Notas de Estudos O CREDO APOSTÓLICO

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3/4/2014

Primeira Igreja EvangĂŠlica e Congregacional de Caruaru/PE


Texto sem revisão final.

Notas de estudos aplicadas na Primeira Igreja Evangélica e Congregacional de Caruaru no período de 2013 e começo de 2014.

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Introdução

Nos primeiros séculos da era cristã, desenvolveu-se uma declaração de fé que ficou amplamente conhecida como 'Credo dos Apóstolos', além de ter sido chamada também de 'a regra de fé', 'a regra da verdade', 'a tradição apostólica' e, mais tarde, 'o símbolo de fé'.

O Credo não foi escrito pelos apóstolos, mas trata-se da mais antiga declaração de fé da igreja cristã que chegou até nós, cuja origem, segundo Justo L. González, "se acha nas lutas contra as heresias que tiveram lugar nos meados do segundo século". Earle E. Cairns afirma que "Irineu e Tertuliano desenvolveram Regras de Fé para serem usadas na distinção entre Cristianismo e Gnosticismo" e funcionavam como sumários das principais doutrinas da Bíblia. Portanto, no segundo século, homens como Irineu, Tertuliano e Hipólito já ofereciam confissões de fé semelhantes ao Credo. Todavia, a formulação original parece ter surgido em Roma por volta de 340 d.C. e Ambrósio foi o primeiro a dar ao documento o título de Credo dos Apóstolos.

Eis a declaração usada no batismo por Rufino de Aquiléia, em c. de 390 d.C.: "Creio em Deus Pai onipotente e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu da morte, que subiu ao céu e assentou à direita do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna [omitido por Rufino]" (in Documentos da Igreja Cristã, H. Bettenson).

Nos séculos VII e VIII, o Credo já era usado amplamente pelas igrejas da Gália (atual França) e Espanha, lugares de onde nos advém a versão final, cuja dicção é a que segue:

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“Creio em Deus, o Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está assentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, a santa Igreja católica, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna. Amém.”

Os credos eram usados pelos cristãos dos primeiros séculos como um teste de ortodoxia e como um ato de adoração no culto público. Conforme anota Alister MacGrath, eles são importantes porque oferecem um breve resumo da fé cristã, permite o reconhecimento de versões incompletas do cristianismo e ressaltam que crer é pertencer à comunidade da fé, ao corpo de Jesus Cristo, a Igreja. MacGrath afirma que “ao estudá-lo, você está se lembrando dos muitos homens e mulheres que o usaram antes de você. Ele lhe dá um senso de história e perspectiva. Enfatiza que você não é a única pessoa a depositar a confiança em Jesus Cristo”.

Pois bem, a partir desse ponto passaremos a tecer breves notas ao Credo dos Apóstolos, segundo a versão recebida.

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1. O primeiro artigo: o Deus criador

Creio em Deus, o Pai todo-poderoso, criador dos céus e da terra.

1. "Creio". Tão logo começaram a surgir as heresias no seio da Igreja, o Espírito de Deus a conduziu a professar sua fé de modo sucinto e claro: um “credo”. “Credo” é uma declaração concisa, composta de afirmações consistentes daquilo que o cristão deve crer e confessar, e em geral destinada ao uso público. Os credos sempre começam com expressões do tipo ”credo” ou “credemus” (“eu creio” ou “nós cremos”), porquanto representam a resposta humana à revelação divina.

Lloyd-Jones percebeu argutamente que Deus conduziu a Igreja a concluir que "precisamos saber perfeitamente tanto o que devemos crer quanto o que não devemos crer". Com efeito, nem podemos chegar à Bíblia despidos de pressupostos firmes que dela mesma emanem. Nesse sentido, a conclusão da Igreja, segundo Lloyd-Jones, foi que "não é bastante que simplesmente apresentemos ao povo uma Bíblia aberta", isto porque "homens e mulheres perfeitamente sinceros, autênticos e capazes podem ler este livro e ainda dizer coisas que são completamente equivocadas". Portanto, "é preciso que definamos nossas doutrinas".

Outra razão indiscutível para que adotemos os credos é que os cristãos precisam estar “sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança” que possuem (I Pe 3:15). Todo cristão precisa saber defender a sua fé (Fp 1:16). Isso, segundo Pedro, é estar pronto para oferecer as “razões da esperança”. O cristão foi regenerado para uma “viva esperança” (I Pe 1:3) e esta esperança não é destituída de razão, não é desarrazoada. Cumpre-lhe conhecê-la e estar pronto para apresentá-la. Os credos, nesse ponto, podem ser de grande valia.

2. "Creio em Deus". Trata-se de uma resposta da Igreja à auto-revelação de Deus. Nada poderia ser conhecido sobre Deus se Ele mesmo não tivesse Se revelado. Destarte, tudo quanto sabemos sobre Deus, sabemos por que Ele 5


veio a nós através da Bíblia, o registro infalível da Sua revelação (I Ts 2:13; I Co 2:10-13). É na Escritura que Deus nos dá um retrato de Si. Embora esse retrato não contemple o Ser divino em sua inteireza, ele suficiente para nos manter distantes da ignorância e do erro e nos tornar sábios para a salvação (II Tm 3:14, 15). Se Deus não tivesse nos dado uma revelação especial – a Bíblia, a palavra escrita, e Cristo, a Palavra Viva -, teríamos tão somente a “revelação geral”. Por “revelação geral”, entende-se o que de Deus se pode conhecer em termos de Suas características gerais (divindade, poder, sabedoria, bondade, justiça), de forma constante e universal, através da criação (Sl 8:3, 4; 19:1-6; 93:1, 4; 104:24; Rm 1:18-20), da consciência (Rm 2:14, 15) e da história (At 17:26, 27), sendo tal conhecimento insuficiente para salvar (Rm 10:13-15; Jo 14:6; At 4:12; I Jo 5:11, 12), mas suficiente para condenar (Rm 1:20). Embora a luz da revelação geral seja clara, face ao pecado, o homem é incapaz de aproveitá-la. Ademais, e revelação geral não revela o suficiente sobre Deus, sobre o homem e sobre a redenção, estando a Igreja de Cristo sob a responsabilidade de pregar o evangelho ao mundo.

3. "Creio em Deus, o Pai... Jesus Cristo, seu único Filho... Espírito Santo". O Deus crido pelos cristãos, e que se revela na Bíblia, é o único Deus verdadeiro, vivo, pessoal e infinito (Dt 6:4; Jr 10:10; I Co 8:4), e que subsiste em Três Pessoas distintas, da mesma substância e iguais em essência (Mt 3:16, 17; 28:19; II Co 13:13).

O monoteísmo é afirmado em toda a Bíblia, sem significar que não haja diversidade na unidade do Ser de Deus. No Antigo Testamento, Dt 6:4 afirma que "Yahweh é um (heb. 'ehad')", sendo que a palavra 'ehad' é a mesma que descreve a união entre Adão e Eva (Gn 2:24). Da expressão "façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1:26), fica claro deduzir que "Deus conversou com alguém que era numericamente distinto e igualmente racional" (Justino de Roma). No Novo Testamento, nosso Senhor ratificou a tradição monoteísta de Israel (Dt 6:4 é citado em Mc 12:29; Dt 6:13 é citado em Mt 4:10; Mt 19:16-22; Mc 10:17-22), ao mesmo tempo em que afirmou a Sua divindade 6


(Jo 17:5; Jo 8:24, 58 é uma referência a Ex 3:14) e aceitou adoração (Jo 20:28), tanto quanto falou sobre o Espírito Santo como um Ser pessoal, distinto, mas igual a Si (Jo 14:16; 15:26). De modo semelhante, nos escritos de Paulo, a unidade é afirmada ao lado da diversidade (I Co 8:4-6; I Co 12:4-7; Ef 4:4-7). Portanto, o Deus em que cremos é o Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Cuidemos, pois, para não incorrermos na quebra do primeiro mandamento: "Não terás outros deuses diante de mim" (Ex 20:3). Como disse Martinho Lutero, "a fé [o Credo Apostólico] não passa de uma resposta, de uma confissão dos cristãos diante do primeiro mandamento". 4. “Creio em Deus”: Seus atributos. “Atributos” são perfeições essenciais do Ser divino, pertencentes igualmente às três pessoas divinas – ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Costuma-se distinguir entre “atributos incomunicáveis” e “atributos comunicáveis”. Os primeiros consistem daquelas características da divindade que somente Deus as possui e que afirmam a Sua “absoluta exaltação e incomparabilidade” (Herman Bavinck). Os “comunicáveis” são aqueles atributos que Deus comunicou às suas criaturas racionais e que podemos ver refletidos nelas em certo grau e de forma limitada.

Os atributos incomunicáveis são autoexistência (Ex 3:14; Jo 5:26; At 17:25), enquanto

as

criaturas

têm

existência

derivada

(At

17:24,

26-28);

independência (Rm 11:36), enquanto as criaturas são sempre dependentes; simplicidade (Jo 5:26) e unidade (Dt 6:4, 5), enquanto as criaturas são compostas; imutabilidade (I Sm 15:29; Ml 3:6; Tg 1:17), enquanto as criaturas, porque imperfeitas, são mutáveis; e infinidade quanto tempo (eternidade; I Tm 6:16) e quanto ao espaço (onipresença ou imensidão; Sl 139:7-12), enquanto as criaturas estão sujeitas ao tempo e ao espaço.

Os atributos comunicáveis são vontade (Rm 9:18; 11:33-36; Dn 4:17, 25, 32, 35) e poder soberanos; conhecimento (onisciência) e sabedoria (Sl 139; Is 42:9; 46:9, 10; Jo 21:17; Rm 11:33); justiça (Gn 18:25; Sl 58:10, 11), santidade (Hc 1:13; Is 6), veracidade ou fidelidade (Dt 7:9; I Jo 1:9; Ap 6:10, 11 e 19:2); e amor (I Jo 4:8, 16), bondade (Mc 10:18; Sl 145:17), misericórdia (Lc 6:35, 36) e paciência (Rm 2:4; Na 1:3; Ne 9:17). 7


5. "Creio em Deus, o Pai". "Pai" (gr. 'pater') é o Nome da Primeira Pessoa da Trindade revelado de forma clara no Novo Testamento e que O distingue do Filho e do Espírito Santo. “Pai”, por assim dizer, é o atributo pessoal da primeira pessoa da Trindade. Embora Deus seja, já no Antigo Testamento, chamado de Pai da nação de Israel (Ex 4:22, 23; Dt 14:1, 2; 32:5, 6; Os 11:1) e, no sentido de ser criador e sustentador das criaturas, seja Pai de todos os homens (At 17:26, 28), o ensino prevalecente do Novo Testamento é que Deus é o Pai do Senhor Jesus e o Pai dos filhos que adotou e regenerou, os salvos em Cristo. Sobre isso discorreremos com mais pormenores.

6. Deus, o "Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (Ef 1:3). A relação paterno-filial entre Deus o Pai e Deus o Filho é única. Na Trindade, Deus é Pai em um sentido eterno, primordial e exclusivo do Filho. Dito de outro modo, Jesus Cristo é Filho de Deus o Pai de um modo como ninguém mais o é (Jo 1:18; 20:17). Quando em debate com os judeus, após o episódio do tanque de Betesda, nosso Senhor referiu-se a Deus como "Pai" de modo a deixar claro para os judeus que Ele afirmava ser da mesma essência da divindade (Jo 5:17, 18). Não satisfeito, nosso Senhor asseverou fazer as mesmas coisas que o Pai (Jo 5:19-22), tanto quanto ser digno da mesma honra (Jo 5:23). Ademais, vale observar que no evangelho de João, a palavra usada para Jesus como "filho" (gr. 'Uios') é diversa daquela usada para os discípulos como "filhos" (gr. 'teknon').

7. "Pai nosso, que estás nos céus" (Mt 6:9). Os cristãos foram ensinados pelo Senhor Jesus Cristo a chamar Deus de "Pai nosso". Deus é nosso "Pai" em um sentido especial, diante do qual a paternidade de Israel era apenas uma figura, uma sombra. Trata-se de uma posição privilegiada, que não pertence a todos os membros da raça humana, mas tão somente aos crentes em Cristo. Nesse sentido, cumpre observar que nosso Senhor usa a expressão "vosso Pai" apenas quando está falando com os discípulos (Mt 5:44; 6:9; Lc 11:1, 2; Jo 20:17; Mt 7:11; Lc 11:13; Lc 12:22, 30). Quando o Senhor está tratando com as multidões, sua linguagem é diferente, como ocorre em Mt 12:50 ("Meu Pai").

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Merece ser destacado ainda que a expressão "meus irmãos" é usada apenas em Sua relação com os discípulos (Jo 20:17; cf. Rm 8:29; Hb 2:11). 8. Filhos por "adoção" e por “regeneração. Para falar sobre a nossa filiação com Deus, o apóstolo Paulo usa o termo "adoção", um instituto do direito romano que permitia que um filho adotivo se tornasse herdeiro com todos os privilégios de um filho biológico. Para Paulo, os crentes em Cristo foram predestinados por Deus "para ele, para a adoção de filhos" (Ef 1:4); Cristo realizou Sua obra redentora para que os que estavam sob a maldição da lei, reduzidos à condição de escravos, recebessem a adoção de filhos (Gl 4:1-5); e, como resultado da obra de Cristo, o Espírito Santo foi dado para que os salvos recebessem esta posição honrosa de filhos e pudessem chamar "Aba, Pai!" (Gl 4:6, 7; cf. Rm 8:15). "Essas expressões [de Gl 4:6, a aramaica "abba" e a grega "pater"], como usadas por Paulo, possuem uma conotação de ternura, docilidade e proximidade de um pai com seus filhos" (Héber Carlos de Campos).

O apóstolo João, a seu turno, demonstra a filiação dos salvos em Cristo por outro ângulo, ensinando que somos filhos por "regeneração". Regeneração é a ação do Espírito de Deus no coração do pecador que muda a sua disposição interior, tornando-o inclinado à santidade. Esse aspecto da nossa filiação pontua que tudo não se resume a uma posição legal (adoção), a uma condição de filhos, mas, antes, que de uma maneira muito real Deus implantou Sua natureza em nós, que se manifesta em termos de comportamento semelhante ao dEle, a partir de uma transformação no caráter (I Jo 2:29; 3:1-10; Jo 1:12, 13). 9. "Creio em Deus, o Pai todo-poderoso". O atributo de Deus que a antiga declaração destaca é a onipotência. Por “poder de Deus”, se entende a capacidade divina para fazer tudo quanto deseja. Deus pode fazer tudo que resolveu que faria (Ef 1:11) tanto quanto aquilo que não fará (Mt 3:9; 26:53, 54), sem sofrer ou submeter-se a quaisquer limitações, de quaisquer ordens, salvo as que emanam da Sua própria vontade. Assim, onipotência é o poder que Deus possui para levar a termo tudo quanto a Sua mui sábia e santa vontade tenha decretado (Ap 4:11), cuja manifestação resta estampada nas 9


obras da criação (Jr 32:17; Sl 150:1; Rm 1:20), da providência (Sl 36:6; Mt 8:31) e da redenção (Mt 19:23-26; Ef 1:19-21 2:5, 6). Com efeito, o atributo da onipotência é tão indissociável da divindade que o "poder" é usado como um nome para "Deus" em Mc 14:62 (lit. "...vereis o Filho do homem assentado à direita do poder...").

Quando a Bíblia afirma que Deus não pode ser tentado (Tg 1:13), mentir (Hb 6:18), ser infiel (II Tm 2:13), como também não pode morrer, pecar ou negar a Sua própria divindade, isso apenas demonstra - longe de ser indício de fraqueza - que o poder de Deus age em consonância com o Seu ser e em harmonia com o Seu caráter.

10. "Creio em Deus... criador do céu e da terra". Ferreira e Myatt observam como é "significativo que num documento tão curto, a criação" tenha sido "considerada claramente importante para ser incluída", e concluem que "nosso entendimento da doutrina da criação é importante por causa de sua relação com outras áreas da doutrina cristã". De fato, diversas afirmações de Moisés, do Senhor Jesus e dos apóstolos tomaram por base a historicidade da narrativa da criação (Ex 20:8-11; Mt 19:4-6; 24:37; Lc 11:51; Rm 5:12-21; I Co 15:45; I Tm 2:13, 14). Da narrativa bíblica da criação (Gn 1:1), portanto, depreende-se tratar-se de um evento histórico (Sl 136), realizada por um ato inteiramente livre (At 17:24, 25; Ef 1:11; Ap 4:11) do Deus TriUno (I Co 8:6; Jo 1:3, 10; Hb 1:2; Gn 1:2; Sl 104:30; Is 40:12, 13), a partir do nada, isto é, sem matéria pré-existente ou ex nihilo (Hb 11:3) e para a Sua própria glória (Sl 19:1). Ademais, devemos ainda considerar, sobretudo com base na criação ex nihilo fortemente sugerida em Gn 1:1, que há uma absoluta distinção entre o Criador e a criatura. Por um lado, tudo que veio a existir derivou sua existência de Deus (Cl 1:16) e é por Ele sustentado (Cl 1:17; Hb 1:3); por outro, a criação não é uma emanação do próprio Deus, como se parte da substância do Ser divino apenas tivesse mudado de estado.

Pelo exposto, conclui-se que a criação nem pode ser adorada, porque não é parte do Ser de Deus (Rm 1:18-25), nem desprezada, como se fosse má em si 10


mesma, já que derivou de Deus (Gn 1:4, 10, 12, 18, 21, 25, 30, 31), tampouco destruída, porque foi-nos dada para que seus recursos fossem por nós conhecidos, controlados e usados, não esgotados e destruídos (Gn 1:28; 2:15, 19, 20). Finalmente, anotamos que o plano do Criador inclui a redenção da criação, que ora sujeita-se ao cativeiro do pecado (Rm 8:20, 21), para que participe da futura glória dos redimidos (Ap 21:5).

11. O relacionamento entre Deus e a criação: a imanência e a transcendência. O Deus que Se revela nas Escrituras é tanto imanente quanto transcendente, quando visto em Sua relação com aquilo que criou.

Explique-se. Chama-se "imanência" o fato de que Deus se envolve, faz-se presente e intervém nos assuntos da Sua criação (Jr 23:24), sobretudo naqueles relacionados com os salvos em Cristo (Ex 3:7, 8; Mt 1:23; Hb 2:14). "Transcendência", a seu turno, é a noção de Deus como estando totalmente separado, independente, sobre e para além da Sua criação (Jó 11:7; Is 55:8, 9). É necessário, portanto, mantermos em mente, lado a lado, a transcendência e a imanência de Deus, "que creiamos em um Deus separado dos homens, santo, distinto dos pecadores, mas também em um Deus que se revela e se envolve com o universo por ele criado" (Héber Carlos de Campos). São inúmeras as passagens das Escrituras que destacam a imanência e a transcendência de Deus lado a lado (Is 6:1-5; Sl 113:5-7; Is 57:15; Mt 6:9; Jo 8:23) . Portanto, Deus é "Pai" e "todo-poderoso"; é pessoal e infinito; é o Deus conosco e o Altíssimo; está presente na criação, embora seja totalmente distinto dela; é imanente e transcendente. Negar a transcendência de Deus é uma forma odiosa de humanizá-lO, de rebaixá-lO à simples condição de homem. Negar a Sua imanência é um modo igualmente odioso de negar o Seu envolvimento amoroso com os homens que adotou por filhos, Sua personalidade e Sua providência.

12. A Providência. Após os seis dias da criação, Deus descansou (Gn 2:2; Ex 20:11; 31:17). O descanso de Deus indica que Ele parou de produzir novos tipos de coisas (Ec 1:9, 10), a partir do nada, e Se alegrou na obra da criação. 11


Entretanto, depois de haver criado, Deus não parou de trabalhar (Jo 5:17), mas iniciou a obra da “providência”. “Providência” é o ato de Deus pelo qual Ele, em todo o instante, preserva e governa todas as coisas, concorrendo com as causas secundárias, de modo a conduzir toda a criação ao fim por Ele desejado desde a eternidade. Do conceito, exsurge que a providência abrange três aspectos, quais sejam: a preservação, a concorrência e o governo. Por “preservação”, entende-se que nada existe à parte de Deus (At 17:28; Cl 1:17). Antes, tudo existe da parte de Deus, por Deus e para Deus. Em nenhum sentido, Deus nunca é apenas um observador passivo. “Uma criatura é, por definição, de si mesma, um ser completamente dependente: aquilo que não existe de si não pode existir por si” (Herman Bavinck). Portanto, nada fica fora da providência ou dela prescinde (Mt 10:29, 30; 6:26, 28; Sl 147:9). “Concorrência”, a seu turno, é a realidade pela qual Deus sustenta as criaturas da criação à consumação, ao objetivo final, trabalhando com elas como causas secundárias. Estas causas secundárias nem agem completamente livres ou independentemente nem são meros instrumentos ou marionetes. Elas são causas verdadeiras, mas que agem sob a dependência do Deus Soberano (Fp 2:13). A título de exemplo, pode-se afirmar que Deus não foi o autor imediato da morte de Cristo, que é certo que as causas secundárias agiram verdadeiramente, mas, por outro lado, apenas cumpriram o decreto de Deus (At 2:23; 4:27, 28). “Governo”, finalmente, refere-se à providência examinada com vistas ao objetivo final. Deus é o Rei em sentido pleno da palavra (I Tm 6:15; Ap 19:16). Seu reino abrange todo o universo (Zc 14:9), e inclui todas as coisas e todos os seres, bons e maus. Quanto ao pecado, a Bíblia ensina que Deus odeia o pecado (Hb 1:13; Tg 1:13), mas também que o pecado está sujeito ao Seu governo. O testemunho das Escrituras é que Deus entrega pessoas aos seus pecados (Sl 81:12; Rm 1:24, 26, 28; At 14:16), que Deus endurece e cega certas pessoas (Ex 4:21; 7:3; 9:12; 10:20, 27; 11:10; 14:4; Dt 2:30; Js 11:19), 12


que Deus usa espíritos maus (I Sm 16:14; I Rs 22:23; II Cr 18:22; II Sm 24:1; I Cr 21:1; Jó 1, 2) e muda o coração de certas pessoas para que se tornem desobedientes (I Sm 2:25; I Rs 12:15; II Cr 25:20; II Sm 16:10).

A doutrina da providência é fonte incomensurável de segurança para o crente. Como anotaram ferreira e Myatt, ela “nos leva a confiar que criatura alguma pode nos separar do amor de Deus. Além de ser soberano, Deus também é amor. E as coisas que Ele faz são motivadas pelo amor que ele tem por seu povo”.

13. Conclusão ao Primeiro Antigo. Do exposto, o primeiro artigo do antigo "símbolo de fé" exorta-nos a crer no Deus que Se revela nas Escrituras, o Deus Trino, com destaque ao "Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra". Seu nome "Pai" nos remete à filiação eterna, essencial e primordial de Jesus Cristo e ao relacionamento especial que Ele tem com os filhos que adotou e regenerou. O atributo da onipotência nos relembra Seu governo soberano sobre todas as coisas que criou com o Seu mui sábio, puro e livre conselho. Crês tu em Deus, o Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra?

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2. O segundo artigo: o Deus redentor

E em Jesus Cristo, seu único filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está assentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos.

14. Introdução ao Segundo Artigo. O segundo artigo do Credo dedica-se ao Deus Salvador. Por certo, duas realidades sobre o homem estão pressupostas, sem as quais não teríamos a razão subjacente desta cláusula em apreço, quais sejam: primeiro, que o homem foi criado por Deus, embora esse fato não tenha sido mencionado especificamente no artigo anterior. O motivo de tal omissão está no fato de que Deus tem a primazia, e não o homem. Segundo, que o homem, tendo sido criado perfeito em seu estado original (Gn 1:31; Ec 7:29), desobedeceu ao mandado do Criador (Gn 2:16, 17; 3:6) e decaiu ao estado de completa ruína e afastamento de Deus, tendo o seu pecado e sua consequência, a morte, passado a todos os homens (Rm 5:12).

Eis a razão pela qual as Escrituras descrevem o homem em seu tríplice estado de morte, escravidão e condenação (Ef 2:1-3; Jo 8:34). A condição pecaminosa da humanidade costuma ser expressa nas Escrituras através de três palavras: transgressão, iniquidade e pecado (Sl 51:1, 2). "Transgressão" (heb. "pesha"; gr. "paraptoma") denota o estado de rebelião e de insubordinação em que o homem se encontra em relação a Deus (ver a palavra em I Rs 12:19). "Iniquidade" (heb. "awon"; gr. "adikia") traduz a ideia de perversidade e corrupção interiores. "Pecado" (heb. "hatta"; gr. "hamartia") significa errar o alvo, perder o caminho, um lapso que encerra o melhor do homem na mais completa insuficiência em agradar o Criador (ver a palavra em Jz 20:16).

Reunidas, estas palavras comunicam que tudo o que o homem faz e tudo o que ele é, e isto no que pode haver de melhor, o torna objeto da ira e do desagrado de Deus. O pecado corrompeu todas as faculdades (Gn 6:5; 8:21) de todos os homens (Rm 3:9-18, 23), tornando todos os homens incapazes de 14


fazer algum bem (Jr 13:23; Jo 15:4, 5), de querer algum bem (Rm 8:6-8; Jo 3:3; 5:40; 6:44, 65) e mesmo de entender algum bem (I Co 1:18-21; 2:6-8, 14; I Jo 4:5, 6).

Pois bem, de maneira breve, eis a condição de todos os homens, que os faz absolutamente necessitados do Redentor (Mt 1:21).

15. "E em Jesus Cristo". A nossa palavra portuguesa "Jesus" é uma transliteração da palavra latina, que deriva-se da palavra grega "Iesous", uma forma helenizada do nome hebraico "Ieshua" ("Yahweh salvará"), que, por sua vez, é uma forma abreviada do hebraico "Iehoshua" ("Yahweh é salvação"). Tanto José (Mt 1:21) quanto Maria (Lc 1:31) recebem ordem específica quanto ao nome pessoal do Salvador.

Ao nome pessoal, acrescenta-se o título "Cristo", a forma grega do hebraico "Messias", palavras que significam "Ungido". O título "Cristo" ("Messias" ou "Ungido") O distingue como Aquele que foi ungido (separado, habilitado) pelo Espírito Santo (Mt 3:16) para o exercício dos ofícios de profeta (Dt 18:15; At 3:22; 7:37), sacerdote (Sl 110:4; Hb 7:15-19, 26-28; 10:12, 14) e rei (Sl 2:6; Mt 21:5; Lc 1:33).

A princípio, o nome pessoal "Jesus" estava relacionado com o título "Cristo" em termos de uma confissão basilar e inegociável da Igreja (Mt 16:16; Jo 20:30, 31; At 5:42; I Jo 2:22), para, em seguida, tornarem-se, o nome e o título, um nome confessional, "um só e glorioso nome dado ao nosso Salvador" (W. Hendriksen).

Jesus Cristo é o tema central das Escrituras (Jo 5:39; Lc 24:27, 44). Todo o Antigo Testamento aponta para Cristo em perspectiva, em promessa (Rm 10:4); e todo o Novo Testamento remonta à Cristo, o cumprimento das promessas (II Co 1:20).

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16. Outros títulos atribuídos ao Salvador. Os autores do Novo Testamento atribuíram ainda outros títulos divinos a Jesus Cristo. Ele foi chamado "Deus" (Mt 1:23; Jo 1:1; Rm 9:5; Tt 2:13) e "Senhor" (Jo 20:28), "Filho de Deus" (Jo 1:18; 3:16, 18) e "Filho do Homem" (Mt 24:30, 31). O título “Senhor” (gr. "Kyrios") é altamente significativo, visto ser ele utilizado em muitas ocorrências no Novo Testamento como uma tradução do nome pessoal de Deus tal qual revelado a Moisés, o tetragrama YHWH (Yahweh), nas quais é aplicado a Jesus Cristo (Jl 2:31, 32 é citado em At 2:20, 21 e em Rm 10:13; Is 8:13 é citado em I Pe 3:15). O título "Filho de Deus" destaca a natureza divina de Jesus Cristo e o Seu relacionamento ímpar com o Pai (Jo 1:18; 20:17; ver a nota 17). O título "Filho do homem" é o que Jesus atribuiu a Si mesmo. Nunca Ele é chamado "Filho do homem" pelos discípulos. Trata-se de uma alusão à própria divindade, segundo a percepção judaica dos dias do Senhor (Jo 9:3538; 12:23, 34; cf. Dn 7:13, 14).

Acrescente-se aquele grande título "Verbo" (gr. "Logos"), encontrado exclusivamente na literatura joanina (Jo 1:1, 14; I Jo 1:1; Ap 19:13), que aponta para a divindade e para a pré-existência de Jesus Cristo. O título identifica a Jesus Cristo como a Pessoa da Divindade que A comunica, que A torna conhecida. A propósito de Jo 1:1 (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”), George Eldon Ladd anotou que "o Verbo era a divindade, mas não era completamente igual à divindade. O artigo definido somente é utilizado com o vocábulo logos [Verbo]. Se João tivesse utilizado o artigo definido também com o vocábulo theos [Deus], teria dito que tudo que Deus é, o logos também é: uma identidade exclusiva. Da forma como está, ele está declarando que tudo o que o Verbo é, Deus é; porém ele implica em que Deus seja mais do que o Verbo".

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17. "E (Creio) em Jesus Cristo, seu único Filho". Já tecemos alguns comentários sobre a relação paterno-filial entre Deus o Pai e Deus o Filho. Nesse passo, desejamos ressaltar o fato de que esta relação é eterna. É dizer, Deus o Pai é o eternamente Pai de Jesus Cristo e Deus o Filho é o eternamente gerado do Pai. Não houve um momento em que o Pai não tenha estado com o Filho, enquanto tal. Afirmar o inverso seria dizer que o Pai nem sempre foi Pai.

Esta afirmação quanto à filiação eterna do Senhor Jesus importa em duas verdades indissociáveis: primeiro, que há uma subordinação funcional (ou "econômica") na "Trindade Econômica". Por "Trindade Econômica" entende-se a maneira como o Pai, o Filho e o Espírito manifestam-Se em Suas operações extra trinitárias, para com o mundo criado, nas obras da criação, da providência e da redenção ("opera ad extra").

Nesse sentido (econômico, administrativo, funcional), o Filho está subordinado ao Pai (Jo 14:28), é enviado pelo Pai (Jo 7:29), obedece a vontade do Pai (Jo 4:34; 14:31), fala as palavras do Pai (Jo 14:24), recebe herança do Pai (Jo 16:15), ora ao Pai (Jo 14:16) e realiza todas as coisas para a glória do Pai (Jo 17:1; 12:28), com a autoridade que recebeu do Pai (Jo 17:2) e que, por fim, devolverá ao Pai (I Co 15:28).

A segunda verdade decorrente da filiação eterna é a igualdade essencial que existe entre o Pai e o Filho na "Trindade Ontológica", termo que designa o Ser essencial da Trindade, o que Deus é em essência. Nesse aspecto, o termo "Unigênito" (Jo 1:14, 18; 3:16, 18; I Jo 4:9) sugere igualdade de essência entre o Pai e o Filho e a geração eterna de Jesus Cristo. Semelhantemente, a expressão "seu próprio Filho" (Rm 8:3, 32) implica numa filiação ímpar, peculiar, que ninguém mais possui, porque o Filho não deriva de um ato criador nem de uma adoção no tempo. Se o Filho tivesse sido "criado", Ele possuiria necessariamente uma natureza diversa da do Pai. Daí afirmarem as Escrituras que Ele é o único gerado (o Unigênito) do Pai, termo que remete à ideia de co-

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igualdade, de identidade de essência e, portanto, da divindade do Senhor Jesus.

Do exposto, conclui-se que a subordinação funcional (própria da "Trindade Econômica") não implica em subordinação de essência (ligada à "Trindade Ontológica"), tanto que o próprio Senhor afirmou que "eu e o Pai somos um" (Jo 10:30) e que "quem vê a mim, vê o Pai" (Jo 14:9). Com efeito, Jesus Cristo só é o Verbo - a Pessoa da Divindade que comunica o Pai - por ser o Filho. Somente o "Unigênito", Aquele único Ente que é da essência do Pai, "que está no seio do Pai", poderia revelar o Pai (Jo 1:18). No dizer de F. F. Bruce, "somente alguém que conhece completamente o Pai pode torná-lo totalmente conhecido" (Mt 11:27; Lc 10:22).

18. "E (Creio) em Jesus Cristo..., nosso Senhor". Aqui, nós temos o núcleo do credo: "Jesus Cristo, nosso Senhor". A confissão de Jesus como Senhor é o fruto perene da fé (Rm 10:9, 10). Como disse Calvino, "ninguém pode crer com o coração sem confessar com a boca". Esta confissão ("Jesus é Senhor"), segundo o apóstolo Paulo, ninguém pode fazê-la, senão "no Espírito Santo" (I Co 12:3). É somente pelas operações do Espírito que uma pessoa pode genuinamente confessar a Cristo como Senhor, sem que tal confissão não seja mera palavra vazia ou zombaria (Mt 7:21-23; Lc 6:46), mas fruto de uma fé genuína, a ponto de ser mantida mesmo diante de atrozes perseguições (Mt 10:16-20, 32, 33; I Pe 3:13-16).

Por ora, somente os salvos são capazes de reconhecer e confessar que Cristo governa todas as coisas para o interesse do Seu povo, mas haverá um dia, quando do Seu regresso em glória, que todo o joelho se dobrará perante Jesus Cristo e toda a língua confessará que Ele é Senhor (Fp 2:10, 11). Todavia, devemos observar com Hendriksen que estas confissões terão naturezas distintas: "Os anjos e os seres humanos redimidos farão isso com intenso regozijo; os condenados farão isso com profunda tristeza e profundo remorso (não com genuíno arrependimento)... Mas tão intensa será sua glória que todos se sentirão impelidos a render-lhe homenagem".

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19. "... Jesus Cristo... foi concebido... nasceu... padeceu... foi crucificado, morto e sepultado... ressuscitou... está assentado à direita de Deus... de onde virá...": a carreira do Salvador. O Credo descreve a carreira do Salvador com inteireza e concisão impressionantes. A posse da plena divindade de Jesus Cristo "já bastaria para mostrar-nos que o Filho de Deus era glorioso e feliz eternamente; mas, podemos depreender a mesma verdade pela linguagem das Escrituras" (John L. Dagg).

Com efeito, o próprio Senhor Jesus mencionou a glória que teve junto com o Pai, no "princípio", glória que em breve seria retomada (Jo 17:5). O apóstolo Paulo refere-se à glória eterna e pré-encarnada de Jesus Cristo com as expressões "sendo rico, se fez pobre" (II Co 8:9) e "subsistindo na forma de Deus... a si mesmo se esvaziou" (Fp 2:6a, 7a). Nesse mesmo sentido, a Escritura diz que o "Deus Unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou" (Jo 1:18) e que a Sabedoria "... estava com ele, dia após dia" e que "era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo" (Pv 8:30). Com efeito, Ele é o "Senhor da glória" (I Co 2:8; Tg 2:1).

Entretanto, nosso Senhor ingressou em sua fase de humilhação, assumindo a natureza humana. O texto paulino de Fp 2:5-11 é de leitura obrigatória nesse ponto de nossas notas. Paulo diz que Cristo, "subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus, antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo" (Fp 2:6, 7a). Hendriksen observa que a mudança de vocábulo, nessa frase, de "morfê" (gr. "forma" de Deus) para "schema" (gr. "forma" de servo), pode ser significativa. "Morfê" parece indicar aquilo que é "anterior, essencial ou permanente na natureza de uma pessoa ou coisa", e, no caso, implica em que Cristo é, sempre foi e continuará sendo verdadeiro Deus. "Schema" ("condição"), por outro lado, indica aquilo que é "externo, acidental ou aparente" e, no contexto, talvez aponte ao fato que a "condição" humana de nosso Senhor é que foi o elemento "acidental", ocorrido na história. De todo modo, Paulo afirma que Cristo não se apegou à Sua "forma" de Deus como motivo para não assumir a "forma" de servo. Cristo assumiu a verdadeira humanidade (Fp 2:7b, 8a) e, como homem de dores (Is 53:3), viveu uma vida

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obediente ao Pai, cheia de angústias e fadigas, até que chegou ao ponto mais baixo da sua obediente humilhação: a morte de cruz (Fp 2:8b).

Ao terceiro dia, nosso Senhor adentrou à fase de Sua exaltação, ressuscitando dentre os mortos, ascendendo ao céu e sendo investido no domínio absoluto sobre toda a criação. "Pelo que Deus o exaltou sobremaneira... "(Fp 2:9a). Socorremo-nos outra vez de Hendriksen, quando observa que o verbo "exaltar (sobremaneira)" ocorre somente nesse texto e significa "superexaltar", "exaltar ao máximo", para afirmar que "Sua superexaltação significa que ele [Cristo] recebeu o lugar de honra e majestade, e consequentemente está assentado 'à mão direita do trono de Deus'... Ressurreição, ascensão, coroação ('assentouse' à mão direita de Deus), tudo está implícito e incluído na declaração: 'Pelo que também Deus o exaltou ao máximo'". Entretanto, toda a fase da exaltação de Cristo não terá sido concluída até que Seu senhorio seja universalmente reconhecido, o que se dará somente em Sua vinda em glória (Fp 2:10, 11).

20. "Concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria": a necessidade da encarnação. A encarnação, à luz do que dito na nota anterior, é Deus o Filho deixando a glória que gozava junto com o Pai (Jo 17:5) e entrando na história humana, mas o fazendo não como uma espécie de "teofania" (uma aparição pré-encarnada de Deus, em forma humana transitória, como se dá em Gn 18:1, 2, 10, 13, 17, 20, 22; 22:11, 15-17; Jz 6:11, 14, 16), mas, ao contrário, assumindo a verdadeira humanidade.

A encarnação do Verbo surgiu de uma fonte dupla: por um lado, da natureza hedionda do pecado. Como afirmou Irineu, "se a carne não necessitasse ser salva, o Verbo de Deus de modo algum teria sido feito carne". Nesse mesmo sentido, Agostinho: "Não há nenhuma causa para a vinda de Cristo, o Senhor, exceto para salvar pecadores". Por outro lado, a encarnação decorre do decreto de Deus de salvar pecadores. É certo que "Deus não estava debaixo da obrigação de salvar pecadores, mas como, pela sua bondade, ele resolveu salvá-los, ficou debaixo da sua própria determinação de proporcionar o meio para que isso acontecesse. Esse meio foi a encarnação do Verbo" (Héber Carlos de Campos). 20


Cristo, o Salvador, deveria vir, segundo o decreto de Deus. Entretanto, a validade do que Cristo fez dependeria de Sua encarnação. O Verbo deveria assumir a verdadeira humanidade. Valemo-nos outra vez de Héber Carlos de Campos: "A redenção somente foi possível porque houve o pagamento de substituição feito por um Redentor que é igual, em natureza, aos substituídos". Noutro dizer, o Salvador deveria ser um membro da parte devedora, mas inculpável. Por isso, Ele se fez vero homem para ser nosso Substituto e um Sacerdote adequado tanto no sacrifício de Si (I Tm 2:5; Hb 2:17) como na intercessão que faria por aqueles que substituiu (I Jo 2:1; Rm 8:34; Jo 17). Eis a razão pela qual o teste da confissão na encarnação de Cristo deveria ser imposto a quem alegasse estar falando em nome de Deus (I Jo 4:1-3; I Tm 2:5).

21. "Concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria": A concepção e o nascimento virginais. O profeta Isaías (Is 7:14) predisse o nascimento virginal do Redentor. No contexto imediato, o texto refere-se a um sinal que Deus daria a Acaz, rei de Judá, no sentido de que Israel e Síria não subjugariam sua nação. O profeta anuncia que uma jovem moça (heb. "almah") daria à luz um filho e lhe chamaria "Imanuel". A septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento) traduziu o vocábulo hebraico "almah" para o grego "parthenos" (virgem) e Mateus aplicou a passagem ao tipo de concepção do Messias.

O Novo Testamento é absolutamente claro quanto à concepção virginal do Salvador (Lc 1:35; Mt 1:18). A reação de Maria ao anúncio do anjo Gabriel indica que ela entendia a impossibilidade natural de uma virgem conceber (Lc 1:34, 35). José, por sua vez, ante a gravidez inesperada de sua esposa-noiva, decidiu deixá-la secretamente (Mt 1:19), e só abandonou o plano por haver sido persuadido pela revelação angélica por meio de sonho (Mt 1:20-24).

Sem sombra de dúvida, a impecabilidade do Salvador decorre da atuação do Espírito Santo em Sua concepção. Lado outro, não admitimos que Sua natureza

humana

não

contaminada

pelo

pecado

tenha

decorrido, 21


necessariamente, da não participação de José no processo, sob pena de admitirmos que a transmissão do pecado dá-se tão somente pelo macho, o que seria um grande equívoco (Sl 51:5).

Ademais, destacamos que a concepção e o nascimento virginais destacam a qualidade, a excelência, a sublimidade da Pessoa de Jesus Cristo (Lc 1:35), indica que o "ente santo" que a virgem concebeu é o Filho de Deus de uma maneira absolutamente diferenciada e que a salvação é uma obra inteiramente divina, que ocorre sem qualquer participação humana, mas unicamente pela graça de Deus.

Finalmente, devemos ainda observar que após Maria ter dado à luz o Filho de Deus segundo a carne, ela viveu com José uma vida conjugal normal. O evangelista Mateus escreve: “Despertado José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher. Contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mt 1:24, 25, com grifo nosso).

O texto deixa claro que o casal se absteve de relações sexuais durante a gravidez e que tal abstinência perdurou até que Maria desse à luz a Jesus Cristo. O Novo Testamento é claro em afirmar que Jesus teve irmãos e irmãs, como se pode concluir da simples leitura de Mt 12:46, 47; Mc 3:31, 32; 6:3; Lc 8:19, 20; Jo 2:12; 7:3, 5, 10; At 1:14, além de falar de Jesus como o “Unigênito” de Deus (Jo 1:18), mas, por outro lado, como o “primogênito” de Maria (Lc 2:7). 22. “Nasceu da Virgem Maria”: a "kenosis" e a dupla natureza do Salvador. Não é possível falar em encarnação sem considerar alguma teoria sobre a "kenosis" (ou "esvaziamento") do Salvador, "pois ele, subsistindo em forma de Deus... a se mesmo se esvaziou (gr. "ekenosen")" (Fp 2:6a, 7a). Considerando negativamente, "kenosis" não significa que na encarnação Jesus Cristo deixou de ser Deus, abandonando a Sua "forma de Deus". "Ele assumiu a forma de servo enquanto que, ao mesmo tempo, conservava a forma de Deus! E isso é precisamente o que torna nossa salvação possível e exequível" (Hendriksen). 22


Com efeito, se a validade da nossa salvação depende da plena humanidade do Salvador, como antes percebemos, a eficácia dela depende da Sua plena divindade. Quem, senão Deus, poderia satisfazer a justiça de Deus, vindicar plenamente as exigências do Deus Santo, esgotar a ira infinita de Deus, que demandaria nada menos que a punição eterna de pecadores, e conquistar a vida eterna para o povo de Deus, fazendo tudo isto em um único ato sacrificial? Jesus Cristo só pode, em um único sacrifício, conquistar tão grande salvação, porque a Sua vida tem valor infinito.

O sacrifício de Sua pessoa santíssima e digníssima pode sobejamente substituir uma eternidade de punição de tantas pessoas quantas Deus quisesse salvar (Hb 7:23-27; 9:11-14, 23-26; 10:3-14). "Mesmo em sua morte, ele teve que ser o poderoso Deus, a fim de, por sua morte, conquistar a morte" (Lenski, citado por Hendriksen).

"Kenosis" também não significa que Jesus Cristo tenha perdido quaisquer dos atributos divinos. A encarnação concedeu à Pessoa do Salvador duas naturezas, sendo que ambas mantiveram as suas respectivas qualidades.

Assim, Jesus Cristo possuía todos os atributos da divindade e todos os atributos da humanidade, sendo que ambas as naturezas permaneceram distintas uma da outra e na mesma Pessoa de Jesus Cristo.

Na lição de Héber Carlos de Campos, "a natureza humana de Cristo sempre permaneceu humana e a divina sempre permaneceu divina. Nunca uma natureza foi capaz de agir segundo a outra. Os predicados do corpo e da alma permaneceram próprios da natureza humana, assim como os predicados da onipresença, onisciência e onipotência permaneceram próprios da natureza divina". É dizer, a encarnação fez de Jesus Cristo uma Pessoa absolutamente singular, e de uma vez por todas. Ele é perfeito Deus (Cl 1:15-17; Jo 8:58) e perfeito homem (Jo 19:28; 11:35; Mt 26:37, 38), possui a substância divina e a substância humana. Ele é o Filho Unigênito de Deus e o Filho primogênito de Maria (Is 7:14; 9:6; Hb 2:14; Jo 1:4, 14; Cl 2:9; At 3:15; 20:28; I Co 2:8). 23


Positivamente, "Kenosis" implica em que o Redentor consentiu em não revelarSe em todo o fulgor da Sua glória divina, em não exibir ininterrupta e inequivocamente os atributos que são próprios da divindade. Sobre isso, Héber Carlos de Campos escreveu: "a sua glória foi vista, mas apenas de maneira muito discreta. Em todos os seus sinais houve algum tipo de manifestação da glória divina, mas de modo que o Verbo encarnado ainda se apresentava 'esvaziado', sem a plenitude da sua glória" (Jo 1:14).

23. "Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado". Chegamos ao âmago de toda a mensagem bíblica. Aqui está o cerne do evangelho, o centro de toda a Bíblia. A cruz é o propósito primordial da encarnação. Com efeito, o Senhor Jesus nasceu para morrer (Jo 12:27). A menção do antigo Credo a Pôncio Pilatos pretende localizar os eventos salvadores na história. Nosso Senhor nasceu, viveu, morreu e ressuscitou em nossa história.

Sua morte decorre, por um lado, do caráter santo e justo de Deus, que não pode simplesmente ignorar a existência do pecado (Gn 18:25; Ex 34:7; Na 1:3), e, por outro, da condição pecaminosa em que se encontra a raça humana. O pecado, porque Deus é santo e justo, precisava ser punido. Entretanto, por ser amoroso, Deus proveu um Substituto adequado, cuja vida mais que valiosíssima suportaria toda a ira divina em Sua morte, para que Deus, perdoando-nos, não negasse Sua santidade e Sua justiça (Rm 3:21-26; 4:5).

O quadro completo da relação entre o homem e Deus é que Este está sobre aquele tanto em ira como em amor, e a cruz é tanto a evidência do amor de Deus (Jo 3:16; Rm 5:8) quanto da Sua justiça (Mt 27:45, 46). A cruz é a punição aplicada por Deus (isso é justiça!) e recebida por Deus (isso é amor!). "Na cruz, a misericórdia e a ira se encontram. A santidade e a paz se beijam. A cruz é o clímax da história da redenção" (D. A. Carson).

No Antigo Testamento, a morte substitutiva e penal do Salvador foi anunciada logo após a entrada do pecado no mundo, em Gn 3:15. Esse texto assegura a 24


vitória do descendente da mulher exatamente no momento em que é ferido no calcanhar.

É quando fere o descendente da mulher que a serpente é mortalmente ferida, um vislumbre maravilhoso de que Cristo venceria em Sua morte. A ideia de sacrifícios para remover o pecado foi logo ensinada (Gn 3:21; 4:4), princípio que permaneceu entre os patriarcas (Gn 8:20; 12:7, 8; 13:4; 22) e foi corroborado na páscoa (Ex 12) e nas prescrições levíticas (Lv 1-6, 16).

O princípio envolvido nos sacrifícios antigo-testamentários é sumariado por Matthew Henry: "O pecador merecia morrer; portanto, o sacrifício tem de morrer. Ora, sendo o sangue a vida [Lv 17:11], de tal maneira que, ordinariamente, animais eram mortos para uso dos homens, esvaindo-se todo o seu sangue, Deus designou a aspersão ou derramamento do sangue do sacrifício no altar, para significar que a vida do sacrifício fora oferecida a Deus em lugar da vida do pecador, como um resgate ou um preço substituto para isto" (citado por Ferreira e Myatt).

No Novo Testamento, a morte do Senhor Jesus é o cumprimento de todos aqueles sacrifícios. Cristo é o "nosso Cordeiro pascal" (I Co 5:7), o "Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29, 36). Na morte de Cristo, Deus expiou (removeu, anulou, cancelou) o pecado e redimiu (libertou mediante preço de redenção) o homem do cativeiro da culpa do pecado (Rm 3:24), com o propósito de mudar Sua própria atitude em relação ao homem, isto é, para tornar-Se propício (favorável) ao homem (Rm 3:24, 25) e reconciliá-lo Consigo (Rm 5:11; II Co 5:19). Portanto, o modo como Deus tornou-Se propício ao homem (fez propiciação ou afastou a Sua própria ira) e o reconciliou Consigo (fez a reconciliação) foi através do sacrifício expiatório substitutivo efetuado por Cristo, cujo sangue (i.é., a vida sacrificada) foi também o preço do resgate (I Pe 1:19; Ap 5:9).

Portanto, a morte de Cristo é substitutiva e penal. "O centro da obra de Cristo consiste nele ter suportado a nosso favor e em nosso lugar [caráter substitutivo] o castigo que nos era devido por causa de nosso pecado [caráter 25


penal], trazendo-nos perdão e reconciliação com Deus" (Bruce Milne, citado por Ferreira e Myatt).

24. "Desceu ao inferno". Sobre esta cláusula do Credo, duas observações devem ser feitas de plano: primeiro, que em nenhum lugar das Escrituras é dito que Cristo "desceu ao hades (inferno)". Paulo diz que Cristo "havia descido até as regiões inferiores da terra" (Ef 4:9), expressão que pode significar simplesmente que Cristo se encarnou, entendendo-se que as "regiões inferiores" correspondem a "terra".

O fato é que não há qualquer referência ao hades no texto. Em I Pe 3:18-20, Pedro comunica que o Espírito de Cristo, que inspirava os profetas (I Pe 1:11), pregou à geração pré-diluviana, que o apóstolo chamou de "espíritos em prisão", através de Noé, "pregador da justiça" (II Pe 2:5). Semelhantemente, não há qualquer menção a uma descida ao inferno na mensagem petrina.

A segunda observação é que a expressão latina "descendit ad inferna" (desceu aos infernos/hades) ocorreu nas versões mais antigas do Credo como uma forma de explicar a morte e o sepultamento do Senhor. Somente por volta do século VII, a cláusula em apreço apareceu como acréscimo a "crucificado, morto e sepultado".

Sobre esta cláusula, consideraremos o que não pode ser o ensino das Escrituras e, finalmente, destacaremos o modo aceitável de sua compreensão.

Primeiro, "descendit ad inferna" não pode significar que entre a morte e a ressurreição Cristo tenha estado no inferno, porque as Escrituras dizem expressamente onde Cristo esteve nesse período, afirmando que Ele estava com o Pai (Lc 23:46), no paraíso (Lc 23:43), lugar de gozo e bem-aventurança correspondente ao "terceiro céu" (II Co 12:2-4), onde Deus habita de modo especial. 26


Segundo, não pode significar que Cristo ainda tinha qualquer outra missão a realizar no inferno. A uma, Sua morte foi suficiente para expiar o pecado e, por isso, Ele não precisava completar a obra da redenção no inferno (Jo 19:30). A duas, Sua vitória foi proclamada em Sua morte e ressurreição, quando venceu o último inimigo, a morte (I Co 15:26), não havendo qualquer necessidade de uma proclamação dela no inferno.

Três, Cristo não desceu ao inferno para tomar as "chaves" da morte que supostamente estivessem na posse de Satanás, porque as chaves do senhorio de todo o universo, inclusive da morte e do inferno, pertencem ao Senhor Jesus Cristo (Is 22:21, 22; Ap 1:18; 3:7). A quatro, Cristo não foi evangelizar os habitantes do inferno, porque não há salvação para aqueles que lá se encontram (Lc 16:19-31; Rm 10:13-15; At 4:12; I Jo 5:11, 12; Hb 9:27). Finalmente, Cristo não foi ao inferno para retirar do hades os crentes do Antigo Testamento, porque esses tais nunca lá estiveram. As Escrituras do Antigo Testamento dizem claramente aonde foram os crentes desse período após a morte (Sl 73:23-25; Ec 12:6, 7; Gn 5:24; II Rs 2:11; Lc 9:29-32).

Por outro lado, há dois sentidos possíveis para aceitarmos a cláusula "descendit ad inferna", segundo Héber Carlos de Campos, quais sejam: ela representa a sepultura, ou, melhor, o "estado de morte" e indica "os sofrimentos agonizantes antes e durante o tempo que [Cristo] passou na cruz". Esclarece o Rev. Héber que "experimentar o inferno é experimentar o doloroso abandono da presença confortadora de Deus.

A ira de Deus desceu sobre o Filho encarnado e se manifestou não somente nas dores infernais do seu corpo, mas também nas angústias infernais que se apoderaram de sua alma... Por causa da experiência infernal que Cristo teve em face do juízo divino, aqueles por quem ele morreu são libertos para sempre da condenação do inferno".

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Segundo W. Hendriksen, "naquele dia o inferno veio ao calvário e o Salvador a ele desceu e sofreu seus horrores em nosso lugar, por nós". Nesse sentido, também R. C. Sproul: "Na cruz, ele estava no inferno, destituído da graça e da presença de Deus, totalmente separado de toda a bênção do Pai... O Pai virou as costas para seu Filho a fim de que a luz de seu rosto resplandeça sobre nós. Não é admirável que Jesus tenha gritado das profundezas de sua alma".

25. "Ressuscitou ao terceiro dia". A ressurreição do Salvador dá início à fase da Sua exaltação. Indubitavelmente, o Antigo Testamento anunciou tanto a morte vicária (ou substitutiva) do Messias, quanto a Sua ressurreição. Aos discípulos a caminho de Emaús, nosso Senhor já ressurreto mostrou-lhes passagens do Antigo Testamento que se aplicavam aos eventos do fim de semana, a Ele relacionados (Lc 24:21-27). Esta série de predições acerca da morte e ressurreição de Cristo certamente iniciam em Gn 3:15 (o chamado "protoevangelho"), onde a indicação que a ferida do descendente da mulher não seria irremediável necessariamente aponta à Sua ressurreição.

Deve-se observar, igualmente, o uso que Pedro e Paulo fizeram do Sl 16:10 ("Pois não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção"), em At 2:27 e 13:35. A palavra "morte" (heb. Sheol; gr. Hades) deve ser compreendida, no contexto, como sinônimo de túmulo e, nesse sentido, o Salmo foi utilizado pelos apóstolos como uma predição da ressurreição do Messias. Em Isaías (53), o Servo Sofredor, depois de experimentar uma morte violenta (expressa pelos termos “traspassado” e “moído”, no verso 5, e “arrebatado” e “cortado”, no verso 8) e ser sepultado (verso 9), diz-se que ele “verá a sua posteridade e prolongará os seus dias” (verso 10), uma clara referência à ressurreição do Messias. Nesse sentido, J. Ridderbos escreveu: “A vida com ‘dias prolongados’ assume um significado peculiar, porque é uma vida posterior à Sua morte, a vida de uma pessoa ressurreta (cf. Ap 1:8)”.

No Novo Testamento, nosso Senhor predisse Sua morte e ressurreição, a princípio, de forma velada (Jo 2:18-22; Mt 12:38-40; 16:4) e, após a confissão de Pedro (Mt 16:16), de modo claro (Mt 16:21; 17:9, 22, 23; 20:18, 19). Em Mt 28


26:31, 32, os discípulos são avisados que, escandalizados, abandonarão o Senhor, mas, após a ressurreição, serão outra vez reunidos na Galiléia. Esta advertência foi relembrada pelo anjo, após a ressurreição (Mt 28:7).

Os evangelhos narram com riqueza de detalhes os fatos históricos relacionados tanto à morte quanto à ressurreição do Senhor. Após os açoites (Mc 15:15-20) e o escarnecimento (Mt 27:27-31), nosso Senhor foi entregue para ser crucificado (Mc 15:22; Mt 27:26). Que a morte foi realmente verificada por todos os envolvidos, não resta dúvida. Pilatos ficou admirado que Cristo tivesse morrido tão cedo (Mc 15:44) e só liberou o corpo a José de Arimatéia após certificar-se da morte com seus homens de confiança (Mc 15:44, 45; Mt 27:57-61). Os soldados romanos, especialistas em crucificação, após séria averiguação, confirmaram a morte a Pilatos (Jo 19:31-34). A morte foi igualmente verificada por José de Arimatéia e por Nicodemos (Jo 19:38-42). Finalmente, os judeus, certos da ocorrência da morte do Senhor, solicitaram uma guarda para vigiar o túmulo, ao argumento de que os discípulos poderiam roubar o corpo e dar início a um mito da ressurreição (Mt 27:62-64).

Que o corpo do Senhor foi depositado no túmulo, também não há dúvidas! José de Arimatéia e Nicodemos prepararam o corpo para o sepultamento (Mt 27:57, 58; Jo 19:38-40). O momento do sepultamento foi testemunhado também pelas mulheres (Mt 27:61; Mc 15:47).

Após o sepultamento, uma grande pedra foi rolada para a entrada do túmulo (Mt 27:60; cf. Mc 16:3, 4) e a guarda romana selou a pedra e permaneceu guardando-o (Mt 27:66), de modo que a violação daquele túmulo em particular ensejaria as reações do rigor da lei romana. Ali estava a sepultura mais bem vigiada da história humana!

É dizer, Pilatos, os judeus e a guarda romana fizeram o melhor que puderam para evitar o “furto do corpo” e “um mito da ressurreição”, o que somente corrobora que Cristo de fato ressuscitou, como sugeriu Jerônimo: "se o sepulcro estiver selado, não ocorrerá qualquer negócio escuso. De modo, 29


então, que a prova da sua ressurreição tornou-se indiscutível devido ao que vocês mesmos sugeriram.

Mas, se não ocorreu qualquer negócio escuso e o sepulcro foi encontrado vazio, então fica patente, sendo algo indiscutível, que ele ressuscitou. Percebe você como, até contra a própria vontade, eles ajudaram a demonstrar a verdade?" (Citado por Josh McDowell). Após a ressurreição, o registro do suborno pela guarda romana é digno de nota (Mt 28:11-15). A falsa notícia de que o corpo foi roubado decorreu de dois fatos: primeiro, que o corpo de Jesus estava no túmulo quando a guarda chegou, tanto que a notícia só foi criada após a ressurreição; segundo, que a guarda constatou que o túmulo estava vazio, o que necessitaria de uma explicação.

Finalmente, devemos observar as tantas aparições incontestes do Senhor ressurreto a testemunhas oculares do fato histórico da ressurreição, das quais mais da metade das quinhentas estavam vivas e poderiam corroborar, à época em Paulo escreveu I Co 15:3-8 (c. 56 d.C.). No domingo pela manhã, o Senhor aparece a Maria Madalena (Mc 16:9; Jo 20:14-17) e às demais mulheres (Mt 28:9, 10). À tarde desse mesmo domingo, aparece a Pedro (Lc 24:34; I Co 15:5), aos discípulos a caminho de Emaús (Lc 24:13-32; Mc 16:12, 13) e aos dez discípulos, sem Tomé (Jo 20:19-25). No domingo seguinte, aparece outra vez aos discípulos, com Tomé (Jo 20:26-29; Mc 16:14). Quatro ou cinco semanas após, o Senhor aparece na Galiléia, no mar (Jo 21:1-23) e no monte (Mt 28:16-20; Mc 16:15-18), onde foi visto por mais de quinhentas testemunhas (I Co 15:6). Nesse período, o Senhor apareceu a Tiago (I Co 15:7) e, finalmente, aos discípulos em Jerusalém (Lc 24:44-49; At 1:3-8), quando foi visto ascender.

Todos esses relatos implicam que houve aparições reais, históricas, nas quais o Senhor apareceu com o corpo físico (Jo 20:17, 20; 21:12-14; Lc 24:39), embora com "características extraordinárias" (Jo 20:13, 19; 21:7; Lc 24:31, 36), com "propriedades físicas que transcendiam a realidade comum" (Ferreira e Myatt). Somente a Estevão (At 7:55, 56), a Paulo (At 9:10, 11; 22:17-21; 23:11) 30


e a João (Ap 1:9-13), as aparições do Cristo ressurreto ocorreram em uma visão particular, devendo, quanto à aparição a Paulo, ser observado com Ferreira e Myatt que: "Apesar de ter elementos semelhantes com os de um fato puramente místico, o acontecimento no caminho de Damasco não fugiu dos padrões de um fato ocorrido no tempo e no espaço. Outros presenciaram a luz e ouviram a voz. O que estava ocorrendo não era algo ocorrido apenas no âmbito particular, mesmo que a comunicação entre Jesus e Saulo tenha sido feita nesse âmbito".

Igualmente verificável é o fato de que a ressurreição de Cristo tornou-se, desde cedo, o centro da pregação apostólica (At 2:24, 32; 3:15; 4:10; 5:30; 10:40; 13:30, 34; 17:31). Dentre todas as grandes religiões mundiais (judaísmo, budismo, islamismo e cristianismo), só o cristianismo menciona um túmulo vazio e tem no fato histórico e miraculoso da ressurreição de Cristo sua doutrina fundamental (I Co 15:14, 15, 17-19; I Pe 1:21). "A fé na ressurreição é a principal coluna de sustentação da fé cristã; retirando-se a coluna, tudo inevitavelmente cai por terra" (H. P. Liddon, citado por Josh McDowell).

Por fim, vale destacar que a ressurreição do Senhor possui ao menos três significados: primeiro, a ressurreição demonstra que Cristo venceu o último inimigo, a saber, a morte (At 2:24; I Co 15:26); segundo, a ressurreição demonstra que Deus o Pai aceitou a morte de Cristo como completa e suficiente para expiar pecados (Rm 4:25), visto que, caso não tivesse havido ressurreição, ainda estaríamos mortos em nossos pecados (I Co 15:17); terceiro, a ressurreição de Cristo é o alicerce da ressurreição daqueles que estão em Cristo (I Co 15:20-22, 51-57; II Co 4:14; I Ts 4:14) e a razão da nossa viva esperança (I Pe 1:3).

26. "Subiu aos céus; está assentado à direita de Deus Pai todo-poderoso". É certo afirmarmos com Ferreira e Myatt que "a ascensão foi a consumação da ressurreição", que a descreveram como "a subida visível de Cristo da terra para o céu, segundo a sua natureza humana", cujo pressuposto é "a mudança da natureza humana de Cristo, que aconteceu em sua ressurreição".

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A ascensão de Cristo implica em haver o Salvador deixado as condições da terra e retomado Seu lugar junto com o Pai (Jo 17:1), nos lugares celestiais, onde recebeu domínio absoluto sobre todos os poderes existentes (Mt 28:18; Ef 1:20-22; Cl 2:15) e prepara lugar para receber Seu povo, no futuro (Jo 14:2). Historicamente, localiza-se quando subiu aos céus perante os discípulos, que acompanharam-nO com os olhos subir até não poder mais ser visto (At 1:9).

A ascensão do Salvador significa que Deus o Pai aceitou Seu sacrifício como oferta pelo pecado, tanto que o readmitiu à glória celestial, e indica a ascensão espiritual daqueles que estão em Cristo (Ef 2:5, 6), já ocorrida, tanto quanto a glorificação futura dos salvos. Ao lado do Pai, o Senhor intercede pelo Seu povo (Hb 7:25; Rm 8:34; I Jo 2:1), "rogando pela aceitação deles com base em seu sacrifício consumado, e por sua segurança no mundo" e continua a apresentar "continuamente o seu sacrifício consumado ao Pai como base suficiente para a concessão da graça perdoadora de Deus" (Berkhof).

27. "Donde há de vir [a julgar os vivos e os mortos]". É óbvia a dedução de que a exaltação do Senhor não terá sido consumada até que Ele volte para "julgar os vivos e os mortos", conforme a cláusula credal que estamos a analisar. Na lição de Louis Berkhof, "o ponto supremo não será alcançado enquanto o que sofreu nas mãos do homem não voltar na qualidade de juiz".

Com efeito, a segunda vinda do Senhor Jesus foi predita no Antigo Testamento através da expressão "dia do Senhor", que era tanto um dia de redenção e de muita alegria para os justos quanto de sofrimento e angústia para os infieis (Ml 4:1-5; Sf 1:7-2:3). No Novo Testamento, a segunda vinda do Senhor é predita com expressões correspondentes, tais como "aquele dia" (Mt 24:36), "último dia" (Jo 12:48), "Dia de nosso Senhor Jesus Cristo" (I Co 1:7, 8), "Dia do Senhor" (I Ts 5:2) e "Dia de Cristo Jesus" (Fp 1:6).

O ensino neo-testamentário é que a vinda do Senhor é certa, razão pela qual estamos "aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus" (Tt 2:13). "Esperança" é a expectação confiante de quem anela ardentemente por algo que não 32


decepcionará, i.é., a certeza do que se espera. Segundo Hendriksen, esta esperança é "qualificada de bendita, porque infunde o estado de preparação ou disposição, bênção, felicidade, deleite e glória". A vinda do Senhor será gloriosa (II Ts 1:7, 8), física e visível. Nesse sentido, os discípulos que acompanharam atentamente a ascensão do Senhor, foram avisados que Ele voltaria do modo como foi visto subir (At 1:9-11). Quanto ao dia e hora da segunda vinda, não podem ser precisados (Mt 24:36; At 1:7; I Ts 5:1, 2), porque a vinda do Senhor será súbita, mas, por outro lado, sabe-se que nosso Senhor não voltará sem que o evangelho seja proclamado em todo o mundo (Mt 24:14) e sem que o “homem da iniquidade” tenha se manifestado (II Ts 2:1-3), evento relacionado com a grande apostasia e a grande perseguição que hão de vir sobre a igreja (Mt 24:21, 22; Lc 18:8; II Ts 2:3).

Finalmente, a vinda do Senhor será inconfundível (Mt 24:29-31; Ap 1:7) e introduzirá uma série de eventos, quais sejam: primeiro, os mortos ressuscitarão com seus corpos, tanto os condenados quanto os redimidos (Jo 5:28, 29; 6:39, 40, 44; At 24:15); segundo, os redimidos serão transformados à semelhança da humanidade do Senhor (I Co 15:51-57; I Ts 4:13-18; I Jo 3:2); terceiro, todos comparecerão perante o Tribunal de Cristo para serem julgados (At 17:31; II Co 5:10; II Tm 4:1; I Pe 4:5; Ap 20:11-15); quarto, Satanás e seu séquito, como também os condenados, serão definitivamente encerrados na condenação eterna (Ap 20:10) e; quinto, a criação será gloriosamente renovada em novos céus e nova terra (Rm 8:20, 21; Ap 21:1; II Pe 3:13). “Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda” (II Tm 4:8).

28. "[Donde há de vir] a julgar os vivos e os mortos". Quanto ao juízo final, os salvos serão julgados (Rm 14:10; I Jo 4:17) e receberão o galardão pela graça (Lc 17:10), conforme a perseguição que sofreram (Mt 5:12; II Co 4:17), a misericórdia que exerceram (Mt 6:1), o serviço que prestaram à igreja (Mt 10:41, 42; 25:31-40) e a maneira como contribuíram à sua edificação (I Co 3:10-17; I Pe 5:4; II Tm 4:8). Portanto, os salvos em Cristo não devem temer o dia do juízo (I Jo 4:17), não porque seus pecados não venham à luz naquele 33


dia, mas porque não há condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus (Rm 8:1). Nesse sentido, Anthony Hoekema escreveu: "As falhas e deficiências desses crentes, portanto, participarão do quadro do dia do juízo. Mas - e este é o ponto importante - os pecados e deficiências dos crentes serão revelados no juízo como pecados perdoados, cuja culpa foi totalmente coberta pelo sangue de Jesus Cristo. Por isso, os crentes não têm nada a temer acerca do juízo embora a percepção de que eles terão de prestar contas de tudo que fizeram, disseram e pensaram, deveria ser para eles um incentivo constante para a luta diligente contra o pecado, para o serviço cristão consciente e para uma vida consagrada".

Os descrentes também serão julgados e condenados, segundo todas as obras que praticaram (Ap 20:12, 13), conforme a maneira como trataram a igreja (Mt 25:41-46; Ap 6:9-17) e porque rejeitaram o evangelho (Jo 3:36). Sobre todos os ímpios sobrevirá a morte eterna (Rm 6:23) no inferno, lugar de "fogo inextinguível" (Mt 3:12), "onde não lhes morre o verme nem o fogo se apaga" (Mc 9:48), lugar de "trevas", "choro e ranger de dentes" (Mt 25:30), onde a ira de Deus será experimentada sem mistura (Rm 2:5, 8, 9; Hb 10:27-31; Ap 14:10). Os crentes, de algum modo, participarão do julgamento dos incrédulos (Mt 19:28; Lc 22:28-30; I Co 6:2, 3; Ap 3:21; 20:4).

Por fim, vale destacar que os perdidos serão julgados de acordo com a vida que levaram, com as escolhas que fizeram e com a luz que possuíram. Conforme Ferreira e Myatt anotaram: "Os que tiveram mais revelação de Deus receberão mais severo juízo. Por exemplo, em Mateus 11:21-24, Jesus revela que o destino de Cafarnaum e de Corazim será pior do que o destino de Tiro e Sidom, porque aquelas rejeitaram o testemunho de Jesus, enquanto estas não tinham essa revelação".

No inferno, os ímpios sofrerão tormentos, dores e sofrimentos no corpo e na alma horrendos e intermináveis, tudo isso acompanhado de agonias lancinantes. Aqui está a manifestação da ira de Deus, como Hendriksen escreveu: "O inferno é inferno porque Deus está lá, Deus em toda a sua ira... O

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céu é céu porque Deus está lá, Deus em todo o seu amor. É desta presença de amor que o ímpio é banido para sempre".

29. Conclusão ao Segundo Artigo. Chegamos ao fim de nossas notas sobre este segundo artigo do antigo simbolum de fé, ocasião em que devemos observar com D. A. Carson que “tudo que sabemos de Deus, tudo que apreciamos nele, tudo pelo qual o louvamos, em toda a experiência cristã, tanto nesta vida como na vida por vir, flui desta cruz sangrenta”. E isto inclui o dom do Espírito, o perdão dos pecados, a comunhão dos santos e a esperança da ressurreição da carne e da vida eterna nos novos céus e nova terra. Nas palavras do apóstolo aos gentios, “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8:32). Eis o que John Piper denominou de “a lógica consistente do céu”, aduzindo que “é um argumento que procede do superior para o inferior; do difícil para o fácil; do obstáculo quase intransponível para o que pode ser facilmente superado”. “Como seria imaginável que Deus deveria sonegar, depois disso, as bênçãos espirituais e temporais de seu povo? Como ele não os chamaria eficazmente, justificaria-os graciosamente, santificaria-os completamente, e os glorificaria eternamente?... Seguramente, se Ele não poupou seu próprio Filho de um golpe, uma lágrima, um gemido, um suspiro, uma circunstância de miséria, jamais se poderia imaginar que ele deveria, depois disso tudo, negar ou sonegar de seu povo, por cuja causa todo esse sofrimento aconteceu, quaisquer misericórdias, confortos, privilégios, espiritual ou temporal, que são para o bem deles” (John Flavel, citado por Piper).

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Crês tu em Jesus Cristo, seu único filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está assentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos?

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3. O Terceiro Artigo: O Deus Santificador

E no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna. Amém.

30. Introdução ao Terceiro Artigo. A Bíblia ensina que os cristãos genuínos foram salvos, estão sendo salvos e serão salvos. Por Deus o Pai, fomos salvos antes da fundação dos séculos; por Deus o Filho, na cruz do Calvário; e, por Deus o Espírito Santo, quando somos levados a apropriar-nos da salvação pela fé e preservados em santidade até a ressurreição. Assim, podemos afirmar que toda a obra da nossa salvação é exclusivamente divina e inclusivamente trinitária. Nas palavras de Herman Bavinck: "A obra da salvação é uma incumbência do Deus único que subsiste em três pessoas, na qual as três pessoas cooperam e cada uma realiza uma tarefa especial. É o Deus trino Pai, Filho e Espírito - que concebe, determina, realiza e completa toda a obra da salvação".

O Pai escolheu livre, soberana e incondicionalmente, antes da fundação dos séculos, aqueles indivíduos que iriam ser salvos, os predestinou a essa grande salvação (Jo 15:16, 19; At 13:48; Rm 8:29, 30; 9:6-13; 11:4-7; Ef 1:4-6, 11, 12; I Ts 1:4, 5; 5:9; II Ts 2:13; II Tm 1:8-10; Ap 17:8, 14) e os deu ao Filho (Jo 6:37, 39; 10:29; 17:2, 6, 9, 24; 18:9); o Filho encarnou e conquistou com o sacrifício de Si a salvação dos eleitos (Is 53:10-12; Mt 1:21; 20:28; 26:28; Mc 10:45; 14:24; Lc 22:20; Jo 10:11-16; 17:9; At 20:28; Rm 5:8; 8:32-34; I Co 1:30; 11:24; Gl 1:3, 4; Ef 5:25-27; Cl 1:21, 22; Tt 2:14; Ap 5:9); o Espírito aplica, completa, concretiza, realiza os benefícios da cruz nos eleitos.

Ressalte-se, pois, que é o Espírito quem concretiza nos eleitos os benefícios adquiridos por Cristo, tais como a regeneração (Jo 3:3; Tt 3:5), a convicção de pecado (Jo 16:8-11), a adoção de filhos (Rm 8:15), a selagem (Ef 1:13; 4:30), a santificação (Gl 5:17, 22, 23), a variedade dos dons (I Co 12:4, 7-11), a unidade da igreja (I Co 12:12, 13) e a ressurreição dos corpos (Rm 8:10, 11). Ademais, é por meio do Espírito que temos comunhão direta com o Pai e com o Filho (Jo 14:23, 26; II Co 6:16; Gl 2:20; Ef 3:16, 17; Fp 1:8, 21). O Espírito Santo é o 37


Deus que vive em nós (I Co 3:16; 6:19; Ef 2:20-22; I Pe 2:5), razão pela qual a Igreja é advertida a não entristecê-lO (Is 63:10; Ef 4:30) e a não extinguir Suas operações (I Ts 5:19). A mentira contra o Espírito Santo foi a causa da punição de Ananias e Safira (At 5:3, 9) e a resistência ao Espírito, o pecado dos israelitas (At 7:51). Por fim, nosso Senhor afirmou que a blasfêmia contra o Espírito é o pecado imperdoável (Mt 12:31, 32). Atentemos, portanto, ao ensino das Escrituras concernente à pessoa bendita e à obra maviosa do Espírito Santo, objeto do terceiro artigo do antigo Credo da Igreja.

31. "E no Espírito Santo": Sua personalidade. O nome "Espírito Santo" só ocorre no Antigo Testamento em Sl 51:11 e Is 63:10, 11, sendo mais comuns as ocorrências de "Espírito de Deus" e "Espírito do Senhor". No Novo Testamento, "Espírito Santo" veio a ser a designação por excelência da terceira pessoa da Trindade. Conforme observou Herman Bavinck, "na teologia cristã, a doutrina do Espírito Santo só foi consistentemente tratada depois da do Filho", sobretudo na obra de Basílio de Cesaréia, em seu Tratado Sobre o Espírito Santo, escrito em 374, e somente no Concílio de Constantinopla, em 381, a divindade do Espírito Santo foi plenamente formulada. Enquanto que na doutrina do Filho a questão debatida era a Sua divindade, na do Espírito, o ponto controvertido foi a Sua personalidade.

Entretanto, não deve haver dúvida em asseverarmos a personalidade do Espírito Santo. As Escrituras falam do Espírito como a um Ser pessoal. Primeiro, quando usa o pronome masculino (gr. "ekeinos"), em Jo 16:14, e o pronome relativo masculino (gr. "hos"), em Ef 1:14, para referir-se ao Espírito (gr. "pneuma", substantivo neutro). Segundo, quando Lhe confere o título "Consolador" (gr. "parakletos"), em Jo 14:26, 15:26, 16:7. Conforme anotou Louis Berkhof, o termo "Parakletos" tem importância por duas razões: a uma, "o termo não pode ser traduzido por 'conforto', 'consolação', nem pode ser considerado como nome de alguma influência abstrata; a duas, "um fato que indica que se trata de uma pessoa é que o Espírito Santo, como Consolador, é colocado em justaposição com Cristo como o Consolador que estava para partir, a quem o mesmo vocábulo é aplicado em I Jo 2:1 [aqui, “parakletos” é 38


traduzido por "Advogado"]". Ademais, ainda digno de nota é que a palavra "outro" (gr. "allos", em "outro Consolador") "realça a identidade diferente daquele que virá", conforme anotaram Ferreira e Myatt. Terceiro, há passagens em que faz-se nítida distinção entre o Espírito Santo e o Seu poder (Lc 1:35; 4:14; At 10:38; Rm 15:13; I Co 2:4). Recorremos outra vez a Berkhof, quando observa que tais passagens seriam "até absurdas" "se fossem interpretadas com base no princípio de que o Espírito é pura e simplesmente um poder impessoal". Quarto, as Escrituras creditam ao Espírito características pessoais, tais como inteligência, vontade e sentimentos (Jo 14:26; At 16:7; Ef 4:30); realizações pessoais, tais como lutar, ensinar, falar, decidir, vivificar mortos (Gn 6:3; Lc 12:12; At 8:29; 13:2; Rm 8:11); e, relacionamentos que são próprios de pessoas (At 15:28; Jo 16:14).

32. "E no Espírito Santo": Sua divindade. Noutro giro, se não tememos reconhecer a personalidade do Espírito Santo, com muito mais razão não ousaríamos questionar a Sua divindade. As mesmas Escrituras que O revelam como um Ser pessoal, testificam tratar-se de uma pessoa divina, da mesma essência do Pai e do Filho, sobretudo quando atribuem-Lhe nomes divinos (Ex 17:7 [Hb 3:7-9]; At 5:3, 4; I Co 3:16; II Tm 3:16; II Pe 1:21), atributos divinos (Sl 139:7-10; Hb 9:14; Is 40:13, 14 [Rm 11:34]; Rm 15:19), realizações divinas (Gn 1:2; Sl 104:30; Rm 8:11) e honras somente devidas à Divindade, conforme Paulo escreveu em I Co 3:16: "Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?". Ora, Aquele habita no templo recebe nele a adoração.

Acrescente-se que as Escrituras colocam o Espírito Santo em exata justaposição com as demais pessoas da Trindade, o que nos faz concluir que o Espírito Santo é dotado de personalidade, é um Ser pessoal, distinto do Pai e do Filho, e não uma força impessoal, tanto quanto uma pessoa divina, co-igual ao pai e ao Filho (Mt 28:19; II Co 13:13; I Pe 1:1, 2; Jd 20, 21). Para Bavinck, "a escolha é clara: ou o Espírito Santo é uma criatura - seja um poder, um dom ou uma pessoa - ou é verdadeiramente Deus. Se Ele é uma criatura, ele não pode, de fato e de verdade, nos comunicar o Pai e o Filho com todos os seus benefícios, não pode ser o princípio da nova vida nem no cristão individual nem 39


na igreja como um todo... Mas o Espírito Santo não é e não pode ser uma criatura... Aquele que nos dá o próprio Deus deve ser, ele mesmo, verdadeiro Deus".

33. "E no Espírito Santo": Sua relação com o Pai e com o Filho. Havendo provido algumas anotações sobre a pessoa divina do Espírito Santo, voltamonos agora para as Suas relações na Trindade. Já observamos que é o título "Pai" que distingue o atributo pessoal da primeira pessoa da Trindade. Nas operações internas da Trindade (opera ad intra), o Pai é a pessoa "não gerada" e o eternamente Pai. Não houve um tempo em que o Pai não tenha sido o Pai de nosso Senhor Jesus. Noutro momento, consideramos que o atributo pessoal que distingue a segunda pessoa da Trindade é a filiação. Somente o Filho é Filho do Pai, não o Espírito Santo. Anotamos igualmente, que nunca houve um tempo em que nosso Senhor não tenha sido o Filho do Pai. Enquanto o Pai é "não gerado", o Filho é “gerado”, mas não no sentido de haver sido, em algum momento temporal, criado. O Filho é tão "incriado" quanto o Pai. Daí dizer-se que Ele é o Filho do Pai por “geração eterna”. "Ele veio da essência do Pai eternamente" (Héber carlos de Campos).

O Espírito Santo, a seu turno, é a terceira pessoa da Trindade cujo atributo pessoal que O distingue das pessoas do Pai e do Filho é a "processão". O Espírito Santo "procede" (ou é "espirado") pelo Pai e pelo Filho (Jo 15:26; 16:7). A Escritura O revela como sendo o Espírito do Pai e do Filho. Entretanto, atenção para este fato: o Espírito é tão incriado quanto o Pai e quanto o Filho. A palavra "processão" não indica a origem temporal do Espírito Santo, nem que o Seu ser essencial é derivado do Pai e do Filho, mas aponta a maneira como o Espírito Santo Se relaciona no Ser divino, na "Trindade Ontológica", com o Pai e com o Filho.

Resumo da ópera: o Pai é incriado; o Filho é incriado; o Espírito é incriado. Nas relações internas da Trindade Ontológica (opera ad intra), o Pai é o "nãogerado", o Filho é o eternamente gerado do Pai e o Espírito Santo é o eternamente procedente do Pai e do Filho.

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34. "E no Espírito Santo": Sua relação com o Filho. O Espírito Santo esteve presente na vida de Jesus da concepção à ascensão. A Cristo, o Espírito não foi dado por medida (Jo 3:34), isto é, "por porções cuidadosamente calculadas" (F. F. Bruce). A presença do Espírito não era crescente na vida do Senhor Jesus. Sobre Cristo, o Espírito permanece (Jo 1:32, 33; Is 11:2; 42:1; 61:1), de modo que "toda atividade de Cristo se manifestava na presença do Espírito Santo" (Basílio de Cesaréia, citado por Ferreira e Myatt).

O Espírito Santo criou o corpo de Jesus, na concepção miraculosa (Lc 1:35; Mt 1:18, 20), foi Seu revestimento preparatório para o ministério público, no batismo (Mt 3:16), e O conduziu ao deserto, para ser tentado (Lc 4:1). No ministério, nosso Senhor realizou milagres e ensinou no poder do Espírito Santo (Mt 12:25-28; Lc 4:14, 18; At 1:2; 10:38), que O assistiu igualmente em Sua vida de oração (Lc 10:21). O Espírito Santo esteve com o Senhor em Sua morte (Hb 9:14) e O ressuscitou dentre os mortos (Rm 1:4; 8:11). Após a ressurreição e a ascensão, a primeira obra que Cristo realizou foi o envio do Espírito Santo (At 2:4, 33), cumprindo profecias do Antigo Testamento (Jl 2:28, 29) e que foram reafirmadas por João Batista e pelo próprio Senhor Jesus (Lc 3:16; 24:49; Mc 1:8; Mt 3:11; At 1:4, 5; Jo 1:33). Portanto, a obra do Senhor só ficou completa no dia de Pentecostes. A partir do derramamento do Espírito, através dEle, a Igreja goza a presença contínua de Cristo (Jo 14:18, 23; Mt 28:20; I Jo 3:24).

Na "Trindade Econômica", o Espírito Santo está relacionado com o Filho do modo como o Filho está relacionado com o Pai. Conforme ensinou Herman Bavinck, "[Cristo] Nada tem, nada faz e nada diz por si mesmo, mas recebe tudo do Pai (Jo 5:26; 16:15), assim também o Espírito recebe tudo de Cristo (Jo 16:13, 14). Assim como o Filho dá testemunho e glorifica o Pai (Jo 1:18; 17:4, 6), assim também o Espírito, por sua vez, dá testemunho e glorifica o Filho (Jo 15:26; 16:14). Assim como ninguém pode chegar ao Pai a não ser pelo Filho (Mt 11:27; Jo 14:6), assim também ninguém pode dizer "Senhor Jesus!" a não ser pelo Espírito". A obra do Espírito não chama a atenção para Si mesmo. O seu ministério é de bastidores e Seu propósito é glorificar o Filho.

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35. "E no Espírito Santo": Suas operações na 'graça comum'. Ainda teceremos breves notas acerca das operações do Espírito Santo na vida dos crentes em Jesus Cristo. Por ora, cumpre-nos colocar que as operações do Espírito, embora de algum modo relacionadas com os propósitos de Deus para o Seu povo, de modo algum estão confinadas nos arraiais da Igreja. Antes, conforme observou Calvino, quando afirmamos que "o Espírito de Deus reside unicamente nos fieis, temos que entender que tratamos de santificação pela qual somos consagrados a Deus como seus templos. Mas, entretanto, Deus não cessa de encher, vivificar e mover com a virtude desse mesmo Espírito todas as criaturas".

Pois bem, estas operações universais do Espírito têm recebido o nome de "graça comum". É a noção da "graça comum" que explica como o homem totalmente depravado realiza algum tipo de bem. Por um lado, do homem caído, não se pode esperar bem algum. Por outro, como explicar o fato de que conhecemos pessoas não cristãs que são habilidosas, humanitárias e cumpridoras dos seus deveres e isto em medida ainda maior que a evidenciada em muitos cristãos genuínos? Mais uma vez, a resposta está na "graça comum", tema que abordaremos em dois aspectos: primeiro, destacaremos a obra da graça comum no sentido de ser uma operação divina "comum" a toda humanidade; segundo, usaremos a expressão "graça comum" para referir-nos também às operações comuns aos eleitos e aos não eleitos do ambiente da Igreja.

"Graça comum" é o termo que designa as operações divinas pelas quais o Espírito Santo, sem operar a remoção da culpa e a salvação dos pecadores, suporta-lhes o pecado em Sua longanimidade (Rm 2:4; 9:22; II Pe 3:9), concede-lhes bênçãos naturais (Gn 17:20; Sl 145:9, 15, 16; Mt 5:44, 45; At 14:16, 17; 17:25), refrea-lhes o pecado (Gn 6:3; 20:6; Is 63:10; At 7:51) e estimula-lhes a prática do bem, público e privado, e a admiração pela verdade, pela justiça, pelo bom e pelo belo (Mt 7:9-11; Rm 2:14, 15; Rm 13:1-7; At 17:22, 28). Percebe-se, nesse passo, que a possibilidade de vida minimamente viável na sociedade descrente, do ponto de vista relacional, social e moral, 42


deve-se tão somente às operações do Espírito na graça comum (Rm 1:24, 26, 28), que ocorrem através da revelação geral (Rm 2:14, 15), do governo (Rm 13:1-7) e das relações sociais ou da opinião pública.

Em segundo lugar, devemos destacar igualmente que há uma graça comum distribuída aos eleitos e aos não eleitos que vivem sob o evangelho. É dizer, há uma graça não especial, não eletiva, que não remove a culpa do pecado, que alcança tanto crentes genuínos quanto os hipócritas e não regenerados disfarçados de cristãos. Nesse sentido, o escritor aos Hebreus escreveu: "É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia" (Hb 6:4-6, com grifos nossos).

O escritor de Hebreus nos ensina que há membros na igreja que podem ser descritos nos seguintes termos: "iluminados", no sentido de haverem sido esclarecidos, de haverem recebido uma compreensão significativa do evangelho e de terem começado a enxergar as realidades espirituais; "provaram o dom celestial", expressão que talvez refira-se à vivência de algumas experiências oferecidas no evangelho; "se tornaram participantes do Espírito Santo", por sua vez, significa que os não eleitos que convivem como se crentes genuínos fossem compartilham dos dons e da influência do Espírito; "provaram a boa palavra de Deus" implica em dizer que esses falsos cristãos se alegraram ao ouvir o evangelho e lhe deram crédito, que chegaram mesmo a maravilhar-se da Palavra da Deus; e "provaram os poderes do mundo vindouro", que pode ser uma alusão às intervenções miraculosas de Deus pelas mãos dos apóstolos ou mesmo que anteviram e creram nas realizações do Senhor por ocasião da segunda vinda.

Percebe-se quão longe um não regenerado pode aproveitar-se das manifestações e influências de Deus sobre a vida da igreja visível.

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Mas o autor de Hebreus vai além, e diz: "e caíram". Estes são aqueles que vivem com a igreja, cantam com a igreja, oram com a igreja, aprendem o evangelho, recebem dons espirituais, evangelizam e, após toda essa vivência cristã, abandonam a fé (Mt 7:21, 22).

Nosso Senhor referiu-se aos apóstatas como aqueles que "não têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração" (Mc 4:16, 17).

No caso que examinamos, é muito provável que o autor estivesse escrevendo a um grupo judeu que, talvez por estar enfrentando forte oposição, pensava em abandonar a justificação pela graça mediante a fé somente e retornar ao sistema de obras do judaísmo (Gl 5:2-4).

Fazer isso, segundo o autor inspirado, é recrucificar a Cristo "para si mesmos", é identificar-se com os escarnecedores e algozes que crucificaram nosso Senhor, como se dissesse: "nossos pais bem fizeram em crucificar a Cristo como malfeitor".

É possível mesmo que o escritor sagrado "esteja pensando que tais apóstatas seriam mais culpáveis do que aqueles que originalmente clamaram 'crucifica-o', que nunca conheceram coisa alguma acerca da maravilhosa graça de Deus através de Cristo" (Donald Guthrie).

Segundo o texto, aqueles que apostatam desse modo não são mais renovados à antiga posição e ficam sob a impossibilidade de conhecerem o arrependimento (I Jo 2:19; 5:16, 17). O fato inconteste, portanto, é este: que na igreja visível há falsos cristãos, há joio crescendo lado a lado com o trigo (Mt 13:30), e que os tais gozam diversas bênçãos comuns com os eleitos.

36. "E no Espírito Santo": Suas operações na 'graça especial'. Não custa destacar que "graça" é a virtude divina pela qual o Deus TriUno condece ao homem favor que este não merece receber. Este é o aspecto que sobressai igualmente tanto na graça comum quanto na graça especial: ambas são demonstração de favor imerecido. Homem algum merece qualquer dádiva 44


natural da parte de Deus. Semelhantemente, e com muito mais razão, homem algum merece a dádiva da salvação (Ef 2:5, 7; Rm 3:24).

Com efeito, há mesmo uma relação mutuamente excludente entre graça e mérito (obras). Ou a salvação é pela graça (uma concessão gratuita que o homem não merece receber) ou é pelas obras (uma justa retribuição pelos méritos humanos), como ensinou o apóstolo Paulo: "se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça" (Rm 11:6; cf. Rm 4:4; Ef 2:8, 9; II Tm 1:9). Eis a razão pela qual não pode haver gente "orgulhosa" de sua salvação: ela não foi uma conquista pessoal e meritória (Ef 2:9; Rm 3:27).

Por outro lado, cumpre ressaltar os aspectos que diferenciam a graça especial da graça comum. Primeiro, a graça especial remove a culpa, perdoa pecados e justifica; a graça comum, não. Segundo, a graça especial age espiritualmente e renova a natureza do homem, mudando a Sua relação com Deus; a graça comum opera somente física, intelectual e moralmente. Terceiro, a graça especial é irresistível; a graça comum, resistível, podendo sofrer maior ou menor resistência.

Agora, pois, debrucemo-nos sobre as operações do Espírito Santo na graça especial. São elas: a vocação eficaz, a regeneração, a conversão, a justificação, a adoção, a santificação e a glorificação.

37. As operações do Espírito Santo na graça especial: o início da vida cristã. A partir desse ponto, teceremos alguns breves comentários acerca da graça especial do Espírito Santo, quando opera o início da vida cristã. Trataremos da vocação eficaz, da regeneração, da conversão, da justificação e da adoção.

O chamado eficaz é a obra divina pela qual o Espírito Santo, mediante a pregação da Palavra de Deus, convoca eficaz, soberana, irresistível e internamente os eleitos para a salvação (Gl 1:15; I Co 1:23, 24; Rm 8:30). Noutras palavras, trata-se da ação do Espírito em iluminar o eleito de modo 45


que este compreenda o evangelho salvadoramente e se volte para Deus em arrependimento e fé (Jo 6:37; 10:27, 28; At 16:14). A par deste chamado eficaz, há uma vocação externa, que é a apresentação das verdades do evangelho pela

igreja,

acompanhada

do

convite

ao

pecador

para

que

este

se arrependa e creia e, assim, receba o perdão dos seus pecados (At 8:27-38). Nosso Senhor, João Batista e os apóstolos proclamaram as verdades do evangelho (Mt 4:17; Mc 1:14, 15; At 2:38), e há um sem número de mandamentos bíblicos para que façamos o mesmo (Mc 16:15; II Co 5:20). Esta vocação externa é resistível (Mt 19:21, 22; 20:16; At 2:40, 41; 17:30-32), mas imprescindível à vocação eficaz e sempre precede esta (Rm 10:13-15).

A regeneração, por sua vez, é a obra do Espírito Santo por meio da qual Ele concede vida espiritual a um coração morto e o purifica (Tt 3:5), por meio da Palavra de Deus (I Pe 1:23; Tg 1:18). Trata-se de uma operação absolutamente necessária (Jo 3:3-6; 6:44, 65) para que o pecador, morto em seus delitos e pecados (Ef 2:1-3), incapaz de compreender verdades espirituais (I Co 2:14) e de mudar a si mesmo (Jr 13:23), volte-se para Deus. Na regeneração, o homem é o sujeito passivo. Ela não ocorre por vontade humana, mas pela livre decisão divina (Jo 1:12, 13; 3:8). É um "nascer de novo", expressão que pode ser traduzida como "nascer de cima" (Jo 3:3). O Novo Testamento traz outros termos para regeneração, referindo-se a essa mudança operada pelo Espírito como "nova criação" (II Co 5:17), iluminação (II Co 4:6) e ressurreição (Ef 2:5; I Jo 3:14), expressões que enfatizam tratar-se de uma obra inteiramente divina.

Os resultados da regeneração podem ser resumidos em termos de uma nova relação com Deus. Há um novo "pendor", uma nova tendência ou inclinação (Rm 8:6), quando um novo e mais profundo e dominante desejo da alma passa a ser o de servir e amar a Deus (I Jo 2:29; 3:9; 4:7; 5:1, 4, 18). Só é cristão verdadeiro quem nasceu de novo, tornando-se habitação do Espírito Santo (Rm 8:9).

Em termos humanos, o novo nascimento se expressa em termos de conversão, compreendida como a reação humana à regeneração (I Ts 1:5-10), 46


pela qual o homem regenerado se volta para Deus em arrependimento e fé (Is 55:7). O arrependimento consiste dos seguintes elementos: primeiro, da percepção da santidade de Deus e da hediondez do pecado (Is 6:5); segundo, de profunda tristeza pela reconsideração dos pecados cometidos (Sl 51:3; II Co 7:10); terceiro, da percepção que todo e qualquer pecado foi cometido contra Deus (Sl 51:4a); quarto, da convicção de ser merecedor do inferno e mesmo da justiça da sentença condenatória divina, razão pela qual o arrependido clama por misericórdia (Sl 51:1, 4b; Lc 18:13); quinto, de confissão de pecados ao Senhor e da firme resolução de repará-los tanto quanto possível e de conduzirse doravante em um caminho que agrade a Deus (Lc 15:17-21; 19:8-10).

O segundo elemento da conversão genuína é a fé, que, por sua vez, envolve os seguintes aspectos: primeiro, o aspecto intelectual (notitia), consistente em conhecer e acreditar nos fatos do evangelho, sendo isso apenas o primeiro passo (Tg 2:19); segundo, o aspecto emocional (assensus), de concordar com a verdade e saber que ela corresponde à realidade dos fatos, quando o pecador chega a abraçá-la; e, terceiro, o aspecto volitivo (fidutia), que é a entrega de si que o pecador faz a Deus. Fé, portanto, é o ato em que o pecador conhece, acredita, abraça e obedece ao evangelho, deixando de confiar em si e abandonando a sua justiça própria e toda a noção de mérito pessoal, para comprometer-se com o evangelho e depender totalmente de Deus, em Cristo, para ser salvo (Fp 3:8, 9). O arrependimento e a fé, portanto, andam juntos como os elementos da verdadeira conversão, são absolutamente necessários para a salvação (Lc 13:3, 5), ambos são dons de Deus (II Tm 2:24, 25; Ef 2:8) e um não dispensa o outro. Arrependimento sem fé resulta em desespero, como no caso de Judas (Mt 27:3-5); fé sem arrependimento resulta na presunção tola de um coração enganado, como o juízo final demonstrará (Mt 7:21-23).

38. A justificação pela fé somente. Porque tecemos breves comentários sobre regeneração e conversão (incluindo os elementos arrependimento e fé), aportamos necessariamente no porto seguro da vida cristã: a maviosa doutrina da justificação pela graça mediante a fé somente.

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A nosso sentir, depois do ensino bíblico da santíssima Trindade, nenhuma outra doutrina supera o tema em questão em termos de importância.

Nas palavras do reformador alemão Martinho Lutero, "[a justificação é] o artigo principal da doutrina cristã. Aquele que compreende quão grande é a sua utilidade e majestade, tudo o mais parecerá fútil e se dissipará. Para que Pedro? O que é Paulo? O que é um anjo do céu? O que são todas as criaturas, comparadas ao artigo da justificação? Pois, se conhecemos este artigo, estamos na mais brilhante luz; se não o conhecemos, vivemos nas mais densas trevas. Portanto, se vir este artigo sendo questionado ou posto em jogo, não hesite em resistir a Pedro ou a um anjo do céu, pois este artigo não pode ser suficientemente exaltado" (citado por John Piper).

Segundo A. W. Pink, "tão importante considerava o apóstolo Paulo a esta doutrina que, sob a direção do Espírito Santo, a mais sobresselente de suas epístolas no Novo Testamento está dedicada a uma completa exposição dela. O eixo sobre o qual gira todo o conteúdo da Epístola aos Romanos é aquela notável expressão: "a justiça de Deus" - comparada a qual não há nada de maior importância que possa ser encontrado em todas as páginas das Sagradas Escrituras" (extraído do site monergismo). Difícil, portanto, exagerar quando falamos sobre a crucialidade da justificação pela fé. Debrucemo-nos sobre a doutrina, portanto.

"Justificar" (gr. dikaioo, palavra de uso judicial) é o ato divino de, em Sua livre graça, proferir uma sentença que considera o pecador justo diante dEle e, portanto, inculpável e com direito à vida eterna, simplesmente por meio da fé, pela atribuição da justiça de Cristo à conta do pecador, na base da redenção vicária ou substitutiva já realizada na cruz. A partir desse conceito, tratemos agora de suas partes, passo a passo.

Primeiro, a única razão da justificação é a graça (Rm 3:24a). O evangelho é um anúncio de que Deus está tratando com os pecadores perdidos e condenados sobre o fundamento do favor imerecido, por graça somente, e não por algum mérito neles encontrado. Justificação é pura misericórdia (Is 43:25; 48


Tt 3:5-7). A propósito de Rm 3:24 ("sendo justificados gratuitamente, por sua graça"), Calvino observou que "teria sido suficiente confrontar graça e mérito; porém, para impedir que entretivéssemos a ideia de uma justiça truncada, ele firmou ainda mais nitidamente seu significado por meio da repetição, e assim reivindicou para a misericórdia de Deus, exclusivamente, todo o efeito de nossa justiça."

Segundo, o único instrumento da justificação é a fé (Rm 3:22, 25, 28; 5:1; Gl 2:16). Quanto a isso, deve-se antes de tudo salientar que não é a fé do pecador que é considerada por Deus como justiça, como se poderia concluir a partir de uma leitura apressada de Rm 4:3, 5, 9, 22. A fé é tão somente o meio pelo qual Deus atribui à conta do pecador uma justiça que não é sua, nem produzida por este em qualquer medida (Rm 10:10; Fp 3:8, 9). John Piper argutamente verificou que "quando Paulo fala de Abraão, ou daqueles que creram como Abraão, que a sua fé "foi imputada por justiça" (...) ele não quer dizer que a justiça "consiste da fé". Ele simplesmente quer dizer que a sua fé os conecta à promessa da justiça imputada por Deus". "A fé é imputada por justiça" não significa outra coisa senão que Deus atribui justiça ao pecador pela fé (Rm 4:6, 11), não podendo ser aquela expressão compreendida no sentido de que a fé do pecador é considerada por Deus como justiça, e isso pelas seguintes razões: a uma, porque a justiça creditada ao pecador é externa e de Deus (II Co 5:21); a duas, a "justiça de Deus" creditada ao pecador não é outra senão a justiça de Cristo, a santidade humana do Salvador (Fp 3:9; I Co 1:30; Gl 2:17; Rm 5:12-19; Rm 10:4).

Terceiro, a única base para a justificação é a obra vicária de Cristo: Sua obediência ativa e passiva (Rm 5:12-19). É dizer, a lei de Deus exige tanto a obediência perfeita às suas prescrições quanto comina penalidades aos seus infratores. Destarte, Cristo, como o representante e substituto do Seu povo, tanto assumiu a penalidade devida pela transgressão, fazendo-se maldição e condenação em seu lugar (Gl 3:13; Rm 8:3), o que tem sido chamado de obediência passiva, quanto também cumpriu vicária e perfeitamente os preceitos da lei, tornando-se a nossa perfeição (II Co 5:21), o que se denomina obediência ativa. Assim, Deus não justifica o ímpio na base de suas obras, ou 49


mesmo de sua fé, porque, por um lado, Deus não aprova em Seu tribunal nada aquém da perfeição absoluta – o que não se pode esperar do homem - e, por outro, sendo possível sermos salvos por nossos próprios méritos, Cristo teria morrido em vão e a graça de Deus seria anulada (Gl 2:21).

Quarto, a justificação consiste na atribuição conjunta da obra vicária ativa e passiva de Cristo. Se Cristo tivesse apenas sofrido a penalidade da culpa do pecador, este poderia ser livrado do inferno, porque teria os seus pecados perdoados, mas isso ainda não lhe daria direito a ter o céu como recompensa. Cristo necessitou também nascer sob a lei (Gl 4:4) e cumpri-la perfeitamente em nosso lugar para nos dá direito legal a um lugar no céu. Por Sua obediência passiva, Cristo nos livrou do inferno (Is 53:6, 10, 11); por Sua obediência ativa, Cristo nos adquiriu o céu (Rm 5:18, 19). Portanto, a justificação consiste tanto da libertação da culpa, da maldição da lei e do livramento do inferno (aspecto negativo), quanto da aprovação de Deus em aceitar-nos em Seu favor, considerando-nos justos (aspecto positivo).

São atribuídos, por meio da fé somente, tanto os méritos da obediência de Cristo aos preceitos da lei, quanto os méritos da Sua morte sob a penalidade da lei, de modo que os justificados não são apenas livres da culpa, mas considerados positivamente justos perante o Tribunal de Deus.

O resultado é que eles, os justificados, não apenas não podem ir ao inferno, mas têm direito legal ao céu. A justificação, portanto, é esta "troca gloriosa, na qual o Cristo sem pecado foi feito pecado com os nossos pecados, para que em Cristo nos tornássemos justos com a sua justiça. Por consequência, Cristo não tem pecado, senão os nossos, e nós não temos nenhuma justiça, senão a dele" (John Stott).

Finalmente, julgamos necessário, nesse ponto da nossa consideração de doutrina tão cardial, traçarmos algumas distinções importantes, se não, vejamos: primeiro, justificação não é chamado eficaz, como se pode depreender de Rm 8:30, nem tampouco confunde-se com regeneração.

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Enquanto a vocação eficaz e a regeneração nos fizeram compreender o evangelho e ter uma nova vida espiritual, sendo obras feitas em nós que nos levam a Deus, a justificação é exterior, uma obra feita por nós que nos torna aceitáveis perante Deus.

Segundo, justificação não é santificação. Santificação é processo gradativo de crescimento moral, pelo qual temos em nós aperfeiçoada a semelhança com Cristo. Justificação é ato realizado perfeitamente e de uma vez por todas, pelo qual nos é atribuída a justiça de Cristo. Na primeira, vamos tornando-nos justos; na segunda, fomos considerados justos.

Terceiro, justificação também não é perdão, embora o inclua (Ef 1:7; Cl 1:14). Enquanto o perdão é apenas o aspecto negativo da justificação, pelo qual somos libertos da culpa e do inferno, a justificação inclui o aspecto positivo de sermos considerados merecedores do céu, pela atribuição a nós dos méritos de Cristo.

Pelo exposto, vale destacar que a grande doutrina da justificação deve ser por nós prezada e buscada com a máxima diligência. A uma, porque ela exalta em grau máximo as perfeições divinas. A justiça de Deus e a Sua santidade majestosa e moral, tanto quanto a Sua bondade, misericórdia e amor (Ef 1:6), se harmonizam extraordinariamente na justificação pela graça, pela redenção que há em Cristo, sendo Deus tanto justo quanto justificador daquele que tem fé em Jesus (Rm 3:26). A duas, a doutrina da justificação, por outro lado, humilha o homem ao máximo, porque lhe retira em absoluto a possibilidade de salvação por quaisquer obras meritórias próprias (Rm 3:27; Gl 6:14; I Co 1:31). A três, é na doutrina da justificação que o pecador que compreendeu com certa clareza a malignidade do seu pecado e as demandas da justiça do Deus santo encontra amparo e segurança (Is 43:25). A quatro, nenhuma outra doutrina é tão indispensável às diversas áreas práticas da atividade da igreja, tais como o culto, o aconselhamento e a evangelização e missões.

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39. Finalmente, devemos mencionar a nossa última doutrina que trataremos sob o tópico "as operações do Espírito Santo na graça especial: o início da vida cristã", qual seja, a graciosa doutrina bíblica da adoção. Enquanto a justificação tratou do aspecto legal concernente à condenação do homem perante o Justo Juiz, a adoção lidará com a alienação da criatura em relação ao Criador.

A adoção é uma expressão do amor de Deus (I Jo 3:1), através da qual Ele, por meio do Espírito Santo (Rm 8:15, 16; Gl 4:6) e segundo o Seu livre conselho (Ef 1:5), põe os homens justificados (Jo 1:12, 13) numa relação peterno-filial Consigo, recebe-os em Sua família e os faz tanto Seus herdeiros (Gl 4:7; Rm 8:17) quanto objetos do Seu amor disciplinar (Hb 12:4-8). Conforme o magistério de Ferreira e Myatt, "a adoção não é a concessão de uma nova natureza, o que ocorre na regeneração, mas a concessão de uma nova posição diante de Deus. A adoção é o início de uma nova relação. A experiência do crente agora muda, porque ele é conciliado com Deus". A noção de adoção tanto evoca o amor livre de quem adota quanto a plena inserção do adotado, e com todas as consequências jurídicas resultantes do ato, no relacionamento da nova família.

Destarte, assim começa a verdadeira vida cristã: o pecador é chamado eficazmente, regenerado, volta-se para Deus em arrependimento e fé, é justificado e adotado como filho de Deus. Percebamos que tudo quanto faltava para que vivêssemos para a glória de Deus, o Senhor mesmo supriu, para que saibamos que a nossa salvação é a realização daquilo que é impossível aos homens (Mt 19:26). Éramos incapazes de compreender o evangelho (II Co 4:3, 4; I Co 2:14), até que Deus nos chamou eficazmente; estávamos mortos em nossos delitos e pecados (Ef 2:1, 5), até que Deus nos regenerou; andávamos errantes na direção contrária ao Senhor, servindo e confiando em nós mesmos e em nossos ídolos (I Ts 1:9), até que nos convertemos a Deus em arrependimento e fé; quando condenados ao juízo da lei de Deus e incapazes de cumpri-la (Gl 3:10), recebemos na justificação tanto o livramento do inferno, pela absolvição da nossa culpa, quanto o direito ao céu por haver sido a nós atribuída a obediência perfeita do Salvador; e, finalmente, estando alienado do 52


relacionamento com o Criador, fomos inseridos numa verdadeira relação paterno-filial com Deus.

40. As operações do Espírito Santo na graça especial: o desenvolvimento e a consumação da vida cristã. Tendo tecido breves notas sobre as operações do Espírito com vistas ao início da vida cristã, voltamo-nos agora para as obras da terceira pessoa da Trindade Santa no desenvolvimento e na consumação da vida cristã, quais sejam: a santificação, a perseverança dos santos, o avivamento e a glorificação.

Santificação é a obra de Deus (Hb 13:20, 21; I Pe 5:10), mais precisamente do Espírito Santo (Rm 8:13, 14; Gl 5:22, 23; II Ts 2:13; I Pe 1:2; Tt 3:5), pela qual Ele liberta a pessoa inteira do pecador justificado (I Ts 5:23; I Co 6:15, 20), incluindo todas as suas faculdades (Fp 2:13; Jr 31:34; Hb 9:14), de maneira gradual, progressiva e sempre incompleta nesta existência (Fp 3:12-14; I Jo 1:8), do poder influenciador do pecado, removendo a corrupção da natureza (Rm 6;6), fortalecendo a disposição santa da alma regenerada (Rm 6:4) e conduzindo-o à prática das boas obras (Ef 2:10).

Deve o leitor atentar a cada uma das expressões do conceito apresentado. De nossa parte, cumpre-nos sublinhar que a santificação é um processo que só será completo, quanto à alma, na morte, ou imediatamente após (Hb 12:23), pelas seguintes razões: a uma, nenhuma afirmação de perfeição nesta existência pode ser tomada como verdadeira (I Rs 8:46; Pv 20:9; Ec 7:20; I Jo 1:8); a duas, a Bíblia menciona o pecado dos seus melhores homens (Tg 5:17) e Paulo fala de si como precisando estar constantemente na luta pela santificação (Rm 7:13-26; Fp 3:10-14). Quanto ao corpo, a santificação só será completa na ressurreição final.

Igualmente importante é ressaltar que a santificação consiste, negativamente, da remoção gradativa da corrupção do pecado e, positivamente, do fortalecimento das virtudes cristãs na alma regenerada. À primeira, dá-se o nome de "mortificação" (Gl 5:24; Ef 4:22; Rm 6:4-7); a segunda chama-se "vivificação" (Rm 6:8-14; Gl 5:24; Ef 4:24). 53


Louis Berkhof faz observação relevante sobre a realização concomitante da mortificação e da vivificação, in verbis: "Graças a Deus, o levantamento gradual do novo edifício não precisa esperar até que o antigo esteja completamente demolido. Se precisasse, nunca poderia começar nesta existência. Com a gradativa dissolução do antigo, o novo vai aparecendo. É como arejar uma casa impregnada de odores pestilentos. Conforme o ar que ali estava é extraído, o novo ar se precipita para dentro".

Não olvidemos ainda que a santificação é uma operação do Espírito na qual os crentes participam, querendo isso significar tão somente que Deus efetua a obra da santificação em nós em parte pela nossa cooperação racional, ou, noutras palavras, usando como Sua instrumentalidade o uso diligente dos meios de graça pelos crentes.

Assim, devemos empregar com a máxima diligência possível os meios pelos quais Deus nos faz avançar em santificação. Esses meios são, sobretudo, a Palavra de Deus (I Pe 1:22; II Tm 3:16, 17; I Pe 2:2; Sl 19:7-9), a oração (Lc 18:1; I Ts 5:17), a participação nas ordenanças (I Co 10:16) e a comunhão com outros crentes (I Ts 5:11; Hb 10:25).

Quanto ao envolvimento com a igreja, John Crotts ensina lição digna de atenção: "Uma das coisas mais importantes que você pode fazer para crescer em santidade é ser membro ativo de uma igreja onde a Palavra de Deus é fielmente pregada e vivida (...). Ainda que alguns objetem que o sério envolvimento na igreja toma o tempo da família, seu avanço em maturidade cristã realmente intensificará cada momento em que vocês estiverem juntos. Embora seja possível exceder-se no tempo dedicado à igreja, o problema mais típico é não envolver-se".

Por fim, quanto às boas obras, ou "obras evangélicas", "obras praticadas sob o evangelho", devemos anotar que elas não são a causa, mas a consequência dos crentes haverem sido salvos, regenerados e justificados, e que se manifestam mais e mais na medida em que o processo de santificação avança. 54


As boas obras aqui referidas se diferenciam das "boas obras" praticadas sob a graça comum, por serem aquelas resultado da regeneração (Mt 7:17, 18; Ef 2:10), feitas com a motivação consciente de obedecer a vontade revelada de Deus (Cl 1:9, 10), serem fruto do amor a Deus (Jo 14:23) e, sobretudo, por visarem a glória de Deus mais do que o bem-estar dos homens (Mt 5:16; Rm 12:1; I Co 10:31). Sem dúvida, Deus redimiu para Si um povo exclusivamente seu e zeloso de boas obras (Tt 2:14) e não devemos nos cansar de fazer o bem (Gl 6:9). Entretanto, quando os regenerados fazem o bem e praticam boas obras, eles o fazem porque amam as pessoas (Mt 22:36-40), inclusive aqueles que lhes fazem sofrer (Mt 5:43-45), mas, sobretudo, porque amam a Deus (I Jo 4:19) e desejam revelar o caráter e as obras de Deus através dos seus feitos (Mt 5:16).

Finalmente, devemos observar que boas obras são o resultado necessário da salvação, porque “toda árvore boa produz bons frutos” (Mt 7:17). Por outro lado, se boas obras não podem ser verificadas na vida daqueles que dizem ter fé, temos toda a licença para questionar esta confissão, porque “a fé sem obras é morta” (Tg 2:26).

41. A perseverança dos santos. Nesse passo de nossa caminhada, devemos inquirir quanto à segurança que gozam os crentes quanto à sua salvação. Noutras palavras, queremos saber se é possível que aqueles que foram escolhidos pelo Pai, redimidos pelo Filho e regenerados pelo Espírito possam perder-se eternamente. É possível que uma pessoa que tenha sido verdadeiramente chamada, regenerada, convertida, justificada e adotada perca esta salvação depois de realmente tê-la tido? Louis Berkhof responde com a doutrina da "perseverança", conceituando-a como "a contínua operação do Espírito Santo no crente, pela qual a obra da graça divina, iniciada no coração, tem prosseguimento e se completa. Os crentes continuam de pé até o fim, porque Deus nunca abandona a sua obra".

Com efeito, se a eleição é incondicional e não teve por base qualquer obra prevista no homem; se Cristo morreu para assegurar a salvação dos eleitos; se 55


o eleito foi chamado eficazmente e regenerado pelo Espírito Santo, a conclusão não poder ser outra senão que Deus guardará os salvos de tal modo que não lhes permita cair final e definitivamente (Rm 5:10; 8:29-39).

Eleição, chamado eficaz e perseverança dos santos são realidades indissociáveis, como se pode ler em Jo 10:26-30. Nesse texto, segundo nosso Senhor, as "ovelhas" ouvem o chamado do pastor e creem (chamada eficaz) por serem ovelhas (eleição). Estas ovelhas não se tornaram ovelhas por haverem crido e atendido o chamado. Antes, elas atenderam ao chamado por serem as ovelhas do “bom Pastor”. Ademais, diz-nos a passagem que elas já têm, no presente, a vida eterna e que "jamais perecerão" (perseverança dos santos). Percebe-se que o Salvador está afirmando a impossibilidade de Suas ovelhas se perderem e que é a sua eleição que é a causa desta segurança.

As Escrituras afirmam ainda que "os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis" (Rm 11:29); que Deus sem sombra de dúvida aperfeiçoará a Sua obra (I Co 1:8; Fp 1:6; II Ts 3:3; II Tm 1:12; 4:18); que somos guardados pelo poder de Deus (I Pe 1:4, 5; Fp 3:20, 21; Jd 24, 25) e que o Espírito Santo é o selo e o penhor da nossa salvação (II Co 1:22; Ef 1:13, 14; 4:30).

Assim, aos crentes não foi dada apenas uma expectativa de vida eterna, mas a certeza dela, que já começa a ser desfrutada na vida presente (Jo 3:16, 36; I Jo 5:13).

42. O avivamento. Nesse degrau da nossa apreciação das doutrinas fundamentais do cristianismo bíblico, cabe uma breve análise da obra do Espírito Santo conhecida como avivamento. Sobre o tema, assiste razão ao Rev. Hernandes Dias Lopes, quando afirma que "avivamento é um dos temas mais falados e mais distorcidos na igreja evangélica da atualidade". Em geral, avivamento tem sido confundido, sobretudo nas últimas décadas, com abertura litúrgica, e/ou com aceitação e vivência de certos dons espirituais, e/ou com movimentos evangelísticos e encontros entre igrejas e denominações para evangelismo e oração. 56


É verdade que avivamento genuíno pode produzir estes fenômenos, entretanto, devemos compreender avivamento como “uma reedição das obras poderosas de Deus no passado, por meio do derramar abundante do Espírito Santo, através do qual Ele intensifica o cristianismo bíblico normal do Novo Testamento, concedendo à igreja que estava em estado de morte aparente uma nova vitalidade, com imediatos e grandiosos resultados também na salvação de pecadores”, conforme ensinamos em outra ocasião.

Avivamento é um derramamento poderoso do Espírito Santo, concedido por Deus a Igreja em determinados períodos da história, numa medida semelhante ao vivido no dia de Pentecostes, em At 2. Com isso, não devemos olvidar que há um sentido em que o Pentecostes não pode repetir-se, que trata-se da consumação da obra de Cristo, realizada de uma vez por todas. Sinclair Ferguson observou que a dádiva do Espírito no Pentecostes é "a evidência da entronização de Cristo, assim como a ressurreição é a evidência da eficácia da morte de Cristo como expiação" (citado por Ferreira e Myatt).

Nesse sentido, John Stott disse que "este evento [o Pentecostes] foi o último da atividade salvadora de Jesus: o derramamento do Espírito prometido a tanto tempo, subsequente à sua morte, ressurreição e ascensão. (...) Ele é singular em si, assim como a morte do Salvador não pode ser repetida, nem sua ressurreição e ascensão, que o precedem". Também devemos reconhecer que a experiência do Pentecostes foi única e definitiva na vida da igreja no sentido de ser ela o cumprimento específico de uma profecia específica (At 1:4, 5; Jo 7:38, 39; Mt 3:11), sobretudo a de Joel (Jl 2:28), como veremos adiante.

Todavia, devemos admitir que a bênção do Espírito não foi dada de forma estática, de uma vez por todas, porque o único a receber o Espírito Santo sem medida foi a pessoa bendita do Senhor Jesus (Jo 3:34).

Em nossa própria experiência, há ilimitados espaços para crescermos quanto à obra do Espírito. Sobre essa perspectiva, John Stott escreveu do seguinte 57


modo: "É correto considerá-lo [o Pentecostes] o primeiro 'reavivamento', a primeira vez que o Espírito manifestou seu poder em medida tão abundante que um grupo tão grande, de 3.000, foi, ao mesmo tempo, convencido dos seus pecados, renascido e admitido na comunidade cristã". Stott, em seguida, arrematou, afirmando que "reavivamentos ou manifestações incomuns do poder do Espírito Santo como este, continuaram existindo na história da Igreja cristã de tempos em tempos". Martyn Lloyd-Jones, sobre avivamento, disse que "é tudo acima e além das experiências mais elevadas na vida e na obra normal da igreja.

Repentinamente, os que estão presentes num encontro percebem que alguém está entre eles, estão conscientes de uma glória, estão conscientes de uma presença. Não conseguem defini-la, não conseguem descrevê-la, não conseguem expressá-la em palavras: simplesmente sabem que nunca experimentaram algo semelhante antes".

Assim, quando Deus realiza esta obra extraordinária do Espírito, a igreja definhada retorna a um estado de grande e nova vitalidade; recebe uma percepção aguda e terrificante da presença de Deus (Is 6); em consequência, ganha uma nova e profunda percepção da sua pecaminosidade e demonstra um arrependimento genuíno, às vezes de maneira mais dramática que a usual; e, passa a ter uma intensa preocupação pelos outros (At 2:42-47; 4:31-35). Finalmente, avivamentos genuínos são sempre acompanhados de conversões em massa e intensificação evangelística e missionária (At 2:41; 4:31, 33).

43. Finalmente, chegamos à obra do Espírito na graça especial que diz respeito à consumação, ou o aperfeiçoamento final, da vida cria: a glorificação (Rm 8:29, 30). “Glorificação” é a consumação do aperfeiçoamento dos crentes, o fim do processo de santificação que iniciou na regeneração, ocasião em que os eleitos serão transformados na semelhança com Cristo e receberão um corpo adaptado ao estado eterno (I Jo 3:2; I Co 15:52). A glorificação está estreitamente relacionada em termos de causa e efeito com a segunda vinda do Senhor Jesus em glória e a ressurreição dos corpos.

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44. "E no Espírito Santo": batismo, plenitude e fruto. Pelo que vimos até aqui, somos obrigados a concluir que tudo quanto possuímos e somos enquanto cristãos, devemos ao Espírito Santo. A nova vida começa com a regeneração operada pelo Espírito (Tt 3:5, 6) e se aperfeiçoa na ressurreição efetuada pelo Espírito (Rm 8:11). Entre a ressurreição espiritual e a final, "toda a vida cristã, de acordo com o Novo Testamento, é vida no Espírito que vem após o nascimento do Espírito" (John Stott). O corpo dos cristãos é templo do Espírito (I Co 6:19, 20), bem como a santificação é do Espírito (I Pe 1:2), a comunhão cristã é do Espírito (Fp 2:1), o culto cristão é adoração no Espírito (Fp 3:3) e os "dons espirituais" são manifestações do Espírito (I Co 12:4, 7-11).

Uma outra maneira pela qual a Escritura coloca essa realidade já constatada por nós é através da terminologia do batismo com o Espírito, do enchimento ou plenitude do Espírito e do fruto do Espírito, expressões sobre as quais nos debruçaremos nessa etapa do nosso estudo.

45. O Batismo com o Espírito Santo. Pelo próprio conceito de "batismo", já devese concluir tratar-se de um “rito de iniciação”. Há sete passagens em que a expressão "ser batizado com o Espírito" ocorre. Primeiro, lemos João Batista predizendo o ministério do Senhor Jesus nos quatro textos paralelos dos evangelhos: "Ele vos batizará com o Espírito Santo" (Mt 3:11; Mc 1:8; Lc 3:16; Jo 1 :33).

Segundo, o Senhor Jesus faz os discípulos lembrarem-se da promessa de João Batista, quando diz-lhes que não devem se ausentar de Jerusalém até que se cumprisse "a promessa do Pai": "Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias" (At 1:4, 5).

Terceiro, temos o relato de Pedro aos demais apóstolos sobre o ocorrido na casa de Cornélio: "Então, me lembrei da palavra do Senhor, quando disse [At 1:5]: João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo" (At 11:16). Finalmente, temos o texto paulino de I Co 12:13: "Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer 59


judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito".

Da leitura das passagens que mencionam batismo com o Espírito, devemos destacar que se referem a uma experiência inicial na vida de todos os cristãos verdadeiros, pela qual eles passam a ser membros do Corpo de Cristo.

Para sedimentar esse ponto, faço observar o que segue: em primeiro lugar, nas passagens em que o derramamento do Espírito é ainda um evento por vir, os verbos ocorrem, como deveríamos esperar, no futuro (Mt 3:11; Mc 1:8; Lc 3:16; At 1:5; At 11:16), a exceção de Jo 1:33, onde o verbo está no particípio presente (gr. "ho baptizon").

Neste último caso, ao invés de apontar ao evento futuro do "Pentecostes", o evangelista João destaca o ministério do Senhor Jesus como "o que batiza com o Espírito", "o Batista", ou "o Batizador com o Espírito", como se diz a respeito de João Batista em Mc 1:4, por exemplo. Por outro lado, quando o batismo com o Espírito é mencionado tendo o Pentecostes como já ocorrido, o verbo está no aoristo, um tempo verbal que remonta a um evento único no passado (gr. "ebaptisthêmen"), o que se dá em I Co 12:13. Para John Stott, "isto não pode ser uma simples referência ao dia de Pentecostes, pois nem Paulo nem os coríntios estiveram lá para participar pessoalmente do acontecimento. Mesmo assim, tanto ele como os coríntios puderam participar da bênção que este evento tornou possível".

Portanto, desejo ressaltar que o batismo com o Espírito é um evento passado na vida de todos os crentes genuínos. Não há, após o Pentecostes, uma única exortação a que os crentes nutram uma expectativa quanto a uma espécie de "segunda bênção" após a salvação chamada "batismo com o Espírito Santo". A repetição da palavra "todos" em I Co 12:13 salienta esse fato.

Em segundo lugar, que o batismo com o Espírito é parte da experiência inicial de todos os crentes verdadeiros pode se ver porque, se assim não fosse, 60


poder-se-ia concluir que alguns crentes genuínos ainda não o teriam, o que contrariaria o ensino e o propósito de I Co 12:13. É que, nesta passagem, o apóstolo está tornando evidente qual o elemento que nivela e unifica todos os crentes (o batismo com o Espírito!), em contraponto com aquilo que os diferencia (os dons do Espírito!).

Os dons espirituais assinalam as necessárias diferenças entre os membros do corpo, para que o corpo funcione como tal (I Co 12:18-20). O batismo com o Espírito, ao revés, destaca que nosso Senhor batizou a todos os crentes com o Espírito, sendo este o elo de ligação, o fator de unidade dos cristãos genuínos (Ef 4:4). Se dentre os verdadeiros salvos, alguns foram batizados com o Espírito e outros não, onde estaria a força do argumento paulino?

Em terceiro lugar, dando um passo a frente, devemos concluir que o batismo com o Espírito é Sua operação com vistas à inserção no corpo de Cristo dos membros justificados e regenerados. "Ele é, na verdade, o meio de entrada no Corpo de Cristo" (John Stott).

Em quarto lugar, devemos igualmente pontuar que, indiscutivelmente, nas seis passagens anteriores a I Co 12:13, nosso Senhor é o batizador com o Espírito embora isso não seja dito claramente em At 1:5 e 11:16 -, sendo o Espírito o "elemento" com o qual nosso Senhor batiza.

Assim, não há razão plausível para dizermos que somente em I Co 12:13 é o Espírito Santo quem batiza no corpo, tratando-se as demais passagens de uma outra espécie de batismo, uma segunda bênção pós-salvação.

Em quinto lugar, há razões claramente verificáveis para que o batismo com o Espírito tenha sido, excepcionalmente, uma experiência pós-salvação nos casos dos 120 cristãos de Atos 1-2 e dos samaritanos, em At 8. No primeiro caso, "a experiência dos 120 ocorreu em dois estágios diferentes, simplesmente em razão de circunstâncias históricas. Eles não poderiam ter recebido o dom pentecostal antes do Pentecoste" (John Stott). Simples assim!

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Os primeiros cristãos em Jerusalém se converteram antes do cumprimento da promessa e, portanto, quando receberam o batismo já eram salvos. Quanto aos samaritanos, também não devemos estranhar o modus operandi do Espírito (At 8:5-17), pelos motivos que passo a considerar. Observemos que Filipe iniciou a evangelização dos samaritanos.

Lucas registra que "as multidões atendiam, unânimes, às coisas que Filipe dizia" (At 8:6), "que houve grande alegria naquela cidade" (At 8:8) e que "muitos iam sendo batizados, assim homens como mulheres" (At 8:12).

Entretanto, sabemos que judeus e samaritanos nutriram durante séculos uma rivalidade intensa e que durante o primeiro século da era cristã as feridas do ódio mútuo estavam todas abertas e o distanciamento, estabelecido (Jo 4:9). Assim, quando os apóstolos souberam da missão de Filipe em Samaria, tomaram uma resolução aparentemente única: enviar dois apóstolos dentre as colunas da igreja de Jerusalém para inspecionar o trabalho (At 8:14): Pedro e João. Pensemos juntos: isso não seria algo previsível? Não tinham os apóstolos razões para recearem que poderia ter surgido, desde o nascedouro do cristianismo, duas igrejas cristãs: uma judia, outra samaritana?

Indiscutivelmente, sim. Se é assim, não deveríamos estranhar que Deus, excepcionalmente, tenha postergado o batismo com o Espírito dos crentes samaritanos, para cumpri-lo tão somente através da imposição de mãos daqueles dentre os principais apóstolos escolhidos de Cristo (At 8:17).

Resumo da ópera: a conclusão irresistível a que se chega, pelo confronto das passagens nas quais a expressão "ser batizado com o Espírito" ocorre, é que o Senhor Jesus é o que batiza com o Espírito todos quantos salva, como experiência inicial de todos e com vistas à inserção de todos os salvos na unidade do Seu Corpo, a Igreja. Dessa forma, nosso Senhor cumpriu, a partir do Pentecostes, a profecia dos profetas vétero-testamentários que predisse um derramamento universal do Espírito (Is 32:15; 44:3; Ez 39:28, 29; Jl 2:28), tendo João Batista, nos textos supra citados, apenas avivado tais promessas.

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Eis a razão pela qual nosso Senhor referiu-se ao então iminente derramamento do Pentecostes como "a promessa do Pai" (At 1:4) e Pedro referiu-se à "promessa do Espírito" que nosso Senhor recebeu do Pai (At 2:33) e simplesmente à "promessa" (At 2:39), para explicar o "derramamento" pentecostal (At 2:17, 33) ou "o dom do Espírito Santo" (At 2:38), todas expressões sinônimas (At 11:16, 17).

Para John Stott, a afirmação petrina de At 2:38, 39 é "muito clara e impressionante", e "quer dizer que a promessa do 'dom' ou 'batismo' do Espírito é para tantos quantos o Senhor nosso Deus chamar. A promessa de Deus está ligada à vocação de Deus. Todos os que acatam o chamado de Deus herdam a promessa divina".

Finalmente, um outro ponto em que muito se controverte é saber se o batismo com o Espírito deve ocorrer necessariamente acompanhado de sinais miraculosos. Ou, noutras palavras, a questão é se existem sinais exteriores que evidenciam a ocorrência do batismo. A isso respondemos que aquilo que os cento e vinte cristãos, que esperaram a promessa, não receberam algo diferente dos três mil que foram inseridos na comunidade cristã no Pentecostes. Pedro explicou o que havia acontecido àqueles em termos de "derramamento" (At 2:17, 18) e da "promessa do Espírito Santo" (At 2:33), ao mesmo tempo em que o batismo foi igualmente prometido às multidões em termos de "dom do Espírito Santo" e "promessa" "para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar" (At 2:38, 39).

No entanto, observamos que nada se diz sobre sinais miraculosos experimentados pelos três mil convertidos (At 2:41). Ademais, em I Co 12, Paulo deixa claro que o batismo é a experiência para todos os crentes (I Co 12:13), ao passo em que afirma categoricamente que não existem dons "universais" (I Co 12:28-30).

É dizer, todos os crentes genuínos “foram”

batizados com o Espírito Santo (I Co 12:13) e nem todos os crentes receberam ou receberão o dom de falar em línguas, razão pela qual este, que nem todos experimentaram ou experimentarão, não pode ser a evidência daquele, um evento universal. 63


46. A plenitude do Espírito Santo. Passamos agora do "batismo" para o "enchimento" ou "plenitude" do Espírito. E, ao fazermos a passagem, de logo sublinhamos que estamos passando de uma experiência inicial, definitiva e estática para uma experiência contínua, em que cabem avanços e retrocessos, e dinâmica.

Socorremo-nos mais uma vez de John Stott, para acentuar que, porque o batismo com o Espírito é uma experiência inicial, "nenhum sermão ou carta dos apóstolos contém um apelo para que as pessoas se deixem batizar com o Espírito. Na verdade, todas as sete referências ao batismo com o Espírito no Novo Testamento estão no indicativo, estejam no aoristo, no presente ou no futuro; nenhuma delas é uma exortação, no imperativo". O mesmo não pode ser dito acerca do "enchimento do Espírito", como veremos.

Ser "cheio do Espírito" é estar submisso ao controle do Espírito, de modo que Ele tenha tal domínio a ponto de Sua influência ser sentida em todas as áreas da vida. Segundo lição de Augustus Nicodemus Lopes, "uma pessoa que está debaixo do controle do Espírito Santo terá suas palavras, suas ações, suas reações e seus sentimentos de tal maneira influenciados pelo Espírito Santo, que eles refletirão o caráter santo do Espírito". Lopes concluiu: "já que o Espírito é santo, o efeito mais visível do seu controle na vida de alguém será santidade".

No Novo Testamento, o enchimento do Espírito ocorre para referir-se a três realidades: primeiro, há menção ao enchimento do Espírito como a característica predominante da vida de cristãos maduros (At 6:3, 5; 11:24); segundo, há descrições do enchimento do Espírito ocorrendo como experiência de crise, episódica, pontual, em geral para o fim de capacitação para uma missão especial (Lc 1:15-17; At 4:31; 9:17); e, terceiro, enchimento do Espírito ocorre também como ordem que se deve obedecer para o fim de uma apropriação constante e crescente.

Nesse último sentido, temos o texto paulino de Ef 5:18-21, de leitura imperiosa nesse ponto. A passagem é densa e reveladora. Há dois verbos na forma 64


imperativa: "não vos embriagueis com vinho" e "enchei-vos do Espírito". A princípio, Paulo contrasta a vida como resultado do controle do álcool com a vida como resultado do controle do Espírito. No primeiro caso, o efeito é "dissolução", ou "devassidão" (ver a palavra grega 'asotia' em Tt 1:6 e I Pe 4:4), vocábulo que traduz a noção de completa ausência de controle. No segundo, muito ao contrário, o resultado do enchimento do Espírito é visto em um relacionamento maduro com Deus e com as pessoas.

O relacionamento das pessoas cheias do Espírito com as demais é retratado com as expressões "falando entre vós com Salmos" e "sujeitando-vos uns aos outros no temor do Senhor". Percebamos que a comunhão e a capacidade da submissão humilde são as marcas mais evidentes do cristão cheio do Espírito. Por outro lado, o resultado do enchimento do Espírito no relacionamento com Deus é traduzido pelas frases "entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais" e "dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".

Vê-se que a pessoa cheia do Espírito tem alegria e prazer na adoração e sempre está plena de gratidão ao Senhor.

Percebe-se, portanto, que o propósito do enchimento com o Espírito Santo é conduzir os cristãos a um relacionamento maduro com Deus e com as demais pessoas, razão pela qual John Stott pontuou que "devemos procurar a principal evidência da plenitude do Espírito Santo nestas qualidades e atividades espirituais, e não em fenômenos sobrenaturais".

Finalmente, vale anotar que a submissão humilde está para a comunhão cristã como a gratidão está para o prazer na adoração. É dizer, assim como o orgulho arruína a harmonia entre os cristãos, o prazer pelo culto arrefece pela falta de gratidão.

Tem sido observado que a expressão "enchei-vos do Espírito" (Ef 5:18) contém quatro ideias que devemos apreender: primeiro, que o verbo está no modo 65


imperativo, significando dizer que trata-se de uma exortação em forma de uma ordem, da parte de um apóstolo escolhido e inspirado por Cristo, e não de uma mera recomendação; segundo, o número do verbo é plural, porque ser cheio ou controlado pelo Espírito deve ser a norma para todos os cristãos, e não para uma elite espiritual; terceiro, o verbo está na voz passiva ("deixai-vos encher"), para significar que não somos nós que produzimos o enchimento, mas tão somente fugimos do pecado e nos entregamos sem reservas ao Senhor que nos enche; e, quarto, o tempo verbal é o presente, para sabermos que devemos nos deixar encher pelo Espírito constantemente.

Por fim, já acenamos em momentos atrás que existe a possibilidade de experiências dramáticas e incomuns com o Espírito, que extrapolam a vivência normal do Novo Testamento. John Stott, não sendo ele mesmo um grande entusiasta dos avivamentos, como o foi Martyn Lloyd-Jones, por exemplo, reconhece que "especialmente em tempos de reavivamento, crentes dizem ter tido experiências e visitações de Deus bastante extraordinárias".

Acerca dessas experiências, cabem alguns conselhos para bem lidarmos com elas (ou com a ausência delas): primeiro, devemos reconhecer que não receberemos durante a vida cristã nada maior do que o que já recebemos, e, nesse ponto, é útil lembrarmos todas as doutrinas relacionadas à obra do Espírito para o início da vida cristã (chamada eficaz, regeneração, justificação e adoção) e perguntarmos o que poderia ser maior do que isso; segundo, aqueles que tiveram experiências extraordinárias não estão em nenhuma vantagem em relação àqueles que vivenciam o cristianismo normal do Novo Testamento, visto que maturidade cristã não pode ser medida por tais experiências; terceiro, as experiências de um crente, ainda que genuínas, em si mesmas, não autenticam a doutrina pregada por ele; quarto, busquemos discernimento para provar os espíritos e as experiências (I Jo 4:1; I Ts 5:21), enquanto cuidemos para não apagarmos a obra do Espírito nem O entristecermos (I Ts 5:19, 20; Ef 4:29-32).

47. O fruto do Espírito. Pelo que já fizemos observar, tudo começa com o batismo com o Espírito Santo e prossegue numa experiência contínua de 66


enchimento do Espírito. Entretanto, perguntamos agora: mas, qual o resultado de tudo isso? Qual o propósito de termos sido iniciado no batismo e permanecermos sendo cheios do Espírito? Pois bem, tudo tem como resultado o fruto do Espírito. Refiro-me, sobretudo, àquelas nove virtudes cristãs relacionadas em Gl 5:22, 23, in verbis: "Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio".

Preliminarmente, valem ser destacadas as seguintes observações: primeira, que estas virtudes são chamadas "fruto" (no singular) e não "frutos" (no plural), porque a maturidade da vida cristã está no desenvolvimento harmonioso e simultâneo de todas elas; segunda, aqui está a verdadeira prova do enchimento com o Espírito Santo e o mais seguro indicativo de que houve regeneração; terceira, este é o resultado que o Espírito pretende operar em todos os crentes, indistintamente, ao contrário da vivência de dons espirituais e experiências extraordinárias; quarto, a expressão "fruto do Espírito" aponta para a origem espiritual ou sobrenatural dessas virtudes, em contraste com aquilo que a carne pode operar (Gl 5:19-21); a quinta observação é que a palavra "fruto" nos remete à ideia de crescimento gradual, fato que requer perseverança e paciência; sexta, que a expressão "fruto do Espírito" sugere crescimento natural, esperado, ao mesmo tempo em que nos lembra a necessidade de condições adequadas para que venha a crescer.

Do exposto, devemos reconhecer que o fruto do Espírito é o resultado da Sua influência na vida dos cristãos, no sentido de torná-los cada vez mais parecidos com Cristo.

"Uma simples leitura destas graças cristãs deve ser suficiente para encher de água a boca e fazer o coração bater mais forte, porque este é um retrato de Jesus Cristo. (...) este é o tipo de pessoa que todo cristão gostaria de ser" (John Stott).

Quanto ao modo de classificar estas graças magníficas, há muitas propostas, mas quase todas reconhecem que temos três tríades de virtudes: (1) "amor, 67


alegria, paz"; (2) "longanimidade, benignidade, bondade"; e (3) "fidelidade, mansidão, domínio próprio". A primeira tríade parece indicar o modo geral de vida do cristão maduro, porque "tudo o que ele faz é concebido com amor, iniciado com alegria e executado com paz" (John Stott). O que temos aqui é o "tríplice desdobramento do amor" (Adolf Pohl) ou as "qualidades espirituais mais básicas" (Hendriksen).

A segunda tríade indica o cristão crescendo na semelhança com Cristo em seus relacionamentos: longanimidade, benignidade e bondade. A terceira tríade, o cristão em sua conduta pessoal para com Deus ("fidelidade"), para com o próximo ("mansidão") e para consigo ("domínio próprio"). Adolf Pohl sugere, citando P. Burckhardt, que, após o "amor", as demais oito virtudes são desdobramentos deste: "O amor faz abertura, porque 'Deus é amor'. No entanto, o amor permanece presente até o fim da lista (...) alegria como amor que jubila, paz como amor que restaura, longanimidade como amor que sustém, benignidade como amor que se compadece, bondade como amor que doa, fidelidade como amor confiável, mansidão como amor humilde, domínio próprio como amor disposto a renunciar" (grifos do autor). Essa perspectiva lembra o que Paulo escreveu sobre amor em I Co 13:4-7.

Entretanto, sabe-se igualmente que estas e todas as demais propostas de classificação do "fruto do Espírito" podem ser artificiais, motivo pelo qual devemos proceder com uma busca detida do significado de cada uma destas graças maravilhosas, o que faremos sucintamente. O amor é aquela graça abnegada pela qual decidimos ter em vista mais a felicidade das demais pessoas do que a própria, virtude que foi encontrada perfeitamente no Salvador (Jo 13:1) e que nos identifica como seus discípulos (Jo 13:34, 35). Alegria é o júbilo profundo e perene, que é resultado da comunhão com Deus e da experiência da Sua boa, perfeita e agradável vontade e que subiste mesmo em meio a tristezas (Fp 4:11; II Co 6:10). Paz é a condição serena daquele coração que sabe ter sido justificado por Deus (Rm 5:1) e que o torna fazedor de paz, promotor da conciliação (Mt 5:9).

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Segundo observação arguta de Hendriksen, "a menção da paz é, por assim dizer, um liame natural entre o primeiro e o segundo grupo", vez que "o segundo grupo descreve aquelas virtudes que os crentes revelam em seus contatos entre si e com os demais homens".

Se não, vejamos. Longanimidade é a paciência exercida frente a irritações, a virtude pela qual se recusa a reagir com ira. Benignidade e bondade são graças irmãs gêmeas. Por elas, a pessoa deseja somente o melhor para o próximo e esforça-se para concretizar o bem desejado. Juntas, estas virtudes expressam a ideia de coração e ações generosos. Na última tríade do fruto do Espírito, observamos que fidelidade é lealdade para com Deus, que se expressa em termos de lealdade para com as demais pessoas. Trata-se da qualidade que faz do cristão uma pessoa confiável. Mansidão é a virtude concedida e aperfeiçoada pelo Espírito que faz o crente ser gentil e cordial mesmo quando a sua redoma de direitos está sendo atingida.

Finalmente, domínio próprio é "o poder de conter-se a si mesmo" e, como esclarece Hendriksen, "aqueles que realmente exercem esta virtude levam todo o pensamento à submissão e obediência a Cristo".

48. "E no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica": uma rápida introdução. Calvino propôs que deveríamos ler esta sentença do Credo da seguinte forma: "E no Espírito Santo, a [e não na] Santa Igreja Católica". Uma vez que igreja é "a comunidade daqueles que participam de Cristo e de seus benefícios" (Bavinck) e, por outro lado, já vislumbramos que nada temos de Cristo a parte das operações do Espírito Santo, a sugestão do reformador genebrino é de todo pertinente. É verdadeiramente o Espírito que opera a Igreja! Por outro ângulo, há um aspecto da Igreja, como adiante veremos, que a faz muito mais objeto da nossa fé do que do nosso conhecimento. Daí que não está fora de propósito a declaração credal "Creio... na Santa Igreja Católica".

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49. "Creio... na Santa Igreja Católica": raízes, natureza, figuras e distinções importantes. Se por “Igreja” entendemos a reunião dos salvos pela fé no evangelho, é certo afirmarmos que ela nasceu no Jardim que Deus plantou no Éden. Após a queda, Adão e Eva ouviram e creram no (proto-)Evangelho (Gn 3:15). Ao longo dos séculos, entretanto, a Igreja foi assumindo formas variadas até alcançar a sua plenitude no Novo Testamento.

No Antigo Testamento, o nome do Senhor começou a ser invocado pelos setitas (Gn 4:26). No período patriarcal, as famílias dos crentes eram comunidades religiosas lideradas pelos pais, que funcionavam como sacerdotes (Jó 1:5), até que Deus chamou Abraão (Gn 12:1-3), através de quem separou para Si um povo-nação, que assim permaneceria por séculos. A Igreja, na maior parte da narrativa do Antigo Testamento, foi, portanto, tanto uma comunidade religiosa quanto nacional.

Ali, duas palavras foram utilizadas para designar Israel como Igreja: "kahal", que significa "chamar" e designava a reunião do povo; e "edhah", que "denota sociedade propriamente dita, formada pelos filhos de Israel ou por seus chefes representativos, reunidos ou não" (Berkhof).

A expressão "kehal edhah" ocorre com a tradução "ajuntamento da congregação" (Ex 12:6). Em Deuteronômio, por exemplo, “kahal” significa “toda a congregação reunida para completar a aliança do Sinai (Dt 9:10; 10:4).

Aqui, a palavra representa o povo que Javé convocou, e que se obriga a observar as regras que Ele deu” (L. Coenen, in Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento). “Edhah” ocorre pela primeira vez em Ex 12:3, e, segundo Coenen, expressa o conceito de “unidade da comunhão”. No Novo Testamento, as palavras usadas são "synagoge" e "ekklesia". O vocábulo "synagoge" (sinagoga) ficou restrito aos encontros religiosos dos judeus e ao lugar onde esses encontros ocorriam (Mt 4:23; At 13:43; Ap 2:3; 3:9).

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É somente em Tg 2:2 que a palavra é usada para descrever a reunião dos seguidores de Jesus. O termo "ekklesia" é o que predominantemente designa a Igreja do Novo Testamento. A palavra é formada pela preposição "ek" (para fora) associada ao verbo "kaleo" (chamar ou convocar) e, além do uso que nos interessa nesse passo, há algumas ocorrências em que ela refere-se a assembleias civis populares (At 7:38; 19:32, 39, 41).

Para designar a Igreja, o Senhor Jesus foi o primeiro a fazer uso da palavra “ekklesia” (Mt 16:18; 18:17), no que foi seguido pelos escritores do Novo Testamento. Portanto, o vocábulo designa um círculo de crentes congregados em uma casa particular - uma igreja local (Rm 16:23; Cl 4:15; Fm 2), os crentes de uma localidade definida, congregados (At 11:26; I Co 11:18; 14:19, 28, 35) ou não (At 5:11; I Co 16:1), e um grupo de igrejas locais de certa região ou regiões (At 9:31; Fp 3:6). A palavra também é usada para referir-se a todos os crentes do mundo inteiro (I Co 10:32; 12:28) e ao conjunto de todos os eleitos na terra e no céu que estão e estarão unidos a Cristo (Ef 1:22; 3:10, 21; 5:2325, 27, 32; Cl 1:18, 24).

No Novo Testamento, ademais, existe uma variedade de figuras pelas quais a Igreja é designada, sendo que cada uma dessas figuras salienta ao menos um de seus aspectos importantes. A figura do "corpo" enfatiza a unidade orgânica da Igreja (I Co 12:13, 27) e sua relação vital com Cristo, a cabeça do corpo (Ef 1:22, 23; 5:23; Cl 1:18); a figura da "noiva" salienta o aspecto da pureza (II Co 11:2; Ef 5:23-27); a Igreja é dita também em termos de um "santuário", "edifício" ou "casa" de Deus para a habitação do Espírito (I Co 3:9-11, 16; Ef 2:20-22; I Tm 3:15), cujo arquiteto é Deus, Jesus Cristo é a pedra angular e os crentes são as "pedras vivas" (I Pe 2:5). Há também as figuras do "rebanho" de Cristo (At 20:28; Jo 10:11), da "família" (Ef 2:19) e da "lavoura" de Deus (I Co 3:9) e, porque a Igreja é o verdadeiro Israel, ela é também chamada de "Jerusalém lá de cima" (Gl 4:26), "Jerusalém celestial" (Hb 12:22) e "a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu" (Ap 21:2).

Em I Pe 2:9, 10, o apóstolo descreve a Igreja em termos de "raça eleita", "sacerdócio real", "nação santa", "povo de propriedade exclusiva de Deus" e 71


"povo de Deus" que alcançou misericórdia, tanto quanto estabelece a sua missão, qual seja: proclamar as virtudes daquele que a chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Finalmente, em I Tm 3:15, Paulo denomina a Igreja de "coluna e baluarte [fundamento] da verdade", a respeito do que Hendriksen anotou: "Como a coluna sustém o teto, melhor ainda (note o clímax), como o fundamento sustém toda a superestrutura, assim a igreja sustém a gloriosa verdade do evangelho".

Noutro giro, como já foi possível perceber, não é possível falar em Igreja em um único sentido. Quer pelo uso da palavra "ekklesia", quer pelas "figuras" antes observadas, é imprescindível que façamos algumas distinções conceituais para a compreendermos mais claramente. Primeiro, temos que discernir entre a Igreja militante e a triunfante. O primeiro conceito designa a Igreja na presente era, combatendo, padecendo sob perseguições, resistindo, avançando e cumprindo sua missão; o segundo, a Igreja triunfante, exprime a vida do povo de Deus no estado eterno quando, finda a batalha, a cruz é trocada pela coroa. Estas "etapas" da Igreja são descritas respectivamente em Ap 7:1-8 e 9-17.

A segunda distinção importante é entre Igreja visível e invisível. A Igreja invisível é a Igreja como Deus a vê (pois "o Senhor conhece os que Lhe pertencem", II Tm 2:19), composta de todos os eleitos, os verdadeiros crentes, "a Igreja que Cristo, seu cabeça e Senhor, irá apresentar ao Pai, gloriosa, sem ruga e sem defeito" (M. Porto Filho), e que só se tornará visível na segunda vinda do Senhor Jesus (Ef 5:25-27; I Jo 3:2).

Nesse sentido, a Igreja invisível é o conjunto dos eleitos. Mas, além desse fator, a Igreja é invisível também no sentido de ser Igreja universal, de existir em todos os lugares de todas as épocas, e, portanto, não poder ser vista por nenhum indivíduo.

A Igreja visível, por sua vez, é a que se expressa em sua organização externa, seu governo, suas ordenanças e por meio do ministério da Palavra. A 72


importância desta distinção está em compreender que "é possível que alguns que pertencem à Igreja invisível nunca se tornem membros da organização visível", tais como as pessoas "convertidas em seus leitos de morte", os "temporariamente excluídos" e os "crentes errantes por algum tempo afastados da comunhão da Igreja visível" (Berkhof).

Por outro lado, há na Igreja visível os professantes e hipócritas não regenerados, que, a seu turno, não pertencem à Igreja invisível, embora façam parte da visível.

Finalmente, vale distinguir também entre Igreja como organismo e Igreja como instituição. Enquanto a Igreja como organismo designa o vínculo espiritual entre os crentes, ligados mística e vitalmente a Cristo, a cabeça do corpo, a Igreja como instituição expressa-se através dos ofícios, do governo, da disciplina e dos meios de graça (ordenanças e ministério da Palavra).

A relação entre esses modos de ser Igreja é explicada por Berkhof em termos de "meio" e "fim", in verbis: "A Igreja como instituição ou organização (mater fidelium) é um meio para um fim, e este fim se acha na Igreja como organismo, a comunidade dos crentes (coetus fidelium)".

Ademais, essa distinção avulta em importância quando nos lembra que nem toda reunião de cristãos (conquanto haja um vínculo orgânico) é Igreja, no sentido de estar cumprindo sua missão como tal. Nesse sentido, Kevin DeYoung e Greg Gilbert ensinam que "quando um grupo de cristãos decide se tornar

uma

igreja,

eles

se

comprometem

juntos

a

assumir

certas

responsabilidades. Assumem, por exemplo, a responsabilidade de garantir que a Palavra está sendo pregada regularmente entre eles, de garantir que as ordenanças - batismo e Ceia do Senhor - estão sendo praticadas com regularidade, de garantir que a disciplina está sendo praticada entre eles, até ao ponto de entregar um de seus membros a Satanás, por excluí-lo da comunhão da igreja (I Co 5:5)". Destarte, é possível haver uma expressão da Igreja orgânica sem que haja Igreja institucional. 73


50. "E na Santa Igreja Católica": seus atributos. A fórmula credal, nessa única declaração, sintetizou os atributos da Igreja de unidade, santidade e catolicidade. Quanto à unidade, anotamos que há apenas uma Igreja, razão pela qual ela é descrita como "corpo", "noiva" e "plenitude" de Cristo (Ef 1:22, 23; 5:24-30; I Co 12:12-31). A princípio, essa unidade é espiritual e refere-se à unidade dos crentes entre si no corpo místico de Cristo, do qual Ele é a cabeça.

Mas, tal unidade que a priori é interior se expande e ganha expressão visível na "comunhão dos santos" (Ef 4:4-16). Por outro lado, deve-se acrescentar que a única Igreja de nosso Senhor Jesus manifesta-se na pluralidade das igrejas locais, sendo que cada uma destas "é um microcosmo, uma especializada localização no corpo universal da Igreja", como afirmou M. Porto Filho. Para esse ministro congregacional, as igrejas locais "não são unidades que, somadas, formam a Unidade Maior, mas pontos em que a Igreja se manifesta em Sua plenitude de significado, natureza e missão (I Co 1:2; I Ts 1:1)".

Nesse sentido, o Dr. Herman Bavinck anotou que "cada igreja local é o povo de Deus, o corpo de Cristo, edificada sobre o fundamento de Cristo (I Co 3:11, 16; 12:27), porque nessa localidade ela é a mesma coisa que a Igreja é em sua inteireza, e Cristo é, para essa igreja local, aquilo que é para a Igreja universal".

A santidade da Igreja deve ser observada sob a perspectiva dupla da santidade em sentidos absoluto e relativo. Por um ângulo, a Igreja é absolutamente santa, quando observada do ponto de vista da justificação, quando ela é considerada por Deus como "justa", pela imputação da santidade humana de Cristo por meio da fé somente.

Por outro, a Igreja é relativa e subjetivamente santa, face à mudança do princípio interior da vida dos crentes na regeneração e do processo de santificação que se segue, razão pela qual, em sentido ético, ela difere do mundo que lhe cerca na medida em que cresce em semelhança com o seu Senhor e em obediência a Deus (Fp 2:14, 15). 74


"A igreja é santa porque é uma comunhão de santos" (Bavinck). A luta da Igreja pela santidade prática é sempre um esforço para ser aquilo que Deus já a considera (I Co 1:2). Sobre a santidade dos santos, voltaremos ainda a falar.

Por fim, a Igreja também é dotada de catolicidade, termo que em geral remete à ideia de universalidade do cristianismo e ao seu caráter de religião internacional. Outros atributos da Igreja já foram catalogados, dentre os quais Bavinck destacou a sua apostolicidade e a sua infalibilidade. Por apostolicidade, entende-se a concordância do seu ensino com a doutrina dos apóstolos como elemento distintivo da verdadeira Igreja. A infalibilidade, a seu a turno, remonta à promessa de nosso Senhor no sentido de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Sua Igreja (Mt 16:18).

Bavinck explica a infalibilidade ou indefectibilidade do seguinte modo: "é, de fato, uma garantia de que sempre haverá um ajuntamento de crentes sobre a terra (...), mas não implica, de forma nenhuma, que uma igreja específica, em um país específico, sempre continuará a existir e será conhecida por todos por causa de seu testemunho e de sua glória". 51. “Na comunhão dos santos”: os membros da igreja. Ser membro de uma igreja local é um caminho natural para todos quantos Deus chama a ser parte de Sua família. Lucas, após descrever as atividades da igreja em Jerusalém (At 2:42-47a), observou que “enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2:47b). É dizer, em regra, não existem cristãos genuínos à margem da igreja visível e não esperarmos que a decisão de apartar-se de uma congregação seja a normal e esperada daqueles que foram perdoados (Hb 10:24, 25).

Aqueles que compõem a Igreja, ou as igrejas, foram designados no Novo Testamento de “cristãos” (“seguidores de Cristo”) em At 11:26, 26:28 e I Pe 4:16; “irmãos” (Fm 16, 17; I Ts 5:26; Fp 4:8); “crentes” ou “fieis” (I Tm 4:12); “escravos”, visto que fomos comprados (Rm 1:1; I Co 6:20; I Pe 1:18; 2:9);

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“eleitos” ou “escolhidos”, porque escolhidos por Deus (Ef 1:3-6; I Pe 1:2; 2:9) e “discípulos” (Mt 28:18-20; Jo 13:35; 15:8).

John Stott, em sua obra de despedida (O Discípulo Radical), pondera que tanto as palavras “cristão” e “discípulo” indicam relacionamento com Jesus, mas aviva que “’discípulo’ talvez seja mais forte, pois inevitavelmente implica relacionamento entre aluno e professor”, para em seguida sugerir lamentando que “talvez, de alguma forma”, devêssemos “ter continuado a usar a palavra ‘discípulo’ nos séculos seguintes, para que os cristãos fossem discípulos de Jesus de maneira consciente e levassem a sério a possibilidade de estar ‘sob disciplina’”.

Outras expressões denominam os cristãos no Novo Testamento. São chamados também de “peregrinos” e “forasteiros”, porque ainda distantes do seu lar verdadeiro (I Pe 1:17; 2:11, 12; Hb 11:13-16; Fp 3:20), e “sacerdotes”, visto que oferecem sacrifícios espirituais por meio de Jesus Cristo (I Pe 2:4, 5, 9). A expressão “os do Caminho” ocorre exclusivamente em Atos (9:2; 19:9, 23; 22:4; 24:14, 22) e designa “o cristianismo” como o caminho de Deus para a salvação. I. Howard Marshall explica: “Deus indicou o caminho ou modo de vida que os homens devem seguir se desejam ser salvos (cf. Mc 12:14); a declaração dos cristãos de que o caminho deles era aquele indicado por Deus levou ao uso absoluto do termo, como aqui [em At 9:2]”. Finalmente, os discípulos de Cristo foram chamados “santos” e “santificados” no Novo Testamento (At 9:32, 41; I Co 1:2; II Co 1:1; Ef 1:1; Fp 1:1; Cl 1:2). As palavras envolvem as ideias posicional, de separação para Deus, e ética, de caráter moral diferenciado. Repita-se: a Igreja é santa por ser uma comunhão de santos, em ambos os aspectos. 52. “Na comunhão dos santos”: as marcas de uma igreja verdadeira. Pois bem, quando os “santos” se reúnem “em” ou “como” igreja, surge a comunhão dos santos, conceito mais relacionado com os aspectos da igreja militante, visível e institucional, acima discutidos. Mas, a questão tormentosa que deve 76


nos ocupar, sobretudo em nossos dias, nos quais a quantidade de novas seitas e grupos independentes cresce vertiginosamente, é: como saber se uma “igreja” é realmente uma igreja? Noutras palavras: como posso discernir entre uma igreja e uma seita? Melhor ainda: quais as marcas de uma verdadeira igreja de Cristo?

Todavia, antes de pontuarmos as marcas da igreja verdadeira, devemos tecer duas considerações importantes: primeiro, não há sobre a terra uma igreja local perfeita, completa em todos os seus deveres e que cumpra as exigências de Deus, na doutrina e na vida, inteiramente; segundo, se uma igreja nega aquilo que é essencial, parte do núcleo inegociável da fé cristã, então concluiremos tratar-se de uma falsa igreja, uma “não-igreja”, visto que igreja absolutamente falsa não pode existir. Nesse sentido, Herman Bavinck observou que “’verdadeira igreja’ se tornou o termo usado para designar não a verdadeira igreja à exclusão de todas as outras, mas uma variedade de igrejas que ainda sustentavam os artigos fundamentais da fé cristã, mas, quanto ao resto, diferiam muito entre si em graus de pureza”.

Com isso em mente, os reformadores em geral posicionaram-se a favor de três marcas distintivamente características de uma verdadeira igreja de Cristo, quais sejam: a pura ministração da Palavra e das ordenanças e o exercício fiel da disciplina ou santidade de vida.

De plano, já devemos observar que uma igreja não pode ser escolhida por questões periféricas, ainda que desejáveis, tais como a proximidade geográfica entre o lugar das suas reuniões e a residência dos crentes ou a receptividade alegre e jovial dos que a compõem. As marcas ora em comento devem servir de bússola quando o assunto é a escolha de uma igreja.

Como acima anotado, há variados graus de pureza na igreja. Quanto à pregação bíblica ou ministração da Palavra, devemos reconhecer que certos

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textos podem ser distorcidos na exposição do pregador, sem que precisemos concluir tratar-se de uma falsa igreja.

Ademais, há diferenças doutrinárias periféricas entre igrejas e igrejas, tais como as formas de batismo e de governo, que não podem definir essa ou aquela como igreja falsa. Entretanto, se o evangelho é negado em essência, se pontos cardiais da doutrina cristã são transtornados, tal “igreja” é uma “nãoigreja”, não é parte da Igreja de Cristo. Destarte, ao desejarmos adentrar em uma dada igreja, devemos inquirir sobre o que ela diz sobre as Escrituras, sobre a Trindade, sobre a dupla natureza de Cristo e sobre a salvação pela graça mediante a fé. Isto é, a Palavra de Deus é suficiente e inerrante para o grupo?

Sua mensagem revela Cristo como o Redentor divino todo suficiente? Seu ensino estabelece que a salvação é obra da graça de Deus, recebida pela fé somente? Nesse sentido, é de bom alvitre pesquisar se o grupo possui uma confissão de fé e, em caso positivo, conhecer os seus termos e saber se estes são respeitados na vida da comunidade. As ordenanças (o batismo e Ceia do Senhor) devem ser rigorosamente observadas na comunidade. Entretanto, questões relacionadas ao batismo infantil (“pedobatismo”) e à natureza da Ceia (se sacramental ou mero símbolo ou memorial) não atestam a genuinidade de uma igreja, devendo ser objeto de tolerância.

Por fim, a disciplina bíblica é um aspecto crucial de uma igreja cuja mensagem é bíblica. Não por acaso as palavras “discípulo” e “disciplina” possuem radical comum. Ser discípulo de Jesus é estar sob o jugo do Mestre, é viver de forma ordenada, sob a Sua disciplina. Podemos afirmar que a disciplina é o reflexo da pregação bíblica e da correta administração das ordenanças na vida dos santos e na comunidade. Com as ordenanças e a disciplina ainda voltaremos a lidar.

Na prática, Michael S. Horton, em seu estudo Procurando uma Igreja: Um Breve Guia para o Adorador Judicioso (in monergismo), afirmou que “o ponto 78


mais importante é este: Este é um lugar onde Deus e Sua revelação na pessoa e obra de Cristo são claramente declarados, e onde as pessoas são sérias sobre crescimento em Cristo através da Palavra, sacramentos, oração, evangelismo e missões? Este é um lugar onde meus filhos serão ensinados em adição às instruções que receberão em casa? Eles crescerão ouvindo o evangelho?” 53. “Na comunhão dos santos”: o que envolve. Nesse passo, devemos considerar detidamente o que envolve a comunhão dos santos. Ou, noutras palavras, quais as responsabilidades e a missão de uma verdadeira igreja de Cristo. Asseveramos que a comunhão dos santos envolve tarefas internas no cuidado de si e no Seu serviço a Deus -, e uma missão ao mundo – a Grande Comissão. Denominaremos de “tarefas internas” os chamados “mandamentos da mutualidade” ou “mandamentos recíprocos”, o exercício dos dons espirituais, o uso diligente dos meios de graça, a adoração e o exercício da disciplina bíblica.

Após considerarmos as tarefas internas da igreja, voltar-nos-emos à Grande Comissão. 54. “Na

comunhão

dos

santos”:

os

mandamentos

da

mutualidade.

“Mutualidade” é termo que traduz as tarefas que os santos devem fazer uns aos outros, como expressão do amor que o Espírito Santo derramou em seu coração (Rm 5:5). Nosso Senhor Jesus nos deu um “novo mandamento”, que nos amássemos como Ele nos amou, e alertou que “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13:34, 35). Como reflexo desse amor mútuo (Rm 12:10; 13:8; I Ts 3:12; 4:9; II Ts 1:3; I Pe 1:22; I Jo 3:11, 23; 4:7, 11; II Jo 5), e porque membros uns dos outros na unidade orgânica do corpo de Cristo (Rm 12:5; Ef 4:25), os cristãos não devem mais julgar temerariamente uns aos outros (Rm 14:13; Mt 7:1-5), mentir uns aos outros (Cl 3:9), nem tampouco falar mal uns dos outros, com queixas mútuas e linguagem torpe (Tg 4:11; 5:9; Ef 4:31). 79


Paulo advertiu aos gálatas que toda a lei se cumpre no amor, para adverti-los que “se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos” (Gl 5:14, 15). Não se espera de uma “congregação” de cães, senão que arruíne a si mesma.

Por outro lado, considerando positivamente, os cristãos expressam a genuinidade de seu relacionamento com Cristo como seu Mestre quando demonstram amor uns pelos outros, notadamente quando esforçam-se pela paz (Ef 4:1-6; Rm 12:18; I Ts 5:13; Hb 12:14), quando edificam-se mutuamente (Rm 14:19; 15:14; I Ts 5:11; Hb 10:24; Tg 5:16), quando se expressam cordialmente uns com os outros (I Pe 5:5; Rm 12:10; I Co 16:20; II Co 13:12), quando consideram os outros superiores a si e sujeitam-se reciprocamente (Ef 5:21; Fp 2:3), quando acolhem uns aos outros e suprem as necessidades mútuas (Rm 12:13; 15:7; I Pe 4:9) e quando suportam uns aos outros a despeito de suas inúmeras fraquezas (Ef 4:2; Cl 3:13, 14; Gl 6:2). 55. “Na comunhão dos santos”: o exercício dos dons espirituais. Em um sentido muito real, o exercício dos dons espirituais deve ser concebido como mais um dos “mandamentos recíprocos” acima analisados. Uma vez que somos servos uns dos outros (Gl 5:13) e a comunhão dos santos envolve o mandamento da edificação mútua (I Ts 5:11; Jd 20), o apóstolo Pedro exorta: “servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (I Pe10).

Dons espirituais são capacitações de Deus, distribuídas soberanamente por meio do Espírito, a todos os membros do Corpo de Cristo, com vistas à edificação coletiva da igreja e à glória de Deus. "Um dom espiritual é uma capacidade de certa forma para expressar, celebrar, expor e, portanto, transmitir Cristo (...). Cada carisma deve ser uma capacitação de Cristo para mostrar Cristo e participar dele de um modo edificante" (J. I. Packer, citado por Ferreira e Myatt). Com base no conceito acima esposado, destacaremos as seguintes características dos dons espirituais:

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Em primeiro lugar, os dons são capacitações do Espírito dadas no contexto do serviço que os crentes devem uns aos outros (I Pe 4:10, 11; Ef 4:2; I Co 12:7). Os dons não existem para a edificação individual do cristão, mas para o contexto do serviço mútuo e da edificação e adoração corporativas.

Em segundo lugar, os dons não existem para engrandecer a quem os possui, mas para o serviço no reino e para a glória do nome de Cristo. Se a realidade dos dons é uma obra do Espírito na vida da igreja, os cristãos em Corinto seriam levados a confessarem que "Jesus é o Senhor" (I Co 12:2). Não se pode conceber o exercício de dons do Espírito que resulta na diminuição da glória de Cristo e no enaltecimento dos homens e mulheres que os possuem.

Em terceiro lugar, os dons são dádivas trinitárias, mas canalizadas e realizadas por meio do Espírito (I Co 12:4-7). Os dons não são concretizações de habilidades humanas, mas capacitações (gr. "energemata", em I Co 12:6) do Espírito no homem regenerado. As expressões "espirituais" (I Co 12:1), "manifestação" (I Co 12:7) e "distribuições" (Hb 2:4) apontam nesse sentido. Alguns dons, todavia, são santificações das habilidades naturais, deixando de ser eles mesmos naturais e tornando-se espirituais e, por isso mesmo, útil à edificação dos santos. Nesse sentido, os dons são concessões gratuitas e imerecidas. Em Ef 4:7, 8, Paulo emprega os termos "dorea" e "domata" para “dons”. Em I Co 12, a palavra usada é "charismata", que ressalta a absoluta liberdade do doador (I Co 12:11).

Em quarto lugar, o Espírito Santo é soberano na distribuição dos dons espirituais. Em I Co 12:11, "distribui" está no particípio presente, que indica a atividade contínua do Espírito no decurso do tempo de capacitar pessoas com dons, dando a entender "que há um constante desejo e decisão do Espírito Santo de fazer isso ou não, e ele pode, por suas próprias razões, retirar um dom por um tempo ou torná-lo maior ou menor do que era" (Gruden, citado por Ferreira e Myatt).

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Em quinto lugar, todo cristão possui dom (ns) espiritual (is) e nenhum cristão possui todos os dons espirituais. O Novo Testamento não contempla qualquer ofício sacerdotal. Ninguém tem todos os dons do Espírito, conforme I Co 12:29, 30. Por outro lado, não há nenhum cristão falto de dons (I Co 12:7; Ef 4:7).

Em sexto lugar, os dons são absolutamente necessários. "Os dons do Espírito concedem à igreja vida orgânica interior e forma visível exterior, sendo eles as únicas armas usadas por Cristo para estabelecer, ampliar e manter seu reino. Por isso, não pode haver vida eclesiástica autêntica sem o exercício dos dons espirituais" (Ferreira e Myatt). Entretanto, o fruto do Espírito é superior ao exercício dos dons. É o amor que dá sentido aos dons, é o amor que é infalível e é o amor que é eterno (I Co 13).

Em sétimo lugar, a partir das listas de dons espirituais do Novo Testamento (I Co 12:8-10; 12:28-30; Ef 4:11; Rm 12:6-8; I Co 7:7; I Pe 4:11), é possível extrair as seguintes ilações: a uma, não há lista exaustiva de dons espirituais, fato que não nos permite saber com precisão quantos dons existem; a duas, não há uma definição clara de todos os dons espirituais, razão pela qual é difícil descobrir exatamente o que alguns deles denotam, a exemplo de "palavra da sabedoria" e “palavra de conhecimento”; a três, as listas foram mencionadas no contexto de cada igreja, o que nos obriga a concluir que não há um repertório de dons que deve ser vivenciado uniformemente em todas as congregações; a quatro, das listas se deduz que há dons de falar (profetizar, ensinar, exortar) e dons de amar (servir, dar, mostrar misericórdia). 56. “Na comunhão dos santos”: o uso dos meios de graça. “Meios de graça” são os instrumentos utilizados pelo Espírito, pelos quais comunica ordinária e constantemente as bênçãos de Cristo à Igreja com vistas ao seu fortalecimento e edificação, e consistem principalmente das ordenanças (batismo e Ceia), da ministração da Palavra e da oração.

Sobre as ordenanças, cumpre-nos colocar de pronto que se tratam de uma concessão da graça de Deus aos homens e não, primariamente, um serviço dos homens a Deus. Às ordenanças tão somente nos submetemos. Não somos nós quem as produzimos. Não batizamos a nós mesmos, mas sujeitamo-nos 82


ao

batismo.

Tampouco

administramos

os

elementos

da

Ceia,

mas

simplesmente os recebemos. Ademais, os fatores comuns à Ceia e ao batismo é que são o sinal visível de uma graça invisível equivalente.

Pelo batismo, adentramos na igreja visível (At 2:41; 19:3-5) e, de nossa parte, tanto confessamos publicamente nossa fé em Cristo quanto nossa submissão à Sua autoridade (Mt 28:19, 20). Da parte de Deus, é Ele nos dando uma marca pela qual confirma a promessa que somos o povo de Sua aliança (Cl 2:11). As graças invisíveis significadas e confirmadas no batismo são o batismo com o Espírito Santo (I Co 12:13), a regeneração operada pelo Espírito (Tt 3:5) e a nossa união com Cristo em Sua morte e ressurreição (Rm 6:3-11).

Questão debatida que envolve as diversas tradições protestantes é saber qual a (exata?) forma de batismo. É certo que o verbos gregos “bapto” e “baptizo” significam “mergulhar” ou “imergir em água”, razão pela qual tem-se defendido (principalmente pelos queridos irmãos batistas e pentecostais de várias correntes históricas e doutrinárias) que a única forma válida do batismo cristão é a imersionista.

Seria essa a melhor conclusão? Acreditamos que não, pelas razões que passamos a destacar: primeiro, é facilmente verificável que “batismos” eram realizados também por aspersão. Em Lc 11:38, um fariseu admirou-se de não ter Jesus se lavado (gr. “baptizo”) antes de comer. Marcos (7:4) explicou o rito que o fariseu esperava que Jesus realizasse em termos de “aspersão” (gr. "rantizo”, que, segundo conhecimento unívoco, significa “aspergir”).

Segundo o evangelista João, os judeus usavam para esses rituais de purificação talhas de pedras que comportavam, cada uma, cerca de duas ou três metretas de água (Jo 2:6).

Sabendo-se que cada metreta da época equivalia aproximadamente aos nossos atuais 30 litros, pergunta-se: como seria possível imergir um adulto em uma talhar que podia conter no máximo 60 a 90 litros? Impossível. Entretanto, o raciocínio em favor da tese imersionista fica ainda mais complicado se 83


admitirmos que “camas” eram também purificadas nesses rituais judaicos (Mc 7:4). A conclusão é que pelo menos nos rituais judaicos do primeiro século, batiza-se aspergindo.

Em segundo lugar, há outro uso do verbo “baptizo” no Novo Testamento que não pode significar imersão em Ap 19:13, onde se lê: “Está vestido com um manto tinto [baptizo] de sangue, e o seu nome se chama o verbo de Deus”. No verso 15, descobrimos por que Cristo está com o manto “tinto de sangue”: é que Ele “pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-poderoso”.

O lagar era um tanque onde as uvas eram pisadas. Em Ap 19, as uvas são os inimigos de Deus sendo pisados pelo Cristo vencedor e o suco que “salpica” no Seu manto representa a morte eterna dos inimigos de Deus. Por óbvio, se percebe que o texto usa o verbo “baptizo” não para mergulhar ou imergir, o que deformaria por completo o sentido da passagem, mas para salpicar ou borrifar.

Em terceiro lugar, as circunstâncias que cercam a maioria dos casos de batismos no Novo Testamento parecem desfavorecer a prática da imersão. É o que se dá com o batismo dos quase três mil em Jerusalém, em um só dia (At 2:41), o batismo de Paulo (At 9:18) e do carcereiro de Filipos (At 16:33).

A outra ordenança de Cristo à Igreja é a Ceia - a Santa Ceia ou a Ceia do Senhor. Segundo John Stott, “era por Sua morte que ele [Jesus] desejava ser lembrado”, razão pela qual instituiu a Ceia como “o único ato comemorativo autorizado por ele” (Mt 26:26-30; Mc 14:22-26; Lc 22:14-20; I Co 11:23-25). Quando participamos da Ceia, de nossa parte: relembramos a morte sacrificial e substitutiva de Cristo, em nosso favor, ideia evocada pela expressão “em memória de mim” (I Co 11:23-25); celebramos a unidade da igreja, que deve ser refletida na comunhão fraterna dos santos (I Co 10:17); e, professamos nossa fé pessoal no Salvador e reafirmamos nossa fidelidade para com Ele, como nosso Senhor e Rei. Ademais, é da convicção deste pastor que vos escreve que a Ceia representa e opera mais do que um mero “memorial” poderia. 84


Nela, além da presença simbolizada nos elementos (pão e vinho), há também uma presença espiritual de Cristo, mediada pelo Espírito, com a qual comungamos e através da qual somos espiritualmente nutridos (I Co 10:16).

Na Ceia, somos abençoados com uma comunhão íntima com Cristo, pela qual sofremos uma influência vivificante (Jo 6:48-58) e, quando dela participamos com a devida fé, Cristo nos assegura que somos individualmente objetos do Seu amor, aumenta em nós a certeza que as bênçãos da salvação são nossas e intensifica a eficácia da Palavra com vistas a nos tornar crentes mais espiritualmente vigorosos.

R. C. Sproul falou de sua experiência com a Ceia do Senhor da seguinte forma: “Quanto mais velho fico, e quanto mais progrido na fé, mais importante esta ordenança se torna para mim. Se há algum lugar em que experimento a comunhão doce de minha alma com Cristo, este lugar é a mesa... De fato, a doçura de tal comunhão às vezes ultrapassa meus limites, à medida que a exuberância da presença de Cristo inunda minha alma”.

57. A ministração da Palavra de Deus é o meio de graça do Espírito por excelência, além de ser a marca suprema de uma verdadeira igreja de Cristo (como antes observamos) e o eixo em torno do qual deve gravitar a adoração (sobre o que adiante comentaremos).

O evangelho é o poder de Deus para a salvação (Rm 1:16; I Co 1:18; Ef 1:13), por ser a palavra de Deus (I Ts 2:13), que é viva, permanente e eficaz (I Pe 1:25; Hb 4:12) e uma luz que brilha nas trevas (II Pe 1:19). É por ela que o Espírito produz regeneração (Tg 1:18; I Pe 1:23), fé (Rm 10:17), iluminação (II Co 4:4-6) e progresso na santidade (Jo 17:17).

Por ser inspirada por Deus, a Escritura é útil para ensino, repreensão, correção e educação na justiça, a fim de conduzir os homens que nela creem à maturidade de conduta e de caráter (II Tm 3:16, 17). 85


“Os cristãos, então, devem estar completamente certos da seriedade e centralidade da pregação na vida da igreja” (Ferreira e Myatt). Aproveitar estudos nas diversas oportunidades promovidas pela igreja e promover encontros de pequenos grupos para o estudo das Escrituras são tarefas nas quais devemos nos empenhar com diligência e devoção.

58. Finalmente, devemos considerar seriamente a oração como meio de graça do Espírito. A oração é a maneira estabelecida por Deus para apresentarmos a Ele - em nome Jesus Cristo e no Espírito, com inteira devoção, confiança e consciência de Sua presença -, nossas petições. As nossas orações devem ser feitas em nome de Jesus, visto que não temos méritos próprios para comparecermos perante Deus (I Tm 2:5; Jo 14:6; Ef 3:11, 12; Cl 3:17).

Portanto, é absolutamente necessário que nos aproximemos de Deus confiantes nos méritos de Cristo e na eficácia da Sua obra e completamente esvaziados de todo e qualquer senso de justiça própria (Hb 7:25; 10:19-22). Embora, a princípio, possamos orar por quaisquer desejos e necessidades lícitos, sabendo que Ele nos responderá conforme a Sua vontade (I Jo 5:14), devemos priorizar aqueles pedidos que redundam em maior glória a Deus e promovem o avanço da manifestação do Seu reino, lição que nosso Senhor nos ensinou com o Pai Nosso (Mt 6:9-13).

As Escrituras nos ensinam sobre as atitudes e os motivos que não devem concorrer com nossas orações, tanto quanto aqueles que lhes devem acompanhar.

As nossas petições devem ser oferecidas a Deus com fé (Tg 5:15), aquela atitude que sabe que Deus é poderoso para fazer inclusive muito mais além daquilo que pedimos e pensamos (Ef 3:20).

Por outro lado, há atitudes que impedem o Senhor de atender as orações que se Lhe fazem, a exemplo da falta de perdão (Mt 5:23, 24), dos maus tratos para

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com a esposa (I Pe 3:7), do mundanismo e do egoísmo (Tg

4:1-3), da

hipocrisia e dos pecados ocultos (Mt 6:5; Is 59:1, 2).

Ademais, a Bíblia ensina que há diversos tipos de oração que se adéquam às diversas situações e necessidades da vida. Em I Tm 2:1, Paulo menciona quatro expressões para designar as orações que a igreja deve fazer em favor daqueles que se acham em posição de autoridade, quais sejam: “súplicas”, “orações”, “intercessões” e “ações de graças”. A palavra “orações” tem sentido mais geral e engloba todas as demais formas pelas quais nos dirigimos a Deus. “Súplicas” são orações por certas necessidades profundamente

sentidas; são, no dizer de Hendriksen,

“solicitações humildes que alguém expressa verbalmente à luz dessa ou daquela situação concreta em que Deus, tão somente ele, pode fornecer o auxílio de que se necessita”. Quanto a “intercessões”, Hendriksen observa que a palavra só ocorre em I Tm 2:1 e 4:5, aduzindo que enfatiza a ideia de “livre acesso”, para concluir que na passagem em apreço assume o sentido de “entrevista confidente que visa aos interesses de outrem. Daí assumir o sentido de intercessão”. “Ações de graças”, por sua vez, são a oração que reconhece que as bênçãos vieram de Deus e devem reverter-se a Ele em forma de gratidão.

Portanto, oremos sem cessar (I Ts 5:17) pelas autoridades constituídas (I Tm 2:1, 2), pelo progresso da obra missionária (At 4:24-30; Ef 5:18, 19), para que Deus mande obreiros para a Sua seara (Mt 9:37, 38) e pelo bem-estar e crescimento espiritual de todos os santos (Ef 5:18; Cl 1:9-12), e o façamos na devoção solitária de todos os dias (Mt 6:6) tanto quanto na reunião com os santos, para a glória de Deus. 59. “Na comunhão dos santos”: introdução à adoração. O Povo do Senhor, a Igreja, do Antigo e do Novo Testamento, foi redimido, liberto, salvo, com vistas à adoração. Conforme observam Mark Dever e Paul Alexander, “diversas vezes em Ex 3 a 10, a adoração corporativa é apresentada como o propósito 87


da redenção (Ex 3:12, 18; 5:1, 3, 8; 7:16; 8:1, 20, 25-29; 9:1, 13; 10:3, 7-11, 2427)”. No Novo Testamento, semelhantemente, o plano eterno da redenção da Igreja e a sua realização no tempo têm como finalidade “o louvor da glória da sua graça”, “a fim de sermos para o louvor da sua glória” e “em louvor da sua glória” (Ef 1:6, 12, 14).

O Senhor Jesus anunciou a chegada do culto espiritual (Jo 4:23, 24), que é uma espécie de antecipação do tempo em que toda a nova terra será um santuário para a adoração de Deus (Ap 21:22-26). Em certo sentido, a presente adoração espiritual antecipa (“já chegou”, como informa-nos Jo 4:23), e inaugura novos contornos que apontam à consumação dos séculos e à adoração da eternidade.

Portanto, devemos destacar que a adoração do Novo Testamento progrediu em diversos aspectos em relação àquela do Antigo.

Primeiro, enquanto o Antigo Testamento informa-nos um culto centralizado racial (restrito aos judeus), geográfica (Jerusalém, Templo e Santo dos Santos) e temporalmente (sábados e festas religiosas), a adoração do Novo Testamento é descentralizada. A Igreja se universalizou, sendo ela o templo de Deus (I Pe 2:5), razão pela qual sua adoração não está mais vinculada a um lugar específico (Jo 4:21) e a fé cristã tornou-se a prática de todos os dias (Rm 12:1; 14:5, 6; I Co 10:31).

No Antigo Testamento, havia uma hierarquia sacerdotal responsável pela oferta de sacrifícios, enquanto no Novo Testamento cada cristão é um sacerdote, com acesso direto ao Pai por meio de Jesus Cristo, o Sumo sacerdote (I Pe 2:5), e a liderança da Igreja é um dom de Cristo que pretende o aperfeiçoamento de cada um dos seus membros para a obra do ministério (Ef 4:11-16). Ferreira e Myatt concluem que “na igreja, o ministério é do povo, enquanto a obra dos ministros é a capacitação do povo para cumprir seu ministério”.

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Noutro giro, devemos pontuar duas considerações importantes. A primeira é que, não obstante o mandamento quanto à guarda do sábado especificamente não tenha sido ratificado no Novo testamento (Gl 4:8-11; Rm 14:5, 6; Cl 2:16, 17), desde o período apostólico a igreja primitiva estabeleceu a observância do primeiro dia da semana para o seu dia principal de culto (I Co 16:1, 2; At 20:7; Ap 1:10). Isso se deu naturalmente, em consequência à ressurreição de Cristo (Jo 20:1) e porque foi sempre no primeiro dia da semana que o Senhor ressurreto apareceu aos discípulos (Jo 20:19, 26; Lc 24:13), tendo inclusive enviado o Espírito Santo no Pentecostes (At 2), que ocorreu em um domingo.

A prática da observância do domingo foi seguida pela igreja dos primeiros séculos da era cristã, conforme o testemunho unânime dos pais da igreja. Segundo Clemente, “de acordo com o evangelho, um cristão observa ‘o dia do Senhor’, glorificando desta maneira a ressurreição de Cristo”. Irineu afirmou que “no dia do Senhor, todos nós, os cristãos, guardamos o dia de repouso, meditando na lei e regozijando-nos nas obras de Deus”. Justino, o mártir, escreveu: “Ora, o domingo é o dia em que todos nós temos nossa assembleia comum”. Eusébio, o historiador da Igreja, registrou que “o dia da ressurreição, ou seja, o dia do Senhor era observado em todo o mundo” (citações de Hans Ulrich Reifler, em A Ética dos Dez Mandamentos). A segunda consideração é que Deus continua no Novo Testamento, como no Antigo, a estabelecer o modo pelo qual Ele deve ser adorado. É dizer, em toda a história da redenção, Deus fixou o modo como o Seu povo deveria adorá-lO. Quando libertou o Seu povo do Egito, o conduziu ao Sinai, onde lhe prescreveu pormenorizadamente a maneira como a adoração deveria ocorrer (Ex 20-40; Lv).

Quem deveria sacrificar, onde e como foi detalhadamente informado. Um mandamento - o segundo (Ex 20:4) -, foi outorgado para a proteção da forma de adoração, e logo no início ficou claro que o desrespeito a essa forma poderia ser fatal (Lv 10:1-3; Ex 32).

O Novo Testamento introduz mudanças na forma de adoração, como antes anotado (Jo 4:19-24), sobretudo porque as leis cerimoniais levíticas foram 89


cumpridas em Cristo (Rm 10:4), tendo sido apenas “figuras” e “sombra” das realidades que prefiguravam (Hb 9:23; 10:1-4). Ademais, a Igreja se universalizou e, por ser o cristianismo essencialmente universal, não encontramos no Novo Testamento uma ordem litúrgica com perfil estático a ser minuciosamente seguido em todas as culturas do mundo. Segundo Ralph P. Martin, “não há, naturalmente, nenhum lugar no Novo Testamento que claramente afirme que a igreja tivesse qualquer ordem fixa de culto, e muito pouca informação nos é passada quanto às formas externas que eram empregadas”, até porque, afirma Martin, “Os escritores do Novo Testamento preocupam-se muito mais com os princípios da adoração e com o espírito que motiva a oferta de louvor a Deus”.

Entretanto, permanece a verdade que Deus continua estabelecendo as formas exteriores e as atitudes interiores requeridas à adoração que o Seu povo deve prestar-Lhe, mesmo sob a administração da Nova Aliança. Ou seja, “tudo o que fazemos na adoração corporativa deve ser claramente fundamentado nas Escrituras” (Mark Dever e Paul Alexander), noção que se traduz no Princípio Regulador do Culto. Assim, pela Palavra, Deus nos diz como Ele quer ser adorado, com que elementos formais e com qual atitude do coração, temas sobre os quais nos debruçaremos a seguir. 60. “Na comunhão dos santos”: os elementos formais da adoração. Quanto à forma, podemos dizer que o culto deve ser a prática de (1) ler a Palavra, (2) orar a Palavra, (3) pregar/ouvir a Palavra, (4) cantar a Palavra, (5) ver a Palavra (nas ordenanças), (6) viver a Palavra (nas ofertas e expressões de amor fraternal) e (7) confessar a Palavra (recitando credos que expressam a Palavra). Analisemos por partes os elementos do culto, sem desejar fixar uma ordem.

Primeiro, na adoração corporativa, devemos ler a Palavra (Lc 4:16; Ap 1:3), sobretudo para expressarmos que estamos dispostos a ouvir a Palavra de Deus com o propósito de obedecê-la.

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Paulo exortou no sentido que suas cartas fossem lidas nas reuniões públicas das igrejas (Cl 4:16; I Ts 5:27; Fm 2). Em I Tm 4:13, o apóstolo instruiu seu cooperador Timóteo quanto a uma das suas funções nos cultos públicos da igreja: “persiste em ler” (edição ARC). Segundo Martin, “Nosso interesse em I Tm 4:13 deve-se ao fato de esse texto tratar-se da primeira alusão histórica ao emprego das Escrituras na liturgia da igreja”.

Segundo, devemos orar a Palavra, fazendo orações e súplicas a Deus com toda a reverência, através das quais adoramos a Santa Trindade, confessamos-Lhe nossos pecados e redemos-Lhe ações de graças. Em At 2:42, Lucas menciona a prática perseverante da oração dos cristãos primitivos em suas reuniões públicas e o Novo Testamento está repleto de referências a orações coletivas, tanto em Atos (13:1, 2 etc) como nas epístolas (Ef 2:15ss; Cl 1:9ss etc).

O fato de que nosso Senhor ensinou seus discípulos a orar (Mt 6:9-15; Lc 11:24) já nos indica que orações não são palavras ditas sem quaisquer critérios. A melhor maneira de apresentarmos a Deus orações que Lhe agradem é orar segundo a orientação da Sua Palavra. Deus Se agrada de ouvir palavras dirigidas a Ele nos termos da Sua Palavra. É notável como a oração de At 4:2430 é moldada por citações das Escrituras (cf. Ex 20:11; Sl 146:6; 2:1, 2) e fatos do Evangelho (Mt 27:1, 2; Mc 15:1; Lc 23:1; Jo 18:28, 29).

Terceiro, devemos pregar/ouvir a Palavra de Deus. Por intermédio daqueles a quem Deus constituiu para apascentar o Seu povo (At 20:7, 20, 28), nós ouvimos a exposição da Palavra. Os pastores não devem sentir-se pressionados pelos modismos da época. Antes, que se mostrem firmes em ensinar tão somente o conselho de Deus e nada menos que todo o conselho de Deus (At 20:20; II Tm 4:1-5).

O povo cristão, por sua vez, deve ouvir a pregação da Palavra com toda a diligência e devoção, aplicando a si cada expressão como se “proferida por Deus, e não pelo homem (Is 2:3; At 10:33; Gl 4:14; I Ts 2:13)”, e esforçando-se “não tanto para ouvir o som das palavras do pregador em seus ouvidos, mas, 91


sim, para sentir a operação do Espírito agindo em seu coração” (Lewis Bayly). Portanto, quando estivermos ouvindo o sermão, devemos buscar a compreensão do texto e do tema que estão sendo explicados, atentar às divisões principais da passagem que está sendo exposta, destacar as doutrinas ensinadas por ela e compreender quais as suas exigências com vistas a uma mudança de comportamento. Em alguns momentos, fazer breves anotações poderá ser de grande valor. Também, e mais recomendável ainda, é a prática do líder da família em reunir todos os membros que a compõem após o culto, no lar, o que dará ocasião a que se verifique o que foi compreendido do sermão e oportunidade para que a mensagem pregada seja confirmada na mente e no coração de toda a casa.

Quarto, devemos cantar a Palavra de Deus. De Ef 5:19, 20 e Cl 3:16, 17, somos informados que os cristãos neotestamentários utilizavam “salmos, hinos e cânticos espirituais”. Embora não haja concordância entre os estudiosos a respeito do exato significado dessas palavras, uma das possibilidades é que “salmos” refiram-se ao Saltério do Antigo Testamentário, “hinos”, às composições distintivamente cristãs cujos inúmeros exemplos se acham no Novo Testamento (Ef 5:14; I Tm 3:16; Fp 2:6-11; Cl 1:15-20; Hb 1:3), e “cânticos espirituais”, aos louvores carismáticos, a exemplo da experiência coríntia mencionada em I Co 14:15.

O Novo Testamento não regulou diversos aspectos do culto, tais como o estilo e o uso de instrumentos musicais, devendo esses elementos ser considerados com prudência para que não se tornem motivo de conflitos na comunidade. A respeito da música, Mark Dever e Paul Alexander aconselham sabiamente, quando dizem: “faz sentido que cantemos somente canções que expressam com exatidão a Palavra dEle [de Deus].

Quanto mais canções aplicarem corretamente a teologia, as frases e os assuntos bíblicos, tanto melhores elas serão para a igreja – porque a Palavra de Deus edifica a igreja, e a música nos ajuda a rememorar a Palavra, que rapidamente esquecemos. Isso não significa que devemos usar somente hinos e canções antigas. Existe muita sabedoria e edificação em usarmos vários 92


estilos musicais, para que o gosto musical das pessoas se amplie, com o passar do tempo, como fruto de maior exposição a gêneros musicais e de períodos de tempo diferentes”.

O Novo Testamento, semelhantemente, não indica a forma que o canto cultual deve assumir, se, por exemplo, utilizava-se cantores, grupos ou corais. Em I Co 14:26, embora Paulo esteja tecendo certa crítica à desorganização do culto em Corinto, ele menciona alguém que participa do culto com "salmo".

Entretanto, por razões mais que justificáveis, o canto congregacional (que envolve a participação de toda a congregação) deve ter preferência em nossa adoração. Isso não significa que participações solos especiais e corais sejam “abominações” ou “práticas absurdas”, mas, certamente, o efeito de uma intensa e frequente ocorrência de especiais desestimulará a participação corporativa da igreja na música e, no dizer dos autores acima citados, poderá “obscurecer a linha de separação entre adoração e entretenimento”.

Assim, quanto mais distante o aspecto formal do culto estiver do entretenimento, tanto mais fortalecida será a verdade que a igreja se reuniu para adorar, para exercer o papel ativo na adoração, e não para ser mera expectadora de um “culto-show”.

Por isso, todo o planejamento musical para o culto deve ser pensado entendendo-se a participação dos músicos e cantores como estando a serviço da adoração que será prestada a Deus pela igreja, e não somente pelos integrantes do "conjunto musical".

Em consequência, os instrumentos musicais e vozes do conjunto devem ser apenas levemente amplificados, de modo que a voz que sobressai seja a da igreja. A ênfase deve ser dada à letra que está sendo cantada e não aos arranjos melódicos e ao ritmo. Os músicos devem compreender nitidamente que estão apenas a serviço da igreja e não apresentando números musicais para que ela aprecie passivamente. 93


O repertório deve ser composto de músicas que exponham as doutrinas bíblicas de maneira inequívoca, sem ambiguidades. As músicas mais adequadas ao culto são, portanto: primeiro, aquelas que enfatizam as verdades objetivas do Evangelho, e não as experiências subjetivas dos crentes; segundo, as que se concentram em Deus e nas realidades espirituais, e não no homem e nas suas necessidades temporais; terceiro, as que se utilizam prioritariamente dos pronomes na primeira pessoa do plural, e não no singular, para que se evidencie o aspecto corporativo da adoração; e, quarto, as que possuem uma progressão lógica compreensível de ideias, e não mera combinação desconexa de frases que nada comunica.

Quinto, as ordenanças são as formas biblicamente autorizadas de vermos a Palavra de Deus. Percebe-se claramente como Deus deseja a participação ativa de toda a igreja no culto, quando consideramos as ordenanças. Elas são as formas únicas autorizadas e permitidas para vermos a Palavra de Deus no culto. Todavia, vê-se que nelas não há meros expectadores. No batismo, recebemos o selo visível da graça invisível e professamos publicamente a nossa fé e submissão a Cristo como Senhor; na Ceia, somos nutridos espiritualmente enquanto professamos e anunciamos que Cristo morreu para recebermos o perdão de pecados (I Co 11:26). No Novo Testamento, a participação nas ordenanças não é opcional ao discipulado cristão (Mt 28:19; I Co 11:23-25). O batismo seguia invariavelmente a fé (At 2:41; 8:12, 36, 37; 9:18; 22:16) e a Ceia deveria ser partilhada com a santidade que a ordenança exige (I Co 11:27-29), sob pena do julgamento divino (I Co 11:30-32).

Sexto, no culto também vivemos a Palavra, quando ofertamos (I Co 16:1-4; II Co 8, 9) e manifestamos comunhão fraternal uns aos outros (Ef 5:19; I Ts 5:26). Em I Co 16:1-4, Paulo nos dá diretrizes para a adoração que prestamos a Deus com nossas contribuições: primeiro, devemos contribuir porque sentimos empatia com os necessitados; segundo, devemos contribuir sistematicamente; terceiro, a menção a ofertas no “primeiro dia da semana” – o dia principal do culto da igreja - deixa evidente que a contribuição é um 94


sacrifício espiritual, uma forma pela qual adoramos a Deus, um elemento formal do culto; quarto, deve ser proporcional à prosperidade que Deus concede a cada um; e, quinto, deve ser administrado com a participação de pessoas reconhecidamente idôneas. No Novo Testamento, além do cuidado com os necessitados (II Co 8, 9), as contribuições cristãs sustentavam os missionários e os líderes locais (Gl 6:6; I Tm 5:17; Fp 4:15-20).

Segundo Ralph P. Martin, quando apresentamos nosso dinheiro em adoração, “declaramos que todas as riquezas emanam dele (v. Ageu 2:8), estão sujeitas a ele (I Co 7:30, 31) e são oferecidas de volta a ele em gratidão (Tg 1:17)”. Martin afirma ainda que “Nenhum ato do culto público pode significar tanto ou tão pouco quanto a entrega e a recepção das nossas dádivas na casa de Deus. Se contribuímos de modo impensado e formal, o ato está destituído de toda relevância e calor espiritual. Mas, se vemos a oferta como parte inseparável de nossa adoração coletiva e a ancoramos firmemente na resposta total que damos às novas do evangelho, ela assume significado novo e mais rico; e a dedicação de nosso dinheiro passa a ser o sinal externo e visível da graça interna e espiritual de um coração grato”.

Finalmente, também devemos adorar a Deus confessando a Palavra, ao recitarmos comunitariamente nossos credos e confissões (II Co 9:13; I Tm 3:16), os quais devemos mantê-los firmemente (Hb 3:1, 12, 13; 4:14; 10:23). I Tm 3:16, segundo parcela considerável de estudiosos, é um hino que expressa a confissão de fé da Igreja primitiva, visto que, segundo Ralph P. Martin, "a igreja sempre se deleitou em cantar suas mais profundas convicções".

Entretanto, o texto neotestamentário que mais claramente apresenta-se em forma de um Credo é I Co 15:3-5 e, segundo indicação relativamente consensual entre os eruditos, trata-se do mais antigo resumo da fé cristã, prépaulino e que era recitado na adoração da igreja primitiva. Recitando esse Credo primitivo, a igreja confessava sua crença na morte de Cristo e na relação dessa morte com os nossos pecados, confessava que Cristo foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, tendo todos esses fatos sido preditos pelo Antigo

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Testamento, e confessava que a ressurreição foi comprovada pelas aparições do Cristo ressurreto. Por todo o exposto, devemos concluir que “no que se refere ao culto, não estamos à mercê de nossas opiniões, preferências ou criatividade. Uma vez que o Senhor ordena que o cultuemos com nossos irmãos, Deus também ordena os elementos que constituem este mesmo culto público” (Ferreira e Myatt). 61. “Na comunhão dos santos”: a atitude de coração dos adoradores. De modo semelhante, a Palavra de Deus não nos deixa sem orientação quanto à atitude de coração que deve caracterizar os adoradores. A palavra antigotestamentária "hishahawah" significa "curvar-se" e, em sua plenitude, é usada para a reverência humilde que deve caracterizar aqueles que se achegam a Deus (Gn 24:52; II Cr 7:3; 29:29). Outro vocábulo utilizado no contexto da adoração no Antigo Testamento é "abodah", cujo radical corresponde ao da palavra "ebed", que significa "servo" ou "escravo". No Novo Testamento, o vocábulo “proskuneo” (correspondente ao hebraico "hishahawah"), em geral traduzido por "adorar" ou "prostrar-se", comunica a ideia de submissão e de consciência de inferioridade diante dAquele a quem se prostra (Mt 2:2; 18:26; Ap 4:10), atitude que não se deve nem a homens (At 10:25, 26) nem a anjos (Ap 22:8, 9; cf. Mt 4:9, 10). A palavra “latreia” significa “culto” ou “serviço religioso”, com significado paralelo ao do vocábulo hebraico "abodah". É traduzida em Hb 9:1, 6 por “serviço sagrado” e o verbo correlato (gr. latreuo) ocorre em Fp 3:3 como “adorar”.

A palavra indica que a adoração da igreja é um serviço que fazemos para Deus e não um serviço que esperamos receber de Deus. O termo “treskeia”, semelhante a “latreia”, indica também a expressão exterior do culto oferecido a Deus e é traduzido por “religião” (At 26:5; Tg 1:26, 27) e culto (Cl 2:18).

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Outro vocábulo grego digno de nota é “sabein” (Mt 15:9; Mc 7:7; Rm 1:25), que exprime a ideia de temor que o homem deve sentir ante a santidade majestosa de Deus. Ao contrário, “asebeia” (a forma negativa de “sabein”), que significa impiedade ou irreligiosidade (Rm 1:18), é a falta de reconhecimento da majestade do Deus santo. Finalmente, “leitourgeo”, palavra composta por “laos” (povo) e “ergon” (trabalho) é a realização de um trabalho sacerdotal (At 13:2; Hb 9:21; 10:11).

Percebe-se que culto, adoração, é a prostração humilde que a igreja faz perante Deus, reconhecendo a própria indignidade e a majestade do Senhor, na qual se oferece a Ele como um serviço sagrado, em amor (Dt 6:4, 5), temor (Hb 12:18-21), confiança (Hb 10:19-21) e vida santa (I Tm 2:8).

O culto, ou a adoração pública, pode degenerar-se de pelo menos duas maneiras: primeira, quando caminha em direção ao excesso de formalismo, cujo resultado invariável é o ritualismo árido, sem vida e sem contato real sentido com o Deus vivo (II Tm 3:5); segundo, quando pende ao perigo da espontaneidade desordenada (I Co 14:26ss). Naquela perspectiva, confundese reverência com formalismo, esquecendo-se que a “forma” não pode ser confundida com a essência e que nem sempre a reflete. No outro extremo, está a concepção errônea de que espiritualidade é sinônimo de improviso e falta de clareza e de ordem pré-estabelecida, noção contra a qual o apóstolo se insurgiu em I Co 14.

Portanto, ao fim e ao cabo, verifiquemos se o Culto que temos prestado a Deus é teocêntrico (se realmente tem em vista a glória de Deus), cristocêntrico (se o Cristo vivo é verdadeiramente vivido e proclamado), espiritual (se realizado no poder e sob a influência do Espírito) e edificante (se o Evangelho é claramente ensinado). Os verdadeiros adoradores adoram a Deus no Espírito e na Palavra! 62. “Na comunhão dos santos”: a disciplina. Na realidade prática da igreja visível, verificamos que nem sempre as atitudes e comportamentos dos cristãos são dignos do Senhor (Cl 1:10) ou da vocação a que foram chamados (Ef 4:1). Embora a Escritura apresente de modo claro as marcas de um 97


verdadeiro cristão (I Jo 2:15; 3:7-18), ela também nos ensina que o decurso do tempo é o meio mais seguro de distinguir os filhos legítimos de Deus dos bastardos (Hb 12:8), conforme se depreende de Hb 3:14: “Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até o fim, a confiança que, desde o princípio, tivemos” (cf. Mt 10:22; 24:13).

No transcorrer dos anos e das décadas, alguns apresentam um cristianismo vibrante e depois apostatam da fé, tornando-se cínicos e blasfemos (Mt 13:20, 21); outros se desencaminham, às vezes por longo tempo, e depois são trazidos de volta pelo Senhor (Lc 15); e, outros ainda estão na igreja gozando de uma falsa segurança, mas não se distinguem em nada dos filhos deste mundo, embora se creiam cristãos genuínos (Mt 7:21-23).

Esse estado de coisas demonstra cabalmente a necessidade da disciplina na igreja, que não pode tolerar em seu meio nem o erro moral nem o doutrinário (Gl 1:9; II Tm 2:18-18; II Jo 10). Russel Shedd adverte que quando a disciplina é esquecida, “a igreja deixa de existir, no sentido de organismo espiritual, porque não há consciência, nem manutenção da separação entre cristãos e não cristãos”. O Dr. Shedd disse em outro lugar: “evitar a disciplina dilui, barateia e finalmente destrói a igreja”.

A disciplina na igreja visa três finalidades imediatas: primeiro, levar os cristãos faltosos ao arrependimento, com vistas a restaurá-los à vida cristã digna da confissão que fazem (Hb 12:10, 11); segundo, manter a pureza da comunidade (At 5:1-11; I Co 5:6-8); e, terceiro, prevenir que outros cometam os mesmos erros dos disciplinados (I Tm 5:20). A “disciplina”, como os vocábulos cognatos “discipulado” e “discípulo” sugerem, pretende formar os cristãos segundo a conduta e o caráter do seu Mestre, visto que o Deus santo exige santidade do Seu povo (I Pe 1:16). Deve ocorrer de maneira a não transigir com o pecado (I Co 5:1-5), mas em um ambiente de amor, brandura e aceitação mútua (Mc 16:7; Jo 21:3, 15-17; Ef 4:2; Gl 6:1, 2) e unicamente com vistas à edificação da igreja e a glória de Deus. Em hipótese

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alguma, a disciplina poderá ser instrumento de vingança pessoal (II Co 2:5-8) ou motivos egoístas (Gl 6:1-5).

Assim, devemos desassociar a correspondência necessária que costumamos fazer entre “disciplina” e “punição”. Para tanto, percebamos que ela, a disciplina, tem uma face “positiva-educativa” tanto quanto uma “negativapunitiva”. A disciplina positiva-educativa envolve ensino (Mt 28:20; At 6:2; 19:9, 10; 20:27), exortação ou encorajamento (Rm 12:1; Ef 4:1; I Tm 4:13; Hb 10:25), advertência ou admoestação (Cl 1:28; I Ts 5:12, 14) e repreensão (II Tm 4:2; Tt 1:13).

Por outro lado, há ocasiões em que palavras não resolvem, momento em que uma face mais punitiva da disciplina deve apresentar-se. É dizer, a exclusão pela igreja – a medida negativa-punitiva extrema da disciplina (I Co 5:3-5) – às vezes afigura-se necessária. Todavia, não ocorrerá sem que o pecado seja atestado por várias testemunhas (II Co 3:1; I Tm 5:19) e sem que o irmão faltoso tenha sido submetido a várias fases de disciplina positiva e, não obstante, permanecido impenitente (Mt 18:15-17). Nesse caso, o excluído será tratado como descrente e evitado na comunhão (II Ts 3:6, 14), sem prejuízo de seu regresso, em caso de arrependimento posterior (II Co 2:5-7).

O caso específico da disciplina dos presbíteros é digno de nota, visto que Paulo exige também uma acusação constatada pelo depoimento de duas ou três testemunhas (I Tm 5:19), mas, além disso, que seu pecado seja repreendido publicamente (I Tm 5:20).

Quanto a quem deve disciplinar, Paulo diz que a disciplina deve ser exercida pelos “espirituais” (Gl 6:1), ou seja, por aqueles que evidenciam o fruto do Espírito no caráter e na conduta (Gl 5:22, 23).

Devemos concluir com o apóstolo que os cristãos mais imaturos, impulsivos, vingativos, egoístas e dados a contendas não se qualificam para tratar com aqueles que necessitam de corações brandos, mansos, confiantes em Deus e estimulados por motivos puros (II Tm 2:25-26). 99


63. “Na comunhão dos santos”: A missão da Igreja ao mundo - a Grande Comissão. Até aqui, deixamos assentado que a igreja possui cinco tarefas internas a realizar, com vistas à edificação dos santos e à glória de Deus: os mandamentos da mutualidade, o exercício dos dons espirituais, o uso diligente dos meios de graça, a adoração e a disciplina. Agora, neste passo da nossa caminhada, voltar-nos-emos à missão da Igreja militante do Senhor Jesus ao mundo: a Grande Comissão.

Antes de tudo o mais, convém colocar que a missão de uma evangelização mundial, tal qual expressa na Grande Comissão, inaugura uma mudança histórica sem precedentes.

É que, embora tenhamos uma promessa de um Redentor que destruiria as obras de Satanás e reconciliaria os homens com Deus remontando ao protoevangelho (Gn 3:15), é certo que o Antigo Testamento concentrou interesse em uma única nação (Sl 147:19,20; At 14:15, 16) e que mesmo no ministério terreno do Senhor Jesus seu público alvo consistiu das “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15:24; cf. Mt 10:6). Em diversas ocasiões, o Senhor proibiu que se divulgassem Seus milagres (Mt 8:1-4; 9:27-30; 12:15, 16) e mesmo Sua identidade messiânica (Mt 16:20). A razão desse silêncio temporário é que as boas novas só haveriam de ser espalhadas após a conquista da salvação em Sua morte e ressurreição (Mc 9:9; Lc 9:21, 22).

Portanto, as ordens dadas pelo Senhor Jesus entre a ressurreição e a ascensão são de uma importância crucial para demarcar a missão da igreja ao mundo. Elas marcam “uma mudança na história redentiva” (Jesse Johnson). É dizer, “missões, no sentido de o povo de Deus ser ativamente enviado a outras pessoas com uma tarefa a realizar, era algo tão novo como o próprio Novo Testamento” (DeYoung e Gilbert).

Pois bem, a Grande Comissão é a ordem dada pelo Senhor Jesus a todos os membros da Sua Igreja militante para que, no poder do Espírito Santo,

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preguem o evangelho em todo o mundo, discipulem os convertidos e organizem-nos em igrejas.

A importância da Grande Comissão se vê em que cada evangelho contém uma variação dela (Mt 28:18-20; Mc 16:15; Lc 24:46-49; Jo 20:21) e que estas ordens representam as palavras finais de nosso Senhor. Nas palavras DeYoung e Gilbert, “o momento de anúncio das Grandes Comissões sugere a sua importância estratégica. Elas relatam as palavras finais de Jesus na terra, depois de sua morte e ressurreição e antes de sua ascensão.

O senso comum e a precedência bíblica nos dizem que as últimas palavras de um homem têm importância especial [os autores recordam, em nota de rodapé, as ‘últimas palavras famosas de vários personagens bíblicos, incluindo Jacó, Moisés, Josué, Davi, Elias, Paulo (em Éfeso, em Atos 20, e para Timóteo, em 2 Timóteo) e Pedro (ver 2 Pe 1:12-15)’] (...) Os autores bíblicos e a igreja primitiva entenderam que as palavras finais de Jesus eram as mais importantes afirmações que ele proferiu e as instruções mais significativas que ele deu para formar a identidade missional deles”.

Por outro lado, observa-se a importância da Grande Comissão também no fato de seus comandos estarem no início do livro de Atos (At 1:8), que nada mais é do que o modo como a igreja os cumpriu, pregando o evangelho em Jerusalém (At 2-7), na Judéia e Samaria (At 8) e até os confins do mundo de então, sobretudo após a conversão e as missões paulinas (At 13-28).

Passo seguinte, devemos ainda considerar, antes de tratarmos dos aspectos mais práticos da Grande Comissão, que Sua importância é tal que todas as atividades internas que a igreja realiza, como antes analisadas, devem guardar relação com a missão da igreja ao mundo. Isto é, quando a igreja pratica o amor mútuo (Jo 13:34, 35; At 2:42-47; 4:32-37), quando exerce os dons espirituais ou cultua a Deus publicamente (I Co 14:23-25), quando usa diligentemente os meios de graça e é com isso edificada (I Pe 3:14, 15), tudo, enfim, deve está em sintonia com a Grande Comissão. Mesmo a disciplina eclesiástica (At 5:1-11), que a princípio pode estabelecer uma barreira benéfica 101


entre a igreja e os descrentes (At 5:13), produzirá a seu tempo os frutos evangelísticos (At 5:14).

Verdadeiramente, uma igreja que fará a diferença no mundo que lhe cerca é uma comunidade composta de cristãos firmes na fé, prontos a apresentarem o evangelho, amorosos uns com os outros, conhecedores do seu próprio lugar na missão mundial da igreja e bem disciplinados.

Pelo exposto, o resultado não pode ser outro senão que a Igreja deve assumir a Grande Comissão como a Sua tarefa prioritária no mundo. É para isso que foi chamada (I Pe 2:9) e somente ela pode levar a cabo as ordens do Senhor com vistas à evangelização mundial. “A Igreja é área da redenção de Deus, agência e testemunha da obra redentiva de Cristo nos termos da revelação que dessa obra o Espírito nos faz pela Palavra. O que caracteriza o nosso grupo como igreja é estarmos servindo a essa finalidade. Todas as demais atividades da Igreja estão incluídas ou como preparação ou como instrumentos da evangelização, que é a atividade central, a responsabilidade irrecusável e intransferível a que ela foi chamada” (M. Porto Filho).

Assim, devemos assumir um compromisso em dois níveis com a Grande Comissão: primeiro, como igreja; segundo, como crentes individuais. Como igreja, ter a Grande Comissão como a prioridade resulta em que tudo - o culto, as programações, os gastos financeiros, os projetos sociais, etc. - deve ser pensado a partir da sua relação com a Grande Comissão.

Isso não significa, como muitos poderiam pensar, que a mensagem será barateada, que os cultos dominicais deverão ser forjados para “atender” a possíveis visitantes e que tudo quanto precisamos é ter em mente João 3:16.

Mas, significará que a igreja que entende a importância crucial da Grande Comissão não terá como alvo a sua própria satisfação. Implica em que não se acomodará no próprio conforto e não viverá para ornar sua casa, que erroneamente chama de “igreja”.

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Por outro lado, como crentes individualmente considerados, eleger a Grande Comissão como tarefa prioritária da vida deverá levar-nos às seguintes decisões: primeira, a santidade pessoal deverá tornar-se uma prioridade (Rm 12:2). “A hipocrisia na vida do cristão destrói o evangelismo como o bolor destrói o pão. Eloquência e fala persuasiva não substituem a natureza ostensiva do pecado.

Temos de nos lembrar de que muito antes dos incrédulos ouvirem o que dizemos, eles observam como vivemos” (Jim Stitzinger).

A segunda decisão a tomar, uma vez que já decidimos pelo engajamento evangelístico, é a de priorizar o estudo da Palavra de Deus e o aprofundamento da compreensão do evangelho (II Tm 2:15).

Com efeito, só estaremos prontos a explicar o evangelho às pessoas se o conhecermos com certa propriedade. Finalmente, a resolução de tornar a Grande Comissão o objetivo da vida nos levará a uma decisão pela oração intercessória em favor da glorificação de Deus na salvação dos incrédulos (Rm 10:1; I Tm 2:1-4; Cl 4:3).

A oração evangelística implorará a Deus pelo poder do Espírito, por oportunidades adequadas para testemunhar, para que falemos com clareza os pontos principais do evangelho e para que os ouvintes compreendam a mensagem salvadoramente. 64. “Na comunhão dos santos”: A missão da Igreja ao mundo – os aspectos práticos da evangelização. Agora, pois, voltamo-nos aos aspectos mais práticos da Grande Comissão, lembrando que transformar o engajamento pessoal com a evangelização na prioridade pessoal da existência implica em que começaremos a ver a atividade de pregar o evangelho como um estilo de vida e não somente em termos de participações esporádicas em situações localizadas. Assim, devemos concluir que Deus nos inseriu soberanamente em um “campo missionário”.

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Jim Stitzinger (in Evangelismo: como compartilhar o evangelho com fidelidade) faz sugestão útil no sentido de identificarmos o raio da nossa atuação evangelística. Ele propõe que façamos três listas: uma, com “todos os descrentes com os quais interagimos com certa regularidade, mas nunca tivemos conversa sobre o evangelho”; a segunda, contendo “todos os descrentes com os quais interagimos com certa regularidade, e já tivemos alguma conversa sobre o evangelho”; e, finalmente, na terceira lista devem constar “todos os descrentes com os quais tivemos extensas conversas sobre o evangelho”, devendo ficar claro que às pessoas desta última lista nós fizemos uma completa apresentação do evangelho.

Caso preenchamos estas listas sugeridas por Stitzinger, é possível que cheguemos a conclusões desalentadoras e talvez verifiquemos que a lista “1” estará repleta, a “2”, nem tanto, e que na “3” tivemos séria dificuldade para incluir algum nome, se é que conseguiremos. Se o nosso resultado é este, o autor multicitado conclui: “Isso revela uma triste realidade que, conquanto falemos muito sobre evangelismo, muitas vezes, nos contentamos em apenas comentários vagos e sugestões genéricas, em vez de proclamar de forma estratégica e apaixonada”.

A partir do já colocado, devemos entender o que é realmente proclamar o evangelho. Ou, numa pergunta: quais as verdades que não posso omitir - e o que não devo incluir - se desejo fazer o que podemos chamar de apresentação fiel e completa do evangelho?

Considerando negativamente, observemos que evangelizar NÃO É: primeiro, convidar as pessoas a estarem conosco no culto. Embora possamos prestar um bom serviço às pessoas ao envidarmos esforços para trazê-las às reuniões da igreja, e em muitos casos isso redunde na salvação delas, isso ainda NÃO É evangelizar.

Em segundo lugar, evangelizar NÃO É dizer às pessoas que se elas se tornarem cristãs evangélicas, em tudo ficarão muito bem, visto que Deus irá pôr um ponto final em seus problemas. Parece ter sido exatamente este o engano 104


daquele coração que nosso Senhor interpretou em termos de um “solo rochoso”, sem profundidade (Mt 13:5). Esse coração do tipo “solo rochoso” “é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza” (Mt 13:20, 21). Notemos a importante expressão “por causa da palavra”! A palavra que foi aceita “logo, com alegria” é precisamente a causa da “angústia” e da “perseguição”.

E, isso, o coração leviano - que assume um custo que não calculou e que abraça o que não compreendeu -, não pode aceitar. Ele imaginou que tudo seria apenas um grande mar de rosas! Destarte, se a nossa proclamação for que tudo dará certo na vida das pessoas, tanto estaremos as enganando com uma falsa mensagem quanto atraindo esse tipo de coração carnal para o seio da igreja. Terceiro, evangelizar também NÃO É dizer às pessoas que se elas se converterem estarão sempre psicológica e emocionalmente bem. Uma mensagem com esse teor ignora que vida cristã envolve luta interior contra os vícios da velha natureza (Gl 5:17) e que não há proclamação fiel do evangelho sem séria confrontação de pecado (Jo 4:16-18). Mark Dever observou que “algumas pessoas parecem imaginar que o cristianismo é essencialmente uma sessão de terapia religiosa, na qual nos assentamos e procuramos ajudar uns aos outros a nos sentirmos melhor a respeito de nós mesmos. Os bancos são divãs, o pregador faz perguntas e o texto a ser exposto é o próprio ego do ouvinte”.

Nada mais enganoso! Como veremos adiante, evangelizar também consiste na transmissão de verdades desagradáveis aos ouvintes, tais como que o homem é depravado, que não pode fazer nada por si mesmo e que Deus está irado com a sua impiedade. O evangelho sempre há de gerar tristeza - para a morte ou para a vida (Mc 10:22; II Co 7:10; cf. II Co 2:14-17).

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Em quarto lugar, devemos acrescentar que evangelizar NÃO É chamar as pessoas a uma reforma moral. A condição do homem é tal que ele nada tem, em tudo o que é, que possua alguma utilidade espiritual e que possa ser aproveitado (Rm 3:9-18). Muito ao contrário, o evangelho é um chamado ao abandono da justiça própria, à descrença em si, e produz nada menos que novas criaturas (Ef 2:10; II Co 5:17).

O que o evangelho exige é exatamente o que produz - o completo abandono da velha vida, e não uma reforma suave nos escombros imprestáveis da humanidade caída.

Finalmente, evangelizar NÃO É dizer às pessoas que Deus tenciona salvá-las, como se o evangelho contivesse o potencial que será acionado a depender da resposta delas. Colocar a salvação das pessoas nas mãos delas é pior que exigir que uma formiga erga um elefante. Mark Dever lembra que a morte salvadora de Cristo é retratada no Novo Testamento através das “figuras” de um “sacrifício”, de uma “redenção”, de uma “reconciliação”, de uma “justificação legal”, de uma “vitória militar” e de uma “propiciação”, para concluir o seguinte: “Nessa linguagem de figuras do Novo Testamento nada se refere a algo que seja meramente potencial, uma possibilidade ou uma opção.

Pelo contrário, cada figura se refere a algo que cumpre realmente a sua finalidade ou propósito. Por exemplo, como poderíamos dizer que Deus e pecadores são reconciliados se esses ‘pecadores reconciliados’ fossem lançados no inferno? Que tipo de propiciação existiria se a ira de Deus não foi mitigada? Que tipo de redenção haveria se os reféns não foram libertados?” Mark Dever arremata seu raciocínio: “O principal ensino de todas essas figuras é que o benefício tencionado não somente se tornou possível, mas também garantido, não pelo simples ministério de ensino de Cristo, e sim por intermédio de sua morte e sua ressurreição”.

Portanto, dizer às pessoas que Deus as ama e tem um plano maravilhoso para elas e que deseja salvá-las, mas não consegue sem a ajuda delas, não condiz

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com a salvação já consumada, com a penalidade já paga, na morte de Jesus Cristo, nosso Senhor. 65. “Na comunhão dos santos”: A missão da Igreja ao mundo – o verdadeiro evangelho e seu anúncio. Havendo observado atentamente “o que NÃO É evangelizar”, voltemo-nos para as verdades essenciais que não podem faltar em uma evangelização que se pretende completa e fiel. Antes, porém, de as colocarmos em proposições, anoto o que chamaria de uma breve história de toda

a

Bíblia

para,

dela,

extrairmos

os

pontos

fundamentais

que

apresentaremos em nossa evangelização. Se não, vejamos.

Deus criou os nossos primeiros pais perfeitos em retidão e dotados de justiça positiva, totalmente capazes de obedecê-lO em tudo (Ef 4:24; Cl 3:10). Adão, o primeiro humano, foi colocado numa posição singular de representante de toda a raça humana, em um pacto (Os 6:7) que ficou conhecido como Pacto das Obras. Se obedecesse ao mandado do Criador, sua fidelidade implicaria em vida eterna e impossibilidade de pecar e morrer, condição que seria tanto dele quanto dos seus descendentes-representados.

Entretanto, ele desobedeceu (Gn 2:16, 17; 3:1-6) e, em consequência, o pecado e a morte passaram a dominá-lo, tanto quanto sobrevieram à raça humana inteira. Eis a razão porque não há quem não peque (I Rs 8:46; Ec 7:20; Pv 20:9; Rm 3:23) e porque a morte certa (como acima observamos) passou a todos da espécie humana (Rm 5:12). Caídos, todos os homens e todas as mulheres estão em situação de rebeldia contra o Criador e incapacitados de agradarem-nO e de observarem fielmente qualquer ponto da Sua Lei (Rm 3:9-18; 8:7,8), e isso desde a concepção (Sl 51:5; 58:3).

Em consequência, o Criador poderia ter desprezado para sempre toda a humanidade e não ter provido nenhum meio de salvação. Caso tivesse feito isso, todos deveríamos louvá-lO por Sua justiça e santidade durante toda a eternidade, mesmo em meio a tormentos indescritíveis. Entretanto, sendo Ele, além de justo e santo, misericordioso e cheio de graça, enviou Seu Filho eterno, Jesus Cristo, para pagar na morte de cruz as penalidades merecidas 107


pelos pecados e satisfazer a Sua justiça como Representante-Substituto de todos quantos nEle creram, creem e vierem a crer (Mt 1:21; Jo 3:16).

Assim, em Adão - o primeiro homem e representante de todos os homens -, todos morrem, herdam a CORRUPÇÃO da natureza e recebem o veredicto de CULPADOS perante o Tribunal de Deus. Em Cristo, por sua vez, todos os que nEle creem são perdoados dos seus pecados e recebem a sentença de ABSOLVIDOS ou JUSTIFICADOS (Gl 2:16). O apóstolo Paulo descreve a similaridade e o contraste entre Cristo e Adão em I Co 15:21, 22 e Rm 5:12-21.

Pois bem, Cristo já veio como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Viveu uma vida impecável, cumprindo a Lei de Deus em cada pormenor (Hb 4:15; I Jo 3:5). Ao final de Sua jornada terrena, morreu numa cruz destinada a malfeitores desordeiros. Suas últimas palavras foram: “Está consumado” (Jo 19:30). Com isso, Ele declarou que havia completado Sua obra, pago a penalidade dos pecados e conquistado o favor divino àqueles que mereciam justamente a morte que Ele experimentou. Todos estes fatos foram atestados por Deus o Pai por meio da ressurreição de Jesus.

Na ressurreição, Deus demonstrou que aceitou o sacrifício de nosso Senhor como uma oferta pelo pecado e testemunhou que Ele é o eterno Filho de Deus (Rm 1:4; 4:25; At 2:22-32).

Com a obra salvadora concluída, o próprio Cristo ordenou aos Seus discípulos que espalhassem o Evangelho (Mt 28:18-20; Mc 16:15; Lc 24:44-49; At 1:8) que quer dizer boas novas -, a mensagem divina de que Deus está oferecendo o perdão a todo aquele que se arrepende e confessa o seu pecado e crê que a obra de Cristo é suficiente para restaurar o pecador ao favor divino. Portanto, arrependimento e fé são as únicas respostas adequadas a serem dadas a Deus, após ouvirmos a Palavra que Ele mandou proclamar a toda a criatura debaixo do céu.

Tem mais uma coisa. Embora as únicas reações requeridas por Deus sejam arrependimento e fé no Evangelho, as implicações de tal decisão são 108


profundas e definitivas e exigem que se negue a si mesmo todos os dias e que se lute incessantemente para fazer a vontade de Deus (Lc 9:23-25). E, já posso assegurar, isso não será fácil! Vida cristã é uma verdadeira e contínua batalha renhida (Gl 5:17; Rm 17:13-24). Seguir a Jesus exige o mais radical dos compromissos que alguém pode assumir nesta terra. Ele não aceitará um amor e uma dedicação iguais ou menores aos que concedemos a quaisquer outras pessoas ou coisas (Lc 14:25-33).

Entretanto, Jesus Cristo garante àqueles que se arrependem e nEle creem salvadoramente que lhes livrará do maior de todos os males merecidos – os sofrimentos infindáveis do inferno e o afastamento eterno da presença graciosa de Deus (Rm 5:8-11; I Ts 1:10) -, e lhes dará o maior de todos os bens imerecidos: a vida eterna na presença paternal de Deus (Ap 7:14-17; 21:1-4; 21:27-22:5), com todos os gozos que Ele tem preparado para aqueles que O amam!

Uma vez de posse de uma breve história de toda a Bíblia, agora estamos prontos a destacar os pontos cardeais que não podem faltar em nossa apresentação do Evangelho. Primeiro, devemos dizer às pessoas que Deus nos fez à Sua imagem e semelhança, para O conhecermos e gozá-lO para sempre (Gn 1:26, 27), mas nós pecamos e nos separamos dEle.

Portanto, a primeira verdade a ser comunicada é a presença e a malignidade do pecado. Devemos dizer que a nossa atual condição é tal que nada do que fazemos agrada a Deus (Rm 8:6-8), que somos incapazes de cumprir fielmente qualquer ponto de Sua Lei (Tg 2:10; 3:2) e que temos pecado contra ela por palavras, atos e pensamentos (Mt 5:22, 28), além dos tantos pecados cometidos por omissão (Tg 4:17), de modo que é impossível ser salvo pelas obras, por méritos e justiça próprios (Ef 2:8, 9; Gl 2:16; 3:11). Como resultado do que somos por natureza e do que praticamos, somos incapazes de mudar a nossa deplorável situação (Jo 6:44; 15:4, 5; Rm 7:18, 19; 8:7, 8) e o que há de melhor em nós merece nada menos que a punição eterna (Is 64:6; Rm 6:23; Ef 2:1-3; Tg 1:15).

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Quando observamos as abordagens pessoais do Senhor Jesus, não encontramos uma única ocasião em que o pecado não tenha sido abertamente confrontado. A vida conjugal irregular da mulher samaritana foi trazida a lume (Jo 4:16-18).

A Nicodemos, Jesus disse que sua condição era tal que nada menos que um renascimento espiritual era necessário (Jo 3:3-7). O apego às riquezas do jovem rico foi desmascarado (Mc 10:17-22). Lucas não nos comunica o teor da conversa que Jesus teve com Zaqueu, mas não é difícil deduzir pelo modo como este expressou seu arrependimento (Lc 19:8), quando somente então nosso Senhor afirmou sua salvação (Lc 19:9, 10). Quem não compreender a situação desesperadora em que se encontra não verá a necessidade de arrependimento (Mc 2:17), sequer do Salvador, tampouco apreciará o amor e a graça salvadora de Deus.

Segundo, devemos falar às pessoas francamente a respeito da santidade de Deus. Devemos enfatizar que o Deus três vezes santo (Is 6:3) exige perfeita santidade das pessoas, para que estejam em Sua presença (Lv 11:44,45; I Sm 2:2; Hb 1:13). “Quem poderia estar perante o Senhor, este Deus santo?” (I Sm 6:20). Porque o Deus santo é também justo (Gn 18:25; Jó 34:10; Jr 11:20), Ele não poderá perdoar a iniquidade sem puni-la, visto que isso equivaleria à injustiça de se inocentar o culpado, o que Ele jamais poderá fazer (Ex 34:7; Na 1:3; Mq 6:11).

É somente quando somos francos na apresentação da pecaminosidade humana e da santidade divina que podemos apresentar com clareza a grande tensão das Escrituras, para a qual somente o Evangelho tem a resposta, qual seja: Como pode um pecador ser aceito e recebido no favor do Deus santo e justo? Noutras palavras, como, sendo quem somos – pecadores iníquos -, podemos ingressar à presença paterna e bondosa de Deus, sendo Ele quem é – santo e justo? Eis o grande impasse da Bíblia, que somente Deus poderia, se desejasse, ultrapassá-lo. A princípio, o que deve ficar claro nesse ponto de nossa evangelização é que a salvação de pecadores é uma impossibilidade para os próprios pecadores, sendo possível somente a Deus (Mc 10:23-27). 110


Terceiro, devemos comunicar às pessoas que Jesus Cristo é, da parte de Deus, a única solução divina para o impasse acima refletido (Jo 14:6; I Tm 2:5; At 4:12). É somente por meio de Cristo - da Sua vida, morte e ressurreição -, que Deus perdoa pecadores, os justifica e os recebe em Seu favor.

Observemos que nesse grande projeto da salvação, Deus o Pai e Cristo não estão separados, como se Deus o Pai fosse a pessoa divina indisposta a salvar que precisava ser convencida pelo Cristo bondoso. Em hipótese alguma! Cristo na cruz é a manifestação do amor de Deus (Jo 3:16; Rm 5:8). “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo...” (II Co 5:18, 19a). Assim, a salvação não é Cristo contra Deus, mas “Deus em Cristo”.

Mas, o nosso ponto é: Como Deus nos salvou em Cristo? Compreendamos que como a dívida era humana, somente um ser que fosse humano poderia validamente pagá-la. Por outro lado, como o credor era Deus, somente um ser divino poderia compensar a Si mesmo eficazmente. Destarte, somente um Ser que fosse ao mesmo tempo divino e humano, perfeitamente Deus e perfeitamente homem, poderia efetuar plena quitação da dívida. Um ser que fosse somente Deus não poderia quitar a dívida humana; um ser que fosse somente homem não poderia satisfazer a Deus; um ser que fosse um misto de Deus e homem, por não ser verdadeiro Deus nem verdadeiro homem, tampouco estaria qualificado a obter-nos a salvação. Assim, o eterno Filho de Deus, sem desfazer-Se de Sua verdadeira divindade, tornou-Se verdadeiro homem na encarnação (Jo 1:1-3, 14), viveu de modo perfeito, cumprindo toda a Lei de Deus e, após uma vida inteiramente obediente ao Pai, tomou sobre Si a punição devida aos nossos pecados e a recebeu na cruz do Calvário (Is 53; II Co 5:21; I Pe 3:18). Por ser Cristo verdadeiro homem, o preço pago por Ele na cruz foi adequado, válido, visto que a dívida era humana (II Tm 2:5). Por ser Cristo verdadeiro Deus, o preço pago por Ele foi suficiente, eficaz, para quitar a dívida de pecadores (Cl 2:14). Finalmente, Deus o Pai demonstrou que aceitou

111


o sacrifício de Cristo como completo pagamento pelos pecados do Seu povo quando O ressuscitou dentre os mortos (Rm 4:25; I Co 15:14-20).

Em quarto lugar, devemos ser claros quanto ao que Deus exige dos pecadores para lhes conceder o perdão e a justificação adquiridos na vida, morte e ressurreição do Senhor Jesus: arrependimento e fé (Mc 1:15; Jo 3:36; At 2:38; 3:19; 17:30; 26:20; I Jo 5:13). Percebamos que não há na Escritura proclamação evangélica sem que fique claro ao pecador que Deus exige que ele se arrependa e creia no Evangelho. Arrependimento é um completo abandono de tudo quanto o homem faz e é – o dar as costas para a velha vida; fé, o abandono de todas as crenças para a confiança somente na suficiência da pessoa e obra de Jesus Cristo – o dar as costas para a velha confiança. Conforme ensinou John MacArthur Jr., “não é apenas uma ‘decisão’ de confiar em Cristo para a vida eterna, mas um abandono total de tudo mais em que confiávamos, voltando-nos totalmente para Jesus Cristo como Senhor e Salvador”. A maneira como o pecador confessa que se arrependeu e creu no Evangelho é a través do batismo.

Nos dias apostólicos, alguém que se dizia cristão submetia-se imediatamente ao batismo. Era seu primeiro ato de obediência, visto que o batismo é um mandamento de Cristo (Mt 28:19, 20). O batismo estava tão ligado ao arrependimento e ao dom do Espírito (At 2:38), à oferta de perdão (At 22:16), e, enfim, à salvação (Mc 16:16), que, mesmo sem ser essencial a esta, está associado umbilicalmente à fé (At 2:38, 41; 8:12, 13, 35, 36; 10:44-48; 16:14, 15, 32, 33; 18:8; 19:5), visto que “são apenas os aspectos externo e interno do mesmo fenômeno” (James Denney, citado por Ralph Martin). Portanto, “os homens ouvem a mensagem de Cristo, exercem fé nele e depois confessam sua crença enquanto se submetem ao batismo” (Ralph Martin).

Finalmente, devemos dizer a todas as pessoas que evangelizamos que há um preço a ser pago por aqueles que creem em Jesus. Devemos ser honestos o suficiente para dizermos às pessoas que a salvação é gratuita, mas 112


requererá nada menos que a renúncia total da vida (Lc 9:23), e que seguir a Jesus é realmente a coisa mais fascinante desta existência, mas que nos custará caro. A equação “custo-gratuidade” deve ser cuidadosamente explanada, para que não preguemos salvação pelas obras, por um lado, nem um evangelho barateado, por outro.

A salvação é somente ela graça, mediante a fé, mas, facilidades não são garantidas (Lc 9:57, 58). Pelo contrário, todos quantos se associam ao Senhor padecem sob o ódio que o mundo sente por Ele (Mt 5:9-12; 10:24, 25; Jo 15:18, 19). Ademais, o Senhor quer de nós um completo dar as costas ao mundo, com seus pecados e valores, além de muitas vezes requerer-nos o abandono da família, dos amigos, e mesmo que percamos a liberdade (Mc 10:28; Lc 14:26-33). Assim, se não fizermos as pessoas refletirem seriamente na equação “custogratuidade” da salvação, não estaremos contando a história inteira. Ponderando sobre a cruz que deve ser tomada pelos cristãos (Lc 9:23), MacArthur asseverou: “A cruz não apenas leva ao fim a vida de Cristo, ela acaba com a vida, a primeira vida, de todo verdadeiro seguidor de Cristo. Destrói o padrão antigo, o padrão de Adão, na vida do crente, e leva-a a seu final. Então, o Deus que ressuscitou Cristo da morte, ergue o crente e começa uma nova vida. Isto, e nada menos que isto, é o verdadeiro cristianismo”. 66. “Na comunhão dos santos”: o governo da igreja. Já mencionamos alhures que a Igreja é o corpo de Cristo (Ef 5:23; Cl 1:18). Isso significa que de Cristo a Igreja recebe crescimento e direção, que Cristo é o líder soberano do Seu corpo, da Igreja. Pois bem, doravante, trataremos do modo como Cristo exerce Suas prerrogativas de líder soberano sobre a Sua Igreja, o que nos conduz aos tormentosos temas das formas de governo e dos ofícios eclesiásticos. Nesse passo, daremos especial atenção ao governo da Igreja e, em seguida, teceremos breves comentários acerca dos seus ofícios.

Com o advento da Reforma, no século XVI, foi redescoberta a doutrina neotestamentária do sacerdócio universal dos crentes. Na lição de Ferreira e Myatt, o Novo Testamento nunca usa a palavra “hierateuma” (sacerdócio) para 113


o ministro do evangelho, “mas toda a igreja é descrita como uma comunidade sacerdotal, um ‘sacerdócio santo’ e um ‘sacerdócio real’, do qual todos os filhos de Deus partilham igualmente como sacerdotes (I Pe 2:5, 9; Ap 1:6; 5:10; 20:6)”. Por outro lado, voltamos a asseverar que Cristo é o soberano único com direitos de comando sobre a Sua Igreja. É de Cristo exclusivamente, como cabeça da Igreja, a prerrogativa de dirigir o Seu corpo diretamente e sobre cada parte dele.

Ora, se cada membro do corpo de Cristo é um verdadeiro sacerdote e Cristo detém exclusivamente as prerrogativas de soberano sobre a Sua Igreja, seguese lógica e necessariamente que cada igreja local é uma espécie de pequena república democrática, dirigida por Cristo, autônoma em relação às demais, mas fraternalmente ligada a elas, e separada do Estado.

Essa ideia, que se convencionou chamar na época da Reforma de “congregacionalismo”, pode ser seguramente encontrada nas páginas do Novo Testamento e redunda, como afirmamos, de uma ilação necessária de verdades claramente estampadas no ensino apostólico, e, segundo penso, só não foi maciçamente acatada pelos reformadores pelo contexto político que viviam, pela proximidade destes com a idade média e por certo pragmatismo no tocante ao tema.

Voltemo-nos, pois, para analisarmos o congregacionalismo, tal qual ensinado por Jesus e Seus apóstolos. Primeiro, verificamos que no Novo testamento não há nenhuma organização eclesiástica além das igrejas locais, que exercesse ingerência sobre elas. Não há nada semelhante a órgãos denominacionais, sobrepostos hierarquicamente às igrejas locais e impondo-lhes líderes e decisões.

Quando o Cristo glorificado dirigiu-Se às igrejas da Ásia menor, não o fez através de uma espécie de diocese ou bispado, nem escreveu a um tipo de “igreja provincial” ou “distrital” para finalmente alcançá-las. Antes, fê-lo anunciando Sua vontade a cada uma delas, porque é dEle a prerrogativa de soberania sobre cada igreja local (Ap 2, 3). 114


Em segundo lugar, não é possível encontrar no Novo Testamento nenhum tipo de controle de uma igreja sobre outras. A “igreja-mãe” de Jerusalém não emitia um comando que devesse ser obedecido por Antioquia, por exemplo. O que moveu os cristãos de Antioquia a enviarem uma oferta aos pobres da igreja de Jerusalém foi uma compreensão cristã dos crentes nativos extraída da profecia de Ágabo (At 11:27-30), e não uma ordem de uma igreja considerada hierarquicamente superior, uma espécie de igreja-central.

De modo semelhante, Antioquia não exercia nenhum tipo de autoridade sobre as igrejas plantadas por Paulo e Barnabé (At 13ss), tampouco a igreja em Éfeso o fazia sobre as “igrejas-filhas” da Ásia menor (At 19:10; Ap 2, 3).

Em nosso terceiro ponto, vale destacar, como consequência necessária do já anotado, que cada igreja local no Novo Testamento é autônoma e soberana em suas decisões.

Trata-se de uma conclusão necessária do fato de que Cristo exerce Sua soberania diretamente sobre cada igreja. Todavia, vale observar com Porto Filho que a soberania de Cristo é obviamente diferente da soberania da igreja. Para este pastor congregacional já multicitado, a de Cristo “é uma soberania de poder para dirigir os que são Seus, sem que alguma coisa fora dEle e dos Seus possa limitar esse poder; a da igreja é uma soberania de obediente consciência ao que reconhece e recebe como vontade de Cristo, sem que nenhum constrangimento exterior de qualquer grupo ou circunstância limite essa liberdade de obediência (At 4:19; 5:29)”. Perceba-se, portanto, que a soberania da igreja local é para compreender, por si mesma, a vontade do Soberano que lhe dirige. Em quarto lugar, observamos que as decisões “soberanas” de cada igreja local, no Novo estamento, eram percebidas e tomadas pelos crentes, na igualdade de todos. Assim, pode-se verificar que cada congregação, com a participação democrática, elegia seus líderes (At 1:15-26; 6:1-6; 14:23), disciplinava os insubordinados e readmitia os penitentes (I Co 5:1-5; II Co 2:5-11; Mt 18:17; 115


Rm 16:17; II Ts 3:6), enviava missionários (At 13:1-3; 14:27; 15:40) e decidia questões pontuais, tais como envio de ofertas (At 11:29; Fp 4:14-20). As decisões não emanavam de fora, nem mesmo de alguns poucos líderes da própria igreja.

Em quinto lugar, cada igreja local é parte da Igreja universal de Cristo, independentemente de quaisquer vínculos institucionais, mas tão somente por estar unida a Cristo e, por isso, ligada às demais coirmãs que com ela confessam o genuíno evangelho do Senhor. Entretanto, é mais que natural que igrejas locais independentes e autônomas, mas não isoladas, formem “agrupamentos denominacionais” para efeito de fraternidade e comunhão de esforços pela causa de Cristo, cabendo observar tão somente os seguintes aspectos: primeiro, uma denominação congregacionalista não é uma “superigreja”, mas uma união, associação, confederação ou convenção de igrejas. Por isso, Porto Filho adverte que uma denominação congregacional “não batiza, não recebe, não disciplina, não exclui membros de igrejas; não dirige assembleias de igrejas locais nem administra seus bens; não ordena ministros por seu próprio poder para as igrejas, mas a pedido e em colaboração com elas, visto o ministério necessitar de credenciais para todas; não ordena nem instala pastores, presbíteros e diáconos”.

Segundo, uma igreja local permanece associada a uma denominação congregacionalista

espontaneamente,

com

base

no

“companheirismo

responsável, cooperativo e conciliador” e não por causa de “sujeição impositiva”.

O que causa tristeza e estranheza frente às tantas saídas de igrejas de sua denominação de origem são os motivos muitas vezes questionáveis subjacentes dos líderes que as promovem, e não o fato de um desligamento em si mesmo.

Finalmente, acrescentamos que não é possível perceber na igreja primitiva a mínima possibilidade de uma subordinação ao Estado em questões 116


eclesiásticas e espirituais. A ideia de imposição de um monarca sobre as igrejas cristãs foi terminantemente fulminada por Cristo, no debate que envolveu a questão dos impostos: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21). O padrão apostólico estabelecido foi que em questões temporais os cristãos devem obediência aos magistrados civis do Estado em que fazem parte (Rm 13:1-7; I Pe 2:13-17), ao passo que em questões espirituais podem submeterse somente a Cristo (At 4:19; 5:40-42). 67. “Na comunhão dos santos”: os ofícios da igreja. Os ofícios da Igreja de Cristo podem ser classificados em ofícios fundacionais e, portanto, de caráter temporal, e ofícios permanentes (Ef 4:11). Os primeiros são também chamados “gerais” e “extraordinários”; os últimos, “locais” e “ordinários”. Não custa relembrar, entretanto, que há constante e acalorado debate na igreja evangélica sobre o tema, cujas questões pairam em torno de quais são os ofícios temporários e quais os permanentes e mesmo qual a natureza exata de cada um deles. Para o nosso propósito, as seguintes observações são bastantes:

Primeiro, os apóstolos, no sentido mais estrito do termo, foram os doze (incluindo Matias, o substituto de Judas) e Paulo. Foram homens escolhidos por Cristo para conhecer e propagar o evangelho. Suas qualificações incluíam os fatos de terem sido diretamente comissionados por Cristo (Mc 3:14; Gl 1:1), de terem testemunhado a vida de Cristo, sobretudo a Sua ressurreição (At 1:21, 22; I Co 9:1), de haverem ensinado a palavra que recebiam diretamente de Deus, conscientes desse fato (I Co 2:13; 7:12; 14:37), e por terem realizado um ministério corroborado por sinais miraculosos (II Co 12:12). Portanto, neste sentido, não há mais apóstolos em nossos dias. A “sucessão apostólica” está na observância daquilo que foi conservado no Novo Testamento.

117


Segundo, os profetas do Novo Testamento eram homens e mulheres (At 21:9) capacitados pelo Espírito para aplicarem as Escrituras carismaticamente em um dado momento (I Co 14:3; At 15:32) e para, secundariamente, predizerem certos eventos (At 11:28; 21:10, 11).

Há aqueles que entendem que os profetas eram parte do fundamento da Igreja (Ef 2:20) e, por isso, passaram, e que seu ministério encontrava lugar somente enquanto a Igreja não tinha ainda as Escrituras completas.

Noutra perspectiva, há compreensão no sentido de ainda ser possível a ocorrência de “pronunciamentos proféticos”, embora com valor secundário e aplicação local (para uma congregação) ou individual (para indivíduos). Após mencionar sua “séria hesitação” ante a tais profecias, John Stott adverte as igrejas que as aceitam no sentido de que os supostos ditos proféticos sejam cuidadosamente testados “pelas Escrituras e pelo caráter conhecido de quem fala” (cf. I Co 14:29, 37). É mesmo possível que haja um aspecto remanescente da profecia neotestamentária, sem que isso implique em uma revelação em pé de igualdade com as Escrituras, tampouco em rompimento com o Sola Scriptura da Reforma.

Terceiro, Paulo refere-se em Ef 4:11 aos evangelistas (At 21:8; II Tm 4:5), sobre os quais repousam dúvidas sobre sua exata natureza. Para uns, os evangelistas eram os delegados dos apóstolos, enviados por estes em missões especiais, tais como Timóteo e Tito; para outros, os portadores de um dom que capacita homens e mulheres à pregação evangelística mais eficaz. Se esse é o caso, os evangelistas exercem seu ministério onde Cristo não é conhecido e costumam ser mais usados por Deus a levar pessoas à fé salvadora do que a maioria dos cristãos sem o mesmo dom.

Finalmente, os ofícios da igreja local (ofícios permanentes e ordinários) são de dois tipos: os presbíteros (ou pastores, ou bispos) e os diáconos (Fp 1:1). Quanto aos primeiros, devemos pontuar de plano que os termos “presbíteros” (“anciãos”), ”bispos” (“supervisores”) e “pastores” (os que apascentam) designam a mesma função e são atribuídos às mesmas pessoas. Às vezes, a 118


palavra “bispos” é usada sozinha para referir-se ao ofício (Fp 1:1); noutras, a palavra usada é “presbíteros” (Tg 5:14).

Noutras tantas, uma palavra é trocada por outra quando está em vista o mesmo oficial (Tt 1:5-7; At 20:17-28). “As funções públicas de religião eram confiadas somente aos ministros estabelecidos da Igreja, bispos e presbíteros; dois epítetos que, quando surgiram, parecem ter distinguido o mesmo ofício e a mesma ordem de pessoas. O nome presbítero se referia à idade ou, mais ainda, à seriedade e à sabedoria deles. O título de bispo denotava a supervisão deles quanto à fé e à forma como viviam os cristãos que estavam sob seu cuidado pastoral” (Edward Gibbon, citado por Thomas Witherow).

Embora cada igreja local tivesse uma pluralidade de presbíteros (At 14:23; 20:17; Fp 1:1), como no Novo Testamento o sacerdócio é de todos os crentes, os ofícios e ministros ordenados (cf. I Tm 4:14; 5:22; II Tm 1:6) não são uma espécie

de

casta

sacerdotal,

tampouco

são

tidos

como

superiores

hierarquicamente em relação ao povo. O Novo Testamento não possui uma separação do tipo “povo comum e clero”.

Os ministros, vocacionados por Deus (At 20:28) e eleitos pela igreja (At 14:23), são líderes conforme o modelo ensinado pelo Senhor Jesus (Mt 23:8-12; Lc 22:24-27), lideram pelo exemplo e não pelo exercício de autoridade arbitrária (I Pe 5:1-4) e sua responsabilidade não é assumir o ministério que pertence a toda a igreja (I Pe 4:10), mas, pela oração e ministério da Palavra (At 6:4), capacitar os crentes para que desempenhem seu serviço (Ef 4:11, 12).

Dos pastores exige-se vida irrepreensível, que gozem de reputação ilibada no lar, na igreja e em todos os negócios da vida, que sejam firmes na doutrina e cristãos maduros no caráter e na conduta (I Tm 3:1-7; Tt 1:5-9). Devem eles labutar incessantemente no ministério da Palavra e na oração (Cl 1:7; 4:12) pelo progresso da igreja de Cristo no mundo, nada fazendo por motivos egoísticos (I Pe 5:2).

119


A seu turno, os crentes devem tratá-los respeitosa e cordialmente (I Ts 5:12, 13), ouvi-los e imitá-los atentamente (Hb 13:7-9), sustentá-los liberalmente (Mt 10:10; Gl 6:6; I Co 9:3-11) e reconhecer os que são dignos de receber dobrados honorários (I Tm 5:17). Segundo pensamos, I Tm 5:17 não sugere uma rígida divisão entre “presbíteros regentes” e “presbíteros docentes”. No máximo, o que temos aqui é o vislumbre que nem todos os presbíteros têm igual responsabilidade, motivo pelo qual não seria forçar o texto a distinção usual entre “pastores” e “presbíteros”, desde que aqueles sejam concebidos como presbíteros dos quais se exige mais responsabilidades, e estes, como pastores auxiliares.

É estranha no Novo Testamento a ideia de distinguir uma classe de presbíteros que somente administra de outra que doutrina. Todos os presbíteros têm responsabilidade com o doutrinamento e a supervisão da igreja, embora nem todos, à luz de I Tm 5:17, o tenham na mesma medida. Nesse ponto, vale destacar a dificuldade com a distinção entre “pastores” e “mestres”, ofícios mencionados em Ef 4:11. Uns advogam tratarem-se do mesmo ministério. Por outro lado, para Calvino, “doutrinar é dever de todos os pastores, mas há um dom particular de interpretação da Escritura, para que a sã doutrina seja conservada e um homem possa ser doutor mesmo que não seja apto a pregar”. Ou seja, para o reformador genebrino, todo pastor deve ser um mestre, mas nem todo mestre possui vocação pastoral. Ante a tremenda confusão doutrinária que caracteriza a igreja evangélica brasileira, sentimo-nos obrigados a concordar com John Stott, quando afirma que “a maior necessidade da igreja, hoje, é de mestres”.

O segundo tipo de oficial eleito pela igreja local é o diácono. É provável que os diáconos tenham surgido no episódio da contenda entre as viúvas dos gregos e as judias, no episódio narrado em Atos 6:1-6. Um serviço que até então era realizado pelos apóstolos (At 4:34-37), foi entregue a um grupo de irmãos de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria (At 6:3), qualificações indispensáveis aos diáconos.

120


Embora o substantivo “diakonos” não ocorra no texto, a forma verbal “diakonein” (“servir”) é usada em At 6:2. Posteriormente, Paulo já podia destacar esse oficialato ao escrever aos filipenses (1:1). Enquanto os presbíteros (ou pastores, ou bispos) cuidavam dos deveres e supervisão espirituais da igreja, os diáconos e diaconisas (pelo menos em Rm 16:1, Paulo faz expressa menção à irmã Febe, que é “diakonon” na igreja em Cencreia) concentravam-se nos deveres temporais, auxiliando os presbíteros. Os requisitos exigidos dos diáconos são mencionados em At 6:3 e I Tm 3:8-13. 68. “No perdão dos pecados”. Aportamos, enfim, nas palavras finais do Credo Apostólico: “No perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna”. A sentença sumaria as conquistas da obra salvífica do Redentor, incluindo aquilo que os crentes já gozam no presente estado até a consumação de sua salvação, na eternidade futura. O “perdão de pecados” - sobre o que já falamos alhures, quando discorremos sobre as operações do Espírito na graça especial, sobretudo quando tecemos considerações sobre a justificação pela fé somente – lembra-nos que Deus, através da morte de Jesus Cristo, tanto cancelou nossa dívida, remindo-nos da culpa e da condenação decorrente (Cl 1:14), como restaurou o relacionamento entre Deus e os crentes, operando a reconciliação (II Co 5:19). “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (I Co 15:3). 69. “Na ressurreição do corpo e na vida eterna”. A expressão “ressurreição do corpo” afirma-nos acerca da bendita e segura esperança cristã quanto ao futuro da Igreja de Cristo (Ef 1:18; I Pe 1:3) e leva-nos à consumação da nossa salvação, por ocasião da segunda vinda do Salvador. Porque Cristo ressuscitou, temos mais que uma mera expectativa quando à nossa própria ressurreição. Porque Cristo ressuscitou, eis a convicção cristã: nós também ressuscitaremos (Rm 8:11; I Co 15:20-23). Por isso, cremos na “vida eterna”, não simplesmente no sentido de uma existência continuada, de uma vida interminável, mas de uma vida cuja marca 121


indelével é a comunhão com Deus (Jo 10:10). Morte é separação de Deus; vida é comunhão com Deus. É possível ter vida física sem vida verdadeira. Por outro lado, nem a morte física pode ameaçar a verdadeira vida. As palavras de nosso Senhor esclarecem o ponto: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente” (Jo 11:25, 26). É dizer, porque Cristo é a ressurreição e a vida, a vida verdadeira que temos da parte dEle não chega ao fim nem com a morte. Noutras palavras, a morte não alcança aquele que está em Cristo, quer esteja vivo ou morto fisicamente.

Há um sentido muito real em que a vida verdadeira, a vida eterna, já começou a ser desfrutada pelos crentes aqui e agora. O Espírito de Deus em nós já corresponde a uma antecipação maravilhosa da parte de Deus (Rm 8:23; II Co 1:22; Ef 1:13, 14), por Quem os cristãos já experimentam o gozo eterno. Entretanto, a vida que hoje temos é apenas o início. Nas palavras de Alister McGrath, “a vida eterna iniciou, mas não se completará em nossa vida atual de cristãos. Passar para a vida eterna não é experimentar algo totalmente estranho e desconhecido. Antes, é ampliar e aprofundar nossa experiência com a presença e o amor de Deus”. Somente após termos atravessado o rio da morte é que entraremos em uma vida supremamente mais rica (Fp 1:21; II Co 5:8; Ap 14:13). Eis a razão pela qual a morte não aprisiona mais os cristãos nas garras frias do medo (Hb 2:14, 15).

Todos quantos estamos em Cristo podemos desafiar a morte com o apóstolo Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (I Co 15:55). Como afirma Hoekema: “Nosso oponente mais temível veio a ser para nós o servo que abre as portas para a felicidade celestial. A morte para o cristão, portanto, não é o fim, mas um glorioso novo início”.

Entretanto, a felicidade final e completa dos crentes não se concretizará até que Cristo volte e promova a ressurreição dos corpos. Noutra ocasião, fiz ressaltar que “nem a vida espiritual (no Espírito) que temos hoje, nem as glórias sobremodo superiores que os crentes que partiram já gozam são todo o 122


conjunto

da

bem-aventurança

que

nos

aguarda.

Nós

estaremos

completamente salvos na segunda vinda do Senhor, quando ocorrerá a ressurreição dos corpos dos crentes que já partiram e a transformação dos corpos dos crentes que estiverem vivos nessa bendita ocasião, e recebermos como morada a eterna os novos céus e nova terra”. A ressurreição dos corpos será uma obra proeminentemente realizada pelo Espírito Santo (Rm 8:11) e concederá aos crentes um corpo glorioso, semelhante ao corpo ressurreto do Senhor Jesus (Fp 3:20, 21).

O tratamento mais completo acerca da ressurreição dos corpos é o que encontramos em I Co 15:35-55. Nesse texto, Paulo ensina a absoluta necessidade de corpos adequados para recebermos a herança que nos está reservada (15:50), tanto que os crentes que estiverem mortos terão que ressuscitar em corpo e os crentes que estiverem vivos deverão ser transformados (15:51-55).

Aprendemos igualmente com a passagem que na ressurreição dos corpos haverá continuidades e descontinuidades em relação ao que somos e o que temos hoje. Por um lado, a própria linguagem de uma ressurreição, de uma semente (15:36-38) e de uma semeadura (15:42-44) nos remete à ideia de continuidade, razão pela qual devemos concluir que seremos nós, quem somos hoje, com o que temos, inclusive autoconsciência e memória, que ou ressuscitaremos ou seremos transformados.

Por outro, sabemos também que haverá descontinuidades, a exemplo da cessação de casamentos (Mt 22:30) e, conforme sugere Hoekema, das funções digestivas (I Co 6:13).

Os crentes gozarão o estado eterno, a vida eterna em sua completude, nos novos céus e nova terra (Is 65:17-25; 66:22, 23; II Pe 3:13 e Ap 21:1-22:5), um universo que é a continuação do presente cosmos, mas gloriosa e completamente renovado. A linguagem paulina é no sentido de que a presente criação será “redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8:20, 21). É, portanto, somente na vinda do Senhor, evento 123


que desencadeará a ressurreição dos corpos e a renovação da criação, que os crentes viverão a vida eterna em plenitude, vida com Deus como nunca foi experimentada até então. Verdadeiramente, “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (I Co 2:9). 70. “Amém”. “Amém” é uma transliteração da palavra hebraica “amen”, cuja origem significa “fiel”, “firme”, “digno de confiança”. Nos evangelhos, a palavra foi usada somente por Jesus, com o propósito de ressaltar a autoridade com que ensinava palavras absolutamente confiáveis e obrigatórias. Nas epístolas, “amém” ocorre ao final das orações e doxologias, com o fim de confirmá-las (Rm 11:36; Ef 3:21; Jd 24, 25). O vocábulo era, portanto, parte da liturgia do culto público, pronunciado após as orações e expressões de louvor, razão pela qual toda linguagem empregada deveria ser compreensível (I Co 14:16). O “amém” em nosso Credo revela que ele foi compilado para ser uma afirmação da nossa fé, dada a Deus em resposta à Sua doce e poderosa autorevelação, no contexto do culto público. É uma declaração e uma oração. Tanto professamos nossa crença no Deus Trino quanto rogamos que as verdades que confessamos se tornem em vida. Revelamos, ao declará-lo publicamente, que pertencemos às fileiras das multidões que nos últimos dois milênios o confessaram e o tiveram como uma expressão concisa de sua convicção.

É verdade, porém, que muitos não conhecem o significado das cláusulas que confessam e outros tantos apenas o confessam, mas não vivem vidas dignas da confissão que fazem. Todavia, o Credo nos lembra que é preciso conhecer, adorar e confessar, ensinar, viver e obedecer (II Co 9:13).

Crês tu no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna?

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