Jazz e Darcy Ribeiro

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Nome: Albino Cheganças Junior Disciplina: Cultura brasileira e latino-americana Professor: Wilton Garcia Curso: Mídia, Informação e Cultura CELACC – ECA – USP

O jazz e o Brasil de Darcy Ribeiro Albino Junior

RESUMO: O presente texto tem como proposta apresentar o jazz como uma manifestação artística, que igual ao Brasil, nasceu oriunda das influências culturais de três matrizes distintas. São apresentadas no artigo as relações e semelhanças entre este gênero musical nascido nos Estados Unidos, e o Brasil, nação cujo pluralismo e diversidade cultural, social e racial ajudaram em sua formação. A base deste trabalho está centrada na obra O Povo Brasileiro, do antropólogo Darcy Ribeiro, que realça as peculiaridades e contribuições das matrizes africanas, européias e indígenas. PALAVRAS-CHAVE: Jazz; Brasil; Darcy Ribeiro; Contemporâneo.

Na obra O Povo Brasileiro, o antropólogo, ensaísta, romancista e político Darcy Ribeiro desmembra a nação brasileira constituída de três grandes matrizes: a africana, européia e indígena, nessa última com especial destaque para os índios tupis. Para tanto, em seu trabalho, tais matrizes são desmembradas, onde é mostrado que dentro delas elementos como a miscigenação já se faziam presentes nelas. Darcy Ribeiro reforça a idéia de que tais matrizes não são originalmente puras, mas sim, compostas por diversas etnias. Com isso, o autor explica que o Brasil é resultado, não apenas, destes três grupos, mas sim de diversas etnias que se entrelaçaram na história desta nação sul-americana. História essa marcada “por enfrentamentos de mundos”, que culminaram em dores, desigualdades, mas também em uma mestiçagem alegre que formaria, como pensava Darcy Ribeiro, uma nova Roma. A aproximação de povos e culturas diferentes também colabora para o surgimento de novas manifestações artísticas, como o jazz, gênero musical nascido no início do século XX na cidade de Nova Orleans, sul dos Estados Unidos. Localidade que abriga o maior


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porto daquele país que foi importante para que a diversidade étnica e cultural norteamericana tivesse vivido o seu apogeu em Nova Orleans. Com isso, é possível traçar um paralelo entre o jazz e o Brasil, cujas influências dos continentes europeus e africanos ajudaram na construção desses dois ícones do novo mundo, a América.

Matriz Africana

Em Terras de Vera Cruz, os negros vindos para trabalhar como escravos eram provenientes, em sua maioria, da costa ocidental africana. Darcy expõe que foram trazidos pelos portugueses três grupos distintos: os das culturas sudanesas (yorubá, dahomey e fanti-ashanti), das culturas islamizadas vindas da região da Nigéria (peuhl, mandinga e haussa), e os das tribos Bantu, que se localizavam na área entre Angola (costa oeste) e Moçambique (costa leste). (idem, 2006) Apesar de vindos de diferentes regiões do continente africano, ambas etnias possuíam a vontade de se comunicarem entre si, fato que impulsionou a difusão da língua portuguesa. Este é um exemplo de assimilação e aprendizado que esses diversos povos tiveram que passar para formar uma coesão, e conseqüentemente incluir suas peculiaridades ao português do Brasil.

A primeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani. (idem, 2006, p. 202)

Esta matriz também teve de se adaptar à vida urbana, tanto em Nova Orleans, como nas cidades brasileiras. Aqui no Brasil, o negro rural foi transladado às favelas, onde não poderia plantar. Lá, segundo Darcy Ribeiro já se encontravam negros de antiga extração nelas instalados, que já haviam construído uma cultura própria, na qual se expressavam com alto grau de criatividade. Tal cultura vista nas favelas, é para o


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antropólogo “feita de retalhos, do que o africano guardara no peito nos longos anos de escravidão, como sentimentos, música, ritmos, sabores e religiosidade”. (idem, 2006) As manifestações produzidas, tanto no norte da América, como no sul do continente, traziam consigo marcas e raízes culturais vindas da África. Características que foram fundidas a elementos e tradições diferentes, muitas das quais vindas de seus opressores europeus. No campo musical, o jazz é um exemplo para destacar tais assimilações.

Quando entrou finalmente em contato com os instrumentos europeus – geralmente aqueles das brass bands – o negro abordou a sua técnica de um modo inteiramente espontâneo e original. Seu repertório básico era formado pelas marchas que ouvia nas ruas e pelo blues instrumental, em que tentava imitar a voz humana com suas cornetas e seus trombones. (MUGGIATI, 1999, p.31)

O exemplo citado denota o poder de adaptação artística dos negros em meio às diversidades. Eles, que trabalhavam em plantações de tabaco e arroz no sul dos Estados Unidos, acolheram instrumentos musicais até então tocados por europeus e norteamericanos brancos. Em sua posse o negro trouxe sua singularidade a instrumentos como o trompete, trombone, piano, e mais tarde ao saxofone, tocados antes somente na música clássica e em bandas marciais. Com isso o chamado som “puro” da música clássica perdeu espaço com esses trabalhadores que trouxeram novos horizontes, conforme explica o historiador inglês Eric Hobsbawm:

Mas geralmente as cores do jazz surgem da técnica peculiar e não convencional pela qual os instrumentos são tocados, e que foi desenvolvida porque os primeiros músicos eram totalmente autodidatas. Por esse motivo eles fugiram às convenções há muito tempo sedimentadas pela música erudita européia no que se refere à maneira “correta” de utilizar instrumentos ou vozes educadas. Esse padrão convencional europeu tinha sido estabelecido com o objetivo de produzir um tom instrumental puro, claro e preciso, e um tom vocal o mais próximo possível de um tipo especial de instrumento. (HOBSBAWM, 1989, p. 50)

Através desse processo, viu-se, no jazz, que não há tons ilegítimos, visto que tal estilo nasceu de experimentações. Além disso, percebeu-se que objetos e ferramentas, no caso, instrumentos musicais, poderiam ser usados de diferentes maneiras consoante as


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diversas finalidades. O mesmo aconteceu no Brasil, no que toca à religião, cujo sincretismo entre catolicismo e religiões afro-brasileiras resultou no surgimento da umbanda. Ao invés de instrumentos musicais, os santos católicos – com suas imagens e esculturas - ganharam novos significados. A matriz africana, com os exemplos citados, mostra-se como um exemplo de aculturação e assimilação neste novo mundo, conhecido como América, que tem o Brasil e o jazz como ícones.

Matriz Européia A matriz européia, a qual eu me refiro neste artigo, exerceu uma maior influência em nosso país pela lusitanidade, termo usado por Darcy Ribeiro, que na obra O Povo Brasileiro destaca o “enfrentamento dos mundos” entre os portugueses e os indígenas. Porém, na mesma obra, o intelectual brasileiro mostra as contribuições dos imigrantes europeus vindos no século XIX e XX. Imigrantes esses que vieram ao Brasil em busca de uma vida melhor, longe de conflitos e guerras. Tal proposta é diferente dos colonizadores europeus do século XVI. No continente sul-americano os portugueses tinham o objetivo de extrair riquezas naturais para Lisboa, e propagar uma visão de mundo baseada no catolicismo. Ao encontrarem um vasto espaço geográfico – rico em plantas, árvores e águas – e etnias indígenas, o português viu que neste novo mundo os objetivos mercantis e ideológicos poderiam ser alcançados nesse campo fértil, valendo-se por uma visão etnocêntrica, até então regente na “evoluída” Europa. O tal pensamento dizia que o europeu estava na frente de uma linha evolucional em relação aos outros povos. Para tanto, tal visão aliada e impulsionada pela religião cristã, foi o alicerce e estímulo recebido pelos cristãos portugueses para propagarem seu estilo de vida aos índios “pagãos”. Como resultado houve a catequização e a propagação da língua portuguesa perante as tribos, em sua maioria do tronco tupi. Portugal se apossou do território não apenas demarcando terras e fincando sua bandeira, mas também o fez culturalmente por conta do etnocentrismo vigente na Europa. O homem branco propagou igualmente seus hábitos nos Estados Unidos, inclusive nas artes, com o jazz, nascido na “mestiça” Nova Orlenas, sendo um exemplo. Em meados


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do século XIX, os Estados Unidos enfrentou a Guerra da Secessão, acontecimento que popularizou as bandas marciais que tinham como objetivo encorajar os soldados nas batalhas. Tais bandas foram de grande importância para que os negros tomassem posse de instrumentos musicais tocados até então pela população branca, conforme explica o jornalista e músico Roberto Muggiati:

Na Guerra da Secessão (1861-65) as bandas marciais desempenharam um papel importante, encorajando os soldados nas batalhas, e sua criação foi grandemente incentivada. Ao mesmo tempo, a tecnologia dos instrumentos, em decorrência da revolução industrial, era aperfeiçoada com a introdução dos pistões nos metais, a simplificação no mecanismo das clarinetas, flautas e flautins. As fábricas iam em busca de um novo e florescente mercado e a grande procura tornava os preços muito acessíveis. No início do século 20, por exemplo, cornetas; trompetes; trombones e bombardinos custavam nos Estados Unidos entre 10 a 15 dólares. Além da disponibilidade dos instrumentos novos, havia os de segunda mão, baratíssimos, de que os “pregos” viviam abarrotados. Uma anedota significativa é a tese – defendida por alguns – de que o jazz nasceu em Nova Orleans porque as bandas marciais da Guerra HispanoAmericana se desfizeram ali em 1899 e seus instrumentos – trocados por uma noite de farra na irrequieta cidade – amanheceram enfeitando as vitrines das lojas de penhores e foram parar nas mãos dos músicos negros. (MUGGIATI, 1999, p. 25)

O jazz nasceu em um ambiente marcado igualmente pela cultura latina, por conta do passado de Nova Orleans que já foi posse francesa e espanhola. Além das influências dessas duas nações, esta cidade do sul dos Estados, marcada pelo Rio Mississipi, acolheu imigrantes italianos, irlandeses, e ingleses. Pessoas que trouxeram para esta nova terra seus respectivos gêneros musicais (BERENDT, 1975) O encontro europeu, já com diferentes nacionalidades, também ocorreu no Brasil, alguns séculos depois da chegada dos portugueses. No início do século XIX, imigrantes italianos, espanhóis, alemães, e uma nova “safra” de portugueses desembarcaram no Brasil com o intuito de fugir das primeiras guerras mundiais e do cenário caótico em que a Europa se encontrava. Logo, o Brasil absorveu a cultura desses imigrantes sem grandes problemas, como informa Darcy Ribeiro: “Quando começou a chegar em maiores contingentes, a população nacional já era tão maciça numericamente e tão definida do ponto de vista étnico, que pôde iniciar a absorção cultural e racial do imigrante sem grandes alterações no conjunto”. (Ribeiro, 2006, p. 222)


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Tanto em Nova Orleans, como no Brasil, a população européia branca pôde expressar seu modo de viver, o que inclui suas manifestações artísticas, sem sofrerem represálias das autoridades. O branco não sofreu como a população negra e escrava que no Brasil como nos Estados Unidos teve que criar mecanismos para se comunicar e fortalecer suas culturas.

Matriz Indígena

A última matriz apresentada e discutida neste artigo é a indígena. Parcela da população brasileira que recebeu, provavelmente, uma maior atenção de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, em relação às outras duas anteriores. Na obra o antropólogo disserta sobre as diversas etnias que existiam antes da chegada do português, e a forma com que essa população foi sendo mesclada e reduzida pelas mãos dos europeus. Já a influência indígena - ao contrário do que é apresentada no Brasil por Ribeiro no jazz é praticamente nula, conforme diz Eric Hobsbawm:

O jazz surgiu no ponto de intersecção de três tradições culturais européias: a espanhola, a francesa e a anglo-saxã. Cada uma delas produziu um tipo de fusão musical afro-americana característica: a latinoamericana, a caribenha e a francesa (como a da Martinica), e várias formas de música afro-anglo-saxã, das quais, para as nossas finalidades, as mais importantes são as canções gospel e os country blues. (No continente norte-americano podemos provavelmente deixar de lado a influência dos peles vermelhas). (HOBSBAWM, 1989, p. 61)

Composta por etnias como os apaches, iroqueses, moicanos, creeks e hurons, a população índingena norte-americana igual à brasileira diminuiu ao longo dos tempos, fruto do domínio branco no norte do continente americano. Mas além dos grandes grupos indígenas citados havia uma etnia menor chamada de choctaw, que eram os índios que viviam no sudeste dos Estados Unidos, o que inclui o estado da Louisiana e a cidade de Nova Orleans. Porém, com a chegada dos franceses e espanhóis, o povo choctaw migrou para oeste, mais precisamente para o estado de Oklahoma. Atualmente vivem cerca de 160 mil choctaws no território norte-americano. Como o exílio aconteceu antes do ínicio do século XX, a presença indígena na cidade de Nova Orleans na época do surgimento do jazz é baixa. Ou seja, o jazz não


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recebeu em seu nascimento influência indígena, como também o blues e o gospel, gêneros originários através da influência negra/africana e branca/européia. Por sua vez, a cultura indígena brasileira participou e participa na construção da identidade brasileira, seja através dos nomes de cidades, pelas palavras “abrigadas” pela língua portuguesa, e até pelos elementos carnavalescos. Conclui-se que o Brasil, em relação ao jazz, absorveu uma maior gama de elementos indígenas oriundos de diversas tribos, como os tupis e os guaranis. Com isso, a afirmação de que a influência dos “peles vermelhas” no Brasil é superior do que aquele vista em relação à Nova Orleans, e conseqüentemente ao jazz, seja inegável. A pesquisa bibliográfica em publicações sobre jazz não mencionam nenhuma ligação deste gênero musical com as populações ameríndias - a única menção feita a essas populações é feita por Hobsbawm, no início deste capítulo. Evidencia-se, portanto, que o jazz nasceu a partir de elementos de dois grandes grupos (brancos e negros), e de que a cultura brasileira teve como contribuição as características, os elementos e os aspectos de três grupos (brancos, indígenas e negros).

O jazz e o Brasil, mostrado e explicado por Darcy Ribeiro, possuem a marca de terem nascido pelo estranhamento, aproximação, imposição, alteridade e criatividade. Apesar de um ser uma nação, e o outro, um gênero musical, ambos denotam que esta idade contemporânea é marcada pela troca de influências culturais entre diversos povos. Povos que não vêem o espaço geográfico, as diferenças políticas, sociais e religiosas como barreiras, e que, principalmente buscam entender o seu próprio hibridismo para compreender sua identidade. Identidade que no moderno é marcada por diversos povos que vivem pacificamente – ou não – em nações que desde o mundo moderno representam hibridismos culturais, conforme explica Stuart Hall:

A etnia é o termo que utlizamos para nos referirmos às características culturais-língua, religião, costume, tradições, sentimento de "lugar" - que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia


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dessa forma "fundacional". Mas essa crença acaba no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais. (HALL, 2006, p. 62)

Neste planeta, as trocas entre brancos, negros e indígenas foi possível, apesar de dor e dificuldades. Nele o jazz pôde se desenvolver e assimilar manifestações vindas de todos os continentes, e também, optar por não trazer a música indígena para dentro de si. E o Brasil, com sofrimento, dor, e criatividade mostrou superação, sempre tendo como alicerce suas três matrizes.

Referências bibliográficas

BERENDT, Joachin E. O jazz – Do rag ao rock. Trad. Júlio Medaglia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. Trad. Angela Noronha. São Paulo: Paz e Terra, 1989. MUGGIATI, Robert. O que é jazz?. São Paulo: Brasiliense, 1999 ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. http://www.choctawnation.com/ Consultado em: 10/04/2010


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