Flรกvia Davies
Ăndice
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9 Carta da edição
liberdade da ioga 60 Aatravés
68 Alinet
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104 cozinha 114 Na
28 Plenitude
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LUNGTA
82Feito à mão
busca que 48 Uma não se esgota
116 La Land e a 126 Lafantasia de plenitude
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92 escuta 102 aLagarta
bolo, uma música e pronto 130 Um tratado sobre o corpo 131 Pequeno a vida quando 132 Sobre já não se há mais vida Islândia, encontrou-se 135 Na a plenitude
direção criativa creative direction
equipe team
Carol Lancelloti Leo Pope
Alinet Cinthia Pascueto Fabiane Secches Fabíola Greco Fernanda Ventura José Carlos Suzuki Paulinha Alves Thiago Thomé Viviana Borlido
colaboradores collaborators Alli Willow Bianca Lavalle Bruna Venâncio Carol Aquino Christie Hassel Dasha Lavrennikov Fernanda Prestes Fernanda Von Flávia Davies Flora Chiarelli Coienca Gabriela Borges Souza Giovanna B. Helena Cooper Jenifer Carolline Jenifer Ramos Jéssica Simão Josenita Lima Júlia Brümmer Julia Porcher Juliana Rocha Ketlyn Aparecida Budal Leandro Martignago Mariana Ferrari Mariana Silva Samantha Rodrigues Steph Lotus Tamilyn Ayumi Thaina da Cruz Thiago Blumenthal Vanessa Azar
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Flรกvia Davies
Carta da edição
O
sol nasce sobre o vale. A bruma dissipa e agora é uma infinitude de gotas minúsculas. Na maior folha do jardim, uma lagarta caminha devagar entre gotas que evaporam de volta pro ar. É pra lá que a lagarta vai também. Em breve. Antes, ela busca seu alimento. Na segunda fase de sua vida, depois de ser larva, ela precisa acumular energia suficiente para a próxima fase: o casulo. Nele, ela vai criar asas para depois voar. Mas ainda não, agora é preciso colher o suficiente pra tecer sua casa. Só uma estrutura sólida vai possibilitar o voo final. Cada fio tecido é fundamental. Sem parar de comer, a pequena sobe sozinha toda a extensão da folha. No topo, chega o momento de saltar e cair na próxima. Assim, de forma quântica, a lagarta passa o dia a evoluir. Em cada um desses momentos, há plenitude. Enquanto outros se iludem com a sensação de que ter mais significa estar pleno, ou completo, o pequeno animal tem a consciência de sua natureza, que é completa e incompleta — simultaneamente, mesmo que de forma temporária. A primeira luz do dia pode ser a plenitude, assim como a transformação da bruma em gotas, que por sua vez evaporam de volta pro ar. O salto de uma folha pra outra, que segue com outro e mais outro. A construção do casulo, a confecção das asas, a libertação final, o voo e além. Sempre vai existir algo além, se assim ela imaginar. Com confiança, a lagarta cria e recria, dia após dia, destrói e constrói para voar por somente uma única vez. Assim, resiliente, ela mostra que importante é o colher, o tecer e o voar. No fim, este simples reconhecimento mostra que sua natureza é plena. Sempre foi. Sempre será.
Leo Pope
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Ă?nstar
direção e fotografia Leo Pope
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TOP ACERVO
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VESTIDO ACERVO
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HOTPANT E VESTIDO ACERVO
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TOP ACERVO CALÇA NAAI
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MAIÔ PURA SWIM
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TOP ACERVO CALÇA QGUAI
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styling e acervo Giovanna B. beleza PĂŠrola Rodrigues modelo Fernanda Prestes (FORD)
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Plenitude texto Carol Aquino foto Flora Chiarelli Coienca
ple.ni.tu.de
substantivo feminino 1. Estado do que se encontra em toda a sua força; 2. Amplitude; desenvolvimento; 3. Grandeza; 4. Estado do que se encontra pleno, cheio ou completo, sem espaço; 5. Totalidade.
Sinônimos: inteireza, completude, totalidade. Antônimos: escassez, limitação.
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Pesquisar sobre o significado de plenitude nos dicionários em inglês e em português nos leva a uma descoberta interessante. Em ambas as línguas, ela é escrita da mesma forma e, apesar de haver perdido espaço no uso cotidiano para ‘completeness’ (completude em português), lá está ela, derivada do latim plenitudinis e com exatamente o mesmo sentido. Migrando da etimologia para as ruas da linguística, a gíria “plena” virou moda na internet, estranhamente mantendo o significado da palavra intacto. Para quem trabalha com tendências, é interessante ver como uma palavra se transforma em gíria pois ela pode dizer muito sobre o momento em que um grupo ou uma sociedade/país vive. E, na atual situação política no Brasil, a busca por plenitude é um tanto sensata e coerente. Esta não é uma tendência isolada ao país; considerando a conjuntura mundial, a busca por plenitude também é percebida em diversas partes, e diversas empresas já reagem a esses sinais enviados por consumidores. Além da instabilidade política, no ano passado a consultoria Deloitte lançou um relatório onde traça previsões para o período 2016-2020. Nele, cinco grandes afirmações relacionadas à vida cotidiana são colocadas como os pilares centrais das tendências de consumo. O primeiro são as perdas econômicas vividas por uma parcela considerável da sociedade e o estrangulamento das classes médias ao redor do planeta. Isso automaticamente afeta a renda disponível dos consumidores e altera os mercados-alvo das empresas. Outro aspecto que impacta o consumo é o aumento dos preços das commodities e a escassez de matérias-primas, aumentando os custos com pesquisa e desenvolvimento e afetando diretamente os preços ao consumidor. No âmbito da tecnologia, a cada vez mais próxima realidade da AI (inteligência artificial) traz à tona dois novos rumos: a proliferação da customização ou personalização de produtos, e uma facilidade cada vez maior de compras por meios digitais. Os consumidores se entregam cada vez mais à permeabilidade entre o mundo real e o digital, e questionam por que companhias tradicionais não entregam produtos e/ou serviços tão eficientes e personalizados quanto empresas digitais como Facebook, Instagram ou Snapchat. O questionamento não fica somente restrito à entrega dos produtos e/ou serviços; ele passa por toda a cadeia de produção, inclusive o marketing e as responsabilidades sociais das empresas. O último pilar que direciona as tendências nos próximos anos – talvez o mais importante, pois engloba os mencionados anteriormente – é o senso de responsabilidade e valores de uma empresa como nova base de fidelização. Consumidores querem cada vez mais se relacionar com marcas que demonstrem empatia, e percebam que assuntos cotidianos são importantes o suficiente para que as companhias também se importem com eles, sejam eles diretamente relacionados ao core business da empresa ou não.
Sim, mas o que isso tem a ver com plenitude? Prever tendências não significa somente tentar desvendar o futuro. Devemos também analisar o passado. Assim, vemos que a humanidade – apesar do momento aparentemente crítico – nunca esteve melhor. O mundo ocidental vive seu maior período sem guerras (e que continue assim!), e desde a primeira revolução industrial – ocorrida por volta de 1750 a 1840 – cada geração consome, come e vive mais que a anterior. Além disso, as projeções são todas positivas, mesmo considerando os cenários mais difíceis. Ou seja, a tendência é de que nossa vida coletivamente* tenda a melhorar. Os avanços recentes na tecnologia, especialmente no que concerne à inteligência artificial, são também chamados de “a quarta revolução industrial”. A expectativa é que esses tragam mudanças tão radicais quanto as da primeira revolução industrial. O professor Klaus Schwab, escritor do livro The Fourth Industrial Revolution e fundador do World Economic Forum, explica que as projeções de disrupções de curto/médio prazo são tão grandes ou maiores que as da primeira revolução industrial, onde milhares perderão seus empregos e diversos segmentos da economia passarão a ser obsoletos. Adventos da inteligência artificial já estão ao nosso redor, como drones, assistentes virtuais (Siri, Cortana
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etc), carros que dirigem sozinhos ou softwares de tradução instantânea. O crescimento exponencial na capacidade computacional e de armazenamento de dados estão auxiliando esses avanços; contudo, ainda estamos na infância da inteligência artificial. Muito ainda depende do desenvolvimento da computação quântica (quantum computing) e de uma maior conectividade da Internet das Coisas (Internet of Things), nanotecnologia, entre outros. Há somente uma certeza: encontramo-nos em um momento de ruptura, e muito do que conhecemos como “tradicional” ou “normal” passará a ser encontrado somente em livros de história. Por um lado, podemos focar nos aspectos negativos e perceber que muitas pessoas não terão habilidades necessárias para encontrar novos empregos. Contudo, sob a ótica de progressão constante da humanidade, a predominância de robôs em determinadas profissões nos fará repensar quem somos e nosso papel no planeta. Historicamente, é fácil perceber como evoluímos de meros escravos – de senhores feudais, de salários, de ditadores, de líderes de tribos, de campos sem máquinas e dependentes de arados manuais, de velas, da luz do dia – a pessoas com renda disponível, expectativa de vida de mais de 28 anos, e comida na mesa. Deixamos de nos preocupar com a subsistência para descobrir a alegria do supérfluo, sonhar com filmes em Technicolor, ter motores e eletricidade, viver o “American Dream” e nos fartarmos com gordura e açúcar até transformarmos obesidade e diabetes em perigos reais. Não vivemos sem um smartphone, que sozinho tem mais capacidade que todos os computadores que colocaram o homem na Lua juntos. Tudo isso nos dá mais tempo livre. Tornamo-nos mais artísticos, mais introspectivos, nos preocupamos mais com o mundo à nossa volta, com nossa saúde, com quem amamos, com nós mesmos. Sentimos mais ansiedade, queremos estar mais conectados, saber mais o que acontece ao nosso redor, nos envolver mais profundamente com tudo e todos. Queremos mais e mais. Plenitude significa o “estado do que se encontra em toda a sua força; desenvolvimento”. A humanidade ainda não utiliza todas as suas forças, nem podemos dizer que chegamos ao estado máximo de desenvolvimento; porém, estamos melhores do que nunca. Em outras palavras, caminhamos para a plenitude – apesar de não sabermos ao certo o que isso significa. Estamos constantemente crescendo, individualmente e coletivamente, consequentemente alternando momentos de angústia e felicidade. Podemos citar as situações de instabilidade política como momentos de angústia, e uma das tendências citadas pela Deloitte. Porém, podemos ver a necessidade de empresas se engajarem socialmente como um avanço no lado da felicidade. Um maravilhoso exemplo é a recente mudança da campanha dos desodorantes Axe, que deixou de lado seu viés extremamente misógino para uma que exalta as qualidades dos homens, sejam eles como forem. O novo slogan – “Find your Magic” (ache a sua mágica, em tradução livre) – dá aos homens a liberdade de escolherem suas qualidades, e ser quem realmente são. O mais recente comercial é de uma perfeição única e merece ser visto. Intitulado “Is it OK for guys...” (é OK para homens..., em tradução livre), ele menciona que um estudo feito nos EUA pela Promundo descobriu que 72% dos homens já ouviram como um “homem de verdade” deve se comportar. Mostrando a página do Google, vêse alguém escrever “é OK para um homem” e a sugestão automática sugere: “ser emotivo”, “usar maquiagem”, “não gostar de esportes”, “ser magro”. Diversas cenas aparecem com narradores por trás perguntando mais coisas, como “usar rosa”, “ficar com medo”, “ser virgem”, entre outros. O final diz que é hora de parar de questionar o que define masculinidade, e abraçar a sua própria mágica, sendo você mesmo. Forte, contundente e emocional, vindo especialmente de uma marca que nos acostumou a ver um homem rodeado por mulheres seminuas simplesmente por usar desodorante. Esse não é o único exemplo de marcas que acordaram para a importância
Caminhamos para a plenitude –
apesar de não sabermos ao certo o que isso significa.
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de “tomarem partido” ou de terem empatia. Inúmeras empresas de tecnologia, como Facebook e Airbnb, afirmaram abertamente ser contra a eleição de Donald Trump pois querem que os EUA continuem sendo um país aberto a imigrantes, ou a Amazon, que vai colocar um abrigo para moradores de rua dentro de sua nova sede em Seattle. Essa busca por plenitude não aparece somente num âmbito coletivo ou corporativo. Vemos cada vez mais pessoas buscando ajuda psicológica e a explosão de apps como o Talkspace, que fornece terapia online com psicólogos licenciados e especializados em casos como depressão, ansiedade, orientação sexual ou traumas de guerra. Já o mais recente exemplo na área artística combina o pessoal com o corporativo: o lançamento do vídeo Malibu de Miley Cyrus, canção que abertamente fala sobre o relacionamento amoroso dela com o ator Liam Hemsworth. Sempre vestindo branco (significando seu casamento com Hemsworth), e em sua imensa maioria em roupas confortáveis e “orgânicas”, os cenários – escolhidos por ela e Liam – são próximos da casa onde moram em Malibu e dão a sensação de “retorno à Mãe Natureza, às origens”. O mesmo pode ser dito da forma como Cyrus se apresenta: cabelos sem qualquer esforço, maquiagem natural mas com um brilho interior para demonstrar a felicidade. Cabelos, aliás, sem disfarçar a raiz, para demonstrar que o tempo passa, que os erros fazem parte de nós (ela já mencionou que não se sente feliz com a imagem que passou anteriormente), mas podemos ser pessoas melhores. As cores, salpicadas por flores ou balões, evocam exatamente as cores do momento, nessa fase pós-seapunk que abraça o mundo do unicórnio. Miley demonstra o que é a plenitude para ela: ter de volta uma vida junto a Liam Hemsworth, encontrar-se em sua carreira musical e ter uma fase “mais adulta”. Essa é a grande dificuldade: o que é plenitude, individual e coletivamente? Conseguiremos definir o que é “ser completo”? Talvez as ansiedades atuais – o FOMO mencionado na edição anterior d’aLagarta... – venham exatamente dessa sensação de insegurança em não saber onde é a linha de chegada. Na verdade, por não termos a menor noção do que ela seja. O historiador norte-americano Arthur O. Lovejoy, em seu livro The Great Chain of Being (a grande cadeia do ser, em tradução livre), se utiliza das ideias de Platão para definir o “Princípio da Plenitude”, onde afirma que o universo é completo porque contém todas as formas possíveis de existência. Ele vai além e distingue duas versões do princípio: a estática, onde o universo sempre contém todas as formas, e a temporalizada, onde a diversidade e completude vão sendo gradualmente preenchidas. Ao buscar respostas sobre plenitude no âmbito individual e coletivo, vemos que a versão temporalizada de Lovejoy se aplica perfeitamente. Estamos nos aperfeiçoando, em crescimento. A dualidade de exaltarmos nossas qualidades e aprendermos a conviver com nossos defeitos, até que possamos – se pudermos – melhorar. Encontrar a beleza na imperfeição. O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano define bem a plenitude de sua escrita: “Minha linguagem é de sentimento-pensamento, sentir e pensar ao mesmo tempo, e por isso mesmo é uma celebração da vida e, ao mesmo tempo, uma denúncia de tudo que não é permitido na vida em ser vida real; é plenitude”. *Nota: Vale ressaltar o “coletivamente”, pois observamos os macro-cenários, e por mais que individualmente pessoas, famílias ou até mesmo países possam piorar de situação, a progressão da humanidade como um todo é crescente.
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LUNGTA
fotografia Carol Lancelloti styling Bianca Lavalle beleza Viviana Borlido
KIMONO Gioconda Clothing, MAIÔ acervo, BRINCOS Studio Adriana Valente, COLAR La Pomponera
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CROPPED Q.GUAI, ACESSÓRIOS LILAC
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VESTIDO G.GUAI, ACESSÓRIOS LILAC
TOP E CALÇA La Pomponera ACESSÓRIOS Studio Adriana Valente CHAPÉU acervo
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KIMONO Gioconda Clothing COLAR Studio Adriana Valente
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modelo Tamilyn Ayumi (FORD) assistente de fotografia Carol Oliveira agradecimentos especiais Flavia Ramalho
Uma busca que não se esgota
texto Bruna Venâncio foto Flávia Davies
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Você deve se lembrar, sem grande dificuldade, de um amigo que se descobriu fazendo ioga. Ioga ou qualquer atividade esportiva/artística/“com propósito”. E não só se descobriu nisso, mas ficou completamente envolvido pelo novo hobby, a ponto de abandonar tudo e projetar uma carreira como instrutor (no caso da ioga) e de publicar imagens nas redes sociais para disseminar a prática aos amigos. Nada contra quem pratica ioga ou busca algum tipo de envolvimento quase ancestral com as atividades que pratica. Como diria Freud, eles buscam uma espécie de “sentimento oceânico”, algo que os preencha ou que produza conexão com o mundo e com as coisas. Esse sentimento oceânico remete ao sentimento de plenitude de que estamos falando aqui. De início, a gente se questiona se se trata de um sentimento possível e, se for, como encontrá-lo. É válido lembrar, antes de falar sobre plenitude, que a busca por esse sentimento (sensação? impressão?) tem a ver com o seu exato oposto: uma sensação de que falta algo, como se não nos identificássemos com a vida que levamos. Nem sempre nos sentimos dispostos a corresponder às exigências do mundo, nem sempre estamos dispostos a dar o máximo no trabalho, nos estudos e até nos relacionamentos com as pessoas. Em geral, sentimos que nossos esforços não valem a pena e que nunca podemos fazer o que gostamos. Uma sensação de vazio nos acomete acompanhada, não raro, por insatisfação. É claro que essa sensação de vazio, de desconcerto, não é nova, é possível confirmar isso estudando o surgimento do romance como gênero. De acordo com Lukács, na era da epopeia, ser e destino, vida e essência se tratavam de conceitos idênticos. Ou seja, todo mundo sabia muito bem o que o destino reservava e a vida que as pessoas levavam tinham a ver com a essência de cada um. Não havia dúvidas sobre o que fazer ao longo da vida e sobre o que esperar dela. Com as mudanças na sociedade, surge o romance como uma forma do
Pode ser que o que te faça sentir pleno hoje, não seja a mesma coisa amanhã. A mudança é bem-vinda e é uma forma de ir-se tornando. homem não apenas tentar entender esse novo mundo, mas também representálo e refletir sobre ele. Lukács vê o escritor do romance como um indivíduo que se sente inadequado e que não consegue se relacionar com o mundo, percebendo as dificuldades de encarar seus obstáculos. O romance surge como uma nova forma de escrita, que ainda não se definiu totalmente, mas que em sua conformidade tem o caráter de expressar uma certa consciência de desajuste que move o homem moderno e que o escritor percebe como parte de nossa própria condição. Na época (século XIX), a ascensão da burguesia parecia ter criado possibilidades de mudanças sociais, mas essas mudanças eram só aparentes. Ainda hoje, temos a impressão de que é possível seguir qualquer carreira, realizar os nossos sonhos de juventude, mas há sempre entraves, dificuldades que se interpõem entre nós e as coisas e, quando conseguimos “chegar lá”, fica a dúvida se de fato aquilo era o que realmente queríamos. Mas o ponto aqui é plenitude, certo? Pois bem. Como nós conquistamos esse sentimento, quando sentimos essa sensação de desconcerto, quando não conseguimos estar de fato envolvidos com as coisas que vivenciamos? O cara da ioga parece ter encontrado a sua forma de plenitude. Outros escolhem algum tipo de hobby ou atividade para tentar ao menos preencher algo que a gente nem sabe bem o que é. Nos últimos anos, tornou-se moda tentar trabalhar com algo em que encontrássemos algum propósito, que não só o propósito imediato de se pagar as contas. O fato é que, embora possamos encontrar algo que nos dê algum prazer, a plenitude é uma busca que não se esgota. Pode não parecer, quando olhamos muito rapidamente a questão, mas a consciência de que se trata mais de uma busca do que um porto seguro para o qual deveríamos correr pode ser muito vantajosa. Em primeiro lugar, você se dá conta de que estamos todos perdidos e tem a chance de olhar o outro como um igual, como alguém que está no mesmo barco que você. Em segundo lugar, ao adotar essa perspectiva, se sentirá menos frustrado quando as coisas não derem certo. Afinal, você é só uma pessoa no mundo. Nem tudo depende de você e de suas vontades. Em terceiro lugar, vai perceber que jogar tudo para o alto sempre que as coisas ficarem difíceis nem sempre vai resolver o problema. Uma hora ou outra, as coisas ficam chatas mesmo, seja no trabalho, seja no contato com as pessoas. Por fim, vai ver que a busca não acaba e que não deve acabar. Você pode achar que sabe bem quem você é e do que gosta, mas a gente só tem uma vaga ideia sobre a gente mesmo. Pode ser que o que faça você se sentir pleno hoje, não seja a mesma coisa amanhã. A mudança é bem-vinda e é uma forma de ir-se tornando. E isso nunca acaba.
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Toque
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fotografia, produção e direção Júlia Brümmer
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modelos Christie Hassel, Jenifer Carolline, Jenifer Ramos, Jéssica Simão, Josenita Lima, Julia Porcher, Ketlyn Aparecida Budal e Samantha Rodrigues todas as peças acervo
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making of Ana Maria Martins apoio Paula Oliveira cachorrinha “Branca” digitalização analógica Rafael Prado
A liberdade através da ioga A prática milenar nos ensina que a completude faz parte do caminho do autoconhecimento texto Mariana Ferrari fotos Juliana Rocha
É preciso coragem e comprometimento: depois de “um mergulho em si pela arte” – meu texto na edição passada d’aLagarta – minha proposta é te incentivar a olhar para dentro, se apaixonar pela busca da sua verdadeira natureza e se sentir mais livre. Tudo isso com o auxílio da ioga, sistema que integra mente, espírito, corpo, respiração e sabedoria. A arte sempre foi essencial pra mim, mas precisei ir além para tentar me sentir mais completa, confortável e satisfeita. Há três anos me envolvi com a prática diária do Hatha Yoga e mudei a forma de me relacionar comigo e com o mundo. A ioga me prendeu através da investigação do meu corpo, mas logo se expandiu para minha consciência. Se você acha isso um papo “harebo”, se liga: cada vez mais pessoas, de crianças a CEO’s, vêm despertando para a meditação, a ioga e a atitude “mindfulness”, práticas que incentivam a concentração plena e o foco no presente. Ainda bem!
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O despertar Você pode buscar a ioga pra aliviar uma dor nas costas, desestressar ou emagrecer. Pode até se animar a praticar por ver a foto de uma postura invertida no Instagram. Mas olha que legal: ioga não é sobre fazer os ásanas perfeitos. É sobre fé, força, foco, confiança e energia – e não tem nada a ver com dogma ou religião. Seja qual for a intenção, com a ajuda de um professor você será introduzido às ferramentas da prática física, respiratória, mental e espiritual, e na medida que for fazendo sentido para você, seu despertar irá começar – você vai ficar mais consciente das oscilações da sua mente, como pensamentos e sentimentos interferem na postura e nas atitudes, e como você é capaz de controlar isso. A primeira vez que pratiquei ioga foi há dez anos. Via pessoas incríveis fazendo posturas fodonas nas capas das revistas e queria ser como elas. Mas o estúdio em que me meti quis fazer de mim alguém que eu não era: recém-chegada na faculdade não ia largar as festas pra fazer retiros de limpeza digestiva. Deixei pra lá e achei que ioga não era pra mim. Sete anos depois, com a prática mais disseminada e virando desejo graças às redes sociais, redescobri o Hatha Yoga como forma de alongar o corpo, minimizar dores na coluna e acalmar a mente. Estava em um ritmo de trabalho frenético, e aí sim desacelerar começou a fazer sentido pra mim. Fui sentindo um bem tão grande que quis ir mais fundo, praticando diariamente. Num estúdio novo descobri o estilo Vinyasa, mais dinâmico que o Hatha, e vi que desafiando minha força, coragem e fôlego a ioga também poderia ser um exercício físico pra substituir as horas que passava entediada na academia. Confesso que nessa época o meu ego inflou no tapete e eu quis ser a iogue ‘fit’ com braço e abdômen sarados, rainha das investidas e alma zen. Até que um curso de aprofundamento me mostrou o que a ioga realmente é.
Ioga não é sobre fazer os ásanas perfeitos. É sobre fé, força, foco, confiança e energia.
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A imersão Morando em Nova York num período sabático e de reinvenção, aproveitei para estudar ioga no estúdio onde adorava fazer aulas. Inscrevi-me meio sem saber o que iria fazer com o certificado de professora de ioga – será que ia largar tudo e passar a dar aulas? Levar um estilo de vida menos acelerado e mais conectado em espalhar o bem para as pessoas era sim uma vontade. Mas comecei a ver a ioga para além do estúdio. No primeiro dia do curso, logo percebi que essa é uma estrada muito longa, e eu estava apenas começando. Antes de conseguir levar esses ensinamentos para alguém, eu ainda tinha muito a aprender comigo mesma, queimar meus padrões negativos, encarar as dificuldades que estava vivendo na vida pessoal e exercitar minha flexibilidade, força e foco muito mais profundamente do que vinha fazendo. Quando você apenas pratica uma aula de ioga num estúdio, talvez nem aprenda a pronunciar um mantra ou escute falar sobre os Yoga Sutras de Patanjali. Mas quando começa a estudar a sabedoria iogue, acaba conhecendo esse que é o lado mais importante de todos. Através dos escritos antigos sobre ioga aprendemos, entre inúmeras outras coisas, sobre os Yamas (Não violência, Verdade, Não roubar, Desapego e Controle do impulso sexual) e Niyamas (Pureza, Disciplina, Contentamento, Autoestudo e Entrega), fundamentos da prática que nos ajudam a examinar nossos hábitos, comportamentos e suas consequências. Estudar cada um deles e se auto-observar passa a ser fundamental, até mesmo após a formação. O curso intensivo de 200 horas em um mês me apresentou a diversos textos e conversas com os professores e alunos sobre atitudes, experiências e funcionamentos da nossa mente. Essa troca deixava a leitura mais acessível, prática, e trazia diversos insights sobre tudo que vivia. E eu que comecei achando que ia sair de lá dando aulas e criando retiros pelos lugares mais lindos do mundo; descobri que ainda tinha muito a praticar, aprender e transformar. Tornei-me uma iogue mais humilde.
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A plenitude A ioga é muito mais do que aquilo que a gente pratica sobre o tapete: é uma complexa e poderosa ferramenta de autoconhecimento que altera a maneira como lidamos com corpo, mente, espírito e com o mundo. As posturas são um meio de aprender a filosofia: seu ego rapidamente criará rótulos sobre as que você gosta ou não. Você pode ter facilidade para fazer outras posturas, e se sentir o máximo por isso. Ou você pode não conseguir de jeito nenhum fazer uma postura desafiadora, como uma invertida, e seu ego dirá que você é um fracassado. Uma boa autoinvestigação, no entanto, te mostrará que toda essa prática não passa de uma experiência para explorar seu corpo e te fazer entender como lidar com situações parecidas no dia a dia. Isso tudo desperta uma visão mais integrada do seu ser e te faz olhar seus hábitos e as consequências das suas atitudes de forma totalmente diferente. Você muda a forma como encara os problemas e os resultados. Vê as coisas acontecendo, mas mantém seu eixo no lugar, observando e apreciando. É claro que certas coisas ainda vão te desequilibrar – até o mais zen iogue pode balançar na postura da árvore! – mas com a auto-observação fica mais raro perder a cabeça com qualquer coisa. A ambição continua existindo, mas, conforme a vida vai acontecendo, a gente lembra que felicidade não depende mais de algo dar certo ou não. Assim como conquistar a invertida não vira o seu objetivo na aula. A liberdade vem através da ioga quando descobrimos nosso próprio jeito de lidar com nossas dores físicas e emocionais, a enfrentar nossos pensamentos negativos, a dominar nosso medo, a não perder de vista o foco e o equilíbrio. Uma longa jornada de autoconhecimento e amor-próprio: atitudes que são atos de rebeldia na sociedade acelerada e opressora em que vivemos. E tudo bem: que sejamos rebeldes, livres e mais conectados com nós mesmos.
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Linfa fotografia Thaina da Cruz produção Gabriela Borges Souza
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modelo Fernanda Von todas as peรงas Enkele
Feito à mão texto Cinthia Pascueto
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Q
uando alguém fala coisas do tipo: “fiz um casaco lindo de tricô!” ou “que bordado bem feito!”, o que você imagina? Aposto que a primeira cena que vem à sua mente é de uma senhorinha de cabelos brancos, sentada em uma cadeira de balanço na varanda com um novelo de lã no colo. Acredite: nem sempre foi assim e, se depender dessa geração atual, que busca uma vida feliz, criativa e com propósito, esse ostracismo das práticas artesanais está prestes a acabar. O trabalho manual, que origina o artesanato, é ancestral. A história da humanidade tem sua evolução intrinsecamente ligada à invenção e produção de objetos feitos à mão, associadas ao surgimento das primeiras aldeias. Diversas culturas, espalhadas por todo o mundo, desenvolveram à sua maneira e mediante sua própria necessidade os ofícios passados de geração a geração, de mestre para aprendiz e nas mais variadas plataformas. No entanto, com o desenvolvimento industrial, o trabalho artesanal perde sua relevância para o processo fabril, que produz em escala muito mais ampla. Além disso, a distinção entre o artesão e o artista desvaloriza o artesanato, considerando-o um trabalho artístico menor, por seu caráter utilitário, técnico e popular frente à subjetividade e academicismo atribuídos às artes plásticas. Limitar a ideia do fazer artesanal a lembranças de viagens e produções caseiras, entretanto, é um erro. Uma gama imensa de possibilidades se abre ao resgatar os saberes artesanais, seja através da moda e mobiliário tradicional ou criando oportunidades para as cooperativas, valorizando as técnicas e potencial artístico típicos de cada região e, por que não, subvertendo seus usos e funções. Abrir o olhar para esse tipo de produção estimula não só o interesse das novas gerações pelo aprendizado das técnicas artesanais, mas também pelo consumo de um produto autoral, único e com alma. Nessa jornada, surgem iniciativas como o craftvism – união da palavra “craft” (artesanato) com “activism” (ativismo), cunhado pela escritora e artesã norte-americana Betsy Greer, que propõe um novo olhar para ofícios como o tricô, o bordado, o crochê e outras técnicas artesanais consideradas “práticas femininas”. O craftvismo considera o fazer artesanal um meio de expressão artística, social e política, que pode mudar o mundo e abraçar as mais variadas causas, de acordo com a finalidade do artesão: seja chamando atenção para a preservação ambiental criando capas de crochê para árvores, espalhando bordados com frases feministas e de emponderamento pela cidade, ou costurando casacos e bonecos que serão doados. Toda iniciativa importa: “sua arte é a sua voz. Use-a bem”, afirma o Manifesto Craftivista. O resgate das práticas e saberes artesanais, conferindo a elas uma reinterpretação pessoal e contemporânea, é uma forma de ativismo. Olhar para trás e ressignificar as técnicas aprendidas, apresentando um produto novo, desafiador e contestador é um manifesto. Encontrar prazer, bem estar e qualidade de vida em um novo ofício, não convencional para a sociedade de hoje e provar que é possível ser feliz e dar certo, é uma revolução. Confira a seguir as histórias de mulheres incríveis que se encontraram nas mais diversas formas de arte manual.
HELEBORA Beatriz e Flora Chiarelli Coienca @helebora_ Beatriz e Flora tiveram contato com técnicas artesanais desde a infância, por influência do pai, que já arriscou pincelar alguns quadros, é marceneiro e sempre conserta e inventa as coisas para dentro de casa. Essa atmosfera de estúdio despertou desde cedo o interesse das irmãs por trabalhos manuais e culminou na criação da Helebora: marca de acessórios decorativos feitos com macramê – “uma técnica de nós feita com fios, como um tecer manual. Com isso, você cria inúmeros desenhos e texturas”, explica a dupla. Os painéis e suportes de vasos podem levar horas ou dias para ficarem prontos, dependendo do tamanho e complexidade de cada peça. Para executar o trabalho, as irmãs gostam de fazer com tempo, em um ambiente calmo e música. “É o tipo de coisa que não faz sentido se for feito na correria, com mil coisas na cabeça. Quando você fica fazendo algo que tem muita repetição de movimentos, como os macramês ou o crochê, sua cabeça vai longe. É muito bom para relaxar e esvaziar a mente. A maioria das vezes em que estamos trabalhando com as peças, ficamos nessa sintonia e o tempo passa diferente”, descreve Bia. Segundo Flora, o fazer manual cria uma proximidade entre as pessoas, pois desenvolve um produto feito com amor, boas energias e intenções: “A Helebora transmite algo
fotos Beatriz Chiarelli Coienca
que nós sentimos em nossas vidas pessoais: que o mundo precisa de mais dedicação e atenção de um ser para o outro. Com o passar da evolução, estamos cada vez mais fechados e viciados na tecnologia, o que nos afasta um pouco das coisas simples da vida. Acreditamos que essa valorização dos produtos manuais nos traz de volta um pouco de nossas raízes, de quem realmente somos e de que precisamos cuidar e amar o próximo”.
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MATTRICARIA Maibe Maroccolo @mattricaria A Maibe Maroccolo é a criadora da Mattricaria, empresa que tinha como proposta inicial ser uma marca de roupas tingidas e estampadas naturalmente, produzidas dentro dos conceitos do slow fashion. A ideia se expandiu e hoje também realiza pesquisas, estuda e registra técnicas artesanais têxteis de tingimento e corante natural, aplicando e disseminando esse conhecimento de diferentes maneiras. Maibe já trabalhava com o mercado de moda em Brasília desde 2007, quando começou a se frustrar com a profissão e com o posicionamento de marcas em relação à produção de resíduos, mão-de-obra, fast fashion e impacto no meioambiente. Já com esse pensamento, foi para Londres estudar Moda e Desenvolvimento Sustentável, na London College of Fashion, e começou a pesquisar sobre o tingimento natural. De volta ao Brasil, desenvolveu um projeto de mapeamento das plantas tintórias do cerrado brasileiro junto a cooperativas de artesãos têxteis do Distrito Federal, Goiás e Minas Gerais, que utilizam receitas tradicionais de pigmentos e tintas naturais. Desse processo e mistura de conhecimentos nasceu a Mattricaria. “Uma das minhas maiores motivações para a criação deste projeto veio de vivenciar momentos únicos e singelos, como caminhar e perceber as calçadas do meu bairro manchadas de roxo escuro do pé de jamelão carregado; ao preparar um prato com beterraba e admirar a cor forte que ela deixou nas minhas mãos. A natureza nos oferece inúmeros elementos para colorir as nossas vidas. Reunindo as minhas vivências e experiências, percebi que muitos métodos e saberes foram perdidos principalmente pela cultura das indústrias
foto PauloGoulart
de grande escala”, conta Maibe. “Os corantes naturais têm histórias ricas em todas as culturas do planeta. Olhar para essas histórias é uma poderosa forma de resgatar receitas e técnicas interessantes. Na história têxtil há inúmeros exemplos de processos sustentáveis usados pelos nossos antepassados ao redor do mundo. Aprender com o nosso passado, desenvolvendo técnicas sustentáveis, é fundamental para a preservação do nosso planeta. O mundo natural é intrinsecamente regenerativo”.
A natureza nos oferece inúmeros elementos para colorir as nossas vidas.
foto Nathalia Frensch
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TWO BEE Bianca Moraes @twobee_ A Bianca Moraes é quem comanda o blog e o canal no youtube Two Bee, onde ensina o passo a passo para fazer amigurumi – técnica japonesa para criar bonecos feitos de crochê. Ela é psicóloga e seus pais são formados em arte, tendo por isso contato com várias artes manuais desde a infância – como macramê, encadernação, bijuteria, entre outros. Apesar disso, seu interesse pelo crochê surgiu apenas em 2009, quando descobriu os amigurumis e nunca mais parou. Bia conta que tenta transmitir através de seu trabalho um estilo de vida mais calmo, mais presente. “Já foi comprovado que os trabalhos manuais mais demorados – slow craft, como o bordado, o crochê, o tricô – trazem a pessoa para o momento presente e têm efeitos no corpo muito parecidos aos da meditação”, conta Bia. “Também gosto de mostrar às pessoas que elas conseguem fazer artesanatos, mesmo os mais difíceis. Isso vai exigir persistência, abandono do perfeccionismo, confiança em si mesmas, desenvolvimento do controle motor fino e muita, muita paciência. Uma vez que elas conseguem isso e aprendem a técnica, acredito que aprenderam muito mais do que apenas uma técnica manual”, acredita. Bianca chama o “craftvism” de ativismo feito à mão, definindo-o como uma forma de expressar pensamentos e ideias, ou de transmitir valores por meio da atividade manual. “Esse ativismo pode ser expresso de muitas maneiras diferentes. Se uma pessoa quer colocar em prática, é necessário conhecer quais são seus ideais, quais causas
suporta, quais mudanças quer ver no mundo. Pode ir desde a causa mais simples e menos polêmica, até a mais complexa e controversa”, explica Bia, completando: “O fato de incentivar e manter vivos trabalhos manuais tradicionais, complexos e demorados, já é uma forma de nadar contra a corrente que pede que a gente acelere cada vez mais. Acredito que com o meu trabalho consigo comunicar diversos valores nos quais acredito, mas que ainda não cheguei onde quero chegar nessa área do ativismo feito à mão. Sinto que ainda tenho um caminho longo pela frente e que aos poucos, à medida em que fico mais à vontade inclusive para me expor, eu posso ir adicionando mais camadas de significados em cada trabalho”.
Já foi comprovado que os trabalhos manuais mais demorados têm efeitos no corpo muito parecidos aos da meditação.
fotos Bia Moraes
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CLUBE DO BORDADO Vanessa Israel, Laís Souza, Amanda Zacarkim, Renata Dania, Camila Gomes Lopes e Marina Dini @clubedobordado O Clube do Bordado é formado por seis sócias-bordadeiras – Vanessa Israel, Laís Souza, Amanda Zacarkim, Renata Dania, Camila Gomes Lopes e Marina Dini – que têm em comum a moda como parte da formação acadêmica ou profissional, como conta Amanda: “nos nossos primeiros encontros, descobrimos que o interesse pelas coisas feitas à mão – como bordado, crochê, desenho, aquarela – vinha de muito antes, tinha relação com nossas avós, mães e nossos momentos criativos da infância. Assim, percebemos juntas que o bordado livre é uma mídia que permite usar ilustrações, experimentar com tecidos, cores e texturas... Enfim, não há limites. E isso foi o que nos apaixonou pela técnica e pela ideia de levá-la adiante, repaginada pelos temas e estética de que gostamos”. Iniciado em 2013, o sexteto cria ilustrações e bordados contemporâneos – tratando de temas políticos, inseguranças pessoais e questões de gênero e sexualidade, de acordo com o interesse de cada uma em abordar determinado tema –, promove encontros abertos, cursos e oficinas pelo Brasil e pela Europa. Além dos produtos diretamente relacionados ao bordado, desenvolvem ações de conteúdo que resgatam o feito à mão com uma base de atuação online, usando as redes sociais como principal plataforma para ampliação do conhecimento e troca de saberes, abrindo um caminho de educação e empoderamento para além da técnica do bordado, “Nós buscamos fomentar a cultura do bordado e do feito à mão pelo Brasil e onde estivermos. Queremos que as pessoas se expressem criativamente, produzam, questionem, se conectem, e que fiquem felizes com o que são capazes de
fotos Divulgação
criar com as próprias mãos”, afirma Amanda. O grupo reitera o efeito terapêutico do bordado. “Por mais que estejamos irritadas ou sem paciência com algo, o bordado ajuda a acalmar e relaxar. Fora isso, as sensações que sinto quando estou bordando dependem do que estou vivendo durante a execução daquele bordado”, explica Renata, ao que Amanda completa: “o bordado, assim como todo o trabalho executado com as mãos, tem um potencial terapêutico, meditativo e permite a reflexão ativa sobre o próprio ato de criar algo, do começo ao fim, pelas próprias mãos. Além disso, recebemos muitas histórias de pessoas que conseguiram superar problemas típicos do nosso tempo, como depressão e crises de ansiedade, com a prática do bordado”. Todas essas histórias, aliás, são contadas em outra iniciativa do Clube, chamada Gente que Borda (ig: @gentequeborda).
Recebemos muitas histórias de pessoas que conseguiram superar problemas típicos do nosso tempo com a prática do bordado.
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PAMELITAS Pâmela Moraes @studiopamelitas Pâmela Moraes é diretora de arte há 10 anos e há dois criou sua marca, a Pamelitas, onde vende suas porcelanas pintadas à mão. Ela conta que desde criança tinha interesse por trabalhos manuais e o olhar artístico direcionou inclusive a faculdade escolhida: publicidade e propaganda. “Eu entrei no curso já sabendo que iria para a área de direção de arte. Mas o que seria um sonho a ser realizado, acabou me afastando do que eu mais gostava de fazer, que era botar a mão na massa. Como diretora de arte, fiquei presa numa tela de computador e em briefings. Isso foi me murchando”, conta. Quando foi despedida de uma agência, decidiu que não voltaria para esse ciclo e procurou lembrar do que a fazia feliz quando criança – lembrou dos vasinhos de argila que fazia e, buscando cursos de cerâmica, caiu em um curso de pintura em porcelana e nunca mais parou. “A primeira aula já foi uma explosão mental e de sentimentos. Era a coisa mais legal do mundo e eu não via a hora de chegar a próxima aula”. Suas influências vêm de observar a cidade, as pessoas e de outras formas de arte. “Vejo grafite, bordado, pinturas, tatuagens e paralelamente defino a paleta que usar baseado no que quero transmitir com a peça. Se não gosto do rumo que está indo, recomeço sem dó. Repenso e crio novamente”. Para Pâmela, além das artes visuais de diversas plataformas, as histórias de mulheres empreendedoras também são inspiração. “Sempre busco saber as histórias de outras artistas que admiro. Fico feliz em saber que estamos no mesmo barco e que muitas vezes as coisas não saem como planejado, mas a persistência deixa todo mundo mais forte,
até na própria arte”, conta. Para ela, os saberes manuais são a cultura e história contada em sua forma física: “É importante manter e incentivar todas as práticas manuais. Isso é valorizar o humano, valorizar o trabalho. E trabalho e emprego são coisas diferentes. Ninguém fala emprego manual, mas sim trabalho. A própria palavra traz uma carga de importância do fazer muito diferente”, acredita Pâmela. “Eu me sinto finalmente plena com o meu oficio. A pintura me trouxe de volta a criança curiosa e que gostava de inventar. Acho que continuo descobrindo tantas coisas que isso também pode ser considerado estar inteira, porque me sinto apta a viver da melhor forma aproveitando cada sentimento que a vida traz. E isso é maravilhoso”.
É importante manter e incentivar todas as práticas manuais. Isso é valorizar o humano, valorizar o trabalho.
fotos Pam Moraes
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La jeune fille aux cheveux blancs
direção e fotografia Carol Lancelloti e Leo Pope
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styling e beleza Alli Willow e Carol Lancelloti modelo Alli Willow todas as peรงas acervo pessoal
aLagarta escuta
Playlist plenitude texto Carol Lancelloti
Em vez de falar de um artista ou de um álbum específicos, preferi fazer uma playlist de músicas que nos trouxeram a energia do tema durante nosso processo criativo. Acredito que não existe unanimidade ao falar de um tema tão sutil quanto plenitude, e essa busca foi uma aventura muito especial. Obviamente, a conclusão é que plenitude não se resume a um único som. Algumas dessas músicas inspiraram diretamente artigos e editoriais, mas a maioria toca ao fundo em meus momentos de calmaria ou criação. É uma seleção um tanto pessoal, mas acredito que nela haverá ao menos uma melodia, ou uma letra, para cada coração em busca de paz. Plenitude é um estado de espírito, uma entrega. E acredito profundamente que pode ser acionada a qualquer momento, assim como encontrada em pequenos gestos e detalhes. Penso que se trata de uma nova forma de enxergar e praticar a felicidade. Plenitude é abrir o coração e deixar-se levar pelo presente. Muitas dessas canções falam sobre sentir-se inteiro e feliz em diversas situações da vida, inclusive nas mais simples. O paraíso pode ser de dentro pra fora e “encontrar-se” pode ser apenas abrir-se para si mesmo, ou para uma nova jornada. Do contato com a natureza e da atenção plena naquilo que nos propomos a fazer surgem novos caminhos, tão claros e transparentes quanto o mar azul do verão. Seja o ato de abrir os olhos para um novo dia com otimismo e paixão, ou aceitarse e amar-se acima das incertezas do medo, ou até mesmo viver um amor que se renova, sentir-se pleno é uma questão de se permitir. O lado bom sempre existe, é só fazermos a escolha de olhar.
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1- Malibu - Miley Cyrus 2- Leve - Mahmundi 3- The Wind - Cat Stevens 4- This Must Be The Place - Iron & Wine 5- Sun It Rises - Fleet Foxes 6- Across The Universe - Fiona Apple 7- Wildflowers - Tom Petty 8- Follow The Sun - Xavier Rudd 9- A Noite - Marcelo Camelo 10- Can’t Help But Smiling - Devendra Banhart 11- Mother Nature’s Son - The Beatles 12- Mistério do Planeta - Novos Baianos 13- Wild Horses - Birdy 14- Paradise - Coldplay 15- Thank You - Alanis Morissette 16- Navegador - Mallu Magalhães 17- La Jeune Fille Aux Cheveux Blancs - Camille 18- Barato Total - Gal Costa 19- Three Little Birds - Bob Marley & The Wailers 20- Dia Clarear - Banda do Mar 21- Jessica - Regina Spektor 22- New Soul - Yael Naim 23- Simple As This - Jake Bugg 24- Sunrise - Norah Jones 25- Dogs - Damien Rice 26- Gatekeeper - Feist 27- Dogsong aka Sleep Dog Lullaby - The Be Good Tanyas 28- Reigning Days Of Grace - Paper Bird 29- In Quiet Rooms - Ollie MN 30- Sweet Baby James - James Taylor 31- Blowin’ In The Wind - Bob Dylan 32- Tocando Em Frente - Anavitória 33- Witchi-Tai-To - Harpers Bizarre 34- Concerning the UFO Sighting Near Highland, Illinois - Sufjan Stevens 35- Ripple – The Grateful Dead Ouça no Spotify: @alagarta
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Plenitudinis
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fotografia Steph Lotus
Plenitude é mergulho profundo no rio corpóreo... ... é o encontro com sua própria natureza selvagem... ...tempestade de sutilezas... é estar presente... espaço tempo entre o passado e o futuro... ....é o que está entre o que sou e o que vou me tornar... é quando sonho que sou outrem... ... é um lugar: corpo.
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styling Steph Lotus modelo Carol Mendes
Na cozinha
com Fernanda Ventura
foto Carol Lancelloti
Pausa para um café
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Não lembro ao certo quando aquele cheirinho que vinha da cozinha logo cedo passou de um hábito rotineiro para um amor puro e verdadeiro, daqueles que aquecem a alma (literalmente) e nos fazem plenos por alguns instantes. São muitos os momentos, muitas as situações e ocasiões onde ele se encaixa perfeitamente. Forte, puro, com especiarias, com leite, às vezes com chocolate – porque eu gosto mesmo é do sabor intenso de um bom café puro – mas sempre, sempre quente! Costumo dizer que café pra mim é ritual, é momento de paz. Um misto de aroma, sabor e sensações que me transportam para um estado de plenitude e faz daquele simples momento a parte mais importante do dia. Sempre de manhã, às vezes durante a tarde, ou para uma pausa nos dias de pressa no centro da cidade. Para cada momento, um café; para cada café, alguns minutos de paz, onde a mente só consegue processar a combinação perfeita entre aroma e paladar, porque café não combina com problemas, com correria, muito menos com pensamentos ruins. É com ele que começo o dia, é com ele que surgem as ideias, os sonhos, onde me permito pensar e estar em uma realidade paralela, que dura um minuto ou até uma hora. Na verdade o tempo é o de menos, o importante mesmo é aproveitar cada segundo desse momento de plenitude que a “hora do cafezinho” pode proporcionar. Já experimentou fechar os olhos e sentir, por alguns segundos, sem pensar em nada? Experimente! Não vai levar mais que 5 segundos para esse momento aquecer sua alma e lhe fazer sentir completo. Se a receita da felicidade existe, afirmo sem pensar duas vezes que ela se encontra atrás de uma portinha escondida em algum canto da cidade, onde servem um bom café coado na hora, sem frescuras e com um pedaço generoso de bolo pra acompanhar. E é em busca dessa felicidade que surge
um projeto delicioso “pausa para um café” onde busco esses cantinhos discretos e aconchegantes pela cidade carioca, para sentar, relaxar, e, claro, saborear e desfrutar de todas essas sensações. A vontade mesmo era de descobrir esses cantinhos mundo afora, quem sabe, né?! Um café de cada vez, quer dizer, um passo de cada vez! Agora peço licença para saborear a minha receita da felicidade, companheira de quase todas as noites para fechar o dia em paz. Quem me acompanha?
2/3 de xícara de café forte 1/3 de xícara de leite quente 1 pitada de canela 1 boa dose de amor
Me convidem para um café, mas sem pressa, por favor!
Amargos, suaves Intensos, sutis Saborosos! E quentes. Um cafÊ e um amor‌ Quente por favor! Caio Fernando Abreu
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Nós, em laços direção Helena Cooper e Dasha Lavrennikov fotografia Helena Cooper
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modelos Dasha Lavrennikov e Vanessa Azar todas as peรงas acervo Agradecimentos especiais Carol Pedalino, Aline Bernardi, Silvia Chalub e Suzana Verri
La La Land e a fantasia de plenitude texto Fabiane Secches ilustração Thiago Thomé
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Woody Allen resumiu em uma frase o paradoxo da existência humana: “Como eu seria feliz se fosse feliz!”. Estamos separados da plenitude por um “se”. Em A Felicidade, Desesperadamente (publicado no Brasil pela editora Martins Fontes), o filósofo francês André Comte-Sponville examina a questão mais detidamente: Mas, se não somos felizes, nem sempre é porque tudo vai mal. Também acontece, e com maior frequência, não sermos felizes quando tudo vai mais ou menos bem, pelo menos para nós. Penso em todos os momentos em que nos dizemos “tenho tudo para ser feliz”. Só que (...) não basta ter tudo para ser feliz… para sê-lo de fato. O que nos falta para ser feliz, quando temos tudo para ser e não somos? Sponville responde à própria pergunta com convicção: “Falta-nos sabedoria”. Mais tarde, lembra-nos de Schopenhauer e de sua proposição, que considera a ideia mais triste da história da filosofia, de que nossa vida oscilaria como um pêndulo entre a falta (pois só se poderia verdadeiramente desejar o que não se tem) e o tédio (porque, uma vez satisfeito, o desejo se esvairia, não poderia ser retido).
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Haja sabedoria para driblar uma encruzilhada na qual já nos vimos tantas vezes que soa inquietantemente familiar, para usar uma expressão de Freud que se encaixaria perfeitamente aqui. Faço essa introdução para pensar o filme La La Land: Cantando Estações, comédia romântica musical que chegou aos cinemas em 2016. Escrito e dirigido por Damien Chazelle, de apenas 32 anos, o longa conta a história de Sebastian (Ryan Gosling), um músico amador, e Mia (Emma Stone), uma aspirante à atriz. O casal se conhece em Los Angeles enquanto ambos fantasiam a ideia do que seria um futuro feliz. Ele faz bicos em restaurantes e festas, mas gostaria de abrir um espaço dedicado ao jazz; ela sonha com uma carreira bem sucedida no cinema enquanto trabalha no café de um estúdio de Hollywood. Mas não é apenas por um futuro repleto de promessas que o casal está seduzido. Talvez a verdadeira agenda de ambos seja o passado: Sebastian faz duras críticas ao jazz contemporâneo enquanto defende o retorno aos clássicos. Mia pensa no cinema de ouro e tem as décadas de 1940 e 1950 como referência. Os dois cantam e dançam, levemente atrapalhados, ótimos em seus papéis. A escolha de uma narrativa musical para contar a história desse casal me parece muito acertada: não apenas é o formato que reúne ambos os sonhos (o cinema e a música), mas também um modelo que nos remete a um tempo anterior ao nosso, ou talvez a um tempo paralelo: o tempo da fantasia. Aqui, a fantasia de completude. “A voice that says I’ll be here and you’ll be alright” (“Uma voz que diz: eu estarei aqui e você ficará bem”), diz a letra de “City of Stars”, uma das canções mais importantes do filme. O elo com Casablanca (1942) não está apenas na metalinguagem (a presença das menções do filme dentro do filme), mas também no flerte dos personagens com o mundo das hipóteses: “Nós sempre teremos Paris”, diz Rick (Humphrey Bogart) a Ilsa (Ingrid Bergman) quando o casal se separa. Os dias apaixonados na França permanecem perfeitos e imaculados como nos sonhos. No lugar de uma relação real, ficam com o “como teria sido se...”, que serve muito bem a Rick, afinal o marido de Ilsa é nada menos do que um herói de guerra. O que poderia um notívago, dono de um bar em Casablanca, contra esse fantasma? O personagem abre mão da mulher amada, mas não da imagem heroica: ao salvar o marido de Ilsa, é alçado ao mesmo estatuto que seu adversário, se não além. O herói que salva o herói seria cem vezes mais valoroso, como o ladrão que rouba ladrão ganharia cem anos de perdão? Se somarmos a isso a ideia de que, nesse gesto, Rick também renuncia a um grande amor, talvez ganhe cem pontos a mais. Poderíamos ainda traçar paralelos com Café Society, último filme de Woody Allen, também de 2016, em que acompanhamos os desencontros de um jovem casal, Bobby (Jesse Eisenberg) e Vonnie (Kristen Stewart), que também não tem “final feliz”. Terminam melancolicamente separados, pensando um no outro, uma variação do que ocorre com Sebastian e Mia. Em outro de seus filmes, Vicky Cristina Barcelona (2008), um dos personagens de Woody Allen diz: “só o amor não realizado pode ser romântico”. Certa vez, li que o tempo de conjugação verbal da fantasia é o futuro do pretérito. Algo que nunca faz parte do campo do presente, apenas de outra vida, a que não podemos ter. Desde o início de La La Land, o encontro entre Sebastian e Mia se deu nesse terreno. Quando o sonho de ambos enfim se realiza, o que antes era real (a relação dos dois) acaba por se
desfazer, passando a ocupar o lugar agora vago no mundo platônico das ideias. Fantasia e realidade são intercambiáveis. Retomando Schopenhauer: o desejo está onde existe a falta. Logo, o sonho se desloca para o não realizado, ou para o que foi perdido. “The Fools Who Dream”, a canção de Mia no último teste, é um manifesto a favor dos tolos, dos loucos que ousam sonhar: “Here’s to the ones who dream / Foolish as they may seem / Here’s to the hearts that ache /Here’s to the mess we make” (“Essa é para aqueles que sonham / Por mais loucos que pareçam / Essa é para os corações que doem / Essa é para a bagunça que fazemos”). No entanto, graças à ambivalência sustentada no final, podemos ler o filme em outra chave. Cinco anos depois da separação do casal, Mia retorna a Los Angeles e entra em um bar, na companhia do atual marido. Por acaso, é o bar de Sebastian, e ela se dá conta ao ver o néon na parede. Os dois se reencontram, como em Casablanca, e temos uma espécie de epílogo, uma breve amostra do que poderia ter sido. Na história que não aconteceu, tudo ocorre em sincronia, desde o primeiro encontro do casal: um desenlace perfeito e sem pontas, sem decepções, como só poderia acontecer no mundo da fantasia. Uma idealização — o ideal é ilimitado; o real, em contraste, bastante precário. O futuro do pretérito é um tempo que se conjuga na condicional, no subjuntivo. Portanto, assim como os protagonistas, jamais saberemos como a história teria se desenrolado se tivessem agido de outro modo. Mas nem tudo é perda. Mia conquistou a carreira que desejava, parece feliz com o marido, tem uma filha. Sebastian agora tem o bar tão sonhado, um lugar nostálgico como ele. Mas é disso que se trata a vida adulta: aceitar que é impossível ter tudo, mesmo quando conseguimos tudo o que achávamos que queríamos ou precisávamos ter. Então, inventamos novos desejos, inscrevemos novas faltas.
A plenitude é mais um ideal platônico do que uma estação de chegada. Sponville fala da sabedoria da desesperança. No lugar de esperar, agir, implicar-se. Viver no presente como saída para escapar do pêndulo de Schopenhauer. No entanto, talvez uma parte de nós nunca seja capaz de se conformar. Somos capazes de compreender racionalmente que a plenitude é mais um ideal platônico do que uma estação de chegada. Porém, aquilo que nos falta continua doendo como um órgão amputado, por mais experientes ou sábios que tenhamos nos tornado.
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Um bolo, uma música e pronto Não sei você, mas sou do tipo que não atende o telefone para não interromper uma música no meio, que garimpa sons vindos de algum canto do mundo madrugada adentro, que entra em estado quase alucinógeno de quem não precisa de asas para decolar quando está ouvindo algo realmente bom. Um amigo músico me disse que muitas vezes, quando estava tocando, abria os olhos e se via lá embaixo no palco. Eu acredito nisso e na música como um caminho para os simples mortais conversarem com seus deuses. Engraçado como uma coisa sem imagem pode trazer tantas sensações quando você liga o som e fecha os olhos. Já fiz muito isso. Ainda faço. Muito. Acho que é um encontro com o meu interior e uma conexão inexplicável com outros mundos. Mais ou menos como uma boa lembrança repentina de um fato distante e esquecido, um objeto afetivo que nos faz viajar no tempo, um abraço apertado depois de uma longa viagem ou um cheiro que nos remete à infância. Quando era criança, brincava à solta pelas ruas e quintais. Sem limitações de espaço ou de tempo. O que me levava de volta para casa geralmente era o chamado da minha mãe no portão. Mas às vezes, o que me chamava era o cheiro do bolo quente saindo do forno. A fumacinha invisível que dançava no ar e ia me buscar onde quer que eu estivesse. Não era daqueles bolos recheados, nem com coberturas e decorações elaboradas. Era um bolo simples, que no caderno de receitas vinha com o nome de Bolo Majestoso, com uma cor dourada por cima, a massa macia que crescia querendo sempre ultrapassar os limites da assadeira e o sabor que me fazia acreditar que o céu da boca tinha nuvens brancas e anjos tocando harpas. Talvez venha daí o meu respeito pelas pessoas que fazem as coisas com o cuidado artesanal. Talvez venha da minha lembrança de um bolo o segredo da minha relação com a música feita com a alma.
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José Carlos Suzuki
Pequeno tratado sobre o corpo Já pensou qual a função do seu braço? Ao que me consta, serve para apanhar coisas distantes, dar sinais para ônibus, segurar o guidom da bicicleta. E sobre as pernas, pensou? Vou te ajudar: servem para caminhar de salto por aí, para correr na chuva, para executar passos de dança... Não importa se o membro é gordo, magro, tatuado ou não, cheiroso ou fedido. Interessa se eles respondem aos seus pedidos, comprando uma cerveja ou saltando na piscina. Fim da história. Então, por que nos fixamos tanto em dar qualidades aos corpos dos outros? Por que nos qualificamos? Como mulher com deficiência, desde sempre, vivi com olhares sobre minhas pernas e braços, e tronco, e cabeça... Tudo... Acabei acreditando não ser completa por ser diferente. Ainda que meu corpo desejasse e doesse exatamente como o de qualquer outra pessoa, era como se eu destoasse por não estar dentro do padrão. Por ser a “menina coitadinha”. Coitadinho é o pintinho que morreu queimado no azeite e, adivinhem, esse padrão não pode ser correspondido. Somos diferentes uns dos outros exatamente como os girassóis; uns são pequenos, outros grandes. Uns giram para a esquerda, outros não. A verdade está na beleza de todos eles no campo. É certo ser assim. Chegar a esse estado de consciência, plena e feliz porque meu corpo é perfeito exatamente como é, não foi fácil. Acreditamos em muita coisa que vem de fora e acabamos por calar a vozinha que temos dentro do nosso coração. Então, hoje, te proponho um exercício. Tente, quando estiver só, baixar o volume das vozes externas que giram dentro da sua cabeça e ouça a música do seu corpo. Olhe para suas mãos, dedos longos ou não, e veja como é bonita e perfeita porque te permite fazer cafuné. Depois, olhe para baixo, veja seus pés, não importa se as unhas estão feitas. Tenha em mente que eles te levam aonde você quer ir. Eu sou linda. Ela é linda. Somos todos lindos. Porque estamos plenos e cheios de nós mesmos e cada um de nós é peça única, edição limitada nesse piscar de existência. Não deixe que te digam o contrário. Essa colagem dos cacos que somos é um processo longo e ininterrupto e estou só no começo. Choro de vez em quando porque algumas pessoas são cruéis. Para essas, o sorriso é grátis. Faz parte do caminho aprender a lidar com isso. Depois me levanto, seco o rosto e me reconheço. Agradeço por habitar meu corpo perfeitamente imperfeito. Esse espaço de carne é a morada da minha alma. Maravilhoso, né?!
Mariana Silva
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Sobre a vida quando já não se há mais vida Demorou para entender o que havia acontecido. Ele se lembrava apenas que estava na estrada indo para a casa de uns amigos e, de repente, havia escutado um barulho ensurdecedor. Um som tão alto que ainda parecia reverberar pelos seus ouvidos quase a ponto de doer. Foi então que um pensamento brotou dentro de si. Um pensamento minúsculo, mas aterrorizante. Um pensamento que cresceu, tomou forma e em segundos se transformou em uma certeza absoluta: ele havia sofrido um acidente. E a julgar pelo que sentia (ou melhor, por aquilo que não sentia), algo de muito ruim havia acontecido. Ele tentou gritar e não conseguiu. Mexer-se era impossível. Ele tinha consciência do espaço ao seu redor, mas não sabia dizer onde estava. Como estava. Não sentia seu corpo ou uma sensação qualquer que fosse e que pudesse lhe tirar da cabeça aquela única palavra que piscava como um semáforo quebrado dentro da sua cabeça: MORTE. Mas não podia ser. Não diziam existir justiça divina? Uma balança que, por mais que demore para acontecer, no final sempre faz o que é certo, sempre dá a cada pessoa o que ela merece? E ele definitivamente não merecia aquilo. Uma morte tão estúpida, tão repentina, tão... tão prematura! Ele ainda tinha muito a fazer, muito a conquistar. Era um absurdo pensar naquilo, quase como se fosse uma piada de mau gosto. Ou um sonho ruim, desses que acordamos chorando, porque é tão real que demora uns segundos para a nossa cabeça processar que tudo está bem. Ele sentia como se uma gota de suor fosse escorrer pelo seu rosto a qualquer momento. Mas não havia mais gota de suor. Não havia mais nada. Só conseguia pensar em tudo que ainda queria fazer. Aquela viagem para Bali que vinha sonhando nos últimos meses, a casa na praia que finalmente conseguira comprar. O emprego que havia acabado de largar e a infinidade de opções profissionais que se abriam à sua frente. A ex-mulher que ainda que fosse ex, seria sempre a mãe dos seus filhos e sua melhor amiga. Os filhos que um dia queria ver formados. A vida que mal começara. Nem 50 ele tinha ainda! Tudo reduzido a pó. Em um único barulho. Em um único acidente. Já imaginava a irmã recebendo a notícia. Os filhos chorando em cima do caixão e aquele gosto amargo na boca que a gente sempre sente quando se sente impotente. Se sente traído pela vida, pelo destino, por quem quer que seja. Começou a pensar em como raios a vida podia acabar assim, como um sopro de tão frágil. Ele havia ensinado aos filhos que eles deveriam sempre lutar pelo que desejavam, mas nunca havia pensado na possibilidade que a luta poderia ser 132
interrompida a qualquer minuto pela morte. Pensando bem, isso era algo de que ele realmente podia se orgulhar. O maior legado que havia deixado para seus garotos: não desistir. Por mais doída que uma situação pudesse ser, por maior que fossem os obstáculos do caminho. Ao longo de sua vida ele havia enfrentado um pouco de tudo. Havia conseguido sair do nada e conquistado uma situação confortável. O que não queria dizer que era rico – e nem que queria ser. Havia chegado em uma certa idade em que se sentia bem, no corpo e na cabeça. Gostava de quem era, gostava da pessoa que se tornara e gostava das poucas coisas que havia entregado ao mundo, como os filhos e os trabalhos que havia feito como jornalista. Tinha viajado para todo canto. Tinha conhecido culturas diferentes, tinha vivido para além dos muros da sua casa. Tinha muitas coisas que ainda queria fazer, é verdade, mas não tinha arrependimentos das que já fizera até ali. Tinha sorrido, chorado, brigado, gritado, gargalhado alto, sentido uma paz absurda. Tinha olhado fundo nos olhos de alguém e se sentido completo. Tinha amado intensamente. A vida, as pessoas. Sentiu nesse momento que o gosto amargo da boca tinha ido embora. A gota de suor fantasma não incomodava mais. Era como se a palavra morte que teimava em ficar na sua cabeça tivesse agora um companheiro ao seu lado: gratidão, em letras garrafais. Gratidão pelo que tinha vivido até ali, pelas histórias que tinha para contar, pela família que havia construído. Se pudesse colocar sua vida em um rolo de filme e olhar com toda atenção para aquela história passando na sua frente, iria sentir um certo orgulho pelo que via. Afinal, ele tinha chegado lá, ainda que esse “lá” fosse um conceito completamente diferente para cada pessoa. Mas ele tinha conseguido! Ele realmente tinha conseguido. ... Escuridão. O semáforo quebrado da sua cabeça finalmente tinha se apagado.
Paulinha Alves
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Flora Chiarelli Coienca
Na Islândia, encontrou-se a plenitude Amanhece. O sol fraco alegra o dia e esquenta a neve, que não parece se importar. Eles não se agridem, como sugere o óbvio. E eles muito mais que coexistem. Exibem-se. Exibem-se num dueto, assim como se exibem os onipresentes pássaros e o incessante vento forte. As montanhas geladas e o mar. Os campos negros de lava e as pequenas Dryas de oito pétalas. É assim que é: para onde a vista alcança, formam-se os pares. Nesse canto remoto, óbvio é somente o improvável. Mas na Islândia, apesar de o selvagem sequestrar todos os sentidos, o dueto mais inesperado é de outra natureza e impossível não ser notado: os islandeses e sua exuberante felicidade. Todas as frequentes publicações sobre índices de felicidade mundial colocam os islandeses nas primeiras posições da lista, e isso com certeza é verdadeiro. Apesar de seu meio ambiente hostil e invernos longos, esse povo catalisa uma energia deliciosa, capaz de te fazer sentir em casa, mesmo tão longe. E como explicar tal fato? Será por serem poucos, algo em torno de 320 mil habitantes e não muito além de três para cada quilômetro quadrado? Será pela sua forte identidade cultural, que os fazem olhar o próximo sempre como a um irmão e não oponente? Será pela resiliência, adquirida ao longo das sofridas gerações, forçadas a se adaptar a um espaço onde o homem não parece pertencer? Provavelmente todo esse conjunto. Sair seguro pela porta da frente, sentir o ar puro, sorrir ao que passa. Viver a vida sem a angústia de precisar e precisar de muito – virtude de quem aprendeu a beleza das coisas simples. Olhar e ver. Escutar e ouvir. Sentir das horas os segundos. Na Islândia, alcançou-se a plenitude. Anoitece. A aurora boreal vem chegando a acalantar o sono de quem respeitou a natureza, o próximo e a si mesmo. Na Islândia, alcançou-se a plenitude. Nesse canto remoto, óbvio é somente o improvável.
Leandro Martignago
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Flรกvia Davies
Júlia Brümmer