vários graus de jurisdição e uma infinidade de recursos, arisca-se a perenizar o conflito ambiental, pois o empreendimento pode prosseguir causando danos ou, mesmo diante de uma paralisação judicial das obras, decorrente de medidas liminares ou antecipatórias, ainda assim trazer consequências ambientalmente indesejadas. As medidas judiciais provisórias, diga-se, apenas aparentemente traz bons resultados, pois pela própria razão de serem provisórias podem sujeitar-se a oscilações, gerando insegurança jurídica e nem por isso implicando proteção ambiental. Algumas dessas iniciativas refletem o intento de parar o empreendimento a qualquer custo, ainda que tal paralisação não venha embasada em estudos técnicos que atestem perigo ambiental do empreendimento, e que ao menos contraditem os estudos oficiais já produzidos. No meio jurídico, essa nossa crítica não é propriamente aos atores e ao modo como buscam defender seus interesses (ao nosso ver, mas adequados ao campo político), mas sim ao nosso sistema judicial que não foi capaz de estruturar-se de forma a oferecer mecanismos e instrumentos propiciadores de uma solução em tempo hábil que zelasse pelos interesses (desenvolvimento econômico, lucro, proteção ambiental etc.) dos diversos atores envolvidos (comunidades indígenas, investidores, sociedade em geral, burocratas etc.). Em realidade, a resposta mais eficiente ao problema deveria advir de fora do sistema judicial, ou antes da intervenção desse, na própria Administração, mediante a elaboração de um processo de licenciamento incrementado por sólidos estudos, sobretudo com uma Avaliação de Impacto Ambiental bem elaborada, em que são chamados a se manifestar não apenas técnicos e estudiosos das mais va-


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riadas áreas, mas também os diversos setores sociais interessados, recorrendo-se a expedientes de democracia participativa, como as audiências públicas. Esse ambiente de transparência, em que técnica e política se encontram, embora não necessariamente elimine o conflito, ao menos o torna mais consistente e subsidiado. Evidentemente, não se defende restrições ao acesso à Justiça, garantia constitucional de relevo, apenas se nos afigura mais funcional que não seja o Judiciário imediatamente convocado a arbitrar interesses complexos sem o devido amadurecimento, quando não envoltos em indesejável clima emocional. 5. Referências bibliográficas ACSELRAD, Henri (org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valorização. Tradução de Maurício Waldman. São Paulo: Contexto, 2007. BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. BELLOTO, Alessandra; MARQUES, Felipe. Projetos demandam operações de crédito mais longo. Valor Econômico, São Paulo, 2 mai. 2013. Especial Rumos da Economia, p.F8. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2013. ______. Seção Judiciária do Pará. Processo nº : 25997-08.2010.4.01.3900 (Ação Civil Pública). Juiz Federal Arthur Pinheiro Chaves. Belém, PA. Disponível em: http:// www.conjur.com.br/2013-jan-25/justica-federal-belo-monte-nao-area-indigena. Acesso em: 14 jun. 2013. CALDERONI, Sabeta. Economia Ambiental in PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo; ROMERO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet. Curso de gestão ambiental. Barueri: Manole, 2004. P. 571-616. CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Trad. A Rodrugues Queiró Athur A Trindade. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006. DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. 3.a ed.


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Férias judiciais - a análise crítica no Brasil e no Mundo


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Moisés Anderson Costa Rodrigues da Silva Juiz Federal substituto da Subseção de Dourados/MS e ex-Promotor de Justiça da Bahia

Resumo: as férias judiciais mais extensas não são um benefício concedido apenas no Brasil. Vários países instituem plano de carreira para seus magistrados para tornar a atividade jurisdicional mais atrativa para os profissionais do Direito. Outras atividades também usufruem de regimes diferenciados de benefícios. Elas se justificam tanto no Brasil como no mundo pelo grau de responsabilidade e deveres impostos aos juízes, sem falar do estresse causado pelo efetivo exercício da atividade jurisdicional. Abstract: The most extensive judicial holidays are not a benefit granted only in Brazil. Several countries establishing career plan for their magistratescourt to make the activity more attractive to legal professionals attractive. Other activities also enjoy benefits of different regimes. They are justified in both Brazil and the world by the degree of responsibility and duties imposed on judges, not to mention the stress caused by the effective exercise of judicial activity. Sumário: 1. Introdução. 2. Direito Comparado. 3. O fim das férias como solução para o acervo processual. 4. As férias judiciais para uma profissão estressante. 5. Outras profissões “privilegiadas”. 6. As férias judiciais e o princípio da igualdade.

1. Introdução Um tema recorrente na imprensa brasileira são as férias dos magistrados. Em cada entrevista, indaga-se se é justo o juiz brasileiro ter 60 (sessenta) dias de férias. Tal direito é previsto muito antes da LOMAN, deitando raízes na época do Império. Tradicionalmente, os juízes brasileiros gozam de férias de 60 dias, mas, ultimamente, a sociedade questiona se esse direito deve permanecer.


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Olhando o direito comparado, vê-se que o regime de férias forenses é diferenciado. Tem-se tal constatação no livro mais crítico à Suprema Corte Americana, Por detrás da Suprema Corte, no qual um trecho chama a atenção: “Por volta de julho o Juiz Presidente Warren Burger estava em seu novo gabinete. Com três meses pela frente antes do início das sessões e com os outros magistrados aproveitando o recesso para ficar em suas casas ou de férias, ele pretendia consolidar seu poder.”1. Os Estados Unidos teriam concedido um benefício tão elástico aos seus juízes? Será que a Corte americana, que recebe menos processos que a nossa, não mudou tal regime para adequar-se à crítica “republicana” de alguns? 2. Direito Comparado Recentemente, os americanos criticaram a duração das férias dos membros da Suprema Corte, pois a nação se angustia com a tardança na discussão da constitucionalidade do Obama Care. O título do sítio eletrônico2 é: A Suprema Corte dos EUA: preguiçosos ou descuidados (ou pior, os dois?). Em tal reportagem, noticia-se que a Suprema Corte Americana irá para seus três meses de férias remuneradas enquanto o Estado da Virgínia pediu que fosse analisada a constitucionalidade do Obama Care. Mesmo um não americano sabe da importância e da magnitude de tal plano para remodelar o sistema de saúde daquele país. Os contribuintes terão que custeá-lo, os Estados contingenciarão recursos, as empresas precisarão tomar dimensão dos gastos com seus trabalhadores. Na aludida reportagem, a comentarista questiona se eles (os juízes) se importam, mas é claro que se importam.

1    WOODWARD, Bob; ARMSTRONG, Scott. Por detrás da Suprema Corte. São Paulo: Saraiva, 1985, pg. 37, Saraiva (grifos nossos). 2    In http://gretawire.foxnewsinsider.com/2011/06/27/the-supreme-court-lazy-or-dont-they-care-or-worse-both, acesso em 15/04/2012.


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Tal sistema não se resume em compromisso ao trabalho interno, mas sim ao repouso: Juízes da Suprema Corte vão para destinos invejáveis em recesso de verão. Postado às 7:45 Quinta-feira, 14 de junho de 2011 Pela Imprensa Associada WASHINGTON - O salário não é o melhor, mas, oh, as oportunidades de viagens que aparecem quando se é um juiz da Suprema Corte. Genebra, Roma, Lake Tahoe - e isso é único itinerário de verão do juiz Antonin Scalia. Os juízes muitas vezes tiram o proveito máximo de suas férias de verão prolongado para viajar ao exterior, e ganhar dinheiro para ele também. Juízes podem aceitar cerca de US$ 25.000 em renda adicional para o ensino e falando, além de seu salário de 213.900 dólares por ano. O Chefe de Justiça ganha cerca de US $ 10.000 por ano a mais. O Chefe de Justiça John Roberts vai a Florença, Itália; Juiz Anthony Kennedy é dirigido a Salzburgo, na Áustria, e Juiz Samuel Alito vai passar um tempo em Roma. Cada um participa no exterior de um programa de uma escola de verão de lei norte-americana. Juízes Stephen Breyer e Elena Kagan estão indo para o Instituto Aspen, no Colorado. A Juíza Ruth Bader Ginsburg também pode visitar Aspen. O Verão de Breyer inclui visitas a Toronto para a American Bar Association convenção; para Vermont — faturados pela Calvin Coolidge Center como sua primeira aparição pública no Estado desde que se juntou a Suprema Corte em 1994, e para Fargo, ND, para dedicar uma escola secundária. Ele também está programado para presidir o casamento de ex-deputado


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131 Patrick Kennedy, no complexo da família Kennedy em Hyannis, Massachusetts, em meados de julho. Breyer já trabalhou para o senador Edward M. Kennedy, falecido pai de Patrick.

Inicialmente, já percebemos um paradoxo, analisando as duas Cortes Supremas, vemos que enquanto a norte-americana tem três meses de férias anuais e julga menos de 100 processos por ano, a brasileira, que recebe quase 100 mil feitos anualmente, tem dois recessos de férias. Todo juiz sabe a importância de uma demanda. Qual magistrado não questionou se sua decisão não foi exagerada, se não poderia tirar um mês de pena, ou aumentar o valor de uma indenização, ou mesmo diminuí-la? Tal ponderação é feita pelo mais tradicional crítico dos juízes, Piero Calamandrei: “Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava as noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poderá dormir tranquilamente o juiz que sabe possuir, num alambique secreto, aquele tóxico subtil que se chama injustiça e do qual uma ligeira fuga pode bastar, não só para tirar a vida, mas, o que é mais horrível, para dar a uma vida inteira indelével sabor amargo, que doçura alguma jamais poderá consolar?”3 A atividade do magistrado é de suma importância para o ser humano, pois ubi societas, ubi jus, onde há sociedade, há o direito. Desde os primórdios da formação humana, pessoas dirimiam conflitos de terceiros porque estes apenas os resolviam na força. Tanto é assim que os outros países concedem períodos diferenciados de

3   “Ele, os juízes, visto por nós, advogados.”


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132 férias a seus magistrados4.

Itália: 1º de agosto e findam em 15 de setembro (artigo 90.º e ss. do Ordinamento Giudiziario, publicado na Gazzetta Ufficiale de 4 de Fevereiro de 1941). Áustria, as férias judiciais são de 15 de julho a 25 de agosto. Irlanda, as férias são: a) Tribunais Superiores (High e Supreme Courts) São quatro os períodos de férias judiciais nos Tribunais Superiores irlandeses, a saber: - O período das férias do Natal (compreendido entre 24 de dezembro e 6 de janeiro); - O período das férias da Páscoa (que se estende da segunda-feira anterior à data festiva religiosa ao sábado da semana de Páscoa); - O período das férias de «Whitsun» (que começa na sexta-feira que antecede o «Whitsun» e termina no sábado da semana de «Whitsun»); - O período das férias longas (que se inicia de 1º de agosto e termina a 30 de setembro).b) Tribunais de 1.ª instância (District e Circuit Courts). Tal como sucede nos Tribunais Superiores, também nos Circuit Courts decorre uma interrupção da atividade jurisdicional durante os meses de agosto e setembro, não tendo o regime legal sofrido alterações recentemente. Todavia, nos District Courts apenas o mês de agosto é mês de férias judiciais. Nestes Tribunais, contudo, a partir da quinta-feira anterior à Páscoa é possível estabelecer seis dias consecutivos adicionais de férias a partir de 23 de dezembro pode ser agendado um outro período de acréscimo interruptivo de nove dias consecutivos. À semelhança do que

4    Estudo de Direito Comparado sobre o período de férias judiciais em http://www.oa.pt/ upl/%7Bf072be6f-4936-4576-8fd8-3829cc22db93%7D.pdf, acesso em 15/04/2012.


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133 sucede nos Tribunais Superiores, aos juízes dos Tribunais de 1.ª instância não é aplicável qualquer dispositivo legal que defina o número de dias de férias. Suíça (Cantão de Neuchâtel), as férias, de acordo com o artigo 118.º do Código de Processo Civil de 1991, as férias judiciais são marcadas entre os 7 dias anteriores à Páscoa e os sete dias posteriores a este feriado (inclusive), de 15 de julho a 15 de Agosto (inclusive) e de 18 de Dezembro a 1º de janeiro (inclusive). Nesse período não se efetuam julgamentos, salvo em casos urgentes e noutras situações definidas na lei (artigo 119.º do mesmo código); nas férias judiciais os prazos fixados pela lei ou pelo juiz suspendem-se (artigo 120.º). A lei foi alterada no ano 2000, com efeitos reportados a 1º de janeiro de 2001. Anteriormente, o período de férias judiciais decorria de 10 de julho a 20 de agosto (inclusive) e de 20 de dezembro a 2 de janeiro (inclusive). As férias judiciais, na Bélgica, são estabelecidas entre o primeiro dia de julho e o último dia de agosto (artigos 334.º e ss. do Code Judiciaire). Na Alemanha, os artigos 199 a 202 do GVG (Judiciary Act) que tratavam das férias judiciais (definidas entre o dia 16 de julho e o dia 15 de setembro) foram revogados, com efeitos a 1º de julho de 1997. Optou-se, em matéria civil, por uma solução de compromisso prevista no §227, 3.º parágrafo do Código de Processo Civil (ZPO), segundo a qual «uma data de audiência fixada entre 1º de julho e 31 de agosto será adiada por pedido efetuado no prazo máximo de uma semana após recepção da citação ou da marcação da data, excetuadas leituras de sentenças. Esta disposição não se aplica a: 1) processos urgentes; 2) litígios relativos a arrendamento; 3) matérias familiares; 4) disputas sobre letras de câmbio ou cheques; 5) litígios sobre construções, quando a disputa


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Revista da Ajufe for acerca da continuação de construções já começadas; 6) disputas sobre licenças para uso ou devolução de bens protegidos por arresto; 7) procedimentos de «exequatur» ou atos judiciais em arbitragem».

Aprofundando a análise do direito comparado, há um importante estudo da Suprema Corte sul-africana5, que possui recesso anual de 14 (quatorze) semanas, no qual aponta os períodos de recesso em jurisdições estrangeiras. Por tal documento, percebem-se outros regimes diferenciados de férias judiciais. Chama-se a atenção: No Supremo Tribunal de Cingapura, os recessos são 9 semanas por ano, e compreendem um período de férias do tribunal meados do ano, e em 2003 decorreu de 26 maio a 20 junho e o fim das férias de final ano, que decorrerá de 1º de dezembro de 2003 a 2 de janeiro de 2004. O Tribunal Distrital de Israel goza de recesso 6 semanas por ano, a partir de 15 julho a 1º de setembro. O tribunal senta-se a partir das 08:30 - 13:00, domingos às quintas-feiras e às sextas-feiras aqui é uma escala de serviço para listas de emergência apenas. Na Dinamarca, todos os tribunais trabalham durante todo o ano, exceto por um curto recesso durante as férias de verão, normalmente de 3 semanas. Somente casos urgentes estão sendo tratados durante o recesso de verão. Aos juízes são concedidas férias de 5 semanas de um ano de férias, desde que não interfiram com o trabalho diário do tribunal. Na Suécia, a estrutura judicial é baseada em uma estrutura de três camadas compreendendo as cortes Distritais, Tribunais de Recurso e o Tribunal Supremo. Os tribunais suecos não estão organizados em matérias nem

5    In http://www.justice.gov.za/reportfiles/court%20recess_2003/crr_ch4.pdf, acesso em 15/04/2012.


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135 têm quaisquer férias judiciais. No entanto, os meses de julho e agosto são tradicionalmente meses de agenda leve para os tribunais e eles tendem a lidar somente com matérias urgentes. A maioria dos funcionários judiciais sai de férias durante este período. No Uruguai, os juízes de primeira instância (...) tem um recesso de 8 semanas por ano a saber 25 dezembro-31 janeiro e um recesso no meio do ano 1º-20 de julho.

Além desses países, não podemos deixar de informar que na Índia 6as férias judiciais são de três meses. Através de relatório elaborado por Comissão legal instituída pelo Governo da Índia, chegou-se à conclusão de que o período britânico de férias, três meses, deveria ser reduzido em dez dias. Ainda assim, não se falou em reduzir as férias para o trabalhador comum porque a magistratura é uma profissão diferenciada, com deveres e encargos que aquele não suporta.7 Os mais críticos quanto à duração das férias judiciais lembram a situação da França, cujos magistrados têm o mesmo período de férias dos demais funcionários públicos, um mês, mas naquele país qual a jornada de trabalho? A jornada de trabalho semanal desse país não é de 35 horas semanais? Colocarão o juiz brasileiro nessa jornada? Nesse particular, sobressai-se a situação da Grécia, cujos magistrados têm apenas um mês de férias. Não foram os juízes de lá que colocaram o país na bancarrota, nem o levaram a pedir socorro financeiro às entidades internacionais. Contraditoriamente, segundo reportagem do Conjur8, a Grécia tem hoje 442 processos à espera de julgamento pelo Tribunal Europeu, dos quais mais de 250 tratam da lentidão da Justiça grega. Ao dar o ultimato para

6    Panel to examine long vacations for Supreme Court judges, in http://news.vakilno1. com/2007/12/panel-to-examine-long-vacations-for.html 7    REFORMS IN THE JUDICIARY – SOME SUGGESTIONS, GOVERNMENT OF INDIA LAW COMMISSION OF INDIA, in http://lawcommissionofindia.nic.in/reports/report230.pdf, acesso em 15/04/2012 8  Itália é a campeã de lentidão judicial na Europa, In http://www.conjur.com.br/2012-abr-14/ italia-pais-europeu-acionado-causa-lentidao-justica, acesso em 15/04/2012.


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a Grécia, a Corte também fez uma estimativa de que, para um caso criminal comum, sete anos são suficientes para a conclusão. Atrás da Grécia, que dá 30 dias de férias aos magistrados, está a Itália, onde são agraciados com 45 dias. Estranhamente, o país menos acionado é o Reino Unido, que concede três meses de férias aos juízes.9 3. O fim das férias como solução para o acervo processual Um dos maiores defensores da redução das férias dos magistrados é Joaquim Falcão, explana: Faz dois anos que Portugal reduziu as férias de seus juízes de 60 para 30 dias. O resultado foi um aumento de cerca de 9% na produtividade do Judiciário. Mais trabalho, mais agilidade, menos lentidão, mais justiça. Ou seja, pelas estatísticas do CNJ, se mudasse a lei, o Judiciário produziria cerca de mais 2 milhões de decisões por ano. O que não é pouco. Sem aumento de custos.10 Será mesmo? O ilustre professor, data venia, equivoca-se. Ele pega a produção dos juízes brasileiros, sem paralelo no mundo, e aplica o aludido percentual. Entretanto, se analisarmos o propalado percentual no tempo médio de um processo, 60% dele se esvai em rotinas cartorárias, como juntadas, publicações, e carimbos. Igualmente, Portugal tinha três meses de férias judiciais e com a Lei n.º 43/2010 11alterou-se para dois meses. Senão vejamos: Redação anterior dada pela LEI N.º 3/99, DE 13 DE JANEIRO12:

9  Troika bid to cut judicial holidays, In http://www.lawgazette.co.uk/news/cut-judges039-holidays-save-economies-says-troika, acesso em 15/04/2012. 10   Falcão, Joaquim. Se juiz tiver 30 dias, produtividade aumentará, in http://www.conjur.com.br/2010-mar-12/juiz-tiver-30-dias-ferias-produtividade-aumentara-despesa-caira, acesso em 15/04/2012 11  in http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1270&tabela=leis&n versao= 12    in http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_busca_art_velho.php?nid=1&artigonum=1A001 2&diplomaversao=Lei+n.%BA+3%2F99%2C+de+13+de+Janeiro, acesso em 15/04/2012


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137 Férias judiciais As férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, do domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 14 de Setembro. Redação atual, imposta pela Lei 43/2010 é: Artigo 12.º [...] As férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, do domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto.

Anteriormente, as férias judiciais portuguesas prolongavam-se até 14 de setembro, agora, findam em 31 de agosto, totalizando 61 (sessenta e um) dias de férias. Ainda assim, o aumento de produtividade judiciário permaneceu, pois não houve relatos de que ele retrocedeu mesmo com o retorno das férias aos patamares mencionados. Por outro lado, dados estatísticos revelam que, em muitas varas, o número de processos aguardando sentenças não chega a um por cento de seu acervo. Isso só demonstra que as férias forenses não são o remédio para diminuição do acervo processual. Não é o juiz que mandará a carta precatória ir mais rápida nem tornará a juntada mais ágil, e sim a informatização, a criação de mais cargos de servidores e o programa de investimento judicial. E isso para o processo de conhecimento, não para o gargalo judiciário que é a execução. Este para terminar precisa que o devedor tenha bens que bastem ao pleito do credor. Entretanto, milhares de “penhoras on-line” feitas por magistrados são totalmente infrutíferas, porque os devedores esvaziam suas contas. A redução das férias dos magistrados a quê serviria? Somente medidas extrajudiciais surtiriam efeito, como o protesto extrajudicial, e a inscrição do devedor em cadastros de inadimplentes. Outra medida que ensejaria maior celeridade seria o fim das quatro instâncias recursais, possibilitando que homicidas confessos demorem quase 12 anos para irem para a cadeia.


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Quem comunga desse entendimento é o próprio CNJ, através de seu conselheiro Paulo Tamburini: Precisamos entender que o juiz não é uma peça que trabalha sozinho no processo judicial, ele tem que ter um conjunto de servidores habilitados, capacitados e ágeis no andamento processual. Um magistrado precisa ter, também, recursos de ordem material em seu gabinete, para que consiga fazer um bom gerenciamento do acervo processual que não pára de entrar nos tribunais, além de uma legislação processual que não permita retardamento no andamento do processo, como a quantidade de recursos atualmente existente”13. Por outro lado, as férias judiciais não são culpadas pelo incessante crescimento do número de ações judiciais ajuizadas nos últimos anos. Um dos grandes estudiosos sobre as relações trabalhistas no mundo, José Pastore chama, também, a atenção para este fato: As Juntas de Conciliação e Julgamento estão recebendo quase dois milhões de processos novos por ano. A essa espantosa cifra, há que se adicionar quase um milhão de casos residuais que vêem de anos anteriores (Relatório Geral da Justiça do Trabalho, Brasília: TST, 1998). Trata-se de números assustadores. A França entrou em pânico quando, há cinco anos, as ações trabalhistas ultrapassaram a marca dos 70 mil casos. Os americanos estão apavorados porque já existem cerca de 75 mil processos de natureza trabalhista na justiça comum. E o Japão está atônito porque as ações trabalhistas bateram a casa dos mil casos. O Brasil tem quase 3 milhões

13    Brasil tem oito juízes para cada cem mil habitantes, in http://www.conjur.com.br/2011-fev-12/media-brasil-oito-juizes-cada-cem-mil-habitantes, acesso em 15/04/2012.


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139 de casos que não param de aumentar. (...) Os 4.434 juízes das Juntas de Conciliação e Julgamento realizam cerca de 225 mil sessões e solucionam quase dois milhões de conflitos por ano! Em 45% dos casos, o impasse se resolve na primeira audiência, por conciliação; e 55% entram na longa rota de julgamento, muitos dos quais vão aos TRTs e TST. Os 463 juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho estão recebendo mais de 360 mil novos processos todos os anos. Eles realizam cerca de 4.800 sessões e julgam mais de 411 mil ações. Ainda assim, sobra um resíduo de 230 mil processos para o ano seguinte. O Tribunal Superior do Trabalho recebe mais de 90 mil processos e, os seus 27 ministros, em 364 sessões anuais, solucionam cerca de 88 mil casos. É difícil encontrar apoio para a tese de que os juízes e funcionários das Juntas e Tribunais trabalham pouco. Nos Tribunais Regionais, julgam-se 85 processos por sessão, em média. No TRT de Campinas são 121; em São Paulo, 124; e no Paraná, 130, o que dá uma média de 30 processos por hora ou um a cada dois minutos! 14

Quase 100 milhões de processos tramitam no Brasil. Somente em 2011, o número de processos ajuizados aumentou em 25%. Eram 20 milhões de novos processos em 2010. Foram 25 milhões em 2011, segundo o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, na abertura do ano judiciário. Diminuídas as férias, os juízes brasileiros terão a carga processual desses países? Criar-se-ão os cargos de magistrados para esse alude processual?

14   PASTORE, José. A culpa é da Justiça do Trabalho? em http://www.josepastore.com.br/artigos/rt/rt_056.htm, acesso em 15/04/2012.no original não há grifos.


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Paralelamente, o próprio CNJ reconhece como baixo o número de juízes no Brasil. Segundo o relatório Justiça em números, o Brasil tem a média de oito magistrados para cada grupo de 100 mil habitantes. Se olharmos para a Justiça Federal, teremos um juiz para cada 100 mil habitantes. O relatório também mostra que o Brasil tem 16.108 juízes, média de oito magistrados por 100 mil habitantes. A média é baixa se comparada a países europeus. De acordo com o relatório, na Espanha há 10 juízes para cada 100 mil habitantes; na Itália, são 11 por 100 mil; na França, 12 por 100 mil; e em Portugal, 17 juízes para cada 100 mil habitantes.15 4. As férias judiciais para uma profissão estressante No campo interno, as férias judiciais soam como uma prerrogativa descabida para a imensa maioria da população. Entretanto, segundo o profundo conhecedor da magistratura o professor da PUC do Rio Luiz Werneck Vianna, autor do livro Corpo e alma da magistratura brasileira, a magistratura é uma “profissão estressante”.16 O trabalho do juiz é decidir e o juiz frequentemente decide questões que determinam o destino dos cidadãos, das empresas, da economia e da vida política do país. Quem haverá de negar o drama de ter de decidir a guarda dos filhos de um casal em litígio? E se um dos pais for estrangeiro e estiver a reclamar o retorno das crianças a seu país, contra a vontade da mãe ou pai brasileiro que as houver trazido consigo? Quem negará a dificuldade de decretar uma prisão ou decidir sobre a liberdade de um cidadão acusado e ainda não julgado? Ou mesmo a 15   Brasil tem 86,6 milhões de processos em andamento, em http://www.conjur.com.br/2010-set-14/brasil-866-milhoes-processos-andamento-afirma-cnj, acesso em 15/04/2012. 16  Não julgueis para não serem julgados.Mateus, 7,1.


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141 dificuldade de julgar quem seja acusado da prática de crimes? E quem negará a dificuldade de decidir sobre questões que podem pôr abaixo um plano econômico? Ou a candidatura de um político influente? Alguém imagina o tipo de pressão que o juiz tem de aprender a suportar em tais casos, que fazem o dia a dia dos magistrados?17

No campo científico, detectou-se o estresse por que passam os magistrados cotidianamente. No Canadá, Rogers, Freeman e LeSage (1991) publicaram o primeiro levantamento sistemático sobre o stress ocupacional de juízes naquele país e identificaram a solidão e isolamento da atividade judicante como uma das maiores fontes de stress na profissão. No Brasil, encontra-se o trabalho de Vianna, Carvalho, Melo e Burgos (1997) intitulado “Corpo e alma da magistratura brasileira” que, embora não direcionado para o estudo do stress, revela várias características e fontes de stress na magistratura. A atividade judicante encontra-se entre as mais conceituadas e respeitadas universalmente, mas, ao mesmo tempo, ela envolve uma responsabilidade de grande monta pelo seu impacto na sociedade no geral e uma solidão pronunciada que envolve o ato de julgar. A estes fatores, acrescentam-se uma carga grande de processos a serem julgados e o peso emocional do julgamento, além das expectativas da comunidade quanto a um comportamento e um viver absolutamente exemplar por parte das pessoas que a exercem. O próprio ato de julgar já foi identificado por Rogers e colabo17   Alves, Francisco Glauber Pessoa, Imensa maioria dos juízes não tem regalias, in http:// www.conjur.com.br/2012-jan-26/fim-ferias-60-dias-afastara-bons-profissionais-magistratura, acesso em 15/04/2012.


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Revista da Ajufe radores (1991) como um estressor de grande impacto. No que se refere à sobrecarga dos processos, Zimmerman (1981) verificou em uma pesquisa que envolveu entrevistas extensas com juízes americanos que quando os processos a serem julgados se acumulam, surge uma sensação de falta de controle, desalento e angústia mesmo nos mais competentes e dedicados dos juízes.18

A atividade de decidir a vida, a liberdade ou o patrimônio de uma pessoa envolve imensa energia intelectual e, mormente, emocional de um indivíduo. Costumeiramente, fala-se que a pena de um juiz pode mudar os rumos de uma nação. Some-se a isso as vicissitudes extraordinárias que envolvem o dia a dia do magistrado. Rotineiramente, tem-se notícia de magistrados envolvidos em ameaças de partes ou mesmo do crime organizado. Quem pensa que é aprazível a rotina de um juiz criminal surpreende-se ao acessar na internet um vídeo em que um réu ameaça um juiz na audiência, mesmo com dois policiais na sala.19 No estudo supramencionado, concluiu-se: O presente trabalho revelou que os juízes da Justiça do Trabalho avaliados percebiam sua profissão como uma das mais estressantes, semelhante à de trabalhadores de minas e maior do que a de pilotos de avião. A porcentagem dos juízes com sintomas significativos de stress foi muito alta (71%), sendo que o número de juízas com stress era significativamente maior do que o de seus colegas do sexo masculino exercendo as mesmas funções. Indicações foram levantadas de que a qualida-

18   LIPP, Marilda E. Novaes e Tanganelli, M. Sacramento. Stress e Qualidade de Vida em Magistrados da Justiça do Trabalho: Diferenças entre Homens e Mulheres, em http://www.scielo. br/pdf/prc/v15n3/a08v15n3.pdf, acesso em 15/04/2012. 19   in http://www.youtube.com/watch?v=58k6QPCytHE, acesso em 15/04/2012.


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143 de de vida dos respondentes talvez estivesse muito prejudicada em vários aspectos, principalmente nas áreas da saúde e afetiva. Os níveis de qualidade nestas duas áreas estavam significativamente correlacionados com o nível alto de stress detectado. A fonte de stress mais freqüentemente mencionada foi o número excessivo de processos a julgar e a estratégia mais comumente utilizada para lidar com a tensão era a de conversar com o cônjuge ou alguém afetivamente importante. Os sintomas de stress mais encontrados foram sensação de desgaste e cansaço e tensão muscular.20

5. Outras profissões “privilegiadas” Sob outro aspecto, várias categorias profissionais gozam de semelhante direito, tais como os integrantes do Ministério Público, defensores públicos estaduais e procuradores de alguns Estados usufruem desse direito. Entretanto, olham apenas para o Judiciário. Vários Estados instituem o benefício para os defensores públicos. Atente-se: Rio de Janeiro-Art. 107 - Os membros da Defensoria Pública gozarão férias individuais por 60 (sessenta) dias em cada ano(LEI COMPLEMENTAR Nº 6, DE 12 DE MAIO DE 1977)21 Bahia: Art. 164 - Os Defensores Públicos terão direito a férias após cada período de 12 (doze) meses de efetivo exercício na carreira, correspondentes a 60 (sessenta) dias anuais, na seguinte proporção (LEI COMPLEMENTAR Nº 26 DE 28 DE JUNHO DE 2006).22 20   LIPP, Marilda E. Novaes e e Tanganelli, M. Sacramento. Stress e Qualidade de Vida em Magistrados da Justiça do Trabalho: Diferenças entre Homens e Mulheres, em http://www.scielo. br/pdf/prc/v15n3/a08v15n3.pdf, acesso em 15/04/2012 21   In http://www.defensoria.ba.gov.br/portal/arquivos/downloads/lei_organica%20dpe.pdf, acesso em 15/04/2012. 22   In http://www.defensoria.ba.gov.br/portal/arquivos/downloads/lei_organica%20dpe.pdf,


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Revista da Ajufe Mato Grosso do Sul: Art. 107. O membro da Defensoria Pública terá direito a férias anuais remuneradas por sessenta dias, cumulativas ou não, concedidas pelo Defensor Público-Geral do Estado, observado o disposto no inciso XX do art. 27 da Constituição do Estado (LEI COMPLEMENTAR Nº 111, DE 17 DE OUTUBRO DE 2005).23 Mato Grosso: Art. 81 Os membros da Defensoria Pública terão direito às férias anuais, coletivas e individuais, iguais aos membros da Magistratura e do Ministério Público (LEI COMPLEMENTAR N° 146, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2003).24 Tocantins: Art. 26. Os Defensores Públicos têm direito a férias e correspondente adicional em conformidade com as regras estabelecidas para os Magistrados (Lei Complementar Estadual nº41/2004).25 Paraíba: art.55 Os Defensores Públicos terão férias anuais de sessenta dias, individual ou coletivamente, similar aos defensores da União e coincidentes com as da Magistratura Estadual (Lei Complementar Estadual nº 39/2002). 26

Igualmente, vários entes federativos concedem esse estímulo aos Procuradores Estaduais: Maranhão: Art. 58 - Os Procuradores do Estado, após o primeiro ano de serviço, terão direito, anual-

acesso em 15/04/2012. 23   In http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/8367/20_MatoGrossoSul_Leicomp111_05.pdf, acesso em 15/04/2012 24   In http://www.defensoriapublica.mt.gov.br/arquivos/A_6755d16f44679dd0162532cce9 a8dcb2LCE_146_Lei_Estadual_da_Defensoria_Publica.pdf, acesso em 15/04/2012. 25   In http://www.condege.org.br/documentos/leis/tocantins.pdf, acesso em 15/04/2012. 26   In http://www.condege.org.br/documentos/leis/paraiba.pdf, acesso em 15/04/2012.


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145 mente, a férias regulamentares de 60 (sessenta) dias (Lei Complementar N.º 20 de 30 DE JUNHO DE 1994).27 Rio de Janeiro: Art. 66 - Os Procuradores do Estado gozarão férias individuais por 60 (sessenta) dias em cada ano (LEI COMPLEMENTAR Nº 15, DE 25 DE NOVEMBRO DE 1980).28 Paraíba: Art. 56. Os Procuradores do Estado terão direito a férias anuais, por 60 (sessenta) dias, que serão concedidas pelo Procurador Geral do Estado, no prazo de até doze meses após o período aquisitivo (LEI COMPLEMENTAR Nº 86, DE 01 DE DEZEMBRO DE 2008).29 Rio Grande do Norte: Art. 104. Os Procuradores do Estado terão direito a férias anuais, por sessenta dias, conforme escala elaborada pelo Conselho Superior da Procuradoria Geral do Estado, publicada na primeira quinzena de dezembro de cada ano (Lei Complementar nº 240, de 27 de junho de 2002).30

Além desses benefícios, muitas carreiras jurídicas usufruem de benesses instituídas por leis estaduais, tais como licença-prêmio. Os militares, por sua vez, também têm regime diferenciado de férias. DECRETO Nº 71.533 – DE 12 DE DEZEMBRO DE 1972: Art. 1º As férias dos militares tem a duração de: I – 45 (quarenta e cinco) dias, para os oficiais generais; e II – 30 (trinta) dias, para os demais militares.

27   In www.pge.ma.gov.br/pagina.php?Acao=D&IdArq=52&Ext=pdf, acesso em 15/04/2012. 28   In http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/a99e317a9cfec383032568620071f5d2/f4ff8 1f34af7713c032565df007155b1?OpenDocument, acesso em 15/04/2012. 29   https://www.pge.pb.gov.br/portal/legislacao/lei-complementar-no-86-lei-organica-da-procuradoria-geral-do-estado-com-veto.pdf/download 30   In http://www.gabinetecivil.rn.gov.br/acess/pdf/leicom240.pdf, acesso em 15/04/2012.


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Parágrafo único. O militar que servir em localidade especial, assim definida pelo Poder Executivo, tem direito a um adicional correspondente aos dias de viagem até o local de destino e de regresso à sede, até um limite de 15 (quinze) dias, caso vá gozar as férias fora da sede. Até hoje, estranhamente, não se escreveu uma linha sobre as férias dos militares. Igualmente, vemos os parlamentares terem quase 90 dias de recessos e férias. Enquanto os estadunidenses olham o juiz como um membro de Poder, setores da imprensa tentam diminuí-lo. Vejamos o conceito haurido dos norte-americanos: Os juízes federais recebem salários e benefícios que são definidos pelo Congresso. Salários judiciais e benefícios pós-emprego são comparáveis aos recebidos pelos membros do Congresso e outros altos funcionários do governo.31 Isso repercute numa ampla gama de benefícios ao magistrado estadunidense. Senão vejamos: O Poder Judiciário Federal oferece um pacote de remuneração muito competitiva total. Remuneração total inclui não apenas os números que você vê em seu salário, mas também o “valor escondido” fornecido por seus benefícios de funcionários. Esta parte invisível do seu salário aumenta significativamente o valor total da sua remuneração.32 Assim, o juiz norte-americano tem, além de seu salário, seguro de saúde fe-

31   In http://www.uscourts.gov/uscourts/FederalCourts/Publications/English.pdf, acesso em 15/04/2012. 32   In http://www.uscourts.gov/Careers.aspx, acesso em 15/04/2012.


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deral, plano dentário, plano de poupança, seguro de assistência. Isso sem falar na aposentadoria integral, que é garantida pela Constituição ao magistrado. Presidente Franklin Roosevelt resumiu o raciocínio do Congresso em seu bate-papo do Fireside 09 de março de 1937, quando declarou: ”Acreditamos que tanto no interesse público para manter um Judiciário forte que incentivar a aposentadoria dos juízes idosos, oferecendo-lhes uma vida pensão em salário integral.” Plano de Saúde Juízes federais, semelhantes aos membros do Congresso, estão cobertos pelo Empregado Federal de Saúde Benefícios do sistema e Medicare. Os juízes federais também são livres para adquirir saúde privada e seguro a longo prazo.33 Isso não destoa da realidade dos europeus, segundo relatório da União Europeia, a maioria dos países, além das férias e licenças, faculta benefícios adicionais a seus magistrados: Na maioria dos estados ou entidades, os juízes podem ter benefícios adicionais à remuneração de base. Este não é o caso em 16 Estados: Andorra, Armênia, Áustria, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Finlândia, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Mônaco, Holanda, Eslovênia, Espanha e Suécia. Apenas 2 Estados fornecem uma ampla gama de benefícios adicionais: na Romênia, os juízes podem se beneficiar de uma pensão especial, alojamento e outros benefícios financeiros. A Federação Russa é o único Estado que — para além dos benefícios já mencionados para a Romênia — também se aplica uma tributação reduzida para seus juízes. Outros benefícios para os juízes podem ser: abo-

33   US court Retirement Benefits In http://usgovinfo.about.com/od/uscourtsystem/a/scotusretire.htm, acesso em 15/04/2012


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Revista da Ajufe no salarial (Albânia, Malta, Montenegro, San Marino e Turquia), bônus para determinadas responsabilidades importantes (Chipre, Dinamarca, França, Hungria e Turquia), carga de trabalho e condições de trabalho (Albânia, Geórgia e Lituânia), as licenças para funcionamento e despesas de representação (Chipre, República Checa, Hungria, Irlanda, Montenegro), a indenização por dispensa (Estônia e Letônia), específicas de saúde e / ou seguros de vida (Estônia, Hungria, Letônia, Montenegro e Romênia), alojamento (Hungria e Montenegro) e disponibilidade de um carro e motorista (Malta) ou meios de transporte (Romênia). Hungria concede também a assistência mudar de casa, ajuda social e escolaridade, bem como o apoio da família. Andorra e Mônaco não oferecem benefícios adicionais aos procuradores. Malta e San Marino fornecem outros benefícios financeiros. Ao comparar as figuras 11.21 e 11.22, pode-se notar que a maioria dos Estados de responder ou entidades (35) aplicar nenhuma diferença entre os benefícios adicionais concedidos aos juízes ou promotores. No entanto, mais Estados e entidades não oferecem benefícios adicionais ao Ministério Público (24 versus 16 no que diz respeito juízes). Como ilustrado na figura abaixo 11,23, os Estados menores atribuem uma pensão especial (11 contra 18), habitação instalações (9 v. 10) e outros benefícios financeiros (14 contra 20) ao Ministério Público. Isto ilustra que, num certo número de Estados, os procuradores têm um estatuto diferente do que os juízes, são menos protegidos e às vezes não são socialmente reconhecidos da mesma forma, dependendo das funções e da posição de promotores, dentro ou fora do poder judicial. Finalmente, não há benefícios financeiros para os procuradores diferentes além da Federação Russa, onde eles têm meios de transporte


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149 para o cumprimento de suas funções oficiais.34

Percebam que mesmo os países que não concedem benefícios financeiros aos seus juízes, outorgam-lhe benefícios de férias estendidas, tais como Áustria, Irlanda, Itália e Espanha. A isenção não se destina principalmente para beneficiar autoridades judiciais, mas baseou-se em política pública. Como disse Van Devanter Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso de Evans vs Gore (253 dos EUA, 245): O principal objetivo da proibição contra a diminuição não foi para beneficiar juízes, mas, como a cláusula em relação à posse, para atrair os homens bons e competentes para o banco e para promover a independência de ação e julgamento que é essencial para a manutenção das garantias, limitações e princípios que permeiam a Constituição e à administração da justiça, sem respeito à pessoa e com igual preocupação com os pobres e os ricos. Sendo o seu objetivo, é para ser entendida, não como uma concessão privada, mas como uma limitação imposta no interesse público, em outras palavras, não de forma restritiva, mas de acordo com o seu espírito e o princípio sobre o qual ela procede. (...) Os mandamentos constitucionais e proibições seriam então reduzidos a uma forma estéril de palavras, se não houvesse órgão que poderia aplicá-la. O Supremo Tribunal é tal órgão. Seu recorde em derrubando excesso ou usurpação de autoridade por parte do Executivo é sem precedentes. Sua própria independência, pois, e que entre as várias agências judiciais, bem como, é da maior importância, não 34   European judicial systems. Edition 2010 (data 2008): Efficiency and quality of justice European Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ), In https://wcd.coe.int/com.instranet.InstraServlet?command=com.instranet.CmdBlobGet&InstranetImage=1694098&SecMode =1&DocId=1653000&Usage=2, acesso em 15/04/2012


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no interesse de magistrados e juízes, mas por causa do constitucionalismo. Se, como a opinião em Endencia vs David indica, a isenção de tributação ajuda para garantir que a independência continue, o preço vale bem a pena. Além disso, o preço não é de forma exorbitante. 35 Como se vê, a concessão de prerrogativas a juízes não é nenhuma jabuticaba. Não é uma invenção brasileira prestigiar uma carreira de tamanha importância para a democracia e que requer um conhecimento profundo, que se espraia por vários setores que vão desde a sociologia, filosofia e se aprofundando na ciência jurídica. Os juízes federais, por outro lado, devem ter uma licenciatura em Direito; muitos anos de experiência para praticar a lei, no mais alto nível, e muitas vezes a experiência, como um juiz estadual, também. Normalmente, eles estão entre os melhores e mais brilhantes de sua profissão. A classificação ABA pobre pode afundar um candidato, e apesar das fendas causadas por brigas confirmação políticos, todos em ambos os lados do corredor concordam que os candidatos, no mínimo, devem ser advogados pendentes. E não só isso: eles também devem ter o temperamento, inteligência e experiência para impor respeito no banco. (Quem, por exemplo, pagaria Denny Hastert 200.000 dólares por ano para fazer alguma coisa?). Não é de admirar, então, que a maioria dos homens e mulheres que estão selecionados para a bancada federal têm sido, ou poderiam ser, entre os mais bem pagos práticas de advogados privados no país. O tipo de pessoa que é o juiz federal é ideal geralmente também o candidato ideal para se tornar um sócio sênior em uma 35   In http://law.upd.edu.ph/plj/images/files/PLJ%20volume%2028/PLJ%20volume%20 28%20number%205%20-04-%20Enrique%20M.%20Fernando%20-%20Constitutional%20 Law.pdf, acesso em 15/04/2012.


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151 empresa de prestígio, ou o conselheiro geral de uma grande corporação.36

Saliente-se que os que lutam em prol da diminuição das férias forenses são profissionais aquinhoados com prerrogativas legais que não se estendem aos magistrados. Há, dentre outras, as seguintes jornadas de trabalho diferenciadas: médicos, quatro horas; advogados, quatro horas; jornalistas, cinco horas; músicos, cinco horas; aeronautas, vinte horas semanais; engenheiros e arquitetos, seis horas diárias. Nenhuma pessoa sensata levanta a bandeira de eliminar essas jornadas especiais para que se acabem as filas nos postos de saúde, o acesso à Justiça se amplie, aumente o acesso à informação e elimine o caos aéreo. Tais jornadas de trabalho diferenciadas se justificam, tal como as férias ampliadas, na necessidade de se prevenir mazelas físicas e mentais e almejando uma melhor qualidade de prestação de serviço. Com isso, lembramos argumento que remonta a Júlio César, que é o tu quoque. As últimas palavras de César quando se viu apunhalado por seu filho adotivo Brutus marcaram a surpresa. Critica-se o acusador porque ele não tem a altivez necessária para se valer do aludido argumento. Tal argumento está também no Evangelho37. Muitos setores criticam as férias judiciais porque o trabalhador comum não tem esse direito. Entretanto, os trabalhadores não têm a jornada de trabalho do médico de quatro horas, não têm a hora extra do advogado de 100%. O jornalista, o advogado, o médico, o músico, privilegiados, não têm como criticar o magistrado por férias quando eles têm também suas regalias, o que, em verdade, são peculiaridades da profissão, tal como as férias judiciais. Além das jornadas especiais de trabalho, há profissões que usufruem de

36   In DEAN, John W..Mal pagos e sobrecarregados, http://writ.news.findlaw.com/ dean/20061103.html, acesso em 15/04/2012. 37   Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia. Assim, também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.” Mt 23:27-28


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outros benefícios especiais: policiais se aposentam cinco anos antes, com licença-prêmio a cada cinco anos. Buscou-se assegurar um descanso prematuro para aqueles que se dedicam à proteção da vida e do patrimônio na sociedade. Agora, se nós não acabássemos esse “privilégio” não teríamos mais segurança? Igualmente, professores dispõem de aposentadoria especial, antecipando a aposentadoria cinco anos antes. A finalidade da norma ao conceder esse benefício, e não privilégio, foi prestigiar uma profissão marcada pela estafa mental, defendendo o profissional do desgaste físico e no nítido objetivo de melhorar o ensino. Entretanto, terminando com o regime dos professores não teríamos maior acesso à educação? Com isso, não se defende a extinção dessas garantias profissionais, mas almeja-se demonstrar que a solução da lentidão e da morosidade processuais vai muito além do que a simplória medida de redução das férias judiciárias. 6. As férias judiciais e o princípio da igualdade “As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.38“ O regime de férias dos magistrados é uma consequência inexorável da quantidade de deveres e restrições impostas, pelo grau de estresse do cargo. Acabando com as férias dúplices, o juiz trabalhará com outra coisa senão magistério? Deixará de morar na comarca, valendo-se do trabalho telepresencial? Terá jornada de trabalho do advogado com hora extra deste? Receberá em dobro por plantão realizado? Receberá adicional de ajuda de custo por morar fora de sua residência? Candidatar-se-á a cargos eletivos 38   MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Malheiros Editores, 3a. Edição, 5a Tiragem, 1998, pg. 21.


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e dedicar-se à atividade política? Receberá participação nas custas processuais tais como os titulares de serventias extrajudiciais? Adquirirá bens em leilões judiciais? Exercerá cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe, e sem remuneração? Não custa lembrar que a aposentadoria integral foi tolhida para os juízes brasileiros, os quais correm o sério risco de figurarem no pior plano de carreira do mundo. Desde a Emenda à Constituição 45/2003, exige-se do candidato ao cargo de magistrado o mínimo de três anos de prática jurídica. Tal comprovação envolve necessariamente requisitos alternativos, como aprovação em um concurso no qual há desempenho de atividade jurídica ou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Recentemente, houve melhora no índice de aprovação do exame da Ordem dos Advogados do Brasil, chegando ao percentual de 24% (vinte e quatro por cento) dos candidatos. Um em cada quatro candidatos logrou sucesso. Inegavelmente, é um avanço ante os índices obtidos em anos passados, os quais beiravam 8% (oito por cento). Portanto, um em cada quatro formados, nas 1.100 instituições de ensino jurídico no Brasil, dados esses trazidos pela reportagem, poderá participar de certames para magistrados no Brasil. O Tribunal Regional Federal da 1 ª Região, a cada concurso, procura detalhar, através de números, a realidade do certame por ele promovido. No concurso realizado em 200739, aprovaram-se 38 (trinta e oito) dos 3212 inscritos. Apenas 1,18% dos participantes obtiveram sucesso. Foram três Advogados da União, dois Auditores, dois Delegados da Polícia Federal, três Juízes de Direito, três procuradores, treze Procuradores federais, um Militar, um Procurador da República e um Promotor de Justiça e dois advogados. A estatística revela que a magistratura não é mais interessante para a advocacia privada, pois a quantidade de advogados inscritos, 1.261, representa quase um terço do número de candidatos do certame, 3.212. Diversa39   Estatística do 12.º Concurso para provimento de cargos de Juiz Federal substituto, In http://www.trf1.jus.br/Consulta/Concurso/Jfs/Trf/012/Arquivos/CJRRDES01%20 Estat%C3%ADstica%20XII%20Concurso.PDF ),acesso em 15/04/2012.


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mente, o 26.º concurso para Procurador da República teve 9,5mil inscritos40. Na área estadual, há a mesma defasagem. No concurso para magistrados no Rio de Janeiro, inscreveram-se 2.33741 candidatos , já no certame para Promotor de Justiça do Rio de Janeiro42, foram 4.853 participantes, por outro lado o concurso para Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro43 teve 6.997 inscritos. Os números, portanto, informam que a maioria dos magistrados veio de outras carreiras de funcionários públicos, dentre elas promotores, procuradores, servidores e delegados. Esses servidores que migraram de cargo, às vezes mais bem remunerados e com os mesmos benefícios de férias dúplices, não serão injustiçados? Não houve a quebra da confiança por parte do Estado, que lhes tirou um direito se tivessem ficado no seu cargo? Sob outro prisma, já se foi o tempo em que os subsídios da magistratura eram os maiores do funcionalismo. Atualmente, consultores legislativos, membros do Ministério Público, titulares de cartório, defensores públicos estaduais, procuradores estaduais e municipais já estão em melhor situação remuneratória. Alguns deles desfrutam, além das férias dúplices, de licença-prêmio. Diante do quadro salarial da carreira, com a corrosão do subsídio, que hoje está em 33%, as férias são, ainda, um dos poucos estímulos para atividade. É o único benefício que a carreira tem para atrair bons profissionais que enveredariam para os grandes escritórios de advocacia. Os maiores críticos à magistratura dizem que mesmo com o fim do regime de férias dos juízes esses ficarão porque são vocacionados. É claro que a magistratura é vocação, é entrega à prática da Justiça, mas não devemos olvidar que ela é composta por seres humanos que precisam alimentar seus filhos e ter uma vida digna e sadia. Ninguém dúvida de que o sacerdócio é vocação, entretanto, milhares de municípios no Brasil aguardam seus pa-

40   In http://jcconcursos.uol.com.br/Concursos/Noticiario/concurso-procurador-mpf-inscritos-34984, acesso em 15/04/2012. 41   In http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=5f38b2fe-aabc-42d792d9-7a6231cdfd2e&groupId=10136, acesso em 15/04/2012. 42   In http://www.mp.rj.gov.br/portal/page/portal/Internet/Concursos/Promotor/XXXI_concurso/Estatisticas.pdf, acesso em 15/04/2012. 43   In http://aurora.proderj.rj.gov.br/portaldpge/imagem-dpge/public/concurso/20100524_162442_CANDIDATOS_ALFABETICA_INTERNET.pdf, acesso em 15/04/2012.


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dres residentes. Igualmente, milhares de municípios aguardam médicos nas regiões mais longínquas do país, mesmo com as prefeituras oferecendo uma remuneração estimulante e vários benefícios, tal como moradia, e custeando as despesas para a manutenção da casa. 7. Conclusão Diante desse cenário, percebe-se que o regime de férias dos magistrados, muito mais que um privilégio, é uma retribuição à complexidade do cargo, ao seu nível de estresse e um incentivo para quem deseja aceitar os inerentes ao mister. Terminando o regime de férias dos juízes, e mantendo todas as suas restrições, caminharemos para uma crescente dificuldade na aprovação dos concursos, aposentadoria precoce de magistrados e evasão de membros da carreira, principalmente os mais jovens, que preferirão cargos mais bem remunerados e com mais benefícios. A magistratura, com isso, perderá o caráter de carreira jurídica de destaque e tornar-se-á, cada vez mais, uma atividade de passagem. Portanto, o benefício das férias dúplices, muito além de um privilégio ou uma invenção brasileira, é uma legítima retribuição a um cargo com elevada carga de estresse e uma imensa gama de deveres, um reconhecimento da importância de uma atividade para o Estado democrático de Direito, e uma medida de Justiça.



Julgar é calcular? Reflexões sobre a inadequação da razão calculadora como critério preponderante das decisões judiciais


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Bruno Augusto Santos Oliveira Mestre em Direito Constitucional Comparado pela Samford University – USA; Mestrando em Filosofia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE; Juiz Federal

Resumo: buscam-se respostas à pergunta universal “como julgar bem?” a partir de reflexões focadas não em critérios extrínsecos de julgamento, mas na chamada “vida mental solitária” do juiz. A partir de um diagnóstico acerca da realidade judiciária, em que não vige uma ética da autenticidade tal qual identificada por TAYLOR nas sociedades ocidentais contemporâneas — em que cada um seria livre para adotar seus próprios critérios de julgamento —, mas uma falsa neutralidade que oculta um conflito entre os discursos tecnocientífico e humanístico, afirma-se que ocorre uma atrofia progressiva da visão humanística do processo, com perda na qualidade de julgamento. Com base na teleologia da justiça, na necessidade de adequação método-objeto e na dúplice estrutura intuitiva-discursiva da razão humana, conclui-se pela necessidade das seguintes posturas por parte do juiz: utilização de sua razão em sua plenitude funcional; assunção de sua própria humanidade; busca da sabedoria em sentido husserliano. Palavras-chave: Julgamento. Critérios Intrínsecos. Ética da Autenticidade. Discurso Tecnocientífico. Discurso Humanístico. Intuição Intelectual. Razão Discursiva. Racionalidade Teleológica. Racionalidade Instrumental. Método. Humanidade. Sabedoria.

1 Introdução Em pleno século XXI, a atemporal questão da justiça continua a soar nos ouvidos das pessoas: afinal, como julgar bem? Neste artigo, pretendo apresentar algumas reflexões sobre como se situam hoje no ambiente judiciário os critérios da decisão judicial, e quais as consequências dessa realidade sobre a busca pela justiça caso a caso. Quan-


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to a esse aspecto, ressalto que o foco não serão os critérios normativos, ou extrínsecos (aqueles colocados pelo legislador para balizar e orientar o julgamento pelo magistrado). Serão focados os critérios intrínsecos, os ecos éticos da sociedade nas posturas e caminhos adotados internamente pelo julgador, na chamada “vida mental solitária”1, para alcançar a decisão do caso concreto. Em suma, alguns fundamentos dos processos intelectuais e lógicos através dos quais o indivíduo-juiz chega a uma decisão. No primeiro tópico, apresentarei o mundo judiciário como um tabuleiro de discursos no qual as duas figuras principais são o discurso tecnocientífico e o discurso humanístico. Num segundo momento, após apresentar a noção de “Ética de Autenticidade” de Taylor2, segundo o qual viveríamos hoje numa sociedade em que cada um tem plena liberdade de decidir como bem-viver, apresentarei uma reflexão sobre a neutralidade do ambiente judicial quanto aos critérios de julgamento adotados por cada indivíduo-juiz, ou seja, a liberdade de adotar o melhor processo interior possível de acordo com sua percepção – liberdade no “bem-julgar”. Examinando mais de perto a questão, veremos que essa “Ética da Autenticidade” identificada por Taylor no meio social comum não vige no meio jurídico. E isso porque se trata de um mundo permeado por discursos racionais, com protagonismo de dois discursos que acabam por colidir: o tecnocientífico e o humanístico. Trata-se, portanto, de uma falsa neutralidade. Essa aparência de neutralidade acaba por ter efeitos negativos na busca pela justiça, pois os atores desse palco judicial não são chamados a refletir sobre seus critérios de julgamento. Esses efeitos da falta de reflexão são mais gravosos para o juiz de critério humanístico, já que o juiz que se vale predominantemente de critério tecnocientífico tem à sua disposição o discurso de seu tempo, que é o discurso da ciência, da “razão calculadora”. O resultado disso é o enfraquecimento da aproximação humanística do caso sob apreciação judicial e, em última instância, do Direito como um todo

1   Por alguns também denominada “vida solitária da alma”. 2   Importante esclarecer que não se trata de uma proposta ética de Taylor, mas de uma realidade comportamental por ele identificada como vigente no Ocidente


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(posto que seu referencial e base é o ser humano). Mas esse enfraquecimento da aproximação humanística seria bom ou ruim? A resposta a essa pergunta será buscada numa reflexão sobre o instrumento utilizado pelo juiz para julgar: a inteligência. Em primeiro lugar, com foco na racionalidade instrumental e na racionalidade teleológica, buscando saber qual seria a mais adequada para a apreciação de relações jurídicas. Numa outra aproximação, examinaremos a questão a partir de uma retomada histórica efetuada por MacDowell, que reflete sobre a capacidade intelectual do homem e revela como, a partir de Descartes e da “geometrização do conhecimento”, uma razão que sempre fora considerada em seus aspectos intuitivo e discursivo passa a sofrer um processo de estreitamento, até se confundir estritamente com a racionalidade discursiva e calculadora, ao extremo, científica. Discorreremos sobre como o Direito assimilou esse movimento de geometrização do conhecimento e internalizou, em busca de estabilidade e segurança, nuances de inspiração cartesiana. Explicitados os critérios instrumental e teleológico e a estrutura da razão humana como intuitiva e discursiva, afirmaremos que não é possível alcançar uma decisão justa perdendo o foco teleológico da justiça e, principalmente, abrindo mão de uma dimensão estrutural da estrutura humana, que é a chamada intuição intelectual. Por fim, afirmaremos a necessidade de que o magistrado julgue utilizando sua capacidade intelectiva de forma plena —i.e. intuição intelectual e razão lógico-discursiva —, orientado pela busca de uma postura fundada em alteridade, humanização e sabedoria em sentido husserliano. Importante ressaltar, enfim, que não se questiona aqui a validade da razão técnica, mas apenas sua hipertrofia. Além do mais, cânones consagrados, como a necessidade de fundamentação das decisões judiciais e a conformidade à ordem normativa, não são postos em questão. O problema real dos abusos do poder de decidir também não escapa à visada global; contudo, por situar-se mais no âmbito das consequências possíveis de adoção de tal ou qual critério de julgamento (assim como o outro extremo possível, que é a passividade judicial completa do juiz “boca da lei”), não será abordado na presente reflexão, que em seu exíguo espaço foca no âmbito das causas e


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dos critérios em si. 2. Mundo judiciário: tabuleiro de discursos Sentenças, decisões, julgamentos colegiados, artigos jurídicos, palestras, debates, congressos, conversas em intervalos de sessões, boletins de jurisprudência: tais são as peças do tabuleiro em que se joga a busca pela justiça. Nesse tabuleiro formado pelo processo e seu entorno vivo, o ato de julgar expresso na decisão judicial é exposto à luz da reflexão intersubjetiva, seus fundamentos são revelados e analisados, posições são confrontadas, julgadores mudam de opinião, doutrina e jurisprudência avançam ou recuam, influindo na formação da atual e da próxima geração de julgadores. O julgamento, esse ato de encontrar e dar sentido a uma situação problemática, é a cabeça de ponte de um jogo dinâmico e circular de interpretações e visões do mundo de legisladores, técnicos jurídicos, doutrinadores, professores e juízes. Portanto, se estamos de acordo com a afirmação tradicional de que cada juiz é uma ilha, podemos também afirmar que, flutuando nesse oceano de fatores entrelaçados, o julgador afeta e se deixa afetar pelas marés, correntes e ventos do tabuleiro judiciário no caminho interno de sua inteligência rumo à decisão judicial. Dessa forma, a decisão judicial, alcançada e assumida em seu momento definidor na chamada “vida solitária da alma” do indivíduo-juiz, recebe também influência formadora no horizonte de existência externa do julgador. Por essa razão, vale a pena refletir sobre essa dinâmica e seus desdobramentos na postura e na orientação dos julgadores em relação a seus pares e ao “tabuleiro” judiciário. No caso deste artigo, a reflexão recairá mais especificamente sobre questões que emergem da coexistência dos dois critérios de julgamento mais proeminentes na atualidade dos fóruns: o tecnocientífico e o humanístico. Para esse fim, é preciso inicialmente esboçar um quadro do ambiente judicial e das condições de formação de convicção nele existentes. 3. A aparente neutralidade do lebenswelt (mundo da vida) jurídico Pesquisando e refletindo sobre o modo de vida de sociedades ocidentais


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a partir da década de 1960, Taylor percebeu que o já notório fenômeno do relativismo desaguou numa forma de ética hoje disseminada: ninguém tem o direito de questionar os valores de outras pessoas. Em suas palavras, “Isso é um assunto apenas delas, sua opção de vida, e deve ser respeitada.”3. Segundo o filósofo canadense, essa ética é reflexo do individualismo contemporâneo, que leva as pessoas a se centrarem em si mesmas, fechando-se a questões mais amplas, sejam elas religiosas, políticas ou históricas. Essa postura ética gerada pelo relativismo é formulada por Taylor nos seguintes termos: “Cada um tem o direito de desenvolver sua própria forma de vida, com base em sua própria percepção do que tem realmente importância ou valor. O que se demanda das pessoas é que sejam autênticas consigo mesmas e que busquem sua própria autorrealização. No que essa consiste, cada um precisa, em última instância, determinar por si mesmo — ou mesma. Ninguém pode ou deveria tentar ditar seu conteúdo”4. A esse fenômeno ético Taylor dá o nome de “Ideal de Autenticidade”. Vivemos, portanto, numa “cultura da autenticidade”, e Ao adotar esse ideal, pessoas na cultura da autenticidade dão suporte a um certo tipo de liberalismo, esposado também por muitos outros. Trata-se do liberalismo da neutralidade. Um de seus principais dogmas é o de que uma sociedade liberal precisa ser neutra em questões sobre o que constitui o bem-viver5 Retornando ao mundo jurídico, à primeira vista, seria razoável afirmar que nele vige essa ética da autenticidade com a mesma força e difusão que ocorrem na sociedade em geral; afinal, ele faz parte dessa sociedade contemporânea imersa no liberalismo da neutralidade. Portanto, tratar-se-ia de um universo neutro em relação ao que constitui o bem-viver do juiz enquanto

3   TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p.14, tradução nossa. 4   Id. p. 14. 5   Id. p. 17.


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juiz, i.e., o “bem-julgar”: cada julgador6 teria direito a construir e seguir seu próprio critério consciente de decisão, sem que outros integrantes do tabuleiro pudessem ou devessem ditar o conteúdo desse critério. Não existiria, portanto, situação problemática. Essa neutralidade do tabuleiro judicial, contudo, é apenas aparente, como veremos a seguir. 4. Impossível neutralidade num mundo que vive de discursos Pelo que foi exposto acerca da neutralidade vigente na sociedade, um olhar superficial sobre o tabuleiro jurídico poderia levar à afirmação da vigência, também ali, de uma ética da autenticidade. Nesse ambiente, seria permitido a cada julgador construir interiormente seus critérios de ação decisória de forma autônoma e livre de questionamentos, da mesma maneira que os indivíduos numa sociedade marcada pelo ideal de autenticidade têm espaço para fundamentar e orientar seu modo de vida. À neutralidade do bem-viver corresponderia uma neutralidade do bem-julgar.7 Contudo, há um fato que distingue profundamente a realidade do indivíduo julgador da realidade do indivíduo em sua vida social comum: o tabuleiro jurídico é um mundo movido essencialmente pelos discursos. E esse fato é crucial. Num mundo de discursos públicos e necessariamente lançados à reflexão intersubjetiva8, a neutralidade que encontra espaço na vida ética individual não é possível, pois o que se coloca em primeiro plano nesse campo dialógico não são mais apenas os modos de vida individuais dos jogadores, mas os discursos que sustentam seus critérios de julgamento. Ora, tratando-se de um ambiente em que se relacionam discursos racionais, a situação torna-se problemática quando se constata que um dos dis-

6   Evidentemente dentro dos limites constitucionais. 7   Importante ressaltar que os parâmetros constitucionais e legais, cujo seguimento não se questiona, pertencem ao âmbito externo; aqui se trata da construção autônoma de um critério de julgamento no âmbito da interioridade – ou, em termos filosóficos, da “vida solitária da alma” – do indivíduo-juiz. 8   V.g., o recurso, julgamentos colegiados, publicação, revisão em artigos científicos.


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cursos presentes no tabuleiro é o tecnocientífico, impulsionado que é pela chamada racionalidade técnica, que é essencialmente dominadora e não vocacionada à convivência pacífica com outras “racionalidades”. Podemos delinear uma primeira noção do que seja o discurso tecnocientífico apresentando-o como herdeiro direto do ideal de razão formulado por Descartes, que postulou a aplicação universal de um modelo de inspiração geométrica e matemática como o mais propriamente racional. Ocorre que, segundo Ladrière, Hoje em dia, a ciência não é mais simplesmente um método de conhecimento nem mesmo somente um corpo de saberes, é um fenômeno sociocultural de imensa amplitude, que domina todo o destino das sociedades modernas e que começa a colocar problemas absolutamente cruciais, pois, desde já, alguns limites parecem ter sido atingidos.9 Para o filósofo francês, a ciência, movida por uma “vontade obstinada de tudo conquistar”10, marca profundamente a vida social contemporânea, e, através da tecnologia, influencia diretamente os modos de vida e, indiretamente, os sistemas de valores11. Ora, o mundo jurídico é essencialmente axiológico, e não escapa à força da ciência e de sua formulação discursiva, que é o discurso tecnocientífico. Uma reflexão mais aprofundada sobre as características desse discurso será feita adiante. Por ora basta registrar, enfim, que a razão tecnocientífica não traz em sua natureza a vocação para conviver pacificamente com outras racionalidades. Por tudo isso, afirmamos que a ética de autenticidade exis-

9   LADRIÈRE, Jean. Les enjeux da la rationalité – Le défi de la science et de la technologie aux cultures. Paris: Aubier-Mon., o recurso, julgamentos colegiados, publicação, revisão em artigos científicos. 9 Id. p.15. 10   LADRIÈRE, Jean. Les enjeux da la rationalité – Le défi de la science et de la technologie aux cultures. Paris: Aubier-Montaigne/UNESCO, 1977, p.185, tradução nossa. 11   Id. p. 15.


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tente no mundo da vida comum não vigora no Lebenswelt judiciário. Onde se poderia num primeiro momento vislumbrar uma situação de neutralidade marcada pelo hermetismo do ideal de autenticidade de Taylor, o que existe realmente é uma área de atrito entre discursos radicalmente opostos: o tecnocientífico e o humanístico. 5. Consequências da não percepção da falsa neutralidade discursiva no ambiente judiciário Existe, portanto, no mundo dos julgadores, uma colisão entre discursos que passa em grande parte despercebida. Essa desatenção a uma realidade tão fundamental terá graves consequências sobre o tabuleiro judiciário: vivendo sob a frágil aparência de neutralidade discursiva, em que cada juiz teria direito a seu próprio critério interior sem que outros quisessem — ou pudessem — interferir ou influenciar em suas opções individuais, os julgadores sintonizados com cada um dos critérios de julgamento não são chamados a desdobrar discursivamente seu processo de formação de convicção e expor no tabuleiro judiciário a coerência racional interna de seu modo de julgar. O consectário imediato dessa desatenção é o prejuízo que evidentemente decorre da falta de reflexão intersubjetiva dos juízes que adotam prevalentemente tanto o critério tecnocientífico quanto o critério humanístico de julgamento. Entretanto, é possível afirmar que os efeitos negativos dessa falsa neutralidade pesam mais sobre o julgador que adota o critério humanístico como eixo central de sua reflexão reiterada. Isso porque, se nenhum dos dois “lados” é chamado à autorreflexão e ao desdobramento discursivo sobre seu critério, o julgador tecnocientífico ao menos já tem à sua disposição um discurso pronto: afinal, apoia-se nos ombros da racionalidade dominante, que é a tecnocientífica com desdobramento instrumental. Por outro lado, o juiz que adota prevalentemente o critério humanístico, obnubilado pela fumaça da falsa neutralidade, não organiza discursivamente a defesa12 de seu método. Tratando-se de discursos ativamente opostos, o resultado desse processo é que nesse tabuleiro jurídico um dos contendores – o juiz de critério huma12   Estabelecida a premissa de que existe um conflito discursivo, a adoção do termo “defesa” discursiva torna-se apropriada.


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nístico – entra no jogo em franca desvantagem discursiva. Num sistema em que se busca alcançar uma conclusão racional equilibrada com base na força do melhor argumento, trata-se de uma situação no mínimo inadequada. Na prática, o que ocorre é que o julgador de critério prevalentemente tecnocientífico, empunhando o discurso recebido pronto da cultura pós-moderna, é alçado ao status de juiz técnico – e, no mundo pós-moderno, tudo o que é técnico é bom. Quanto ao juiz de critério humanístico, sem escudo discursivo pronto e acreditando na desnecessidade de elaborá-lo em razão de uma neutralidade proclamada, mas irreal, é alocado sob a tarja de juiz sem critério. Juiz que não tem critério não é técnico; se não é técnico, não é bom. 6. Circularidade do ethos e propagação das distorções tecnicistas Detenho-me nesse ponto para me valer das lições de LIMA VAZ e trazer à reflexão a dinâmica que denomina de “circularidade do ethos”13, essencial para que se alcance uma noção da gravidade social do desequilíbrio em questão. Segundo o filósofo, o termo grego ethike procede do substantivo ethos, que receberá duas grafias distintas para representar faces da mesma realidade: Ethos (com [a letra] eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social, ao passo que ethos (com [a letra] épsilon) refere-se à constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume. É, pois, a realidade histórico-social dos costumes e sua presença no comportamento dos indivíduos que é designada pelas duas grafias do termo ethos.14 (grifamos) O ethos, portanto, é o mundo da cultura, a casa simbólica do ser humano, “espaço habitável do mundo onde a comunidade humana pode lançar raízes 13   VAZ, Henrique C. de Lima Vaz. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1999, p. 42-43 14   Id. p. 13.


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e crescer”, e também sua presença no comportamento individual.15 Numa síntese do que constitui a “circularidade do ethos”, na concepção do brilhante filósofo, o ethos humano se constitui e renova numa eterna circularidade. Nesse círculo, o indivíduo já nasce e cresce sob determinados valores que recebe prontos do ambiente social; esses valores ele aplicará no seu agir do dia a dia na sociedade. Essa , por sua vez, também será influenciada de volta pelas práticas desse indivíduo; assimilados pela sociedade, esses hábitos do indivíduo em certa medida retornam ao mundo da cultura, passam a integrar o horizonte ético global, sendo passados então a um novo indivíduo, e assim por diante. Examine-se, então, o problema central deste artigo tendo em vista a dinâmica da circularidade do ethos: partindo das decisões dos juízes como epicentro do mundo judicial, a tendência é que a distorção tecnicista apresentada no ponto de irradiação, que é o confronto entre os discursos, se propague para os círculos mais exteriores do sistema que gira em torno dessas decisões, como o âmbito doutrinário e o escolar. Nesses círculos mais exteriores será formado um estudante de Direito com ênfase tecnocientífica, que ingressará como juiz no epicentro do sistema, e essa circularidade se perpetuará, gerando uma atrofia difusa da interpretação humanística do conflito judicializado e a configuração de um ethos judiciário desumanizado. Adotada essa postura, o resultado será uma Justiça menos humana e, portanto, menos justa. E por que afirmamos que tal Justiça será menos humana e menos justa? Em primeiro lugar, porque a racionalidade tecnocientífica, que é predominantemente instrumental e altamente suscetível a critérios econômicos e estatísticos, tende a perder o foco teleológico da Justiça estabelecido pelas constituições democráticas: o ser humano. Em segundo lugar, porque essa prevalência da razão tecnocientífica desconsidera a própria estrutura da razão humana, que é dúplice: intuitiva e discursiva. Deparamo-nos, portanto, com uma reflexão sobre critérios de racionalidade. Dessa forma, antes de elaborar mais os fundamentos às conclusões já alcançadas, é importante pensar de forma mais cuidadosa a razão humana. Afinal, é ela a ferramenta que possibilita ao indivíduo-juiz julgar, adotar um 15   Id. p. 39-40.


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168 critério e mesmo justificar esse critério.

7. Racionalidade instrumental objetivante versus racionalidade teleológica A primeira elaboração da questão da razão focará em duas “racionalidades”, ou processos racionais, associados aos critérios tecnocientífico e humanístico, respectivamente: a racionalidade instrumental e a racionalidade teleológica. Podemos afirmar que a racionalidade instrumental é um dos mais influentes desdobramentos da racionalidade tecnocientífica. Ela consiste, segundo Taylor, “no tipo de racionalidade obtida quando calculamos a aplicação mais econômica de meios para alcançar um determinado fim. Eficiência máxima, melhor razão custo-resultado, é sua medida de sucesso”.16 Segundo OLIVEIRA, Na era das metas estatísticas, o outro lado da moeda do sucesso numérico é a objetivação dos processos. Cada processo passa a ser apenas mais um número – assim como os pedidos ali encartados. Atualmente, o próprio juiz passa a ser fiscalizado como um agente de eficiência operacional atrelado a metas insuperáveis (geralmente quantitativas), e mesmo suas questões pessoais (férias, licenças para estudo, etc.) são decididas por técnicos de visão estritamente financeira ou operacional, sem qualquer preparo acerca do caráter teleológico da Justiça. E, logicamente, as pessoas cujos pedidos são transformados em meros dados também são transformadas em números, parâmetros objetivos à mercê das secretarias de orçamento ou de estatística, despreparadas para questões éticas e desprovidas do telos moral.17

16   TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p.5, tradução nossa. 17   OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. A erosão do juiz como símbolo nas sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, Lisboa, ano 1 (2012), nº 11, p. 6859.


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A consequência disso, para Taylor, é a seguinte: “Uma vez que as criaturas que nos cercam tenham perdido o significado que derivava de seu lugar na cadeia do ser, abre-se o caminho para que sejam tratadas como matérias-primas ou instrumentos de nossos projetos”.18 Já a racionalidade teleológica se define exatamente por pautar sua caminhada tendo em vista um alvo fixo, ou telos: no caso da Justiça, esse alvo fixo é o ser humano. Quem estabelece esse telos são as próprias ordens constitucionais. No caso da Constituição da República Federativa do Brasil, o objetivo último da atividade judicial (posto que inserido no contexto maior dos objetivos últimos da própria República) é desenhado com detalhes no preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social...19 Poderíamos desdobrar o trecho acima revelando o discurso implícito autoevidente, da seguinte forma (redundante, mas relevante): Nós, seres humanos representantes do povo brasileiro formado também por seres humanos, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais dos seres humanos,

18   TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge:Harvard University Press, 1991. p.5, tradução nossa. 19   BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008.


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a liberdade humana, a segurança humana, o bem-estar humano, o desenvolvimento humano, a igualdade humana e a justiça humana como valores supremos de uma sociedade humana fraterna, pluralista e sem preconceitos, atributos humanos fundada na harmonia social entre humanos... Portanto, parece evidente que, em se tratando da atividade de julgamento de seres e realidades humanas, a utilização preponderante de critérios tecnocientíficos será insuficiente para avaliar em toda sua densidade o fenômeno sob investigação, que é o conflito jurídico, à luz de sua referência fundamental, que é o ser humano. Entretanto, existe uma razão mais profunda para que o critério humanístico não padeça sob o jugo do critério tecnocientífico. Essa razão encontra fundamento na própria constituição estrutural da razão humana. 8. A estrutura da razão humana É comum entre os atores do tabuleiro judiciário afirmar que o juiz, já na primeira leitura das razões apresentadas num caso para julgamento, “primeiro decide, e depois apenas recolhe na lei e na jurisprudência as razões para fundamentar a impressão inicial”. Já é também disseminada a reflexão etimológica acerca do termo sentença, com raízes nos termos latinos sensus (faculdade ou sentimento, percepção, sensação, sentido; emoção) e sententia, (opinião, sentimento).20 Em nossa opinião, tais noções, à primeira vista superficiais, encerram em si a profunda razoabilidade que sustenta todo senso comum. Na verdade, carregam a noção básica de que a inteligência humana é capaz de compreensão e exposição de sentido, e que se trata de duas funções distintas. É precisamente sobre essa noção que MACDOWELL (2013) se volta para afirmar que a razão humana possui duas funções distintas, mas intimamente

20   MORWOOD, James (editor). Oxford Latin Desk Dictionary. New York: Oxford University Press, 2005, tradução nossa.


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conectadas, como as duas pás de uma mesma hélice: intuição e discurso. 21 Explicitando a noção filosófica de “intuição”, MACDOWELL (2013) escreve que Apesar dos mal-entendidos que pode gerar o uso do termo, pelos múltiplos significados que lhe são atribuídos por diferentes pensadores, empregamos ‘intuição’ para designar o compreender (entender), i.e., no significado de qualquer apreensão imediata do sentido.22 A compreensão implícita de qualquer coisa dá-se necessariamente no horizonte global do mundo. O mundo de cada um e tudo aquilo que o constitui como articulação dos significados intramundanos está sempre compreendido, mas de maneira implícita. No nível da compreensão intuitiva a articulação do sentido é percebida implicitamente na própria experiência existencial... Mesmo que não consigamos exprimi-lo corretamente, compreendemos também implicitamente o significado das dimensões constitutivas da própria existência humana. Sabemos p.ex. por uma experiência natural e espontânea o que é compreender, viver, dentro/fora, etc., independentemente do aprendizado de 21   Antes de iniciar a reflexão acerca da estrutura da razão humana - esse instrumento que nos dá a capacidade de proferir os julgamentos -, é preciso fazer um esclarecimento conceitual preliminar. Os versados no vocabulário jurídico já trazem dos bancos das faculdades o respeito pelos termos técnicos estabelecidos e pela importância de sua plena compreensão. Dificilmente, se encontrará um jurista que não tenha estremecido ao presenciar filósofos questionarem o crime de “assassinato” ou jornalistas discutindo a última decisão de um tal “Supremo Tribunal de Justiça” brasileiro. Entretanto, não será difícil encontrar dentre os mesmos aqueles que, diante de termos técnicos de outras disciplinas, incorrem no mesmo e compreensível engano de tomar um termo técnico em sua acepção vulgar. É o caso de um termo filosófico relevantíssimo para nosso exame: intuição, ou “compreensão intuitiva”. Apesar de vulgarmente entendido com uma acepção fantástica ou mística, o termo “intuição” ou “compreensão intuitiva” carrega uma carga semântica filosófica histórica, já tendo sido chamada de compreensão de sentido global, pré-compreensão, ou intuição intelectual. É dessa compreensão intuitiva e seu lugar na própria estrutura da razão humana que é preciso falar agora, com base na lição de MACDOWELL (2013). 22   MAC DOWELL, João A.: Investigação Filosófica sobre Deus – Curso de Filosofia da Religião (apontamentos). Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2013, p. 42, nota 111.


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Revista da Ajufe uma língua, pois, sem tal experiência, não poderíamos distinguir, como fazemos, entre compreender e não-compreender, etc., nem mesmo aprender o significado de tais termos.23

A intuição intelectual, portanto, seria essa capacidade inerente ao ser humano que lhe possibilita compreender globalmente a realidade e os fatos que chegam a seu conhecimento, e de dar-lhes um sentido global, sem necessidade de “processar” e dissecar numa lógica esse conhecimento apreendido. Segundo o filósofo, essa dupla estrutura da razão humana foi percebida pela tradição filosófica ocidental desde seu início: Vai nesta direção a distinção noesis/dianoia, estabelecida por Platão no contexto da dialética do conhecimento das ideias, reformulada por Aristóteles como nous/logos, e retomada e aprofundada por Tomás de Aquino com os termos intellectus/ratio. Pascal ainda a reconhece na célebre contraposição coeur/raison.24 Já em Tomás de Aquino, a distinção/relação entre intelecto e razão se faria da seguinte maneira: a apreensão global do intelecto estaria no início do processo discursivo; a razão seria uma reflexão fundada em algo previamente compreendido. No mesmo sentido, refletindo sobre a famosa sentença de PASCAL (“o coração tem razões que a própria razão desconhece”), MACDOWELL afirma que “coração” corresponde aproximadamente à razão intuitiva, ao passo que a “razão” corresponde à razão discursiva. “Nesse contexto os termos ‘sentir’ e ‘sentimento’ não designam um mero estado afetivo, mas um tipo de conhecimento...”. 25

23   Id. p. 44. 24   MAC DOWELL, João A.: Investigação Filosófica sobre Deus – Curso de Filosofia da Religião (apontamentos). Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2013, p. 41. 25   Id. p. 117.


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Fato histórico registrado por MACDOWELL (2013) é que, a partir de Descartes, esse elemento intuitivo da razão humana foi cada vez mais perdendo importância, até que se chegou a um determinado momento à rejeição dessa capacidade do homem. Afinal, somente se poderia chamar de “racional” aquela capacidade mental humana de pensar dedutivamente, geometricamente. É o fenômeno da geometrização ao absurdo. Em um processo histórico crescente e ainda em curso, o Direito também incorporou esse “ideal de geometrização” como forma de alcançar decisões mais previsíveis e seguras, e essa geometrização, de início meramente instrumental, passou a interferir profundamente no próprio sistema de valores tutelados pelo Direito e na forma de julgar dos juízes. Ocorre, contudo, que a dimensão intuitiva da razão humana vem sendo recuperada por alguns autores, em diferentes graus e nuances. Com efeito, Paul RICOEUR, ao refletir sobre a intuição intelectual, fala de uma primazia da percepção em relação às outras capacidades intelectuais do homem. A consciência humana, ao se dirigir a algo, o faz “de múltiplas formas, das quais a objetividade lógica não é mais do que uma modalidade de segundo grau e a percepção a modalidade mais fundamental”. 26Segundo aquele filósofo, “a primeira verdade do mundo não é a da física matemática, mas sim a da percepção; mais ainda, a verdade da ciência se constitui como uma superestrutura sobre uma primeira assentada de presença e de existência que é a do mundo vivido perceptivamente”27. Como anotado por MACDOWELL, SARTRE chega a afirmar que “não há outro conhecimento a não ser o intuitivo. A dedução e o discurso, impropriamente chamados de conhecimento, não são mais do que instrumentos que conduzem à intuição. Quando ela se alcança, os meios utilizados para alcançá-la se dissolvem diante dela; nos casos em que ela não pode ser atingida, o raciocínio e o discurso permanecem como placas indicativas, que apontam para uma intuição fora de alcance”28.

26   RICOEUR, Paul. A L’École de la Phénoménologie. Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, 1987. p. 190, tradução nossa. 27   Id. p.191. 28   SARTRE, Jean Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943. p. 220.


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O que se percebe, portanto, no processo histórico descrito por MACDOWELL, é que houve um “enfraquecimento da razão”, que já não consegue mais enxergar o fenômeno humano em toda sua amplitude. E, sendo o domínio da razão tecnocientífica a expressão dessa miopia da razão, sua adoção pura e simples como critério de julgamento alcançará resultados insuficientes quando o que se busca é alcançar uma decisão plenamente racional — ou, num desdobramento discursivo mais minucioso, o uso da razão humana em sua plenitude funcional e estrutural. Decisão plenamente racional é aquela em que o indivíduo usa a razão humana em sua plenitude estrutural e funcional, ou seja, usa tanto a razão discursiva quanto a intuição intelectual. Disso decorre que o julgamento tecnicista não tem a capacidade de, por si só, alcançar a decisão mais justa. 9. Do método apropriado ao objeto e o “mito da certeza do direito” Um argumento final pela importância, e mesmo certa prevalência, do critério humanístico encontramo-lo na própria noção autoevidente de que o método deve ser adequado ao objeto, e não o contrário, conforme lição de HUSSERL (2009), para quem “o verdadeiro método segue a natureza das coisas que precisa investigar, e não nossos preconceitos nem nossas imagens prévias”.29 Com propriedade, FRANK (2009) afirma que Mesmo em sociedades relativamente estáticas, o homem nunca foi capaz de construir um conjunto de regras compreensivo e eterno, antecipando todos os possíveis conflitos legais e conciliando-os de antemão. (...) Mesmo em campos que não o do direito existe hoje uma tendência a aceitar probabilidades e abrir mão da esperança de encontrar uma certeza absoluta. Mesmo em física e química, onde um alto grau de exatidão quantitativa é possível, expoentes do pensamento atu29   HUSSERL, Edmund. La Filosofía, ciencia rigurosa. Tradutor Miguel García-Baró. Ediciones Encuentro, S.A., 2009 . p. 39, tradução nossa.


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175 al têm reconhecido que definitividade e precisão final não são atingíveis.30 O que é significativo é que do direito, que, como vimos, é inerentemente um dos empreendimentos humanos dotados de menor certeza, é demandado um grau de certeza absurdamente desproporcional; mais certeza é exigida do direito do que da biologia, por exemplo. 31

A tese de FRANK (2009) é interessante: segundo o filósofo, uma das principais causas de tal atitude diante do direito seria uma projeção psicológica da “infalibilidade paterna” O Direito – um corpo de regras aparentemente destinadas à infalibilidade em sua função de determinar o que é certo e o que é errado e a decidir que deveria ser punido por desvios de conduta – inevitavelmente se torna um substituto para o Pai-como-Juiz-Infalível. Ou seja, persiste em adultos o desejo de recapturar, através da redescoberta de um pai, um universo infantil completamente controlável, e esse desejo busca satisfação numa antropomorfização parcial e inconsciente do Direito, atribuindo a este algumas das características do Pai-Juiz da criança. Essa aspiração infantil é um elemento importante para explicar a absurdamente irrealística noção de que o direito é, ou pode se tornar, inteiramente certo e definitivamente previsível.32 Como defendemos nos tópicos acima, um dos fatores determinantes em nossa opinião para essa exigência de certeza é justamente a herança cientifi-

30   FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind. New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 2009. p.7, tradução nossa. 31   Id. p. 21. 32   Id. p. 19.


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cista, que carrega para as ciências humanas os métodos das ciências naturais e matemáticas. Sem adentrar nos fundamentos psicológicos identificados por FRANK (2009) para o grau de certeza exigido do Direito33, pois escapariam ao foco desta reflexão, com ele concordamos quando afirma que se trata de um grau desproporcional e totalmente inadequado à sua natureza – demonstrando, assim, a incapacidade do método de inspiração científica para avaliar com propriedade o fenômeno humano que é o conflito sob julgamento. 10. Julgamento e sabedoria: juiz humano e bem formado A grande questão continua a ser, portanto: como julgar bem? Com base nas reflexões deste artigo, já é possível apresentar algumas posturas cuja adoção poderá levar ao aprimoramento da atividade de julgar. Para julgar melhor é preciso que o julgador exerça sua atividade racional em toda amplitude estrutural e teleológica. Para tanto, precisa assumir sua própria humanidade e, com ela, sua capacidade intelectiva integral. Mas como fazê-lo? Um primeiro passo seria resistir à “geometrização ao absurdo” do Direito, admitindo que a riqueza do fato humano não pode ser subsumida a regras preestabelecidas e fórmulas tarifadas. Com isso, se ergueria também um muro de resistência contra os exageros estatísticos e econômicos que acabam por resultar, conforme registrou TAYLOR (2009), numa transformação das pessoas que buscam a Justiça em meros números a ser administrados e equacionados.34 Em segundo lugar, pela assunção de sua própria “condição humana, procurando tanto colocar-se no lugar daquele indivíduo (vê-lo não só como um outro, mas como um ‘outro eu-mesmo’, com as mesmas limitações, susceptibilidades, angústias e possibilidades), quanto se inserindo ao máximo no

33   Numa reflexão antropológica interessante, Husserl menciona “nossa necessidade de conhecimento concludente e unificador que todo conceitue e compreenda...”, in HUSSERL, Edmund. La Filosofía, ciencia rigurosa. Tradutor Miguel García-Baró. Ediciones Encuentro, S.A., 2009 . p. 66, tradução nossa. 34   OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. A erosão do juiz como símbolo nas sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, Lisboa, ano 1 (2012), nº 11, p. 6859.


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mundo social, tornando-se um juiz do seu tempo”35. Em relação ao tema da alteridade, preciosas reflexões poderão ser encontradas em diversos pensadores na história da filosofia, como Ricoeur na busca do “outro como eu mesmo”; Martin Buber, com seu princípio dialógico; Emmanuel Lévinas e a relação ética que se constitui na percepção da face do outro, dentre outros. Em terceiro lugar, usando uma expressão husserliana, o juiz precisa ser bem formado, o que quer dizer que precisa tentar alcançar um “estado de sabedoria”. Para compreensão desse conceito, a noção central a ser invocada é a de sabedoria como “visão do mundo”, de Husserl, haurida de suas reflexões sobre a experiência humana. Para o filósofo nascido na região da Morávia, atual República Tcheca, o homem está essencialmente condicionado pelo modo como a personalidade se deixa motivar por atos de sua própria experiência e pelas experiências alheias que lhe são transmitidas. Contudo, fato que tem passado despercebido em nosso tempo é que além das experiências intelectuais e teóricas, nosso intelecto também é construído por outras experiências como as artísticas, estéticas e de valores éticos – “seja com base em nosso próprio comportamento ético ou porque penetramos intuitivamente no comportamento dos demais”.36 Assim, não experimentamos apenas construções teóricas, mas também axiológicas e práticas, vivências mesmo. E Também sobre tais experiências se levantam conhecimentos empíricos de dignidade superior, lógica. De acordo com isso, quem tem experiências de todas as classes ou, como dizemos, o homem “bem formado”, não apenas tem experiência do mundo, mas também experiência ou “formação” religiosa, estética, ética, política, técnico-prática, etc.37

35   OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. O paradoxo do juiz e a necessidade de humanização da justiça. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, Lisboa, ano 1 (2012), nº 7. 36   HUSSERL, Edmund. La Filosofía, ciencia rigurosa. Tradutor Miguel García-Baró. Ediciones Encuentro, S.A., 2009 . p. 68, tradução nossa. 37   HUSSERL, Edmund. La Filosofía, ciencia rigurosa. Tradutor Miguel García-Baró. Ediciones Encuentro, S.A., 2009. p. 68, tradução nossa.


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Dessa forma, o juiz precisa ser dotado de sabedoria em sentido husserliano. Nos dizeres de HUSSERL (2009), para quem considera que o termo está “fora de moda”, melhor seria usar a expressão visão do mundo e da vida. Segundo a noção do filósofo, tem visão do mundo aquela pessoa ...experimentada de maneira habitual a respeito de todas as direções possíveis da atitude humana: a cognoscitiva, a estimativa e a volitiva. Porque é evidente que a esse ser experimentado vai unir-se a capacidade, bem formada, de julgar racionalmente (de poder justificar expressamente as próprias atitudes) os objetos de tais atitudes: o mundo ao redor, os valores, os bens, as ações, etc. (...) A sabedoria ou visão do mundo, nesse sentido determinado – mas que encerra uma pluralidade de tipos e graus de valor – não é (não necessitamos desenvolver mais esse aspecto) mera conquista da personalidade isolada – que, por sua parte, é uma abstração -: pertence à comunidade cultural e à época...38 A regra não escrita de que “o que não está nos autos não está no mundo” permanece; contudo, precisa ser captada em toda sua amplitude. Ao pretender trazer para apreciação judicial uma relação humana, os autos carregam para dentro do Judiciário não só os elementos explícitos das palavras ali lançadas. Trazem consigo todo o Lebenswelt, o mundo da vida, tanto de partes quanto do julgador. Além das palavras impressas nas folhas, deverá o julgador se servir do aspecto das mãos daquele que pede um benefício rural; de suas próprias noções acerca da realidade econômica do país em que vive; de sua própria experiência em suas relações de consumo; de seu conhecimento específico acerca de alguma realidade técnica questionada. 11. Conclusão

38   Id. p. 69.


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Não se quis afirmar a existência de juízes que adotem critérios puramente tecnocientíficos ou puramente humanísticos; isso seria impossível diante da própria constituição da razão humana, em sua dupla estrutura intuitivo-discursiva. Entretanto, é possível verificar a existência de julgadores que dão peso maior a um ou outro critério, e é sob essa luz que foi examinado o meio ambiente judiciário. Não se postulou, por outro lado, a imprestabilidade da razão tecnocientífica no processo de tomada da decisão judicial. Apenas se entende que, dada a teleologia da Justiça (voltada para o homem), e a natureza do objeto (as relações humanas), a intuição intelectual, a razão global e hermenêutica e seu desdobramento natural num critério humanístico de julgamento são meios imprescindíveis para que se alcance uma decisão justa. Em suma: na apreciação da causa, o juiz deve utilizar não só sua capacidade lógica, mas também sua intuição intelectual global, orientado pela busca de uma justiça assentada em alteridade, humanização e visão do mundo. Afinal, o ato de julgar não pode ser reduzido a um mero calcular. Referências bibliográficas BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind. New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 2009. HUSSERL, Edmund. La Filosofía, ciencia rigurosa. Tradução de Miguel García-Baró. Ediciones Encuentro, S.A., 2009. LADRIÈRE, Jean. Les enjeux da la rationalité – Le défi de la science et de la technologie aux cultures. Paris: Aubier-Montaigne/UNESCO, 1977. MORWOOD, James (editor). Oxford Latin Desk Dictionary. New York: Oxford University Press, 2005. MAC DOWELL, João A.: Investigação filosófica sobre Deus – Curso de Filosofia da Religião (apontamentos). Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2013. OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. A erosão do juiz como símbolo nas


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sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, Lisboa, ano 1 (2012), nº 11, p. 6859. OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. O paradoxo do juiz e a necessidade de humanização da Justiça. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, Lisboa, ano 1 (2012), nº 7. RICOEUR, Paul. A L’École de la Phénoménologie. Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, 1987. SARTRE, Jean Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943. TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1991. VAZ, Henrique C. de Lima Vaz. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1999.


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A segurança jurídica e o efeito vinculante perante o próprio supremo tribunal federal


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Pedro Luís Piedade Novaes Juiz Federal em Araçatuba/SP, Mestre em Direito, Professor Universitário.

Resumo: o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, tem, entre várias incumbências contidas no artigo 102 da Constituição Federal, a de processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), as quais são um dos instrumentos do controle concentrado de constitucionalidade previstos na nossa Lei Maior. Tais demandas, decididas pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 28, parágrafo único da Lei nº 9.868/99, têm eficácia perante todos (erga omnes), em regra efeitos retroativos (ex tunc) e vinculam toda a Administração Pública (Federal, Estadual, Distrital e Municipal) e os órgãos do Poder Judiciário. Nesse contexto, visa o presente estudo demonstrar que os efeitos da decisão proferida em sede de ADI devem também vincular o próprio órgão prolator, qual seja, o Supremo Tribunal Federal, garantindo-se, assim, a observância do Princípio da Segurança Jurídica. Palavras-chave: ação direta de inconstitucionalidade – efeito vinculante – supremo tribunal federal – direito constitucional – princípio da segurança jurídica. Abstract: the Supreme Court, the highest Court of the Brazilian Judiciary, has, among several incumbencies contained in the Article 102 of the Federal Constitution, one to prosecute and judge the Direct Actions of Unconstitutionality (ADIs), which are instruments of a concentrated control of constitutionality prescribed in our highest law. Such demands, decided by the full Supreme Court, under Article 28, sole paragraph of Federal Law # 9.868/99, are effective to all (erga omnes), has retroactive effect (ex tunc) and bind the entire government (Federal, State, District and Municipal) and the organs of the judiciary. In this context, this study aims to demonstrate that the effects of the ADI´s decision is also binding on the Brazilian Supreme Court, guaranteeing thus the observance of the Principle of Legal Certainty.


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Keywords: direct action of unconstitutionality - binding effect - supreme court - constitutional law - principle of legal certainty. 1 - introdução Existe controle de constitucionalidade de normas jurídicas quando há uma Lei Maior (Constituição), a qual está em plano hierárquico mais alto que todas as leis e atos normativos de um determinado Estado Soberano. Vige, nesse cenário, o princípio da Supremacia da Constituição, o qual somente tem aplicação nas constituições rígidas, isto é, aquelas que apresentam um processo específico para reforma constitucional distinto e mais dificultoso daquele necessário para alteração de uma norma infraconstitucional. Assim, “el fundamento de este control se basa en la diferenciación jerárquica existente entre la Constitución y la ley ordinaria”1, ou seja, “controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”2. Dessa maneira, “constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um acto – que lhe está ou não uniforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não cabe no seu sentido”3. Há vários tipos de controle de constitucionalidade4, dos quais nos interessa aqui o controle repressivo judicial, o qual é subdividido em difuso e concentra-

1   LATAILLADE, Iñigo Cavero & RODRIGUES, Tomás Zamora. Introducción al derecho constitucional. Madrid: Editorial Universitas S.A, 1995, p. 414. 2   MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 637. 3   MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 11. 4   Alexandre de Moraes apresenta uma classificação dos tipos de controle de constitucionalidade: “A presente classificação pauta-se pelo ingresso da lei ou ato normativo no ordenamento jurídico. Assim, enquanto o controle preventivo pretende impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico, o controle repressivo busca dele expurgar a norma editada em desrespeito à Constituição. Tradicionalmente e em regra, no direito constitucional pátrio, o Judiciário realiza o controle repressivo de constitucionalidade, ou seja, retira do ordenamento jurídico uma lei ou ato normativo contrários à Constituição. Por sua vez, os poderes Executivo e Legislativo realizam o chamado controle preventivo, evitando que uma espécie normativa inconstitucional passe a ter vigência e eficácia no ordenamento jurídico” (2006, p. 639). Como exemplo de controle preventivo do Poder Executivo, temos o veto presidencial (art. 66, §§ 1º e 2º, CF); do Legislativo, as Comissões de Constituição de Justiça do Senado e da Câmara dos Deputados.


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do. Diz-se concentrado o controle de constitucionalidade, porquanto será exercido por um único órgão – no caso, o Supremo Tribunal Federal –, ao contrário do controle difuso de constitucionalidade, também previsto no ordenamento jurídico pátrio, que é exercido por qualquer juiz ou tribunal, que pode resolver incidentalmente sobre a constituciona5lidade ou a inconstitucionalidade do ato normativo ou da lei, quando do julgamento de um determinado caso concreto. Para José Joaquim Gomes Canotillho, o controle concentrado (ou abstrato): “Tem por objeto uma pretensão dirigida à declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de normas jurídicas. É um processo de controle de normas, destinado, de forma abstrata, a verificar a conformidade formal, procedimental ou material, de normas jurídicas com a Constituição”. Nessa conjuntura, a ação direta de inconstitucionalidade genérica (ADI) é um dos meios de controle concentrado de constitucionalidade das normas previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 102, I, “a”) e está regulamentado pela Lei nº 9.868/99. Além da ADI, há a previsão constitucional de outras formas de controle concentrado de constitucionalidade, como, por exemplo, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF; a Ação Declaratória de Constitucionalidade e a ADI Interventiva. Contudo, o presente estudo será direcionado à Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica (ADI) e aos reflexos do efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal. 2. Aspectos gerais da ação direta de inconstitucionalidade Faz-se necessária uma breve análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade, para, então, ser possível analisar o efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e a sua possível vinculação perante o próprio órgão julgador. O modelo concentrado de constitucionalidade das leis, idealizado por Hans Kelsen, “foi introduzido na Constituição Austríaca de 1920 e aperfeiçoado em sua reforma de 1929”6, e somente inserido em nosso ordenamento jurídico com o advento da Emenda Constitucional nº 16/65 à Constituição

5   CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª. Coimbra: Almedina, 2003, p. 873. 6   BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 4ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 166.


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de 1946. Até então, o controle de constitucionalidade no Brasil se resumia ao difuso (existente desde a Constituição Federal de 1891) e à representação interventiva (prevista desde a Constituição Federal de 1934). A despeito de haver previsão do modelo concentrado de constitucionalidade desde 1965, esse somente vingou no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988. E a razão é simples: em 1965, o único legitimado previsto para a propositura de ações desta natureza era o Procurador-Geral da República, que era nomeado pelo Presidente da República. Por se tratar de cargo de confiança, o Chefe do Executivo poderia demiti-lo ad nutum. Ademais, o País vivia sob a égide de um regime de exceção, de ditadura militar, sendo que a propositura de uma ação que conflitasse com os interesses do Governo Federal resultaria em demissão sumária do Procurador-Geral da República. Em suma, quem detinha, de fato, o poder para desencadear o processo de controle concentrado era exclusivamente o Poder Executivo (ditadura militar); daí a sua ineficácia. Visando dar efetividade ao controle concentrado de constitucionalidade das normas, a Constituição Federal de 1988 ampliou o leque de legitimados a propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sendo eles: Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Partido político com representação no Congresso Nacional; Mesa de Assembleia Legislativa ou Câmara do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal e Confederação Sindical ou Entidade de Classe de Âmbito Nacional (art. 103, I a IX, CF). Os primeiros seis legitimados supracitados possuem legitimação universal para ingressar com a ADI, ou seja, podem propor tal demanda sem precisar comprovar a pertinência temática, em face de suas próprias atribuições institucionais; já os três últimos (Mesa de Assembleia Legislativa ou Câmara do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal e; Confederação Sindical ou Entidade de Classe de Âmbito Nacional) necessitam demonstrar a existência de relação entre a norma impugnada e as suas atividades institucionais, sob pena de indeferimento da inicial.


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O procedimento da ADI encontra-se regulamentado na Lei 9.868/997, sendo praticamente um compêndio da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre o procedimento dessa específica ação de controle concentrado de constitucionalidade. Assim, “a lei endossou a maior parte das linhas jurisprudenciais anteriormente consolidadas pelo STF a respeito da matéria, bem como incorporou inúmeros dispositivos regimentais”8. Nos termos do artigo 102, I, “a”, CF, a ADI pode ter como objeto lei ou ato normativo federal, estadual ou distrital (este, no exercício de competência estadual), desde que seja dotado de generalidade, seja posterior à Constituição Federal de 1988, esteja em vigência e, especialmente, viole diretamente norma da Constituição Federal. Podem ser objeto de controle de constitucionalidade via ADI: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções, tratados internacionais e demais atos normativos que sejam genéricos e abstratos. Sob ângulo contrário, não são objeto de ADI: lei municipal que viole diretamente a Constituição Federal; lei ou ato normativo (federal, estadual ou distrital) anterior à CF (é caso de não recepção perante a Constituição Federal de 1988, e não de inconstitucionalidade); normas constitucionais do Poder Constituinte Originário (os aparentes conflitos devem ser harmonizados por interpretação sistemática da CF); súmulas vinculantes (por terem um procedimento próprio de revisão, não se faz necessária a técnica de controle de constitucionalidade). No que se refere à competência para julgamento da ADI, como se trata de controle concentrado de constitucionalidade, o art. 102, I, “a” da CF atribui exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente a ação direta de inconstitucionalidade. Há também previsão de ADI estadual, cuja competência para julgamento é do Tribunal de Justiça do referido Estado (art. 125, § 2º, CF). O processo de ADI tem cunho objetivo, no qual não há interesses concretos em jogo, mas sim a análise abstrata do texto legal, significando dizer

7   Quando houver neste estudo a citação de artigo sem indicação da lei, estaremos nos referindo à de nº 9.868/99. 8   BARROSO, ob. cit., p. 169.


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que a relação processual desse tipo de ação não pode ser entendida à luz do processo civil subjetivo comum. Ou seja, “o processo objetivo (...) não se presta à tutela de direitos subjetivos, de situações jurídicas individuais”9. No que se refere a essa natureza de processo objetivo, Clèmerson Merlin Clève 10 salienta que: “... Cuida-se de um ‘processo’ que constitui, como outro qualquer, instrumento da jurisdição (no caso constitucional concentrada); através dele será solucionada uma questão constitucional. Não pode ser tomado, todavia, como meio para a composição da lide. É que, sendo ‘objetivo’, inexiste lide no processo inaugurado pela ação direta genérica de inconstitucionalidade. Não há, afinal, pretensão resistida”. Há quem entenda que a exigência da pertinência temática para ajuizamento da ADI por alguns dos legitimados pela Constituição Federal descaracteriza o caráter objetivo dessas demandas, pois “implica a transposição de situações subjetivas para o processo objetivo de controle abstrato de normas”11. Mesmo não havendo previsão da exigência de pertinência temática na Constituição Federal nem na Lei nº 9.868/99, essa questão está pacificada há muito tempo no STF, exigindo-se esse requisito para fins de evitar uma avalanche de ações dessa natureza, conforme julgamento da ADI 1096 MC/RS, relator o Ministro CELSO DE MELLO, julgamento em 16/03/1995, DJ 22/09/1995, p. 30.589. Para Gilmar Ferreira Mendes, o processo de controle abstrato de normas, como é a ADI, tem dupla função: “Ele atua tanto como instrumento de defesa 9   BARROSO, Luiz Roberto. O Controle da Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 1ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 114. 10   CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.143-144. 11   QUEIROZ NETO, Luiz Vicente de Medeiros. A pertinência temática como requisito da legitimidade ativa para o processo objetivo de controle abstrato de normas. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região. Brasília, v. 15, nº 7, jul/2003, p. 72.


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da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas”, ou seja, tem como finalidade direta a defesa da Constituição Federal e, via reflexa, os interesses subjetivos12. Em razão de ser um processo objetivo, sem partes litigantes, não há que se falar em impedimento ou suspeição de ministro do STF em ADI. Nem mesmo se quem ajuizou a ação (ex.: Procurador-Geral da República) ou defendeu a norma atacada (ex.: Advogado-Geral da União — AGU) venha, posteriormente, a ser empossado ministro do STF, como é o caso dos Ministros Gilmar Ferreira Mendes e Dias Toffoli, que foram AGUs dos governos FHC e Lula, respectivamente. No julgamento da ADI, o STF não se encontra condicionado à causa de pedir, podendo decidir a ação por outros fundamentos, conforme trecho do voto do Sydney Sanches, relator da ADIMC nº 1.358-DF, DJ 26/04/96: “Na ação direta de inconstitucionalidade cujo processo é objetivo, não ‘interpartes’, a ‘causa petendi’ pode ser desconsiderada e suprida, por outra, pelo STF, segundo sua pacífica jurisprudência”. Todavia, o STF fica condicionado ao pedido do autor da ADI, conforme explicita André Ramos Tavares13, posição que entendemos pertinente com a Constituição Federal: “... Os fatos e fundamentos jurídicos trazidos à baila na petição inicial não serão os únicos a serem analisados quando da decisão do STF acerca da constitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado. Isto quer dizer que, na realidade, o STF como Guardião da Constituição, quando declara a inconstitucionalidade em ADI, profere um juízo em relação a toda a extensão da Constituição, e não apenas em relação ao que fora arguido pelo legitimado ativo quando do ingresso em juízo. Entretanto, quanto ao pedido, este vincula o STF. Devem os ministros apreciar o pedido de suposta inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, podendo,

12   MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 295. 13   TAVARES, André Ramos, in: Curso de Direito Constitucional, 7ª. Saraiva, 2009, p. 305.


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191 por conseguinte, decretar a inconstitucionalidade da norma por fundamentos diversos (STF, RTJ 46/352)”.

Por outro lado, não se admite desistência em ADI (art. 5º), em virtude do princípio da indisponibilidade que rege o processo de controle normativo abstrato, o qual impede — por razões exclusivamente fundadas no interesse público — que o autor da ação direta de inconstitucionalidade venha a desistir do pedido de medida cautelar por ele eventualmente formulado. E “a razão principal que fundamenta o dispositivo ora examinado reside na natureza objetiva do processo do controle de constitucionalidade”.14 A Lei nº 9.868/99, no seu artigo 10 e seguintes, prevê a possibilidade de concessão de medida cautelar em ADI, desde que presente perigo de lesão irreparável na manutenção da validade ato impugnado até a decisão definitiva, produzindo efeitos ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa (art. 11, § 1º). A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário (art. 11, § 2º). Com exceção ao período de recesso, em que a análise será feita pelo Presidente do STF, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, presentes na sessão pelo menos oito ministros (art. 10, caput). Da mesma forma, a decisão final sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros (art. 22). Efetuado o julgamento, será proclamada a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido tiverem se manifestado pelo menos seis Ministros (art. 23). Contra a decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade em ADI não cabe ação rescisória nem recurso, com a exceção de embargos declaratórios (art. 26). A eficácia das decisões em ADI tem validade a partir da publicação da ata de julgamento no DJU. A ação direta de inconstitucionalidade não está sujeita a qualquer prazo de natureza prescricional

14   MENDES, Gilmar Ferreira, Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à lei nº 9.868/99. São Paulo/SP: Saraiva, 2001, p. 155.


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ou decadencial. E nem poderia ser diferente, pois os atos inconstitucionais jamais se convalidam pelo simples decurso do tempo. Nesse sentido, a decisão na ADI n. 1.247-9, relator o ministro Celso de Mello, julgamento em 17/08/1995, DJ de 08/09/1995: “... O ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade não está sujeito a observância de qualquer prazo de natureza prescricional ou de caráter decadencial, eis que atos inconstitucionais jamais se convalidam pelo mero decurso do tempo”. Após esse intróito legislativo e jurisprudencial, passamos a analisar os efeitos da decisão em ADI, em especial o vinculante e suas consequências no ordenamento jurídico brasileiro. 3. Efeito vinculante da ADI perante o STF As decisões definitivas, proferidas pelo STF em sede de ADI, nos termos do artigo 28, parágrafo único, da Lei nº 9.87899, têm, em regra, efeitos ex tunc, vinculante e eficácia erga omnes. Entende-se por efeito ex tunc a possibilidade de a decisão em ADI retroagir no tempo. Assim, se o STF decide que uma norma é inconstitucional, ela é considerada nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos, sendo a mesma extirpada do ordenamento jurídico como se nunca tivesse existido, fazendo, inclusive, com que a lei anterior revogada seja restabelecida, ou seja, há o efeito repristinatório nesse caso15. A regra do efeito ex tunc comporta exceção: em razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de 2/3 de seus membros (oito ministros), restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (artigo 27). Dessa maneira, os efeitos da decisão em sede de ADI podem ser manipulados quanto à eficácia temporal, sendo denominado esse fenômeno de 15   Sobre o efeito repristinatório, vide decisão na ADIN nº 2.215/PE, de relatoria do ministro Celso de Mello, decisão: 17/04/2001 (informativo STF nº 224).


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modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que pode ser utilizada, inclusive, para o futuro. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 2.240, relator o Ministro Eros Grau, entendeu pela inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 7.619/2000, do Estado da Bahia, que criou o município de Luiz Eduardo Magalhães, mas, tendo em vista a excepcionalidade do caso, determinou a vigência dessa norma inconstitucional por mais 24 (vinte e quatro) meses. Com isso, “consagra-se, desta forma, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, já que, dependendo do caso concreto, como disse o Min. Gilmar Mendes, a ‘nulidade da lei inconstitucional pode causar uma verdadeira catástrofe – para utilizar a expressão de Otto Bachof – do ponto de vista político, econômico e social’”.16 A eficácia erga omnes faz com que decisão em ADI seja aplicada em relação a todos. Já o efeito vinculante significa que o veredicto do STF deverá ser seguido pelo Poder Público e pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Mesmo que sejam, à primeira vista, muito parecidos, os mencionados efeitos da ADI têm diferença nítida: a eficácia erga omnes “está relacionada ao alcance subjetivo da decisão no controle concentrado abstrato, ou seja, diz respeito a quem se destinam os efeitos da decisão, enquanto o efeito vinculante prende-se aos limites objetivos da decisão, isto é, qual parte da decisão deverá ser respeitada pelo poder público”.17 O efeito vinculante, previsto no parágrafo único do artigo 28, da Lei nº 9.868/99 para as decisões do STF em sede de ADI, somente foi introduzido em nosso ordenamento jurídico com o advento do artigo 187 do regimento interno do Supremo Tribunal Federal, que regulamentou a denominada representação interpretativa (art. 119, I, “l”, CF de 1967, com redação dada pela EC nº 7, de 13/04/1977). Já na Constituição Federal de 1988, a Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/1993, introduziu o § 2º no artigo 102, CF e trouxe o efeito vinculante para as ações declaratórias de constitucionali-

16   LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 179. 17   PELICIOLI, Ângela Cristina. A sentença normativa na jurisdição constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília/DF. Ano 44, nº 174, abril/jun/2007, p. 39.


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dade, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. Posteriormente, a Lei nº 9.868/99 estendeu esse efeito vinculante para as Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Finalmente, a EC nº 45/2004 acrescentou o artigo 103-A à Constituição Federal e criou a denominada súmula vinculante, cujas características também são de vinculação, a partir da sua publicação na imprensa oficial, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública de todas esferas governamentais. Nos termos da redação do artigo 28, parágrafo único da Lei nº 9.868/99, a decisão em ADI gera o efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, que não podem contrariá-la. Portanto, não há necessidade de processo de execução: se a Administração Pública ou órgão do Poder Judiciário não observam o julgado e aplicam a norma, há nítido descumprimento, pode ser interposta reclamação, por força do efeito vinculante, ou outra medida judicial (mandado de segurança, ação cautelar, ação ordinária com pedido de antecipação de tutela etc.). Nem se aplica o artigo 52, X, da Constituição Federal, que determina que compete ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que tal incumbência somente tem aplicação no controle difuso e não no concentrado, o qual já tem o efeito vinculante, com aplicação imediata. Nesse sentido: RTJ 146/461; 151/331. Há discussão doutrinária no sentido da vinculação ou não da decisão de ADI perante o Poder Legislativo. Na visão de Alexandre de Moraes18, a resposta é positiva (vincula), sob o seguinte argumento: “... Os efeitos vinculantes aplicam-se inclusive ao legislador, que não poderá editar nova norma com preceitos idênticos aos declarados inconstitucionais, ou, ainda, norma derrogatória da decisão do Supremo Tribunal Federal; ou mesmo, estará impedido de editar normas que convalidem os atos nulos praticados com base na lei declarada inconstitucional”. 18   MORAES, ob. cit., p. 691.


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Esclarece o mesmo autor que esse também é o entendimento de vários autores internacionais: GARCIA BELAUNDE, Domingo; FERNANDEZ SEGADO, Francisco. La jurisdicción constitucional em Iberoamerica. Madri: Dykinson, 1997, p. 669 e CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição da república portuguesa anotada. 3ª. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 199419. Todavia, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido contrário, ou seja, da não vinculação das decisões da ADI ao Poder Legislativo, sob pena de ocorrer o fenômeno da “fossilização da constituição”. Esse termo foi utilizado pela primeira vez no julgamento da Reclamação nº 2617 Agr/MG, relator o ministro Cezar Peluso, cujo voto está disponível no Boletim Informativo STF nº 377: “... A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão proferida pelo STF em ação declaratória de constitucionalidade ou direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal não alcançam o Poder Legislativo, que pode editar nova lei com idêntico teor ao texto anteriormente censurado pela Corte. Perfilhando esse entendimento, e tendo em conta o disposto no § 2º do art. 102 da CF e no parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/99, o Plenário negou provimento a agravo regimental em reclamação na qual se alegava que a edição da Lei 14.938/2003, do Estado de Minas Gerais, que instituiu taxa de segurança pública, afrontava a decisão do STF na ADI 2424 MC/CE (acórdão pendente de publicação), em que se suspendera a eficácia de artigos da Lei 13.084/2000, do Estado do Ceará, que criara semelhante tributo. Ressaltou-se que entender de forma contrária afetaria a relação de equilíbrio entre o tribunal constitucional e o legislador, reduzindo o último a papel subordinado perante o poder incon19   Idem. Ibidem.


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Revista da Ajufe trolável do primeiro, acarretando prejuízo do espaço democrático-representativo da legitimidade política do órgão legislativo, bem como criando mais um fator de resistência a produzir o inaceitável fenômeno da chamada fossilização da Constituição”.

Desse modo, segundo posicionamento pacífico do STF, o legislador poderá, em tese, editar uma nova norma legal com conteúdo material idêntico ao do texto normativo declarado inconstitucional, o que já aconteceu, na prática, com a Lei nº 8.212/91. Houve decisão do STF em controle difuso declarando incidenter tantum a inconstitucionalidade do artigo 12, I, “h” dessa lei, com a consequente Resolução do Senado nº 26/2005, no sentido de suspender os seus efeitos (“ex nunc”), cuja redação era a seguinte: “São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: I - como empregado: (...) h) o exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social”. Posteriormente, foi sancionada a Lei nº 10.887/2004, que repetiu a mesma redação da norma declarada inconstitucional. Justifica-se tal posicionamento do STF na ideia de Estado Democrático de Direito, segundo o qual não se pode impedir o legislador de aprovar, a qualquer momento, um novo projeto de lei. As circunstâncias momentâneas podem e devem ser melhoradas, o que significa fazer frente a uma interminável tarefa de adaptação às mudanças sociais e políticas mediante novas decisões. Para isso, é necessário que sejam mantidas abertas todas as vias concebíveis de solução. No que se refere à vinculação das decisões da ADI aos demais órgãos do Poder Judiciário, não há qualquer celeuma a esse respeito, pela expressa redação do artigo 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99. A indagação é justamente se o efeito vinculante atinge o seu próprio órgão prolator, qual seja, o STF. Há quem entenda que a decisão em controle concentrado “deve ser aplicada pelo próprio STF, que atua como agente negativo, ao caracterizar o ato do Poder Público como inconstitucional, como também pelos tribunais e


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juízes integrantes do Poder Judiciário”.20 Para o ex-ministro do STF Moreira Alves, há sim a vinculação: “A eficácia contra todos ou erga omnes já significa que todos os juízes ou tribunais, inclusive o STF, estão vinculados ao pronunciamento judicial”21. Por outro lado, existe o posicionamento de que “a fórmula adotada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993, parece excluir também o Supremo Tribunal Federal do âmbito de aplicação do efeito vinculante. A expressa referência ao efeito vinculante em relação ‘aos demais órgãos do Poder Judiciário’ legitima esse entendimento”22. Esse mesmo autor cita o pensamento do doutrinador alemão Hans Brox, no sentido de que é admitida, excepcionalmente, a reanálise de constitucionalidade de norma já declarada constitucional pelo Tribunal Constitucional: “... Se se declarou, na parte dispositiva da decisão, a constitucionalidade da norma, então se admite a instauração de um novo processo para aferição de sua constitucionalidade se o requerente, o Tribunal suscitante (controle concreto) ou o recorrente (recurso constitucional = verfassungsberschwerde) demonstrar que se cuida de uma nova questão. Tem-se tal situação se, após a publicação da decisão, se verificar uma mudança do conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle, de modo a permitir supor que outra poderá ser a conclusão do processo de subsunção. Uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral pode levar a essa alteração.”23 Entendemos que seria, em tese, possível nova aferição de constituciona20   MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Arguição de descumprimento de preceito fundamental – instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da Constituição. São Paulo: RT, 2003, p.173. 21   MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bastos, 2000, p. 265. 22   MENDES, ob. cit., 2001, p. 342. 23   MENDES, ob. cit. 2001, p. 331.


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lidade pelo Tribunal Constitucional se presentes os seguintes requisitos: a) uma mudança no conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle; b) uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral; c) ter sido considerada constitucional a norma objeto de novo controle. Em suma, “declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á que concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe, uma vez mais, da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes”.24 Percebe-se que são situações extremas que podem levar o Tribunal Constitucional, seja em controle concentrado ou difuso, como é o caso do Brasil, a reexaminar uma questão já debatida exaustivamente entre seus pares, pois, caso contrário, seria instalado verdadeiro clima de total insegurança jurídica no País. Isso porque o conceito de Justiça vem de cada homem, sendo impossível unificá-lo para toda coletividade. E como fazer justiça pelas próprias mãos é inclusive tipificado como crime em nosso ordenamento jurídico (art. 345, do Código Penal), quem substitui a sociedade para realizar a pacificação dos litígios é o Poder Judiciário, por intermédio da jurisdição. Para Recaséns Siches, o Direito “nasce originariamente na vida humana para satisfazer uma necessidade de certeza e de segurança em determinadas relações sociais, consideradas da maior importância”25. Nesse sentido, somente com segurança jurídica será estabelecida a pacificação social, evitando que a Justiça seja alcançada pelos particulares, conforme seus próprios sensos de justiça, notoriamente conflitantes. Antonio-Enrique Pérez Luño 26 agrega duas acepções de uma segurança jurídica: “… En la primera, que responde a la seguridad jurídica stricto sensu, se manifiesta como una exigencia objetiva de regularidad estructural y funcional del sis-

24   MENDES, ob. cit. 2001, p. 332. 25   SICHES, Luís Recaséns. Tratado de sociologia. Trad. João Batista Coelho Aguiar. Porto Alegre: Globo, 1968, p. 703. 26   LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La Seguridad Jurídica, 2a. ed. Barcelona: Editora Ariel, 1994, p. 29/30.


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199 tema jurídico a través de sus normas e instituciones. En la segunda, que representa su faceta subjetiva, se presenta como certeza del Derecho, es decir, como proyección en las situaciones personales de la seguridad objetiva”.

A ideia de segurança jurídica é inerente às decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, já que elas têm eficácia para todos (erga omnes), vinculante e retroativa (em regra), a fim de evitar ou eliminar inúmeros processos ajuizados nas instâncias inferiores, os quais teriam como fundamento a declaração incidental de inconstitucionalidade ou não de uma norma ou ato normativo. Além disso, tais decisões advêm da mais alta Corte de Justiça, a qual, como guardiã da Constituição Federal (art. 102, caput, CF), deve dar a última palavra em questão constitucional, pondo uma pá de cal nas controvérsias jurídicas instaladas. Com isso, o que se espera é que o STF, ao decidir uma questão constitucional, coloque um fim na discussão jurídica, para que haja na comunidade jurídica, uma sensação de pacificação social. Via de consequência, a fim de evitar um caos jurídico, deve o STF, quando rever as suas decisões, analisar a pertinência dessa reanálise, observando-se a presença de uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral para nova aferição da matéria constitucional. Claro que este novo reexame somente é possível se, num primeiro momento, o órgão máximo entendeu pela constitucionalidade da lei ou ato normativo atacado, pois, se caso houvesse a declaração de inconstitucionalidade, geraria a sua consequente nulidade (com efeitos retroativos ou não, dependendo se o STF modular os efeitos de sua decisão (art. 27), conforme já analisado acima). Em suma, jamais poderia o STF reexaminar a questão de constitucionalidade de uma norma que foi extirpada do ordenamento jurídico. Ressalte-se que o STF já se posicionou no sentido de que não se submete às suas decisões em ADI, podendo rever seu próprio entendimento, se assim entender necessário (STF – ADI nº 2675/PE, rel. Min. Carlos Velloso e ADI nº 2777/SP, rel. Min. Cezar Peluso): “... O Tribunal, embora salientando a necessidade de


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Revista da Ajufe motivação idônea, crítica e consciente para justificar eventual reapreciação de uma questão já tratada pela Corte, concluiu no sentido de admitir o julgamento das ações diretas, por considerar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.

Contudo, esse cuidado na reapreciação de questão constitucional já analisada pela Corte nem sempre é observado pelo STF, o que causa total insegurança jurídica. É o caso, por exemplo, da exigência do depósito prévio de 30% (trinta por cento) do valor cobrado pelo Fisco Federal, para que o contribuinte ingresse com recurso perante a segunda instância administrativa (processos administrativos tributários), então previsto no artigo 126, §§ 1º e 2º, da Lei nº 8.213/91. Num primeiro momento, no julgamento da ADIMC nº 1.04927 (controle concentrado), o Pleno entendeu constitucional tal exigência. Tal posicionamento jurisprudencial foi reafirmado várias vezes pelo STF28. Entretanto, sem que houvesse qualquer mudança fática na norma legal, o STF reviu o seu entendimento, declarando a inconstitucionalidade da referida norma legal no julgamento conjunto dos REs 388.359; 389.383 e 390.513 (controle difuso), que culminaram súmula vinculante nº 21: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”. Há outra decisão proferida pelo Excelso Pretório, advinda do controle difuso de constitucionalidade (julgamento de recurso extraordinário), que se encaixa perfeitamente na presente discussão. Trata-se da constitucionalidade do Decreto-lei nº 70/66, o qual o STF, em reiteradas decisões, entendeu pela sua recepção pela Constituição de 1988, ou seja, que é possível a execução extrajudicial das dívidas hipotecárias contraídas no regime do 27   STF, Pleno, ADI nº 1049/DF; rel. min. Carlos Velloso. DJU: 25/08/1995, p. 26021. 28   STF, Pleno, RE nº 210246/GO; rel. min. Nelson Jobim. DJU: 17/03/2000, p. 028; STF, 1ª T., RE nº 169077/MG; rel. min. Octávio Gallotti. DJU: 27/03/98, p. 018; STF, 2ª T., AI nº 344702 AgR / SC; rel. min. Maurício Corrêa. DJU: 26/04/02, p. 084; STF, 2ª T., AI nº 427768 AgR / RJ; rel. min. Ellen Gracie. DJU: 01/08/2003, p. 131.


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Sistema Financeiro da Habitação – SFH, conforme RE 287.453, Moreira, DJ 26.10.2001; RE 223.075, Galvão, DJ 23.06.98. Recentemente, sem que houvesse qualquer alteração na ordem fática, o Excelso Pretório decidiu reavaliar essa pacífica jurisprudência, e está analisando o Recurso Extraordinário nº 627.106/PR, rel. Min. Dias Toffoli. O processo está com vista ao Ministro Gilmar Ferreira Mendes e, por enquanto, há dois votos pela constitucionalidade do aludido decreto-lei e três votos pela sua inconstitucionalidade. Nesses dois casos específicos supracitados, percebe-se claramente que não houve uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral para justificar o reexame pelo Pleno do STF, o que, por si só, geraria perplexidade, instabilidade no meio jurídico. Talvez pelo fato de a revisão do entendimento ser favorável aos olhos da maioria dos jurisdicionados (contribuintes e mutuários), não houve um clamor maior da comunidade jurídica. Contudo, isso não justifica a mudança jurisprudencial sem critérios objetivos, sob pena de ruir a segurança jurídica das decisões finais proferidas pelo STF, ameaçando a credibilidade do Poder Judiciário brasileiro. Claro que mudanças sempre são bem-vindas, justamente para que o Tribunal Constitucional não fique eternamente à mercê de suas decisões anteriores, já que a sociedade é dinâmica e o direito deve sempre acompanhar suas alterações. O que não pode é o STF, sem que haja critério fático ou jurídico substancial que justifique, revisar posições recentes, sob pena de instituir um clima de total insegurança jurídica, haja vista a inevitável sensação de que as decisões do nosso órgão mais alto de Justiça podem ser modificadas a qualquer momento, a bel-prazer de seus pares, sem critérios objetivos. 4. Conclusão O efeito vinculante previsto para as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sempre gerou controvérsias. Para os contrários a tal possibilidade, ele interfere a independência funcional dos magistrados e impossibilita o livre acesso à Justiça e ao devido processo legal. Tais críticas são facilmente afastadas, pois o efeito vinculante tem o poder de “reduzir a incerteza quanto às decisões conflitantes; incrementar a celeridade processual e privilegiar a jurisdição constitucional, possibilitando ao STF exercer


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seu papel político-institucional de guardião da Constituição, solvendo, em definitivo, determinados debates constitucionais” . Como visto acima, o efeito vinculante das decisões em sede de ADI condiciona o Poder Executivo em todas as suas esferas federativas e os demais órgãos do poder judiciário. Por orientação da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as decisões em ADI não vinculam o Poder Legislativo, sob pena da ocorrência do fenômeno da fossilização da Constituição Federal, nem o próprio órgão prolator (no caso, o STF). Só que a mudança de entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, de decisões que geram efeitos vinculantes, eficácia erga omnes e, em regra, efeitos retroativos, deve ser feita com muita parcimônia, ou seja, desde que haja uma alteração no conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle e das relações fáticas ou da concepção jurídica geral. Caso contrário, a imagem do Poder Judiciário, já arranhada com as suas mazelas (lentidão, falta de estrutura, excesso de demandas, entre outros), será ainda mais prejudicada, pois não haverá nos seus julgamentos constitucionais a sensação de extinção da controvérsia jurídica estabelecida, ocasionando a sensação na coletividade de que o STF pode rever, a bel-prazer, seu entendimento, o que é péssimo para imagem e credibilidade do Poder Judiciário pátrio. E como o STF tem a função constitucional de guardião da Constituição Federal, devendo, nesse contexto, preservar a estabilidade institucional e a segurança jurídica do País, concluímos que uma mudança de seu posicionamento jurisprudencial, já consolidado, seja em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, deve ser realizada de forma muito criteriosa, para que a sociedade como um todo tenha a certeza de que as decisões da cúpula do Poder Judiciário são definitivas. Referências bibliográficas BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 4ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001. _____________________ O Controle da Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 1ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.


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Improbidade administrativa: uma leitura do art. 11 Da lei 8.429/92 À luz do princípio da segurança jurídica


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Edilson Pereira Nobre Júnior Professor da Faculdade de Direito do Recife – UFPE, instituição na qual cursou mestrado e doutorado em direito público. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Membro da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte.

Sumário: O presente texto se destina a examinar a definição de improbidade do art. 11 da Lei 8.429/92 diante da necessidade de sua harmonização com o princípio da segurança jurídica. Palavras-chave: improbidade administrativa – princípios – segurança jurídica

Não se é possível desconhecer que o Estado brasileiro, sob o ponto de vista de suas instituições administrativas, notabiliza-se, ainda, pela versão patrimonialista, a qual continua, mesmo diante de algumas tentativas para o despertar de uma administração gerencial, fortemente arraigada na cultura tanto das elites quanto das classes menos favorecidas. Isso favorece práticas contrárias à boa administração, evidenciando má-fé daquele a quem cabe gerir e concretizar o interesse público.1 Com o propósito de coibir algumas práticas que destoam da normalidade administrativa, veio a lume, ao depois do êxito porventura não obtido com a ação popular, a Lei 8.429/92, tipificando uma série de atos a que denominou como configuradores de improbidade administrativa, tripartindo-os entre os que ensejam enriquecimento ilícito, os que produzem dano ao erário e, finalmente, os que atentam contra os princípios da Administração Pública.

1   Nunca é demasiado reviver a lição de Ruy Cirne Lima (Princípios de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 20-21), ao frisar que administração, seja nos confins do direito privado ou do direito público, designa atividade de quem não é dono, ostentando como traço característico a sua vinculação a um fim alheio à pessoa do agente ou órgão que a exercita. Especificadamente quanto à administração pública, interessante transcrever a seguinte passagem: “O fim – e não a vontade – domina tôdas as formas de administração. 4. Supõe, destarte, a atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria. Jaz, conseqüentemente, a administração pública debaixo da legislação, que deve enunciar e determinar a regra de direito” (loc. cit., p. 22).


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O rol de tais categorias se encontra enumerado nos vários incisos dos arts. 9º, 10 e 11, do diploma acima mencionado. Nossa abordagem se volta justamente ao último dos dispositivos referidos, em cujo enunciado se tem, no seu caput, a menção de que caracteriza “ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”, para, logo depois, com o auxílio do advérbio “notadamente”, listar, detalhadamente, outras condutas como tais. Preocupa-me – e bastante – a maneira como alcançará aplicação o preceito em exame. Isso porque o objetivo de coibir, com o recurso ao jus puniendi estatal, práticas lesivas ao interesse coletivo não justifica o desapego a garantias que, historicamente, incorporou o Estado de Direito nas suas diversas fases. Em segundo lugar, a incidência de tal norma desprovida de ajustes objetivos poderá conduzir a um resultado contrário à dinâmica que deve pautar a função administrativa, retirando do administrador qualquer laivo de criatividade, o que, decerto e jamais, foi o objetivo pretendido pela Lei 8.429/92. Dentro da primeira ordem de razões, reforça a preocupação a circunstância – inegável, por sinal – de que a apuração de atos de improbidade administrativa, mesmo não guardando identidade com a apuração judicial de delitos ou crimes, alberga conteúdo nitidamente punitivo2, motivado pela violação da ordem jurídica administrativa. Daí, então, o receio com o maltrato ao princípio da segurança jurídica, o qual caminha junto com o da legalidade, podendo-se afirmar que o segundo se afigura como uma exigência do primeiro. É que toda e qualquer punição a ser infligida pelo Estado a quem se encontra sob sua ordem jurídica, qualquer que seja a modalidade na qual é classificada, haverá de satisfazer o princípio da legalidade. Esse, por sua vez, não se satisfaz pela existência de autorização em lei ou veículo normativo com força de lei. A legalidade – como sói acontece com os elementos estruturais de um sistema jurídico – não se perfaz sozinha, mas num concerto harmônico com 2   Conferir, nesse sentido, considerações que constaram dos pronunciamentos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau por ocasião do julgamento da ADI 2.797 – 2 – DF (Pleno, mv, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006, p. 37).


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outros valores, dentre os quais ressai inelutavelmente a segurança jurídica. Essa inquietação, qual seja a de conformar legalidade e segurança jurídica, tornou a frequentar o campo do direito público material, tendo em vista a inflação legislativa que se verifica nos dias atuais, e tem por objetivo evitar que, mais uma vez, a lei deixe de ser uma garantia para se transmudar em opressão, conforme sucedeu no período compreendido entre as duas conflagrações mundiais. Bem observou o fenômeno García de Enterría3, ao visualizar a segunda grande crise da lei, e certamente a mais grave, com a multiplicação irreprimível de novas leis – em sua grande parte, leis ônibus —, acompanhadas de um desenvolvimento, também enorme, de normas regulamentares, de maneira que, em assim atuando, a competência normativa não responde a uma necessidade objetiva e cuidadosamente avaliada, mas sim para atender a impulsos imediatos dos serviços burocráticos. A produção massiva de normas jurídicas compromete seriamente os valores centrais da ordem jurídica, entre os quais a justiça e a segurança jurídica. Diante disso, conclui para uma chamada de atenção para a primazia dos princípios gerais do direito, os quais configuram um condensado da Justiça e atuam como reguladores de todas e cada uma das instituições positivas de um ordenamento.4 Esse aspecto não passou despercebido a Manoel Gonçalves Ferreira Filho5, ao notar o fenômeno da multiplicação das leis, a conduzir, inelutavelmente, à instabilidade do direito positivo e ao desprestígio de dito veículo. Com isso, verifica-se o desaparecimento da segurança, uma vez abalada a certeza do Direito.

3   Justicia y seguridad jurídica en un mundo de leys desbocadas. Madri: Civitas, 2000, p. 47 a 105. O autor explica o que se deve considerar por lei ônibus, a qual é a que, em seu texto, dispõe sobre uma variedade de matérias. 4   Essa preocupação do doutrinador espanhol não é nova. Foi exposta há aproximadamente quatro décadas antes em trabalho dirigido ao exame do controle da competência regulamentar (La interdiccion de la arbitrariedade en la potestad reglamentaria. Revista de Administración pública, nº 30, p. p. 160 e 166, setembro/dezembro de 1959), no qual condenou a legislação massificada, ultimando por propugnar pela primazia do império do direito sobre a lei, de maneira a ser imposto ao mortífero e penetrante poder de fazer normas o respeito aos valores materiais do sistema jurídico, o que entende configurar, possivelmente, a mais alta das missões que cabe a um jurista. 5   Estado de direito e constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49-50.


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Desse modo, não deve passar despercebido que a exigência de respeito à segurança jurídica, como forma de mais satisfatoriamente conduzir à aplicação das leis em compasso com as exigências da justiça material, reclama alguns cuidados quanto ao conteúdo da norma. Por isso, a conexão entre a segurança jurídica e o teor das normas legais encontra sólido tratamento na doutrina. Dentre vários autores, realce é de ser conferido a José Luis Palma Fernandéz6, ao examinar, descritivamente, as características que uma norma jurídica há de possuir, por imposição da segurança jurídica, e enuncia as seguintes: a) certeza da sua vigência; b) clareza do texto da norma; c) capacidade reguladora autossuficiente em seu âmbito; d) ausência de motivações pedagógicas; e) consequência de um depurado processo de elaboração. Aqui, nos interessa duas das qualidades acima descritas. A primeira delas é a clareza de seu conteúdo, a fim de que possa ser compreensível para os sujeitos de direito. Assim, a clareza, no dizer do autor, “obriga à identificação nítida dos destinatários da norma, a aproximação à sua realidade e a implantação de mandatos, proibições e autorizações dentro de uma linguagem simples e compreensível, o que não tem por que ser, em absoluto, sinônimo de vulgaridade ou ausência de técnica”.7 A segunda, a qual robustece a já enunciada, é a capacidade de disciplinar o seu objeto de forma autossuficiente. Portanto, a norma deve ser completa em sua formulação, bem como se projetar precisa e exata sobre o campo de atividade ao qual se reporta, definindo-lhe com rigor. Outra observação é encontradiça em Canotilho8, ao anotar que o princípio da segurança jurídica se volta para uma necessidade de conformação formal e material dos atos legislativos, com vistas a associá-los à moderna teoria da legislação, a qual visa racionalizar e otimizar as normas escritas. 6   La seguridad jurídica ante la abundancia de normas. Madri: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1997, p. 44-54 7  “Obliga a la identificación nítida de los destinatarios de la norma, el acercamiento a su realidad y la implantación de mandatos, prohibiciones y autorizaciones dentro de un lenguage sencillo y comprensible, o que no tiene por qué ser en absoluto sinónimo de vulgaridad o ausencia de técnica” (loc. cit., p. 47). 8   Direito constitucional. 5ª ed. 2ª Reimpressão. Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 375384.


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Por isso, deve a segurança jurídica demandar observância, entre outros, ao princípio da determinabilidade das leis, exigindo a elaboração de leis claras e densas. Entre nós, Rafael Valim9 deixa claro que, devendo inicialmente a segurança jurídica ser investigada sob a perspectiva da certeza jurídica, não se pode prescindir do exame da carga semântica das normas cuja observância é imposta a terceiros. Daí resulta atentar, inicialmente, para o aspecto da densidade, a impor ao legislador, ao dirigir-se ao administrador, conferir competências de modo expresso e específico, ao invés de fazê-lo de forma excessivamente ampla. De outro lado, há o imperativo da clareza, de sorte que as leis habilitadoras de competências devem ser claras, inteligíveis e coerentes. A preocupação em comento não escapou à jurisprudência. Tal se manifestou mediante a Sentencia 27, de 20 de julho de 1981, do Tribunal Constitucional espanhol10, a qual resultou de recurso de inconstitucionalidade promovido por um grupo de 54 deputados, voltado à impugnação de preceitos da Lei do Orçamento Geral do Estado para o ano de 1981. Um dos questionamentos se dirigia à disposição adicional quinta da mencionada lei, justamente em virtude da suposta violação à segurança jurídica. No que nos interessa de perto, o voto-condutor, após sustentar que os valores e princípios enunciados pelo art. 9.3 da Constituição de 1978 não devem ser encarados como compartimentos estanques, mas que, contrariamente, cada um deles possui seu valor em função dos demais, assentou que a segurança jurídica é a soma de certeza e legalidade, hierarquia e publicidade normativa, irretroatividade do não favorável e interdição da arbitrariedade, salientando que tais princípios se prestam, aplicados equilibradamente, para promover a justiça e a igualdade. No caso sob julgamento, compreendeu que a disposição adicional quinta, por ser uma norma certa e precisa, não portaria inconstitucionalidade. Realce merece pronunciamento do Conselho Constitucional da França

9   O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 99-103. 10   O inteiro teor da decisão referida se acha disponível em: http://hj.tribunalconstitucional.es.


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(DC 99-441, de 16 de dezembro de 1999)11, ao revelar que a segurança jurídica, em sendo uma das finalidades do direito, há de possuir valor constitucional implícito, à medida que ela protege do arbítrio e garante aos destinatários das normas elementos de certeza. Concluiu-se, na oportunidade, pela inconstitucionalidade de proposta de lei que autorizava o Governo, nos termos do art. 38 da Constituição de 1958, a modificar o texto de alguns códigos. Considerou-se, desse modo, que, para atender à segurança jurídica, é indispensável que os cidadãos possam determinar o conteúdo da lei aplicável sem esforços insuperáveis. Portanto, as leis promulgadas devem ser claras e inteligíveis. Estando a segurança jurídica associada à legalidade, tem-se como elevado o papel que, na delimitação do seu conteúdo, evoca a certeza do direito, fazendo-se imprescindível – para que a legislação possa ser não somente conhecida, mas, igualmente, assimilada pelos cidadãos – que seja elaborada com clareza e precisão. Com isso, supera-se a mera legitimidade formal, assegurando-se que a vontade do Estado seja produto duma normatividade devidamente formulada e não resultante da vontade arbitrária dos homens. O Estado Constitucional – o qual pressupõe o respeito a determinados valores – na condição de produto duma elaboração que se inicia com os albores do movimento constitucionalista nos séculos XVI e XVII, mas que se projeta, com aperfeiçoamento, até os dias atuais, não pode desprezar a ideia de garantia de direitos como forma de limitação do poder, na qual entra a legalidade. O anseio de legalidade surgiu como um reclamo contra a arbitrariedade com a qual se revestia o direito penal do Antigo Regime, para o fim de que se delimitassem, com precisão, as situações nas quais fosse autorizado ao Estado exercitar a sua competência de punir.12

11   Referência explicativa a esse julgado consta de Carole Nivard (L’ambivalence du traitement jurisprudentiel de la sécurité juridique. Droit administratif: Les revues JurisClasseur, nº 2, ano 49, p.7, fevereiro de 2010) 12   Colhe-se de Merkl, em livro escrito em 1927 (Teoría general del derecho administrativo. Editorial Comares: Granada, 2007, p. 350), que a diferença básica entre a Justiça penal do Estado de Direito e a do Estado de Polícia é obtida pelo princípio do nullum crimen e da nulla pena sine lege, porquanto, no primeiro, prevalecia a construção, nos casos particulares, pelo então detentor do poder político – o soberano, ou seus delegados – do que devia ser reputado um delito.


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Assim se impunha porque a definição das condutas puníveis se situava ao talante daquele que exercia o poder, seja por delegação do monarca, seja da nobreza. Vigorava, desse modo, clima de insegurança total sobre o que se deveria ou não considerar infração penal. À luz desse quadro, é que Beccaria13 susteve que, para o fim de evitar o despotismo, apenas as leis podem indicar as penas de cada delito, bem assim de que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão do legislador, o qual representa a sociedade. Por essa razão, aduz o autor que o magistrado, na condição de integrante da sociedade, não poderia aplicar a um partícipe desta uma pena que não esteja estabelecida em lei, porquanto, à medida que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aplica um castigo que não se encontra prefixado. Assim, somente o soberano – posteriormente às revoluções liberais, o legislador parlamentar –, na qualidade de representante da coletividade, pode fazer leis gerais, às quais todos devem obediência. Também crítico mordaz do direito penal praticado na Europa do Antigo Regime, Voltaire14 noticiou que, mesmo a França não possuindo lei expressa contra o incesto, alguns tribunais, baseados unicamente em sua autoridade, puniram-no com a pena de morte. Por isso, realça a superioridade da ciência jurídica inglesa, a qual puniria qualquer juiz que viesse a infligir uma pena não prevista em lei. Remata, de forma semelhante, expondo, na mesma página, incumbir “à sabedoria dos governantes ditar as leis, tornar proporcional cada pena a cada delito e refrear réus e juízes”. Daí que, ainda às voltas com o direito penal, não se pode deixar de assentar que ostenta a legalidade, na sua essência, não somente a exigência de que, para incriminar-se, haja lei anterior definindo um fato como crime, mas, como bem adverte Celso Delmanto15, afigura-se indispensável a taxatividade, ou seja, que as leis que definam crimes sejam precisas, delimitando

13   Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus Editora, 1983, p. 15-16. Versão para o português por Torrieri Guimarães. 14   O preço da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 70. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 15   Código Penal comentado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 4.


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exatamente a conduta que objetivam punir, não podendo, assim, ser aceitas leis vagas ou imprecisas. Tanto é assim que Everardo da Cunha Luna, a propósito da conservação do princípio da legalidade, alertou: “O maior perigo atual, porém, para o dogma da reserva legal, não é o sociologismo, inimigo declarado da lei; também não é a analogia, nem a sentença normativa, que pretendem partilhar, com a lei, aquilo que legitimamente só à lei pertence. O maior perigo atual para o princípio da legalidade, em virtude da forma com que se apresenta, são os chamados tipos penais abertos ou amplos, para os quais o direito consuetudinário não tem força restritiva. Aqui, o dogma da reserva legal é aparentemente mantido, porque a lei, em vez de falar, concede a palavra para quem dela quiser, ou melhor, puder fazer uso”.16 Colhe-se, num volver de olhos à jurisprudência estrangeira, precedente elucidativo na STC 194/200017, emanado do Tribunal Constitucional hispânico, onde se compreendeu, a partir do princípio da legalidade, consagrado pelo art. 25 da Constituição de 1978, que a Disposição adicional quarta da Ley 08, de 13 de abril de 1989, relativa à disciplina de taxas e preços públicos, portaria incompatibilidade vertical. Para tanto, foi relevante o raciocínio consoante o qual se acha o legislador obrigado, quando do delinear dos contornos dos tipos penais, a levar a cabo uma descrição das condutas constitutivas do delito que cumpra as exigências do princípio da segurança jurídica. Tal exigência, conforme se extrai da fundamentação do voto do relator, Don Carles Viver Pisunyer, somente é satisfeita quando há possibilidade de se predizer, com grau suficiente de certeza, as condutas que constituem in-

16   Capítulos de Direito Penal – parte geral. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 33. 17   A íntegra do julgado pode ser objeto de consulta no endereço eletrônico: http:// hj.tribunalconstitucional.es.


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fração e o tipo e grau das correspondentes sanções.18 Segue-se, então, a necessidade imperiosa de preservar-se, mediante o legislador, a segurança jurídica, a qual se faz presente, na atualidade, igualmente com relação à definição do que deva ser considerado como ato de improbidade administrativa. Um aspecto que evoca atenção para esse fim – não é exagero relembrar – é a incontestável natureza punitiva dos efeitos que a improbidade é capaz de acarretar para o agente público ou terceiro, bem como a singularidade de que, a exemplo do sucedido com o direito criminal, aqueles são aplicados pelo Judiciário – e não pela Administração – o qual lhes dota da condição de definitivos e não de meramente executórios19. Isso contribui, com maior razão, para tornar imperativa a observância do princípio da legalidade, o qual – vale frisar – não se esgota na descrição de uma conduta em lei, mas, acima de tudo, que a lei, de forma precisa, objetive qual o fato a ser punido. Não é por outro motivo que galvaniza atenção, dentro do arcabouço típico dos atos de improbidade, o art. 11, caput, da Lei 8.429/92, ao principiar considerando violador dos princípios da Administração Pública qualquer ato ou omissão que afronte os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Pelo texto legal, reforçado com o emprego do pronome indefinido qualquer, tem-se que toda decisão administrativa que atentasse contra um dispositivo de lei – ou mesmo de natureza regulamentar – poderia ser, necessariamente, ímproba. A denegação de um direito subjetivo, como um benefício previdenciário, a menor incapaz ou idoso, qualificar-se-ia, em tese, como ato de improbidade. Do mesmo modo, o lançamento tributário indevido, ou a denegação de uma vantagem funcional.

18   Em recente escrito (Seguridad jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 55, p. 14), Fernando Sainz Moreno deixa evidente, a partir do julgamento alvo de referência, que no âmbito sancionador – expressão que, obviamente, pode -se ver como endereçada às esferas criminal e administrativa – a segurança jurídica requer uma clareza e precisão da norma definidora das condutas e das sanções. 19   De fato, a apuração de improbidade administrativa visa, indiscutivelmente, sancionar comportamento contrário ao sistema jurídico administrativo, mas com uma peculiaridade que a faz se distanciar da simples competência disciplinar, consistente na sua verificação pelo Judiciário e não pela Administração. A decisão, portanto, faz coisa julgada, a evidenciar que a natureza punitiva de que se reveste a ação de improbidade administrativa possui maior gravidade do que a advinda do procedimento administrativo disciplinar, tendo em vista que as conclusões deste estão sujeitas à revisão judicial.


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Poder-se-ia objetar, para o escopo de se evitar exageros, que, no que concerne ao princípio da legalidade, somente seriam ímprobas as condutas que fossem apontadas como um grave atentado à legalidade. Penso que não é a melhor solução, uma vez que a definição da matéria estaria, afinal, submetida ao juízo, excessivamente subjetivo, do aplicador do direito, magistrado ou não, ao qual seria conferido, no exercício de sua competência, um verdadeiro “cheque em branco”. Da mesma forma – e com maior perigo – seria definir o que deverá consistir em violação à honestidade, à imparcialidade e à lealdade às instituições, pois aqui nos encontramos no plano dos conceitos indeterminados e, por isso, insuscetíveis de figurarem como integrantes de um tipo punitivo, pena de risco à segurança jurídica. Tais noções, em função do seu caráter plurissignificativo, não se submetem, para fins de sua caracterização, a uma delimitação objetiva prédefinida, conforme se espera do tipo de uma conduta de cujo enquadramento habilita o Estado a exercitar sua competência punitiva. À guisa de exemplo, para um seguidor de determinada religião, o fato de um servidor público, durante o intervalo para refeição, fazer o acompanhamento desta mediante uma ou, no máximo, duas taças de vinho tinto, poderá representar um ato que atente contra a lealdade institucional, enquanto para um agnóstico tal poderá configurar um ato aprazível, capaz de gerar felicidade, e, portanto, motivador para um labor mais operante. A admissão generalizada, e desprovida de parâmetros precisos, de atos de improbidade, aliada a um denuncismo exacerbado, poderá conduzir – ou melhor, conduzirá – à implantação do reino da improbidade, em que a grande maioria das condutas dos administradores (e aqui me refiro aos probos) seria sancionada por pelo color de sua reprovabilidade, inibindo a dinâmica que deve pautar a função administrativa. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não é demasiado salientar que esse entendimento se impõe em decorrência da circunstância revelada seja pela doutrina tradicional seja pela mais recente 20 20   Nesse diapasão, Merkl (Teoría general del derecho administrativo. Editorial Comares: Granada, 2007, p. 348) deixou claro que a diferença conceitual entre o direito penal administrativo e o direito penal criminal reside unicamente na competência do segmento estatal incumbido de aplicar as correspondentes sanções, quais sejam o Judiciário ou a Administração. Recentemente, essa percepção advém de José María Quirós Lobo (Principios de derecho sancionador. Editorial Comares: Granada, 1996, p. 25-28), a partir do exame da jurisprudência do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional espanhol.


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de que o direito de punir, confiado pela ordem jurídica ao Estado, além de uno, não abrange somente as ações reputadas como crimes ou delitos. Engloba, indiscutivelmente, as infrações ao segmento normativo que disciplina o liame entre a Administração e os administrados. Disso decorre, inelutavelmente, que, a exemplo do direito criminal, no âmbito do direito administrativo é irrecusável a aplicação do princípio da legalidade. E tal se opera em toda a sua essência. Esse ponto foi objeto de reconhecimento legislativo. Bem o explicita é a Ley 30, de 27 de novembro de 1992, a qual, em dispondo sobre o Regimento Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum, limita a competência sancionadora da Administração hispânica não somente ao princípio da legalidade, mas com o acréscimo do adorno do princípio da tipicidade. A exposição de motivos de tal diploma legal foi enfática ao justificar tal tutela21. Atento a tal reclamo, Rafael Valim22 mostra que, em matéria de sanções

21   Isso é possível observar do item XIV da mencionada exposição de motivos: “O título IX regula os princípios básicos a que deve se submeter o exercício da competência sancionadora da Administração e os correspondentes direitos que de tais princípios se derivam para os cidadãos, extraídos do texto constitucional e da já consolidada jurisprudência sobre a matéria. Efetivamente, a Constituição, em seu artigo 25, trata conjuntamente os ilícitos penais e administrativos, evidenciando a vontade de que ambos se sujeitem a princípios de básica identidade, especialmente quando o campo de atuação do direito administrativo sancionador foi recolhendo tipos de injusto procedentes do campo penal, não subsistentes no mesmo por força do princípio de mínima intervenção. Entre tais princípios destaca o da legalidade ou <<ratio democrático>> em virtude do qual é o poder legislativo o que deve fixar os limites da atividade sancionadora da Administração, e o da tipicidade, manifestação neste âmbito daquele da segurança jurídica, junto aos de presunção de inocência, informação, defesa, responsabilidade, proporcionalidade, interdição da analogia, etc”. (El título IX regula los principios básicos a que debe someterse el ejercicio de la potestad sancionadora de la Administración y los correspondientes derechos que de tales principios se derivan para los ciudadanos extraídos del texto constitucional y de la ya consolidada jurisprudencia sobre la materia. Efectivamente, la Constitución, en su artículo 25, trata conjuntamente los ilícitos penales y administrativos, poniendo de manifiesto la voluntad de que ambos se sujeten a principios de básica identidad, especialmente cuando el campo de actuación del derecho administrativo sancionador ha ido recogiendo tipos de injusto procedentes del campo penal no subsistentes en el mismo en aras al principio de mínima intervención. Entre tales principios destaca el de legalidad o «ratio democrático» en virtud del cual es el poder legislativo el que debe fijar los límites de la actividad sancionadora de la Administración y el de tipicidad, manifestación en este ámbito del de seguridad jurídica, junto a los de presunción de inocencia, información, defensa, responsabilidad, proporcionalidad, interdicción de la analogía, etc. Disponível em noticias.jurídicas.com/base_datos/Admin/130-1992.html. Acesso em: 19-06-2013). 22   O princípio da segurança jurídica nodireito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010.


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administrativas, a densidade das normas legais assume importância transcendente, por força do princípio da tipicidade, impondo-se a delimitação suficientemente objetiva da infração e da sanção a ela correspondente. Do contrário, haverá a subtração do cidadão tanto da possibilidade de evitar a reprimenda quanto da de controlar a atividade administrativa punitiva. Não quero com a argumentação ora desenvolvida sustentar a inconstitucionalidade do art. 11 da Lei 8.429/92. Absolutamente. Sou apenas de que esse dispositivo necessita de um ajuste interpretativo, a partir de seu cotejo com os valores superiores do sistema jurídico, entre os quais a legalidade e a segurança jurídica. No meu sentir, em versando a matéria discutida sobre a improbidade desafiadora dos princípios da Administração Pública, a definição típica do ato punível não pode se exaurir unicamente no caput do preceito legal, pois, do contrário, geraria situações de forte incompatibilidade com a segurança jurídica e a legalidade. Portanto, a tipificação nesses casos não dispensa a integração com alguma das situações descritas nos incisos I a VII do art. 11 da Lei 8.429/9223, as quais, sem sombra de dúvida, configuram maltrato aos deveres os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.24 A conclusão se vê reforçada quando se constata que o direito brasileiro acolhe, em várias referências na Norma Ápice, tanto o princípio da legalidade (art. 5º, II, e art. 37, caput) quanto o inerente à segurança jurídica (Preâmbulo, art. 5º, caput, XXXVI e XL, e art. 150, III, alíneas a a c). Ademais, esse conteúdo mínimo do princípio da legalidade, a implicar a sua compulsória harmonização com a segurança jurídica, é inarredável

23   Interessante a transcrição apenas de tais incisos do art. 11 da Lei 8.429, a saber: “I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV - negar publicidade aos atos oficiais; V - frustrar a licitude de concurso público; VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço”. 24   Esse pensar foi sufragado em alguns julgados (TRF-5ª Reg., 4ª Turma, v.u., AC 528187 – SE, rel. Des. Fed. Edilson Nobre, DJe de 08-11-2012; TRF – 5ª Reg., 4ª Turma, v.u., AC 484128 – PB, rel. Des. Fed. Edilson Nobre, DJe de 31-10-2012).


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quando se tem que os direitos fundamentais, no Estado Constitucional, não podem ser encarados sem a reminiscência das circunstâncias históricas que os motivaram, o que é justificável porque os fatos de hoje apresentam, na sua essência, as mesmas notas características daqueles de outrora, embora manifestados sob um rótulo diverso. Outra não poderia ser a solução a ser seguida, pois assim o impõe o passado que fez originar consagração da legalidade e da segurança jurídica no campo punitivo. Não se pode desprezar Gustavo Zagrebelsky25, ao suster que, numa constituição baseada em princípios – como é o caso da promulgada em 05 de outubro de 1988 –, a interpretação haverá de ser um ato que relacione um passado constitucional, assumido como um valor, com um futuro que se nos oferece como problema para resolver. As constituições da atualidade – diz o mestre peninsular – projetam o futuro tendo firme o passado, isto é, o patrimônio de experiência histórico-constitucional que pretende salvaguardar e fortalecer. Não se desconhece, com o ponto de vista aqui exposto, a necessidade de reprimir posturas que destoam do padrão de conduta esperado pela sociedade dos agentes públicos. Contudo, tal anelo longe está de respaldar a atuação do direito de punir do Estado fora dos direitos e garantias fundamentais. E, nesse ponto, segue-se que a missão do aplicador da lei está em assegurar que a incidência desta seja realizada em harmonia com os valores basilares do ordenamento jurídico. Referências bibliográficas BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus Editora, 1983. Versão para o português por Torrieri Guimarães. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed. 2ª Reimpressão. Coimbra: Livraria Almedina, 1992. DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia y seguridad jurídica en un mundo 25   Historia y constitución. 2ª ed. Madri: Editorial Trotta, 2011, p. 90-91.


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de leys desbocadas. Madri: Civitas, 2000. ENTERRÍA, Eduardo García. La interdiccion de la arbitrariedade en la potestad reglamentaria. Revista de Administración pública, nº 30, setembro/ dezembro de 1959. FERNANDÉZ, José Luis Palma. La seguridad jurídica ante la abundancia de normas. Madri: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1997. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. LOBO, José María Quirós. Principios de derecho sancionador. Editorial Comares: Granada, 1996. LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de direito penal – parte geral. São Paulo: Saraiva, 1985. MERKL, Adolfo. Teoría general del derecho administrativo. Editorial Comares: Granada, 2007. MORENO, Fernando Sainz. Seguridad jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 55. NIVAR, Carole. L’ambivalence du traitement jurisprudentiel de la sécurité juridique. Droit administratif: Les revues JurisClasseur, nº 2, ano 49, fevereiro de 2010. VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. VOLTAIRE. O preço da justiça. São Paulo; Martins Fontes, 2006. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. ZAGREBELSKI, Gustavo. Historia y constitución. 2ª ed. Madri: Editorial Trotta, 2011.



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O princípio constitucional da precaução: origem, conceito e análise da crítica

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Gabriel Wedy Juiz Federal, Doutorando e Mestre em Direito pela PUC/RS. Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil [AJUFE].

Resumo: O artigo trata do princípio da precaução e de suas fontes legislativas no plano nacional e internacional. No texto, também é abordada, de modo independente, a crítica doutrinária elaborada ao princípio com a análise de exemplos práticos. Sumário: Introdução. 1. O princípio da precaução no plano legislativo internacional. 2. O princípio da precaução na Constituição Federal de 1988 e no plano infraconstitucional. 3. Conceito do princípio da precaução. 4. Análise crítica do princípio da precaução. Conclusão. Referências bibliográficas. Palavras-chave: Princípio- Precaução - Direito - Ambiental - Risco Abstract: this article is concerned whith the precautionary constitutional principle. This study was made about precautionary principle historic evolution in legislative aspects. Controversial points of the principle were faced while dealin whith real cases and supported by National and foreign doctrines.

Introdução O objetivo do presente artigo é analisar as fontes legislativas do princípio constitucional da precaução no plano internacional e nacional, constitucional e infraconstitucional. No mesmo sentido, se fará uma delimitação do conceito do princípio da precaução levando em consideração, além da doutrina, aspectos práticos de sua implementação pelos três Poderes do Estado. Do mesmo modo , se fará uma análise, independentemente da crítica que é elaborada em sede doutrinária ao princípio da precaução para o teste e ve-


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rificação de sua procedência sob a ótica dos direitos fundamentais. Também será feita uma avaliação de eventuais excessos ou insuficiências na prática de aplicação do princípio da precaução dentro de uma análise de custo-benefício. 1. O princípio da precaução no plano legislativo Internacional Por um enfoque formal, como refere Sadeleer, no momento em que um princípio é enunciado por um tratado ou uma convenção internacional, deve adquirir o valor normativo que é fixado por seus instrumentos. De acordo com um enfoque material, por outro lado, convém verificar, caso a caso, se os termos empregados para descrever o princípio são suficientemente cogentes para decidir se é passível de ser aplicado diretamente no que diz respeito aos Estados, sem o intermédio de eventuais normas de execução.1 Por seu turno, Silva refere que textos como a Rio/92 constituem “a chamada soft law ou soft norm (declarações de código de conduta etc.), que representam um instrumento precursor da adoção de regras jurídicas obrigatórias” e, desse modo, “estabelecem princípios diretores da ordem jurídica internacional que adquirem com o tempo a força de costume internacional, ou ainda propugnam pela adoção de princípios diretores, no ordenamento jurídico dos estados”.2 No plano legislativo internacional, o princípio da precaução encontra a sua justificação inicial em um conjunto de diplomas legais, que embora não o definam exatamente, enfocam um conceito de precaução. A Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas, de 1948, dispõe em seu art. 3° que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. O direito à vida e à segurança pessoal estão relacionado com um dever do Estado de proteger a vida dos seres humanos e a sua incolumidade física. O Estado, nesse caso, é o destinatário da norma que tutela um direito funda1   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 47-74. 2   SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.75-92.


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mental de primeira geração. Os indivíduos, todavia, também estão obrigados a respeitar a vida e a segurança pessoal dos seus semelhantes e, tal qual o Estado, têm o dever de precaução e de não violação desses direitos fundamentais. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, datado de 1966, já se preocupava com a vida humana e sua preservação pela sociedade e pelo Estado.3 O respeito, no plano internacional, à vida do ser humano e à integridade da família, a ser observado por toda sociedade e pelo Estado, deve estar presente no momento em que a iniciativa privada realiza, e o Estado autoriza, empreendimentos potencialmente lesivos. O respeito a este direito de proteção à vida humana e à família deve ser observado, principalmente nas economias planificadas, quando o Estado assume diretamente atividades empreendedoras, seja diretamente, por ele próprio e por suas autarquias, seja indiretamente, pelas empresas públicas ou privadas concessionárias e permissionárias. Também é importante diploma legal no plano internacional a Declaração de Estocolmo, de 1972, sobre o Meio Ambiente Humano.4 Na Alemanha, o gesto positivo da Administração Pública mais característico da implantação

3   Art. 6. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. Art. 23. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e terá o direito a ser protegida pela sociedade e pelo Estado. BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. 4   Art. 2. A proteção e o melhoramento do meio ambiente humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar do homem e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro, um desejo urgente dos povos de todo o mundo e de todos os governos. Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de coisas da vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida saudável e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a desagregação social, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas. [...] Princípio 6 - Deve-se pôr fim à descarga de substâncias tóxicas ou de outros materiais que gerem calor, em quantidades ou concentrações tais que o meio ambiente não possa neutralizá-los, de forma que não causem danos graves e irreparáveis aos ecossistemas. Deve-se apoiar a justa luta dos povos de todos os países contra a poluição. Princípio 7 - Os Estados deverão tomar todas as medidas possíveis para impedir a poluição do mar por substâncias que possam pôr em perigo a saúde do homem, os recursos vivos e a vida marinha sem menosprezar as possibilidades de derramamento ou impedir outras utilizações ilegítimas do mar. Disponível em: <http://www.greenpeace.org.br/toxicos/?conteudo_id=1183&sub_campanha=0-27k>.Acesso em: 20 fev.2008.


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do princípio da precaução foi o Ato do Ar Limpo, de 1974. Nesse ato, estipula-se que o possuidor de uma planta técnica é obrigado a tomar medidas de precaução, para evitar o dano ambiental, com a ajuda de instrumentos ou mecanismos que correspondam às técnicas avançadas disponíveis para a limitação da emissão de poluentes.5 Em 1976, a Convenção de Barcelona, sobre a proteção do mar marinho do nordeste do Atlântico, previu que “as partes apliquem o princípio da precaução”. No ano de 1979, o princípio foi consagrado a fim de combater a poluição atmosférica na Convenção sobre Poluição Atmosférica de Longa Distância, realizada em Genebra, pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa. Sadeleer refere que “o segundo protocolo dessa convenção reconhece explicitamente o princípio da precaução”.6 No ano de 1982, o princípio da precaução restou expresso na Comunidade Europeia pela Carta Mundial da Natureza, no sentido de que “as atividades que podem trazer um risco significativo à natureza não deveriam continuar quando os efeitos adversos e potenciais não são completamente compreendidos”.7 A Convenção de Viena, de 1985, e o Protocolo de Montreal, em 1987, referem que “devem ser adotadas medidas de precaução quando da emissão de poluentes que possam afetar a camada de ozônio”.8 Em 1987, a Comissão Brundtland divulgou relatório denominado “Nosso Futuro Comum” e conceituou a base do desenvolvimento sustentável como sendo “[...] a capacidade de satisfazer as necessidades do presente, sem comprometer os estoques ambientais para as futuras gerações”. Posteriormente,

5   HEY, Elen. The precautionary concept in environmental policy and law: Institutionalizing caution. Georgetown International Enmviromental Law Review. Washington, n. 4, p. 303-12, 1992. 6   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.53. 7   Organização das Nações Unidas. Resolução n. 37/7 de 28 out. 1986. Segundo Sunstein “In the 1982, the United Nations World Charter for Nature apparently gave the first international recognition to the principle, suggesting that when potential adverse effects are not fully understood, the activities should not proceed”. SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 17. 8   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 53.


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pode-se registrar a Declaração Ministerial da Segunda Conferência do Mar do Norte (London Declaration, 1987). No art. 7° da referida Conferência, consta que, de modo a proteger o Mar do Norte de efeitos possivelmente danosos das substâncias mais perigosas, é necessária uma abordagem precautória, “o que pode requerer o controle da entrada de tais substâncias mesmo antes de uma relação causal ter sido estabelecida por evidências científicas absolutamente claras”.9 O princípio da precaução também foi previsto na Conferência Internacional do Conselho Nórdico sobre Poluição dos Mares, no ano de 1989, e deve ser aplicado para salvaguardar o ecossistema marinho mediante a eliminação e a prevenção de emissões de poluição, quando houver razão para acreditar que os danos ou efeitos prejudiciais sejam prováveis de serem causados, mesmo que haja evidência científica inadequada ou inconclusiva, para provar uma relação causal entre emissões e efeitos nocivos.10 Ainda, em 1989, o princípio foi consagrado pelo Conselho Executivo das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).11 O princípio foi reconhecido em Addis-Abeba, em 1990, pelo Conselho dos Ministros da Organização da Unidade Africana (OUA) e, também, pela Comissão Econômica e Social para a Ásia e Pacífico (ESCAP)12 e pelo Conselho dos Ministros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Neste ano, se pode citar a Convenção de Londres sobre a poluição causada por hidrocarburetos.13 A Declaração Ministerial de Bergen sobre o Desenvolvimento Sustentável da Região da Comunidade

9   Disponível em: <http://www.dep.no/md/nsc/declaration/022001-990245/index-dok000-b-na.html>. Acesso em: 7 nov. 2006. Disponível também em: <http://www.dep.no/md/nsc/ declaration/022001-990245/index-dok000-b-na.html>. Acesso em: 7 nov. 2006. 10   White paper on the precautionary approach to safety American Plastics Council. Disponível em: <http://www.plasticsinfo.org/riskassessment/white_paper.html#1f>. Acesso em: 2 abr. 2006. 11   Organização das Nações Unidas. Programa das Nações Unidas pelo Meio Ambiente. Decisão do Conselho Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente 15/27, 1989. Esse documento trata sobre abordagem de precaução em matéria de poluição marinha. Disponível em: <http://www.sia.cv/documentos/perfil_ccd.pdf> . Acesso em: 20 fev.2006. 12   Declaração de Bangcoc de 1990 sobre o meio ambiente e desenvolvimento sustentável na Ásia e Pacífico 13   Segunda consideração da Convenção de Londres.


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Europeia (1990) foi o primeiro instrumento internacional que considerou o princípio como de aplicação geral, ligado ao desenvolvimento sustentável. Nestes termos: A fim de obter o desenvolvimento sustentável, as políticas devem ser baseadas no princípio da precaução. Medidas ambientais devem antecipar, impedir e atacar as causas de degradação ambiental. Onde existirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de total certeza científica não deve ser usada como razão para retardar a tomada de medidas que visam a impedir a degradação ambiental.14 O princípio da precaução também veio definido na Convenção de Bamako, de 1991, para controle do transporte e do manejo de resíduos perigosos na África. Consequentemente, cada grupo deve se esforçar para adotar e implementar a abordagem preventiva e precautória para os problemas de poluição que implica, inter alia, prevenir a liberação no meio ambiente de substâncias que podem causar danos a seres humanos ou ao ambiente, sem esperar por provas científicas sobre esses danos.15 O princípio da precaução, tal como é entendido hoje, tem como marco no Direito Ambiental a Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a chamada Rio/92. O princípio 15 dessa ficou estabelecido de maneira a afastar aquela máxima utilizada pelos grandes grupos empresariais de que os fatos e as atividades que não forem cabalmente demonstrados como nocivos ao meio ambiente devem ser permitidos. Está previsto no princípio 15 que: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pe14   NORUEGA. Declaração Ministerial BERGEN. Declaração Ministerial de Bergen sobre o Desenvolvimento Sustentável da Região da Comunidade Européia. parágrafo 7; I.P.E. 16 de maio de 1990. 15   Disponível em: <http://www.ban.org/Library/bamako_treaty.html>. Acesso em: 5 set. 2006.


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Revista da Ajufe los Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.16

A Declaração da Rio/ 92 é citada como a mais importante expressão legislativa do princípio da precaução no artigo “The Precautinary Principle in Action”, de autoria de Tikner, Raffensperger e Myers.17 Como referido por Sadeleer, o princípio da precaução, tal como conceituado na Declaração da Rio/92, foi consagrado como princípio de direito consuetudinário pela Corte Internacional de Justiça no caso Gabcikovo – Nagymaros.18 No ano de 1992, a inda ocorreu a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, em Nova York, em que foi acordado, no art. 3°, que os países signatários deveriam adotar “medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas de mudanças climáticas quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis” e que “a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas”, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível.19 Nesse ano de 1992, também se pode mencionar, entre os documentos in-

16   Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconfl5126-1 annex1.htm>. Acesso em 2 de março de 2006 17   One of the most important expressions of the precautionary principle internationally is the Rio Declaration from the 1992 United Nations Conference on Environment and Development, also known as Agenda 21. The declaration stated: “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according to their capatibilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation”. Disponível em: <http://www.biotech-info.net/handbook.pdf>. Acesso em: 20 fev.2008. 18   SADELEER de, Nicolas. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.47. 19   Disponível em: <http://www.mct.gov.br/clima/convenção/texto3.htm.>. Acesso em: 5 jun. 2006.


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ternacionais que previram expressamente o princípio da precaução: a Convenção de Paris sobre a proteção do meio ambiente marinho do Atlântico;20 a Convenção de Helsinque sobre a proteção e a utilização de cursos de água transfronteiriços e de lagos internacionais e a Convenção de Helsinque sobre a proteção do meio marinho na zona do Mar Báltico.21 Em 1994, o Protocolo de Oslo, na Convenção sobre a poluição atmosférica de longa distância, relativo a uma nova redução de emissões de enxofre, trouxe em seu preâmbulo o princípio da precaução. No mesmo ano, é possível citar a Convenção de Sofia, sobre a Cooperação para a proteção sustentável do Rio Danúbio que fez constar em seu texto o princípio da precaução.22 E, no mesmo sentido: a Convenção CITES de Forte Lauderdale;23 a Convenção de Charleville-Mezière, sobre a proteção do rio Escaut e do rio Meuse24 e a Convenção sobre Conservação e Gestão dos Recursos de Bering que, embasada no princípio da precaução, decidiu que “os Estados-parte se encontrarão anualmente para decidir os níveis de pesca permissíveis e estabelecer quotas”.25 No ano de 1995, o princípio da precaução também constou no Protocolo de Barcelona.26 Sadeleer refere que “o Protocolo Adicional de Montreal foi emendado várias vezes para, numa preocupação de precaução, suprimir totalmente o uso de gases CFC, em 1995”.27 Nesse ano, realizou-se o Tratado

20   Artigo ponto 2, a. 21   Artigo 3, alínea 2. 22   Artigo 2.4. 23   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.54. 24   Artigos 2, a e 3,2 a. 25   A esse respeito, ver: FREESTONE, D. e MAKUCH, Z. The New International Environmental Law of Fisheries: The 1995 United Nations Straddling Stocks Agreement. Yearbook of International Environmental Law, v. 7, p. 30, 1996. 26   Preâmbulo do Protocolo de Barcelona. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31999D0800:PT:NOT>. Acesso em: 20 fev. 2008 27   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo


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de Haia, acerca da Convenção sobre Pássaros Aquáticos e Migratórios Africanos, em que o princípio também foi previsto.28 O Tratado de Maastricht emendou o art. 130 r (2) do Tratado da Comunidade Europeia, de modo que a ação da Comunidade, no meio ambiente, fosse “baseada no princípio da precaução”, e o Tratado de Amsterdã, de 1997, posteriormente, emendou o Tratado da Comunidade Europeia para aplicar o princípio à política da Comunidade no meio ambiente. A Comissão Europeia publicou um comunicado sobre o princípio da precaução que resume o enfoque da Comissão a respeito do uso do princípio, estabelece normas de procedimento para sua aplicação e tem como propósito desenvolver a compreensão sobre levantamentos, avaliação e manejo de risco quando não há certeza científica.29 No mesmo sentido, a Declaração de Wingspread, de 1998, nos Estados Unidos da América, consagrou o princípio da precaução.30 Essa Declaração31 definiu o princípio da precaução nos seguintes termos: Portanto, faz-se necessário implantar o Princípio da Precaução quando uma atividade representa ameaças de danos à saúde humana ou ao meio ambiente, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo se as relações de causa e efeito não forem plenamente esta-

Horizonte: Del Rey, 2004, p.53. 28   Art. 2, alínea 2, e) Tratado de Haia. 29   SANDS, Philippe. O princípio da precaução. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.35. Ver também: COM (1), 2 de fevereiro de 2000. Disponível em: <http://www.Europa.eu.int/comm/dgs/ health_consumer/library/pub/pub07_en.pdf>. Acesso em: 20 de fev. 2008. 30   “When an activity raises threats of harm to human health or the environment, precautionary measures should be taken even if some cause-and-effect relationships are not fully established scientifically.” Disponível em: <http://www.fgaia.org.br/texts/t-precau.html>. Acesso em: 20 de fev. 2008. 31   Segundo Cezar e Abrantes, a Declaração de Wingspread comporta quatro elementos: I ameaça de dano; II - inversão do ônus da prova; III- incerteza científica e IV- medidas de precaução. CEZAR, Frederico Gonçalves; ABRANTES, Paulo César Coelho. Princípio da precaução: considerações epistemológicas sobre o princípio e sua relação com o processo de análise de risco. Cadernos de Ciência e Tecnologia, v. 20, n.2, Brasília, p. 225-62, mai.-ago. 2003.


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233 belecidas cientificamente [...]. Neste contexto, ao proponente de uma atividade, e não ao público, deve caber o ônus da prova [...]. O processo de aplicação do Princípio da Precaução deve ser aberto, informado e democrático, com a participação das partes potencialmente afetadas. Deve também promover um exame de todo o espectro de alternativas, inclusive a da não-ação.32

Esse texto traz uma importante característica do princípio da precaução ao determinar que ao proponente da atividade potencialmente lesiva é que cabe o ônus de provar que sua atividade não causará danos ao meio ambiente. Traz, ainda, a necessidade de participação democrática e informada no processo de aplicação do princípio da precaução. Com efeito, o ônus da prova deve caber sempre a quem propõe a atividade de risco que, na maioria das vezes, é quem obtém benefícios pecuniários decorrentes da implementação dessa atividade em detrimento da coletividade. A informação da coletividade acerca da atividade de risco e a possibilidade de sua participação na gestão dos riscos é fundamental para que danos possam ser evitados e a atividade proposta seja executada com maior grau de segurança.33 Em 1998, foi celebrada na Comunidade Europeia a “Convenção sobre a proteção do ambiente marinho no nordeste do Atlântico” (OSPAR). De acordo com Rocha, diferentemente da Declaração do Rio, a OSPAR não exige a ameaça de dano grave e irreversível. Segundo o referido autor, enquanto a Declaração do Rio faz referência à ausência de certeza científica, a definição adotada na OSPAR centra-se na ausência de evidência conclusiva sobre a relação de causalidade. Assim, os requisitos para a aplicação do princípio da precaução no âmbito europeu parecem menos restritivos do que aqueles enunciados na Rio/92. Nesse ano, ainda, o princípio da precaução constou 32   Disponível em <http://www.acpo.org.br/princ_precaucao.htm>. Acesso em: 20 fev. 2008. 33   A respeito da relação da quantidade de informação suficiente para o exercício seguro do princípio da precaução. DURNIL, Gordon K. How Much Information Do We Need Before Exercising Precaution? In: RAFFENSPERGER Carolyn; TICKNER, Joel (orgs.). Protecting public health and the environment: implementing the precautionary principle. Washington: Island Press, 1999, p. 266-76.


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na Convenção de Roterdã, sobre a proteção do rio Reno.34 Em 1999, o princípio da precaução veio previsto no art. 10 do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança.35 No ano 2000, foi realizada a Convenção sobre Diversidade Biológica no Brasil, restando assente que, “quando existir ameaça de sensível redução ou perda da diversidade biológica, a falta de certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa atividade”.36 No ano de 2004, passou a vigorar a “Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes”, em que ficou estabelecido, já em seu artigo 1°, que a ideia de precaução é o fundamento das preocupações de todos os países participantes no intuito de proteger a saúde humana e o meio ambiente dos poluentes orgânicos persistentes. O princípio da precaução vem previsto, também, no art.5° da La Charte de L’Environment, redigida na França, no ano de 2005.37 Observa-se que, nessas declarações, tratados e convenções, restou bem delimitado que a incerteza científica é motivo para a aplicação do princípio da precaução sempre que a atividade a ser exercida puder gerar riscos de danos à saúde pública e ao meio ambiente. Infere-se, portanto, que o princípio está voltado para a sua aplicação, no plano internacional, na área da proteção à saúde e ao meio ambiente que são sempre sensíveis à ação humana e quando atingidos levam a consequências graves que ferem interesses coletivos, individuais e individuais homogêneos38, que não estão 34   Artigo 4° da Convenção de Roterdã. 35   ROCHA, João Carlos de Oliveira. Os organismos geneticamente modificados e a proteção constitucional do meio ambiente. Porto Alegre: PUCRS, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007, p. 194 36   Convenção sobre diversidade ecológica, 2000, Brasília. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/doc/cdbport.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2006 37   Art.5°. Lorsque la réalisation d’un dommage, bien qu’incertaine en l’état des connaissances scientifiques, pourrait affecter de manière grave et irréversible l’environnement, les autorités publiques veillent, par application du principe de précaution et dans leurs domaines d’attribution, à la mise en œuvre de procédures d’évaluation des risques et à l’adoption de mesures provisoires et proportionnées afin de parer à la realization du dommage. Disponível em: <http://www.yonne.lautre.net/article.php3?id_article=2375>. Acesso em: 20 fev. 2008. 38   Acerca do conceito e distinção entre direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, v. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva


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limitados às fronteiras nacionais.39 A importância de se antecipar ao dano, evitando as suas consequências, muitas vezes irreversíveis, foi bem percebida pela comunidade internacional e traduzida nos referidos documentos que consagram o princípio da precaução. Um exemplo claro é que o princípio da precaução foi eleito pela New York Times Magazine, como uma das ideias mais importantes de 2001.40 Beck, por sua vez, refere que os problemas do meio ambiente somente poderão resolver-se mediante discussões e acordos internacionais, e o caminho que leva a isso são as reuniões e pactos entre as nações.41 Nesse sentido, de precaver-se contra o risco de dano ao meio ambiente e à saúde pública, mediante a adoção do princípio da precaução, é que está posicionada firmemente a comunidade internacional. 2. O princípio da precaução na constituição federal de 1988 e no plano infraconstitucional Na Constituição Federal de 1988, não existe uma disposição explícita acerca do princípio da precaução, até mesmo em face do precário desenvolvimento doutrinário do princípio, em nosso país, naquela época. Todavia pode-se extrair o referido princípio pela interpretação do texto constitucional, principalmente quando se observa no Poder Constituinte Originário a intenção de proteger a saúde pública e o meio ambiente de eventuais danos e de impedir a violação dos direitos da criança e do adolescente. A Carta Magna prevê, em seu art. 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, “garantido mediante políticas sociais que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 39   A respeito do tema, ver: PASSOS DE FREITAS, Vladimir. Mercosul e meio ambiente. In: PASSOS DE FREITAS, Vladimir (org). Direito Ambiental em evolução. Curitiba: Juruá, 2002, p.357-67. v.3. 40   POLLAN, Michael. TheYear in Ideas: A to Z. New York Times, Nova York, dez. 2001. dez. 2001. 41   BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Surcos, 2006, p. 67.


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Tendo o Estado e a sociedade que assegurar a todos os indivíduos o direito à saúde, mediante a redução dos riscos de doença, o princípio da precaução deve sempre ser observado nas políticas sociais. Ou seja, é evidente que a precaução do Estado e da sociedade deve ser levada em conta em projetos e empreendimentos privados potencialmente lesivos à saúde pública. O dano causado à saúde pública pode ser evitado com a adoção de medidas de precaução que norteiem a Administração Pública, as ações empresariais dos entes privados e públicos e todo e qualquer empreendimento gerador de riscos evidentes. O princípio da precaução também fica evidenciado no texto constitucional quando faz referência à proteção à criança e ao adolescente como dever da família, da sociedade e do Estado. Dispõe a nossa Lei Maior: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, e opressão. Ou seja, o Poder Constituinte Originário impõe deveres de precaução aos protagonistas da sociedade em relação a qualquer situação de risco aos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária da criança e do adolescente. É importante observar no texto constitucional que, quando o Poder Constituinte Originário pretende colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, está colocando imposições de precaução a fim de proteger direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, em especial, a vida e a saúde. O constituinte originário pretendeu afastar a criança e o adolescente de qualquer risco de mutilação dos direitos constitucionalmente garantidos. É intuitivo que o princípio da precaução está intimamente relacionado com o gerenciamento de riscos, ou seja, em face de atos de entes públicos e privados os


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riscos oferecidos devem ser analisados sob uma ótica de cautela e de precaução. Em relação ao meio ambiente, a nossa Carta Política prevê: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. [...] V- controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. É de se observar, no Direito Constitucional, que o dever do Poder Público e de toda a sociedade em preservar o meio ambiente para os dias atuais e para o futuro, a fim de proteger as gerações atuais e futuras, está estritamente ligado à precaução contra atos que possam causar o desequilíbrio do meio ambiente que, consequentemente, podem gerar riscos à vida humana. É dever não apenas do Estado, mas do cidadão, portanto, por meio de medidas de precaução positivas ou omissivas, defender e preservar o meio ambiente de empreendimentos lucrativos, ou até mesmo não lucrativos, lesivos e potencialmente lesivos aos bens naturais que, por força de expressa disposição constitucional, são de uso comum do povo. No plano infraconstitucional, a Lei n° 6.938/81, que dispõe sobre a “Política Nacional do Meio Ambiente”, adotou a seguinte definição de meio ambiente, em seu art. 1°, inc. I: “O conjunto de condições, leis, influências e interações, de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. A referida legislação ainda definiu o meio ambiente como patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo (art.2°, inc.I). A Política Nacional do Meio Ambiente está sistematizada no sentido de precaver a sociedade contra possíveis danos que possam ser causados ao meio ambiente e tem como objetivo a preservação e a recuperação da qualidade ambiental propícia à vida. O princípio da precaução acabou inserido expressamente no ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro pela Conferência sobre Mudanças


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do Clima, acordada pelo Brasil, no âmbito da Organização das Nações Unidas, por ocasião da Eco/92 e, posteriormente, ratificada pelo Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo 1, de 03/02/1994.42 O Decreto n° 99.280/90 promulgou a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre as substâncias que destroem a camada de ozônio. O Decreto n° 2.652/98 promulgou a Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. E, por fim, o Decreto nº 2.519/98 promulgou a Convenção sobre Diversidade Biológica. Todos esses decretos trouxeram em seu bojo o princípio da precaução como corolário integrando-o ao direito infraconstitucional pátrio. A Lei de Crimes Ambientais, na seara criminal, também prevê pena privativa de liberdade e multa às pessoas físicas ou jurídicas que com suas ações ou omissões causarem poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em riscos à vida humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora (art. 54, da Lei n° 9.605/98). No parágrafo 3°, a referida legislação prevê como crime a violação a deveres de precaução ao dispor: § 3°- Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim determinar a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. O sentido da lei penal é que, quando a autoridade competente determinar por uma resolução, portaria ou qualquer outra determinação alguma medida de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível, será crime a não observância desse dever de precaução. Em complementação, Leme Machado refere que “a conceituação de medidas de precaução não é dada pela lei penal, devendo-se procurá-la nos entendimentos referidos nos 42   Art. 3°. [...] 3: as partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar os seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza cientifica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. ”


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textos internacionais... E na doutrina”.43 Observa-se que o próprio legislador de nossas leis penais adota o princípio da precaução a fim de tutelar o meio ambiente como bem de uso comum do povo e direito socioaambiental. A violação ao princípio da precaução também pode ocasionar uma infração administrativa. O art. 70 da Lei n° 9.605/98 prevê: “Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que violar normas jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”. Assim, se uma norma jurídica previr expressamente algum dever de precaução, a fim de proteger o meio ambiente, e for violada, estará configurada uma infração administrativa. Ou seja, se uma pessoa física ou jurídica agir sem observar uma regra de precaução estará cometendo infração administrativa ambiental. Não resta dúvida de que a legislação constitucional e infraconstitucional brasileira adotou o princípio da precaução como instrumento de tutela à saúde pública e ao meio ambiente acompanhando uma tendência internacional de implementação do princípio. 3. Conceito O princípio da precaução teve o seu nascedouro no final da década de 1960 na Suécia, com a Lei de Proteção Ambiental44, e na República Federal Alemã,45 no início dos anos 1970 (Século XX) já denominado com o nome de

43   MACHADO, Paulo Afonso Leme. O princípio da precaução e o Direito Ambiental. Revista de Direitos Difusos. Organismos Geneticamente Modificados, São Paulo, v. 8, p. 1092 , ago. 2001. 44   Segundo Sunstein “In law, the first use of a general Precautionary Principle appears to be the Swedish Environmental Protection Act of 1969”. SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 16. 45   Segundo Carla Amado Gomes “[...] este princípio ter-se-ia gerado, ao nível interno, na Alemanha, na Bundes-Imissionsschutzgesetz de 1974 (art. 5, parágrafos 1 e 2) e no plano internacional, as suas aparições datam de 1987 – no Protocolo de Montreal à Convenção de Viena para a proteção da camada de ozônio, e na declaração de Londres (Declaração proferida na 2ª Conferência Ministerial do Mar do Norte)” . GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in)certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 281. Todavia o entendimento mais aceitável da evolução do princípio da precaução no plano internacional entende-se ser o exposto neste capítulo do trabalho, em face da pesquisa legislativa realizada.


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Vorsorgeprinzip46, depois se espraiando pelo Direito anglo-saxônico como Precautionary Principle, pelo Direito francês como Príncipe de Précaution e, no Direito espanhol, como Principio de Precaución. O referido princípio é um instrumento para a gestão de riscos e é proposto no sentido de se evitarem danos à saúde e ao meio ambiente não como mera soft law – simples recomendação programática de conduta, adotada entre nações no plano internacional por uma conferência ou convenção – , mas como princípio imperativo e cogente. Na obra La sociedad del Riesgo, Beck ressalta que o modo de produção capitalista, baseado na apropriação de recursos naturais, tem utilizado práticas e comportamentos que cada vez mais expõem e submetem o meio ambiente a situações de risco. Dessa forma, se por um lado o avanço tecnológico trouxe ganhos para a sociedade, de outro, contribuiu para que as situações de risco aumentassem significativamente, tornassem-se mais complexas e muitas vezes não perceptíveis pela sociedade.47 Giddens, por sua vez, refere que as questões ecológicas devem ser incluídas na nova faixa de situações de risco, porque hoje o homem deve preocupar-se mais com o que ele faz com a natureza e com as suas consequências, isso porque o homem criou riscos que nenhuma outra geração anterior teve de enfrentar.48 A análise do risco, sempre presente na abordagem do princípio da precaução, é atitude que deve acompanhar todo o processo de tomada de decisões, que, na maioria das vezes, é problemático. Acerca das decisões no mundo globalizado, Forrester refere que, por causa da cibernética e das tecnologias de ponta, a velocidade se confunde com o imediato em espaços sem

46   Segundo Rocha “A idéia básica do Vorsorgeprinzip é que a sociedade possa evitar danos ambientais a partir de planejamentos que evitem a instalação e propagação de atividades que potencialmente sejam causadoras de danos ao meio ambiente. Referido princípio inicialmente foi previsto como diretriz do Programa Ambiental do Governo Federal Alemão para 1971 (Umweltprogramm der Bundesregierung)”. ROCHA, João Carlos de Oliveira. Os organismos geneticamente modificados e a proteção constitucional do meio ambiente. Porto Alegre: PUCRS, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007, p. 191. 47   Ver: BECK, Ulrich. La sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. 48   HUTTON, Will; GIDDENS, Anthony. No limite da racionalidade: convivendo com o capitalismo global. Traduzido por Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 17-8.


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interstícios. Dessa forma, a ubiquidade e a simultaneidade são leis. Assim, os detentores da tecnologia não compartilham com o povo esse espaço, o tempo e a velocidade.49 No mesmo sentido, Beck refere que “na sociedade de risco, o Estado de urgência tende a tornar-se o estado normal”.50 Galbraith, ao propor “A sociedade justa”, refere que o conflito entre a motivação econômica básica e os efeitos ambientais contemporâneos, e a longo prazo, não pode ser negado. Esse conflito não pode ser resolvido, segundo ele, “com preces ou com a retórica pública, mas o governo deve no interesse da comunidade e para proteção futura dela regulamentar as atividades capazes de causarem efeitos ambientais”.51 Aí a necessidade premente de aplicação do princípio da precaução, pois os benefícios econômicos não podem prevalecer em função de riscos à saúde e ao meio ambiente. Essas preocupações acerca da velocidade na tomada de decisões sem a análise do impacto sobre a saúde pública e o meio ambiente são, sem dúvida alguma, procedentes, pois, muitas vezes o lucro e a acumulação de riquezas dentro de um raciocínio utilitarista falam mais alto do que o argumento da proteção de bens juridicamente relevantes. Dentro de um raciocínio a contrario sensu, também, não é possível um retardamento de ações importantes como a comercialização, por exemplo, de uma vacina contra a Aids, sem argumentos plausíveis e razoáveis de uma real incerteza científica. De outra banda, o Poder Público deve regulamentar as atividades capazes de causarem danos ao meio ambiente sem paralisá-las por completo. Eis o grande desafio dos governos modernos na implementação das políticas públicas. Mcinttyre e Mosedale referem que o princípio da precaução é uma regra consuetudinária de Direito Internacional.52 Pode-se concordar com o afirmado pelos referidos doutrinadores, pois o número de protocolos e de convenções se multiplica no plano internacional invocando o referido prin-

49   FORRESTER.Viviane. L’horreur économique. Paris: Libraire Arthème Fayard, 1996, p. 26. 50   BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a new modernity. London: Sage, 1997, p. 79. 51   GALBRAITH, John Kenneth. The good society. New York: Houghton Mifflin Company, 1996, p. 98. 52   MACINTYRE, Owen; MOSEDALE, Thomas. The precautionary principle as a norm of customary international law. Journal of environmental law, n.9/2, p.221,1997.


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cípio. Ademais, o direito interno dos países vem incorporando o referido princípio em seus ordenamentos e a doutrina cada vez mais se aprofunda no seu estudo. O princípio da precaução tem sido invocado, inclusive, ante a Corte Internacional de Justiça de Haia.53 É uma demonstração de que o princípio é reconhecido amplamente, podendo ser considerado uma regra consuetudinária de Direito Internacional. É de se referir, contudo, que a Corte Internacional de Justiça apreciou o pedido de aplicação do princípio da precaução no caso dos testes nucleares dos mísseis franceses de 199254 e no caso Gabcikovo-Nagymaros55, e evitou manifestar-se claramente sobre a sua aplicação. No mesmo sentido, a OMC recusou-se a se pronunciar sobre o princípio na sua decisão sobre hormônios56, apenas referindo que existe a possibilidade de os membros da OMC adotarem medidas a título de precaução. As decisões tomadas pelo Tribunal Internacional do Direito do Mar, nos casos do atum57 e da usina Mox58, tam-

53   Segundo SADELEER: “o Estatuto da Corte Internacional de Justiça prevê que a mesma aplique, além das convenções internacionais e do costume internacional, os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas. SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional.In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.59. 54   HAIA. Corte Internacional de Justiça. Nova Zelândia vs França. 22 de setembro de 1995. Neste caso a Nova Zelândia invocou o princípio da precaução tendo em vista os riscos impostos pela França ao meio ambiente ao realizar testes nucleares no mar. 55   HAIA. Corte Internacional de Justiça. Hungria vs Eslováquia. 25 de setembro de 1997. Nesse caso, a Hungria invocou o princípio da precaução para suspender uma obra realizada pela mesma, de construção de uma barragem sobre o rio Danúbio, na fronteira com a Eslováquia, tendo em vista a possibilidade de riscos de danos ao meio ambiente. 56   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.70; No caso envolvendo os hormônios, a Comunidade Europeia invocou a aplicação do princípio da precaução em face da carne importada dos Estados Unidos e do Canadá, onde é permitida a utilização de hormônios para o aumento do peso do gado, ver: Relatório da OMC sobre a questão das medidas comunitárias no que concerne à carne e a seus produtos derivados, WT/DS26/ABR, 1998. 57   No caso do atum, Nova Zelândia e Austrália invocaram o princípio da precaução ao Tribunal do Direito do Mar, contra o programa de pesca experimental liderado pelo Japão. Ver: SCHIFFMAN, Howard. The southern Bluefin Tuna Case: ITLOS Hears Its First Fishery Dispute. Journal of International Wildlife Law and Policy, n.3, 1999, p. 318. 58   No caso da Indústria MOX, a Irlanda invocou o princípio contra o Reino Unido para que fosse suspensa a autorização concedida à referida indústria, tendo em vista as consequências irreversíveis do risco de despejo de plutônio no mar. Ver: BEURIER J.P; C.NOIVILLE. La


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bém não definiram o que se entende por precaução. Segundo Sadeller “estas opiniões parecem indicar que as referidas cortes trataram apenas de uma abordagem de precaução e não de um princípio”59. A busca de um conceito doutrinário acerca do princípio da precaução pode ser feita a partir do escólio doutrinário de Leme Machado, citando os autores alemães Rehbinder e Winter: O princípio da precaução (vorsorgeprinzip) está presente no Direito alemão desde os anos 70, ao lado do princípio da cooperação e do princípio do poluidor-pagador. Eckard Rehbinder acentua que “Política Ambiental não se limita à eliminação ou redução da poluição já existente ou iminente (proteção contra o perigo), mas faz com que a poluição seja combatida desde o início (proteção contra o simples risco) e que o recurso natural seja desfrutado sobre a base de um rendimento duradouro [...] Gerd Winter diferencia perigo ambiental de risco ambiental. Diz que, “se os perigos são geralmente proibidos, o mesmo não acontece com os riscos. Os riscos não podem ser excluídos, porque sempre permanece a probabilidade de um dano menor. Os riscos podem ser minimizados. Se a legislação proíbe ações perigosas, mas possibilita a mitigação dos riscos, aplica-se o “princípio da precaução”, o qual requer a redução da extensão, da freqüência ou da incerteza do dano.60 Com efeito, o princípio da precaução quando aplicado não será um ins-

convention sur les droits de la mer et la diversité biologique. Hommages à C. de Klemm. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2001, p. 107 59   SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no Direito Internacional. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.70. 60   MACHADO. Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 162.


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trumento de tutela de direitos aceitável, justo e principalmente suficiente se não direcionar a sua abrangência para além da diminuição ou redução da poluição e dos danos ambientais em geral. Esse princípio precisa combater os danos em seu nascedouro, ou seja, combater o simples risco de dano ao meio ambiente. O princípio da precaução visa proteger o bem ambiental61 não apenas no presente, mas com uma visão de futuro. Na verdade, quando Winter diferencia riscos e perigos, faz uma sábia distinção, pois o Direito em regra cria normas de proteção contra perigos concretos – normas de proteção e restrição em face do exercício de atividades nucleares –, mas, corriqueiramente, não produz legislações para mitigação de riscos. Não sendo vedada pelo ordenamento jurídico a diminuição do risco das atividades, o princípio da precaução pode ser aplicado para diminuí-lo. Leme Machado, em frase clássica, refere que “a precaução age no presente para não se ter de chorar e lastimar no futuro”. A precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo incerto, que possa resultar das ações ou omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental, pela prevenção no tempo certo.62 Com efeito, Prieur, ao abordar o trágico acidente nuclear de Chernobyl, de 1986, referiu que “é uma constante no Direito Ambiental a intervenção após uma catástrofe, quando já é muito tarde para evitá-la”,63 para justificar de forma crítica a edição de duas convenções adotadas de afogadilho pela comunidade internacional logo após o fato. Sob a ótica do princípio da precaução, o meio ambiente está no coração do processo de globalização e conduz à necessidade de solidariedade, comprometendo os setores públicos e privados. A expressão da solidariedade, quanto ao princípio da precaução, encontra-se estampada justamente no

61   Existem autores que questionam à segurança dos bens naturais referindo que as substâncias naturais podem ser perigosas à saúde humana. Nesse sentido, COLLMAN, James P. Naturally Dangerous: Surprising facts about food, health and environmental. Sausalito: University Science Book, 2001, p. 29-33. 62   MACHADO, Paulo Afonso Leme. O princípio da precaução e o Direito Ambiental. Revista de Direitos Difusos. Organismos Geneticamente Modificados, São Paulo, v. 8, p. 1081-84, ago. 2001. 63   PRIEUR, Michel. A política nuclear francesa: aspectos jurídicos. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL: O DIREITO AMBIENTAL E OS REJEITOS RADIOATIVOS, 2002, Brasília. Anais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2002, p. 16-7.


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dever gerado à sociedade de intervir, mesmo em caso de incerteza científica, em respeito às gerações futuras. A complexidade dos fenômenos naturais e o progresso tecnológico impõem que, na hipótese de dúvida científica, redobre-se a prudência. Assim, no sentir de Prieur, “cela implique l´ediction de régles juridiques nouvelles pour anticiper des catastrophes futures au nom de la prudence et de la santé des générations presentes et à venir”.64 É de se aceitar a máxima do princípio da precaução que “é melhor prevenir do que remediar” (Better safe than sorry). Deve haver a proteção do meio ambiente, apesar da incerteza científica, e o homem deve preservar os recursos ambientais, não só em nome das gerações presentes, como das futuras, em atenção ao princípio do desenvolvimento sustentável e do princípio da solidariedade intergeracional. É sempre melhor antecipar-se aos danos que podem vir a se revelar irreversíveis. A abrangência do conceito de princípio da precaução65 e os efeitos de sua aplicação não atingem apenas o Estado como aplicador da lei no exercício de sua função jurisdicional, ou o Estado como executor na sua função executiva. Esses efeitos de aplicação do princípio atingem também o Estado na sua função de legislar, pois as normas devem ser editadas observando um dever de precaução do Estado legislador. Isso porque, ao se avaliar a possibilidade de edição de uma lei que permita uma determinada atividade de risco, ante uma incerteza científica acerca dos efeitos danosos desse empreendimento, o Estado legislador não pode editá-la sob pena de violação do referido princípio. MacDonald faz a advertência de que o Estado é “legislador, administrador e julgador do princípio da precaução e é natural que o conteúdo deste princípio em gestação se molde ao sabor dos seus multifacetados interesses”.66 Todavia, 64   PRIEUR, Michel. Mondialisation et droit de l’environnement, publié dans “Le droit saisi par la mondialisation”. In: MORAND, C.-A. (org.) Colletion de droit international. Bruxelles: De l’Université de Bruxelles, Helbing & Lichtenhahn, 2001. 65   Segundo Julian Morris, existe uma definição forte e outra fraca acerca do princípio da precaução, a forte radicaliza na possibilidade de tomada de medidas precautórias. Ver: MORRIS, Julian. Defining the Precautionary Principle. In: Morris, Julian ed. Rethinking Risk and the Precautionary Principle . Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000, p. 1-19. 66   Apud GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1, 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 284.


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o comentário referido é deveras redundante e marcado por um verdadeiro truísmo, porque o Estado evidentemente possui tendências sociais, multiculturais e político-ideológicas que influenciam a aplicação e a interpretação de todo e qualquer princípio de direito e não apenas do princípio da precaução. O conceito de princípio da precaução que se pode colocar como mais aceitável consiste em um princípio pautado em atitudes estatais e não estatais – e também em não agir.67 Quanto ao não agir, Prieur refere que na adoção do princípio da precaução muitas vezes o risco e a incerteza são tão grandes, que a decisão mais acertada é de nada fazer em nome do princípio da precaução.68 O não agir, obviamente, sempre deve ter como finalidade evitar riscos de danos. Não se pode concordar com aqueles que entendem que o princípio da precaução é passível de diversas definições e conceitos,69 principalmente após a edição do Princípio 15, na Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (RIO/92). A despeito disso, Stewart elabora quatro versões do princípio da precaução.70 Por sua vez, Morris faz a distinção entre as

67   Para Niklas Luhmann o não agir também consiste em uma ação. Ver: LUHMANN, Niklas. Por uma teoria dos sistemas. Dialética e liberdade. Petrópolis: Vozes/UFGRS, 1993; Ver: LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Traduzido por Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 68   PRIEUR, Michel. A política nuclear francesa: aspectos jurídicos. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL: O DIREITO AMBIENTAL E OS REJEITOS RADIOATIVOS, 2002, Brasília. Anais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2002, p. 28. 69   Wiener sustenta que não há uma única definição para o princípio da precaução e que as definições existentes são variadas e frequentemente vagas. Ver: WIENER, Jonathan B. Precaution in a Multirisk World. In: PAUSTENBACH. Dennis J.(ed). Human and Ecological Risk Assesment 1509. New York: John Wiley & Sons, 2002. 70   Segundo Richard Stewart, o princípio da precaução possui quarto versões: 1. Princípio da Precaução de Não Exclusão (Nonpreclusion Precationary Principle): A regulação não deve ser excluída em razão da ausência de incerteza científica sobre atividades que apresentam um risco substancial de dano; 2. Princípio da Precaução da Margem de Segurança (Margin of Safety Precautionary Principle): A regulação deve incluir uma margem de segurança, limitando atividades abaixo do nível ao qual efeitos adversos não tenham sido encontrados ou previstos; 3. Princípio da Precaução da Melhor Tecnologia Disponível (Best Available Technology Precautionary Principle). Deve ser imposta a exigência da melhor tecnologia disponível às atividades que ofereçam um potencial incerto de criar um dano substancial, a menos que aqueles em favor daquelas atividades possam demonstrar que elas não apresentam risco estimável; 4. Princípio da Precaução Proibitivo (Prohibitory Precautionary Principle): Devem ser impostas proibições a atividades que têm um potencial incerto de imprimir dano substancial, a menos que aqueles em favor daquelas atividades possam demonstrar que elas não apresen-


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concepções forte e fraca do princípio da precaução, identificando a concepção forte com o previsto na Declaração de Wingspread e a concepção fraca com o previsto no enunciado 15, da Declaração do Rio/92. Morris critica ambas as concepções, sendo mais duro em relação à Declaração de Wingspread, que torna mais radical a aplicação do princípio da precaução, pois não permite a emissão de qualquer substância poluente antes que seja provada a sua faceta completamente inofensiva ao meio ambiente.71 Referidas diferenciações, entretanto, não se sustentam, pois todas as “versões” do princípio visam impedir o risco de dano em caso de incerteza científica da atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente ou à saúde pública. Não obstante, isso não significa conferir uma aplicação restritiva ao princípio nem engessá-lo por meio de esquemas subsuntivos, tais como aqueles propostos pelo positivismo formal. De fato, os princípios constitucionais configuram Direito <<dúctil>>, ou elástico, por natureza, demonstrando-se incisivos e flexíveis a um só tempo, demandando uma metodologia interpretativa não eminentemente dedutiva (como a subsunção, própria do positivismo), mas que se paute pela ponderação dos demais princípios e valores envolvidos.72 Nesse sentido, pronunciam-se Gros e Deharbe73 para quem o conceito do princípio da precaução se demonstra de natureza fluida. Apesar dos atos normativos editados delimitarem textualmente o princípio em tela, conduzindo a doutrina a formular um conceito com base nessa delimitação legislativa, é preciso ter-se presente que, se, por um lado, invoca-se a aplicação das medidas proporcionais para prevenir um risco de dano grave e irreversível ao meio ambiente a um custo aceitável, por outro lado, a definição legislativa não fixa as medidas necessárias para aplicação do princípio. Aí, sim, se pode observar uma margem de discricionariedade na implementação do princípio, mas sempre levando em consideração os seus elementos básicos: risco de dano e incerteza científica da atividade proposta. tam risco estimável. Apud SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Interesse público, Sapucaia do Sul, v. 8, n 37, p. 119-71, maio-jun. 2006. 71   MORRIS, Julian. Defining the Precautionary Principle. In: MORRIS, Julian (ed). Rethinking Risk and the Precautionary Principle . Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000, p. 3-4. 72   ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1992, p. 11- e 147-73. 73   GROS, Manuel ; DENARBE, Davis. Chronique administrative. Revue du Droit Public, Tome cent six-huit, n. 3, p. 821-45, mai-juin. 2002.


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De outra banda, as próprias convenções internacionais referem que o princípio da precaução deve ser implementado ao menor custo possível74 que deve compatibilizar-se com a busca das melhores técnicas disponíveis. Nesse sentido, Gore refere que, nos últimos anos, dezenas de empresas reduziram emissões de gases que retêm o calor da atmosfera e ao mesmo tempo economizaram dinheiro. Algumas das maiores empresas mundiais estão tratando de aproveitar as enormes oportunidades econômicas oferecidas por um futuro com energia mais limpa.75 O conceito de princípio da precaução não pode desconsiderar a relação dos custos envolvidos e da tecnologia empregada, que deve ser a melhor disponível. O Reino Unido tem adotado a abordagem “BAT” (best available technology) – (melhor tecnologia disponível) inserida na Lei de Proteção do Meio Ambiente (seção 7, parágrafo 4), se bem que balizada pelas considerações de custo (best available technology not entailing excessive cost). Como refere Wolfrun “a noção de melhor tecnologia disponível requer também que se tomem ações para a proteção ambiental, com o uso dinâmico da tecnologia protetora moderna”.76 O custo excessivo, segundo Leme Machado, “deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada país, pois a realidade ambiental é comum a todos os países, mas diferenciada”.77 É evidente, nesse sentido, que os Estados Unidos, por exemplo, podem empregar maiores recursos na aplicação das medidas de precaução do que a Bolívia ou o Equador. O conceito

74   Segundo o art. 3° da Convenção Quadro das Nações Unidas, “Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas regulatórias, levando em conta que as políticas públicas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar os benefícios mundiais ao menor custo possível”. Ver: Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, 9 de maio de 1992, art. 3°, princ. 3, S. Treaty Doc. N° 102-38, 1771 U.N.T.S. 108. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br>. Acesso em: 20 fev. 2008. 75   GORE, Albert. Uma verdade inconveniente: O que devemos saber e fazer sobre o aquecimento global. Traduzido por Isa Maria Lando. Barueri: Manole, 2006, p.5. 76   WOLFRUM, Rüdiger. O princípio da precaução. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.23. 77   MACHADO, Paulo Afonso Leme. O princípio da precaução e o Direito Ambiental. Revista de Direitos Difusos. Organismos Geneticamente Modificados, São Paulo, v. 8, p. 1081-1084, ago. 2001.


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de princípio da precaução, assim, deve observar o princípio constitucional da reserva do possível. A aplicação do princípio da precaução, portanto, deve ser feita no sentido de se proteger um bem constitucionalmente tutelado, sem que outro bem constitucionalmente seja sacrificado desproporcionalmente como, por exemplo, a propriedade privada e a livre-iniciativa. O princípio da precaução visa basicamente à proteção da coletividade contra riscos de danos ao meio ambiente e à saúde pública com o intuito, como afirma Kiss, “de preservar o meio ambiente para o futuro”.78 4. Análise da crítica ao princípio da precaução O princípio da precaução, embora seja considerado um eficiente instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública, também é fortemente criticado,79 porque pode paralisar a iniciativa privada e o Poder Público em suas ações de interesse social e econômico. A doutrina crítica ao princípio da precaução, proveniente da Universidade de Chicago, capitaneada por Cass Sunstein, conseguiu indiscutível relevo no plano internacional em face das críticas ao princípio da precaução e a sua aplicação que, segundo ela, muitas vezes, é procedida quando não deveria sê-lo e não é feita quando precisaria sê-lo. Sumariamente, o escólio de Sunstein se sustenta no fato de que o aplicador do princípio da precaução deve fazer a análise do custo-benefício da medida no sentido de que os benefícios da aplicação do princípio da precaução devem ser maiores que os seus malefícios estando justamente aí o grande mérito de sua obra marcada

78   KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (orgs). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.11. 79   O princípio da precaução foi duramente atacado pelo Wall Street Journal como noticiado por Sunstein como “an environmentalist neologism, invoked to trump scientific evidence and move directly to banning things they don’t like – biotech, wireless technology, hydrocarbon emissions”. SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 16.


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pela publicação de Laws of Fear80 e o recentíssimo Worst-Case Scenarios.81 Com efeito, deve o Estado ter critérios e parâmetros para a aplicação do princípio da precaução para que não ocorra o chamado por Sunstein em artigo,82 The Paralyizing Principle, que decorre da aplicação equivocada do princípio da precaução.83 Referido artigo trata da aplicação indiscriminada do princípio da precaução que, sob a mera alegação de riscos remotos, acaba causando mais prejuízos financeiros e sociais do que benefícios ao meio ambiente e à saúde pública ao paralisar atividades. Entre esses casos, Sunstein refere que uma das primeiras controvérsias da administração Bush84 foi a regulação da quantidade de arsênico que é colocada na água de beber. Para que houvesse uma diminuição de riscos de morte seriam necessários investimentos anuais de US$ 200 milhões de dólares85 para salvar entre cinco e 12 vidas humanas por ano. O referido 80   SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005 81   SUNSTEIN, Cass. Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007. 82   Sunstein sustenta que o princípio da precaução “não leva a direções equivocadas, mas que, se utilizado em todas as suas possibilidades, não leva a qualquer direção”. E afirma que para os governos o “princípio da precaução não é sensato pela simples razão de, uma vez que a visão é ampliada, torna-se claro que o princípio não provê nenhuma orientação” e propõe, de forma contraditória, “que um sistema racional de regulação de risco certamente toma precauções”, mas não adota o princípio da precaução. SUNSTEIN, Cass. Para além do princípio da precaução. Interesse público, Sapucaia do Sul, v. 8, n 37. p. 119-71, maio-jun. 2006. Ver: SUNSTEIN. Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005. Ver: SUNSTEIN, Cass. Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007. 83   The most serious problem whit the Precautionary Principle is that it offers no guidance – no that it is wrong, but that it forbids all courses of action, including inaction. The Paralyzing Principle. Winter 2003, p. 32-7. Disponível em: < http://www.cato.org/pubs/regulation/rer25n4/v25n4-9pdf>. Acesso em: 20 dez. 2007. 84   Em artigo, Musil refere-se à pressão da opinião pública dos Estados Unidos sobre o Presidente Bush no sentido de diminuir a quantidade de arsênico na água mesmo que para isso fossem necessários elevados investimentos. Ver: MUSIL, Robert K. Arsenic on Tap, New York. Times, p. A18., apr. 24, 2001. 85   One of the first controversies faced by the current Bush administration involved the regulation of arsenic in drinking water. There is a serious dispute over the precise level of risks posed by low levels of arsenic , but in “worst case” scenario, over 100 lives might be lost each year as a result of the 50 part-per-bilion standart that the Clinton administration sought to revise. At the same, the proposed 10 ppb standard would cost over $200 million each year, and it is possible that it would save as few as six lives annually. SUNSTEIN. Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 28.


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autor, juntamente com Hahn, em outro texto, refere que as pessoas, no caso da impossibilidade por decisão governamental de consumirem água tratada com doses baixas de arsênico, passariam a usar sistemas locais de água e poços privados que possuem alto risco de contaminação gerando ameaças mais graves à saúde humana.86 É evidente que US$ 200 milhões de dólares anuais bem investidos em assistência à saúde pública poderiam salvar centenas ou milhares de vidas humanas, e não apenas de cinco a doze vidas. Desse modo, a gestão dos recursos públicos e dos riscos sempre deve considerar uma razão que leve em conta o risco-benefício87 das políticas públicas dentro de um juízo de ponderação de valores e de razoabilidade. Não significa isso, contudo, a adoção de uma interpretação econômica do Direito,88 mas simplesmente a racionalização no emprego dos recursos disponíveis a fim de atender o princípio da finalidade89 e o interesse público. Esse é um exemplo de que a adoção de uma análise de custo-benefício não pode ser observada com preconceito pelo operador do Direito, pois pode atingir fins humanitários mais relevantes do que a sua não adoção. O exemplo dos ataques terroristas aéreos também é utilizado por Sunstein e Hahn para sustentar que, na aplicação do princípio da precaução,

86   Ver SUNSTEIN, Cass. The Arithmetic of arsenic, 90 Georgetown Law Review 2255, 2002.; Ver também, HAHN, Robert W; SUNSTEIN, Cass. The Precautionary Principle as a Basis for Decision Making. The Economist`s Voice, v. 2, n. 2, Article 8, 2005. Disponível em: <http:// www.ssrn.com/abstract= 721122>. Acesso em: 20 ago. 2007. 87   MANDEL Gregory N; GATI, James Thuo. Cost- Benefit Analysus Vs The Precautionary Principle: Beyond Cass Sunstein’s Laws of Fear. v. 5. Univesity Of Illinois Law Review. Lllinois, 2006, p. 1037-1079. 88   Sunstein defendendo a interpretação econômica do direito refere que “o comportamento econômico fornece uma melhor compreensão dos usos e armadilhas do antigo adágio ‘melhor prevenir do que remediar’, o que é tema para várias das mesmas objeções ao princípio da precaução”. SUNSTEIN, Cass. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, Sapucaia do Sul, v. 8, n. 37, p. 119-171, maio-jun. 2006. 89   Ver: Ruy Cirne Lima. Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987; Exemplo de desvio do princípio da finalidade na aplicação do princípio da precaução pode ser o caso citado por Collman em que os fazendeiros europeus invocam o princípio, sob o argumento de risco da utilização de grãos geneticamente modificados, para protegerem-se da concorrência norte-americana e não propriamente para se protegerem de eventuais danos. COLLMAN, James P. Naturally Dangerous: Surprising facts about food, health and environmental. Sausalito: University Science Book, 2001, p. 29-33.


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deve-se observar a relação custo-benefício em primeiro lugar e não a falácia do risco-zero. Eles entendem que, se os governos passassem a proibir viagens aéreas para se eliminarem ataques terroristas, os custos seriam maiores que os pretensos benefícios.90 Parece evidente que no exemplo citado, um tanto maniqueísta, realmente os custos superariam os benefícios, pois os negócios e o turismo ficariam completamente inviabilizados ante a remotíssima possibilidade proporcional de um ataque terrorista. Todavia, o exemplo não satisfaz, pois é intuitivo que nenhum governo proporia acabar com o risco de ataques terroristas aéreos, com a proibição de voos comerciais. Sunstein critica o princípio da precaução “porque os riscos estão por todos os lados das relações sociais”.91 Também sustenta que, nesse contexto, “pessoas tendem a focar nas perdas que estão associadas com alguma atividade ou risco e desconsiderar as vantagens que devem ser associadas com a atividade ou risco”.92 Assim, a aplicação do princípio da precaução estaria calcada na aversão à perda e no sentimento de ignorância acerca dos potenciais ganhos.93 Nesse ponto, guardadas prudentes reservas, assiste razão a Sunstein, tendo em vista que as pessoas, ante uma atividade de risco, a produção de um remédio, por exemplo, têm a tendência de observar com mais atenção os danos que a nova droga possa causar do que os seus potenciais benefícios. É inegável essa tendência, contudo, o princípio da precaução não pode ser

90   SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 49 e 119- 210. 91   SUNSTEIN, Cass. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, Sapucaia do Sul, v. 8, n. 37, p. 119-171, maio-jun. 2006. 92   SUNSTEIN, Cass. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, Sapucaia do Sul, v. 8, n. 37, p. 119-171, maio-jun. 2006, principalmente p. 124. 93   In the case of arsenic, the Administrator of the Enviromenntal Protection Agençy expressed concern that aggressive regulation, by virtue of it cost, will lead people to cease using local water systems and to rely on private wells, which have high levels of contamination. If this is so, then stringent arsenic regulation violates the precautionary principle, for the same reason that less stringent regulation does. SUSTEIN, Cass.; HAHN, Robert W. The precautionary principle as a basis for decision making. The economist’s voice, vol. 2, n. 2, article 8, 2005. Disponível em: <http://www.ssrn.com/abstract= 721122>. Ver: SUNSTEIN. Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 37-8, 77-9.


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simplesmente ignorado ou afastado sob pena de serem causados sérios riscos à saúde pública. A problemática do nexo causal é de tal monta que Sunstein, ao criticar os objetivos salutares do princípio da precaução, sustenta que “problemas ambientais sérios podem ser identificados tarde demais ou nem mesmo o ser, simplesmente porque relações causais não podem ser descritas com certeza”.94 O equívoco de Sunstein, nesse ponto, fica evidenciado porque “as relações não descritas com certeza”, justamente, são o motivo principal da aplicação do princípio da precaução que possui como um dos seus elementos a incerteza científica. Ademais, a não identificação do nexo causal ou a sua identificação tardia, fatores de não aplicação do princípio da precaução, terão como consequência a responsabilização objetiva do Estado ou do agente poluidor privado aplicando-se a teoria do nexo causal alternativo. Por sua vez, em Portugal, Gomes refere que a ideia de precaução, tomada na sua formulação mais generosa/radical, torna-se impraticável, pois tal atitude seria completamente irrealista, dadas as características da sociedade de risco: “Com efeito, num tempo em que a técnica subverteu os processos normais de funcionamento dos ecossistemas, tornou-se impossível prevenir todos os danos, porque os dados têm que rever-se continuamente”.95 Refere, ainda, que as dificuldades operativas do princípio da precaução são de ordem sociológica, política, econômica, jurídica, tecnológica, científica e ecológica. No plano sociológico, a crítica de Gomes é no sentido da perda de legitimação das decisões que aplicam o princípio da precaução em face de não estarem embasadas na ciência. No plano político, os Estados teriam limitados, em face de incertezas científicas, os seus direitos soberanos de disposição e utilização dos recursos naturais. Ainda, no plano político, o Estado se tornaria “amigo do ambiente”, mas também “um inimigo da indústria e do desenvolvimento econômico, agindo com base em suspeitas com remota –

94   SUNSTEIN, Cass. Para além do princípio da precaução. Interesse Público, Sapucaia do Sul, v. 8, n. 37, p. 119-71, maio-jun. 2006. 95   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa , p. 282.


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ou nenhuma – base científica de apoio”.96 Quanto à crítica no plano sociológico, ela, como a de Sunstein, não se sustenta, pois um dos elementos que autoriza a aplicação do princípio da precaução é justamente a ausência de certeza científica. Ademais, não há que se cogitar de falta de legitimidade por ausência de embasamento científico absoluto para a aplicação do princípio, pois a ciência passou do tempo das certezas para o das meras probabilidades. A crítica no plano político parece também insubsistente, pois o Estado não está limitando os seus direitos soberanos de disposição e utilização dos recursos naturais; ao contrário, ao aplicar o princípio da precaução, está preservando os recursos naturais para que as presentes e futuras gerações possam usufruí-los de forma sustentada em sua plenitude. No mesmo sentido, o Estado não se torna inimigo do desenvolvimento e da indústria se aplicar o princípio da precaução de forma proporcional e sem excessos. Pelo contrário, irá fomentar descobertas de novas tecnologias mais limpas e baratas que podem, inclusive, aumentar o lucro dos setores produtivos e preservar a exploração industrial por muito mais tempo em benefício de toda a coletividade. No plano econômico, haveria uma difícil articulação entre as exigências da precaução e as necessidades de desenvolvimento econômico. A aplicação do princípio poderia levar “à paralisação do crescimento industrial, pecuário, agrícola sem fundamentos científicos credíveis”.97 Beck, por sua vez, reconhece que o movimento que se põe em marcha na sociedade de risco expressa-se na frase: “Tengo miedo!”. Todavia, “el tipo de la sociedad del riesgo marca una época social en que la solidariedad surge por miedo y se convierte en una forza política”.98 O medo, com efeito, pode levar à paralisação de uma atividade econômica salutar pela aplicação politicamente indevida do princípio da precaução. 96   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 287. 97   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 288. 98   BECK ,Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Surcos, 2006, p. 70.


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É de se observar que no plano econômico deve haver a observância do princípio da proporcionalidade e os seus vetores da vedação de excesso e inoperância quando da aplicação do princípio da precaução. Indubitavelmente, existe o risco de paralisação do desenvolvimento econômico, principalmente em face da aplicação excessiva do princípio a ponto de mutilar atividades produtivas e científicas. Para isso, devem a Administração Pública, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo estar atentos e preparados tecnicamente para não permitirem que o princípio da precaução sufoque o desenvolvimento econômico e a livre-iniciativa. No plano jurídico, segundo a referida autora, quando da avaliação da prova, a convicção do juiz deveria colocar-se “para além de uma dúvida razoável,”99 pois o efeito lesivo da atividade não pode ser plenamente demonstrado. Essa crítica da autora lusa no plano jurídico não interpreta de forma satisfatória o próprio conceito do princípio da precaução em seu elemento principal: a incerteza científica. Ora, é sempre razoável, por exemplo, a dúvida provocada pela incerteza científica se um medicamento pode ou não causar a morte de um ser humano. A não demonstração exata do efeito lesivo não pode ser confundida com o risco de dano, são conceitos obviamente diversos. O efeito lesivo somente ocorre se o risco de dano não foi considerado adequadamente acarretando a aplicação tardia do princípio da precaução. Um outro fator perturbador questionado pela doutrina “para a consolidação de um conteúdo unívoco do princípio da precaução é a indicação de um critério de custo-benefício como base de atuação”. Isso porque a Declaração do Rio introduziu o elemento da proporcionalidade da ponderação entre o custo da intervenção e o benefício para o meio ambiente (cost-effective measures).100 Outro fator que preocupa os críticos do princípio é que a variante de caráter econômico torna dependente a aplicação do princípio da precaução da capacidade econômica dos Estados. Evidentemente, para que o princípio possa ser aplicado, os benefícios

99   Ver: BARTON, Charmian. The status of the precautionary principle in Austrália: its emergence in legislation and as a common law doctrine. HERL, v. 22, 1998, p. 509-50. 100   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa , p. 283.


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devem ser maiores que os custos. Todavia, os benefícios como o direito à vida e à existência digna devem ser avaliados de forma a prevalecer sobre os custos da medida de forma ponderada. Os recursos que possuem cada Estado devem ser analisados na aplicação da medida de precaução, sempre levando consideração que a saúde pública e o meio ambiente devem obter uma máxima, mas proporcional, proteção. Outra crítica posta é que a aplicação do princípio da precaução impediria a introdução de novas técnicas (cujos efeitos são pouco conhecidos), gerando prejuízos socioeconômicos aos Estados e a suas populações.101 Gross refere quanto ao plano tecnológico, que a proibição de novas técnicas e de produtos pode levar a uma estagnação da tecnologia e do progresso científico.102 Com efeito, a aplicação excessiva do princípio da precaução pode gerar a não introdução de novas técnicas na medicina, o que seria nocivo para o futuro da humanidade. No mesmo sentido, dúvidas infundadas não podem impedir que se avance na busca de medicamentos para combater o câncer, a aids e as doenças cardíacas, que são relevantes causas de mortalidade em todo o mundo. As críticas postas são importantes, pois servem para aperfeiçoar a própria aplicação do princípio da precaução. No plano científico, a crítica é no sentido de haver uma insegurança coletiva causada pela inexistência na ciência da marca da certeza, mas apenas da probabilidade. Por consequência, os cientistas não poderiam demonstrar exatamente os efeitos das novas técnicas,103 e isso geraria uma natural insegurança. Quanto ao plano científico, já foi mencionado, ao ser analisada a causalidade natural, que a ciência hoje não se embasa mais em certezas, mas em meras probabilidades. O princípio da precaução é, portanto, um princípio que é manejado justamente quando há uma incerteza científica, uma probabilidade de dano, e jamais numa situação de certeza, quando se deveria invocar o princípio da pre-

101   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa , p. 283. 102   CROSS. Frank. Paradoxical perils of the precautionary principle. Washington and Lee Law Review, n. 851, 1996, p. 851-63. 103   Ver: GIDDENS, Risk and responsability. The Modern Law Review. Oxford: 1991/1, p.1 e ss.; Ver: GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 290.


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venção. A falha na formulação dessa crítica, portanto, é nitidamente conceitual. No plano ecológico, fatos, segundo Gomes, são controversos, pois existe estudo, por medições via satélite, por exemplo, que refere que o efeito estufa trouxe ao invés de efeitos negativos, efeitos positivos, como o aumento da vegetação em diversas zonas do planeta como na América do Norte (30%), no Leste Europeu e na Ásia (60%).104 Essa crítica no plano ecológico é controvertida cientificamente. O exemplo disso é a já citada obra de Al Gore, Prêmio Nobel da Paz em 2007, que enfoca como tema central, embasado em sólido estudo científico, os efeitos negativos causados ao meio ambiente pelo efeito estufa. Essa controvérsia, se posta nesses termos, por si só, traz consigo o risco de dano e a incerteza científica, elementos constitutivos do princípio da precaução, e autoriza a sua aplicação a fim de se evitar o aumento do aquecimento global. A crítica também é focada no elemento do princípio da precaução da inversão do ônus da prova. Segundo Gomes, a imposição de inversão do ônus da prova contra quem propõe a atividade possivelmente poluidora é um exemplo de prova diabólica, tendo em vista que obriga à parteprovar o que nem mesmo a ciência pode provar.105 A inversão do ônus da prova é um dos elementos do princípio da precaução. A não utilização da inversão do ônus da prova inviabiliza a própria implementação do princípio. Ademais, esse elemento está consagrado por diversos diplomas legais internacionais, como já referido. O que não pode ocorrer é a proibição de uma ampla produção de provas por parte do proponente da atividade de risco. Este tem o direito de provar por perícias, estudos científicos, provas testemunhais, documentais, e até mesmo por inspeção judicial, que a sua atividade não causa riscos de danos ao meio ambiente e à saúde pública. Não se desincumbindo desse ônus, presentes os elementos que autorizam a aplicação do princípio da precaução, deve ser suspenso o empreendimento. Um dos casos emblemáticos de crítica ao princípio da precaução é a sua 104   O estudo tem por fonte de dados o Goddard Space Flight Center. Apud GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 290. 105   GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 285.


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adoção, em um país de Terceiro Mundo e de clima tropical, para a proibição do DDT – inseticida – cujos malefícios seriam maiores que os seus benefícios, em face do risco de alastramento de doenças como a malária e a febre tifoide. O cálculo do risco, segundo os críticos do princípio, deve ser feito levando-se em consideração que a aplicação do DDT é um meio barato para combater as referidas doenças, segundo estudos.106 Existem opiniões em contrário que apontam o DDT como altamente tóxico, bioacumulativo, e de grande persistência no meio ambiente, sendo regulado pela Convenção da Basileia, sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos, e proibido pela maioria dos países do mundo.107 Beck chega a referir que sobrecargas de DDT foram encontradas até mesmo na carne de pinguins na Antártida108 e que na ilha de Trinidad, no ano de 1983, foram registradas 120 mortes causadas pelo referido spray. 109 Nesse caso, havendo incerteza científica, o princípio da precaução pode ser aplicado. Contudo, se restar demonstrado que os danos causados à saúde pública serão maiores no caso de sua não utilização, por uma análise de custo-benefício, a sua comercialização em localidades e situações especiais deve ser permitida. Stein, por sua vez, refere que “a precaução é um conceito demagógico que aposta na exploração do sentimento do risco que paira sobre as sociedades contemporâneas”. Segundo ele, “em sendo levado a sério, o referido princípio impede todo e qualquer desenvolvimento, perante a miríade de riscos possíveis”. 110 106   Ver: SUNSTEIN. Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005, p. 32, 51-55. Ver: SUNSTEIN. Cass. Risk and Reason, 2002, p.251-88. Ver: WILDAVSKY, Aaron. But Is It True?: A Citizen’s Guide to Environmental Health And Safety Issues 1995, 56. 107   ROCHA, João Carlos de Oliveira. Os organismos geneticamente modificados e a proteção constitucional do meio ambiente. Porto Alegre: PUCRS, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007, p. 195. 108   BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Surcos, 2006, p. 41. 109   BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Surcos, 2006, p. 59. 110   Apud GOMES, Carla Amado. Dar o duvidoso pelo (in) certo? In: JORNADA LUSO-BRASILEIRA DE DIREITO DO AMBIENTE, 1., 2002, Lisboa, Anais. Lisboa, p. 283; Ver: STEIN, Paul. Are decision-makers too cautious with the precautionary principle? Environmental and Pla-


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A crítica colocada por Stein reveste-se de radicalismo, pois o princípio da precaução nada tem de demagógico, é um instrumento de tutela da saúde pública e do meio ambiente que procura evitar o risco de dano ante uma incerteza científica. O sentimento que a sociedade moderna possui, de risco iminente, é uma consequência natural da revolução tecnológica e biotecnológica e dos tempos em que vivemos, em que as tomadas de decisões devem ser urgentes e afetam uma gama cada vez maior de pessoas e seres vivos. Outro exemplo prático em que foi supostamente aplicado equivocadamente o princípio da precaução foi citado por Snow: o caso do banimento do asbesto nas escolas de Nova York. Em um primeiro momento, a comunidade local aplaudiu a medida em face de risco de câncer decorrente da insulação do asbesto. Todavia, quando ficou supostamente provado que o risco de câncer em decorrência do contato com o asbesto era um terço do risco de uma criança ser atingida por um raio — e, que, provavelmente, as escolas teriam de ser fechadas por semanas para a implantação da medida —, o círculo de pais passou a rejeitar o banimento do asbesto em face dos transtornos e malefícios decorrentes do fechamento das escolas.111 Aqui, se pode observar a presença de, no mínimo, incerteza científica, pois existem estudos que referem que, em face da ação tardia do governo americano, danos foram provocados à saúde pública pela utilização do asbesto como material de construção.112 Havendo incerteza científica, não há dúvida de que o princípio da precaução deve ser aplicado. Leme Machado responde aos críticos radicais do princípio da precaução nos seguintes termos: O princípio da precaução, para ser aplicado efetivamente, tem que suplantar a pressa, a precipitação, a ning Law Journal, Oxford: Oxford University Press, 2000/2, p 3-6. 111   SNOW, Tony. End the Phony “Asbestos Panic”. Usa Today. Sept. 13, 1993, em 11 A. 112   Segundo Paul Harremoës o governo americano reagiu tardiamente a riscos reais, incluindo aqueles associados com os asbestos, DES (Dietilstilberstrol), dióxido de enxofre e MTBE (éter metil-tert-butil) na gasolina, causando danos à saúde pública. HARRMOËS, Poul; KRAUSS, Martin Krayer Von. MTBE in petrol as a substitute for lead. In: HARRMOËS, Poul; et all (ed). The Precautionary Principle in the 20th Century: Late Lessons from Early Warnings. London: Earthscan Publications Ltd, 2002.


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Revista da Ajufe improvisação, a rapidez insensata e a vontade de resultado imediato. Não é fácil superar esses comportamentos, porque eles estão corroendo a sociedade contemporânea. Olhando-se o mundo das bolsas, aquilata-se o quanto a cultura de risco contamina os setores financeiros e os governos, jogando na maior parte das vezes com os bens alheios. O princípio da precaução não significa a prostração diante do medo, não elimina a audácia saudável, mas se materializa na busca da segurança do meio ambiente e da continuidade da vida. 113

Não se pode, com certeza, submeter as pessoas e o meio ambiente a riscos graves de danos, sob o argumento precipitado do desenvolvimento econômico a qualquer custo. Também, o escólio do referido autor deve ser aceito no sentido de que a segurança não pode ficar em segundo plano em relação à pressa, à rapidez e à vontade do resultado imediato nos empreendimentos de risco. O princípio da precaução, sem dúvida alguma, não pode ser encarado como sinônimo de banimento dos empreendimentos e do desenvolvimento tecnológico, mas como um princípio que busca tutelar a saúde pública e o meio ambiente. Todavia a implementação do princípio deve levar em consideração o custo-benefício e as possibilidades financeiras do agente que o adota. Sadeleer, por sua vez, responde aos críticos do princípio da precaução argumentando que, “se o princípio da precaução não deve submeter-se ao fantasma securitário, perseguindo o sonho utópico do ‘risco zero’, seria irresponsabilidade, por outro lado, adotar a atitude do apostador, ou ainda pior, a do cínico”. Persiste o referido autor com o seu raciocínio alegando que, “entre estes dois extremos, nossos sistemas jurídicos devem retomar o caminho da prudência” e, por fim, conclui que não seria lícito tentar ver “este novo princípio como um fenômeno passageiro com o qual é preciso simplesmente compor. Vilipendiado ou enaltecido, ao princípio da precau-

113   MACHADO, Paulo Afonso Leme. O princípio da precaução e o Direito Ambiental. Revista de Direitos Difusos. Organismos Geneticamente Modificados, São Paulo, v. 8, p. 1081-4, ago. 2001.


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ção parece estar prometido um futuro brilhante”.114 Justamente, aí está, na lição de Sadeleer, a importância do princípio da precaução, ainda que duramente criticado e combatido, pois é o instrumento de tutela da saúde pública e do meio ambiente a serviço da preservação dos direitos fundamentais das presentes e futuras gerações. É impensável e inconcebível imaginar o futuro e a sustentável evolução da humanidade sem a presença ponderada, mas efetiva, do princípio da precaução. Conclusão Não existe dúvida de que o princípio da precaução tem a sua fonte nos tratados e convenções internacionais. A Constituição de 1988 recepcionou o princípio, no seu Art. 225, que também vem previsto expressamente em normas infraconstitucionais. Como direito fundamental de terceira geração, o princípio constitucional da precaução está vigente em nosso país tratando-se de importante instrumento de tutela da saúde pública e do meio ambiente. O princípio da precaução precisa ser aplicado em harmonia com o princípio constitucional da proporcionalidade, respeitando os seus vetores da vedação do excesso e da insuficiência, para que possa tutelar outros direitos fundamentais. Para isso, o Estado, por seus agentes, necessita aplicar o princípio da precaução fazendo uma análise do custo-benefício da medida para que a sua adoção indiscriminada não o transforme em um paralizing principle capaz de inviabilizar o desenvolvimento econômico e atividades científicas relevantes para a sociedade. Por outro lado, a sua não aplicação, ou aplicação insuficiente, por infundado receio, deve ser afastada para que não se ampliem os riscos de danos e de catástrofes ambientais e à saúde pública. Referências bibliográficas ALVES, Wagner Antônio. Princípios da precaução e da prevenção no Direito Ambiental brasileiro. São Paulo: Juarez Oliveira, 2005. ATHIAS, Jorge Alex Nunes. Responsabilidade Civil e Meio-Ambiente -

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Suprema hipertrofia


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Gerson Godinho da Costa Juiz Federal, Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul

Resumo: o presente ensaio trata dos fatores que determinam indevida concentração de poderes no Supremo Tribunal Federal, que, a par de extenso rol de matérias submetidas a sua competência, igualmente detém a atribuição de exercer o controle concentrado de constitucionalidade, atualmente o mais prestigiado modelo de jurisdição constitucional. Tal situação, acaso não corrigida, estabelece a predominância do Supremo Tribunal Federal não apenas com relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, bem como perpetua visível desequilíbrio no âmbito de convivência com os demais Poderes Constitucionais, em especial o Legislativo. Sumário: Introdução. 1. O modelo teórico da atual jurisdição constitucional. 2. A consagração da jurisdição constitucional. 3. O sistema brasileiro de jurisdição constitucional. 3.1. A atuação disfuncional do Supremo Tribunal Federal no plano horizontal. 3.2. A atuação disfuncional do Supremo Tribunal Federal no plano vertical. Conclusões. Referências Bibliográficas. Keywords: Brazilian Supreme Court. Judicial Review. Legislative Power. Judiciary Power. Imbalance. Abstract: the purpose of this paper is to analyse factors that establish inappropriate concentrantion of Power in Brazilian Supreme Court. Over your natural and extensive competence, practice the concentrate constitutionality control, presently the most considered model of the judicial review. If not change this situation, will be institutional instability between Brazilian Supreme Court and the others judiciary institutions, and between this Court and the others republican powers, especially Legislative Power.


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Introdução Muito provavelmente, jamais em outro momento da história republicana, o Poder Judiciário permaneceu tão em evidência como atualmente. Inúmeros fatores influenciam para esse cenário de induvidosa exposição pública. Tal situação enseja refletir sobre a formatação e o funcionamento das instituições judiciais e inquirir sobre seu ajustamento aos reclamos da sociedade, sempre objetivando constante aprimoramento. Especificamente no que atine ao Supremo Tribunal Federal, à engenharia constitucional do órgão de cúpula do Poder Judiciário, o enfoque é quase que invariavelmente direcionado à forma de composição da Corte. Essa polêmica questão, no entanto, corresponde menos ao sistema constitucional do que ao seu desempenho prático. Não é correto atribuir à Constituição Federal a responsabilidade pela omissão da sociedade quanto a discutir a conveniência e a oportunidade de indicações – ou, previamente, eventuais sugestões – de candidatos à Presidência da República. Extrínseco ao território jurídico, é quase inexistente qualquer consideração sobre os indicados, e, mesmo no seu interior, terminam por se revelar inócuas. O Senado Federal, afora algum mise-en-scène de poucos congressistas, restringe-se a chancelar a indicação. Essa questão, conquanto longe de ser desimportante, contudo, tem recebido mais atenção do que a premente necessidade de se discutir o papel do Supremo Tribunal Federal. Por oportunidade da constituinte, foi cogitada a possibilidade de torná-lo uma genuína Corte constitucional, em conformidade ao modelo germânico. Por essa proposta, ao final vencida, ao Supremo estaria reservada apenas a chamada jurisdição constitucional, ou seja, a atribuição de confirmar a constitucionalidade ou afirmar a inconstitucionalidade de lei eventualmente impugnada. Optou-se, todavia, por, ao lado dessa competência, manter-lhe ou destinar-lhe diversas outras. O resultado dessa cumulação de atribuições é inquietante sob o aspecto político, especificamente quanto à desejável harmonia e equilíbrio entre os poderes republicanos. O que se expõe como fato notório é que a Corte apresenta dificuldades para dedicar-se a sua atividade primeira, que é a de resguardar a Constituição. Não raro, são muito demoradas essas decisões. E, quase sempre asso-


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berbado, o Supremo também não oferece respostas a contento quando do exercício das demais competências, corroborando as críticas que são opostas, por exemplo, ao chamado foro privilegiado. De resto, essas claudicações funcionais são evidenciadas a par de soluções adotadas pela Corte adjetivadas de invasivas em relação aos demais Poderes. Ou seja, critica-se o Supremo Tribunal Federal por ineficiência quanto as suas atribuições correntes e por incontido ativismo. De outro lado, essa demasiada concentração de poderes no Supremo Tribunal Federal, provocada pela sua potencializada competência constitucional, termina por desprestigiar as demais instâncias do Poder Judiciário, em prejuízo da efetividade e da celeridade processuais, ao estimular que qualquer matéria seja submetida a sua apreciação. O prejuízo ao dinamismo das instâncias inferiores é suficientemente exemplificado pelo instituto da repercussão geral, que, ao fundamento de garantir a segurança das relações jurídicas, desloca àquela Corte a resolução de fatos que poderiam ser satisfatoriamente solvidos pelos mecanismos judiciais ordinários. Tendo por indiciado esse panorama, o presente ensaio objetiva contextualizar a atuação do Supremo Tribunal Federal na contemporaneidade, procurando compreender, a partir das diretrizes normativas traçadas pela Constituição Federal, sua desenvoltura no plano não apenas das relações jurídicas como, igualmente, no das políticas. Com esse propósito, inicialmente, serão examinados os pressupostos teóricos que determinaram esse protagonismo político, ressaltando os ajustes decorrentes da necessária adaptação às peculiaridades da cultura jurídica nacional. Identificadas as opções do constituinte, serão analisados seus resultados práticos, atentando tanto para a relação do Supremo com os demais Poderes quanto para aquele e os demais órgãos do Poder Judiciário. 1. O modelo teórico da atual jurisdição constitucional Atribui-se ao período do pós-Segunda Guerra o surgimento do movimento designado por neoconstitucionalismo. Com ele, o Direito Constitucional é impulsionado a patamares de compreensão e aplicação inimagináveis às construções teóricas que em momento anterior o consagraram como disci-


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plina específica, influenciando sobremaneira a relação do exercício do poder político com as pessoas por esse alcançadas. Prévio a esse movimento, reconhece-se por constitucionalismo a coalizão de construções teóricas que preconizavam a adoção de instrumento jurídico invulgar, a constituição, que resguardasse os indivíduos do exercício do poder estatal. É inegável seu conteúdo libertário e emancipatório, porém, limitado à perspectiva eminentemente individualista. Em linhas gerais, coube às comunidades jurídicas dispor, em constituições, acerca de direitos e garantias individuais a serem opostos contra possíveis hostilidades estatais. Cumpre reconhecer que a ideia de constituição remonta a períodos históricos localizados ainda na Antiguidade. Aristóteles já a prenunciara, conquanto que em sentido unicamente orgânico, quando do estudo da estruturação dos regimes políticos das diversas pólis.1 A inovação atribuída ao constitucionalismo reside em seu propósito de articular a constituição com o estado moderno liberal. Com essa imbricação, a constituição deixa de configurar mera descrição da atuação estatal, para encetar modelos prévios de exercício do poder, atentando para a plena liberdade individual e haurindo como efeito dessa postura sua própria legitimidade. A ideia básica que sustenta a teoria do constitucionalismo, enfim, é a do exercício limitado do poder.2 Embora se cogite de “vários constitucionalismos”3, porquanto esse “movimento constitucional gerador da constituição em sentido moderno”4 apresenta diversas “raízes localizadas em horizontes temporais diacrônicos e em espaços geográficos culturais diferenciados”5, fato é que o juízo de valor

1   ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. Ed. bilíngüe. Tradução de Francisco Murari Pires. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 15 et. seq.. 2   Na precisa definição de Canotilho, “Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 51). 3   Idem, ibidem. 4   Idem, ibidem. 5   Idem, ibidem.


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que lhe é ínsito decorre do amadurecimento de princípios caros ao liberalismo, em correspondência à ascensão da burguesia enquanto classe social e econômica prevalecente.6 Grosso modo, são esses os componentes da constituição moderna, doutrinada pelo constitucionalismo e compreendida, a partir de então, como “ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político”. 7 Entretanto, consoante declinado, o constitucionalismo manifestava juízos de valor consonantes à categoria social economicamente predominante, imbuída de propósitos específicos e desocupada dos segmentos alijados dos processos produtivos. Orientava-se pelo absenteísmo do Estado, reproduzido no epítome laissez-faire, o qual deveria se limitar a garantir a liberdade individual e rejeitando operar ativamente em qualquer espaço de realização comunitária. Notáveis fatores históricos, contudo, determinaram sensíveis alterações de matriz sociológica, desprendendo profundas e intensas movimentações no âmbito das relações sociais. Essa conjuntura passou a exigir atenção estatal para aspectos antes imprevistos ao modelo liberal. Em consequência, os ideais preponderantes precisaram renunciar a espaços, ainda que parcialmente, e permitir transformações tanto na estrutura quanto nos objetivos do Estado, o qual passa a ser instado a suprimir demandas antes alheias ao exercício do poder político. Por conta dessa ampliação, e consequente inclusão de segmentos sociais antes afastados do tablado deliberativo, a exigência de participação no debate público é acentuada. E o Direito, enquanto ciência social, decerto ressente-se dessas comutações, passando a refleti-las diretamente nos seus fundamentos. É nesse ambiente que germina o neoconstitucionalismo. A ampliação dos objetivos do Estado determina o incremento da consti-

6   Ainda conforme Canotilho: “Numa outra acepção – histórico-descritiva – fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político” (Idem, p. 52). 7   Idem, ibidem.


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tuição, a qual passa a se projetar não apenas sobre direitos fundamentais de cunho individual, mas também a alcançar aqueles de caráter social.8 Alargado significativamente o leque da atuação constitucional, três desdobramentos lhe são decorrentes. Primeiro, é preciso manejar técnicas redacionais específicas, capazes de reger o mais amplo leque de situações políticas, atentas ainda à necessidade de permanência histórica e maleabilidade evolutiva, posto que a natural rigidez normativa que lhe é ínsita não autoriza, ou pelo menos não recomenda, constantes reformas. Segundo, a ampliação do seu espectro disciplinar implica assegurar ampla força normativa às suas regras, sob pena de esvaziamento de sua aplicação. Direitos consagrados em tese precisavam se efetivar na prática, o que impõe especial teor vinculativo, sob risco de constituírem mandamentos meramente discursivos. Terceiro, é imprescindível a existência de instância hábil que assegure a aplicabilidade das regras constitucionais, a subsidiar sua peculiar força normativa, a qual termina por se concretizar na chamada jurisdição constitucional. Esses três importantes desdobramentos – hermenêutica constitucional, força normativa constitucional e expansão da jurisdição constitucional – do neoconstitucionalismo9 implicam inegável elevação do patamar político dos órgãos competentes ao julgamento das questões constitucionais. A experimentação desse método, por consequência, reclama compreensão diferenciada da clássica noção de separação de poderes. 2. A consagração da jurisdição constitucional Consoante referido, com o fortalecimento da jurisdição constitucional, procura-se assegurar ampla força normativa à constituição, extraindo dela os significados que orientam juridicamente determinada sociedade. Em verdade, não se trata de construção teórica recente. O neoconstitucionalismo 8   Os direitos fundamentais, ao longo da contínua e irreversível marcha da História, submeteram-se a modificações concernentes ao conteúdo, à titularidade, à eficácia e à efetivação. O conjunto de alterações tem sido designado como gerações ou dimensões dos direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4.ed., rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 53). 9   BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Direito Federal – Revista da AJUFE. Brasília, ano 23, n. 82, out./dez. 2005, p. 115.


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apresentou-lhe novos contornos, especialmente por exigência da ampliação do disciplinamento constitucional. Sem embargo, perscrutou em lições ainda do século passado fundamentos para seu domínio prático. Em qualquer de suas acepções, mantenha conteúdo eminentemente liberal ou social, a constituição se sobressai às demais espécies normativas. Desde a teoria do constitucionalismo assim é preconizado. Porque regulará a atuação do poder político, a constituição qualifica-se como instrumento hierarquicamente superior do sistema jurídico. É necessário, portanto, que seja resguardada de possíveis investidas com o propósito de emascular sua preeminência. E essa função de anteparo é exercida pela jurisdição constitucional. Há diversas modalidades de certificação da constitucionalidade das leis. Pode ser preventiva, ou seja, anterior ao ingresso da norma na ordem jurídica, ou sucessiva, quando posterior a essa transposição. É possível ser classificada, ainda, em total ou parcial. Ocorre a primeira quando a lei em sua integralidade é qualificada como inconstitucional, enquanto a segunda, quando apenas algum ou alguns de seus dispositivos não encontram respaldo na constituição. São dois os modelos de controle de constitucionalidade de atos legislativos. O primeiro, mais antigo, fruto do inequívoco prestígio do direito constitucional norte-americano, atribui a qualquer magistrado, independentemente da instância, a declaração incidental de inconstitucionalidade de lei. O segundo, de matriz germânica, estabelece competência exclusiva a determinado órgão para apreciação de vício formal ou substancial de ato legislativo. Esse obteve especial prestígio no direito constitucional europeu, sem deixar de contaminar outros sistemas jurídicos pelo mundo. Por conta disso, alcançou sensível aprimoramento técnico. E se o controle concentrado de constitucionalidade incumbe a órgão com específica atribuição para tanto, este pode desempenhá-la exclusivamente, sem estar atado ao Poder Judiciário, como no caso das cortes constitucionais, ou praticá-la a par de outras competências típicas das instâncias judiciais, hipótese do sistema constitucional brasileiro. As decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade detêm efeitos erga omnes e ex tunc, ou seja, aplicam-se a todos, retirando-se o ato legislativo do ordenamento jurídico, a não gerar efeitos desde sua origem,


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erigindo a ficção de que em nenhum momento tivesse existido.10 No entanto, por razões eminentemente de segurança jurídica, tem-se arrefecido o princípio de que decisões desse jaez devam, necessariamente, manter efeitos próprios dos atos reconhecidamente nulos, especialmente o retroativo. Cogita-se, inclusive, da possibilidade de tal declaração implicar em desajuste jurídico mais grave do que suportar, ainda que provisoriamente, a eficácia normativa maculada.11 Assim, especialmente no sistema austríaco, de construção kelseniana, cujos efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade são ex nunc, foi observada exceção ao princípio geral do tratamento metodológico dispensado às nulidades.12 O controle incidental, por sua vez, pode ser exercido por qualquer magistrado, no âmbito de sua jurisdição, contudo, pressupõe exame de caso concreto. Em consequência, gera efeitos apenas entre as partes litigantes, não afetando diretamente terceiros estranhos ao processo. São essas, em linhas gerais, as características da jurisdição constitucional. Sem embargo de suas distintas manifestações, nota-se como traço característico a circunstância de poder distinto ao Legislativo dispor sobre a (in)validade de ato típico desse poder. Trata-se, portanto, inequivocamente, de interferência política, com consideráveis efeitos no plano teórico da separação de poderes. Coube a Montesquieu, a partir das concepções político-filosóficas existentes, aprimorar os postulados que preconizavam o monitoramento do poder político mediante divisão dos órgãos incumbidos de exercê-lo. Segundo a percepção do estudioso francês, o Estado deveria ser composto por três poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Genericamente, incumbiria ao primeiro editar atos normativos, ao segundo, a aplicação desses, e, finalmente, ao terceiro, zelar pela adequada observância desses.13 Nessa moldura,

10   CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2.ed. Tradução por Haroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. p. 115 et. seq. 11   BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 112. 12   Idem, p. 113. 13   SECONDAT, Charles-Louis de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 202. Tal erudito ficou mais conhecido pelo título de Barão de Montesquieu. Por essa razão, o uso


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Montesquieu patrocina a preponderância do Poder Legislativo sobre o Judiciário, incumbindo-se este apenas em garantir, por intermédio de aparelhos jurídicos coercitivos, a aplicabilidade dos atos emanados daquele.14 Decerto, a jurisdição constitucional não representa golpe fatal na doutrina da separação de poderes, mas sim necessária reconsideração acerca de sua disposição. O que resta sobremaneira alterado é o predomínio político antes estabelecido em favor do Legislativo. Simbolicamente reproduzido na imagem da palavra final, pode-se afirmar, a partir da jurisdição constitucional, que ela incumbe não mais ao Legislativo, mas ao Judiciário ou mesmo a corpo estatal alheio a esses dois. Nesse contexto, sobressai nítido o papel do órgão incumbido na judicial review, não limitado apenas a considerações de conteúdo jurídico, mas revestido do poder próprio atribuído a instâncias políticas. Referindo-se à Suprema Corte norte-americana, Leda Boechat Rodrigues menciona com extrema precisão que o “tribunal deve ser visto como parte do processo político americano e não simplesmente como um órgão composto de juristas colocados acima e além da luta política”.15 Há vários exemplos de decisões proferidas no âmbito da jurisdição constitucional, em qualquer das suas matrizes, norte-americana ou europeia, que importaram significativo avanço no plano das relações públicas e privadas, individuais ou coletivas. Utilizando-se como critério avaliativo os resultados decorrentes da inclusão social, é significativo citar a decisão da Suprema Corte norte-americana Brown v. Board Education of Topeka, a qual representou passo decisivo em direção contrária à discriminação racial.16 Certamente, outros precedentes pronunciados por jurisdições constitucionais, em razão de sua relevância política, poderiam ser mencionados. Entretanto, refoge do planejamento deste trabalho análise pormenorizada. Aliás, há distintos critérios para aquilatar o quão avançadas e progressistas sejam as deste, mais frequente, será utilizado em detrimento do nome verdadeiro, menos conhecido. 14   Idem, p. 199 et. seq. 15   RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte de Warren. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 19. 16   Conforme Leda Boechat: “A decisão era tão revolucionária, envolvia em seu bojo o comando de uma tal mudança social que a Corte não se animou a descer, de imediato, às consequências práticas de sua proclamação, lançada quase como um postulado teórico” (Idem, p. 21).


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decisões pronunciadas em jurisdição constitucional. Não obstante, cumpre salientar que esse exercício, por sua própria natureza, ainda que estimada sua importância apenas pelo critério da inclusão social, não se mostra infalível em toda e qualquer situação. Suficiente, para comprovação dessa assertiva, o registro de que própria decisão Brown v. Board Education of Topeka implicou reconsideração de manifestação anterior daquela mesma corte, mas, de conteúdo assaz restritivo.17 De todo modo, ainda que discutíveis os critérios avaliativos e os resultados obtidos pelo exercício concreto da jurisdição constitucional, como instrumento de controle político, especialmente protetor de indevidas intervenções estatais, é inegável que representa aperfeiçoamento da democracia constitucional. Todavia, mesmo envolvendo inequívoco aprimoramento político, não deve ser olvidado o aspecto fundamental de que a jurisdição constitucional é exercida através da revisão de atos originados de outros poderes, em especial o Legislativo, constituído em regra sob o critério da maioria política. Pode inclusive alcançar laivos de manifestação do poder constituinte derivado.18 Nesse caso, ainda que a função primordial de revisão de atos legislativos seja atribuída ao Judiciário ou a órgão alheio, fato é que tal atuação deve se mostrar contida. A especial formulação semântica da constituição amiúde permite haurir soluções hermenêuticas distintas, quando não contraditórias.19 Posturas de enfrentamento com os demais poderes apenas para afirmação da jurisdição constitucional não são desejáveis. Tampouco é assegurada, conforme anteriormente ressaltado, a infalibilidade das manifestações 17   Com a decisão Brown v. Board Education of Topeka, a Suprema Corte norte-americana considerou “num acórdão retumbante, que as escolas ‘iguais, mas separadas’, para os negros, segundo acórdão de 1866, não satisfaziam as exigências da cláusula de igual proteção das leis da 14.ª Emenda, e que a discriminação racial nas escolas públicas era inconstitucional” (Idem, ibidem). 18   Note-se essa precisa síntese de Leda Boechat, ainda em comentários a Brown v. Board Education of Topeka: “No dia 17 de maio de 1954, sem que tivesse havido reforma constitucional, sem que nenhuma lei do Congresso ou ato do Presidente houvesse trazido qualquer alteração à Constituição ou ao sistema legal vigente, a Suprema Corte encarou um dos principais problemas atuais dos Estados Unidos, o da educação” (Idem, ibidem). Mais adiante será examinado o comportamento do Supremo Tribunal Federal a respeito. 19   Afirma com extrema propriedade Juarez Freitas que a hermenêutica não opera “a régua e o compasso” (FREITAS, Juarez. A Melhor Interpretação Constitucional “Versus” a Única Resposta Correta. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 319).


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oriundas do judicial review, por mais ilustrados que sejam seus componentes. Demasiada concentração permite desvios do próprio ideal democrático. 3. O sistema brasileiro de jurisdição constitucional O sistema brasileiro é bastante característico. Originalmente cativado pelo modelo norte-americano de jurisdição constitucional, posteriormente, inspirou-se no europeu. Na atualidade, embora admitida a concomitância, indiscutivelmente o segundo tem angariado maior prestígio. Mimetizou o sistema norte-americano ao ensejo da elaboração da primeira Constituição republicana, ao atribuir a possibilidade de revisão de atos de outros poderes pelos órgãos judiciais, filiando-se, portanto, à figura do controle difuso de constitucionalidade. Em perspectiva histórica, entretanto, não se observou, em território brasileiro, protagonismo judicial comparável ao estadunidense, por implicações inerentes à cultura de cada nação. De qualquer modo, pelo menos em tese, os modelos seriam similares. A partir da década de 1960, inaugura-se a experimentação do controle concentrado, o qual passou a ser definitivamente cultivado com o advento da Constituição Federal de 1988. E embora o modelo de controle difuso ainda detenha consentimento da Carta, na prática encontra-se desprestigiado, precipuamente pela ampla e centrípeta competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Essa compactação decorre não exatamente do exercício da jurisdição constitucional pela Corte, afinal esse tipo de engrenagem é observável em outros sistemas. O predicado pátrio é que a competência do Supremo não se limita à jurisdição constitucional, visto que lhe são constitucionalmente atribuídos o processo e o julgamento de demandas jurisdicionais típicas.20 Mais que isso, o Supremo foi revestido de outras competências que lhe permitem conferir força normativa a suas decisões em determinadas hipóteses, não exatamente no exercício tradicional do controle concentrado de constitucionalidade, o que implica

20   Professa Oscar Vilhena Vieira: “Ao Supremo Tribunal Federal foram atribuídas funções que na maioria das democracias contemporâneas estão divididas em pelo menos três tipos de instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados (ou simplesmente competências difusas pelo sistema judiciário) e tribunais de recursos de última instância” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, out./dez. 2008, p. 62).


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subjacente atividade legiferante.21 Esse delineamento normativo, desempenhado sem necessário comedimento, proporciona situações de indesejável embaraço político, hipertrofiando o exercício do poder pelo Supremo Tribunal Federal tanto no aspecto externo – ou seja, em relação aos demais Poderes republicanos – quanto no interno – agora em referência aos demais órgãos do Poder Judiciário. Desse desbalanceamento resultam sérias consequências, especialmente nas estruturas dos pressupostos democráticos, os quais, sem embargo de relativizações, ainda se orientam mais acentuadamente por procedimentos eletivos e majoritários. Cumpre asseverar, portanto, para o risco político de conferir e concentrar amplos poderes em um único órgão estatal. 3.1. A atuação disfuncional do Supremo Tribunal Federal no plano horizontal A par de exercer a jurisdição constitucional – assim como a Suprema Corte norte-americana e os tribunais constitucionais –, o Supremo Tribunal Federal detém competência para deliberar sobre diversas outras questões22,

21   Empregando o apropriado termo supremocracia, Oscar Vilhena Vieira sintetiza o panorama da atual situação constitucional: “A hipótese fundamental deste texto é que este perceptível processo de expansão da autoridade dos tribunais ao redor do mundo ganhou, no Brasil, contornos ainda mais acentuados. A enorme ambição do texto constitucional de 1988, somada à paulatina concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ocorrida ao longo dos últimos vinte anos, aponta para uma mudança no equilíbrio do sistema de separação de poderes no Brasil. O Supremo, que a partir de 1988, já havia passado a acumular as funções de tribunal constitucional, órgão de cúpula do poder judiciário e foro especializado” (Idem, p. 59). 22   A singela transcrição do dispositivo constitucional, que trata da competência do Supremo Tribunal Federal, é suficientemente ilustrativa, dispensando digressões a respeito da sua extensão. Em conformidade ao art. 102 da Constituição: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; d) o “habeas-corpus”, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o “habeas data” contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do pró-


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convergindo para si o poder de dispor acerca de qualquer assunto que tenha sido deliberado por outra instância, pressupondo apenas prévia provocação de interessado. Em não poucas oportunidades, inclusive, mantém imobilizada a atuação dos demais órgãos do Poder Judiciário. Esse, contudo, não é o único problema.23 A hipertrofia não é apenas intestina. Ultrapassa as fronteiras do Poder Judiciário para alcançar e interferir na atuação dos outros prio Supremo Tribunal Federal; e) o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território; f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro; h) (revogado pela Emenda Constitucional n. 45/2004; i) o habeas corpus, quando o coator for o Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados; l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; m) a execução de sentença nas causas de sua competência originária, facultada a delegação de atribuições para a prática de atos processuais; n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados; o) os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal; p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade; q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal; r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público; II - julgar, em recurso ordinário: a) o “habeas corpus”, o mandado de segurança, o “habeas data” e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; b) o crime político; III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. § 1.º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. 23   Atentando apenas para o foro privilegiado, Oscar Vilhena Vieira alerta para o fato de que o “Tribunal não está equipado para analisar pormenorizadamente fatos e mesmo que ampliasse sua capacidade institucional para fazê-lo, seu escasso tempo seria consumido em intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas responsabilidades mais propriamente constitucionais”. (Ob.cit., p. 64). Nesse ponto, cabe destacar o congestionamento da agenda do Supremo Tribunal Federal por força do julgamento da Ação Penal n. 470, atinente ao que ficou notoriamente conhecido por processo do Mensalão.


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Poderes da República, em especial o Legislativo. Impende acentuar que essa possibilidade de interferência não deriva de atuação arbitrária do Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, há fundamento normativo, expresso ou implícito, a amparar essa intromissão. Observe-se, a propósito, o magistério de Oscar Vilhena Vieira: Foi apenas com a Constituição de 1988 que o Supremo desloca-se para o centro de nosso arranjo político. Esta posição institucional vai sendo paulatinamente ocupada de forma substantiva, dada a enorme tarefa de guardar tão extensa constituição. A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos órgãos representativos outras vezes substituindo as escolhas majoritárias. Se esta é uma atribuição comum a outros tribunais constitucionais ao redor do mundo, a distinção do Supremo é de escala e de natureza. Escala pela quantidade de temas que no Brasil têm natureza constitucional e são reconhecidas pela doutrina como passíveis de judicialização; de natureza pelo fato de não haver qualquer obstáculo para que o Supremo aprecie atos do poder constituinte reformador. 24 O que diferencia a atuação do Supremo Tribunal Federal dos órgãos alienígenas também incumbidos da jurisdição constitucional é a ampla quantidade de assuntos que encontra respaldo constitucional.25 Maior ou menor ginástica hermenêutica autoriza praticamente o ingresso de qualquer maté-

24   Idem, p. 60. 25   A crítica deste ensaio não ingressa no exame do segundo critério utilizado pelo doutrinador, a distinção de natureza por ele apregoada.


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ria no plano de apreciação da Corte. Essa formulação ampara plena possibilidade de atuação, mesmo que temperada pelo argumento da indispensável prévia provocação.26 Basta atentar para o alarmante número de ações diretas de inconstitucionalidade.27 Esse quadro naturalmente vindica a adoção pelo Supremo de posturas de autocontrole. Todavia, não é o que se conclui com o exame de três exemplos concretos apresentados por Oscar Vilhena Vieira a partir de julgados da própria Corte, não parecendo desnecessário ressaltar que o elenco é meramente exemplificativo. No case concernente à pesquisa com células-tronco, destacou o referido autor a proposição dos Ministros Carlos Alberto Direito e Antonio Carlos Peluso de estabelecer, no recinto da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN n. 3.510/DF, diretrizes de caráter flagrantemente legislativo, concernentes à criação de instrumentos de fiscalização não previstos na legislação impugnada.28 A respeito de dois outros arestos, o constitucionalista distingue que o Supremo Tribunal Federal atuou “não apenas conferindo efeito legiferante a algumas de suas decisões, mas que esta atuação legislativa eventual26   Nesse ponto, a Constituição Federal ampliou significativamente o rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Dispõe o caput do art. 103: “Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”. 27   Desnecessário ser exaustivo. A menção dos números dos três últimos anos passados é assaz esclarecedora para o que se pretende afirmar. Em 2010, foram distribuídas 134 ADINs, enquanto em 2011, 165, e, finalmente, em 2012, 159 (dados colhidos no sítio oficial do Supremo Tribunal Federal em 08/05/2013: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servic o=estatistica&pagina=pesquisaClasse). 28   “Uma das maiores idiossincrasias deste julgamento foi o fato de que a minoria no plenário, já derrotada por aqueles que entendiam que a lei era constitucional em sua totalidade, obstinadamente buscou que fossem incluídas na sentença (sic) medidas de caráter legislativo, que restringiriam enormemente a eficácia da legislação. Conforme proposição dos Ministros Carlos Alberto Direito e Antonio Carlos Peluso, invocando a doutrina da interpretação conforme a Constituição, propunham a criação de mecanismos mais rigorosos para a fiscalização das pesquisas com células tronco. As proposições de cunho legislativo que se buscava inserir na decisão, barradas energicamente pelos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, sugerem duas coisas: em primeiro lugar uma óbvia ambição legislativa, por parte da minoria; em segundo lugar, uma exploração da teleaudiência como espaço para realização de um discurso, que apenas poderia ter conseqüências políticas, posto que a sorte jurídica do caso já se encontrava selada” (Ob.cit., p. 69/70).


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mente tem hierarquia constitucional”.29 Refere-se ao Mandado de Segurança – MS n. 26.603/DF e à Reclamação n. 4.335/AC, suspeitando que “o Supremo parece ter dado um passo na direção do exercício do poder constituinte reformador”.30 O primeiro tratou do tema da fidelidade partidária, terminando a Corte por estatuir hipótese de perda de mandato parlamentar não expressamente prevista na Constituição Federal31, enquanto no segundo praticamente esvaziou o conteúdo normativo da regra constitucional insculpida no inciso X do art. 52 da Carta32. Outro exemplo de incômodo deslocamento à atividade legiferante é o

29   Idem, p. 70. 30   Idem, ibidem. Após análise de ambos os arestos, arremata o doutrinador: “Independentemente de nossa posição sobre o acertou ou erro do Supremo Tribunal Federal no julgamento desses casos, o que parece claro é que o Tribunal passou a se enxergar como dotado de poder constituinte reformador, ainda que a promoção das mudanças constitucionais não se dê com a alteração explícita do texto da Constituição” (Idem, p. 72). 31   “Não irei aqui entrar no mérito político da decisão. Se esta beneficiou ou não a organização do sistema político-partidário brasileiro. Mas apenas destacar o fato jurídico de que a decisão dos tribunais (TSE e STF) criou uma nova categoria de perda de mandado (sic) parlamentar, distinta daquelas hipóteses previstas no artigo 55, da Constituição Federal, que, como o próprio Ministro Celso de Mello reconheceu, constituem ‘numerus clausus’. O fato de se estar estabelecendo mais uma hipótese de perda de mandado parlamentar evidentemente cria um problema institucional sério: a decisão tomada pelos dois tribunais é decorrência de um processo de interpretação constitucional ou tem ela caráter legislativo (no caso específico: de natureza constitucional)? O próprio Ministro Celso de Mello irá enfrentar esta questão ao dizer que a Constituição conferiu ao Supremo ‘o monopólio da última palavra em temas de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental’, o que pode ser interpretado como uma leitura fiel do artigo 102 da Constituição. O ministro, no entanto, vai além ao adotar em seu voto as seguintes palavras de Francisco Campos: ‘A Constituição está em elaboração permanente nos tribunais incumbidos de aplicá-la (...). Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona igualmente, o poder constituinte’. Este certamente é um passo muito grande, no sentido de conferir poderes legislativos, eventualmente de reforma constitucional, ao Tribunal” (Idem, p. 71). 32   “Contra a denegação do pedido de progressão insurgem-se inúmeros condenados, vindo o Supremo a apreciar a Reclamação nº 4335. Após uma detalhada e sofisticada argumentação, o Ministro relator busca demonstrar que o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro vem passando por um longo processo de mutação, marcado pela ampliação da importância do sistema de controle concentrado em detrimento do controle difuso. Neste sentido, especialmente após a introdução do efeito vinculante em nosso sistema jurídico, a regra do artigo 52, X, ficou destituída de maior significado prático, tendo, portanto, ocorrido ‘uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto’. Esta mutação, evidentemente, consubstancia-se em novo direito constitucional, na medida em que é avalizada pelo Supremo Tribunal Federal” (Idem, p. 72).


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caso da Súmula Vinculante n. 1133, referente à oportunidade e à conveniência do emprego de algemas pelas autoridades estatais. Não exatamente por seu conteúdo progressista e garantista, mas pelo procedimento que a originou, o verbete em discussão é altamente discutível. Seu déficit legitimador é de ordem formal, não material. Com efeito, a Constituição Federal faculta ao Supremo Tribunal Federal “após reiteradas decisões sobre matéria constitucional” a aprovação de súmula “que terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”34. Sem embargo, não é tarefa fácil encontrar reiteradas decisões sobre o assunto, senão que algumas poucas contadas às unidades; ou mesmo sobre a controvérsia havida entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública. Igualmente é inviável dimensionar o quanto a ausência de sua edição acarretaria de insegurança jurídica ou multiplicação de processos sobre questão idêntica. Ao contrário, a súmula erige-se em fundamento para pretensões com esteio no uso indevido das algemas, encorajando, assim, futuras demandas. Manifestações de poder como as anteriormente explicitadas situam-se, pela recorrência, menos na categoria das exceções do que no campo da habitualidade. Desconjuntam a função legislativa do Poder que por natureza política a deveria deter, consequentemente esvaziando-o. Tais circunstâncias redundam em franca dissimetria entre os Poderes constitucionais. Por certo, seria leviano omitir que o Poder Legislativo tem contribuído para esse quadro de desarmonia, por peremptoriamente negligenciar suas atribuições constitucionais, repetidamente relegando a deliberação sobre questões polêmicas a outras instâncias estatais. Talvez exatamente por antever essa possibilidade, o constituinte tenha se antecipado e disponibiliza-

33   “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” 34   Redação conferida pelo art. 103-A inserido pela Emenda Constitucional n. 45/2004.


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do mecanismos como o mandado de injunção (art. 5.º, inciso LXXI), a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão (§ 2.º do art. 103) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 103, § 1.º). Tais ferramentas poderiam ser suficientes para remediar a inércia legislativa, contanto que o próprio Supremo Tribunal Federal as houvesse munido da necessária eficácia. 3.2. A atuação disfuncional do Supremo Tribunal Federal no plano vertical A ampliação do horizonte de atuação do Supremo Tribunal Federal guarda estreita relação com a sobrelevação da Corte com relação às demais instâncias do Poder Judiciário. Essa projeção é diretamente proporcional à intensificação das disposições constitucionais. Porque mais minuciosa a Constituição, maior o alcance jurisdicional do órgão. Restará, consequentemente, alargada sua natural ascendência, desfocando a competência das demais instâncias judiciais, sejam monocráticas ou colegiadas. A aptidão de avocar a si o insustentável poder de judicar sobre qualquer tema, inclusive com atípico efeito normativo, praticamente exaure as atribuições das demais alçadas jurisdicionais. A factibilidade dessa extrema concentração não é ensejada apenas pelas ações diretas de constitucionalidade e súmulas vinculantes, mas reforçada pela reclamação (art. 102, inciso I, alínea l) e pelo recurso extraordinário (art. 102, inciso III). Copiosa nessas ferramentas se encontra a especial coloração constitucional atribuível a qualquer matéria, que assim revestida ingressa na competência do Supremo Tribunal Federal. Nitidamente, inexiste fórmula objetiva que assegure classificar determinada matéria como constitucional ou despida desse especial significado. Subjetivismos que porventura adestrem essa deliberação são, portanto, latentes. A depender da qualidade da fundamentação, uma irrelevante briga de cães pode ser reputada constitucional, enquanto a incidência de um tributo federal pode receber outra qualificação. A vagueza da locução repercussão geral, enquanto pressuposto de admissibilidade ou de conhecimento do recurso extraordinário (§ 3.º do art. 103 da Constituição Federal), é permissiva de ilações imprevisíveis.


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Desse contexto, há condições de conjecturar sobre algumas disfunções que exaurem, ao final, a legitimidade das decisões judiciais. A ciência jurídica reconhece amplamente que a sentença ou o acórdão estabelece a regra do caso concreto.35 É manifesto, por conseguinte, o elemento interpretativo que compõe a decisão, enriquecido por inimagináveis fatores a interferir nesse processo de composição. E se por um lado pode causar imprevisibilidade quanto à solução jurídica a ser proposta, de outro proporciona maior diversidade de argumentos a instruir a construção dessa resposta. Pois a centralização das decisões pode conduzir a situações paradoxais. Em país de dimensões continentais, o tratamento genérico dos casos pode determinar soluções indiscutivelmente inábeis e em desconformidade à própria Constituição Federal. Quando o requisito para concessão de alguma prestação estatal dependa da verificação da disponibilidade econômica do requerente, são variáveis seus componentes. Assim, v.g. no caso do benefício assistencial36, cujo pressuposto é a constatação da miserabilidade, são distintos os critérios de avaliação. Os ingredientes relacionados à composição da dieta mínima individual variam regionalmente, assim como são díspares os valores necessários para tratamento medicamentoso. Descurar dessa realidade implica tornar inócuo o mandamento constitucional da assistência. 37 Outro efeito negativo colhido da concentração é a restrição de acesso ao palco da deliberação, o qual se desloca à Capital Federal. A participação das partes, enquanto elemento indispensável para correta apreensão da controvérsia38, termina relegada. E é notória a indisponibilidade de significativa

35   Pontifica Humberto Ávila que as normas “não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 22). Em consequência, “os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado” (Idem, ibidem). 36   O benefício assistencial encontra-se disciplinado nos artigos 20 e 21 da Lei n. 8.742/93, com importantes alterações determinadas pela Lei n. 12.435/2011. 37   Art. 203 da Constituição Federal. 38   É sempre almejada a maior intervenção possível das partes como mecanismo de fundamentação democrática do Poder Judiciário. A propósito do assunto: COSTA, Gerson Godinho da. O princípio constitucional do contraditório como pressuposto de legitimação da atividade jurisdicional. In: HIROSE, Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso Modelar de Direito Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011, p. 14 et. seq.


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parcela populacional para se dirigir diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Tampouco institutos processuais como as audiências públicas ou o amicus curie – em outros contextos, de incriticável pertinência – são capazes de reverter essa insuficiência. O regular encaminhamento da demanda, mediante passagem pelas diversas instâncias componentes do iter formador do juízo natural, permite melhor amadurecimento da análise fática. Alcançando o Supremo, o colegiado disporá de todos esses elementos sem desmerecimento da necessária interação dos litigantes. Mas na medida em que preconizado tratamento generalizado, será inegável o prejuízo sob essa ótica. Acentua-se a possibilidade de indesejável tratamento generalizado a partir da repercussão geral, em conformidade a sua sistemática processual.39 Com efeito, na hipótese em que “houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral”, será submetida à seleção pelos colegiados de origem (Tribunais, Turmas de Uniformização e Turmas Recursais) de “um ou mais recursos representativos da controvérsia” para encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, restando sobrestados os demais até resolução definitiva. Acaso não constatada a repercussão geral, os processos sobrestados deverão ser julgados nos respectivos colegiados de origem, porém, admitida a existência de repercussão geral e julgado o mérito do recurso extraordinário, poderão ser considerados prejudicados ou submetidos à retratação. Nessa linha, na hipótese de o Supremo admitir a repercussão geral sobre determinado tema, após seleção de representativos da controvérsia, exemplificativamente, pelo tribunal de um estado da Federação, todos os demais deverão aguardar a manifestação daquela Corte. Se reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito do extraordinário, haverá indevida supressão de instância, posto que os demais pretórios serão alijados do processo decisório.40 Eufemisticamente, poderão até julgar os processos, cujo resultado, 39   Art. 543-B do Código de Processo Civil, incluído pela Lei n. 11.418/2006. 40   Com extrema acuidade, Oscar Vilhena Vieira propõe que a Corte se dedique exclusivamente à jurisdição constitucional. Confere que tal “não significa adotar o modelo europeu de controle de constitucionalidade, mas sim dar seguimento a nossa experimentação institucional, que compõe o sistema difuso com o concentrado. Com a arguição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante, o Supremo terá condição de redefinir sua própria agenda e passar a utilizar do sistema difuso como instrumento de construção da integridade


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no entanto, será adiante adequado pelo Supremo a sua própria orientação. Por derradeiro, não há que se descurar do princípio constitucional da celeridade processual (art. 5.º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal). O reconhecimento descomedido de repercussão geral pode congestionar a regular tramitação dos demais processos no Supremo Tribunal Federal. A propósito, cumpre notar que há razoável quantidade de temas com repercussão geral reconhecida. Grosso modo, na suposição de que a Corte necessite de dia único para deliberar sobre cada assunto, a agenda deverá consumir pelo menos 15 meses, considerados finais de semana e feriados!41 Isso sem considerar suas demais atribuições. De qualquer modo, duas indagações se impõem. Primeiro, é preciso questionar se haverá de fato tantas matérias que dependam de solução universal. Em caso positivo, impende indagar se essa repercussão geral não recomendaria prévia atuação legislativa, pelo Poder constitucionalmente incumbido de estabelecer regras gerais. De todo modo, independentemente dessas inquirições, urge destacar a incongruência, com relação ao preceito fundamental da razoável duração do processo, havida em relação a matérias socialmente sensíveis que permanecerão aguardando indefinidamente por soluções que poderiam ser alcançadas pelo juízo natural. Conclusões Mesmo que permaneça suscetível a enquadramentos perfilados pelos estamentos mais conservadores da sociedade brasileira, é indiscutível que a Constituição Federal de 1988 desencadeou perceptíveis melhoramentos em benefício dos mais diversos segmentos sociais, especialmente daqueles

do sistema judiciário e promoção do interesse público. Definitivamente não é necessário analisar cada recurso extraordinário e muito menos cada agravo de instrumento que chega ao Tribunal, todos os dias. Ao restringir sua própria jurisdição, ao se autoconter, o Supremo estaria ao mesmo tempo reforçando a sua autoridade remanescente e, indiretamente, fortalecendo as instâncias inferiores, que passariam, com o tempo, a ser últimas instâncias, nas suas respectivas jurisdições. É preocupante a posição de subalternidade a que os tribunais de segunda instância foram relegados no Brasil, a partir de 1988, quando as suas decisões passaram a ser invariavelmente objeto de reapreciação” (Ob.cit., p. 74). 41   Contabilizados os processos julgados e pendentes de julgamento, observa-se que foram admitidos em repercussão geral 456 assuntos (dados colhidos no sítio oficial do Supremo Tribunal Federal em 08/05/2013: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=juris prudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao).


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alheios às legítimas relações de poder. O efeito socialmente inclusivo por ela produzido é inteligível mesmo aos mais resistentes. Esse reconhecimento, contudo, não importa admitir que o Estado Constitucional, sem embargo de seus incrementos, prescinda de aprimoramento. Há carências de atuação insofismáveis. Nesse ponto, toda amplificação, re-elaboração ou transformação que tenha por propósito a sofisticação de seu funcionamento é cobiçável. O disciplinamento – em parte original, em parte derivado de reforma – do exercício da jurisdição constitucional parece imbuído dessa finalidade. Os efeitos decursivos dessa novel ordenação é que não se afiguram alvissareiros, particularmente frente a posturas imoderadas. O regime constitucional permite-as. A despeito, recomenda-se contenção, ainda assim sob risco de desequilíbrio. Noutras palavras, ainda que reflexamente estimulado pelo sistema constitucional, deve o Supremo Tribunal Federal abster-se de práticas mais ativas, especialmente recusando tarefas de cunho eminentemente legiferante. O eventual imobilismo, não afetado pelo aconselhado refreamento, pode ser menos prejudicial que a dissintonia institucional ocasionada pela interveniência. Isso pelo menos até que exista suficiente consenso que prescreva devida reforma constitucional que circunscreva o papel do Supremo Tribunal Federal tão-somente à jurisdição constitucional, com as reconhecidas obtemperações que seu exercício exige. Enquanto permanecer com competência em outras áreas, a probabilidade de enviesada atuação em detrimento dos demais poderes republicanos ou órgãos judicantes é concreta, quando não efetivamente demonstrável. Em última análise, não se descarta a possibilidade de, em não operadas as necessárias correções para restabelecimento da correlação de forças, ao invés de estabilizar-se o sistema constitucional, restarem estimuladas investidas em desfavor da jurisdição constitucional. Esta, ao fim e ao cabo, correrá o perigo de ser asfixiada, de modo que todos os avanços até então obtidos sobrem desprezados. Enfim, é absolutamente imprudente não atentar para que a anunciada vacuidade legislativa de hoje não se converta em vacuidade judicial amanhã.


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Referências bibliográficas ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. Ed. bilíngue. Tradução de Francisco Murari Pires. São Paulo: Hucitec, 1995. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Direito Federal – Revista da AJUFE. Brasília, ano 23, n. 82, p. 109-157, out./dez. 2005. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 2001. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002. CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2.ed. Tradução por Haroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. COSTA, Gerson Godinho da. O princípio constitucional do contraditório como pressuposto de legitimação da atividade jurisdicional. In: HIROSE, Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso Modelar de Direito Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011. p. 13-37. FREITAS, Juarez. A Melhor Interpretação Constitucional “Versus” a Única Resposta Correta. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 317-356. RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte de Warren. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4.ed., rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SECONDAT, Charles-Louis de (Barão de Montesquieu). Do Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v.1. (Os Pensadores). VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, p. 55-75, out./dez. 2008.


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Lavagem de dinheiro: algumas consideraçþes sobre novas abordagens


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Theophilo Antonio Miguel Filho Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mestre em Direito da Administração Pública pela Universidade Gama Filho, Especialista em Direito Processual Civil e Direito Sanitário pela Universidade de Brasília, Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado), Presidente da Comissão de Direito Internacional da EMARF/TRF2, possui Curso de Extensão em Propriedade Intelectual pela PUC/RJ e é Juiz Federal Titular da 24ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: lavagem de dinheiro. Conceito. Aparência lícita ao capital ilícito. Breve histórico. Brasil. Lei nº 9.613/98. Lei nº 12.683/2012. Nova redação. Alegação de inconstitucionalide do art. 17-B. Direito à intimidade. Privacidade. Quebra de sigilo sem autorização judicial. Flexibilização. Stj analisa mandado de segurança da google do brasil questionando quebra de sigilo. Hipóteses sem regulamentação. Cartas circulares do banco central. Economia x normas penais. Teoria “cegueira deliberada”. Importação pelo stf. Ação penal nº 470. Mensalão. Inovações e consequências práticas. Conclusão: combate ao crime de lavagem sem prejuízo de direitos e garantias constitucionais. Resumo: lavagem de dinheiro. Conceito. Aparência lícita ao capital ilícito. Breve histórico. Brasil. Lei nº 9.613/98. Lei nº 12.683/2012. Nova redação. Alegação de inconstitucionalide do art. 17-B. Direito à intimidade. Privacidade. Quebra de sigilo sem autorização judicial. Flexibilização. Stj analisa mandado de segurança da google do brasil questionando quebra de sigilo. Hipóteses sem regulamentação. Cartas circulares do banco central. Economia x normas penais. Teoria “cegueira deliberada”. Importação pelo stf. Ação penal nº 470. Mensalão. Inovações e consequências práticas. Conclusão: combate ao crime de lavagem sem prejuízo de direitos e garantias constitucionais. Embora não haja um padrão conceitual uníssono na doutrina, a essência não diverge: lavagem de dinheiro é, em poucas palavras, um procedimento que tem por objetivo dar aparência lícita ao capital que ilicitamente foi concebido. A tradição jurídica costuma definir a lavagem como aquele conjunto de


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operações feitas para integrar ao sistema econômico e financeiro os valores, bens e direitos obtidos por meio de práticas criminosas, mascarando, ou, para usar expressão mais atual, “maquiando” o berço ilícito do capital. Foram os Estados Unidos e a Itália as primeiras nações a criminalizar essa conduta, por conta das organizações criminosas formadas pelos gangsters e mafiosos, respectivamente. Mais tarde, relacionando a lavagem à macrodelinquência econômica, a Convenção de Viena (1988) a configurou internacionalmente. O Brasil, como consequência de ser signatário daquela Convenção Internacional, aprovou a Lei 9.613, em 1998, tipificando o crime de lavagem de dinheiro, para facilitar o combate às atividades das organizações criminosas. Recentemente, nosso ordenamento jurídico recebeu a Lei 12.683, aprovada em 9 de julho de 2012, que revogou os crimes considerados necessários para que houvesse a condenação por lavagem de dinheiro e, desde então, consideram-se antecedentes todos os crimes previstos no Código Penal. A tipificação do branqueamento de capitais, expressão lusitana para esse crime, envolve várias questões delicadas, do ponto de vista jurídico-penal, como, a própria definição de seus elementos constitutivos, o bem jurídico legal a ser protegido, a figura do concurso de normas etc. Em razão dessas dificuldades, a nova redação dada pela lei recém-admitida no nosso Direito, a 12.683/2012, tem enfrentado muitas críticas. Mais: tem sofrido, inclusive, alegações de inconstitucionalidade de algumas de suas normas, como acontece com aquela inserida no art. 17-B. É o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4906, que tramita no STF, cujo relator é o ministro Celso de Mello. A ADI foi ajuizada pela Associação Brasileira de Concessionárias do Serviço Telefônico Fixo Comutado (Abrafix), tendo por objeto a norma contida no referido dispositivo da nova lei que, sem prévia autorização judicial, permite que o Ministério Público e autoridades policiais acessem dados cadastrais de pessoas sob investigação mantidos pela Justiça Eleitoral, instituições financeiras, administradoras de cartão de crédito, provedores de internet e empresas telefônicas. Questiona-se, nessa demanda, a submissão das associadas (operadoras de serviços de telefonia) ao cumprimento de obrigação que seria, segundo a Associação, manifestamente ilegal, já que desconforme com a norma extraída do art.


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5, X, da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, sob pena, inclusive, de se ter de reparar, via indenização, eventuais danos materiais ou morais sofridos em virtude da violação do comando constitucional. Segundo a entidade, ao cumprir essa nova determinação legal, as empresas estariam invadindo a esfera de proteção das pessoas, como no caso do consumidor de serviços de telecomunicações. Alega que esses direitos (à privacidade e à intimidade) não podem ser excetuados sem que passem pelo criterioso crivo do Judiciário, detentor do poder-dever de analisar e julgar os casos concretos, bem como não se pode transferir esse mesmo poder-dever ao Ministério Público nem às autoridades policiais. Acrescenta que somente o órgão investido de jurisdição tem condições de, em virtude de sua imparcialidade e equidistância, proceder ao exame da situação fática, identificando se é ou não caso de flexibilizar o direito assegurado. Corroborando sua tese, a demandante cita as palavras do relator, ministro Celso de Mello, para quem “é imprescindível a existência de justa causa provável, vale dizer, de fundada suspeita quanto à ocorrência de fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse público, a ser verificada em cada caso individual, à luz dos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade”. Assevera ainda que a medida determinada pela norma combatida daria ao Ministério Público e às autoridades policiais acesso a dados de indivíduos investigados por esses órgãos, que, justamente pela posição que ocupam, “têm, muito estranhamente, restrições em submeter a medida ao prudente crivo do Judiciário”. Também segundo a Associação, essa mesma norma objeto da ADI violaria ainda o conteúdo de alguns dispositivos da Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997), da Lei 10.073/2003 e da Resolução 426/2005, da Agência Nacional de Telecomunicações. Em todas elas, aparece o valor do direito à privacidade, ao sigilo e à intimidade a ser resguardado, de modo que somente por autorização judicial se possa ter acesso aos documentos, dados e informações pessoais dos usuários. Como consequência dessas alegações, a Associação Brasileira de Concessionária de Serviço Telefônico Fixo Comutado apresentou pedido ao STF, requerendo a concessão de medida cautelar para suspender os efeitos


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da norma observada no dispositivo apontado (art. 17-B da Lei 9.613/1998) e a declaração de sua inconstitucionalidade. Veja-se que, no nosso ordenamento jurídico, a Lei de Lavagem de Dinheiro foi a primeira a trazer expressamente a possibilidade de se alcançarem dados cobertos pela proteção constitucional e legal, sem a autorização do órgão judicante, segundo o teor do artigo 17-B, objeto da ADI. Mesmo assim, essa flexibilização e a abrangência do que se consideraria dado cadastral preocupam os operadores do Direito. Primeiro, porque a quebra de sigilo, por si só, já não é vista com bons olhos. Desconectada da autorização judicial, soa ainda mais preocupante. Depois, porque, por exemplo, não se sabe se a identificação pessoal, ou senha do usuário, no caso dos usuários de provedores de internet, também se incluiria nesse vasto campo de dados cadastrais. Interessante, sobre o tema, a decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Questão de Ordem em Inquérito, que condenou a Google do Brasil a quebrar o sigilo de e-mails de usuário investigado por lavagem de dinheiro, dentre outros crimes. Ocorre que, segundo as regras da matriz da Google, com sede nos Estados Unidos, tais dados não são passíveis de divulgação por sua filial, pois as leis norte-americanas vedam a quebra de sigilo dessas informações. A alternativa diplomática foi uma solução que a empresa apresentou para que as informações fossem obtidas através de um acordo de assistência judiciária (Decreto 3.810/2001), mantido entre os dois países em matéria criminal. Um outro ponto trazido pela filial brasileira é que ela e a matriz possuem personalidades jurídicas distintas, portanto não compartilham bancos de dados, o que inviabilizaria o cumprimento da decisão judicial. A Google do Brasil enumera ainda os casos em que a legislação americana poderia permitir a quebra do sigilo dos dados: perda de vida ou graves danos físicos a terceiros. Laurita Vaz, ministra relatora desse caso polêmico, que mostra bem a importância do tema, afirmou que “o que se pretende é a entrega de mensagens remetidas e recebidas por brasileiros em território nacional, envolvendo supostos crimes submetidos induvidosamente à jurisdição brasileira”. Segundo ela, o recurso diplomático não deve ser considerado como argumento


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válido, porque a determinação judicial pode ser cumprida no nosso território, já que o fato de as informações estarem armazenadas em outro país não tem o condão de torná-las material de prova estrangeiro. A constituição da filial brasileira se deu sob normas pátrias, o que a impede de recorrer às leis americanas para deixar de fazer aquilo que determina nosso Judiciário. Para a ministra, o cumprimento é possível, portanto, desde que haja boa vontade da empresa, uma vez que é sabido não ser o caso de impossibilidade técnica. O entendimento da relatora foi acompanhado pela maioria do colegiado, que compartilhou o raciocínio da ministra ao explanar que não seria justo uma empresa se estabelecer em nosso território, explorar economicamente o serviço de correio por internet, mas se esquivar de cumprir as leis do país onde se constituiu. Por seu turno, o Ministério Público Federal afirmou, como responsável pelo Inquérito (784/DF) e autor da Questão de Ordem, que a entrega dos dados transmitidos entre as unidades pertencentes ao mesmo grupo de empresas, exclusivamente à autoridade judicial, não viola a soberania do Estado norte-americano. Por unanimidade, os ministros rejeitaram os Embargos de Declaração interpostos. Ainda está sendo analisado pelo STJ o Mandado de Segurança impetrado pela Google do Brasil questionando a quebra de sigilo. O relator é o Ministro Arnaldo Esteves Lima. A empresa vem buscando outros recursos contra a decisão. Várias são as áreas da ciência jurídica que se integram quando a questão é a proteção dos dados veiculados pela internet. Por exemplo, na seara penal, essas informações podem ser muito úteis para a segurança da vítima, ou para se incluir no arcabouço probatório. É esse o motivo que leva os investigadores a buscarem cada vez mais vias de acesso aos dados ali mantidos, enquanto as leis, a jurisprudência e a doutrina vão ensaiando limites, parâmetros, sinalizando onde e de que forma é permitida a captura desse tipo de prova. Na prática, e não tendo ainda regulamentação que abranja todas ou, pelo menos, a maioria das hipóteses, as empresas desse novo universo virtual costumam seguir um dos dois caminhos: resguardar os dados até que haja autorização judicial, ou liberá-los, mesmo sem o mandado.


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Muitas dessas empresas estão sediadas nos Estados Unidos, onde há um projeto de lei para que as agências de Inteligência possam solicitar informações aos provedores de internet e serviços telecomunicações. O Cyber Intelligence and Protect Act divide a opinião dos parlamentares, justamente porque a ideia de se ter acesso aos dados virtuais sem o amparo dos tribunais é vista com reservas. A proposta, se aprovada, deixará desprotegidos os dados informáticos dos usuários ao redor do mundo. Gustavo Henrique Badaró, livre-docente em Direito Processual Penal (USP), para quem a produção de provas através do meio digital ainda gera muitas dúvidas, afirmou que a questão vai muito além: “Postagens nas redes sociais e até dados de localizadores de veículos são requisitados para ajudar nas investigações e julgamentos”. Considerando-se o crime de lavagem de dinheiro e suas interligações com o narcotráfico, crime organizado, terrorismo e outras práticas que tomam uma dimensão internacional, passando pela globalização do mercado financeiro com seus bancos internacionais e paraísos fiscais, as novas tecnologias dos meios de comunicação são um meio muito eficaz de combate a esses delitos. Por causa dessa internacionalização é que a recente atuação brasileira no campo legislativo, abarcando também a lavagem, vem sendo aplaudida por investidores internacionais. Duas novas Cartas Circulares do Banco Central (3.653/2013 e 3.654/2013) entraram em vigor, procurando implementar as novidades trazidas pela Lei 12.683/2012. Basicamente, elas buscaram alinhar o nosso sistema penal de combate à lavagem de dinheiro às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), organismo intergovernamental que tem por objetivo promover estratégias contra a lavagem e o financiamento do terrorismo. Contudo, os economistas nem sempre analisam essas inovações sob o ponto de vista penal, o que é absolutamente necessário para que não haja conflito com seus importantíssimos princípios basilares. Esse perigoso descompasso corre o risco de acontecer, caso se pretenda obedecer cegamente às recomendações de organismos importantes, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, além do próprio Gafi. Essas circulares trouxeram inovações regulamentares importantes, como o dever de comunicação prévia, com prazo mínimo de um dia útil, de opera-


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ções cujos valores sejam iguais ou superiores a 100 mil reais; especialização do sistema de controle de dados cadastrais de pessoas físicas e jurídicas etc. A ideia geral é recrudescer as medidas preventivas, mas a sensação de impunidade não advém somente da absolvição ou da não condenação. Ela é fruto também de normas que não facilitam a aplicação da lei. Uma outra questão muito debatida é a importação, para o campo penal, da teoria americana da “cegueira deliberada”, apontada como a grande inovação que o Supremo Tribunal Federal trouxe no caso do mensalão, segundo a qual é possível condenar o réu que desconsidera deliberadamente a origem inegavelmente ilícita do dinheiro. A primeira vez que essa teoria foi utilizada em nosso país foi quando do julgamento, pela Justiça Federal de dois empresários de Fortaleza acusados de lavagem de dinheiro ligado ao maior assalto a banco da nossa história. O magistrado entendeu que os acusados, embora não houvessem participado diretamente do crime, não poderiam desconhecer a origem ilícita do dinheiro. O TRF da 5ª absolveu os réus, entendendo que adotar a tese da “cegueira deliberada” seria equivalente a admitir a responsabilidade objetiva, o que não é possível, salvo nos casos de crime ambiental, no nosso ordenamento jurídico. De fato, essa teoria, muito flexível quanto ao conjunto probatório trazido aos autos para justificar a condenação, aproxima-se consideravelmente da responsabilidade objetiva, que dispensa a prova de dolo ou culpa e que só tem vez, no direito pátrio, na excepcionalidade apontada. No caso da Ação Penal nº 470 (STF), o tema permeou os debates e alcançou o Acórdão. O voto condutor do ministro relator mencionou expressamente a teoria controversa: “O direito comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual, merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo direito anglo-saxão (willful blindness doctrine). Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (1) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham


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305 de crime, (2) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (3) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa”; “Embora se trate de construção da common law, o Supremo Tribunal Espanhol, corte da tradição da civil law, acolheu a doutrina em questão na ‘Sentencia 22/2005’, em caso de lavagem de dinheiro, equiparando a cegueira deliberada ao dolo eventual, também presente no direito brasileiro”.

A crítica maior que se faz à adoção desse novo entendimento esposado pelo Supremo é a insegurança gerada ao se erigir indício à condição de prova, podendo resultar em uma decisão discutível, que toma a verdade suficiente por verdade real. É essa a causa de tanta controvérsia sobre essa teoria, mesmo nos Estados Unidos, onde ela se originou, como na Europa, onde se propagou. Ora, se alhures a aceitação da tese está longe de ser pacífica, aqui, no Brasil, a ideia de eventuais condenações baseadas em mera probabilidade não se coaduna com os valores constitucionais abraçados. Tanto é assim, que, durante o julgamento do mensalão, o ministro Marco Aurélio Mello exprimiu sua preocupação: “Preocupa-me sobremaneira o diapasão que se está dando ao tipo lavagem de dinheiro”; [...] “Assusta-me brandir que, no caso da lavagem de dinheiro, contenta-se o ordenamento jurídico com o dolo eventual”. O ministro Gilmar Mendes, comungando da mesma inquietude, afirmou que é preciso haver prova do dolo, mas ressalvou que, já que essa só é possível mediante confissão, a situação precária do PT, na época dos fatos, deveria ser tida por evidência da origem do dinheiro, sob pena de deixar aberta a porta para a impunidade. Não é só no meio jurídico e empresarial que essa teoria adotada pelo


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STF, no Acórdão da Ação Penal nº 470, causa receio. O mundo financeiro também se viu sobressaltado diante da nova perspectiva, que aumenta as chances de condenação dos acusados de lavagem de dinheiro, em função de uma maior amplitude em relação à responsabilidade penal de executivos de bancos que agora, em tese, podem ser punidos por omissão, se faltarem com o “dever de cuidado”, deixando de cumprir regras a ele relacionadas. Isso faz com que os bancos tenham aumentados tanto os riscos, quanto os custos. Nesse passo, o julgamento do mensalão foi visto por muitos como maléfico para a sociedade, uma vez que priorizou o alcance de solução política, em detrimento de importantes regras de direito, dando ensejo a perigoso precedente. Na prática, isso poderia prejudicar certas instituições que teriam dificuldade em abrir contas bancárias, como as igrejas, por exemplo, já que não valeria a pena a assunção do risco de ter responsabilizado penalmente um diretor de estabelecimento bancário, sendo mais prudente selecionar os possíveis clientes a partir de critérios mais rigorosos. Concluindo, pode-se dizer que o delito da lavagem de dinheiro, crime multifacetado que é, vem crescendo e ganhando dimensões sempre maiores e mais complexas, principalmente em função das novas técnicas, tanto para perpetrá-lo, quanto para trampolinar seu controle e sua punição. O desenvolvimento por ele alcançado torna necessária a cooperação internacional entre as nações, em prol de um combate efetivo. Essa necessidade explica as inovações legais e jurisprudenciais, porém nada justifica o abandono dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico. Os valores constitucionalmente acolhidos precisam ser respeitados. O mesmo se diga das normas caras ao direito penal. Aplaudam-se as conquistas que nos libertam desses criminosos sorrateiros, mas que elas não acabem por, pouco e pouco, nos levar à luta pela reconquista de direitos e garantias fundamentais. Referências bibliográficas http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2013/4/26/a-inovacao-da-cegueira-deliberada-pelo-supremo http://www.jfrn.gov.br/institucional/biblioteca/doutrina/Doutrina268-alguns-apontamentos-nova-lei-lavagem-dinheiro.pdf


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http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8425 http://www.conjur.com.br/2013-jun-06/stj-ordena-google-quebre-sigilo-mails-guardados-eua


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