Estudos em História da Igreja - A Era da Reforma

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 2 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma

A Reforma Protestante I. A Causa Imediata da Reforma, Lutero e o Avanço do Luteranismo 1. Introdução. Diversos fatores se conjugaram para formar o ambiente no qual floresceu a reforma religiosa do século XVI, dentre eles as transformações nos campos político, social, econômico, intelectual e geográfico. Entretanto, a causa imediata da Reforma Protestante envolveu diretamente as ações corajosas de um monge alemão agostiniano chamado Martinho Lutero, sobre quem nos concentraremos nesse momento de nosso estudo. 2. Martinho Lutero (1483-1546). 2.1) Da formação à experiência da torre. Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na vila de Eisleben, na Saxônia, Alemanha. Seu pai, Hans Luder, era minerador de prata e sua mãe, Margarethe, uma católica fervorosa, embora bastante supersticiosa. Seu pai tudo fez para que Lutero seguisse a carreira jurídica, dando-lhe a melhor educação possível. Sobre a infância do reformador, Justo L. Gonzalez escreveu o seguinte: “Seus pais eram extremamente severos com ele e muitos anos mais tarde ele mesmo contava com amargura alguns dos castigos que lhe eram impostos... Na escola suas primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de como o tinham golpeado por não saber suas lições”. Aos 14 anos, foi enviado para estudar em Mansfeld, e depois em Magdeberg, onde estudou com os Irmãos da Vida Comum. Entre os anos de 1498 a 1501, estudou na escola de Eisenach. Em 1501, já estava na Universidade de Erfurt, onde recebeu grau de bacharel em artes (em 1502) e de mestre em artes (em 1505). Tudo estava como planejado pelo velho Hans. Chegara o momento de ingressar no curso de direito. Mesmo Lutero tinha a intenção de tornar-se advogado. Mas, num certo dia de 1505, durante uma tempestade, ele foi atingido por um raio e, lançado ao chão, clamou por Santa Ana, a padroeira dos mineiros: “Santa Ana, salveme! E me tornarei monge”. Para a completa insatisfação dos pais, Lutero manteve a 2


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promessa e no dia 17 de julho de 1505, com 22 anos, ingressou no convento dos monges agostinianos. Em 1507, Lutero foi ordenado sacerdote na Catedral de Santa Maria e, em 1508, seu superior, Johann von Staupitz, o compeliu a tornar-se doutor em teologia, grau que colou em 1512. Antes, porém, entre os anos de 1510 e 1511, sua ordem o enviou a Roma, ocasião em que ficou impressionado com a luxúria da Igreja Romana. Em 1512, começou a preparar-se para fazer uma série de preleções na faculdade de teologia da Universidade de Wittenberg. Entre 1513 e 1515, deu aulas sobre os Salmos; entre o fim de 1515 e 1517, lecionou sobre Romanos, Gálatas e Hebreus; e, entre 1518 e 1519, sobre os Salmos outra vez. Foi durante essas preleções que o reformador começou a adquirir uma nova compreensão das Escrituras. Escrevendo mais tarde, ele disse: “No transcorrer desses estudos, o papado soltou-se de mim” (citado por Franklin Ferreira). Enquanto monge, Lutero era de uma dedicação quase obcecada. Estava sempre atormentado com a ideia da majestade de Deus e pelo senso de sua pecaminosidade. Às vezes, engajava-se em penitências que extrapolavam os limites suportados pelo corpo, chegando a jejuar três dias e a dormir no inverno sem cobertor. Sobre sua primeira missa, ele disse: “Eu estava completamente estupefato e aterrorizado. Pensava comigo mesmo: ‘Quem sou eu para erguer os olhos e as mãos para a divina majestade? Pois sou pó e cinzas, e cheio de pecado, e estou falando com o Deus vivo, eterno e verdadeiro’”. Anos depois, Lutero falou o seguinte sobre a sua conduta como monge: “Eu obedecia as regras tão rigidamente, que posso afirmar que, se um monge fosse para o céu por sua dedicação, esse monge seria eu. Se tivesse continuado dessa forma por mais tempo, teria me matado com vigílias, orações, leituras e outros trabalhos”. Durante esses anos tentando aplacar a agonia da alma, o confessor de Lutero o orientou que ele amasse a Deus, e um dia ele desabafou: “Eu não amo a Deus! Eu o odeio!” Assim Lutero seguiu até novembro de 1515, quando começou a expor a Epístola de Paulo aos Romanos, aulas que perdurou até setembro de 1516. Foi nesse período que compreendeu a doutrina paulina da justificação pela fé somente, a partir da 3


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leitura de Romanos 1:17: “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘o justo viverá por fé’”. Ele escreveu o seguinte sobre a experiência da torre (como é chamada, por ter ocorrido na torre do Castelo Negro de Wittenberg): “Ansiava muito por compreender a Epístola de Paulo aos Romanos, e nada me impedia o caminho, senão a expressão ‘a justiça de Deus’, porque a entendia como se referindo àquela justiça pela qual Deus é justo e age com justiça quando pune os injustos... Noite e dia eu refletia até que... captei a verdade de que a justiça de Deus é aquela justiça pela qual, mediante a graça e a pura misericórdia, Ele nos justifica pela fé. Daí em diante, senti-me renascer e atravessar os portais abertos do paraíso. Toda a Escritura ganhou novo significado e, ao passo que antes ‘a justiça de Deus’ me enchia de ódio, agora se me tornava indizivelmente bela e me enchia e maior amor. Esta passagem veio a ser para mim uma porta para o céu” (citado por F. F. Bruce).

2.2) Das 95 teses ao rompimento com Roma. Enquanto Lutero descobre a futilidade das obras e a suficiência da fé no sacrifício de Jesus para a salvação, um monge dominicano chamado Johann Tetzel, representando o papa Leão X, começou a vender indulgências em Juterborg, próximo a Wittenberg, cuja parte da arrecadação seria destinada a Roma, à construção da Catedral de São Pedro. A venda de indulgências tanto tinha relação com os interesses do papa, em Roma, como com os poderosos senhores feudais locais. Alberto de Brandeburgo, membro da casa dos Hohenzollern, que já tinha duas sedes episcopais, desejava ocupar também o arcebispado de Mainz. Para tanto, acordou com Leão X no sentido deste lhe conceder o desejo em troca de dez mil ducados, uma soma considerável de dinheiro. Foi para arrecadar esse valor que o papa autorizou Alberto a lançar uma venda em larga escala de indulgências, que, a seu turno, encarregou Tetzel da mercancia. “Logo, a grande basílica que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante” (J. L. Gonzalez). Indulgências eram diplomas que garantiam o pleno perdão de pecados, ou a redução da punição. Enquanto oferecia seu “produto”, Tetzel afirmava: “‘Não vale a pena atormentar-se: podes resgatar seus pecados com dinheiro! Pagando, podes escapar dos sofrimentos do purgatório e aliviar os dos outros!’, e tudo embalado pelo cântico: ‘Na hora em que a moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai’” (Franklin Ferreira); “As indulgências deixam o pecador mais limpo do que quando saiu do

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batismo”; “A cruz do vendedor de indulgências tem tanto poder quanto a cruz de Cristo”... Em resposta àquilo que considerou abusivo, Lutero afixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, com o título Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências. Ele escolheu aquela data propositalmente, pois no dia seguinte se comemoraria a festa de Todos os Santos. Flaklin Ferreira anotou que “O fato de afixar uma tese na porta da igreja não era grande coisa, pois os eruditos naquele tempo faziam isso; mas, com a invenção da imprensa, essas teses foram traduzidas e se espalharam pela Europa, dando início à batalha”. Eis algumas teses de Lutero: 1ª. Tese: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: “Arrependei-vos”, certamente quer que toda a vida dos crentes na terra seja contínuo arrependimento. 2ª. Tese: E esta expressão não pode e não deve ser interpretada como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação, a cargo do ofício dos sacerdotes. (...) 21ª. Tese: Eis porque erram os apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as penas e salvo mediante a indulgência do papa. (...) 27ª. Tese: Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório. 28ª. Tese: Certo é que no momento em que a moeda soa na caixa vem o lucro e o amor ao dinheiro cresce e aumenta; a ajuda, porém, ou a intercessão da Igreja tão só correspondem à vontade e ao agrado de Deus. (...) 62ª. Tese: O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. 63ª. Tese: Este tesouro, porém, é muito desprezado e odiado, porquanto fez com que os primeiros sejam os últimos. 64ª. Tese: Enquanto isso o tesouro das indulgências é sabiamente o mais apreciado, porquanto faz com que os últimos sejam os primeiros. (...) 82ª. Tese: Eis um exemplo: Porque o papa não tira duma só vez todas as almas do purgatório, movido por santíssima caridade e em face da mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto, quando em troca de vil dinheiro para a catedral de São Pedro, livra um sem número de almas, logo por motivo bastante insignificante? (...) 86ª. Tese: Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos, não prefere edificar a Catedral de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro dos fieis pobres?

Lutero atacou a tiara do papa e a barriga dos frades. “Tiara” é símbolo do poder papal. A ganância dos frades, por outro lado, foi sacudida. O machado estava posto à raiz da arvore. Em 15 dias, toda a Alemanha sabia dessas teses. Em quatro semanas, toda a cristandade sabia delas e, nesse período, foram traduzidas para o holandês e para o espanhol. Até em Constantinopla foram vendidas. O papa demorou para reagir. A princípio, acreditou tratar-se de uma briga entre frades, sem maiores sequelas. A vida de Lutero, por outro lado, mudou 5


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radicalmente. De pacato professor de teologia, dá início a uma sequência de debates e “Dietas”. O primeiro debate ocorreu em Heidelberg, em maio de 1518, em sua própria ordem, sem maiores consequências, visto que só compareceram aqueles que aceitavam suas ideias, dentre eles Martin Bucer (1491-1551). O segundo aconteceu em outubro de 1518, na Dieta de Augsburgo. O cardeal Tomás Cajetano era o representante do papa. Foi ele que exigiu que Lutero se retratasse e tentou levá-lo cativo a Roma. Lutero se escondeu e, durante a noite, retornou a Wittenberg. Steven J. Lawson escreve a respeito: “Desde João Huss nenhuma outra pessoa tinha falado tão ousadamente contra a autoridade papal – e Huss fora executado. Lutero saiu de Augsburg temendo por sua vida, e retornou a Wittemberg sob a proteção do príncipe-eleitor Frederico III, da Saxônia”. Foi em 1518 que chegou em Wittenberg para ensinar grego e hebraico o jovem Filipe Melanchton (1497-1560), com então 21 anos. Ele nasceu em Bretton, Baden, em 1947. Seu nome era Philipp Schwarzert (o sobrenome significa “terra negra”), mas, por muito amar a língua grega, helenizou seu sobrenome, adotando-o como “Melanchton”, “terra negra” em grego. Melanchton tornou-se muito amigo de Lutero e útil ao reformador pelo espírito moderado e pelo domínio das línguas originais da Bíblia. Foi ele o autor e compilador da Confissão de Fé de Augsburgo, de 1530, sobre a qual ainda teceremos breves comentários. A disputa seguinte ocorreu em Leipzig, em junho de 1519. Aqui, Lutero não debate, mas suas ideias são debatidas. Johann Eck representou o papa e Carltadt, Lutero. Nessa disputa, Lutero negou a infalibilidade dos concílios e rejeitou a autoridade do papa. Eck acusou Lutero de “hussita” e o declarou inimigo do papa. Em 1520, Lutero escreveu três importantes panfletos: Discurso à Nobreza Cristã da Nação Alemã, Do Cativeiro Babilônico da Igreja e Sobre a Liberdade Cristã. Bruce L. Shelley afirma que essa última obra (Sobre a Liberdade Cristã), “talvez seja a melhor apresentação de suas principais ideias. Ele não desencorajava boas obras, mas afirmava que a liberdade espiritual interior que vem da certeza encontrada na fé que leva à realização de boas obras – por todos os verdadeiros cristãos. ‘Boas obras não tornam o homem bom’, dizia, ‘mas o homem bom realiza boas obras’”.

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Em junho de 1520, o papa Leão X publicou a bula Exsurge Domine, que condenava Lutero e lhe dava 60 dias para retratar-se de suas ideias, sob pena de excomunhão. Lutero recebeu a bula em 10 de outubro e, em resposta, em 10 de dezembro de 1520, queimou a bula papal, o direito canônico e alguns livros papistas. Aqui, ele rompe definitivamente com o papado. No início de 1521, Lutero foi convocado a Worms, para comparecer perante o imperador Carlos V e os príncipes da Alemanha, para prestar contas de seu ensino. Com a garantia de proteção de Frederico e outros príncipes germânicos, Lutero compareceu. Em Worms, depois de dois dias de debates, ele foi instado a retratar-se e a retornar à comunhão com Roma. Por sentir a gravidade do momento, o reformador pediu um tempo e, no dia seguinte, ele respondeu: “Já que me pede uma resposta simples, darei uma que não deixa margem a dúvidas. A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura Sagrada ou com razões decisivas, não posso retratar-me. Pois não creio nem na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que frequentemente se têm equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus. Não posso e não quero revogar, porque é perigoso, e não é certo agir contra sua própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.”

Assim, na noite de 18 de maio de 1521, Lutero foi excomungado. O imperador Carlos V ficou impressionado com sua teimosia e o declarou proscrito, um fora-da-lei. Lutero tinha 21 dias para retornar à Saxônia, antes que a sentença viesse a ser prolatada. Sabendo Frederico, o Sábio, que o imperador forçaria a Dieta a condenar Lutero, tramou uma forma de salvá-lo. Gonzalez narra o episódio: “Um grupo de homens armados, debaixo de instruções de Frederico, sequestrou o frade e o levou até Wartburgo. Devido às suas próprias instruções, nem o próprio Frederico sabia onde o tinham escondido. Muitos o deram por morto e corriam rumores de que fora morto por ordem do papa e do imperador”. 2.3) De Worms à morte. Durante sua estada no Castelo de Wartburgo, entre maio de 1521 e março de 1522, Lutero não perdeu tempo. Foi ali que ele deu início à tradução do Novo Testamento para o alemão, obra concluída dois anos depois. O Antigo Testamento ainda demorou mais dez anos para estar pronto, em 1534.

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Enquanto Lutero estava oculto em Wartburgo, a reforma prosseguia em passos largos, sobretudo pela operosidade de Carlstadt e Melanchton, influenciando a forma de vida e de liturgia da Igreja alemã. O culto tornou-se simples e os sermões começaram a ser pregados em alemão. As missas pelos mortos foram abolidas, os fieis começaram a partilhar o cálice e muitos monges e freiras deixaram os conventos. Lutero, segundo Gonzalez, estava vendo tudo com bons olhos, mas aconselhou moderação quando Carlstadt e outros de seus seguidores se dedicaram a derrubar imagens. Nesse período, apareceram em Wittenberg três homens procedentes de Zwickau, a cidade vizinha, dizendo-se profetas. Para eles, não havia necessidade das Escrituras, visto que Deus lhes falava diretamente. Melanchton, inseguro quanto ao modo de responder aos “profetas”, pediu conselhos a Lutero, ainda exilado em Wartburgo. Até Carlstadt chegou a ser influenciado por eles. Foi esse episódio que levou o reformador a sair do exílio e a retornar a Wittenberg. Cairns anota a respeito desse momento da vida do reformador o seguinte: “Mesmo sob risco de vida, Lutero retornou a Wittenberg em 1522. Depois de oito dias de sermões candentes, em que salientou a autoridade da Bíblia e a necessidade de uma mudança gradual na Igreja, Lutero aniquilou os profetas de Zuickau. O setor radical da Reforma, então, sentiu que não poderia contar com a ajuda de Lutero, que em 1935 rompeu abertamente com o movimento anabatista”. Entretanto, 1525 foi um dos anos mais agitados na vida agitada de Lutero. Primeiro, porque foi nesse ano que estourou a revolta dos camponeses; segundo, no mesmo ano ele também rompeu com os humanistas, tais como Erasmo; terceiro, foi também em 1525 que ele se casou com a noviça Catherina von Bora, com quem teve seis filhos. Para o nosso interesse, vale destacar o debate ocorrido entre Lutero e Desidério Erasmo (c. 1466-1536), sendo este cerca de dezessete anos mais velho que o reformador alemão. Erasmo e Lutero tinham muitas coisas em comum. Ambos haviam passado pela ordem agostiniana, eram dotados de grande erudição e lutaram contra as crendices e superstições que predominavam na fé popular, com a chancela do papa.

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A princípio, Erasmo parecia ser um aliado de Lutero. Mas, Lutero desafiava os ensinos de Roma sobre salvação e Erasmo continuava doutrinariamente romano. Eles discordavam acerca do “livre arbítrio”. Para o humanista Erasmo, os homens podem conquistar a sua salvação. Para Lutero, a salvação é recebida pela graça divina, mediante a fé somente. Conhecido por sua erudição, Erasmo foi pressionado a defender o “livre arbítrio”, e, apesar de Lutero haver-lhe solicitado que não fizesse tal coisa, o humanista holandês cedeu e publicou, em 1524, a obra Discussão Sobre o Livre-Arbítrio, tendo escrito a Henrique VIII o seguinte: “Os dados foram lançados. O livrete sobre o LivreArbítrio acaba de ver a luz do dia”. O livro agradou ao papa, ao Santo Império Romano e foi elogiado por Henrique VIII. No ano seguinte, em 1525, Lutero disparou sua resposta na obra A Escravidão da Vontade, que a introduz com as seguintes palavras: “Martinho Lutero, ao venerável D. Erasmo de Rotterdam, com os votos de Graça e Paz em Cristo”. Na obra, Lutero contra-ataca a tese de Erasmo expondo a doutrina do pecado original. “Para Lutero, a livre vontade é um termo divino, e não cabe a ninguém, a não ser unicamente à majestade divina. Conceder ao ser humano tal atributo significaria nada menos do que atribuir-lhe a própria divindade, usurpando a glória do Criador” (Gilson Santos). Lutero considerava A Escravidão da Vontade sua melhor obra. Gilson Santos fala com razão, quando observa o seguinte: “O atual ensino de muitos que se denominam ‘protestantes’ está mais em harmonia com os dogmas papistas, ou com as ideias de Erasmo, do que com os princípios dos Reformadores; analisando criticamente, tal ensino está em maior harmonia com os Cânones e decretos do Concílio de Trento do que com as Confissões de Fé Protestantes e Reformadas”. Por volta de 1527, Lutero dava claros sinais de cansaço. Sua saúde não andava bem e a Peste Negra grassava na Alemanha. Enquanto muitos fugiam para escapar, Lutero permaneceu em Wittenberg e usou sua casa como um hospital, momento em que quase perdeu um filho pequeno. Foi em meio a essa crise que escreveu seu famoso hino Castelo Forte, baseado no Salmo 46. Segue uma tradução literal do Hino da Reforma, como Castelo Forte é conhecido (tradução de IIson Kayser;

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fonte: http://www.luteranos.com.br/conteudo/salmos-46-1-7-1-11. Com acesso em 21/08/2014): “Castelo firme é nosso Deus Boa defesa e armamento, Ele nos livra de toda a aflição Que agora nos atingiu. O velho malvado inimigo Agora Investe para valer, Grande poder e muita astúcia São seu cruel armamento. Sobre a terra não existe igual a ele. Ainda que o mundo estivesse cheio de demônios e nos quisesse devorar, Não nos apavoraremos demais, Pois venceremos apesar de tudo. O príncipe deste mundo, Por mais raivoso que ele se apresente, Nada nos fará, Isso porque já está julgado, Uma palavrinha pode derrubá-lo. Com nossa força nada alcançaremos, Logo estaremos perdidos, Por nós luta o homem certo, Que o próprio Deus escolheu. Perguntas quem é Ele? Seu nome é Jesus Cristo O Senhor Zebaote E não há outro Deus. Ele há de vencer. A Palavra eles têm de deixar de pé, Mesmo que não o queiram, Ele está agindo entre nós Com Seu Espírito e dons. Se [nos] tirarem o corpo, Bens, honra, filhos e esposa, Que se vá! Isso não lhes trás nenhum proveito, O Reino mesmo assim há de ser nosso”.

Em 1929, Lutero não soube conjugar forças com o reformar suíço Ulrich Zwínglio, quando teve oportunidade de fazê-lo. Em junho de 1529, o imperador Carlos V concluiu a guerra contra a França e resolveu voltar-se contra o movimento protestante. Havia necessidade de uma aliança entre os príncipes de fé luterana e as cidades reformadas da Suíça para enfrentar o Santo Império. Assim, em outubro de 1529, com a mediação de um nobre alemão, Filipe de Hesse, encontraram-se no Castelo de Marburg Lutero e Melanchton, Zwínglio e 10


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Johann Oecolampadius e Bucero, com o fim de fazerem a desejada aliança. Concordaram em 14 pontos dos 15 propostos. O ponto controvertido foi a presença de Cristo na Ceia. Como Lutero insistiu na interpretação de literal da expressão “isto é o meu corpo”, escreveu-a em latim (hoc est corpus meum), com giz, na mesa, e cobriu-a com um cetim. Durante a reunião, quando Zwínglio questionou a posição luterana, o reformador alemão retirou o pano e grifou a frase previamente escrita. Não houve acordo. Lutero ensinava a consubstanciação. Para Zwínglio, a Ceia é um memorial. E, mais tarde, Calvino viria a ensinar a presença espiritual de Cristo na Ceia. Ainda em 1529, Lutero concluiu a elaboração dos seus Catecismos Maior e Menor. Em 1530, foi convocada a Dieta de Augsburgo. Nela, o imperador pediu que se lhe apresentasse uma exposição dos pontos doutrinários controvertidos. Para tanto, Melanchton preparou um documento que ficou conhecido como Confissão de Augsburgo. Esta confissão tornou-se o credo oficial da Igreja Luterana, “o primeiro dos sete credos que fizeram do período entre 1517 e 1648 o grande período de formulação doutrinária do protestantismo, assim como o período de 325 a 451 fora o da formulação dos credos ecumênicos da Igreja, como o de Nicéia” (Cairns). Lawson constatou que “Cada conflito fazia que ele [Lutero] perdesse um pouco de si, deixando-o mais fraco”. Seus amigos temeram por sua morte em 1537, devido a cálculos de ácido úrico, artrite severa e problemas cardíacos e digestivos. Restaurado, voltou a ficar doente em 1541. Mas, sua morte só ocorreu em 18 de fevereiro de 1546, quando tinha 62 anos, em Eisleben, sua terra natal. Suas últimas foram: “Somos todos mendigos. Isso é verdade”. Seu corpo foi levado a Wittenberg, com milhares de pranteadores no cortejo fúnebre, e sepultado abaixo do púlpito da Igreja do Castelo, a mesma onde afixou suas 95 teses, há quase 29 anos. 3. O impacto de Lutero. Lutero falava com razão, quando disse: “Sou bastante conhecido pelo céu e pelo inferno”. A propósito do lamento pela morte do reformador, sua esposa Catherina escreveu: “Quem não se afligiria e se entristeceria com a perda de homem tão precioso quanto era meu amado senhor. Ele fez grandes coisas, não apenas para a cidade ou para uma única terra, mas para o mundo inteiro”. Concordamos com Catherina!

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Lutero não foi um homem perfeito. Ele transigiu com a bigamia de Filipe de Hesse. Fez declarações antissemitas assustadoras. Mas, sua contribuição, sobretudo no campo religioso, foi profunda, extensa e permanente. Lutero foi, acima de tudo, um pregador das Escrituras. Ele pregou sete mil sermões entre 1510 e 1546, o que significa uma média de quatro sermões por semana e duzentos por anos. Mesmo em 1528, o ano marcado pela Peste Negra, Lutero pregou cerca de duzentos sermões. Os dogmas papais que persistiram durante mil anos de trevas foram todos sacudidos pelo reformador. Se tomarmos como paradigma da doutrina de Lutero a Confissão de Augsburgo, veremos que ela estabelece a salvação pela graça, mediante a fé (Artigo 4), sendo as obras resultado e não causa da salvação (Artigos 6 e 20), define a igreja cristã como “a congregação de todos os crentes e santos” (Artigo 8), afirma ser impossível ao “livre-arbítrio” agradar a Deus sem as operações do Espírito Santo (Artigo 18), reconhece apenas dois sacramentos e concede o cálice aos leigos (Artigos 9, 10 e 22), propugna pelo casamento dos sacerdotes (Artigo 23) e retira o aspecto sacrificial da missa (Artigo 24). Ademais, questiona o culto aos santos (Artigo 21) e o voto monástico (Artigo 27). Mais ainda, Lutero questionou a autoridade papal e asseverou o slogan Sola Scriptura. A Igreja Romana via o papado como acima das Escrituras, e em pé de igualdade com elas estavam os credos, os concílios e os pais da igreja. Para o reformador, todavia, somente a Escritura deveria governar a Igreja. Certa vez, dirigindose diretamente ao papa, Lutero declarou: “Meu querido papa, vós não deveis dominar sobre as Escrituras, nem eu ou qualquer pessoa, de acordo com nossas ideias próprias. É o diabo que toma tal atitude! Pelo contrário, devemos permitir que a Escritura nos reja e domine, não sendo nós mesmos os mestres que colocam nossas próprias loucas cabeças acima da Escritura” (citado por Lawson). Para Lutero, o Espírito Santo é o autor da Bíblia e o “púlpito é o trono da Palavra de Deus”. Ele afirmou que “O mais alto culto a Deus está na pregação, porque ali são louvados o nome e os benefícios de Cristo”. Por isso mesmo, o reformador não poderia tolerar nada que assumisse o lugar da pregação da Palavra de Deus. Eis a sua voz de lamento: “A Palavra de Deus foi silenciada e apenas a leitura e o cântico permanecem nas igrejas. É o pior dos abusos. Uma multidão de fábulas e mentiras não

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 13 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma cristãs, nas lendas, hinos e sermões foram introduzidos, de maneira horrível de se ver. A fé desapareceu e todos eram pressionados a entrar no sacerdócio, em conventos, monastérios, e construir e paramentar igrejas. Uma congregação cristã jamais deverá se ajuntar sem a pregação da Palavra de Deus e a oração, por mais breve que seja a reunião, conforme diz o Salmo 102: ‘Quando o rei e o povo se ajuntam para servir ao Senhor, eles declararão o nome e o louvor de Deus’. E Paulo em I Coríntios 14:26-31 diz que quando se ajuntam, deve haver profecia, ensino e admoestação. Assim, quando a Palavra não for ensinada, é bom que não se cante nem leia, nem mesmo se ajuntem” (citado por Lawson).

4. O avanço do Luteranismo. Quando o imperador livrou-se dos inimigos externos, voltou-se para combater o protestantismo alemão. Por esse motivo, tiveram lugar as chamadas guerras esmalcádicas, entre 1546 e 1552, que só cessaram com a Paz de Augsbrugo, de 1555, que deu ao luteranismo igualdade com o catolicismo romano na Alemanha. A partir da Alemanha, a fé luterana alcançou os países escandinavos. Hans Tausen (1494-1561) fez na Dinamarca o que Lutero fez na Alemanha e, desde essa época, o luteranismo é a religião oficial daquele país. Da Dinamarca, a fé luterana foi à Noruega, onde se tornou a religião oficial. Eisnasen foi o reformador luterano na Islândia e, desde 1554, o luteranismo, por decreto, tornou-se ali a religião oficial. O reformador na Suécia foi Olavus Petri (1493-1552), onde desde 1527 o luteranismo foi oficialmente adotado. Da Suécia, a Reforma passou à Finlândia, onde já em 1528 a fé luterana foi adotada. O reformador neste país foi Miguel Agricola. Uma dos principais fatores a influenciar o avanço do luteranismo nos países escandinavos foi a tradução da Bíblia para os seus respectivos idiomas. “A autoridade da Bíblia, que os líderes luteranos traduziram para as línguas de seus países, e a doutrina da justificação pela fé tornaram-se os lemas destes países no século XVI” (Cairns).

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II. Ulrich Zwínglio, a Reforma na Suíça e os Anabatistas 1. Introdução. A Suíça era o território mais livre da Europa. Com efeito, tratava-se de uma confederação de 13 cantões que possuíam autonomia para reger os próprios negócios. Essa é a razão pela qual nesse país a Reforma decorreu de uma decisão de governos locais, livres que estavam para adotar a fé que quisessem. Ademais, o humanismo suíço exerceu forte influência sobre os acontecimentos religiosos da nação. Foi no ano de 1516, em Basileia, que Erasmo de Rotterdam editou seu Novo Testamento grego, fato que influenciaria decisivamente o reformador Ulrich Zwínglio, homem cuja história está necessariamente ligada à Reforma na Suíça. Como veremos, a Reforma na Suíça não foi resultado direto da obra de Lutero, mas ocorreu paralelamente aos episódios na Alemanha. Justo L. Gonzalez lembrou que “mais tarde o próprio Zwínglio diria que antes de ter conhecido as doutrinas de Lutero, havia chegado a conclusões semelhantes com base em seus estudos da Bíblia”. Poder-se-á também observar que na Suíça se desenvolveram três tipos de teologias: os cantões do Norte, de fala alemã, seguiram Zwínglio; os do sul, liderados por Genebra, seguiram Calvino; além dos anabatistas, que formavam um setor mais radical da Reforma cujos líderes haviam trabalhado com Zwínglio. 2. Ulrich Zwínglio. 2.1) Da infância à conversão. Já sabemos que Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em uma pequena cidade da Saxônia. Pois bem, quase dois meses depois, em primeiro de janeiro de 1484, nasceu Ulrich Zwínglio em Wildhaus, no cantão de St. Gallen, na Suíça de língua alemã. Ele era filho de fazendeiro e magistrado que pode lhe dar a melhor educação possível para o sacerdócio. Sabe-se que estudou em Berna, na Universidade de Viena, na Áustria, e em Basileia, Suíça, onde se tornou bacharel em artes, em 1504, e mestre em artes, em 1506. Nesse mesmo ano, foi ordenado sacerdote em Constança, no sul da Alemanha, e foi servir na paróquia de Glarus, na Suíça. Aqui, ele continuou seus estudos e tornou-se grande erudito no grego. “Diz-se que Zwínglio chegou a decorar todas as epístolas paulinas – em grego!” (Franklin Ferreira). 14


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Zwínglio não foi despertado para a fé evangélica como Lutero, através de grandes embates espirituais e de forma dramática, mas de forma mais racional, pelo seu estudo do Novo Testamento editado por Erasmo, em 1516, em Basileia. Ele mesmo escreveu que, nessa época, foi “Dirigido pela Palavra e pelo Espírito de Deus”, quando viu “a necessidade de deixar de lado todos esses [ensinamentos humanos] e aprender a doutrina de Deus diretamente de sua própria Palavra”. Em 1518, um ano após Lutero haver afixado suas 95 teses na Catedral de Wittenberg, Zwínglio também atacou o sistema medieval de penitências e relíquias. Em 1519, Zwínglio foi chamado para ser o sacerdote da Grossmünster, a Grande Catedral de Zurich, onde ficou até o fim de sua vida. Foi nessa época, ou pouco antes, que Zwínglio decidiu e anunciou que só pregaria sermões expositivos, capítulo por capítulo, a partir do evangelho de Mateus, e que dispensaria as homilias tradicionais. Até 1525, o reformador suíço já havia percorrido todo o Novo Testamento, a exceção de Apocalipse, momento em que se voltou ao Antigo Testamento. Segundo seu amigo e sucessor Heinrich Bullinger, Zwínglio se recusava “a cortar em pequenos pedaços o evangelho do Senhor” (citação de F. Ferreira). 2.2) Do rompimento com Roma à morte. O ano de 1522 - um ano após Lutero haver enfrentado na Alemanha a Dieta de Worms -, marcou o início do rompimento entre Zurich e Roma. Foi nesse ano também que Zwínglio se casou ocultamente com a viúva Anna Reinhard, união que só foi legitimada com um casamento público em 2 de abril de 1524. Nesse mesmo ano, Zwínglio ainda contendeu com o setor mais radical da Reforma, cujos seguidores insistiam no “rebatismo”, razão pela qual foram apelidados de “anabatistas”. Sobre isso, falaremos em um tópico à parte. Nessa época, Zwínglio havia pregado contra as leis do jejum e da abstinência, razão pela qual alguns membros de sua paróquia se reuniram para beber cerveja e comer salsichas na época da quaresma. Esse fato levou o bispo de Constança a acusá-lo perante o conselho, mas como o reformador defendeu-se com base na Escritura, foi-lhe permitido continuar pregando. Pouco depois, o celibato começou a ser criticado por Zwínglio e, a despeito do papa Alexandre VI fazer-lhe ofertas tentadoras, ele persistiu com seus 15


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ataques e conseguiu que o bispo marcasse um debate público entre ele e seu vigário geral, Johannes Fabri, sobre as doutrinas que ele estava pregando. Chegado o momento do debate, centenas de pessoas compareceram para assisti-lo. Zwinglio levou consigo seus “Sessenta e Sete Artigos (sculssreden), nos quais insistia que Jesus Cristo é o único salvador; a verdadeira igreja católica é composta de todos os crentes em Cristo; as Sagradas Escrituras são a única autoridade em questões de fé; as boas obras são realizadas unicamente por Cristo; Deus é o único que pode nos absolver de pecados, rejeitando a confissão auricular; os sacerdotes têm o direito de se casarem; e condena as práticas católicas não aprovadas pelas Escrituras, como os jejuns e as vestes clericais” (Flanklin Ferreira). Quando deram oportunidade a Fabri para que ele demonstrasse os erros de Zwínglio, ele se negou a fazê-lo. Em consequência, o Conselho da cidade determinou que já que ninguém refutou as doutrinas de Zwínglio, ele poderia “continuar e manter-se como antes, proclamando o santo evangelho e as corretas divinas Escrituras com o Espírito de Deus, de acordo com sua capacidade”. Essa decisão, como ponderou Gonzalez, “marcou o rompimento de Zurich com o episcopado de Constança e, portanto, com Roma”. Após o rompimento, a Reforma acelerou os passos. As taxas de batismo e sepultamento foram abolidas, os fieis passaram a receber o pão e o vinho na Ceia, muitos monges e freiras se casaram e, em 1525, a missa foi suprimida em Zurich. A partir de julho desse ano, em todos os dias, exceto nas sextas-feiras e nos domingos, ministros e estudantes de teologia reuniam-se na Grande Catedral para uma hora de aprofundamento bíblico. Flanklin Ferreira narra como essas reuniões ocorriam: “Perante todos os estudantes reunidos, um capítulo da Bíblia era interpretado da seguinte maneira: depois da oração, um capítulo da Vulgata (tradução latina da Bíblia) era lido; em seguida, o professor de hebraico – primeiramente o talentoso Jakob Wiesendanger, e depois da morte deste, aos 26 anos, o famoso erudito Konrad Pellikan – lia o texto em hebraico e comentava em latim, comparando com o texto da Vulgata; depois, o próprio Zwínglio lia e interpretava o mesmo trecho na Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento). Finalmente, Leo Jud, o ministro da Igreja de São Pedro e amigo de Zwínglio, explica em alemão o capítulo, segundo a interpretação de Zwínglio. Varios cidadãos de Zurich ouviam estes sermões, quando paravam na catedral, no caminho para o trabalho”.

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A cidade suíça de Berna foi conquistada para a Reforma através de um debate semelhante ao que ocorreu em Zurich. Zwínglio participou do debate com suas 10 teses e, em consequência, em 1528, o Conselho da cidade aceitou oficialmente os princípios da Reforma. Em 1529, a missa foi abolida em Basileia. Antes, porém, um sínodo das igrejas que aceitavam as doutrinas zwinglianas foi formado, em 1527, e a Bíblia foi traduzida à língua do povo. Entretanto, os cantões que permaneciam fieis a Roma organizaram a União Cristã de Cantões Católicos – a União dos Cinco Estados - e, em 1529, estourou a guerra entre cantões católicos e protestantes. Após um período de trégua, na qual ficou acordado que cada cantão escolheria sua religião, em 11 de outubro de 1531, a União católica iniciou um ataque surpresa a Zurich. Zwínglio saiu com os primeiros soldados para oferecer a resistência que pudesse enquanto o exército se preparava. Na fatídica batalha de Kappel, Zurich foi derrotada, ocasião em que 500 dos seus soldados e 25 pregadores evangélicos morreram. Zwínglio estava entre os que faleceram. Seu corpo foi esquartejado e queimado. Seu capacete e espada levados como troféus, ainda hoje reservados no Museu Nacional Suíço. Uma pedra marca o lugar onde o reformador morreu, e nela está escrito: “Eles podem matar o corpo, mas não a alma; assim disse neste lugar Ulrich Zwínglio, morto como herói pela verdade e liberdade da igreja cristã, em 11 de outubro de 1531”. Zurich manteve sua independência, mas os cantões do sul se mantiveram católicos. O sucessor de Zwínglio foi seu amigo Heinrich Bullinger. 2.3) Zwínglio e Lutero. Nesse passo, anotaremos sucintamente as diferenças entre aqueles que são contados entre os primeiros reformadores: Lutero e Zwínglio. Se não, vejamos: Primeiro, Lutero foi, no dizer de Gonzalez, “uma alma atormentada que por fim encontrou sua paz na mensagem bíblica da justificação pela fé”, enquanto Zwínglio foi um “erudito humanista”. É dizer, enquanto Lutero conheceu o evangelho de forma dramática e em meio aos incômodos de uma alma inquieta, Zwínglio o fez através do estudo do Novo Testamento grego. Para Gonzalez, isso explica por que “a teologia de Zwínglio é mais racionalista que a de Lutero”. 17


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Segundo, os reformadores discordaram também quanto ao alcance da Reforma. Para Lutero, era permitido à Igreja cristã tudo aquilo que a Bíblia não proibia. Zwínglio, a seu turno, ensinava que só deveria ser mantido aquilo que estivesse claramente indicado na Bíblia. Esse princípio norteou o movimento puritano na Inglaterra, onde foi chamado “princípio regulador”. Terceiro, Lutero e Zwínglio discordavam quanto à presença de Cristo na Ceia. Para o reformador alemão, a Ceia possuía um valor sacramental e ele insistia na presença real de Cristo nos elementos. Para o suíço, os elementos materiais eram sinais da realidade espiritual e a expressão “isto é o meu corpo” queria dizer simplesmente “isto simboliza o meu corpo”. Foi essa divergência que fez malograr a tentativa de união no Colóquio de Marburg, de 1529, como observado alhures. A. A. Hodge apresentou a concepção zwingliana dos sacramentos com as seguintes palavras: “Resta dizer que Deus, por meio dos sacramentos, exibe-nos a sua graça, não conferindo-a de fato por meio deles, mas apresentando-a e colocando-a diante de nossos olhos por meio deles como sinais claros e evidentes. [...] E essa eficácia não é mais objetiva, exigindo (da nossa parte) uma faculdade cognitiva que possa aprender aquilo que o sinal apresenta objetivamente à (nossa) mente. [...] Eles operam sobre nós como sinais, representando à mente a coisa da qual são sinais. Não se deve procurar neles nenhuma outra eficácia”. É mesmo possível que muito das diferenças entre Lutero e Zwínglio seja explicada em termos de certa influência do neo-platonismo no pensamento do reformador suíço. Nesse sentido, Gonzalez afirmou o seguinte: “O mais notável desses elementos é a tendência a menosprezar a criação material e estabelecer um profundo contraste entre ela e as realidades espirituais. Esta era uma das razões pelas quais Zwínglio insistia num culto simples, que não levasse o crente ao material mediante o exagero dos sentidos. Lutero, por sua vez, afirmava a doutrina bíblica da criação como boa e, portanto, tratava de não exagerar no contraste entre o material e o espiritual. Para ele, o material não é um obstáculo, mas sim uma ajuda à vida espiritual”. Essa divergência pode ser percebida tanto na concepção do culto quanto na rejeição zwingliana do aspecto sacramental da Ceia. 2.4) Bulinger e as Confissões Helvéticas. Johann Henrich Bullinger (1504-1575) foi convertido ao evangelho em 1522 e no ano seguinte conheceu 18


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Zwínglio, do qual se tornou amigo e, em 1531, sucessor na liderança da Reforma suíça. Com vários colegas, escreveu a Primeira Confissão Helvética. A Primeira Confissão Helvética foi resultado das atitudes conciliatórias dos reformadores de Estrasburgo, Martin Bucer e Wolfgang Capito, de unir zwinglianos e luteranos. Apesar da desejada unidade não haver sido conquistada, essa Confissão foi aprovada formalmente em 27 de março de 1536 pelos delegados dos Conselhos municipais e todas as cidades suíças que abraçaram a Reforma a adotaram (Zurich, Basileia, Berna, Schaffenhausen, St. Gallen, Muhlhausen e Biel). Assim, ela tornou-se a primeira confissão suíça e a primeira confissão reformada com autoridade nacional. A Segunda Confissão Helvética foi completamente escrita por Bullinger. Em 1565, o príncipe alemão Frederico III pediu a Bullinger uma exposição detalhada da fé reformada para apresentá-la ao Parlamento. Além disso, os suíços reclamaram por uma descrição mais completa de sua fé. Em resposta, Bullinger fez o documento que ficou conhecido como Segunda Confissão Helvética, publicada em Zurich em 12 de março de 1566 e aceita por todos os cantões reformados. Alderi Souza de Matos afirmou que posteriormente “foi recebida na Escócia, Hungria, França, Polônia, Inglaterra e Holanda, tornando-se, ao lado do catecismo de Heidelberg, o documento reformado mais estimado e influente. Reflete o pensamento maduro de Bullinger e destaca-se por sua catolicidade e moderação”. 3. Os Anabatistas. Os anabatistas são parte de um setor mais radical da Reforma na Suíça e na Alemanha. Como veremos, foram perseguidos por luteranos, zwinglianos e católicos romanos, em parte por motivos teológicos, em parte porque estavam em diversos pontos de sua fé além do seu tempo. Os menonitas e os huteritas são ramos que descendem diretamente dos anabatistas do século XVI. Lutero desejava retirar da igreja tudo quanto a Bíblia expressamente proibia. Zwínglio queria mais, e sustentou que só deveria ser praticado pela igreja aquilo que a Bíblia expressamente prescrevia. Entretanto, tanto Lutero como Zwínglio mantiveram a usual relação entre Igreja e Estado, nos termos assimilados a partir dos dias de Constantino, de modo que sociedade e Igreja se confundiam. Em Zurich, por 19


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exemplo, todo recém-nascido batizado era considerado membro da Igreja e, na Alemanha e nos países escandinavos, as igrejas luteranas eram mantidas pelo Estado e seus ministros, pagos com os cofres públicos. Para os anabatistas, essas reformas não eram suficientes. Eles acreditavam que toda a união entre Igreja e sociedade deveria ser completamente banida. Insistiam que uma pessoa não era cristã pelo simples fato de nascer em uma sociedade dita cristã, visto que a Igreja é uma comunhão voluntária formada pelos verdadeiros discípulos de Jesus, pessoas que professam conscientemente sua fé em Cristo. A consequência natural desse pensamento foi o desprezo pelo batismo infantil e a ênfase na necessidade de um novo batismo na fase adulta, razão pela qual foram chamados pelos seus inimigos de “anabatistas” (ou seja, “rebatizadores”). Como explica Justo Gonzalez, “esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o primeiro batismo não era válido e que assim o que se recebia depois de confessar a fé era o primeiro e único batismo”. Inclusive Zwínglio manteve a princípio uma concepção de que “o batismo infantil não tinha base bíblica”, segundo Cairns. “Ao mesmo tempo”, ainda afirmou esse historiador, “porque muitas pessoas perderiam sua cidadania, Zwínglio desistiu da sua primitiva concepção da falta de fundamento bíblico para o batismo infantil”. Entretanto, devemos observar que o principal motivo pelo qual o batismo infantil foi praticado a partir dos primeiros séculos e pela Igreja Católica medieval era noção de batismo como fonte de regeneração. Com o advento da Reforma e a consequente rejeição da doutrina da regeneração pelo batismo, duas perspectivas surgiram nas tradições protestantes: a construção de uma nova teologia que justificasse a prática ou o se abandono. Os anabatistas e posteriormente os batistas enfatizaram que o batismo deveria ser ministrado somente àqueles que já foram regenerados. Os menonitas ainda hoje praticam a aspersão e alguns anabatistas e batistas, que a princípio batizavam por efusão, passaram a batizar somente por imersão. Por outro lado, Zwínglio e Bullinger, conforme lição de Flanklin Ferreira e Alan Myatt, perceberam que “o que estava em 20


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jogo não eram apenas as questões doutrinais, mas também questões de ética ‘e os princípios de ordem a autoridade essenciais a uma sociedade estável’”. Assim, foi nesse debate com os anabatistas que Zwínglio e Bullinger desenvolveram a teologia da aliança, “uma defesa inédita do batismo infantil” (Ferreira e Myatt). Em 1534, Bullinger escreveu a primeira exposição da teologia da aliança, a obra Do Único e Eterno Testamento ou Pacto de Deus (De Testamento seu Foedere Dei Único et aeterno). Embora Bullinger já houvesse lidado com a noção da aliança nos anos anteriores, essa obra foi escrita no contexto do debate com os anabatistas. Outras características dos anabatistas ainda serão consideradas logo mais. No momento, basta citar a sua doutrina do pacifismo extremo. Para os anabatistas, a consequência natural do ensino do sermão do monte é a completa recusa em participar de toda e qualquer forma de organização política mundana, inclusive de assumir cargos públicos e fazer juramentos. Para eles, era também necessário que o cristão jamais pegasse em armas para se defender. No contexto da Reforma, sobretudo considerando que a Alemanha vivia ameaçada pelos muçulmanos e que as cidades reformadas alemãs e suíças viviam na iminência de ataques das regiões e cantões católicos, o pacifismo anabatista não soou coerente. 3.1) Conrad Grebel e Felix Manz: os primórdios do movimento. Ideias semelhantes às dos anabatistas ocorreram simultaneamente em diversos lugares da Europa no século XVI, mas foi em Zurich que foram concebidas de primeira mão, ligadas a Conrad Grebel e Felix Manz. Grebel se converteu em 1522 e trabalhou com Zwínglio, até romperem em 1525. Em 1524, a esposa de Grebel deu à luz e sua convicção foi posta à prova. A decisão dos Grebel foi no sentido de que a acriança não seria batizada, exemplo seguido por outros. Para solver a celeuma, o Conselho de Zurich marcou um debate em 17 de janeiro de 1525. Seu resultado foi que representantes do povo declararam Zwínglio e seus discípulos vencedores e, em consequência, o Conselho concedeu uma semana para que as famílias batizassem seus filhos, sob pena de serem banidas da cidade. No dia 21 de janeiro daquele ano, o Conselho proibiu Grebel e Manz de continuarem seus estudos bíblicos. Como um claro ato de provocação, nesse mesmo dia 21


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- apenas quatro dias após o Conselho haver ordenado que as famílias batizassem seus filhos no prazo de oito dias – Grebel batizou o padre George Blaurock, junto à fonte que estava no meio da praça de Zurich. Blaurock, por sua vez, batizou outros irmãos na mesma ocasião. Após o batismo, o pequeno grupo se retirou para Zollikon, aldeia próxima de Zurich, dando azo ao surgimento, no final de janeiro de 1525, da congregação anabatista, “a primeira igreja livre (dos laços do Estado) dos tempos modernos” (Bruce L. Shelley). O Conselho de Zurich não tardou a reagir. Em 7 de março de 1526, decidiu que puniria com morte por afogamento a toda pessoa que se rebatizasse. Em 5 de janeiro de 1527, Felix Manz foi afogado no rio Limmat, tornando-se o primeiro mártir anabatista. George Blarouck foi apanhado pelas autoridades católicas romanas e queimado na fogueira em 6 de setembro de 1529. Em 1528, o imperador Carlos V expediu o decreto da pena de morte aos anabatistas, aprovado na Dieta de Spira em 1529. A decisão imperial foi obedecida pelos príncipes luteranos e católicos romanos na Alemanha, a exceção de Felipe de Hesse, que não aplicou o decreto em seus territórios por razões de consciência. O número de mártires foi enorme. Talvez em torno de quatro a cinco mil anabatistas executados pelo fogo, espada ou afogamento. A dura perseguição forçou os anabatistas a irem ao norte. Encontraram tolerância na Morávia, onde fundaram uma duradoura comunidade (chamada Bruderhof), consolidada pela liderança de Jakob Hutter. Hutter morreu em 1536, mas sua influência foi tal que esses grupos passaram a chamar-se huteritas. 3.2) O anabatismo não pacifista. A distância entre os protestantes alemães e suíços e os anabatistas aumentou sensivelmente em 1535, com a chamada rebelião de Münster, cidade próxima dos Países Baixos. Tudo começou em Strasbourg, a partir da pregação de um homem chamado Melchior Hoffman. Nessa cidade, onde o anabatismo era relativamente forte, Hoffman começou a pregar que o dia do Senhor estava próximo e que Strasbourg seria a Nova Jerusalém. Predisse que seria encarcerado por seis meses e depois viria o fim, em

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1533. Também abandonou o pacifismo inicial e insistiu que nos últimos dias seria necessário que os cristãos pegassem em armas na batalha contra os filhos das trevas. A primeira parte da ‘profecia’ cumpriu-se. Hoffman foi encarcerado e uma multidão afluiu para Strasbourg, a esperar o momento da revolução apocalíptica. Entretanto, tudo ficou nisso. As autoridades da cidade recrudesceram o combate aos radicais e Hoffman permaneceu preso. Essa foi a ocasião na qual alguém profetizou que a Nova Jerusalém não seria em Strasbourg, mas em Müntser. O líder do movimento em Münster foi um anabatista quiliasta vindo de Strasbourg chamado Jan Matthijs. Ele proclamou-se Enoque e enviou delegados a Münster em 1534, lugar aonde o reino supostamente viria. Matthijs e seu discípulo, Jan de Leiden, apoderaram-se da cidade, expulsaram os católicos e consideraram infiéis também os protestantes moderados. O bispo, em represália, sitiou a cidade e conseguiu matar diversos anabatistas que caíam em suas mãos. Em uma das saídas militares contra as tropas do bispo, em 1534, Matthijs tombou morto e Jan de Leiden o sucedeu, apoderando-se do governo e o exercendo como um absoluto tirano, inclusive tomando para si o título de “Rei Davi”. Como a matança da batalha e a deserção fizeram o número de homens da cidade cair, o “Rei Davi” adotou a poligamia e decretou que toda mulher deveria casarse com algum homem. Talvez cansados dos desmandos do seu “Rei”, alguns habitantes da Nova Jerusalém abriram os portões da cidade e as tropas do bispo reconquistaram a cidade, prenderam “Rei Davi” e seus principais assessores em jaulas individuais e os expuseram publicamente. Assim caiu a Nova Jerusalém em Münster. 3.3) O anabatismo (re)organizado e a Confissão de Schleitheim. O anabatismo revolucionário chegou ao fim com a execução de Jan de Leiden, em 1536. Nesse mesmo ano, um sacerdote católico romano holandês se converteu ao anabatismo. Seu nome era Menno Simons (c. 1496-1561). Ele se destacou de tal forma na liderança de um grupo anabatista holandês, a princípio liderado por Obbe Philips, que o grupo passou a ser chamado “menonita”. Menno Simons viajou por extensas áreas no norte da Europa pregando a sua fé. Para ele, pacifismo era fundamental. Os cristãos não podiam também prestar 23


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juramentos e ocupar cargos públicos, para os quais eram exigidos. O batismo seria realizado jugando água sobre a cabeça, mas somente sobre os adultos que professassem sua fé. Nem o batismo nem a Ceia conferem graça, sendo somente sinais externos da graça interna operada por Deus. Ademais, Menno Simons e seus seguidores praticavam a lavagem mútua dos pés. Em 24 de fevereiro de 1527, na cidade de Schleitheim, atualmente na fronteira entre a Suíça e a Alemanha, foi aprovada pela Conferência dos Irmãos Suíços a Confissão de Schleitheim, obra principalmente da lavra do jovem monge beneditino Michael Sattler. Sattler e sua esposa foram mortos pouco tempo depois, ele na fogueira e ela por afogamento, nas proximidades de Rottenburg-am-Neckar. Na década seguinte a Confissão de Schleitheim foi adotada por anabatistas de toda a Europa. Para Cairns, os anabatistas eram “apenas humildes crentes na Bíblia, alguns dos quais enganados por líderes ignorantes, que interpretavam a Bíblia literalmente para proveito próprio. Nem os menonitas nem os batistas se envergonhariam de colocá-los entre os seus predecessores espirituais. Seu conceito de igrejas livres influenciou os Puritanos Separatistas, Batistas e Quacres”.

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III. João Calvino e a Reforma em Genebra

Uma apreciação da Reforma na Suíça não estaria completa sem uma detida observação em como ela ocorreu em Genebra, história necessariamente entrelaçada com a vida do reformador francês João Calvino, conforme nosso estudo demonstrará. Com efeito, foi Calvino que realizou na Suíça a obra iniciada por Zwínglio e deu forma à terceira tradição protestante – ao lado do luteranismo e do anabatismo -, denominada “fé reformada”, nome virtualmente idêntico ao que tem sido chamado também de “calvinismo”. Essa é a tradição herdada pelos presbiterianos e muitas igrejas congregacionais e batistas, e pelas igrejas reformadas na Alemanha e Holanda. 1. João Calvino e a Reforma em Genebra. 1.1) João Calvino: da infância ao encontro com Farel. João Calvino nasceu na pequena cidade de Noyon, cidade da província da Picardia, a 160 km a noroeste de Paris, no dia 10 de julho de 1509. Seu pai, Gérard, foi um advogado e secretário do bispo e sua mãe, Jeanne, uma mulher piedosa. Foi enviado para estudar na Universidade de Paris aos quatorze anos, de onde saiu com mestrado em 1528, aos dezenoves anos. Quando em Paris, certamente manteve contato com as discussões teológicas em torno das doutrinas de Wycliffe, Huss e Lutero. Mas, como ele mesmo veio a dizer, “estava obstinadamente atado às superstições do papado” (citado por Gonzalez). Naquele mesmo ano, foi enviado à Universidade de Orleans para estudar direito e, depois, estudou grego na Universidade de Bourges. Com a morte do pai, em 1531, Calvino retornou a Paris e dedicou-se ao estudo dos clássicos, seu principal interesse na época. Um ano antes, em 1530, ele fez um comentário à obra de Sêneca, De Clementia, que veio a ser publicado em 1532. Entretanto, em 1533, dois anos após a morte de Zwínglio e quatro anos após o Colóquio de Marburg, converteu-se à fé evangélica de forma “súbita”, como costumava dizer. Escrevendo anos depois, Calvino afirmou sobre sua conversão: “Minha mente, que a despeito de minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora 25


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estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a e trouxe à docilidade”. No ano seguinte, em 1534, Calvino foi obrigado a fugir de Paris, por haver sido acusado de ser a influência que estava por detrás de um discurso reformista de Nicholas Cop, então reitor da Universidade de Paris. O reformador encontrou refúgio em Basileia, onde, em março de 1535, aos 26 anos de idade, publicou a primeira edição das Institutas da Religião Cristã, obra em que Calvino trabalhou durante quase toda a vida. As Institutas foram escritas na ocasião em que o rei francês católico romano Francisco I intentava perseguir os protestantes franceses. Calvino desejava defender os huguenotes e pedir ao rei, a quem a obra foi endereçada, que aceitasse as ideias da Reforma. Sobre as Institutas da Religião Cristã, Flanklin Ferreira anotou o seguinte: “O êxito dessa obra foi imediato e surpreendente. Em nove meses se esgotou a edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas nacionalidades. Calvino continuou preparando edições sucessivas das Institutas, que foi crescendo conforme iam passando os anos. Foram editadas cerca de nove vezes, sendo que as últimas edições datam de 1559 e 1560 e se tornou uma das obras mais influentes do pensamento cristão e ocidental”.

Em 1536, quando viajava a Strasbourg, Calvino pernoitou em Genebra, uma vez que a guerra entre a França e a Espanha havia fechado o caminho àquela cidade. Strasbourg era, segundo Calvino pensava, a cidade ideal para os seus propósitos. Lá, a causa da Reforma havia avançado, para não falar da “atividade teológica e literária que lhe parecia oferecer um ambiente propício para seus trabalhos” (Justo Gonzalez). Em Genebra, Calvino planejou passar apenas uma noite, visto que a cidade vivia tempos caóticos e não lhe iria propiciar, segundo pensava, o isolamento adequado que tanto desejava para dedicar-se aos estudos. Foi nesse pernoite providencial que encontrou-se com Guillaume Farel (1489-1565). Farel, cerca de vinte anos mais velho que Calvino, foi um grande batalhador pela causa da Reforma. Era francês e ainda bem cedo, em 1521, aceitou a doutrina luterana da justificação pela fé. Participou de debates em Berna e Basileia, e 26


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ganhou para a causa protestante as cidades de Montbelliard, Neuchatel e Aigle. Em 1532, Farel iniciou seu trabalho em Genebra e, em 1535, um ano antes do encontro com Calvino, venceu um debate com os inimigos da Reforma, o que fez a cidade, no ano seguinte, adotar formalmente as ideias dos reformadores na Assembleia geral dos Cidadãos. Assim, quando Calvino pousou em Genebra naquela noite, Farel não pode deixar de perceber que a Providência tinha-o conduzido e, ao mesmo tempo, não perdeu tempo algum. Tão logo soube da presença do jovem francês, Farel foi ao seu encontro, lhe falou sobre as grandes necessidades de Genebra e lhe pediu veementemente que ali ficasse. Quando Calvino declinou do convite, alegando que tinha estudos especiais a realizar, Farel respondeu: “Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e ajuda” (citado por Gonzalez). Calvino ficou aterrorizado e permaneceu em Genebra. Sobre esse encontro com Farel, veio a escrever: “essas palavras me espantaram e me quebrantaram e desisti da viagem que tinha empreendido”. Mais tarde, Calvino escreveu o seguinte sobre como Deus o conduziu por caminhos que ele mesmo jamais ambicionou: “Por [eu] ser por natureza um tanto anti-social e tímido, sempre apreciei o isolamento e a paz (...). Mas Deus me envolveu com inúmeros acontecimentos e nunca me deixou descansar em lugar nenhum. E apesar de minha inclinação natural, empurrou-me para o palco e me obrigou a ‘entrar no jogo’, como se diz” (citado por Sheley).

1.2) Do encontro com Farel à morte. Em Genebra, Calvino recebeu um emprego de “Mestre das Sagradas Escrituras” e deu início a um árduo trabalho com Farel. Em 1537, Calvino e Farel prepararam a Instrução na Fé, ocasião em que conseguiram que a cidade adotasse datas pré-estabelecidas para a Ceia do Senhor, o canto congregacional e a disciplina da excomunhão a membros impenitentes. Entretanto, os embates na cidade recrudesceram quando os reformadores se recusaram a dar a Ceia do Senhor para alguns, o que soou ao Conselho da cidade como um rigor desnecessário. Shelley anota que o programa moral e disciplinar que imprimiram foi o mais rigoroso “dentro do protestantismo, e ia um pouco além daquilo que as autoridades religiosas da cidade haviam negociado”. Até que em 1538 o 27


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Conselho da cidade determinou que Calvino e Farel deixassem a cidade. Farel foi a Neuchatel; Calvino, para Strasbourg. Calvino permaneceu em Strasbourg entre 1538 e 1541. Nesse período, ele foi pastor de uma igreja de refugiados franceses, tornou-se amigo de Martin Bucer e Filipe Melanchton e casou-se com Idelette de Bure, viúva de um pastor anabatista e mãe de dois filhos. Com Idelette, teve um único filho que morreu ainda criança. Ainda em Strasbourg, Calvino produziu sua segunda edição das Institutas, publicou seu Comentário de Romanos e produziu uma liturgia em francês para os refugiados franceses, chegando a traduzir vários Salmos e outros hinos para o canto congregacional do culto dos refugiados. Em 1541, as forças reformadas tomaram outra vez Genebra, ocasião em que o Conselho da cidade o convidou a retornar. Persuadido por Bucer, Calvino retornou a Genebra em 13 de setembro daquele ano e foi nomeado pastor da Catedral de Saint-Pierre. Em Genebra, uma das primeiras ações de Calvino foi preparar as Ordenanças Eclesiásticas. Nesse documento, ele estabeleceu quatro tipos de oficiais para a igreja: os pastores, que dirigiam a disciplina; os mestres, que ensinavam a doutrina; os diáconos, que administravam as obras de misericórdia; e o Consistório, composto pelos ministros e doze anciãos, responsável pelo governo da igreja. O nome presbiteriano origina-se da forma de governo utilizada por Calvino em Genebra. Em abril de 1549, Idalette faleceu. Calvino nunca mais casou-se. Ele permaneceu na companhia dos dois enteados que criou e compartilhando a casa com o irmão e oito filhos deste. Como se podia esperar, houve épocas de muita oposição. Várias vezes, Calvino esteve perto de novo banimento. Segundo Gonzalez, “houve conflitos repetidos entre o Consistório e o governo da cidade, pois o corpo eclesiástico, seguindo a inspiração de Calvino, tratava de regular os costumes com uma severidade que nem sempre era do agrado do governo”. A influência do reformador fez de Genebra um lugar adequado para refugiados oriundos de perseguições católicas romanas e treinamento de pastores que depois regressariam a seus países de origem para disseminar a fé reformada. Um dos seus alunos foi o fundador do protestantismo escocês, John Knox, 28


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para quem Genebra era “a mais perfeita escola de Cristo jamais vista na terra desde os tempos dos apóstolos”. Entretanto, houve abusos em Genebra. “Para garantir a eficácia do sistema”, afirma Cairns, Calvino estabeleceu penalidades mais severas que a excomunhão. Em 1546, diz esse historiador, “28 pessoas foram executadas e 76 exiladas”. Em 1553, segundo Shelley, “durante um momento de menor influência de Calvino”, o médico espanhol Miguel Servetus refugiou-se em Genebra por negar o dogma da Trindade, quando fugia da perseguição católica romana, mas lá não teve destino melhor. Servetus morreu na fogueira! É difícil para o homem do século XXI ler essas “histórias horrendas”, o que de fato são. Não é possível justificar Calvino, nem o Consistório da igreja genebrina. No entanto, devemos nos recordar que no século XVI não se concebia generalizadamente uma completa dissociação entre Igreja e Estado. Assim, desobedecer à religião oficial do Estado era desobedecer ao Estado. Religião não era um tema de mera convicção pessoal, mas uma questão de Estado. Em 5 de maio de 1559, Calvino fundou a Universidade de Genebra, iniciando com seiscentos alunos e aumentando ainda no primeiro ano para novecentos. Foi na Universidade de Genebra que estudaram alunos vindos de outras cidades da Suíça, França, Holanda, Inglaterra, Escócia, Alemanha e Hungria. “A academia tornouse grandemente respeitada em toda a Europa” (Flanklin Ferreira). Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, bastante doente, foi transportado para a igreja em uma cadeira, ocasião em que pregou seu último sermão. Em 2 de abril, foi levado à igreja pela última vez e, mesmo enfermo, participou da Ceia e cantou com a congregação. No dia 28 de abril, convocou os ministros de Genebra à sua casa e despediu-se com as seguintes palavras: “A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça de escrever. Fiz isso do modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só passagem das Escrituras, nem conscientemente as distorci. Quando fui tentado a requintes, resisti à tentação e estudei a simplicidade. Nunca escrevi nada com ódio de alguém, mas sempre coloquei fielmente diante de mim o que julguei ser a glória de Deus”.

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João Calvino morreu em 27 de maio de 1564, faltando menos de dois meses para completar cinquenta e cinco anos. Suas últimas palavras, extraídas de uma carta endereçada a Farel no mês da sua morte, são estas: “É suficiente para mim viver e morrer para Cristo, que é, para todos os seus seguidores, um ganho tanto na vida quanto na morte”. Informa-nos Flanklin Ferreira que ele foi enterrado em cemitério comum e, em atenção a sua vontade, “não se ergueu nenhuma lápide sobre a sepultura. Ele não queria que nada obscurecesse a glória de Deus”. Seu sucessor foi Theodore Beza, outro refugiado francês. Quando Beza foi levar aos alunos da Universidade de Genebra a notícia da morte de Calvino, suas palavras foram: “Tenho sido um expectador de sua vida por 16 anos... agora posso declarar que nele todo homem pode ver um belo exemplo do caráter de Cristo, um exemplo que é fácil vituperarmos e difícil imitarmos” (citação de Joel Beeke). 2. Atividades missionárias de Calvino. Tem sido corriqueiro admitir que os reformadores em geral - e Calvino em particular - eram contrários a empreendimentos missionários. De fato, os protestantes não se lançaram em missões ao novo mundo do modo como fizeram os católicos romanos. Primeiro, porque estavam mais preocupados em se proteger ante ao forte movimento de contra-reforma; segundo, porque o mundo em volta estava-lhes fechado. Nesse sentido, Fred Klooster escreveu: “Sabemos o quão difícil era para [os reformadores] propagar o evangelho mesmo dentro da Europa sob governos geralmente controlados por príncipes, reis e imperadores Católicos Romanos. Praticamente todas as portas para o mundo pagão estavam fechadas a Calvino, bem como para outros reformadores, pois o mundo do Islã ao sul e a leste eram guardados por exércitos turcos, enquanto as marinhas da Espanha e Portugal impediam o acesso ao novo mundo recém-descoberto. O Papa Alexandre VI em 1493 deu às coroas Portuguesa e Espanhola direitos exclusivos para essas áreas e, posteriormente, papas e tratados reafirmariam essas doações” (citado por Michael Horton).

De fato, Ruth A. Tucker anotou que “Martinho Lutero tinha tanta certeza da volta iminente de Cristo que negligenciou a necessidade de missões estrangeiras”. Tucker acrescentou que Lutero defendia que a Grande Comissão só se aplicava aos apóstolos do Novo Testamento, e que estes haviam cumprido sua missão. Quanto a Calvino, por outro lado, ela observou: “O próprio Calvino, porém, era pelo menos aparentemente o missionário mais inclinado às missões entre os reformadores”. 30


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De fato, Genebra tornou-se um frutífero celeiro de missionários, na medida em que recebia refugiados oriundos de várias nacionalidades, treinava-os e enviava-os aos países de origem. Philip E. Hughes escreveu a respeito: “A Genebra de Calvino, todavia, era algo mais do que um abrigo de refúgio para os aflitos: era também uma escola, na qual, com a ajuda de aulas regulares e sermões por dia, as pessoas eram instruídas e edificadas para serem fortes na fé cristã. Ainda mais significativo, havia uma escola de missões: aberta, não só para receber os refugiados, mas também para enviar testemunhas que iriam espalhar o ensino da Reforma em terras distantes [...] era um centro dinâmico de ocupação e atividade missionária”.

Embora não se encontre, da lavra de Calvino, um tratado missiológico, é certo afirmar que o reformador jamais se opôs à ideia, para dizer o mínimo, e, mais que isso, que captou a relevância da responsabilidade evangelizadora da Igreja, o que se pode concluir a partir da análise dos seus comentários bíblicos. Em seu comentário Harmonia dos Evangelhos Mateus, Marcos e Lucas (Harmony of Mattheu, Mark and Luke), ao tratar sobre a Grande Comissão, Calvino afirmou: “[...] nós aprendemos a partir da enumeração destes eventos que nos são dados por Mateus que o último destes não aconteceu antes deles terem entrado na Galileia. O significado é este, ou seja, pela proclamação do evangelho em todos os lugares, eles deveriam trazer todas as nações à obediência da fé e, depois, eles deveriam selar e ratificar a doutrina deles pelo sinal do evangelho. Em Mateus, eles são ensinados, em primeiro lugar, simplesmente a ensinar; mas Marcos expressa o tipo de doutrina, a fim de que eles pudessem pregar o evangelho; e, logo depois, o próprio Mateus acrescenta este limite, qual seja, ‘ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. (1) Ide, portanto, (2) fazei discípulos de todas as nações, (3) batizando-os [...] fazei discípulos de todas as nações’. Aqui, Cristo, ao remover a distinção, faz os gentios iguais aos judeus e admite ambos indiscriminadamente a participar da aliança” (citado por José Roberto de Souza).

Ainda sobre a Grande Comissão, Calvino asseverou: “o Senhor ordena aos ministros do evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a salvação em cada parte do mundo”. Comentando I Tm 2:4, declarou que “não existem pessoas nem classe social no mundo que sejam excluídas da salvação, porque Deus deseja que o evangelho seja proclamado a todos sem exceção. Agora a pregação do 31


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evangelho dá vida, e por isso... Deus convida todos igualmente a participar da salvação”. Sobre Gl 4:16, Calvino anotou que “a Igreja enche o mundo todo e é peregrina sobre a terra”, o que fez Hermisten Maia observar, a propósito do comentário do reformador, que a “peregrinação da igreja tem um sentido missionário (“até aos confins da terra”) e escatológico (“até a consumação do século”). Enquanto ela caminha, confronta os homens com a mensagem do evangelho, chamando todos ao arrependimento e à fé em Cristo Jesus, até que ele volte” (citado por José Roberto de Souza). Em seu percuciente artigo A Presença dos Reformadores Franceses no Brasil Colonial, Flanklin Ferreira anotou que “Calvino, na realidade, liderou tanto os protestantes franceses como os de Genebra. E mais de 155 pastores, treinados em Genebra, foram mandados à França, entre 1555 e 1556”. Ferreira ainda considera os números do “Registro da Companhia dos Pastores” e de “outras fontes”, sobretudo no período compreendido entre 1555 e 1562: “Os nomes mencionados chegam a 88, enviados – sob pseudônimo, a maioria – para quase todos os campos da Europa, Mas muitos nomes, por medida de segurança não são mencionados, e por outras fontes, no ano de maio envio, 1561, o número de missionários chega a 142, mais do que muitas forças missionárias atuais”.

Portanto, pode-se afirmar com Frank James III que “longe de ser desinteressado em missões, a história mostra que Calvino foi arrebatado por elas”. 3. Missões Calvinistas no Brasil Colonial. Na década de 1550, a França chegou a ver um aumento notável da presença protestante, a despeito da cruel perseguição que os huguenotes sofriam. O almirante Gaspard de Chantillon Coligny era o líder da população protestante e foi ele que, aos 36 anos, patrocinou o envio de huguenotes ao Brasil, atendendo a solicitação do aventureiro e portador de uma farta experiência militar, o almirante Nicolas Durand de Villegaignon.

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Com efeito, o envio de protestantes ao Brasil redundou do encontro de motivações envolvendo Coligny e Villegaignon. Este, em uma conversa informal, ouviu sobre o recém-descoberto Brasil e interessou-se pela aventura de explorá-lo. Como sabia precisar da ajuda de Coligny, o flertou com a ideia de que o Brasil poderia ser um lugar onde os refugiados franceses perseguidos conseguiriam viver a fé reformada livremente. Segundo Jean de Léry, o historiador reformado da expedição, Villegaignon manifestou a vários líderes franceses o desejo não só de “retirar-se para um país longínquo onde pudesse livremente servir a Deus, de acordo com o evangelho reformado, mas ainda preparar um refúgio para todos os que desejassem fugir das perseguições” (citado por Flanklin Ferreira). Após os preparativos para a viagem, que incluíram o recrutamento de seiscentos colonos, a expedição partiu do porto de Havre em 12 de julho de 1555. Mas, como enfrentou uma forte tempestade que a fez aportar na costa da Inglaterra, em Dieppe, foi desertada por muitos e partiu definitivamente somente em 14 de agosto de 1555, com apenas oitenta homens. Após uma viagem perigosa e cheia de contratempos, finalmente, chegou ao Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1555. Ao aportar na Baía de Guanabara, Villegaignon enfrentou diversos problemas, tais como a falta de alimento e de água potável e a rebelião de alguns franceses. Nessa circunstância desfavorável, o almirante da expedição tentou, mas não logrou conseguir apoio militar com Henrique II, fato que o levou a pedir o apoio de Genebra, o que fez escrevendo uma carta a Calvino. Na carta, Villegaignon pediu à Igreja de Genebra que esta enviasse ministros da Palavra de Deus e com eles pessoas “bem instruídas na religião cristã” a fim de reformá-lo e a seu povo e “levar os selvagens ao conhecimento da salvação” (citado por Flanklin Ferreira). Segundo R. Pierce Beaver, “a Igreja de Genebra em uma só voz deu graças a Deus pela extensão do Reino de Jesus Cristo em um país tão distante, igualmente tão diferente e entre uma nação inteira sem o conhecimento do Deus verdadeiro”. Calvino estava em Frankfurt, Alemanha, mas foi informado e deu orientações. E a Igreja de Genebra escolheu dois ministros para enviar ao Brasil, Pierre Richier e Guilhaume Chartier, o primeiro com cinquenta e o último com trinta anos. 33


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Além dos ministros, foram recrutados mais onze homens: Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil, Jean de Bourdel, André La Fon, Nicolas Denis, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmieau, Jacques Rousseau, Jean Gardien e Jean de Léry. Quatro deles eram carpinteiros, um trabalhava com couro, um era ferreiro, um era alfaiate e, Jean de Léry, o historiador, era também sapateiro. Phillipe de Corguilleray, o Senhor Du Pont, foi enviado por Coligny para liderar o grupo huguenote. Os huguenotes partiram de Genebra no dia 8 de setembro de 1556, levando cartas de Calvino a Villegaignon, e, após uma breve estada em Paris, reuniram-se a um grande grupo de huguenotes em Honfleur, perto da Normandia. Ao todo, cerca de trezentas pessoas partiram ao novo mundo. Em 10 de março de 1557, chegaram no Rio de Janeiro, onde foram muito bem recebidos por Villegaignon, a quem apresentaram suas credenciais e entregaram as cartas de Calvino. Nesse mesmo dia, 10 de março de 1557, uma quarta-feira - 57 anos após a celebração da primeira missa, em 26 de abril de 1500; 40 após Lutero haver fixado suas teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg; quando Calvino tinha 47 anos – o pastor Pierre Richier dirigiu o primeiro culto protestante das Américas. Na ocasião, com toda a população reunida, a congregação cantou o Salmo 5, metrificado por Clement Marot, com música de Louis Bourgeois, e Richier pregou a partir do Salmo 27:4. Uma semana depois, em 21 de março, um domingo, foi celebrada a primeira Ceia das Américas nos moldes calvinistas. Entretanto, a paz esvaeceu em poucas semanas. Um homem que havia vindo ao Brasil com a promessa de Villegaignon de que seria bispo, chamado Jean Contac, começou a semear discórdia, polemizando acerca da natureza da presença de Cristo na Ceia e a propagando a necessidade de incluir água no vinho. Após violentos debates, decidiu-se que Gulhaume Chartier voltaria a Genebra para aconselhar-se com Calvino, o que fez em 4 de junho de 1557, em um navio carregado de pau-brasil. Antes da orientação de Calvino, todavia, Richier foi proibido de celebrar a Ceia segundo o rito calvinista e Villegaignon mandou acrescentar água ao vinho e determinou que ela fosse celebrada conforme a prática católica romana. O tratamento para com os huguenotes mudou radicalmente e, após padecerem sob severas

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humilhações, eles se refugiaram por dois meses em um povoado chamado La Briqueterie, até que embarcaram em um navio francês em 4 de janeiro de 1558. Devido ao excesso de carga, o pequeno barco, o Le Jacques, estava à iminência de naufragar. Após os reparos, a maioria dos huguenotes decidiu arriscar-se e seguir a bordo, mas frente à argumentação do comandante do navio quanto à insegurança da viagem, Jean de Léry e mais cinco protestantes decidiram permanecer no Brasil. Na hora da saída, um dos huguenotes suplicou a Léry: “Peço-vos que fiqueis conosco, pois apesar da incerteza que estamos de aportar em França, há mais esperança de nos salvarmos do lado do Peru ou de qualquer outra ilha do que das garras de Villegaigon, que, como podeis imaginar, nunca vos dará sossego” (citado por Flanklin Ferreira). Assim, Jean de Léry foi salvo de colher destino semelhante ao dos irmãos que retornaram, os quais foram: Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Mettieu Verneuil, André La Fon e Jacques le Balleur. Os cinco huguenotes lançaram-se no mar em um escaler sem mastro e, após várias intempéries, chegaram ao Forte. Villegaignon, buscando ocasião para executá-los, fez um questionário com pontos controversos e determinou que lhe dessem resposta no prazo de doze horas. Eles escolheram Jean du Bourdel para redigir a Confissão de Fé da Guanabara (Confessio Fluminensis), com dezessete artigos. A Confissão inicia assim: “Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da esperança que neles há, e isso com toda doçura e benignidade, nós abaixo assinados, Senhor Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado e ordenado, e começando no primeiro artigo”.

O primeiro artigo da Confissão Fluminense reza sobre a Trindade; o segundo, sobre a dupla natureza do Salvador. O terceiro artigo ratifica o ensino da Palavra de Deus, da doutrina apostólica e do “símbolo” sobre o Filho de Deus e o Espírito Santo; e o quarto afirma a segunda vinda do Salvador para julgar os vivos e os mortos. Os artigos V, VI, VII e VIII respondem aos pontos polêmicos envolvendo a Ceia do Senhor. O nono artigo afirma o batismo e nega as tradições católicas romanas. O décimo reconhece livre-arbítrio somente em Adão, e antes da Queda, afirma que o

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livre-arbítrio é restaurado no cristão, “não todavia em perfeição”, e que os predestinados para a vida eterna não caem em impenitência. O artigo XI confere o perdão de pecados somente ao evangelho e à virtude do Espírito, e nega que o ministro possa realizá-lo; o XII discute a imposição de mãos e os artigos XIII e XIV estabelecem o ensino sobre casamento, enquanto o XV reprova os votos monásticos. O artigo XVI confessa que somente Jesus Cristo é o “Mediador, intercessor e advogado” e o XVII proíbe a intercessão pelos mortos. A Confissão termina com estas palavras: “Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando que Lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendonos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre, Assim seja. Jean du Bourdel, Metthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon”.

No dia 9 de fevereiro de 1558, os professantes foram levados a Villegaignon, ratificaram a Confissão e foram presos. Na manhã de 10 de fevereiro, uma sexta-feira, o “Caim da América” (como depois ficou conhecido) tentou fazer os huguenotes negarem sua fé, mas eles mantiveram-se firmes. Jean du Bourdel foi violentamente esbofeteado e, após estimular os companheiros e cantar um Salmo, foi lançado ao mar. Metthieu Verneuil foi levado à rocha e, após negar-se a se retratar, proferiu suas últimas palavras: “Senhor Jesus, tem piedade de mim”. André la Fon foi poupado por Villegaignon por ser alfaiate, e Jacques Le Balleur, por ser ferreiro. Pierre Bourdon não havia ido à ilha por estar doente, razão pela qual Villegaignon foi aonde ele estava e, uma vez que este não negou sua fé, foi estrangulado por um carrasco e seu corpo foi jogado ao mar. As últimas palavras de Bourdon foram: “Senhor Deus, sou também como aqueles meus companheiros que com honra e glória pelejaram o bom combate pelo teu Santo Nome e, por isso, peço-te me concedas a graça de não sucumbir aos assaltos de Satanás, do mundo e da carne. E perdoa, Senhor, todos os pecados por mim cometidos contra tua majestade, e isto eu te imploro em nome do teu Filho muito amado Jesus Cristo”.

Assim encerrou a missão genebrina-calvinista em terras brasileiras. Calvino permanece na história como o reformador que enviou missionários para estender o Reino de Cristo no novo mundo. Não logrou fazer trabalho permanente, pelas

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razões aqui apresentadas. Mas, a semente haveria de frutificar, ainda que somente quase trezentos anos depois. 4. A obra, a pregação e a influência de Calvino. Calvino foi o grande sistematizador do pensamento da Reforma. Suas Institutas da Religião Cristã foram editadas pela primeira vez em Basileia, no ano de 1536. Em seu primeiro formato, era um livro de 516 páginas capaz de caber nos amplos bolsos da época. Como antes adiantamos, a obra foi escrita em defesa dos huguenotes, que viviam sob cruel perseguição, e endereçada ao rei Francisco I. Como disse Calvino em sua dedicatória ao rei francês, ele se dedicou “a este trabalho sobretudo pelos nossos franceses: embora entendesse que muitos deles estivessem famintos e sedentos de Cristo, percebia que muito poucos eram imbuídos de um conhecimento minimamente correto”. Anos mais tarde dessa primeira edição, Calvino escreveu o que o impulsionou ao labor de escrever as Institutas: “Mas eis que, enquanto me encontrava escondido em Basileia e era conhecido por poucos, muitos fieis e não poucos santos estavam sendo queimados vivos na França (...) Pareceu-me que, a menos que opusesse [aos perpetradores] com o máximo da minha habilidade, meu silêncio não poderia ser inocentado da acusação de covardia e traição. Foi essa a consideração que me induziu a publicar minha Institutas da Religião Cristã (...) Elas foram publicadas por nenhum outro motivo, senão aquele de fazer com que os homens soubessem qual a fé daqueles que vi tão vilmente e cruelmente caluniados” (citado por John Piper).

Quando em Strasbourg, no ano de 1539, publicou a segunda edição das Institutas. Estas primeiras edições (de 1536 e 1539) foram publicadas em latim. Em 1541, em sua segunda estada em Genebra, foi publicada a primeira edição em francês. Gonzalez anota que a partir de então “as edições surgiram aos pares, uma latina seguida de uma versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560”. No prefácio da última edição, escrito em primeiro de agosto de 1559, Calvino falou sobre sua dedicação em enriquecer a obra com “não poucos acréscimos”, deixou claro que a obra não tinha outro propósito senão o de contribuir para o avanço da Igreja de Cristo e afirmou sua firmeza em labutar pela edificação dos fieis com as seguintes palavras:

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 38 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma “Engana-se o diabo, com toda a sua caterva, se, ao me oprimir com fétidas mentiras, considera que haverei de ser mais alquebrado ou mais indolente, porquanto confio que Deus, por sua imensa bondade, há de me dar tolerância equânime para perseverar no curso de seu santo chamado, cujo novo exemplo exibo nesta edição para os leitores fieis. Além disso, neste trabalho, foi este meu propósito: preparar e instruir os candidatos ao aprendizado da palavra divina da sagrada Teologia, para que possam ter um acesso fácil a ela, assim como prosseguir livremente em seus passos, pois considero ter reunido uma tal suma da religião em todas as suas partes e a tenha classificado em tal ordem, que qualquer um que a considere retamente não terá dificuldade em estabelecer e buscar o que é principal na Escritura, e possa aquele, ao final, referir tudo que nela está contido”.

A versão final das Institutas é composta de quatro livros, com um total de 80 capítulos. O primeiro livro (com 18 capítulos) trata sobre o conhecimento de Deus criador; o segundo (com 17 capítulos), sobre Deus redentor, como Ele se nos apresenta no Antigo Testamento e depois no evangelho de Jesus Cristo; o terceiro (com 25 capítulos), sobre como o Espírito nos leva a participar da graça de Jesus Cristo; e, o quarto (com 20 capítulos), sobre os “meios exteriores” pelos quais Deus nos chama e nos matem unidos a Cristo. Além das Institutas da Religião Cristã, Calvino escreveu comentários, uma ampla correspondência com quase toda a Europa e participou de inúmeras conferências. Entretanto, ele foi antes de tudo um pregador. Quando esteve em Strasbourg, apascentando a congregação de refugiados franceses, pregou quase todos os dias e duas vezes aos domingos. Em Genebra, costumava pregar aos domingos pela manhã e à tarde no Novo Testamento, pregando algumas vezes em Salmos durante a tarde. Nas manhãs de semanas alternadas, pregava no Antigo Testamento. Seu estilo de pregação era a lectio continua – exposições consecutivas -, por meio do qual ele percorreu quase toda a Bíblia pregando verso após verso e livro após livro. De 25 de agosto de 1549 a março de 1554, pregou uma série de exposições em Atos. Depois de Atos, pregou 46 sermões em I e II tessalonicenses, 186 em I e II Coríntios, 86 nas pastorais, 43 em Gálatas e 48 em Efésios, até 1558. Após um intervalo em que esteve enfermo, retomou em 1559 com a Harmonia dos Evangelhos, série de sermões que só foi interrompida por sua morte, em 1564. Nestes últimos anos, pregou 159 sermões em Jó, 200 em Deuteronômio, 353 em Isaías, 123 em Gênesis e assim por diante.

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Pelo que se sabe, Calvino pregou do primeiro ao último versículo nos seguintes livros: Gênesis, Deuteronômio, Jó, Juízes, I e II Samuel, I e II reis, todos os profetas maiores e menores, os evangelhos, Atos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, I e II tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito e Hebreus. Seus últimos sermões foram no dia 2 de fevereiro de 1564, em Reis, e no dia 6 de fevereiro de 1564, nos evangelhos. Segundo Hernandes Dias Lopes, “calcula-se que Calvino pregou uma média de 290 sermões por ano. No entanto, muitos desses sermões se perderam. Só 800 foram publicados durante a vida do pregador e só pouco menos de 1,1 mil estão em edições eruditas modernas. Calcula-se que mais de 1 mil deles desapareceram”. Calvino era tão apegado ao estilo lectio continua que, em setembro de 1541, quando reassumiu o púlpito em Genebra, ele reiniciou suas exposições exatamente no versículo seguinte ao que havia pregado pela última vez, três anos antes. O mesmo fez o reformador quando ficou doente em outubro de 1558 e só voltou a pregar em 12 de junho 1559, uma segunda-feira, ocasião em que sequência às exposições de Isaías no ponto em que havia parado. Para Calvino, “o assunto que deve ser ensinado é a Palavra de Deus e a melhor forma de ensiná-la... era por meio de uma exposição metódica e constante, livro após livro” (citado por Steven Lawson). Com efeito, as vantagens da lectio continua são inúmeras, mas me contento em ressaltar as seguintes: primeiro, impede o pregador de selecionar a seu bel prazer os temas que lhe são mais atraentes, de evitar certas doutrinas e omitir-se quanto aos Textos mais complicados da Palavra de Deus, a fim de que todo o Conselho de Deus seja pregado (At 20:27). Segundo, o estilo em comento é uma expressão da confiança do pregador na inerrância, autoridade e suficiência de toda a Escritura para edificar o povo de Deus (II Tm 3:16, 17). Terceiro, pela pregação expositiva, a mensagem é necessariamente ditada pelo Texto, ela emana do Texto, ou seja, o pregador não alimenta consigo uma ideia preconcebida e, então, parte à Bíblia em busca de amparo. Quanto a isso, Calvino afirmou: “Quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios sonhos e fantasias” (citado por John Piper). Quarto, como a lectio continua é nada mais que a explicação e aplicação do texto, ou, noutro dizer, é uma busca pelo sentido original do Texto tal qual pretendido por Deus, ela é o melhor remédio contra interpretações e aplicações fora do contexto, que não podem ser seriamente verificadas no Texto por meio de uma séria exegese. Finalmente, 39


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exposições consecutivas são a melhor forma para quem escolheu para o ministério os alvos da maturidade espiritual da igreja e a glória de Deus! Mas, voltemos à pregação do reformador franco-suíço. Calvino conhecia os idiomas originais das Escrituras, e pregava com os textos do Antigo Testamento em hebraico e do Novo testamento em grego, sem quaisquer anotações. Foi um homem chamado Denis Raguenier que começou a fazer um registro escrito dos sermões de Calvino, utilizando um sistema de taquigrafia. Posteriormente, chegou a ser contratado para o serviço. Steven J. Lawson registra que “Raguenier realizou seu trabalho com surpreendente exatidão, dificilmente perdendo uma palavra. Essas exposições escritas logo foram traduzidas em várias línguas, conquistando uma ampla distribuição”. Nesse passo, urge responder a questão sobre por que Calvino tanto valorizou a pregação as Escrituras. As respostas devem, dentre outras, contemplar ao menos os seguintes pontos: primeiro, Calvino cria que Deus revela Sua majestade nas Escrituras e a autentica como a Sua Palavra mediante o testemunho interno do Espírito. É dizer, é através da Escritura que Deus, mediante o testemunho interno do Espírito, concede um “conhecimento salvador” e põe a Escritura diante de nós como digna de reverência e aceitação acima de qualquer controvérsia. Ouçamos o próprio Calvino a respeito: “Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], acreditamos que as Escrituras são de Deus não pelo nosso próprio julgamento nem pelo julgamento de qualquer outra pessoa; mas, acima de qualquer julgamento humano, afirmamos com absoluta certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus) que esta certeza nos chegou da própria boca de Deus, e não através do ministério de homens”.

Em segundo lugar, Calvino cria que uma das marcas de uma verdadeira igreja de Cristo era a pregação bíblica fiel. Para o reformador, onde a Palavra de Deus não for pregada com exatidão e os sacramentos não forem administrados com pureza, não trata-se de uma igreja cristã genuína. Ele disse que “uma assembleia na qual não se ouve a pregação da doutrina sagrada não merece ser reconhecida como igreja” e, noutro lugar, que “a piedade enfraquece rapidamente quando a vivificante pregação da doutrina cessa” (citações de Lawson).

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Em terceiro lugar, a pregação era tão imprescindível no ministério de Calvino porque acreditava que ela ocupa o lugar proeminente no culto. Lawson resume o pensamento de Calvino quanto à primazia da Escritura no púlpito: “O que Deus tem a dizer ao homem é infinitamente mais importante do que as coisas que o homem tem a dizer para Deus. A fim de que a congregação adore apropriadamente, os crentes sejam edificados e os perdidos sejam convertidos, a Palavra de Deus deve ser explicada. Nada deve tirar as Escrituras do lugar mais importante no ajuntamento público” (grifo do autor).

Calvino influenciou pessoas em toda a Europa com sua pregação, obras escritas e correspondências, que, a seu turno, levaram sua influência aos mais diversos países a ao novo mundo. Muito contribuíram à larga influência de Calvino a Academia de Genebra o alcance das Institutas. Some-se a isso, ter a cidade de Genebra tornado-se um centro protestante reformado que recebia refugiados da França, da Escócia e da Inglaterra, e da Hungria, Polônia, Países Baixos e Itália. Embora a Alemanha tenha permanecido firmemente luterana, o pensamento de Calvino a afetou consideravelmente. Muitos foram influenciados pela sua doutrina, dentre os quais Filipe Melanchton, e após a morte de Lutero se uniram à Igreja Reformada da Alemanha. Na França, a influência e liderança do reformador se fizeram sentir. Estima-se que quando Calvino morreu, em 1564, 20% da população francesa, cerca de 2.000.000 de pessoas, confessavam a fé reformada. “Por um tempo, parecia que a França abraçaria oficialmente a fé reformada. Contudo, a perseguição por parte da Igreja Católica e a guerra civil interromperam a propagação do ensino reformado. De certo modo, o movimento reformado francês nunca se recuperou desse golpe de perseguição a ataque no século XVI” (Joel Beeke). Na Escócia, o avanço da Reforma se deveu em grade parte a John Knox (1513-1572). Foi ele que, após estudar em Genebra, como porta-voz dos princípios da Reforma, contribuiu para a rejeição da autoridade papal em 1560 e da organização da Igreja Reformada Escocesa. Na Inglaterra, o pensamento de Calvino despertou o puritanismo inglês, a partir de 1560, que nada mais era do que “um tipo de calvinismo vigoroso” (Joel Beeke), movimento que abarcava presbiterianos, episcopais e congregacionais. Da 41


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Inglaterra, a influência de Calvino foi levada ao novo mundo, quando, em 1620, os pais peregrinos vieram à América no May Flower e se estabeleceram em Massachussets. A partir de 1620, os calvinistas holandeses estabeleceram a colônia de New Netherlands, mais tarde chamada New York, para onde acorreram aos milhares os huguenotes franceses no final do século XVII, os alemães no século XVIII e, finalmente, os irlandeses e escoceses, a maioria dos quais presbiterianos. Pelo que percebemos, a influência da fé reformada ou calvinismo afetou diretamente a Holanda, a Alemanha, a Hungria e a Grã-Bretanha, ainda no século XVI, e a partir do primeiro quartel do século XVII, a América do Norte, através de imigrações. O trabalho permanente no Brasil, como ainda teremos oportunidade de demonstrar, querendo Deus, só logrou realizar-se no século XIX, com as imigrações alemãs e o pioneirismo do escocês presbiteriano-calvinista Robert Kalley, fundador do congregacionalismo brasileiro. 5. O pensamento de Calvino: Calvinismo ou Fé Reformada. A tradição protestante denominada Fé Reformada tem suas origens na Suíça, com Ulrich Zwínglio e Heinrich Bullinger, história que já repisamos celeremente em ocasião anterior. Com a morte prematura de Zwínglio, em 1531, Calvino surgiu no cenário histórico para tornar-se o maior expoente da tradição reformada, fato que tornou as nomenclaturas Fé Reformada e Calvinismo praticamente sinônimas. Conforme relembra Joel Beeke, “Calvino preferia reformado porque se opunha a que o movimento fosse designado por seu nome”. Calvino não diferia substancialmente de Lutero em termos teológicos e a predestinação não era uma crença distintamente calvinista. Ambos a aceitavam. Ademais, Gonzalez observa que “Lutero havia dado boa acolhida às Institutas de Calvino”. De fato, enquanto os reformadores viveram, o que os distanciava era a noção de cada um quanto à presença de Cristo na Ceia. Calvino opunha-se a Zwínglio, por acreditar que a Ceia não era apenas um simbolismo, e a Lutero, quando afirmava que é o Espírito que eleva os crentes a uma comunhão com Cristo e não que Cristo desce do céu e, pessoalmente, faz-Se presente nos elementos.

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Entretanto, é também possível afirmar que diferentes ênfases eram dadas pelos reformadores alemão e francês quanto a diversas facetas doutrinárias. Enquanto Lutero permaneceu enfatizando a doutrina da justificação pela fé somente, Calvino percebeu a soberania de Deus como sendo a doutrina central e ressaltou mais que o monge alemão a busca pela santidade pessoal e a vida para a glória de Deus. Segundo Bruce L. Shelley, “O último texto de Lutero foi ‘O justo viverá pela fé’, e o de Calvino, ‘Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu’”. Quanto ao culto, os reformadores também diferiam acerca do modo como as Escrituras o regulam. Lutero propôs uma reforma mais moderada, ensinando que no culto pode haver o que não está expressamente proibido nas Escrituras. Para Calvino, a seu turno, a igreja não tem permissão para incluir no culto o que o Novo Testamento não ordena. Pois bem, agora chegamos ao ponto central em nosso estudo, ocasião em que sugerimos as seguintes questões: o que é Calvinismo ou Fé Reformada? O que o define? Qual o seu princípio dominante? Em que crê um calvinista? Como o Calvinismo transforma a visão de mundo daquele que o confessa? Em termos sotereológicos (‘soteriologia’ significa ‘doutrina da salvação’, vocábulo composto por ‘soteria’, salvação, e ‘logos’, palavra, tratado ou estudo), o calvinismo tem sido resumido através do acróstico TULIP, cujas letras indicam às doutrinas da Total Depravity (depravação total), Unconditional Election (eleição incondicional), Limited Atonement (expiação limitada), Irresistible Grace (graça irresistível) e Perseverance of the Saints (perseverança dos santos). O acróstico TULIP não foi formulado por Calvino. Historicamente, suas raízes repousam na controvérsia sotereológica que envolveu Jacob Arminius (de onde vem o nome ‘arminianos’) e seus discípulos, os remonstrantes, no seio da Igreja Reformada Holandesa. Após a morte de Arminius (em 1609), os remonstrantes apresentaram cinco questionamentos à Fé Reformada que exigiram atenção especial. Nesse documento, eles afirmaram a crença na eleição condicional, na expiação universal, na depravação parcial, na graça resistível e na possibilidade de perda da salvação. Em resposta, os delegados do Sínodo de Dort (reunido em 1618-1619) apresentaram os chamados Cânones de Dort, formulação doutrinal que deu origem ao 43


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TULIP. Assim, desde o início do século XVII, a soteriologia reformada tem sido resumida sob a designação do acróstico, que também não escapa a críticas. Primeiramente, observa-se que ele simplificou e reorganizou a ordem dos Cânones de Dort, fato que levou Joel Beeke a vaticinar que os “cânones dizem muito mais do que apenas o que é apresentado pelo TULIP e dizem-no com muito mais vitalidade e numa ordem melhor”. Em segundo lugar, deve-se pontuar igualmente que o TULIP não resume toda a teologia calvinista ou reformada, sendo esta muito mais ampla. Mesmo uma mais profunda compreensão do acróstico só pode ocorrer quando analisado dentro de um exame mais completo da Fé Reformada, que não pode prescindir das doutrinas de Deus, de Cristo e do Espírito Santo, tampouco da justificação pela fé somente. Segundo Muller (citado por Beeke): “Quando aquele grande número de pontos ensinados pelas confissões reformadas não é respeitado, os famosos cinco pontos são ameaçados e, de fato, dissolvidos – e a saúde espiritual contínua da igreja é colocada em perigo”. Entretanto, o TULIP pode ser usado com proveito porque realmente sintetiza a sotereologia calvinista, razão pela qual apresentaremos breve explicação de cada doutrina na ordem sugerida pelo acróstico. À doutrina arminiana da depravação parcial, os calvinistas responderam com sua crença na depravação total. Para os remonstrantes, a Queda não privou totalmente o homem da capacidade de escolha, razão pela qual ele pode cooperar ou não com a “graça preveniente”, e, quando arrepende-se e crer em Cristo, o faz através do exercício do seu “livre-arbítrio”. Para os calvinistas, a solidariedade da humanidade com Adão é tal que todos os homens, sem exceção alguma (Rm 3:9-12), por aquilo que ele fez como seu representante, nascem culpados (Rm 5:12, 15-18) e participantes de sua natureza corrompida (Rm 5:19). Em consequência do “pecado original”, a Queda afetou cada membro da humanidade em todas as suas faculdades (Rm 3:13-18), a inclinação da natureza humana é constantemente má (Rm 8:6-8; Gn 6:5; Jr 17:9) e todos estão impossibilitados de, por si mesmos, discernirem a verdade (I Co 2:14), desejarem a salvação (Fp 2:13), verem o reino e entrarem nele (Jo 3:3, 5) e irem a Deus (Jo 6:44, 65) sem que antes sejam para isso renovados pela onipotência divina. A doutrina da eleição incondicional foi uma resposta ao ponto arminiano que afirmava a eleição condicional. Segundo esta, Deus elegeu aqueles que Ele previu 44


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que creriam em Cristo. A crítica calvinista a uma eleição baseada em previsão de fé está em que ela, na prática, perverte a noção de eleição divina, porque lhe rouba a força realizadora e percebe o homem como o sujeito ativo de sua própria eleição. O calvinismo insiste em ver com seriedade conceitos como “eleição”, “predestinação” e “propósito” (Ef 1:4, 5, 11; Rm 8:29, 30; 9; 11:5; I Co 1:26-29; I Ts 1:4, 5; II Ts 2:13, 14; II Tm 1:9, 10; I Pe 1:1, 2), dos quais nenhum leitor da Escritura pode escapar, e luta por preservar a noção de Deus como o verdadeiro autor da eleição. Quando os arminianos defenderam a tese da expiação universal, embora com eficácia limitada àqueles que vierem a crer, os calvinistas reagiram com a sua doutrina da expiação limitada. Para os discípulos de Arminius, Cristo morreu com a intenção de salvar a todos, sem exceção alguma, embora não tenha assegurado a salvação ninguém, sem exceção alguma. Os calvinistas têm observado diversas dificuldades com a doutrina arminiana em apreço, que passo a destacar: Primeiro, que os atributos de Deus são postos em jogo. O amor de Deus, por exemplo, seria, nesse caso, um amor que é vencido e que, no final, se torna em ira inexaurível para todos aqueles que vieram a recusá-lo. Tratar-se-ia, igualmente, de um amor que teria desejado a salvação de todos, levado Cristo a morrer no lugar de todos sem exceção, mas que não teria provido os meios para que todos viessem a ser salvos, visto que sabidamente nem todos da espécie humana têm ouvido, ouvem e ouvirão a pregação do evangelho. A justiça de Deus também seria objeto de questionamento, se adotássemos a noção de que Cristo sofreu a penalidade no lugar de todos os pecadores e, por rejeitálO, muitos destes viriam a padecer no inferno. Isso criaria uma situação injusta, visto que os mesmos pecados seriam duplamente punidos, em Cristo e nos próprios pecadores impenitentes. Semelhantemente, a sabedoria, a onisciência, a vontade e o poder soberanos de Deus ficam sob forte suspeita, se acolhida a doutrina arminiana. A expiação universal entende que Deus planejou uma salvação que de fato não viria a se concretizar. Na prática, Ele teria provido um pagamento para os pecados de todos, sabendo que não salvaria a todos, que esse pagamento não seria aproveitado por todos. Se interpusermos a ideia de que Deus não sabia que não alcançaria a todos com a 45


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salvação que propôs-Se a realizar, as dificuldades só aumentam. A doutrina arminiana equivoca-se por não reconhecer a soberania de Deus, porque, segundo essa compreensão, Deus não conseguiu realizar Seu intento, Sua vontade não foi exercida completamente e, no máximo, atribui-se a Deus uma vontade frustrada e impotente. Em segundo lugar, a expiação universal perverte a unidade funcional da Trindade e questiona a eficácia da obra de Cristo e das operações do Espírito Santo. Uma vez que entende que Deus escolheu aqueles que Ele previu a quem a obra de Cristo aproveitaria, por que Cristo teria substituído a todos sem exceção alguma na cruz? Por que não haver morrido somente pelos “eleitos”, isto é, aqueles que pela fé receberiam os benefícios da cruz? Na prática, Cristo teria feito algo não tencionado pelo Pai. Mais que isso. Se Cristo morreu por todos sem exceção alguma, Ele não apenas teria feito algo não pretendido pelo Pai, mas teria feito mais do que o que Espírito Santo haveria de realizar. Como sabemos que o Espírito não conduz a todos sem exceção a gozar os benefícios da cruz, Sua obra não estaria em consonância com a obra do Filho. Também digno de nota, é que a eficácia da cruz de Cristo seria igualmente objeto de controvérsia, caso Ele tivesse morrido para pagar por todos os pecados, a exceção do pecado da incredulidade. O argumento irrespondível de John Owen (citado por Joel Beeke) demonstra a seriedade desse ponto: “Deus impôs sua ira devida, e Cristo suportou as aflições do inferno, ou por todos os pecados de todos os homens, ou por todos os pecados de alguns homens, ou por alguns pecados de todos os homens. Se este último caso for verdade, alguns pecados de todos os homens, então todos os homens têm pecados pelos quais terão que responder; logo, ninguém será salvo. Se o segundo caso for verdade (isto é o que afirmamos), Cristo, em lugar e por eles, sofreu pelos pecados de todos os eleitos do mundo. Se o primeiro caso for verdade, então por que nem todos são libertos da punição de todos os pecados? Você dirá: ‘Por causa da sua incredulidade. Eles não querem crer’. Mas essa incredulidade é um pecado ou não? Se não, por que eles devem punidos por ela? Se é pecado, então Cristo sofreu a punição devida a esse pecado, ou não? Se ele sofreu, por que esse pecado os impede, mais do que os seus outros pecados pelos quais Cristo morreu, de participar do fruto de Sua morte? Se Cristo não sofreu por esse pecado, ele não sofreu por todos os pecados deles”.

Finalmente, basta observar que todo o senso de segurança que cantamos alegremente perder-se-ia, se pensássemos que Deus não fez mais por nós do que fez por 46


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Judas Iscaraiotes, Saul e Esaú. Se aceitarmos a doutrina arminiana da expiação, estaremos dizendo que Cristo, embora tenha morrido no lugar de todos, não garantiu a salvação de ninguém e que, deveras, correu o risco de não salvar ninguém. Nesse sentido, a pergunta de Joel Beeke é de todo pertinente: “E, se há no inferno alguns pelos quais Cristo morreu, como posso ter certeza de que a expiação será eficaz para mim?” Em relação aos termos “mundo”, “mundo inteiro” e “todos” (Jo 3:16; I Jo 2:2; Rm 8:32; II Co 5:15; I Tm 2:4-6), referidos no contexto da obra expiatória do Salvador, os calvinistas têm observado que elas não significam “todos sem exceção alguma”, mas, a depender do contexto, o “mundo eleito”, “todos os eleitos de todas as nações” ou “todos os tipos de pessoas”. Positivamente, têm apresentado provas escriturísticas de que Cristo morreu e intercedeu para salvar os pecados do Seu povo (Mt 1:21) - suas ovelhas (Jo 10:10-15, 26, 28; 17:9), Sua igreja (Ef 5:25-27; At 20:28), “os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação” (Ap 5:9). Cristo substituiu especificamente a “muitos” (Mt 20:28), e não a “todos”, se com isso queremos dizer todos sem exceção alguma. Assim, a obra de Cristo não é apenas preparatória, ela é assecuratória. Ela não apenas potencializou a salvação, mas de fato a garantiu. Por isso, todos quantos o Pai elegeu, Ele os deu a Cristo para ser este o fiador eficaz do Seu povo, em favor de quem verdadeiramente morreu e conquistou todos os dons necessários à salvação, cuja síntese é a dádiva do Espírito. A doutrina calvinista da graça irresistível foi apresentada para resistir ao ponto remonstrante que defende a graça resistível. Para os arminianos, não há distinção entre graça comum e especial. Noutras palavras, a graça comum é especial, é preparatória para que o pecador não regenerado possa crer e ser salvo; e a graça especial é comum, porque concedida a todos os homens e mulheres, sem exceção alguma. Logicamente, para os arminianos, essa graça é sempre resistível, e sua eficácia fica a depender da decisão do pecador em cooperar com ela. Os calvinistas opuseram-se à graça resistível reconhecendo a distinção entre chamada exterior e chamada eficaz. Compreenderam que há uma chamada exterior, estendida a todos que ouvem o evangelho (Mt 11:28; II Co 5:19-21), que pode ser resistida e, de fato, sempre seria, se não acompanhada de uma chamada interior e eficaz em certas ocasiões (Rm 8:30; I Co 1:23, 24). Mesmo Cristo ofereceu um chamado resistível (Lc 13:34; Mc 10:21, 22), ao passo que afirmou: “As minhas ovelhas 47


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ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10:27). Assim, quando através da pregação da igreja Deus chama interior e eficazmente, esse chamado é sempre irresistível. O pecador é de fato iluminado para compreender o evangelho (At 16:14) e regenerado, operações que o conduzem necessariamente ao arrependimento e à fé salvadora. Finalmente, os remonstrantes questionaram a segurança da salvação também quando passaram a defender a possibilidade de um verdadeiro salvo apartar-se da graça, noção resistida pelos calvinistas com a doutrina da perseverança dos santos. Com “perseverança dos santos”, a Fé Reformada não deseja comunicar que os crentes verdadeiros não pecam ou que não podem eventualmente estagnar ou regredir em santificação, tampouco que não haja falsos professantes no seio da igreja. Quer, sim, afirmar que é impossível que um eleito pelo Pai, substituído por Cristo e chamado eficazmente e regenerado pelo Espírito venha a perder-se final e irreversivelmente. A “corrente de ouro” de Rm 8:28-30 encerra a discussão na medida em que coloca como certa a obra da glorificação (inclusive no tempo verbal no passado, como se já tivesse ocorrido) para todos quantos foram justificados. A lógica insofismável de Rm 8:32 requer que concluamos que uma vez que Deus fez o improvável por nós – “não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou” -, todos os demais benefícios decorrentes, essenciais à consumação da nossa salvação, ser-nos-ão necessariamente doados. Para os calvinistas, a obra da salvação é de Deus, do começo ao fim. Por isso, Ele concluirá a obra que começou (Fp 1:6), guardando Seu povo eleito do tropeço e o recebendo finalmente em Sua glória (Jo 10:27-30; Ef 5:25-27; I Pe 1:5; Jd 24, 25), sem perder um só sequer (Jo 18:8). Eis uma suma do que tem sido chamado de sotereologia calvinista. É o que a ocasião nos permitir dizer. No entanto, ainda devemos enfatizar que os cinco pontos do calvinismo – o TULIP -, não são nem a expressão completa da teologia reformada nem a essência mesma do calvinismo enquanto sistema de percepção de mundo. Com efeito, podemos conceituar calvinismo como a cosmovisão mais puramente cristã, construída sobre o alicerce da soberania amorosa e infalível de Deus, cujo teocentrismo influencia todos os aspectos da existência e todas as relações daqueles que o confessam e praticam.

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Os calvinistas são, por assim dizer, pessoas absorvidas pela Trindade e Sua glória. Mason Pressly (citado por Joel Beeke) distingue o calvinismo em relação a outras expressões do cristianismo com as seguintes palavras: “Assim como o metodista coloca na vanguarda a ideia da salvação de pecadores; o batista, o ministério da regeneração; o luterano, a justificação pela fé; o morávio, as chagas de Cristo; os católicos gregos, o misticismo do Espírito Santo; e o romanista, a universalidade da igreja, assim também o calvinista coloca na vanguarda o pensamento sobre Deus”.

O teocentrismo calvinista faz da fé reformada um sistema de vida completamente distinto. A maneira como Deus é compreendido e o modo como é central à percepção calvinista, conferem significados próprios à natureza da salvação, às razões do evangelismo, ao lugar do inferno, ao significado do pecado, e altera a forma como nos relacionamos com Deus, com o nosso semelhante e com o mundo. Em Calvino, muito mais que em Lutero, “os próprios crentes eram a Igreja porque pela fé permaneciam em contato com o Poderoso” (Abraham Kuyper). No calvinismo, mais do que no luteranismo, todos os homens, ricos e pobres, foram vistos em posição de igualdade perante a glória excelsa de Deus. Finalmente, a fé reformada reconhece Deus no mundo, na medida em que vê as operações do Espírito na graça comum como abrangentes e inclusivas, atenuando os efeitos da maldição.

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IV. O Calvinismo Além da Suíça Parte I

1. O Calvinismo na Alemanha e o Catecismo de Heidelberg. A primeira manifestação da fé reformada na Alemanha surgiu nas três cidades do Reno e em Strasbourg, cuja expressão escrita (a Confissão Tetrapolitana) foi apresentada na Dieta de Augsburgo, em 1530. No Palatinado, uma influente província alemã governada pelo eleitor Frederico III (1516-1576), o calvinismo também exerceu forte influência. Após uma disputa pública ocorrida em 1560, Frederico decidiu-se pelo calvinismo de eclesiologia presbiteriana, e encarregou a Zacarias Ursinos (1534-1583) e Gaspar Olevianus (1536-1587) de prepararem um catecismo reformado para ensinar a doutrina bíblica aos jovens. Segundo Joel Beek, Ursinus responsabilizou-se pelo conteúdo, Olevianus, pela composição e edição final e “Frederico indicou que muitos outros, incluindo o corpo docente de teologia e os mais importantes oficiais da igreja do Palatinado, contribuíram para o documento final”. O catecismo foi escrito em Heidelberg (daí o nome Catecismo de Heidelberg) e publicado em 1562. Em janeiro de 1563, um sínodo realizado nessa cidade o aprovou. Por ocasião de sua primeira edição, a Bíblia alemã ainda não estava dividida em versículos, razão pela qual as referências bíblicas eram indicadas somente por livro e capítulo. Essa dificuldade só foi corrigida pela versão latina, que também dividiu o Catecismo para ser pregado em 52 domingos, em cada “Dia do Senhor” do ano. O Catecismo contém 129 perguntas. As duas primeiras (Domingo 1) tratam do conforto e segurança do crente. As perguntas 3 a 11 (Domingos 2 a 4) estabelecem a doutrina da depravação total. As perguntas 12 a 85 (Domingos 5 a 31) ensinam a salvação realizada por Cristo, expõem o Credo Apostólico (perguntas 22 a 58) e as doutrinas da justificação pela fé somente (perguntas 59 a 64) e dos sacramentos (perguntas 65 a 82). Na seção sobre os sacramentos, e em tom polêmico, o Catecismo 50


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pergunta: “Que diferença há entre a Ceia do Senhor e a Missa do papa?” (pergunta 80). Eis a resposta: “A ceia do Senhor nos testemunha de que temos completo perdão de todos os nossos pecados, pelo único sacrifício de Jesus Cristo, que ele mesmo, uma única vez, realizou na cruz; e também que, pelo Espírito Santo, somos incorporados a Cristo que, agora com seu verdadeiro corpo, não está na terra, mas no céu, à direita do Pai e lá quer ser adorado por nós. A missa, porém, ensina que Cristo deve ser sacrificado todo dia pelos sacerdotes, em favor dos vivos e dos mortos; e que esses, sem missa, não têm perdão dos pecados pelo sofrimento de Cristo; e também, que Cristo está corporalmente presente sob a forma de pão e vinho e, por isso, neles deve ser adorado. A missa, então, no fundo, não é outra coisa senão a negação do único sacrifício e sofrimento de Cristo e uma idolatria abominável”.

As perguntas 86 a 129 (domingos 32 a 52) tratam da nossa gratidão a Deus por tão grande salvação. A resposta à pergunta 87 ensina por que, “de maneira alguma”, podem ser salvos os que continuam vivendo sem Deus, sem gratidão e que não se convertem. Nesta seção são abordados os dez mandamentos (perguntas 92 a 115) e a oração do Pai Nosso (perguntas 116 a 129). Sobre o Catecismo de Heidelberg, Joel Beek assevera: “Tem circulado mais amplamente do que qualquer outro livro, exceto a Bíblia, A Imitação de Cristo, escrito por Thomas à Kempis, e O Peregrino, escrito por John Bunyan. Corretamente reformado, mas moderado, em tom pacífico em espírito, esse ‘livro de conforto’ permanece como um dos catecismos da Reforma mais usados e mais apreciados”.

Cairns pontua que o Catecismo de Heidelberg “transformou-se no credo oficial das igrejas alemãs reformadas”, aduzindo ainda que quando “a fé reformada finalmente se estabeleceu depois de um breve interlúdio luterano, a Universidade de Heidelberg tornou-se o centro do calvinismo”. 2. O Calvinismo na Hungria, Escócia e Irlanda. O luteranismo não foi bem aceito na Hungria, em face do cisma racial dos magiares com os alemães. A partir de 1550, húngaros que estudaram em Genebra retornaram ao seu país disseminando as ideias da reforma. Concorreu também para que o povo húngaro adotasse o protestantismo a tradução do Novo Testamento para a língua magiar, realizada por Erdosi. Mateus Devay foi um dos responsáveis pela reforma na Hungria. Em 1570, a Confissão Húngara, redigida em 1558, alcançou grande circulação.

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Na Escócia, o estado mundanizado da igreja católica romana foi uma das causas da reforma. Patrick Hamilton, influenciado pelas ideias luteranas, pregou sobre a justificação pela fé e que o papa seria o anticristo, o que o levou à execução na fogueira em 1528. George Wishart, que exerceu forte influência espiritual sobre John Knox, também começou a pregar a doutrina protestante e foi queimado em 1546. Entretanto, o grande nome do protestantismo escocês foi realmente John Knox (1513-1572). Nascido em família pobre, John Knox educou-se na Universidade de Glasgow e tornou-se sacerdote católico romano em 1530. Sua conversão ocorreu em algum ano da década de 1540, pela influência de Wishart e outros, momento após o qual pode ser encontrado no acampamento de St. Andrews, onde foi praticamente obrigado a pregar aos soldados protestantes. Quando St. Andrews foi capturada pelo exército francês, Knox foi feito escravo e obrigado a trabalhas nas galés de uma embarcação francesa, mantendo-se nesse estado por dezenove meses. Sobre esse período da vida do reformador, Martyn Lloyd-Jones anotou: “Foi uma experiência extenuante, na qual ele sofreu, não só os rigores desse tipo de vida, como também uma intensa crueldade. Isso, sem dúvida, deixou sua marca em toda sua vida, porque minou a saúde dele; consequentemente teve que manter constante luta contra a enfermidade”. Após sua libertação, que ocorreu através de uma troca por prisioneiros, Knox se tornou ministro e pregador em Berwick e Newcastle, entre os anos de 1549 a 1551. Depois, morou em Londres, quando reinava Eduardo VI, ocasião em que se tornou pregador e capelão da corte. Com a morte de Eduardo (aos dezesseis anos), Maria Tudor (Maria a sanguinária) ascendeu ao trono e Knox teve que fugir da Inglaterra. A princípio, foi a Genebra, onde estudou sob João Calvino, a quem considerava “o mais notável servo de Deus”. Depois, persuadido por Calvino, foi ser ministro de uma comunidade de refugiados ingleses em Frankfurt. Mas, como de lá foi mandado embora juntamente com outros refugiados, retornou a Genebra, onde pastoreou a igreja inglesa entre os anos de 1556 a 1559. Finalmente, em abril de 1559, após a morte de Maria Tudor, John Knox foi à Escócia, onde realizou sua obra de reformador até morrer, em 24 de novembro de 1572. 52


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Na Escócia, o Tratado de Edimburgo, de 1560, fez cessar o controle francês sobre aquele país. No mesmo ano, o Parlamento, orientado por John Knox, começou a obra da Reforma: “pôs fim ao domínio do papa sobre a Igreja Escocesa, declarou ilegal a missa e revogou todos os decretos contra os hereges e aceitou a Confissão de Fé que os “Seis Johns” (Knox e mais cinco outros homens de prenome John) elaboraram em menos de uma semana” (Cairns). Esta Confissão, claramente calvinista, tornou-se o credo escocês até ser substituída em 1647, pela Confissão de Fé de Westminster. Após tentativas de estabelecimento do sistema episcopal, em 1690 o presbiterianismo se estabeleceu definitivamente na Escócia. Na Irlanda, a Reforma está relacionada à influência anglo-escocesa. Em face de uma revolta de irlandeses contra a Inglaterra, o Parlamento inglês, em 1557, confiscou terras dos rebeldes derrotados e as destinou a colonos ingleses. Esse fato inaugurou uma política de colonização que causou a divisão na Irlanda que perdura até hoje. Com a ascensão ao trono de Tiago I, este rei resolveu recolonizar a Irlanda do Norte com protestantes vindos da Escócia. Assim, a cidade de Belfast tornou-se presbiteriana e o mesmo ocorreu ao condado de Ulster. “São estes presbiterianos irlando-escoceses os ancestrais dos atuais habitantes da Irlanda do Norte” (Cairns). 3. O Calvinismo na França. Muitos franceses estudaram na Itália, onde, influenciados pela renascença, sentiram-se impulsionados à busca dos documentos antigos. Dentre estes humanistas bíblicos, um doutor em teologia e professor da Universidade de Paris de nome Jacques Lefévre d’Etaples (1455-1536) rompeu com a teologia vigente e insistiu na necessidade de retorno às Escrituras. Em 1523, Lefévre concluiu a tradução francesa do Novo Testamento, feita a partir da Vulgata. A cidade de Meaux tornou-se o centro desse entusiasmado teológico, onde também se reuniram luminares como Guillaume Briçonnet e Guillaume Farel. Outro fator que fomentou a reforma na França foi a influência dos escritos de Lutero. O rei Francisco I, deveras impressionado com a franca divulgação e aceitação das ideias protestantes, resolveu empreender dura perseguição contra o movimento. Em 1524, o cardador de lã e pastor da igreja de Meaux foi morto e, em 1525, o grupo foi disperso, ocasião em que muitos deixaram a França. 53


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Embora os humanistas bíblicos e as obras de Lutero muito tivessem feito pelos franceses, nada se comparou em importância à conversão e influência de Calvino. Foi a perseguição contra os protestantes franceses que levou o reformador franco-suíço a publicar a primeira edição das Institutas da Religião Cristã, em 1536, conforme anteriormente observado. Na verdade, tem-se verificado que Calvino liderou tanto a reforma em Genebra quanto na França. A partir de 1538, uma feroz perseguição aos huguenotes (nome dado aos protestantes calvinistas franceses, de origem desconhecida) teve início. Em 24 de julho de 1539, Francisco I as reforçou através de um édito. Morto em 1547, Francisco foi sucedido por Henrique II (esposo de Catarina de Médicis), que deu continuidade às perseguições, sem, contudo, fazer cessar o sempre crescente número de conversões. A igreja de Paris foi organizada em setembro de 1555. Nesse período, haviam somente mais quatro igrejas (em Meaux, Angers, Poitiers e Loudon), além da de Paris. As congregações se reuniam clandestinamente. Os crentes, nessas assembleias secretas, liam as Escrituras, oravam e cantavam Salmos, utilizando-se de qualquer pregador que estivesse em trânsito. Nos dias 26 a 28 de maio de 1559, reuniu-se em Paris, secretamente, o primeiro Sínodo Nacional das Igrejas Reformadas, ocasião em que, segundo Theodoro de Beza, firmaram “um acordo na doutrina e na disciplina, em conformidade com a Palavra de Deus”. O Sínodo foi presidido pelo pastor François de Morel, e reuniu representantes das sessenta das cem igrejas já existentes na França. Os huguenotes tornaram-se uma espécie de reino dentro do reino, cujo grande e respeitado líder era o almirante Gaspar de Coligny. Diz-se que na década de 1560, chegou a haver cerca de mil congregações protestantes. Assim, por motivo de política, e não de religião, a ambiciosa Catarina de Médicis, viúva de Henrique II, buscou ganhar a simpatia dos huguenotes. Em 1562, o edito de São Germano conferiu liberdade de expressão religiosa aos protestantes franceses, proibindo-os, no entanto, de construir templos, recolher fundos, manter exércitos e reunir-se em sínodos sem permissão do estado.

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Entretanto, diversas e intermináveis batalhas entre os exércitos católicos e protestantes ocorreram durante a década de 1560, até que a paz de 1570 despontou com previsões de durabilidade. Catarina de Médicis se mostrou mais interessada que nunca em manter a paz com os huguenotes. Em 1571, Coligny apresentou-se na corte ao rei Carlos IX, um dos filhos de Catarina, por quem foi chamado de “meu pai”. Além disso, foram feitos arranjos visando casar a filha de Catarina e irmã do rei, Margarida Valois, com Henrique de Bourbón, rei de Navarra, filho de Antônio de Bourbón, um líder e protetor dos huguenotes. O futuro parecia alvissareiro para os huguenotes. A celebração de casamento de Henrique de Bourbón com Margarida Valois ocorreu em 18 de agosto de 1572. Na ocasião, se encontravam em Paris os principais chefes huguenotes, todos jubilosos porque anteviam não apenas a liberdade religiosa, mas sua real representação na corte. Jamais poderiam imaginar a traição já tramada. Após a celebração, Coligny dirigia-se à sua casa, quando foi alvejado por um disparo que lhe decepou o dedo indicador direito e o feriu no braço. As suspeitas pairaram sobre a casa do duque de Guiza, representante de uma forte família que rivalizava em poder com os Médicis, e sobre o irmão do rei, Henrique d’Anjou. Nesse ínterim, Catarina de Médicis convenceu Carlos IX que Coligny planejava uma conspiração para tomar o poder, armando desse modo o cenário para a chacina. Na macabra noite de 24 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, a matança realmente ocorreu. Coligny foi morto pelo próprio duque de Guiza, que também indicou aos assassinos as casas onde estavam alojados os huguenotes. Morreram cerca de dois mil deles em Paris. O sangue dos huguenotes correu nas escadarias do palácio do Louvre. Matanças semelhantes em outras partes da França levaram à morte cerca de vinte mil protestantes. Segundo Gonzalez, “O papa Gregório XII, a princípio comovido, quando entendeu que o protestantismo tinha sido extirpado da França ordenou que se cantasse um Te Deum em celebração da noite de São Bartolomeu e que se fizesse o mesmo todos os anos para comemorar o supostamente glorioso acontecimento”.

Carlos IX morreu em 1574, e foi sucedido pelo seu irmão, Henrique d’Anjou (Henrique III), um dos responsáveis pelo massacre de São Bartolomeu, sob quem as guerras religiosas continuaram no país. Morto Henrique III, foi sucedido pelo 55


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que seria o único herdeiro legítimo do trono, Henrique de Bourbón, rei de Navarra, que tomou o título de Henrique IV. Em face das pressões dos católicos, do papa e dos espanhóis, Henrique IV tornou-se católico mais uma vez e ocupou o trono em Paris. Sob o seu reinado, houve trégua em várias décadas. Em 13 de abril de 1598, promulgou o Edito de Nantes, que concedia aos huguenotes liberdade de culto em todos os lugares, exceto em Paris. Socorremo-nos outra vez de Gonzalez, quando afirmou sobre Henrique IV: “Apesar de suas instabilidades amorosas e religiosas, Henrique IV foi um dos melhores reis da França, devolvendo ao país sua antiga paz e prosperidade. Morreu em 1610, depois de um longo e memorável reinado, vítima do fanático assassino François de Ravalaic, que estava convencido de que Henrique IV era um herege protestante”.

Os huguenotes mantiveram forte presença na França até 1685, quando foram então forçados pelo rei Luiz XIV a fugir para a Inglaterra, Prússia, Holanda, África do Sul e Estados Unidos. Esse fato fez Cairns afirmar que desde essa época “o protestantismo reformado não tem exercido mais qualquer influência na França; os protestantes são uma pequena minoria da população”.

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V. O Calvinismo Além da Suíça Parte II Próximo à desembocadura do Reno, existia um grupo de regiões conhecidas como as “Dezessete Províncias”, territórios que hoje compreendem a Holanda, Bélgica e Luxembrugo. Quando eclodiu a Reforma, quem reinava sobre o vasto império que incluía possessões na Alemanha, Espanha e Países Baixos era o imperador Carlos V (1515-1556), representante da famosa casa dos Habsburg. As Dezessete Províncias eram bastante diferentes entre si, do ponto de vista cultural e linguístico. No sul se falava o francês, denominado “valão”; no norte, holandês; na região central, falava-se a língua flamenga. Foi sob o governo de Carlos V que as Dezessete Províncias alcançaram seu único momento de unidade. Nesse ponto de nossa caminhada, dedicar-nos-emos ao estudo da conquista da Holanda para o calvinismo, o único país a tornar-se protestante após a instalação da contra-reforma católica romana. 1. A Reforma na Holanda. O ensino da Reforma alcançou os Países Baixos por volta de 1520. Devemos, antes de tudo, lembrar-nos da presença dos “irmãos da vida comum” e da influência positiva de Erasmo de Rotterdam, principalmente face à publicação, em 1516, do seu Novo Testamento em grego. Primeiramente, temos a influência do luteranismo. Para refreá-lo, Carlos V aprovou a instalação da inquisição e, em 1523, foram queimados os primeiros mártires protestantes em Bruxelas, os monges agostinianos Hendrick Voes e Johannes Esch. A tradição anabatista também fez grande número de adeptos, mas, depois da decepção de Munster, muitos se tornaram seguidores de Menno Simons e não poucos foram barbaramente perseguidos. Sob os editos de Carlos V, milhares de anabatistas foram executados, seus chefes, queimados, seus seguidores, decapitados, e suas mulheres, enterradas vivas. Entretanto, o calvinismo seria a tradição protestante a predominar na região, sobretudo devido a pregadores procedentes da França, Suíça e sul da Alemanha, 57


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movimento que redundou na adoção da fé reformada na Holanda, com a consequente formação Igreja Reformada Holandesa. Com efeito, a Igreja Reformada nos Países Baixos considerava-se uma continuação da Igreja Cristã, mas que vislumbrava a necessidade de uma reforma em face das deturpações acumuladas ao longo dos séculos. Frans Leonard Schalkwijk anotou que a Igreja Reformada: “Reformava a sua doutrina e pregação conforme o ensino bíblico. Reformava o interior dos templos cristãos para um culto mais simples. Os ministros reformavam suas vidas, oficializando seus casamentos, registrando seus filhos. Reformou-se o calendário litúrgico, que sofreu cortes importantes pela eliminação de inúmeros dias santos, preservando apenas o domingo e outros dias cristológicos (como Páscoa e Pentecostes), dando indiretamente um grande impulso à economia nacional. Os mendigos foram retirados das ruas e postos a trabalhar, ou, quando realmente impossibilitados, sustentados pela diaconia eclesiástica. A própria posição social da mulher melhorou, e os processos movidos contra supostas bruxas cessaram. Em todos os setores da vida sentiu-se o movimento da renovação da velha Igreja Cristã. E esta consciência de ser a continuação da Igreja Cristã estava bem patente desde o início da época em apreço, tanto entre cristãos germânicos, eslavos ou latinos, tanto franceses como portugueses”.

A perseguição ao protestantismo foi recrudescida quando Filipe II (15551598) sucedeu seu pai, Carlos V, que abdicou em 1555. Impopular desde o início, Filipe permaneceu na capital holandesa até 1559, momento em que se transferiu definitivamente para a Espanha. Ele estava realmente decidido a erradicar a Reforma dos Países Baixos, “declarando que preferia perder a coroa e a vida, a governar sobre hereges” (Frans Leonard Schalkwijk). Para tanto, facilitou a penetração da inquisição espanhola e deu início a uma série de editais que se tornaram conhecidos como “editais de sangue”, por terem levado milhares à morte. Nada obstante, o movimento reformador só ganhava adesões. Em 1565, os nobres holandeses firmaram o “Compromisso de Breda”, e marcharam para apresentar suas demandas à regência, ocasião em que foram desdenhosamente chamados de “mendigos”. Insurreições protestantes ocorreram em 1566, quando grupos iconoclastas saquearam 400 templos católicos romanos e destruíram suas imagens, altares e demais símbolos da velha religião. Cultos eram realizados ao ar livre, sob a proteção dos mendigos. Os ânimos só foram acalmados com a intervenção sábia de Guilherme de Orange-Nassau. Filipe II decidiu enviar Ferdinand Alvarez, o católico romano Duque de Alba, para assumir o governo nos Países Baixos (1567-1573). Ele chegou ao país com 58


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um exército formado por soldados espanhóis e italianos. Tão logo assumiu, disposto a exterminar a Reforma, organizou o “Conselho das Desordens”, um tribunal inquisitorial que cedo foi denominado “Conselho de Sangue”, face ao horror que provocou. Gonzalez fala sobre os resultados da atuação desse conselho: “Os mortos foram tantos que os cronistas da época falam do mau-cheiro no ar, e de centenas de cadáveres dependurados nas árvores à beira do caminho”. Foi nesse período que o filho mais velho de Guilherme de Orange, Filipe Guilhermino, com então onze anos, foi sequestrado e levado preso à Espanha, para nunca mais ver o pai. O próprio príncipe de Orange precisou retirar-se para suas herdades na Alemanha. Então, eclodiu a “Guerra dos Oitenta Anos” (1568-1648), a revolta popular contra a tirania espanhola. Sobre ela, Schalkwijk declara: “Sob a liderança de seus legítimos representantes, as províncias neerlandesas desafiaram a Espanha, a maior potência militar do mundo, e conseguiram a vitória. Havia, inclusive, grupos de guerrilheiros, tanto na terra quanto no mar, denominados ‘geuzen’ [mendigos]”. Os “mendigos do mar” eram piratas organizados por Orange. Foram eles que em 1572 capturaram a cidade portuária de Brielle, ainda que não tivessem recebido a ajuda do almirante francês Gaspar de Coligny, face ao assassinato deste na chacina de São Bartolomeu. O Duque de Alba conseguiu de forma violenta recapturar várias cidades que haviam aderido à revolta. Mas, em 1573, o príncipe de Orange se declarou calvinista e a cidade de Alkmaar resistiu às tropas espanholas. No ano seguinte, Leiden foi capturada pelos “mendigos”. Nesta batalha, morreu dom Luiz de Zuniga e Requesens, o sucessor do Duque de Alba, que havia renunciado ao cargo. Com a morte de Requesens, os soldados passaram a saquear as cidades do sul, fato que causou a união das províncias em 1576, numa reunião em Gante, onde foi firmada a “Pacificação de Gante”. Entretanto, Filipe II não desistiu dos Países Baixos e em mais uma ocasião invadiu o país com um exército. Outra vez as províncias do sul capitularam, enquanto as do norte (Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groningen e Gélria) formaram uma aliança à parte (em 1579), à qual aderiram cidades como Gand e Antuérpia, para lutarem por sua liberdade. Em 1580, a fé reformada foi oficialmente adotada pelas províncias nórdicas e, em 1581, a soberania do rei espanhol foi formalmente repudiada. 59


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Nesse mesmo ano, Filipe anunciou a promessa de uma grande recompensa a quem matasse Guilherme de Orange. Três anos mais tarde, em 1584, o príncipe foi assassinado à traição por um pseudo-huguenote, atraído pela recompensa. “Havia tombado o ‘pai da pátria’, cujo nome se preservou no hino nacional holandês” (Frans Leonard Schalkwijk). Quanto às províncias meridionais, foram reconquistadas ao catolicismo romano a partir de 1585 e, após um período de declínio econômico, conquistaram sua independência em 1830, com o nome de Bélgica. Em virtude da grande imigração de cidadãos flamengos às províncias nórdicas, estas se beneficiaram grandemente. Guilherme foi sucedido por Maurício de Orange-Nassau, este com dezoito anos. Melhor general que seu pai, Maurício dirigiu o exército numa serie de campanhas militares vitoriosas contra a armada espanhola e, em 1609, a Holanda celebrou uma paz com a Espanha, a “Trégua dos Trinta Anos” (16091621). Nesse período, a Holanda foi ainda beneficiada por uma nova onda de imigração, gerada pela “Guerra dos Trinta Anos” (1618-1648), na Alemanha. Ocorreu uma verdadeira “era de ouro” nos Países Baixos. A vida cultural desenvolveu-se enormemente. Universidades foram fundadas. As belas artes e a ciência floresceram. O comércio se expandiu para variadas partes do mundo, tanto que foram organizadas diversas companhias mercantis, dentre as quais a “Companhia das Índias Orientais”, fundada em 1602. Todavia, o fim da guerra e a independência formal da República Holandesa, na época composta de maioria calvinista, só ocorreram em 1648, com o Tratado de Westfália. 2. A Confissão Belga, a Controvérsia Arminiana e o Sínodo e os Cânones de Dort. Enquanto se travava a guerra contra a Espanha, as igrejas só se reuniam em ‘sínodos’ no exterior, como os ocorridos nas cidades alemãs de Wesel (1568) e Emden (1571). Nesse último, decidiu-se que a igreja adotaria o sistema presbiteriano de governo. O mesmo sínodo adotou a Confissão Belga, redigida por Guido de Bres (15271567), em 1561, e revisada por Francis Junius, um pastor calvinista da Antuérpia. Quando refugiado no Palatinado, o pastor Petrus Dathenus traduziu para o holandês o Catecismo de Heidelberg, recentemente publicado por Ursinus e Olevianus, e compôs a 60


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tradução dos cento e cinquenta salmos metrificados por Theodoro de Beza e Clement Marot, do francês para o holandês. Com a vitória em Alkmaar, em 1573, no mesmo ano um sínodo provincial holandês se reuniu naquela cidade. Um sínodo nacional em solo holandês só se reuniu em Dort, em 1578, ocasião em que foram formal e nacionalmente adotados a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg, que tornaram-se os principais documentos, ao lado dos Cânones de Dort (composto no sínodo de Dort de 1618-1619, na ocasião da controvérsia arminiana), da Igreja Reformada Holandesa. A Igreja Cristã Reformada era uma “igreja do estado”, razão pela qual muitas autoridades civis desejavam intervir em seus assuntos. Seu controle pelo estado gerou diversos debates e, durante a “Trégua dos Doze Anos” (1609-1621), o tema retornou à tona nas disputas envolvendo “arminianos” e “gomaristas”, sobre as quais nos debruçaremos. Jacob Arminius (que dá origem ao nome “arminianismismo”), nasceu em 1559, na cidade holandesa de Oudewater. Estudou em Leiden de 1576 a 1582 e, após a graduação, foi aluno de Theodoro de Beza em Genebra. Durante os exames que antecederam sua ordenação, ao detectar problemas com suas ideias, o consistório lhe perguntou se poderiam ser eliminados nove dos doze artigos do credo apostólico, a fim de apaziguar os heréticos. Entretanto, “apesar das dúvidas por parte do consistório”, afirma Frans Leonard Schalkwijk, “Arminius foi ordenado pastor em 1587”. Em 1590, casou-se com Lijsbet Reael, filha de um dos homens mais fortes de Armsterdã. Em 1603, tornou-se professor de teologia da Universidade de Leiden, fato que muito preocupou o consistório da igreja de Armsterdã. Arminius morreu em Leiden, em 1609. Em 1604, um ano após assumir a cátedra em Leiden, Arminius propôs uma revisão das doutrinas da predestinação e da eleição. Para ele, Deus elege ou reprova com base na fé ou incredulidade anteriormente prevista. Sobre a maneira de ver os efeitos da queda sobre a humanidade, Arminius era tão agostiniano como Calvino e Lutero. Ele afirmava sem rodeios a completa ruína do livre-arbítrio e insistia na escravidão da vontade. Em certo lugar, ele declarou: “Nesse estado, o livre-arbítrio do homem em direção ao Verdadeiro Bem fica não apenas ferido, mutilado, débil, torto e enfraquecido [attenuatem], mas também prisioneiro [captivatum], destruído e perdido. 61


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E seus poderes não são apenas debilitados e inúteis a não ser que sejam assistidos pela graça, como não têm quaisquer poderes exceto os que são despertados pela graça divina...” (citação de R. C. Sproul). Segundo Sproul, “As maneiras de se expressar de Agostinho, Martinho Lutero ou de João Calvino dificilmente são mais fortes do que a de Armínio”. Mas, quanto à eficácia da graça, Arminius afirmou sem rodeios a sua resistibilidade. Para ele, a obra da salvação é iniciada pela graça preventiva ou preveniente. Sem essa graça, o pecador é incapaz de qualquer bem espiritual. É essa graça que liberta o pecador da sua escravidão moral e o capacita a fazer o que anteriormente não podia. Entretanto, após receber essa graça, porque ela não é eficaz e regeneradora, o pecador pode não se submeter a ela e não cooperar com ela, caso em que ela resultará frustrada. Para Arminius, portanto, somente Deus pode conceder a obra da graça, e somente o homem pode desejar cooperar com ela. A obra de Deus afeta a impotência humana, mas não muda sua vontade. Arminius cita Agostinho e Bernardo, nesta ordem, para explicar seu ponto: “A graça subsequente ou seguinte, de fato auxilia o bom propósito do homem; mas esse bom propósito não existiria a não ser por meio da graça precedente ou preventiva. E, embora o desejo do homem, que é chamado bom, seja assistido pela graça quando começa a existir, não começa sem a graça, mas e inspirado por ele...” “‘O que, então’, você pergunta, ‘o livre-arbítrio faz?’ Eu respondo brevemente, ‘Ele salva’. Tire o livre-arbítrio, e nada será deixado para ser salvo: Tire a graça, e nada será deixado como fonte da salvação. Essa obra [da salvação] não pode ser efetivada sem as duas partes: Uma, de quem ela pode proceder; A outra, a quem ou em quem ela pode ser [trabalhada]. Deus é o autor da salvação: o livre-arbítrio é apenas capaz [tantum capere] de ser salvo. Ninguém, exceto Deus, é capaz de conceder salvação; e nada, exceto o livre-arbítrio, é capaz de recebê-la” (citação de R. C. Sproul).

Por outro lado, para os reformadores, a todos quantos Deus concede as operações da graça especial, real e eficazmente são chamados e regenerados, de modo que voluntaria e espontaneamente vêm a Cristo em arrependimento e fé, visto que a graça é tanto necessária e suficiente quanto eficaz. Ela não muda o pecador apenas da incapacidade para a capacidade de desejar a Cristo e ir a Ele, mas realmente efetua nele o querer e o realizar (Fp 2:13). Os calvinistas jamais afirmaram a estranha caricatura de que haja pessoas que vão a Cristo forçadas, uma vez que foram incondicionalmente eleitas. Para a fé reformada, a obra de Deus não pode ser frustrada. Quando Deus chama 62


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interiormente - uma graça que não é dada a todos, porque se fosse todos sem exceção alguma se salvariam -, o que foi eficazmente chamado, porque iluminado em sua mente e renovado em sua vontade, não pode fazer outra coisa senão corresponder ao chamado. O debatedor de Arminius foi Franciscus Gomarus, que ainda em 1604 defendeu a posição calvinista ortodoxa ao enfatizar que a escolha de Deus para a salvação deve-se somente à Sua graça soberana. O debate ganhou repercussão nacional e influenciou a política do país. Ambas as partes receberam críticas e adesões de autoridades e civis holandeses. Finalmente, Arminius pediu a realização de um sínodo nacional. A permissão foi dada pelo governo holandês em 1606, mas Arminius morreu antes (em 1609) de sua realização (1618-1619). Após a morte de Arminius, em 1610, um de seus pupilos de nome Simon Episcopius e demais discípulos redigiram uma declaração de fé denominada “Remonstrância”, razão pela qual passaram a ser chamados “remonstrantes”. Em 1611, foi organizada uma conferência que permitia aos remonstrantes interagir com defensores do pensamento ortodoxo, que, na ocasião, apresentaram sete artigos como resposta

aos

pontos

controvertidos,

documento

denominado

de

“Contra-

Remonstrância”. Além da divergência teológica, os gomaristas alegaram que quaisquer objeções a Confissão deveriam ser apresentadas perante a Igreja e não ao Estado. Mauricio de Orange-Nassau, o segundo filho de Guilherme, parente próximo do Maurício de Nassau que foi governador do Brasil holandês, deu um passo decisivo quando em 1617 passou a frequentar o culto em uma igreja gomarista. O debate continuou acalorado, até que em 13 de novembro de 1618 o sínodo nacional teve início, na cidade de Dort (ou Dordrecht), convocado pelos “Estados Gerais” (o governo do país) em outubro do ano anterior. A primeira parte foi realmente um sínodo internacional, com representação das igrejas de diversos países. Segundo Cairns, “28 dos 130 presentes eram calvinistas vindos da Inglaterra, de Bremen, do Palatinado, da Suíça e de ouros países. Os 13 arminianos participaram do encontro na posição de defensores”. Em abril de 1619, o sínodo adotou os Cânones de Dort, reconhecidos como uma das três “fórmulas da união”, ao lado da Confissão Belga e do Catecismo de Heidelberg. Em um segundo momento, teve prosseguimento como sínodo nacional. Foram realizadas ao 63


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todo 154 sessões durante os sete meses em que o sínodo esteve reunido, de novembro de 1618 a maio de 1619. Os Cânones de Dort contêm 4 seções de doutrina, que, em verdade, trazem 5 pontos (que respondem aos 5 pontos da remonstrância), uma vez que o capítulo 3 contém a corrupção do homem e a sua conversão a Deus. Nessa ordem, os Cânones tratam: da eleição divina e da reprovação; da expiação definida; da corrupção do homem; do chamado eficaz; e da perseverança dos santos. Sobre a eleição incondicional, declaram que “é o imutável propósito de Deus, pelo qual ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura”, e negam que ela é baseada “fé prevista, em obediência de fé, santidade ou qualquer outra qualidade ou disposição”. Quanto à morte de Cristo, afirmam que “foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus, o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos”. Após asseverarem a incapacidade total dos homens, como estando “incapazes de qualquer ação que os salve, inclinados para o mal, mortos no pecado e escravos do pecado”, os Cânones descrevem a conversão como resultado da operação eficaz do Espírito Santo e indicam o caráter da regeneração: “Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles verdadeira conversão da seguinte maneira: ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação e poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que possam entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas, pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até os recantos mais íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e enternece o que está duro, circuncida o que está incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava morta, mas ele a fez reviver; era má, mas ele a torna boa; estava indisposta, mas ele a torna disposta; era rebelde, mas ele a fez obediente, ele move e fortalece esta vontade de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras (I Co 2:14). Esta conversão é aquela regeneração, renovação, nova criação, ressurreição dos mortos e vivificação, tão exaltada nas Escrituras, a qual Deus opera em nós, sem qualquer contribuição de nossa parte... é uma obra sobrenatural, poderosíssima, e ao mesmo tempo agradabilíssima, maravilhosa, misteriosa e indizível... Consequentemente todos aqueles em cujos corações Deus opera desta maneira maravilhosa são, certamente, infalível e efetivamente regenerados e de fato passam a crer...”.

Finalmente, como sempre expressando preocupação pastoral, os Cânones ensinam que mesmo os eleitos regenerados não estão livres de pecado e, de fato, podem 64


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chegar a cair em pecados grosseiros. Os efeitos de tais “pecados sérios” na vida dos rentes são inúmeros: “eles causam a ira de Deus, se tornam culpados de morte, entristecem o Espírito Santo, suspendem o exercício da fé, ferem profundamente suas consciências e algumas vezes perdem temporariamente a sensação de graça”. Entretanto, os eleitos são renovados efetivamente para o arrependimento e de fato hão de perseverar, “não por seus próprios méritos ou forças, mas pela imerecida misericórdia de Deus”. O fundamento desta certeza é triplo: primeiro, a fé nas promessas de Deus, reveladas em Sua Palavra; segundo, pelo testemunho do Espírito Santo, que testifica com o nosso espírito que somos filhos e herdeiros de Deus; terceiro, pelo zelo sério e santo por uma boa consciência e por boas obras. Joel Beeke afirmou corretamente sobre os Cânones de Dort: “Ainda que esses pontos não representem todo o calvinismo e sejam considerados mais corretamente como as cinco respostas do calvinismo aos pontos de erro do arminianismo, eles estão, de fato, no âmago da fé reformada, pois fluem do princípio da absoluta soberania divina na salvação de pecadores”. 3. O Calvinismo Holandês no Brasil Colônia. Depois de 63 anos da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, nova possibilidade de implantação do calvinismo no Brasil colônia surgiu pela iniciativa dos holandeses, que ocuparam grande parte do nordeste brasileiro entre os anos de 1630 a 1654. Diversos motivos, não apenas o religioso, trouxeram a Igreja Cristã Reformada ao Brasil. Primeiro, podemos destacar a razão econômica. A Companhia das Índias Ocidentais foi fundada em junho de 1621, dezenove anos após a fundação da Companhia das Índias Orientais, em 1602. Seu propósito era basicamente financeiro, visto que pretendia enriquecer os seus sócios, dentre os quais o flamengo Willen Usselinx. Além disso, havia também uma séria questão política envolvendo a Holanda e a Espanha, que também dominava Portugal desde 1580. Nesse sentido, a navegação holandesa era um instrumento na guerra contra a Espanha, que os holandeses a entendiam como justa.

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Finalmente, a Companhia também nutria pretensões religiosas e missionárias, misturando, portanto, os objetivos dos lucros, da contenda contra a Espanha e da divulgação do cristianismo reformado. Na Holanda, quando as igrejas se reuniram no Sínodo de Dort (1618-1619), resolveram acerca da “propagação do Evangelho nas Índias e em outras regiões”, sobretudo “onde nossos países têm comércio", assunto que foi apresentado ao governo holandês (citação de Frans Leonard Schalkwijk). Frans Leonard Schalkwijk dividiu os 24 anos da presença holandesa no Brasil em três períodos: os anos 1630 a 1636 denominou de período da resistência portuguesa; observou que entre 1637 e 1644, o período áureo, sob o governo de Maurício de Nassau-Siegen, houve resignação por parte dos portugueses; e, finalmente, acrescentou que os anos 1645 a 1654 foram de “insurreição lusa, com o fenecimento do domínio flamengo”. Antes desse período de ocupação, todavia, os holandeses atacaram a Bahia em 1524, onde organizaram uma igreja reformada. Entretanto, com a derrota frente à armada espanhola, no ano seguinte, foram expulsos e a igreja desapareceu com os invasores. Foram sepultados em solo baiano os pastores Enoch Sterthenius e Johannes Neander. Quando a frota holandesa chegou na Bahia, Salvador já havia sido retomada pelos portugueses, razão pela qual rumou ao norte, havendo aportado na Baía da Traição, ao norte da Paraíba. Na Baía da Traição, os índios viram nos holandeses uma oportunidade de libertação do jugo português. Ao perceberem que a frota holandesa estava apenas de passagem, muitos indígenas desejaram embarcar, o que foi permitido a apenas seis moços potiguares, dentre os quais um cearense chamado Gaspar Paraupaba, com cerca de cinquenta anos, e outro de nome Pedro Poti, da Baía da Traição. Na Holanda, os potiguares aprenderam a ler e escrever e foram instruídos na fé reformada. Alguns desses “brasilianos” (como eram chamados pelos holandeses) chegaram em Recife seis meses após a nova invasão, em 1530, e foram efetivamente úteis nas missões holandesas aos índios nordestinos. Conta-nos Frans Leonard Schalkwijk que, ao regressarem, “pouco a pouco os índios treinados foram ocupando um lugar mais importante como tradutores, num contato essencial com as aldeias”. 66


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Em 15 de fevereiro de 1630, os holandeses atacaram Pernambuco, que sucumbiu. Primeiro, Olinda foi capturada e, quinze dias depois, Recife cessou a resistência. Em 1631, parte da ilha de Itamaracá foi ocupada pelos holandeses, onde foi construído o forte Orange. Em 1632, Domingos Fernandes Calabar aderiu ao lado invasor e tornou-se membro da Igreja Reformada. Em 1633, toda a ilha de Itamaracá já havia sido tomada e o Rio Grande do Norte foi ocupado pelos holandeses, sendo a fortaleza Reis Magos vindo a denominar-se “forte Ceulen”, nome de um dos altos conselheiros do governo. Em véspera do natal de 1634, as fortalezas paraibanas e a cidade de Filipeia, também na Paraíba, se renderam. No ano seguinte, foi a vez de Goiana. Em Porto Calvo, pertencente atualmente a Alagoas, a guarnição holandesa não resistiu e Calabar caiu nas mãos de Matias de Albuquerque, em junho de 1635. Em apenas dez meses depois de assistir o batismo do filho na Igreja Reformada do Recife, Calabar, ao ser apanhado, foi estrangulado e esquartejado pelas forças de Matias de Albuquerque, em virtude de haver aderido aos invasores em 1632. A viúva de Calabar recebeu do governo holandês, para cada um dos seus três filhos menores, o salário de um soldado. Na medida em que uma área era ocupada, uma igreja era organizada. No início, foram implantadas as igrejas reformadas de Recife e Olinda. Com a conquista de parte de Itamaracá, uma igreja foi iniciada no forte Orange. Com a conquista do Rio Grande do Norte, em 12 de dezembro de 1633, foi realizado um culto reformado no atual forte Reis Magos. Com a pacificação do sul do Pernambuco, foram plantadas igrejas como as de Serinhaém, Cabo de Santo Agostinho e Porto Calvo. Frans Leonard Schalkwijk afirmou que a época de invasão e resistência foi de “crueldades... perpetradas por ambas as partes”. Aduziu ainda: “Era uma guerra de exaustão, e os líderes holandeses reconheceram que precisavam se organizar, se quisessem tirar algum proveito da conquista... A situação na própria Igreja Cristã Reformada era igualmente crítica, por causa da falta de disciplina até mesmo entre os pastores. E na administração civil, o pastor espanhol Soler considerava os encarregados como ‘ratos políticos’, que roíam a companhia até o osso. Precisava-se de uma mão forte e sábia para dirigir o destino da área ocupada...”.

A “mão forte e sábia” escolhida foi o Conde João Maurício de NassauSiegen. Ele nasceu em 1604, no castelo de Dillenburg, no condado de Nassau, em um lar evangélico. Seu avô paterno era João “o Velho”, irmão do príncipe Guilherme de 67


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Orange-Nassau. Em 1636, a Companhia das Índias Ocidentais o nomeou governador da Nova Holanda. João Maurício chegou ao Brasil em 23 de janeiro de 1637, aos 32 anos. Sob seu governo, a Nova Holanda expandiu geograficamente e desenvolveu-se culturalmente, com atenção especial à ciência e às artes, e medidas ecológicas foram adotadas, dentre as quais uma proibição de mais derrubada de pau-Brasil. Nassau era um calvinista convicto e um assíduo frequentador das reuniões da igreja e, segundo Schalkwijk, “de maneira geral, foi reconhecido como um governador sábio, virtuoso e temente a Deus”. Um mês após sua chegada, o governador do Brasil Holandês reconquistou Porto Calvo. Em dezembro de 1637, tomou o Ceará, e no presbitério de janeiro de 1638 procurou-se um “consolador” para a fortaleza ali existente. Em 1641, conquistou as capitanias de Sergipe e Maranhão. Ao todo, estima-se que existiram durante algum tempo 22 igrejas reformadas no Brasil. Em Salvador, Bahia; um pequeno grupo em Sergipe; no forte Maurício no Rio São Francisco (atual cidade de Penedo); em Alagoas do Sul (um pouco ao sul da atual cidade de Maceió); em Porto Calvo e nas cidades de Sirinhaém, Ipojuca, Cabo de Santo Agostinho (atual Suape) e Santo Antônio do Cabo (atual Cabo). Havia igrejas nas cidades de Recife, Olinda e Maurícia na ilha de Antônio Vaz, além de haver pregação em Igaraçu. Ao norte, havia as igrejas em Itamaracá e Goiana e existiram três congregações reformadas compostas de indígenas entre Itamaracá e Paraíba: em Itapecerica, na aldeia de Maurícia e em Massurepe (ou Maireba). Na Paraíba, havia as igrejas da capital e no forte Cabedelo. No Rio Grande do Norte, uma igreja se reunia no “forte Ceulen” (atual Reis Magos) e outra na fortaleza do Ceará. Finalmente, havia uma igreja no Maranhão e uma pequena congregação na ilha de Fernando de Noronha. Portanto, durante o governo de João Maurício, “havia uma igreja reformada nos lugares mais importantes do Nordeste de então” (Frans Leonard Schalkwijk). Quando os holandeses chegaram ao Brasil, entenderam que já havia templos cristãos, que tão somente careciam de uma reforma, razão pela qual poucos outros foram construídos. Assim, removeram as imagens, os altares e os paramentos sacerdotais dos templos católicos romanos, colocando no lugar o púlpito (e sobre ele um 68


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exemplar da Bíblia), a pia batismal e a mesa da Ceia. A liturgia dos cultos era simples e seguia o modelo indicado no Sínodo Nacional de Dort. Schalkwijk o descreve assim: “O pastor iniciava o culto com o ‘votum’: ‘O nosso socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra’, saudando em seguida a igreja com ‘Graça e paz a vós outros por parte de Deus Pai e do Nosso Senhor Jesus Cristo na comunhão do Espírito’. Em seguida a igreja cantava alguns salmos de Davi e confessava seus pecados numa oração dirigida pelo pastor. Logo após a promessa de perdão vinha a leitura dos dez mandamentos, como norma para a vida de gratidão. Em seguida a outro canto congregacional de um salmo vinha a pregação, que durava quase uma hora... O culto se encerrava com cântico, oração, bênção apostólica e uma coleta para a diaconia”.

Com a reforma do calendário litúrgico, os dias santos foram abolidos e permaneceram somente as comemorações especiais relacionadas à vida de Cristo: natal, páscoa, ascensão e pentecostes. A música utilizada era a do saltério de Petrus Dathenus (uma tradução dos salmos metrificados por Theodoro de Beza) e a Ceia era realizada quatro vezes ao ano. Nas tardes dos domingos, a congregação reunia-se para o culto de doutrina, momento em que a pregação seguia a sequência do Catecismo de Heidelberg. Em maio de 1644, João Maurício deixou a Nova Holanda, para tristeza de todos os grupos populacionais. Em sua época, o Nordeste tinha 90.000 habitantes, assis distribuídos: um terço de luso-portugueses; um terço de escravos e um terço composto por índios (16.000), holandeses e outras nacionalidades europeias (12.000) e judeus (1.500). Os portugueses não queriam que ele os deixasse, chamando-o de seu “padroeiro”, seu “Santo Antônio”. Os índios o chamavam de “irmão”, e afirmavam estarem prontos para viver e morrer com ele. Os judeus lhe ofereceram três mil florins por ano, caso permanecesse no Brasil. Os holandeses e os membros em geral da Igreja Cristã Reformada insistiram para que ficasse. Elben M. Lenz César pontuou: “Nassau tinha então 40 anos. Se ele tivesse ficado, talvez o Nordeste brasileiro viesse a falar holandês e a maioria da população se tornasse cristã reformada. Até o jesuíta padre Antônio Vieira era a favor do parecer que entregava Pernambuco aos holandeses”. Após o período áureo sob o governo de João Maurício, diversas tensões relacionadas aos campos étnico e cultural, econômico e jurídico e moral e religioso causaram a insurreição lusa que culminou na expulsão dos invasores. Em 26 de janeiro de 1654, a rendição de Taborda foi assinada. Vinte anos depois, em 1674, a Companhia das Índias Ocidentais foi dissolvida. “Por essa época, já haviam falecido os poucos remanescentes brasileiros da Igreja Cristã Reformada do Brasil, o tapuia João Pregador 69


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na cidade do Recife, e o pastor Bartholomeus Heinen, o ‘paraíba-brasiliano’, que morreu longe de sua terra natal” (Frans Leonard Schalkwijk). Portanto, embora a tentativa da criação da Nova Holanda tenha fracassado, o Brasil evangélico possui dívida impagável para com as expedições da Holanda calvinista. É que em uma situação semelhante à vivida no Brasil, a Holanda estava ocupando posses portuguesas na Indonésia, onde nasceu, depois da fundação do forte Batávia, em 1619, uma Igreja Cristã Reformada de fala portuguesa. Essa igreja de lusoindonésios chegou a ter cerca de quatro mil membros pelo fim do século XVII. Um dos pastores dessa igreja foi o português João Ferreira de Almeida (1628-1691). Foi ele que traduziu para o português o Novo Testamento e grande parte do Antigo, a partir das línguas originais. “Foi esta Bíblia em português que as Sociedades Bíblicas introduziram mais tarde no Brasil, século e meio após a expulsão dos holandeses” (Schalkwijk).

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VI. A Reforma na Inglaterra 1. Introdução. Em nosso presente estudo, observaremos o nascedouro da quarta tradição protestante (ao lado da luterana, da anabatista e da reformada): a anglicana. Em parte, a Reforma da Inglaterra está relacionada com as ideias reformadoras largamente difundidas na primeira metade do século XVI; por outro lado, ela apresenta vieses distintos, sobre os quais nos debruçaremos. Enquanto caminharmos pela Reforma Anglicana, destacaremos também o movimento puritano inglês e o denominacionalismo protestante, com os movimentos presbiteriano inglês, batista e congregacional. Concorreram à Reforma na Inglaterra os seguintes fatores: a propagação do ensino dos lolardos, que espalhavam as ideias de John Wycliffe (1320-1384); o retorno ao estudo da Bíblia nas línguas originais, sobretudo a partir da publicação do Novo Testamento grego de Erasmo de Rotterdam; a tradução da Bíblia para o inglês, realizada por William Tyndale (1494-1536), considerado o primeiro puritano, e Miles Coverdale; e, a circulação dos escritos de Lutero, que influenciaram homens como Tyndale e Thomas Cranmer. Entretanto, a causa direta a provocar a Reforma Anglicana estava relacionada com questões públicas e privadas, envolvendo o rei Henrique VIII, a par de uma crescente formação da consciência nacional, o que ensejaria o apoio necessário ao rei em seu rompimento com Roma, conforme veremos. 2. A Reforma sob Henrique VIII (1509-1547). O irmão mais velho de Henrique, Artur, casou-se com Catarina de Aragão (filha de Fernando e Isabel da Espanha), então com quinze anos, matrimônio que aproximou a Espanha da Inglaterra. Como Artur faleceu quatro meses depois do casamento, e a despeito de haver uma lei canônica que proibia o casamento com a viúva de um irmão, conseguiu-se uma dispensa com o então papa Júlio II e tão logo Henrique alcançou a idade suficiente, casou-se com Catarina.

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Henrique e Catarina, em um casamento infeliz, tiveram cinco crianças, mas a única que sobreviveu foi a filha que mais tarde reinaria como Maria Tudor. E, quando o decurso do tempo tornou claro a Henrique que Catarina não mais lhe daria um herdeiro homem, deduziu que essa trágica situação só poderia ser explicada como uma manifestação da ira divina. Bruce L. Shelley anota que em “1525, a rainha tinha 40 anos e o rei ponderava mais e mais sobre os caminhos do Todo-Poderoso: ‘Estarei sob a maldição de Deus?’”. Consequentemente, Henrique iniciou uma luta com Roma para conseguir a anulação do casamento. Em 1527, pediu ao papa Clemente VII para revogar o casamento, considerando-o nulo desde a origem, há dezoito anos. Entretanto, tal anulação não seria conseguida de modo simples, apesar da embaixada (com a presença de Cranmer) enviada a Roma por Henrique, a fim de pleitear sua causa, em 1530. É que Catarina era tia do poderoso Carlos V, o então rei da Espanha e imperador da Alemanha, que exercia forte domínio sobre o papa. Assim, o papa não concederia a anulação do casamento de Henrique sem conquistar a antipatia de Carlos. O resultado não poderia ter sido outro: o Clemente VII recusou o pedido de divórcio de Henrique, feito através do cardeal Wolsey. Henrique cansou de esperar e resolveu definir a questão com os próprios recursos. Em uma consulta com Thomas Cranmer, este aconselhou o rei a consultar os eruditos de Oxford e Cambridge sobre o assunto e, a pedido do rei, escreveu seu parecer, no sentido de que “o Bispo de Roma não tinha autoridade que lhe permitisse dispensar a Palavra de Deus” (John Foxe). A resposta dos eruditos não foi unânime, mas Henrique percebeu que o momento era-lhe propício para impor sua vontade à nação. Possivelmente já apaixonado por Ana Bolena, e ao perceber que o papa não lhe daria divórcio, Henrique o conseguiu através do clero inglês. Em 1531, obrigou o clero a aceitá-lo como chefe da Igreja da Inglaterra. Em janeiro de 1533, casou-se secretamente com Ana Bolena. Em maio do mesmo ano, seu casamento com Catarina foi anulado por Cranmer em sua corte eclesiástica, e em setembro a nova rainha deu à luz uma menina, Elizabeth. Em 1534, finalmente, foi assinado o Ato de Supremacia, que declarava: “A majestade do rei justa e corretamente é, e deve ser, reputada como o 72


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único chefe supremo na terra da Igreja da Inglaterra chamada Anglicana ecclesia”. Estava consumada a ruptura política com Roma. Na verdade, esse rompimento com Roma não significava nenhum tipo de reforma religiosa. Henrique sempre manteve suas convicções católicas romanas. Em 1521, ele havia contra-atacado a negação de Lutero aos sete sacramentos com uma obra tacanha de nome “Afirmação dos Sete Sacramentos”, onde chamou o reformador alemão de “serpente venenosa” e “lobo do inferno”. Henrique foi muito mais movido a ambições e planos políticos. Em 1536, ordenou o fechamento dos mosteiros menores e seu confisco aos cofres da coroa. Em 1539, promoveu a aprovação dos Seis Artigos pelo Parlamento, reafirmando a consubstanciação, a Comunhão sob uma espécie, o celibato e a confissão auricular. “Em teologia, a igreja da Inglaterra continuava fiel a Roma”, conforme observou Cairns. Os fracassos conjugais de Henrique não pararam. Ana Bolena, que lhe dera Elizabeth, foi condenada em 1536 por adultério e decapitada. Henrique casou-se com Jane Seymour, com quem finalmente teve um filho homem, Eduardo. Na época da morte de Jane, Henrique sentia-se ameaçado tanto pela França quanto por Carlos V, fato que o levou a casar-se com Ana de Cleves, cunhada do príncipe protestante Frederico da Saxônia, e a aproximar-se dos príncipes luteranos. Quando concluiu que os alemães protestantes não abririam mão de suas convicções religiosas, divorciou-se de Ana de Cleves e mandou decapitar o ministro que fez os arranjos para o casamento. Após, Henrique casou-se com Catarina Howard, período em que diversas dificuldades foram criadas ao partido reformista. Catarina foi também decapitada. Finalmente, casou-se com Catarina Parr, partidária da Reforma, que sobreviveu a ele. Quando Henrique morreu, em 1547, a igreja inglesa era doutrinariamente católica, embora dirigida pelo rei. 3. A Reforma sob Eduardo VI (1547-1533). Eduardo VI, filho de Henrique que lhe dera Jane Seymour, ascendeu ao trono aos nove anos. Em face de sua tenra idade, a regência ficou a cargo, por três anos, do protestante duque de Somerset, irmão de sua mãe. Nesse período, a Reforma avançou rapidamente. Conta-nos Cairns que “em 1547, o Parlamento permitiu aos 73


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leigos tomarem o cálice na Comunhão, repeliu as leis de traição e heresia e os Seis Artigos de feição católica, legalizou o casamento de sacerdotes em 1549 e acabou com as chantries, capelas doadas para a celebração de missas pelas almas de quem fizera a doação... Os cultos deveriam ser em inglês e não em latim”. O Ato de Uniformidade, em 1549, estabeleceu o uso do Livro de Oração Comum, preparado por Cranmer, “que deu ao povo inglês, pela primeira vez, uma liturgia em seu próprio idioma” (Gonzalez). O duque de Somerset foi substituído pelo duque de Northumberland, sob quem a Reforma permaneceu avançando. A segunda edição do Livro de Oração Comum, de 1552, refletia influências calvinistas. Com pequenas modificações no reinado de Elizabeth, este é o Livro de Oração usado até hoje pela Igreja Anglicana. Nasceram nesse período, sob o empenho de Cranmer, os Quarenta e Dois Artigos que se tornaram a confissão da Igreja Anglicana por decreto real em 1553. Logo depois da assinatura deste ato, o jovem rei morreu, com quase dezesseis anos. 4. A reação católica de Maria Tudor (1553-1558). Eduardo VI foi substituído por Maria, filha de Henrique VIII com Catarina de Aragão. Seu reinado, que perdurou de 1553 a 1558, representa a Contra Reforma na Inglaterra. Ela era uma católica-romana fervorosa, cujo objetivo deliberado era a restauração das práticas religiosas inglesas ao ponto em que deixou seu pai, em 1547, repudiando as mudanças introduzidas por Eduardo. Sem olvidar ao fato de que para Maria “o movimento reformador havia começado com a desonra que tinha sido objeto em sua juventude, quando foi declarada filha ilegítima” (Gonzalez). Ademais, havia um ódio de Maria por Cranmer, tanto pelo divórcio da sua mãe quanto pela mudança de religião no país, que muito se deveu ao bispo de Cantuária. A princípio foi cautelosa em suas “reformas”. Mas, tão logo sentiu-se segura no trono, Maria conduziu a Inglaterra à obediência ao papa, em 1554, e desencadeou uma série de medidas que desfaziam os editos parlamentares sob as regências de Henrique e Eduardo. Os sacerdotes que se casaram deveriam separar-se de suas esposas. Os dias santos e as datas tradicionais deveriam voltar a ser observadas. Finalmente, Maria conduziu uma perseguição cruel aos quase oitocentos ministros que recusaram-se a acatar suas mudanças. Eles perderam suas paróquias e 74


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foram forçados a fugir para Genebra e Frankfurt. Diz-se que duzentos e oitenta e oito pessoas foram martirizadas por sua fé. A barbárie liderada por Maria lhe rendeu o epíteto de “Maria, a sanguinária”, que lhe dera John Foxe no seu famoso Livro dos Mártires (de 1571). O mártir mais conhecido do período foi sem dúvida Thomas Cranmer. De início, quando acossado pelas forças da rainha, Cranmer retratou-se de sua fé protestante e afirmou-se católico-romano. Após uma prisão de três anos, tempo durante o qual, segundo Foxe, “os astutos papistas formavam bandos ao seu redor, assediando-o com ameaças, com elogios, com súplicas e promessas. Alimentavam-lhe a esperança de que ele não apenas pouparia sua vida, mas também seria reconduzido à sua antiga dignidade... Mas se ele se recusasse, não haveria para ele esperança de salvação ou perdão, pois a rainha estava determinada a ter um Cranmer católico ou então não existiria Cranmer nenhum. Por fim, o arcebispo, vencido, acabou cedendo”.

No dia anterior ao da execução, Cranmer foi visitado pelo Dr. Cole, delegado da rainha e a quem esta conferira o encargo de pregar o sermão no dia fatídico. Cole desejava verificar nessa visita se Cranmer ainda se mantinha como um firme católico-romano, nos termos da retratação assinada anteriormente por ele. Em seguida, Cranmer foi visitado por um frade espanhol, a testemunha de sua retratação, que lhe deu um papel constando dos artigos que Cranmer deveria confessar publicamente, em uma retratação perante o povo, antes de ser executado. Chegado o dia, Cranmer foi levado da prisão em uma pomposa procissão à Igreja de Sta. Maria. A parte final do sermão de Cole foi dirigida a ele, encorajando-o a aceitar sua própria morte. Após o sermão, foi dada a Cranmer a oportunidade professar a fé católica-romana, ocasião em que disse, para a surpresa dos circunstantes: “... Quero, portanto, declarar perante vós minha verdadeira fé, sem máscara ou sem dissimulação alguma, pois esta não é a hora de disfarçar, independentemente do que eu disse ou escrevi no passado. Eu acredito em Deus... E agora chego à questão mais importante, que tanto atribulou minha consciência, acima de qualquer outra coisa que fiz ou escrevi em toda a minha vida. Refiro-me a publicações de escritos contrários à verdade. Agora e aqui eu renuncio a elas e as rejeito como algo escrito pela minha mão, mas que é contrário à verdade em que sempre acreditei no meu coração. Escrevi aquilo por medo da morte e, se fosse possível, para salvar a minha vida. Estou falando de todos aqueles bilhetes e textos que escrevi e assinei de meu próprio punho desde a minha degradação. Ali escrevi muitas coisas falsas. E pelo fato de que minha mão direita pecou ao escrever contra o meu coração, ela será a primeira a chegar ao fogo, a primeira a ser queimada. Quando ao

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 76 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma Papa, eu o rejeito, como inimigo de Cristo, como anti-Cristo, com todas as suas falsas doutrinas” (John Foxe).

O que se podia ver na plateia era um misto de perplexidade e fúria. Dali, Cranmer foi arrastado para a fogueira. Chegando ao lugar da execução, ajoelhou-se e orou e, em seguida, foi amarrado com uma corrente de ferro e atearam fogo. Era 21 de março de 1556. Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária, tinha sessenta e seis anos. Foxe nos conta o fim da história: “Quando a lenha foi acesa e o fogo começou a queimar perto dele, estendendo o braço, pôs a mão direita no meio das chamas e ali a segurou firme, imóvel (exceto quando a recolheu para passá-lo sobre o rosto). Ele queria que todos pudessem ver a mão queimando antes que seu corpo fosse tocado pelas chamas... Tinha os olhos erguidos para o céu e foi repetindo as palavras ‘sua indigna mão direita’ enquanto a voz lhe permitia...”.

5. A reforma sob Elizabeth: a Era Elizabetana (1558-1603). Maria morreu em fins de 1558, fato que deu azo à subida ao trono, com então 25 anos e mediante uma série de obstáculos, Elizabeth, filha de Ana Bolena. Elizabeth era mais política que religiosa. Sua fé protestante, como a fé católica-romana de sua irmã Maria, também estava imiscuída com questões delicadas. É que caso o papa Paulo VI permanecesse no comando da Igreja da Inglaterra, o casamento de Henrique com Catarina permaneceria válido e ela é que seria a filha ilegítima. A Inglaterra, na época, estava divida entre catolicismo e protestantismo. Assim, Elizabeth, que não era uma protestante extremista, desejava a unificação do país através de uma única igreja, embora concedendo razoável liberdade religiosa. Nesse diapasão, nem havia espaço para catolicismo romano nem para protestantismo puro. Foi escolhido, portanto, “o Via Media, o caminho do meio entre protestantismo e catolicismo”. Em 1559, o Parlamento aprovou o Ato de Supremacia, que fez da rainha “o único governo supremo deste reino”, em assuntos espirituais e temporais. O Livro de Oração Comum de 1552 foi ligeiramente modificado e instituído em um Ato de Uniformidade. Os Quarenta e Dois Artigos foram revisados e tornaram-se em Trinta e Nove, que, em 1563, foi aceito pelo Parlamento como a confissão da Igreja Anglicana. 76


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Esta confissão, com pequenas alterações introduzidas em 1571, é até hoje o credo da Igreja da Inglaterra. Em 1570, Elizabeth foi excomungada pelo papa Pio V. Felipe da Espanha tentou reconquistar debalde a Inglaterra para Roma em 1588, através de sua Armada Espanhola, que veio a ser derrotada pela esquadra inglesa. Com isso, a última esperança do papa em reconquistar a Inglaterra foi perdida. No reinado de Elizabeth, retornaram do exílio no continente refugiados dos tempos de Maria Tudor que, por influência de seus estudos em Genebra e outras paragens protestantes, entenderam que a Igreja Anglicana, nos termos do “caminho do meio”, não representava uma reforma completa da Igreja. Esses pregadores foram um desafio para Elizabeth e seus sucessores. Eles são conhecidos como “puritanos”, alcunha que receberam pelos idos de 1568, segundo Cairns. 6. O puritanismo. A vitória contra o papado não deu descanso à rainha, em virtude da crescente influência dos puritanos, que entendiam que muitos “trapos do papado” continuavam na Igreja Anglicana. Na definição de Flanklin Ferreira, os “puritanos eram ministros ingleses – e, depois, escoceses – que buscavam purificar a Igreja da Inglaterra de vestígios de rituais e costumes católicos. Para isso, combinavam piedade e disciplina com o desejo de reformar a maior parcela possível da igreja e da sociedade”. As origens do puritanismo se encontram “numa tradição inglesa de dissidência que remonta a John Wycliffe e os lolardos, mas especialmente até às labutas teológicas dos reformadores ingleses da primeira geração” (M. A. Noll, in Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã). Seus líderes mais destacados incluíam homens do calibre de William Ames (1576-1633), cuja influência marcou as colônias inglesas na América, e William Perkins (1558-1602), professor da Universidade de Cambridge. Perkins havia sido um alcóolatra. Após passar por uma experiência de conversão, abandonou a bebida e o estudo da magia. Considerado um dos “pais do puritanismo”, escreveu obra de volume considerável, cujo livro O Católico Reformado, 77


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escrito em 1597, é dos mais importantes. O Católico Reformado foi, segundo estudo percuciente de Frans Leonard Schalkwijk, o livro mais usado no Brasil Holandês, depois da Bíblia e do Catecismo de Heidelberg. Na observação de Schalkwijk, “Esse livro queria mostrar ‘quão perto podemos chegar da atual igreja de Roma em vários pontos de religião, e em que temos de nos desviar dela para sempre’. Para estudar os assuntos em pauta, ele sempre apresentava, em primeiro lugar, a concordância entre Roma e a Reforma; em segundo lugar a diferença; depois os motivos dos reformados, comentando em seguida as objeções dos católicos romanos. Em vinte e dois capítulos estudavam-se os pontos de controvérsia mais importantes, como a justificação do pecador, a Escritura, as imagens, a missa, o purgatório etc”

O que unia o movimento puritano era a sua inconformação com uma “reforma pela metade”. Seus proponentes queriam purificar a Igreja Anglicana de acordo com a Bíblia. Na lição de Cairns, os puritanos se opunham à permanência, na liturgia eclesiástica, do ritual e das vestes, à guarda dos dias santos, à absolvição clerical, ao sinal da cruz, à presença de padrinhos no batismo, ao ajoelhar-se na hora da Ceia, ao uso da sobrepeliz pelos ministros e à inobservância do domingo. Cambridge tornou-se a principal universidade influenciada pelos puritanos. Quanto ao mais, o puritanismo não foi um movimento dotado de coesão e uniformidade. Eles asseveravam que a Bíblia deveria ser obedecida em todos os aspectos da vida da igreja, inclusive quanto à liturgia e ao governo, e que os cristãos somente deveriam fazer aquilo que a Bíblia ordenava. Mas, divergiam entre si sobre o que a Bíblia realmente ordenava, sobretudo nas questões que envolviam o governo da igreja. Nesse sentido, Martyn Lloyd-Jones sugeriu a seguinte definição para os puritanos: “Aproximadamente até 1570 os puritanos eram pessoas que podem ser descritas como membros da Igreja da Inglaterra incessantemente críticos e ocasionalmente rebeldes, e que desejavam alguma modificação no governo da Igreja e no culto... Seu único interesse era que a Reforma fosse além. Achavam que a Igreja da Inglaterra tinha parado a meio caminho entre Roma e Genebra, e desejavam que a Reforma fosse realizada mais completamente nas questões de cerimônia, disciplina e coisas semelhantes...”.

Dentre os puritanos, alguns defendiam uma reforma sem mudanças no sistema episcopal anglicano, como é o caso de Richard Hooker (1554-1600). Outros, como Thomas Cartwrigth (c. 1535-1603) e seus seguidores, queriam a implantação do governo presbiteriano, nos moldes do modelo calvinista de Genebra, em uma Igreja de caráter estatal. Cartwrigth, considerado fundador do presbiterianismo inglês, tornou-se 78


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professor da Universidade de Cambrigde. Em suas aulas sobre o livro de Atos, ele opôsse ao sistema episcopal e defendeu que a igreja deveria estar “sob o controle de um presbitério de bispos ou anciãos com funções apenas espirituais, facultando-se a escolha de seus ministros” (Cairns). A primeira Igreja Presbiteriana foi fundada em Wandsworth, em 1572. 7. Os puritanos congregacionais: separatistas e independentes. Outro grupo puritano foi posteriormente denominado congregacional, sendo este de dois tipos: os independentes e os separatistas. 7.1) Os congregacionais separatistas. Os separatistas pugnavam por uma ruptura mais radical entre Igreja e Estado, cuja principal característica residia na ideia de pacto eclesiástico. Richard Fyts fundou uma igreja baseada nesse modelo em 1567, razão pela qual é considerado o pastor separatista mais antigo. Talvez o primeiro teólogo a elaborar ideias congregacionalistas tenha sido Robert Browne (c. 1550-1633). Browne era clérigo anglicano, formou-se em Cambrigde em 1572, e em 1581 juntou-se com Robert Harrison na fundação de uma congregação separatista em Norwick. Daí, foi forçado a fugir com sua congregação à Holanda, onde escreveu três livros nos quais abordou os princípios do congregacionalismo separatista, dentre os quais se destacou a obra Reformação Sem Esperar por Ninguém. Sobre esse livro, Cairns anotou: “Browne sustentava que os crentes deviam se unir a Cristo e uns aos outros por um pacto voluntário; que os oficiais deviam ser escolhidos pelos membros; e que nenhuma congregação deveria ter autoridade sobre a outra”. Browne foi, por isso, considerado o primeiro teórico do movimento. Da Holanda, Browne foi à Escócia, onde foi aprisionado pelos presbiterianos. Em 1584, retornou à Inglaterra e, em 1591, reintegrou-se na Igreja Anglicana, onde serviu como cura de uma paróquia até a morte, em 1633. Apesar de Browne haver se retratado e voltado a ser ministro da Igreja Anglicana não afetou a influência dos princípios que ele destacou. Os princípios brownistas foram realmente utilizados, embora ligeiramente modificados, por uma congregação surgida em 1586, sob a liderança de Henry Barrow e John Greenwood, que foram presos e, após sete anos de cativeiro, em 1593, enforcados, juntamente com John Penry. Desde a prisão de Barrow e Greenwood, em 1587, o grupo 79


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ficou sendo apascentado por Henry Ainsworth e Francis Johnson. Mas, em 1602, teve também que buscar refúgio na Holanda, onde os líderes se desentenderam e formaram grupos separados. Sobre as características e destino desses grupos, Porto Filho pontua: “Um, o de Johnson, com tendências presbiterianas mais radicais, se extinguiu praticamente depois de sua morte em 1610. O outro, o de Ainsworth, praticando uma teoria mais suave de presbiterianismo, em que os diáconos e os anciãos (presbíteros apontados pela igreja para esse cargo) eram não os legisladores ou diretores da igreja, mas formadores de um Conselho de coordenação e assessoria de suas assembleias. Depois da morte de Ainsworth, ocorrida em 1618, esse trabalho também se dissolveu”.

Um terceiro grupo separatista surgiu em Gainsborough, em 1602, liderado por John Smyth (c. 1565-1612). Em seguida, parte do grupo passou a reunir-se em Scrooby, na residência de William Brewster, chefe dos Correios da localidade, sob a liderança de John Robinson (c. 1575-1625). Em face da perseguição movida pelo rei Tiago, que havia ascendido ao trono em 1603, ambas as congregações tiveram que refugiar-se na Holanda: primeiro, em 1606, a de Gainsborough; depois, em 1608, a de Scrooby, com Richard Clifton no pastorado e John Robinson como mestre. Na Holanda, o grupo vindo de Gainsborough, sob a liderança de John Smyth, foi influenciado pelos menonitas. Em 1608 ou 1609, Smyth convenceu-se que o batismo infantil era anti-bíblico, razão pela qual batizou a si mesmo e a seus companheiros, dentre os quais Thomas Helwys, por afusão. Nesse período, também foram influenciados pelas ideias arminianas, largamente debatidas na Holanda. Thomas Helwys, John Murton e seus seguidores retornaram à Inglaterra e, em 1612, organizaram a Primeira Igreja Batista, fruto do trabalho congregacional separatista. Eles batizavam somente adultos, por afusão, e eram doutrinariamente arminianos. Ficaram conhecidos como Batistas Gerais, por causa da doutrina da expiação universal. O grupo liderado por John Robinson (o que veio de Scrooby) mudou-se de Amsterdã para Leyden em 1609. A princípio contando com cerca de cem membros, a congregação logo passou a trezentos, momento em que uma parte retornou à Inglaterra, sob a liderança de Henry Jacob (1553-1624), de convicções independentes (e não separatistas), como veremos. Esse grupo organizou-se em 1616, em Southwark, Londres, como a Primeira Igreja Congregacional inglesa. Em 1633, a congregação de Jacob foi dividida por um grupo que defendia o batismo só de adultos, embora conservando a teologia calvinista. Esse grupo foi 80


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liderado por Samuel Eston. Em 1636, no pastorado de Henry Jessey, nova discussão se travou na Igreja Congregacional e outros membros foram congregar com o grupo dissidente, então dirigido por John Spilsbury, dando origem à tradição dos Batistas Particulares (assim chamados por sua doutrina da expiação limitada), a mais influente do movimento batista inglês. A questão em torno da forma de batismo imersionista só surgiu em 1640. Em 1644, 14 igrejas batistas particulares firmaram uma confissão com 50 artigos, na qual afirmaram o imersionismo como a forma correta de batismo. Sobre essas divisões, M. Porto Filho anotou que “o mais notável... foi o clima de compreensão e caridosa tolerância em que elas se realizaram: em assembleias onde cada grupo se despedia um do outro ‘com orações e muito amor’”. 7.2) Os congregacionais independentes, Henry Jacob e a Primeira Igreja Congregacional. A princípio, havia um puritanismo não separatista (ou estatal) do tipo anglicano ou presbiteriano e, por outro lado, movimentos separatistas (não estatais), que propugnavam, como antes observado, por uma radical separação entre Igreja e Estado. Os congregacionais independentes, a seu turno, propuseram uma igreja oficial inglesa de governo congregacional, compreensão que Martyn Lloyd-Jones atribui à originalidade de Henry Jacob, chegando a afirmar sua convicção de que John Robinson foi persuadido por Jacob a passar de separatista a independente. Segundo Lloyd-Jones, “os independentes não consideravam a Igreja da Inglaterra como sendo totalmente errada, não se opunham ao comparecimento ocasional aos cultos da Igreja da Inglaterra e, na verdade, não se opunham realmente à ideia de uma Igreja do Estado como tal. Oliver Cromwel, por exemplo, era um verdadeiro independente...”.

Mais adiante, Lloyd-Jones enfatizou: “Eles [os independentes] estavam dispostos a conceder que a Igreja da Inglaterra era uma Igreja verdadeira; em todo caso, que existiam igrejas verdadeiras dentro da Igreja da Inglaterra, e cristãos verdadeiros; e não se separaram inteiramente... Com razão têm sido chamados semi-separatistas”.

Henry Jacob nasceu no condado de Kent, em 1553. Estudou na escola de Santa Maria, Oxford, e foi ordenado ministro, cargo que ocupou até 1591. Após, foi à Holanda. Em 1599, escreveu uma obra chamada Defesa das Igrejas e do Ministério da 81


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Inglaterra, para contra-argumentar com o separatista Francis Johnson, que havia afirmado que a Igreja Anglicana não era uma verdadeira igreja. Jacob, com ideias puritanas, chegava a afirmar as muitas corrupções da Igreja da Inglaterra, mas não dizia, como os separatistas, que ela não era uma Igreja verdadeira. Por volta de 1600, Jacob pastoreou um rebanho de exilados ingleses em Middleburg, Zeeland, na Holanda. Em 1604, publicou um livro intitulado Razões Extraídas da Palavra de Deus e dos Melhores Testemunhos Humanos que Provam a Necessidade de Reformar as Nossas Igrejas na Inglaterra. Lloyd-Jones esboçou um resumo das afirmações de Jacob nessa obra: “(1) A absoluta perfeição das Escrituras Sagradas em todas as questões de fé e disciplina, sem quaisquer tradições humanas; (2) Que o ministério e as cerimônias da Igreja da Inglaterra tinham necessidade de Reforma; (3) Que durante duzentos anos depois de Cristo as igrejas de Cristo não eram diocesanas, e sim congregacionais; (4) Que o Novo Testamento contém uma forma particular de governo da Igreja; (5) Que essa forma de governo da Igreja não é para ser mudada pelo homem e, portanto, nenhuma outra forma é legítima”.

Em 1605, Henry Jacob encontrava-se na Inglaterra e juntou-se ao que foi chamado “Terceira Súplica Humilde” ao rei Tiago, na qual muitos puritanos fizeram uma solicitação de tolerância. Nesta súplica, pediu-se “Permissão para reunir-se nalgum lugar para servir e cultuar a Deus, e para usar e usufruir pacificamente só entre nós o completo exercício do culto a Deus e do governo da Igreja, a saber, por um pastor, presbítero, e diáconos em nossas diversas assembleias, sem nenhuma tradição dos homens...” (citação de Lloyd-Jones).

Nessa época, Jacob escreveu uma obra chamada Princípios e Fundamentos da Religião Cristã, na qual ele definiu uma verdadeira igreja visível de Cristo e afirmou o modo como ela deve ser constituída: “Por um livre e mútuo consentimento, os crentes se unem e concertam viver juntos como membros de uma sociedade santa em todos os deveres da religião e da virtude conforme Cristo e Seus apóstolos os instituíram e os praticaram mediante o evangelho...” (citação de Lloyd-Jones).

Nessa obra, Jacob defendia a formação de uma “Igreja Independente ou Congregacional não separatista” a partir de um pacto livremente acordado entre os crentes.

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Henry Jacob conheceu John Robinson por volta de 1610. Nesse ano, ele publicou um livro que ajudou Robinson a deixar de ser separatista, intitulado O Divino Princípio e a Instituição da Verdadeira, Visível e Ministerial Igreja de Cristo. No ano seguinte, publicou outro livro, no qual asseverou que “o governo da Igreja deve ser com consentimento do povo” e que “Uma Igreja verdadeira, sob o evangelho, não tem mais que uma congregação (ou igreja local). Os membros da Igreja, criados de novo em Cristo Jesus, têm o direito e a autoridade de escolher pastores para a obra pela graça de Deus, e não pela influência transmitida por meio do corrupto canal do papado” (citação de Lloyd-Jones).

Em 1616, Jacob voltou à Inglaterra e estabeleceu uma igreja em Southwark, Londres, nos moldes dos livros por ele publicados. Lloyd-Jones afirma haver falhado em sua busca do nome da rua, sabendo somente que foi em Southwark. Jacob e outros notáveis marcaram um dia exato para buscar ao Senhor em jejum e oração e no final do dia fizeram confissão de fé e arrependimento e uma aliança no sentido de “andar em todas as veredas de Deus como Ele as tinha revelado ou que lhes fizesse conhecer” (citação de Lloyd-Jones). Assim começou a igreja. No mesmo ano, Jacob publicou uma confissão consistente de vinte e oito artigos, após um breve prefácio. Seu propósito era justificar o início de uma nova igreja e esclarecer que não tratava-se de um cisma. Socorrer-nos-emos mais uma vez de Lloyd-Jones, a fim de fazer algumas anotações sobre o que tratava cada um dos artigos da primeira capela congregacional inglesa cuja existência permaneceu. Se não, vejamos. O artigo 1 trata sobre Os Ofícios de Cristo, e afirma que Cristo é o Rei da Igreja nas questões de ordem e governo; o artigo 2 estabelece a Suficiência das Escrituras, onde se diz que Cristo exerce Seu senhorio através do que vemos na Palavra de Deus; no artigo 3 se descreve as diferentes formas da Igreja. O artigo 4 define o modo como a verdadeira igreja de Cristo deve organizar-se: “Cremos que a natureza e a essência da verdadeira Igreja visível de Cristo sob o evangelho é uma livre congregação de cristãos para o serviço de Deus, ou um verdadeiro corpo espiritual e político que não contém mais que uma congregação (ou igreja local) regular, e essa independente. Onde se deve observar mormente dois pontos: primeiro, que uma verdadeira Igreja visível e política sob o evangelho é tão somente uma congregação (ou igreja local) regular... [e] que pela ordenança de Deus, esta única congregação regular de

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 84 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma cristãos é um corpo espiritual e político; e, assim, é uma congregação livre e independente. Isto é, ela tem, da parte de Deus, o direito e a autoridade para administração espiritual e para o governo, nela e sobre ela, graças ao comum e livre consentimento do povo, independentemente, e imediatamente sob Cristo, sempre na melhor ordem possível...”.

O artigo 5, igualmente instrutivo, estabelece que “poderá haver, e que oportunamente deveria haver na terra uma associação de congregações ou igrejas, a saber, por meio de sínodos. Não, porém, uma subordinação, nem, certamente, uma sujeição das congregações a alguma autoridade espiritual superior e absoluta, exceto a de Cristo e das Escrituras Sagradas. Os que negam isto, defendendo uma Igreja visível e política que seja diocesana e provincial (e nem nós nem eles sabemos quão universal), tanto em termos absolutos como representativa, nisso se afastam da regra do evangelho”.

O artigo 6 nega a existência de uma Igreja visível universal sob o evangelho: “Sob o evangelho Cristo nunca instituiu, nem Deus, alguma Igreja visível e universal, quer propriamente dita, quer representativa, que ordinariamente devesse exercer o governo espiritual externo sobre todas as pessoas do mundo que professam o cristianismo. Nenhuma igreja desse tipo se vê no Novo Testamento”.

O artigo 7 nega a existência de uma Igreja visível e política provincial ou diocesana e nacional. Quanto à chamada Igreja Anglicana, o mesmo artigo vaticina: “de nossa parte reconhecemos que existem muitas igrejas visíveis, sim, igrejas políticas na Inglaterra... mas negamos também que uma Igreja nacional, provincial ou diocesana seja, sob o evangelho, uma verdadeira Igreja visível e política... A razão pela qual negamos estas também é que nada que se assemelhe se vê estabelecido em parte alguma da Palavra de Deus no Novo Testamento... Todavia somente se vê no Novo Testamento uma congregação e assembleia livre e comum, como foi demonstrado pouco antes”.

O artigo 8 demonstra que mesmo as verdadeiras igrejas locais da Inglaterra se acham em estado de escravidão. O artigo 9 afirma serem contrárias ao Novo Testamento as hierarquias eclesiásticas. O artigo 10 esclarece que “a essência da vocação dos ministros sob o evangelho é a aprovação da congregação...”. O artigo 11 reconhece que um ministro da Igreja Anglicana pode ser verdadeiramente vocacionado, apesar do sistema de que é parte. O artigo 12 trata Sobre a pluralidade de pastores e não residentes. A questão disciplinar é tratada no artigo 13, segundo o qual

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 85 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma “a legítima ministração das censuras sagradas também deve ser com a aprovação da congregação. E, portanto, não será feita legitimamente por uma autoridade diocesana ou provincial; isto é, se for feita sem qualquer assentimento ou aprovação daquela congregação, que é a principal interessada”.

O artigo 14 diz que deve haver pelo menos um pastor em cada igreja, além de presbíteros e diáconos. O artigo 15 prevê o perigo à pureza da igreja ante à excessiva tolerância para com pessoas profanas. O artigo 16 condena as tradições humanas. Ao contrário, segundo o artigo 17, a tradição apostólica que se pode provar como tal pelas Escrituras é divina e não pode ser alterada por homens. O artigo 18 chama de profecia a prática da pregação expositiva, e estabelece que qualquer membro da igreja pode exercitá-la, menos as mulheres. O artigo 19 assevera não ser permitida a leitura de sermões na igreja como substituta de um pastor pregador. O artigo 20 explica o pensamento de Jacob sobre a descida de Cristo ao inferno, que, para ele, significa tão somente que nosso Senhor esteve sob o poder da morte. Lloyd-Jones esclarece que por volta de 1600, Jacob se envolveu numa controvérsia com um bispo sobre o tema, o que explica a expressa menção ao tema. O artigo 21 trata sobre Oração. Nele, afirma-se não ser muito proveitoso o uso de um Livro de Oração, através do qual os cristãos falem sempre as mesmas palavras. Há um perigo do zelo e da piedade desvanecerem, além do fato de o Novo Testamento não impor uma uniformidade desse tipo, deixando “todas as igrejas com a sua piedosa liberdade, sabedoria, entendimento e diligente consideração de si mesmas...”. O artigo 22 declara que sob o evangelho não há dias santos, além do dia do Senhor, nem dias de jejuns nem ocasiões especiais que devam ser continuamente observados. O artigo 23 considera ilegítimo um ministro tomar como seu encargo ministerial e função o casamento e o sepultamento de mortos, que são considerados atos civis e não espirituais. O artigo 24 considera ilegítimo que os ministros também sejam magistrados do Estado. O artigo 25 é uma palavra de ânimo para que os cristãos tragam ofertas voluntárias. O artigo 26 acrescenta: “Cremos que os dízimos para o sustento do pastor, 85


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sob o evangelho, não são o meio justo e apropriado. Não obstante, não consideramos estes dízimos absolutamente ilegítimos, se forem voluntários”. O artigo 27 trata do dever do magistrado civil para supervisionar e dirigir as igrejas nas questões espirituais. Sobretudo nesse ponto, os independentes distanciamse dos separatistas. Nesse artigo, percebe-se que os independentes não concebiam uma plena separação entre Igreja e Estado, cabendo a este o direito de intervir na Igreja mesmo em assuntos eclesiásticos. Leiamos o referido artigo: “Cremos que nós e todas as verdadeiras igrejas visíveis devemos ser supervisionados e mantidos em boa ordem e em paz, e devemos ser governados (sob Cristo), tanto supremamente como sub-ordenadamente pelo magistrado civil; certamente nas causas da religião, quando necessário for”.

Finalmente, o artigo 28 estabelece a necessidade que pesa sobre os cristãos de obedecerem a Cristo, e não ao homem, no uso das legítimas ordenanças eclesiásticas referidas nos artigos precedentes. Henry Jacob pastoreou a igreja de Southwark até 1624, ano em que viajou a Virgínia, na América, onde morreu no mesmo ano. “Seguiu-se-lhe uma sucessão de homens piedosos, e esta foi realmente a primeira capela ou igreja independente ou congregacional formada neste país [Inglaterra] que teve uma história contínua e ininterrupta” (Martyn Lloyd-Jones). 8. O governo da Igreja e sua relação com o Estado nas diversas tradições protestantes. Antes de procedermos algumas anotações sobre o desenvolvimento e declínio do movimento puritano, o que faremos em nosso próximo estudo, nos dedicaremos nesse passo em compreender os tipos de igrejas e tradições surgidas no protestantismo quanto a dois temas deveras importantes: o modo como Igreja e Estado devem se relacionar e os tipos de governo da Igreja. Sigamos, pois. 8.1) A relação entre a Igreja e o Estado. A visão de Constantino durante a batalha da Ponte Mílvio, no dia 28 de outubro de 312, e sua suposta conversão ao cristianismo, alteraram as relações entre a Igreja e o Estado. Nesse novo panorama histórico, os imperadores romanos cristãos passaram a exercer ingerência sobre os assuntos eclesiásticos. No período da Reforma, a doutrina que sustentava que o Estado 86


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tem o direito de intervir na Igreja, inclusive para excomungar qualquer dos seus membros, veio a chamar-se erastianismo. O nome deve-se a Thomas Erasto (15241583). Erasto nasceu em Baden, estudou teologia em Basileia e, posteriormente, medicina e tornou-se o catedrático de medicina de Heidelberg. A. M. Renwick resume o pensamento de Erasto sobre as relações entre a Igreja e o Estado, sobretudo nas questões disciplinares: “Erasto enfatizava fortemente o direito de o Estado intervir nas questões eclesiásticas. Sustentava que a Igreja não possui autoridade bíblica para excomungar qualquer dos seus membros. Visto que Deus tinha confiado ao magistrado civil (i.é., ao Estado) a soma total do governo visível, a Igreja num país cristão não tem poder repressor separadamente do Estado. Ter duas autoridades visíveis num país seria absurdo. A Igreja pode simplesmente advertir ou censurar ao magistrado civil. A Igreja não tem o direito de recusar os sacramentos aos transgressores”.

No contexto da Reforma, o nome “erastiano” surgiu na Assembleia de Westminster. As Igrejas Ortodoxa e Anglicana são erastianias. Após a destruição do império romano, a autoridade do bispo de Roma foi crescendo no Ocidente, dando azo ao surgimento e ascensão do papado. Gregório, o Grande, bispo de Roma no século VI e considerado o primeiro papa, agiu tanto na esfera espiritual quanto secular, chegando a construir aquedutos, alimentar os pobres e defender Roma frente à ameaça bárbara. Foi nesse contexto que as relações entre Igreja e Estado foram alteradas, no Ocidente, passando a Igreja Católica Romana, ainda hoje, a defender a ideia de que a Igreja, na pessoa do papa, tem autoridade também sobre o Estado. No “erastianismo”, a Igreja está subordinada ao Estado; para o catolicismo medieval, o Estado está subordinado à Igreja. Lutero defendeu uma tese que foi posteriormente desenvolvida por Filipe Melanchthon, chamada “semi-erastianismo”, segundo a qual o Estado, através dos governantes, tem ingerência sobre alguns assuntos eclesiásticos, sendo outros reservados à administração exclusiva da própria Igreja. Apesar do reformador alemão ter concepção bastante precisa sobre a natureza da Igreja como “povo de Deus”, comunidade de cristãos e, no termo credal, “comunhão dos santos”, ele não concebia a ideia de separação entre Igreja e Estado.

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Ainda no período da Reforma, os anabatistas desenvolveram o ideal da completa separação entre Igreja e Estado. Segundo essa tendência, Igreja e Estado agem em esferas completamente distintas e os cristãos não podem participar do Estado. Calvino, que delineou a posição aceita pelos reformados e presbiterianos, ensinou a mútua cooperação entre Igreja e Estado nos seguintes termos: a Igreja auxilia o Estado na esfera estatal e o Estado auxilia a Igreja na esfera eclesiástica. O reformador franco-suíço divergia de Lutero, porque concebia a Igreja com mais autonomia frente às ingerências do Estado, mas não vislumbrou a plena separação entre Igreja e Estado. A posição dos reformadores explica a existência de Estados confessionais luteranos e reformados. A par das posições apresentadas supra, os congregacionais separatistas defenderam a separação radical entre Igreja e Estado e rejeitaram a noção de uma Igreja do Estado, mas sem os excessos do anabatismo. Como vimos anteriormente, o separatismo remonta a homens como Richard Fytz e Robert Browne. O congregacionalismo não separatista, fundado por Henry Jacob, equiparou-se posteriormente ao separatismo. 8.2) Os tipos de governo eclesiástico. Outro fator de divergência entre as tradições e Igrejas protestantes diz respeito à forma de governo eclesiástico. Além do sistema católico romano, que ode ser chamado de monárquico-sacerdotal, em face da posição despótica assumida pelo papa, há três formas básicas de governo eclesial: o episcopal, o presbiterial e o congregacional. O sistema episcopal é o governo centrado em bispos. Segundo os seus defensores, o governo pelos bispos é uma espécie de reprodução da igreja neotestamentária, onde se pode verifica, argumenta-se, o governo exercido pelos apóstolos. Alguns lançam mão da sucessão histórica de apóstolos, como sói ocorrer na Igreja Anglicana. Outros, como os luteranos e metodistas, adotam o episcopalismo sem a adoção da sucessão histórica. Em nossos dias, o episcopalismo tem sido adotado, com modificações, pelas igrejas pentecostais e neo-pentecostais, isso para não mencionar a nova tentativa de restauração do governo apostólico da Igreja, com a nomeação infindável de novos apóstolos.

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O sistema presbiterial é o governo centrado em presbíteros. As igrejas permanecem independentes entre si quanto à administração dos interesses locais, além de eleger democraticamente seu(s) pastor(es) (presbíteros docentes) e presbíteros regentes. O conselho (para os presbiterianos) ou consistório (para os reformados) da igreja local administram a igreja, como representantes da congregação. Sobre as igrejas locais de cada região, há o presbitério (para os presbiterianos) ou classe (para os reformados). Sobre estes, existem os sínodos, formados por igual número de presbíteros docentes e regentes escolhidos elos presbitérios ou classes. Finalmente, há o supremo concílio ou assembleia geral. Sobre a defesa do presbiterianismo entre seus adeptos, Leon Morris escreveu: “Seus adeptos geralmente não sustentam que esta forma de governo é a única no NT. Na ocasião da Reforma, os líderes presbiterianos pensavam que estavam restaurando a forma original do governo eclesiástico, mas isto não seria rigorosamente defendido por muitos presbiterianos, hoje. Reconhece-se que houve muito desenvolvimento, mas sustenta-se que ele ocorreu sob a orientação do Espírito Santo e que, neste caso, os pontos essenciais do sistema presbiteriano são bíblicos”.

Finalmente, temos o sistema congregacional de governo, centrado na congregação. Para os congregacionalistas, o sistema de governo deve ser o encontrado no Novo Testamento e firmado sobre os alicerces doutrinários que os apóstolos estabeleceram. Seus fundamentos são basicamente dois: primeiro, que Cristo é o Rei e Cabeça da Igreja, permanecendo Ele mesmo como Aquele que a governa diretamente e a cada crente, por meio do Seu Espírito (cf. Cl 1:18); segundo, que cada crente, sem quaisquer outras mediações além da de Cristo, oferece a Deus sacrifícios espirituais e pode achegar-se à Sua presença (cf. Hb 10:19,20), doutrina conhecida como “sacerdócio universal dos crentes”. Os congregacionalistas observam ainda que não há no Novo Testamento algo como “Igreja Provincial” ou “Igreja Nacional”, em termos de estrutura e organização. Nesse sentido, vale anotar as palavras precisas de M. Porto Filho: “[No Novo Testamento] Cada comunidade local é uma verdadeira igreja, autônoma, independente administrativamente de suas coirmãs, embora a elas ligada pela fraternidade da fé e pela participação da mesma vocação em Cristo. Cada uma delas é um microcosmo, uma especializada localização no corpo universal da Igreja. Não são unidades que, somadas, formam a Unidade

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 90 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma Maior, mas pontos em que a Igreja [universal] se manifesta em sua plenitude de significado, natureza e missão (I Co 1:2; I Ts 1:1)”.

Outro ponto a ser destacado no sistema congregacional é o caráter democrático das decisões da comunidade local. Quanto isso, deve-se pontuar que a democracia eclesial do congregacionalismo não deve ser equiparada à democracia política, tão preconizada hodiernamente pelos valores liberais da revolução francesa. Nas assembleias congregacionais, o que se almeja não é a imposição de posturas e decisões mediante a simples contagem do voto majoritário, mas da percepção da vontade de Cristo pelos membros da congregação. 8.3) O denominacionalismo. Ao estudarmos a Reforma Protestante, sobretudo no contexto do puritanismo inglês, não poderíamos omitir uma palavra, ainda que breve, sobre o denominacionalismo. Podemos definir “denominação” como uma associação de congregações que mantêm uma tradição comum. O nome surgiu entre os puritanos congregacionais e por uma razão prática: para demonstrar que é possível a colaboração entre os cristãos de diversas tradições sem que se tenha que abrir mão de suas convicções particulares não essenciais. Ou seja, a ideia de denominação surgiu para enfatizar que o grupo de igrejas reconhecidas por um nome comum é apenas uma parte da Igreja de Cristo. Nas palavras de Franklin Ferreira e Alan Myatt: “A ideia de denominação implicava que uma associação especial de cristãos era apenas uma parte da igreja cristã total, chamada – ou denominada – por um nome particular, como por exemplo, presbiterianos, congregacionais e batistas, os principais grupos surgidos do movimento puritano”.

Jeremias Burroughs, um dos principais líderes congregacionais na Assembleia de Westminster, tinha o seguinte entendimento da teoria denominacional, de acordo com o resumo fornecido por Ferreira e Myatt: “1) as diferenças doutrinárias sobre questões secundárias... são inevitáveis; 2) as diferenças doutrinárias em questões secundárias continuam sendo importantes, pois são abordadas na Escritura; 3) as diferenças podem ser úteis, à medida que os cristãos são fortalecidos na troca ocorrida nos ‘debates, orações, leituras e meditações’ acerca das questões secundárias; 4)

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 91 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma nenhuma estrutura pode representar sozinha a igreja de Cristo em sua totalidade, em oposição à crença sectária que identifica a verdadeira igreja com a expressão de uma única organização; 5) a verdadeira unidade é baseada na fé comum e deveria ser expressa pela cooperação entre as denominações; 6) a separação denominacional não é divisionista, uma vez, mesmo divididos em denominações, os cristãos se entendem como parte da única igreja”.

Como se pode perceber, o denominacionalismo se distancia tanto do catolicismo organizacional quanto do sectarismo. O denominacionalismo preconiza uma filiação voluntária, enquanto o catolicismo de Roma, por exemplo, entende que tem o direito de incluir todos os cristãos desde a infância como parte do seu rebanho. Contra o sectarismo, o denominacionalismo se distingue porque aquele a única expressão institucional legítima do cristianismo. Hodiernamente, o denominacionalismo tem enfrentado diversas oposições nas mais variadas frentes. Há aqueles que defendem um completo abandono das denominações e sustentam que os cristãos devem se reunir simplesmente como igrejas de Cristo, discípulos, irmãos e outras “denominações”. Entretanto, como se pode observar, essa tem sido somente mais uma maneira de aumentar o número de denominações e seitas, “geralmente com a relutância da parte do grupo em reconhecer esse fato” (D. G. Tinder). Não sabemos o futuro do denominacionalismo. Sabemos somente que, na prática, o sistema ainda permanece útil porque permite o companheirismo em torno das crenças essenciais da fé cristã (cooperação e comunhão entre crentes de diversas denominações) e a garantia da liberdade de adoção de crenças secundárias. Ademais, reconhece a impossibilidade de uma única organização para expressar a fé cristã, modelo historicamente comprovado como pernicioso. 9. Ascensão e declínio do puritanismo. Muitos dos primeiros puritanos, como referimos alhures, tinham sido exilados nos dias do reinado de Maria Tudor (1553-1557) e ido a Genebra, o centro da fé reformada, de onde voltariam para inflamar os ingleses com suas ideias. Um caso típico foi o de John Knox, que obteve êxito em levar a Escócia a abraçar o calvinismo e o sistema de governo presbiteriano. 91


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Nesse momento, veremos como os puritanos influenciaram a Inglaterra até inaugurarem um Parlamento e um governo de acordo com os seus ideais, para, por motivos de discórdia interna, sucumbirem diante da restauração do episcopalismo anglicano. 9.1) Os puritanos sob o reinado de Elizabeth I (1557-1603). O governo de Elizabeth foi marcado por relativa tolerância religiosa. Os puritanos puderam bradar o quanto desejaram contra as vestes clericais, o sinal da cruz e o Livro de Oração Comum. Entretanto, a “rainha virgem” nunca permitiu que a Igreja Anglicana saísse das mãos dos bispos e do controle da coroa. Em 1593, ela promulgou um ato contra os puritanos, que permitia às autoridades prendê-los por faltarem à Igreja. Um dos fatores que dificultou o governo de Elizabeth foi a popularidade da Bíblia de Genebra. O nome advém do fato de que ela resultou do labor de ingleses exilados em Genebra, dentre eles Milles Coverdale. Essa Bíblia foi impressa nos primeiros anos do reinado de Elizabeth, em 1560. Ela foi a primeira Bíblia em inglês com versículos numerados. Possuía linguagem clara e notas explicativas, e só foi substituída pela versão autorizada do rei Tiago (James I). R. C. Sproul comenta o alcance da Bíblia de Genebra nos seguintes termos: “A Bíblia de Genebra dominou o mundo de fala inglesa durante cem anos. Foi a Bíblia usada por Shakespeare. A Bíblia ‘King James’ foi publicada em 1611, mas não suplantou a Bíblia de Genebra senão cinquenta anos depois. Os peregrinos e puritanos trouxeram a Bíblia de Genebra ao Novo Mundo. Colonos americanos foram educados na Bíblia de Genebra. Eles a levaram, estudaram e procuraram viver por sua luz”.

9.2) Os puritanos sob o reinado de James I (1603-1625). Quando James VI da Escócia tornou-se o James I da Inglaterra, muitos puritanos imaginaram que esse rei, calvinista, adotaria o sistema presbiteriano de governo na Igreja Anglicana. Mas, as esperanças logo esvaneceram, porque ao rei agradou lidar com os bispos ingleses mais do que com os ministros presbiterianos escoceses. Segundo ele, o presbiterianismo escocês “se harmoniza tanto com a monarquia quanto Deus com o diabo”. Ademais, o único pedido atendido na Conferência da Corte de Hampton, em 1604, em resposta à Petição Milenar de 1603, assinada por cerca de cem ministros puritanos (dentre eles Henry Jacob), foi a 92


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autorização para uma nova tradução da Bíblia, trabalho feito por um grupo de teólogos que resultou na King James Version (Versão do rei Tiago). Desde cedo, James deixou claro que reinaria como um déspota. Em 1611, ele dissolveu o Parlamento e governou a Inglaterra sem ele por dez anos. No campo religioso, ele perseguiu os puritanos. Os separatistas foram perseguidos, fato que obrigou as congregações de Scrooby e Ganisborough a buscarem exílio na Holanda. Após cerca de dez anos na Holanda, John Robinson, pastor da congregação oriunda de Scrooby, juntamente com um grupo de sua congregação estabelecida em Leyden, retornou à Inglaterra e, em setembro de 1620, com 102 peregrinos, embarcou no porto de Plymouth em um navio chamado Mayflower. Em dez de novembro daquele ano, a tripulação avistou o litoral da Nova Inglaterra. Eram as praias de Cap Cod. Em 20 de novembro, mudaram-se para um porto que oferecia melhores condições de abrigo que denominaram Plymouth, em lembrança ao porto inglês de onde haviam partido. Porto Filho destaca que “a bordo, os Peregrinos haviam assinado um Pacto, relativo à colônia que iriam fundar e à fidelidade com que se conduziriam em relação a Deus e uns aos outros. Na base desse pacto foi organizada a primeira comunidade congregacionalista na América, como extensão da Igreja de Scrooby, emigrada na Holanda”.

9.3) Os puritanos sob Carlos I (1625-1649). Em 1625, Carlos I (1600-1649), também opositor dos puritanos, foi coroado rei. Ele, como seu pai, cria firmemente nos direitos divinamente outorgados aos reis. Como se não bastasse, Carlos era casado com uma princesa católica romana francesa de nome Henriqueta Maria. Politicamente, tudo fez para tornar-lhe o Parlamento subserviente e, quando não conseguiu, governou sem ele de 1629 a 1640. Para lidar com a importunação puritana, nomeou William Laud (1573-1645) para o arcebispado de Cantuária. Laud era um anglicano de teologia arminiana, cujo objetivo concentrava-se em fazer resistência aos puritanos. Um grupo liderado pelo arcebispo começou a adotar “vitrais coloridos, cruzes e até crucifixos. Elevaram a mesa de comunhão e a chamaram 93


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de altar, insistindo que o culto fosse conduzido segundo o Livro de Orações, e não outro” (Shelley). Em virtude da política encetada por Laud, várias levas de imigrantes rumaram à Nova Inglaterra. Segundo Shelley, “dez anos após Laud tornar-se arcebispo, vinte cidades e igrejas haviam sido fundadas na Baía de Massachusetts – eram ao todo 16 mil pessoas, incluindo as 400 que ouviram as despedidas de John Cotton em Sauthampton”. Em 1628, um desses grupos de puritanos anglicanos, comandado por John Endicott, estabeleceu-se em Salém, em Massachussetts, ao norte de Plymouth. Como a colônia composta de 50 habitantes padeceu de escorbuto e outras enfermidades e foi atendida pelo Dr. Samuel Fuller, da colônia de Plymouth, a relação entre ambas se estreitou. Na primavera de 1629, outro grupo de anglicanos, composto de 300 homens e três ministros, comandado por John Winthrop, juntou-se à colônia de Salém. No Novo Mundo, em virtude da política anti-puritana do arcebispo Laud, os colonos não receberiam apoio da Igreja Anglicana, nem do rei, fato que levou a colônia de Salém a perceber as conveniências da adoção do sistema congregacional da vizinha Plymouth e realmente adotá-lo. Face à importância dessa colônia, pensou-se que ela teria trazido o congregacionalismo para a América, como nos conta Porto Filho: “Assim, a igreja de Salém, organizada em agosto de 1629, tomou o nome de Igreja Congregacional, sendo imitada pelas seguintes. A generalização do nome congregacional por essas igrejas e a importância histórica que elas e a nova colônia, mais próspera que a de Plymouth, alcançaram no desenvolvimento dos Estados Unidos, veio a criar a imagem de que aqueles colonos de Massachussetts foram os representantes e os introdutores do congregacionalismo na América”.

Os problemas para Carlos I aumentaram quando ele tentou impor aos escoceses, em 1637, o Livro de Oração Comum. Cairns nos informa que foi nessa época que “Jenny Geddes foi acusada de ter jogado a cadeira onde estava assentada na cabeça de um ministro por sua audácia de ‘rezar missa em meu ouvido’, na histórica Sta. Giles Church, em Edinburgh”. Os escoceses, em resistência, invadiram a Inglaterra em duas ocasiões. O rei precisou convocar o Parlamento para lhe dar suporte nas batalhas contra os escoceses. Convocado, o Parlamento entrou em choque com Carlos, mas estava dividido quanto à forma de governo da Igreja. Nele, havia membros episcopais, que 94


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formavam

o

Partido

Monarquista,

e

membros

puritanos

presbiterianos

e

congregacionais (também conhecidos como Roundheads, os Cabeças-Redondas), que integravam o Partido Parlamentar. Em 1640 o Parlamento restringiu o poder de Carlos. Quando este tentou punir os opositores, eclodiu a guerra civil, em 1642, que durou até 1648. Os membros monarquistas deixaram Londres para unir-se às forças que defendiam o rei. Sobretudo pela habilidade militar do congregacional Oliver Cromwell (1599-1658), finalmente ocorreram a vitória puritana e a oportunidade de reformar a Igreja Anglicana. Para tanto, em 1643, o Parlamento instaurou a Assembleia de Westminster, em Londres, assim chamada por reunir-se na abadia de Westminster. A Assembleia se reuniu de 1643 a 1649, em 1163 sessões diárias. Era composta por 121 ministros ingleses, 30 membros do Parlamento, além de 8 presbiterianos escoceses. Dentre os ingleses, encontravam-se episcopais, erastianos, independentes (incluindo Thomas Goodwin) e presbiterianos. A maioria desses homens era calvinista. A divergência envolvia a forma de governo da Igreja. Os independentes, que defendiam os princípios congregacionalistas e eram uma voz minoritária, não dividiram em torno do tema polêmico, pois, segundo Shelley, “procuraram alguma forma de expressar a unidade cristã mesmo quando os cristãos não concordavam”. Richard Baxter, que não fez parte da Assembleia, afirmou sobre ela: “Os teólogos aí congregados eram homens de grande erudição, piedade, capacidade ministerial e fidelidade (...) e segundo a informação de toda História a esse respeito e de outras fontes de evidência, o mundo cristão nunca teve, desde os dias apostólicos, um sínodo de teólogos mais excelentes do que este e o Sínodo de Dort” (citação de Guilherme Kerr).

Os principais resultados dessa magnânima Assembleia foram a Forma de Governo de Igreja e Ordenação, concluída em 1645 e adotada pelo Parlamento em 1648, que advogava o sistema presbiterial para a Igreja da Inglaterra; a Confissão de Fé de Westminster, concluída em dezembro de 1646 e aprovada em 22 de março de 1648; o Catecismo Menor para a instrução das crianças, concluído em 1647; e, o Catecismo Maior para uso no púlpito, concluído em 1648. Dessa forma, em 1648, a Igreja oficial da Inglaterra tornou-se presbiteriana calvinista, regida pelos documentos redigidos na Assembleia de Westminster, e assim permaneceu até 1658. 95


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Em 1648, a guerra entre os vinte mil homens de Cromwell (os Ironsides, i.é, oposição de ferro) e as forças do rei recomeçou. Dessa vez, Cromwell derrotou os aliados do rei, expulsou os presbiterianos da Casa dos Comuns e o remanescente do Parlamento criou uma alta corte para julgar Carlos I. Em janeiro de 1649, o rei foi levado ao patíbulo e executado. Com o Parlamento abolido, a Casa dos Comuns proclamou a república da Inglaterra – a Commonwealth. Mas, 1653, o exército depôs a Commonwealth e instaurou o Protetorado, através do qual Cromwell governou ditatorialmente até 1658, quando morreu, morrendo com ele o governo puritano. 9.4) Os puritanos sob Carlos II (1660-1685). Ao morrer, Cromwell deixou um herdeiro fraco e, em 1660, Carlos II (1630-1685) ascendeu ao trono, restaurou a monarquia e o sistema episcopal na Igreja Anglicana. As consequências para os puritanos foram desastrosas. Flanklin Ferreira nos conta que “em 1662, mais de dois mil pastores puritanos foram demitidos ou destituídos de suas paróquias, e quem não fosse anglicano não poderia colar grau nas universidades de Oxford e Cambridge. Essas ações marcaram o fim do período puritano, minado e fragmentado por intrigas políticas. Somente com a Revolução Gloriosa de 1689 a liberdade de culto foi assegurada aos não conformistas, como passaram a ser conhecidos os puritanos”.

Dentre os puritanos mais destacados do período encontram-se John Bunyan (1628-1688), batista particular, Richard Baxter (1615-1691), anglicano de tendências presbiterianas, e John Owen (1616-1683), teólogo congregacional. Os batistas particulares prepararam a Primeira Confissão Batista de Londres em 1644, que foi revisada em 1689, originando a Segunda Confissão Batista de Londres. Em 1658, os congregacionais escreveram sua Confissão, a Declaração de Savoy sobre Fé e Ordem.

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VII. A (Contra-)Reforma Católica Romana, a ameaça sociniana e a síntese da Reforma Protestante

1. A (Contra-)Reforma Católica Romana. Em meados da década de 40 do século XVI, tudo indicava que o norte da Europa iria, em peso, abraçar os ideais reformadores protestantes. O luteranismo estava em vias de enraizar-se em boa parte da Alemanha e na Escandinávia (Dinamarca, Noruega, Suécia, Islândia e Finlândia). A fé reformada fazia adeptos no Palatinado, na Morávia, na Hungria, na França, na Escócia, na Irlanda do Norte e, por um breve período, na Polônia. Os anabatistas mantiveram forte presença na Holanda e a Inglaterra já havia rompido politicamente com Roma. Entre as décadas de 1520 e 1530, o catolicismo romano nada fez que representasse um sério obstáculo ao avanço protestante. Parte da explicação é política, uma vez que Carlos V e os papas travavam uma ferrenha batalha em torno da convocação de um concílio geral. Por outro lado, os papas desse período estavam mais concentrados em questões políticas e seculares que em assuntos doutrinários e espirituais. Leão X (1513-1521) era o papa quando Lutero cravou suas teses na porta da Igreja. Seus objetivos giravam em torno do embelezamento de Roma e do crescimento do prestígio dos Médicis, sua família. Ele foi seguido pelo papa Adriano VI (1522-1523), cujo pontificado foi interrompido por sua morte precoce. Após Adriano, assumiu a cátedra da Sé Romana Clemente VII (1523-1534), primo de Leão X, que em nada diferenciou-se do seu parente. Foi durante o seu pontificado que as tropas de Carlos V tomaram Roma e a saquearam. Entretanto, a (Contra-)Reforma finalmente acendeu. Após o seu surgimento, somente a Holanda tornou-se protestante, em 1560. A Polônia, a Bélgica e a França foram definitivamente tomadas pelo catolicismo. Com o movimento de Contra-Reforma, Shelley pontua: “Enfrentando a oposição de quase metade da Europa, o catolicismo conseguiu reduzir a onda protestante a tal ponto que, no final do século

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XVI, o protestantismo limitava-se aproximadamente ao terço norte da Europa, como acontece atualmente”. Internamente, a Contra-Reforma também foi um movimento de renovação interna e reforma da igreja de Roma, cujos primórdios antecedem o movimento protestante, conforme destacaremos. Portanto, o movimento católico romano do século XVI tanto foi uma Contra-Reforma, porque muitíssimo moldado pelo desafio protestante, quanto uma reforma, porque também interessado em um retorno à piedade. 1.1) Os movimentos de reforma interna e o papa (contra-)reformador. Pouco antes de Martinho Lutero escrever suas teses, um grupo de aristocratas fundou em Roma uma fraternidade denominada Oratório do Amor Divino. Seu objetivo era dedicar-se a uma vida espiritual mais profunda, através de exercícios espirituais e de obras de caridade. Seus membros não eram numerosos (talvez 50), mas tinham enorme influência e incluíam nomes como Jacopo Sadoleto, que debateu com Calvino, e Giovanni Pietro Caraffa (1476-1559), que tornou-se o papa Paulo IV em 1555 (15551559). Mas, nenhuma reforma efetiva ocorreu até que Paulo III ascendeu ao trono papal (1534-1549), pelas razões supra indicadas. Ele fez cardeais alguns dos homens que compunham a Oratório do Amor Divino, dentre eles Caraffa. Em 1537, a comissão escolhida por ele para elaborar um plano de reforma religiosa apresentou um documento relatando os abusos da igreja romana e dos pontífices anteriores. Justo González acrescenta: “Este informe, que mostrava até que ponto havia chegado a corrupção, chegou de algum modo nas mãos dos inimigos do papado, e logo se converteu nas principais fontes de materiais para os protestantes em seus ataques contra essa instituição”. O reinado do papa Paulo III foi marcado, como o dos seus antecessores, pelo nepotismo. Ele também fez cardeais a seus netos quando ainda eram adolescentes. Entretanto, sob sua batuta, a Contra-Reforma avançou, visto que foi ele quem chancelou a Sociedade de Jesus (em 1540), criou a Inquisição Romana (em 1542), aprovou o Índex de livros proibidos (em 1543) e promulgou a bula convocando o Concílio de 98


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Trento (em 1544). Discorreremos brevemente sobre essas ações da Contra-Reforma Católica Romana nos tópicos seguintes. 1.2) A Sociedade de Jesus. A fraternidade Oratório do Amor Divino inspirou também o surgimento de novas ordens, que muito ajudaram a obstaculizar o avanço protestante. A ordem dos capuchinhos foi fundada em 1525 por Matteo da Bascio, como uma facção reformada dos franciscanos. Tereza d’Ávila, uma mística dedicada à contemplação, fundou a ordem feminina das “carmelitas descalças” e a ordem masculina dos “carmelitas descalços”. Todavia, nenhuma ordem se destacou tanto em importância à Contra-Reforma quanto a Sociedade de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada por Ignácio de Loyola. Ignácio era filho de uma família aristocrática e cresceu sonhando com a carreira militar. Em uma batalha contra a invasão francesa, no sítio de Pamplona, foi atingido na perna por uma bala de canhão. Em seu leito, afirmou em sua Autobiografia, teve uma visão da “imagem de Nossa Senhora com o santo menino Jesus”, através da qual sentiu “nojo” da vida de pecado que levava. Meses depois, dedicou-se à Virgem Negra na abadia beneditina de Montserrat. Dali rumou à cidade espanhola de Manresa, onde dedicou-se à vida de eremita. Ali, entregou-se a excessos de austeridade, em uma luta ferrenha contra as tentações e em profundo senso de pecado, até que, segundo ele, conheceu a graça de Deus, saindo daquela noite escura da alma certo de que havia sido perdoado de seus pecados. Após a sua experiência de “conversão”, Ignácio foi a Palestina, em 1523, de onde foi expulso pelos franciscanos, que temiam que ele pudesse lhes causar problemas na região. Então, decidiu que deveria estudar para melhor servir à Igreja Romana. Estudou em Barcelona, Alcalá, Salamanca e Paris. Após, congregou um grupo de admiradores e, em 1534, regressou com ele a Montserrat, onde fizeram votos de castidade, pobreza e obediência ao papa. Esse é o núcleo do que veio a ser a influente Sociedade de Jesus. A Sociedade de Jesus (como era chamada) foi aprovada pelo papa Paulo III em 1540, e veio a ser uma das principais armas contra a ameaça protestante. Tanto 99


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nutriram interesses missionários quanto se dedicaram em retomar para o catolicismo romano as terras conquistadas pelos protestantes. “Sua organização quase militar e sua obediência absoluta ao papa, lhe permitiram responder rápida e eficientemente a qualquer desafio” (Cairns). Quando Ignácio morreu, em 1566, sua ordem já contava com 1.000 monges. Foram os jesuítas que reconquistaram para a igreja romana as províncias ao sul da Holanda e a Polônia, além de haverem detido a onda protestante na França. Ademais, a participação dos jesuítas da primeira geração no Concílio de Trento foi decisiva. Nessas lutas anti-protestantes, os jesuítas foram deveras cruéis. Cairns observa que “seu relativismo ético fê-los justificar os meios pelos fins e o envolvimento com os reis na luta contra a heresia levou-os à interferência indevida na política, o que mais tarde os tornaria impopulares”. 1.3) A Inquisição Romana. A Espanha era a nação de vanguarda da Contra-Reforma. A Inquisição organizou-se ali, com autorização do papa, em 1480 e, sob a liderança de Tomás de Torquemada (1420-1498), 10.000 pessoas foram executadas, além das 2.000 execuções sob Ximenes. Pela insistência de Caraffa, a Inquisição Romana, de inspiração fortemente espanhola, foi proclamada por uma bula do papa Paulo III em 1542, como um instrumento de combate à heresia em todo o mundo. Cairns relata o modus operandi da Inquisição Romana com as seguintes palavras: “Presumidos como culpados até que provassem sua inocência, os acusados não podiam ser acareados com seus acusadores, eram forçados a testemunhar contra si mesmos, e eram obrigados a confessar sob tortura. Se condenados, eram punidos com o confisco de bens, prisão, queima na fogueira, a menos que confessassem e se retratassem. Estas punições eram executadas pelas autoridades seculares sob os olhos vigilantes dos inquisitores”.

1.4) O Índex. A disseminação das ideias protestantes se deveu, sobretudo, em face do desenvolvimento da imprensa. Para contê-la, a Igreja Romana elaborou o Índex, uma lista contendo os livros proibidos de serem lidos pelos fieis. “Todos os livros dos reformadores foram listados, assim como as Bíblias protestantes. Por muito tempo, o simples fato de se possuir um desses livros condenados, era passível de 100


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punição com morte na Espanha. O Índex esteve em vigor até 1959 e foi finalmente abolido pelo papa Paulo VI” (Bruce L. Shelley). 1.5) O Concílio de Trento. Durante as primeiras décadas do século XVI, os papas evitaram o quanto puderam a convocação de um concílio. Eles, como nos faz ver González, temiam que ressurgisse o espírito do conciliarismo do século anterior, quando se acreditava que “a autoridade de um concílio universal era superior à do papa”. Entretanto, Paulo III, em 1544, promulgou a bula que convocou o Concílio de Trento, considerado pelos católicos romanos o décimo nono concílio ecumênico. A cidade sede do concílio foi escolhida pela influência de Carlos, que queria que ocorresse em uma cidade sob seu controle. O Concílio de Trento foi aberto em 13 de dezembro de 1545 e perdurou até 1563. Sempre esteve sob o controle do papa, visto que a votação não era por nação, mas individualmente, e os italianos sempre consistiam em três quartos dos presentes. A princípio, reuniram-se 31 prelados, além de 3 legados do papa. Foram ao todo 25 sessões em três séries delas, intercaladas por longos recessos, durantes as quais pouco mais de 75 clérigos estiveram presentes. Os decretos finais eram assinados por 255 deles. Os decretos, em parte diziam respeito à regulação interna das obrigações dos bispos e em parte dedicavam-se a contra-atacar as doutrinas protestantes. A primeira série de sessões ocorreu entre 1545 e 1547, ocasião em que várias respostas doutrinais aos protestantes foram articuladas. O Concílio declarou que não somente a Bíblia, mas os livros apócrifos da vulgata de Jerônimo e a tradição da Igreja também constituem autoridade normativa para os fieis. Quanto à doutrina da justificação, a decisão é que o homem não é justificado apenas pela fé, mas também por suas obras. Os sete sacramentos foram confirmados. A segunda serie de sessões ocorreu entre 1551 e 1552. Nesse passo, o dogma da transubstanciação foi ratificado, além de outras decisões sobre a reforma interna. A terceira série de sessões, entre 1562 e 1563, concentrou-se em regras sobre os outros sacramentos, inclusive sobre o casamento, além da ratificação da ideia do purgatório. 101


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Segundo Cairns, o significado do Concílio foi tão somente “a transformação da teologia medieval escolástica num dogma acabado para todos os fieis”. Nada houve de teologicamente novo. Nesse mesmo sentido, Shelley afirma: “O papa permaneceu, os sete sacramentos permaneceram, o sacrifício da missa permaneceu. Santos, confissões e indulgências permaneceram. O trabalho do concílio foi essencialmente medieval, apenas a ira era nova... o espírito do Concílio de Trento era que existiam os católicos e seus inimigos, que representavam uma falsa versão do mesmo”.

2. A ameaça sociniana. Católicos romanos e protestantes, apesar das muitas e profundas diferenças, concordaram em várias questões doutrinais fundamentais, a exemplo dos dogmas da Trindade e do pecado original. Em linhas gerais, as formulações dos concílios ecumênicos dos séculos IV e V foram mantidas pelos dois grupos. Mas, houve no século XVI outro movimento que foi considerado herético tanto por protestantes quanto por católicos romanos, o socinianismo. 2.1) Lélio Socínio (1525-1562) e Fausto Socínio (1539-1604). Lélio Socínio envolveu-se com o protestantismo, mas, posteriormente, adotou ideias antitrinitárias. Quando morreu, seu sobrinho Fausto Socínio pegou suas anotações e tornou-se também antitrinitário. Após passar algum tempo em vários países, Fausto Socínio fixou residência na Polônia, onde já existia uma comunidade anabatista unitariana. Essa seita, a princípio, recusou-o como membro porque ele ensinava que o batismo não era um ato necessário. Entretanto, aos poucos, ele persuadiu o grupo a abraçar suas ideias e veio a ser seu principal líder. 2.1) As crenças de Fausto Socínio. Ele acreditava que as Escrituras deviam ser interpretadas racionalmente, o que fez dele um dos primeiros a sujeitá-las à crítica racional. Seu sistema filosófico também o levou a abandonar a divindade de Cristo. Para ele, Cristo tinha somente uma natureza, a humana, e somente após a ressurreição teria se tornado Deus, momento em que o Pai lhe conferiu poderes divinos. Essa ideia fez de Socínio um antecedente dos modernos unitarianos, embora não tenha 102


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chegado tão longe quanto os adeptos da seita Testemunhas de Jeová, visto que estes negam todo e qualquer papel divino de Jesus. Para Socínio, a morte de Cristo não é a base para o perdão de pecados. Segundo seu ensino, Deus não precisava de qualquer pagamento pela penalidade do pecado. Deus poderia perdoar o pecado quando quisesse, sem exigir qualquer preço. Assim, o propósito da vida e da morte de Jesus foi tão somente inspirar as pessoas a imitarem-no, a fim de que conseguissem o perdão de pecados e a vida eterna pelo arrependimento, boas obras e obediência à Lei. Vê-se que Socínio tanto ressuscitou o velho arianismo quanto o velho pelagianismo. O socinianismo é também um dos antecedentes dos modernos Teísmo Aberto e Teologia Relacional, sobretudo no que tange a compreensão quanto à onisciência de Deus. Lélio e Fausto concluíram que os calvinistas estariam corretos em dizer que se o conhecimento de Deus do futuro deve basear-se no fato de que Deus determinou tudo que aconteceria. Mas, também, os arminianos estão certos em negar que Deus determinou tudo que ocorre, porque isso violaria a liberdade humana. A solução sociniana foi, então, que Deus nem preordenou tudo que viria a acontecer nem conhece de antemão o futuro. Somente assim, a noção arminiana de liberdade do homem poderia ser preservada, uma vez que se Deus conhece todo o futuro, os homens não são realmente livres. Como os homens são realmente livres, Deus não poderia prever suas ações. Portanto, contra os calvinistas, o socinianismo negou que Deus determinou soberanamente, desde a eternidade passada, todas as coisas; e, contra os arminianos, negou a presciência de Deus, e, consequentemente, Sua onisciência. A semelhança entre o socinianismo e a Teologia Relacional “é notável”, como observou Augustus Nicodemus. Ricardo Gondim, principal propagador da Teologia Relacional no Brasil e fundador das Igrejas Assembleia de Deus Betesda, defendeu a velha tese sociniana nos seguintes termos: “Na Teologia Relacional (TR) o conceito de onisciência compreende a afirmação de que Deus conhece tudo que é passível de conhecimento, ou que pode ser conhecido. Assim, na TR não redimensionamos a onisciência divina, apenas o nosso conceito de futuro... Torna-se necessário enfatizar: o futuro não pode ser conhecido não porque Deus seja limitado, mas porque ainda não existe... Apenas afirmamos que Ele amorosamente nos convocou para sermos arquitetos do amanhã”.

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3. A síntese da Reforma. O século XVI pôs fim à hegemonia espiritual católico romana. A Reforma desencadeou o surgimento de igrejas oficiais nacionais, tais como a Anglicana, os países luteranos e os reformados, além do surgimento do denominacionalismo e das igrejas livres. Se, por um lado, protestantes e católicos romanos podiam concordar com o Credo Apostólico e os credos de Niceia e Niceno-constantinoplano, somente os protestantes acordaram quanto à autoridade exclusiva da Escritura, à salvação pela graça mediante a fé somente e o sacerdócio universal dos crentes. Essas doutrinas exclusivamente protestantes eram de fato suficientes para causar uma ruptura irreparável, uma vez que a autoridade da Bíblia fez implodir a autoridade da Igreja e a salvação somente pela fé e o sacerdócio dos crentes, juntos, questionaram todo o sistema sacramental e o sacerdotalismo, ambos desenvolvidos na idade média. Por outro lado, as tradições protestantes mantinham suas doutrinas particulares que as distinguia umas das outras. Questões tais como formas de governo e de batismo, batismo infantil, a relação que deveriam ter para com o Estado, os significados da eleição e predestinação e o sentido as Ceia do Senhor resultaram nas variadas denominações e tendências protestantes. Earle E. Cairns propôs o relacionamento uma divisão entre essas posições protestantes e católicas numa pirâmide em cuja base estão os “credos sustentados em comum pelas igrejas católica, ortodoxa e protestante (325-451)”, no plano intermediário “as doutrinas e credos protestantes (1530-1648)” e no topo as “características denominacionais”. É produto direto da Reforma uma reforma na própria Igreja Católica Romana, que desde então não foi mais a mesma em sua degradação moral e em seus abusos, próprios dos seus piores momentos na era medieval. Da Reforma também resultaram um renovado interesse pela educação e pela ciência, tanto quanto deu azo ao surgimento da democracia. Acreditamos que a mensagem permanente da Reforma está nos chamados cinco slogans ou lemas, conhecidos como os “cinco solas” da Reforma Protestante, 104


Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior 105 Estudos de História da Igreja: A Era da Reforma

quais sejam: Sola Scriptura (somente a Escritura), Sola Gratia (somente a graça), Sola Fides (somente a fé), Solus Christus (somente Cristo) e Soli Deo Gloria (glória somente a Deus). O Sola Scriptura define a questão da autoridade. O Sola Fide, o Sola Gratia e o Solus Christus refletem a soteriologia protestante. A adoração está insculpida no lema Soli Deo Gloria. Esses slogans foram adotados ainda muito cedo, por todos os reformadores de primeira geração, tais como Lutero e Zwínglio.

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