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(Coleção Gênero e Diversidade)


Ministério da Educação Universidade Federal de Mato Grosso Reitora

Maria Lúcia Cavalli Neder Vice-Reitor

João Carlos de Souza Maia

Coordenadora da Editora Universitária

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari

Conselho Editorial Presidente

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari (IL) Membros

Ademar de Lima Carvalho (UFMT Rondonópolis) Antônio Dinis Ferreira (ESAC – IPC – Portugal) Ana Carrilho Romero (FEF) Andréa Ferraz Fernandez (IL) Eduardo Beraldo de Morais (FAET) Giuvano Ebling Brondani (ICET) Janaina Januário da Silva (FAMEVZ) Lucyomar França Neto (Discente - FD) Maria Cristina Theobaldo (ICHS) María Eugenia Borsani (CEAPEDI – Argentina) Maria Santíssima de Lima (Técnica – SECOMM) Maria Thereza de Oliveira Azevedo (IL) Marina Atanaka dos Santos (ISC) Marliton Rocha Barreto (UFMT - Sinop) Maurício Godoy (IF) Michèle Sato (IE) Roberto Apolonio (FAET) Solange Maria Bonaldo (UFMT – Sinop) Yuji Gushiken (IL)


Raquel Gonçalves Salgado Carmem Lúcia Sussel Mariano Leonardo Lemos de Souza (Organizadores)

Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação (Coleção Gênero e Diversidade)

Cuiabá, MT 2016


© Raquel Gonçalves Salgado, Carmem Lúcia Sussel Mariano, Leonardo Lemos de Souza (Organizadores), 2016. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98. A EdUFMT segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor no Brasil desde 2009. A aceitação das alterações textuais e de normalização bibliográfica sugeridas pelo revisor é uma decisão do autor/ organizador. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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Gênero, sexualidade, diversidade e educação / Raquel Gonçalves Salgado, Carmem Lúcia Sussel Mariano, Leonardo Lemos de Souza (organizadores). – Cuiabá : EdUFMT : 2016. 225 p. : il. (algumas color.). -- (Coleção Gênero e diversidade). ISBN - 978-85-327-0574-7 Inclui bibliografia 1. Educação – Gênero e sexualidade. 2. Educação e diversidade sexual. 3. Identidade de gênero – Educação. I. Salgado, Raquel Gonçalves, org. II. Mariano, Carmem Lúcia Sussel, org. III. Souza, Leonardo Lemos de, org. CDU – 376.6(817.2)

Colaboradores Adriana Sales Alberto Olavo Advincula Reis Alcindo José Rosa Antutérpio Dias Pereira Bianca Salazar Guizzo Carmem Lucia Sussel Mariano Douglas Verrangia Corrêa da Silva Elni Elisa Willms Evandro Salvador Alves de Oliveira Graciela Haydée Barbero Julio Cézar Coelho Laudinéa de Souza Rodrigues Leonardo Lemos de Souza Maria Angélica Zubaran Paula Faustino Sampaio Raquel Gonçalves Salgado Rodrigo Saballa de Carvalho Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues Wiliam Siqueira Peres

Coordenação da EdUFMT:

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari Supervisão Técnica:

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Filiada à

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Sumário Prefácio

“Espelho, espelho meu...”: mergulhando nas minúcias da formação docente em gênero e sexualidades................................... 7 Cláudia Maria Ribeiro

Apresentação....................................................................................15 Gêneros, Sexualidades e Diversidades........................................21 Psicologia, direitos humanos e união afetiva homossexual: o “casamento para todos” não é consenso entre os especialistas.... 23 Graciela Haydée Barbero

Mulheres travestis: queerizando ressignificações culturais e políticas..............................................................................41 Adriana Sales Wiliam Siqueira Peres

Gêneros, sexualidades e políticas cognitivas na escola................... 55 Leonardo Lemos de Souza

Corpo e diversidade: “absurdas liberdades”?................................... 67 Elni Elisa Willms Julio Cézar Coelho

Corpo, sexualidades e temporalidades...................................... 83 Gênero e sexualidade no cotidiano escolar...................................... 85 Carmem Lúcia Sussel Mariano

Infância, sexualidade e contemporaneidade em debate: entre o sagrado e o profano............................................................. 101 Raquel Gonçalves Salgado Carmem Lúcia Sussel Mariano Evandro Salvador Alves de Oliveira


Gênero e sexualidade nos discursos das políticas curriculares de educação infantil: desafios para pensar a formação docente... 117 Bianca Salazar Guizzo Rodrigo Saballa de Carvalho

Maternidades sucessivas na adolescência: do destino ao desejo..... 131 Alcindo José Rosa Alberto Olavo Advincula Reis

Gênero e relações étnico-raciais......................................................147 A implementação da lei 10.639/03 no ensino de ciências: reflexões a partir de uma experiência de formação continuada... 149 Douglas Verrangia Corrêa da Silva

Movimento feminino nas aldeias: a mobilização de mulheres indígenas, estado de mato grosso, Brasil........................................165 Paula Faustino Sampaio

Brinquedo, brincadeira e trabalho: o que fazem meninas e meninos no cotidiano da Aldeia Igarapé Lourdes?....................... 181 Laudinéa de Souza Rodrigues Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues

Educação étnico-racial, gênero e currículo..................................... 199 Antutérpio Dias Pereira

Narrativas étnico-raciais e de gênero na campanha do monumento à “mãe preta”: pedagogias da imprensa negra .......209 Maria Angélica Zubaran

Sobre os autores .............................................................................. 221


Prefácio

“Espelho, espelho meu...”: Mergulhando nas minúcias da formação docente em gênero e sexualidades Cláudia Maria Ribeiro

Imenso o desafio para a formação docente ao navegar pelos estudos de gênero e sexualidades, na tentativa de problematizar os detalhes e as minúcias de temas que são paradoxais, enigmáticos, ambíguos tais como o espelho – que é símbolo da pureza, da verdade, da sinceridade, mas tem a ambiguidade das verdades e mentiras por gerar enganos e imagens deturpadas. “Espelho” – speculum – é suporte para um simbolismo rico na ordem do conhecimento e que derivou “especulação”: “Originalmente, especular era observar o céu e os movimentos relativos das estrelas com a ajuda de um espelho” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 300). Especular, portanto, significa estudar, observar com atenção, meditar, contemplar: Analisar atenciosamente; estudar tendo em conta os detalhes; investigar: especular os hábitos culturais de uma sociedade. Tentar compreender através da razão; buscar entendimento de maneira teórica1.

Os textos que compõem esta publicação mergulham no desafio de aprofundar especulações. E exigem questionamentos! O que mais reflete o espelho? Concebendo-o como integrante do imaginário das águas, encharco-me de uma infinidade de significados! Uma enxurrada de possibilidades! Por que imaginário das águas? Porque o imaginário é como a água que encharca contextos sociais, políticos, econômicos, culturais, históricos, pedagógicos – deixando indubitavelmente a sua marca. Acrescento a esta afirmação: gênero e sexualidade também penetram nas instituições sociais. Meyer e Klein (2013, p. 4) dizem que:

1 Disponível em: http://www.dicio.com.br/especular/. Acesso em: 04/02/2014.


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Isso implica considerar, dentre outras coisas, que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por pressupostos de gênero, ao mesmo tempo em que estão implicadas com sua produção, manutenção e ressignificação. Enfatiza-se a necessidade de compreender os diferentes modos pelos quais o gênero opera estruturando o social e é esta dimensão do conceito que priorizamos.

Ora, se as relações de gênero e o imaginário infiltram, atravessam, constituem, estruturam o social, também a sexualidade. Foucault incita-nos a pensar em dispositivo: Um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas; enfim, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo, portanto, é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 1988, p. 244).

Assumo aqui os conceitos de gênero e sexualidade e amplio o conceito de imaginário, não como fuga da realidade. “Faz parte dela, quanto mais que a realidade social é também uma construção. O estudo sistemático das produções do imaginário efetivo propicia o acesso a aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do fantástico” (AUGRAS, 2009, p. 10). Os dicionários dizem que a palavra imaginário significa algo que só existe na imaginação; ilusório; fantástico. Autores como Sartre e Lacan atribuíram status inferior à imagem: Na cultura ocidental que, até hoje, assumiu forte compromisso com o racionalismo, o imaginário será, por conseguinte, o lado oposto ao da razão, pura expressão da imaginação, que os franceses – não fossem eles filhos de Descartes – chamam la folle du logis, isto é, “a louca da casa”. E, de fato, os primeiros autores a falarem do imaginário situam-no claramente na vertente da ilusão e da irracionalidade (AUGRAS, 2009, p. 209).

Bachelard, então, ocupa uma posição singular entre os teóricos do imaginário: “ele vai desenvolver paralelamente uma produção que valoriza a

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criação poética” (AUGRAS, 2009, p. 217); “faz do imaginário, em vez de um modo de alienação, o lugar onde se elaboram os meios mais requintados de se abrir ao mundo” (AUGRAS, 2009, p. 221). Gilbert Durand, discípulo de Bachelard, faz da temática do imaginário, desde seu livro As estruturas antropológicas do imaginário, escrito em 1960, “uma confluência unificadora de todas as ciências humanas e sociais” (AUGRAS, 2009, p. 221). “A definição do imaginário como capital antropológico possibilita estabelecer o diálogo entre as diversas ciências do homem (e, acrescento, da mulher). Não mais antagonismo entre razão e imaginação, que são, ambas, ferramentas na construção do mundo” (AUGRAS, 2009, p. 222). Nessa construção do mundo, navegando pela filosofia, teologia, psicologia, sociologia, etnografia, psicanálise, teorias estéticas, literárias, linguísticas, dentre outras disciplinas ou mesmo tentando borrar os limites disciplinares, o imaginário das águas possibilita-nos refletir sobre o mundo em que borbulham as relações de gênero e sexualidades. Tanto a pensar! Tanto a aprender!

Aprendizados com a água especular Especular... navegando pelas contradições! Também pelos espelhos mágicos que permitem ler o passado, o presente e o futuro: o espelho da bruxa da Branca de Neve; o espelho de Alice no País das Maravilhas. A utilização mágica dos espelhos é, por exemplo, entre os Bambaras – povo que vive no oeste da África –, para chamar a chuva e para tantos outros rituais: O espelho, tal como a superfície da água, é utilizado para a adivinhação, para interrogar os espíritos. A sua resposta às questões colocadas inscreve-se por reflexo. No Congo, os adivinhos utilizam esse processo polvilhando o espelho ou a superfície de uma tigela de água com pó caulino: os desenhos do pó branco, emanação dos espíritos, dão-lhes a resposta (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 301).

Em muitas outras culturas há várias utilizações do espelho mágico. Mas, o que interessa aqui é pensar na ambiguidade do espelho: ao mesmo tempo que evoca sinceridade e verdade, fiel à realidade visível, também admite que esta é enganadora – as aparências enganam o próprio espelho. E o espelho mágico pode significar hipocrisia (REVILLA, 2012). Mas não só! Jurandir Freire Costa (1994) escreveu o livro A ética e o espelho da cultura – uma coletânea de textos publicados em jornais cuja tônica é a discussão 9


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do esfacelamento das relações sociais no Brasil. Exemplifico com o brilhante artigo intitulado “Homoerotismo: as palavras e as coisas”, que aborda a invenção das diferenças, especialmente os diferentes desejos. O sugestivo título do livro – A ética eo o espelho da cultura – incita a pensar! No mundo individualista? No cinismo coletivo? Nas produções histórico-culturais nas e das relações de gênero e das expressões das sexualidades. Incita-nos a pensar, também, os textos que compõem a presente obra problematizando gênero e sexualidades nos discursos das políticas curriculares na Educação Infantil; a educação das relações étnico-raciais e suas implicações com as possibilidades de superação de preconceitos no exercício de práticas sociais livres de discriminação; as crianças indígenas que brincam no cotidiano de uma aldeia de Rondônia; as expressões da feminilidade nas maternidades; as relações de gênero e sexualidade no cotidiano da escola; a mobilização de mulheres indígenas em Mato Grosso; as imagens sociais da infância por entre o sagrado e o profano e tantas narrativas na e da escola. Esses textos são geradores de muitas perguntas... o que especulamos cotidianamente? Ou não? Quais as minúcias, detalhes, ambiguidades, paradoxos das e nas relações de gênero e sexualidades que nos inundam e fazem pensar? Mergulho na história de Narciso contada nas Metamorfoses do poeta Ovídio para fomentar outras relações entre imaginário, gênero e sexualidades. Narciso é filho da ninfa Liríope e do rio Cefiso. Liríope consultou Tirésias, o profeta, e perguntou-lhe se Narciso teria uma vida longa. Tirésias disse-lhe que assim aconteceria se ele não olhasse para si mesmo. Narciso era admirado por muitas raparigas e rapazes, mas nunca retribuía seu amor. Uma ninfa chamada Eco apaixonou-se perdidamente por Narciso logo que o viu a caçar nos bosques onde vivia. Eco tinha outro problema: em tempos fora incumbida de distrair Hera, entretendo-a com sua tagarelice constante, enquanto as suas amigas se divertiam em amores com Zeus; quando descobriu, Hera castigou a sua verbosidade, tirando-lhe a capacidade de exprimir o seu pensamento e deixando-lhe apenas a faculdade de repetir as últimas palavras pronunciadas pelas outras pessoas. Assim, incapaz de exprimir os seus sentimentos por Narciso, foi-se definhando com aquele amor não correspondido até não restar dela mais do que uma mera voz. O rapaz pediu a Némesis, a deusa da punição divina, que castigasse Narciso pela sua arrogância. Um dia em que andava a caçar nas encostas do Monte Hélicon, chegou Narciso a um lago de águas límpidas e tranquilas; debruçou-se para aplacar a sua sede e imediatamente se apaixonou pelo belo

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rapaz refletido nas águas. Mas, por mais que tentasse falar com ele ou abraçá-lo, o rapaz não respondia. Narciso não podia abandonar o seu amor, porém, e assim foi definhando, tal como Eco, morrendo de inanição. A flor de olho dourado e pétalas brancas a que chamamos Narciso era tudo o que restava dele quando os seus amigos o descobriram (BELLINGHAM, 2000, p. 102-103). Esta flor lembra, então, a queda de Narciso nas águas onde se mirava com prazer, “daí o facto de se fazer dela, nas interpretações moralizantes, o emblema da vaidade, do egocentrismo e da satisfação de si próprio” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 466). Mas há muitos outros simbolismos para essa flor. A etimologia da palavra – narké – é de onde provém narcose estreitamente ligada: Aos cultos infernais, com as cerimônias de iniciação, segundo o culto de Deméter em Elêusis. Plantam-se narcisos sobre os túmulos. Simbolizam o entorpecimento da morte, mas duma morte que talvez não seja mais do que um sono. Oferecem-se grinaldas de narcisos às Fúrias, as quais, julga-se, entorpecem os fascínoras. A flor nasce na primavera, em zonas húmidas: o que a liga à simbologia das águas e dos ritmos sazonais e, por conseguinte, da fecundidade. Isso significa a sua ambivalência: morte-sono-renascimento.

Os filósofos Lavelle e Bachelard e o poeta Paul Valéry que estudaram o mito de Narciso dizem que “a água serve de espelho, mas um espelho aberto às profundezas do eu: o reflexo do eu que se vê trai uma tendência para a idealização” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 466). Diante da água que reflecte a sua imagem, Narciso sente que a sua beleza continua, que não está acabada, que é preciso completá-la. Os espelhos de vidro, na clara luz do quarto, dão uma imagem muito estável. Tornar-se-ão vivos e naturais quando se puder compará-los a uma água viva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder receber a participação dos espectáculos da fonte e do rio (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 466).

Bachelard diz que o narcisismo nem sempre é neurótico. “Desempenha também um papel positivo na obra estética (principalmente)” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 466). Esse autor descobriu também um narcisismo cósmico: “é a floresta e o céu que se miram na água com Narciso. Ele não

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está sozinho, o universo reflecte-se juntamente com ele e envolve-o, anima-se com a própria alma de Narciso” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 467). J. Gasquet diz: O mundo é um imenso Narciso ocupado em pensar-se a si próprio. Onde se pensaria ele melhor senão nas suas imagens? pergunta G. Bachelard. No cristal das fontes, um gesto perturba as imagens, o repouso restitui-as. O mundo reflectido é a conquista da calma (GASQUET apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 467).

Dito isso, pode-se pensar que o espelho não tem somente a função de refletir uma imagem, mas também a de participar da imagem e, por esta participação, pode-se sofrer transformações. Engalfinhando imaginário, gênero e sexualidades, o convite é para estudar, observar com atenção, investigar, especular as culturas, meditar sobre elas, interferindo cotidianamente para as mudanças. Enfim... com que olhares miramos os espelhos das relações de gênero e sexualidades? Como concebemos essas temáticas: inventando novas formas de ser em grupo ou repetindo as verdades preconceituosas, machistas, normatizadoras, normalizadoras? Como lidamos com a arrogância de nossa vontade de saber, principalmente em relação às infâncias e adolescências? O que nos apaixona? A mesmice ou a participação ético-política em processos educativos problematizados com vistas a elencar injustiças e lutar contra elas? Esses questionamentos deságuam nos paradoxos do “biopoder característico do momento histórico que estamos vivendo na atualidade”, requerem “uma potência de resistência e de experimentação de novos modos de vida” (PASSOS, 2008, p. 16). Haja espelhos para mirar os controles, as estratégias disciplinares, mas, “igualmente, investir na capacidade inventiva e criativa da sociedade e dos indivíduos” (PASSOS, 2008, p. 16). Termino com a ambivalência da flor Narciso, de seus ritmos sazonais, de sua fecundidade, de sua morte-sono-renascimento borbulhando analogias às lutas cotidianas que encharcam de possibilidades o renascer para outra educação para as sexualidades – impressas também nas letras dos textos deste livro!

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Referências AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009. BAÊNA, Tomás. Espelho. Disponível em: www.filosofiadaarte.no.sapo.pt/espelho. html. Acesso em: 04/02/2014. BELLINGHAM, David. Introdução à Mitologia Grega. Lisboa: Editorial Estampa, 2000. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Lisboa: Editorial Teorema, 1982. COSTA, Jurandir Freire. A Ética e o Espelho da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. MEYER, Dagmar Elizabeth Estermman; KLEIN, Carin. Um olhar de gênero sobre a “inclusão social”. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 36, 2013, Goiânia, GO. Acesso em 09/12/2013. PASSOS, Izabel C. Friche. Poder, normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. REVILLA, Federico. Diccionario de Iconografía y Simbología. Madrid: Ediciones Cátedra, 2012.

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Apresentação Esta coletânea é a terceira da Coleção Gênero e Diversidade, produzida com recursos financeiros da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação (MEC), que subsidiaram cursos de formação de professores voltados à temática de gênero e diversidade na escola, oferecidos pela Universidade Federal de Mato Grosso, Câmpus de Rondonópolis, desde 2010, em diferentes municípios de Mato Grosso. Apesar de seu contexto de origem ter sido a formação de professores, esta coletânea não se restringe a esse campo de atuação, posto que reúne um conjunto de textos acadêmicos, produzidos por pesquisadores/as e professores/as da Educação Básica e do Ensino Superior, na graduação ou na pós-graduação, que trazem reflexões, tanto no plano teórico quanto no âmbito das práticas educativas, sobre as relações entre diversidade e educação em seus atravessamentos pelas questões de gênero e da sexualidade. Apresentamos, nesta coletânea, um grupo de autores/as que tomam para si a tarefa e o desafio de assumir a responsabilidade do ato de conhecer e problematizar o sujeito, a vida social, a cultura, as relações humanas, uma vez que compreender é um ato, e um ato responsável, como já dizia o filósofo Mikhail Bakhtin1. Responsabilidade esta que se realiza no reconhecimento do outro como condição primordial da nossa existência singular. Esse sentido de alteridade, que se abre à compreensão das experiências da diversidade, toma como princípio ético a imprescindibilidade do outro em nossa existência. Esta obra visa trazer esta responsabilidade como valor, como compromisso com a formação de professores/as e profissionais da educação e também com a pesquisa acadêmica em ciências humanas e sociais. Sua potência vem da conjugação das reflexões, ideias e conceitos com as ações, a qual se expressa no compromisso pela visibilidade e efetividade da dimensão política e ética da educação de sujeitos de todas as idades e etnias que vivem diversas sexualidades e relações afetivas. São ações políticas e éticas que o grupo de autores/as desta coletânea busca manter vivas para a construção de outros modos de pensar e compreender as pessoas, a vida humana, a cultura, que quebrem o engessamento e desarmem a prisão das normativas e dos padrões que naturalizam preconceitos e discriminações, que julgam valores, experi1 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.


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ências, sentimentos, crenças, práticas sociais, concepções e as relações com o outro e com o próprio corpo, que rejeitam, perseguem e, às vezes, exterminam pessoas por suas etnias, seus modos de amar, pensar, crer e viver. O livro está dividido em três seções: “Gêneros, sexualidades e diversidades”, “Corpo, sexualidades e temporalidades” e “Gênero e relações étnico-raciais”. A primeira seção reúne trabalhos que se debruçam sobre as relações de gênero, corpo e sexualidades, percorrendo temas como os direitos sexuais, as travestilidades, as políticas cognitivas na escola e a corporeidade. A seção é aberta com o capítulo “Psicologia, direitos humanos e união afetiva homossexual: o ‘casamento para todos’ não é consenso entre os especialistas”, de Graciela Haydée Barbero, que se dedica a uma análise crítica das perspectivas teóricas, no campo da psicologia e da psicanálise, sobre as práticas sexuais consideradas não convencionais, tema este que se apresenta como palco de conflitos no que diz respeito à questão dos direitos, sobretudo dos direitos sexuais. No segundo capítulo, “Mulheres travestis: queerizando ressignificações culturais e políticas”, Adriana Sales e Wiliam Siqueira Peres demarcam as expressões estilísticas, imagéticas e discursivas dos corpos e das manifestações humanas de mulheres travestis, em busca de acrescentar às conceituações já existentes, no campo das ciências sociais e humanas, elementos que corroborem possibilidades subjetivas de existir, de viver os prazeres e desejos, de marcar territórios, empreendidas por essas pessoas que sempre foram excluídas e marginalizadas. O capítulo seguinte, “Gêneros, sexualidades e políticas cognitivas na escola”, de Leonardo Lemos de Souza, dispara conexões, promove desconstruções e, ao mesmo tempo, contesta os sistemas de conhecimento e as maneiras de ver produzidos e gestados pela escola acerca das diversidades de gêneros e sexuais que escapam da norma. Isto é feito a partir de um conjunto de experimentações do autor, como ex-aluno da Educação Básica, diante das formas de violência que se fundamentam em diversos marcadores, como sexualidade, gênero, classe social, raça/etnia e idade, e como pesquisador da escola e docente na universidade, instituições que produzem e gestam essas violências. No último capítulo da primeira seção, “Corpo e diversidade: ‘absurdas liberdades’?”, Elni Elisa Willms e Julio Cézar Coelho trazem contribuições importantes às discussões sobre gênero e diversidade, com foco na temática de sermos um corpo que experimenta ser desejável, compreendido para

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além da inscrição biológica e na intersecção entre o que herdamos da natureza e o que aprendemos quando nos tornamos sujeitos em uma cultura. O percurso das reflexões apoia-se em poesias, letras de músicas, referências à novela “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)”, de João Guimarães Rosa, e fragmentos de autobiografia ficcional. A segunda seção da coletânea, intitulada “Corpo, sexualidades e temporalidades”, é composta por textos que têm como foco o debate sobre temporalidades da vida humana atravessadas por questões de gênero e sexualidade. É aberta pelo capítulo “Gênero e sexualidade no cotidiano escolar”, em que a autora, Carmem Lúcia Sussel Mariano, suscita reflexões sobre as dificuldades de lidar com as relações de gênero e sexualidade no cotidiano escolar. Partindo da premissa de que as temáticas de gênero e sexualidade extrapolam o planejamento de conteúdos específicos, o texto explora como estas questões aparecem na cultura lúdica, nos pressupostos adultos sobre a sexualidade de crianças e adolescentes e na organização do trabalho pedagógico, indicando possibilidades de desmantelamento no interior da escola de valores e práticas sexistas, machistas, heteronormativas e adultocêntricas. Em seguida, temos “Infância, sexualidade e contemporaneidade em debate: entre o sagrado e o profano”, de Raquel Gonçalves Salgado, Carmem Lúcia Sussel Mariano e Evandro Salvador Alves de Oliveira, que mergulha no debate sobre as imagens sociais da infância, muitas vezes paradoxais, que circulam na escola e nos discursos públicos, trazendo ora a inocência como moldura, ora a sexualidade como o elemento violador dessa sacralização e valor da cultura do consumo. As reflexões se ancoram em uma pesquisa com crianças de uma escola de Educação Infantil. Os/As autores/as destacam, ainda, que o “profano” – representado, principalmente, por discursos da mídia que dão visibilidade à sexualidade – entra na escola sem pedir licença. Mais do que proteger as crianças, cabe educá-las a se apropriarem desses discursos pelo viés da crítica e da criação de culturas que não permaneçam encerradas na moldura da lógica do consumo. No terceiro capítulo, “Gênero e sexualidade nos discursos das políticas curriculares de educação infantil: desafios para pensar a formação docente”, Bianca Salazar Guizzo e Rodrigo Saballa de Carvalho analisam o modo como as questões de gênero e sexualidade na primeira infância são descritas nos documentos curriculares nacionais, assim como os efeitos de tais proposições legais na prática de professoras que atuam com crianças pequenas, uma vez que a sexualidade infantil tem sido tratada sob a ótica do problema,

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intensificando mecanismos de vigilância dos comportamentos infantis e de prescrição de comportamentos considerados adequados para meninos e meninas. O texto traz a proposição de que as temáticas de gênero e sexualidade ocupem posição central tanto nos programas de formação continuada de professores/as de Educação Infantil, como nas políticas curriculares para a Educação Infantil. O quarto e último capítulo da segunda seção, “Maternidades sucessivas na adolescência: do destino ao desejo”, de Alcindo José Rosa e Alberto Olavo Advincula Reis, traz reflexões e dados de uma pesquisa realizada em um grupo de adolescentes com maternidades sucessivas e que buscou investigar como a maternidade se articula ou não com o querer ser mãe. Ao focalizar as dimensões subjetivas presentes na maternidade de adolescentes a partir do referencial teórico da psicanálise, a investigação problematiza o conceito de gravidez indesejada e a forte valoração social atribuída à maternidade, bem como sua associação à feminilidade, que pode receber contornos específicos em determinadas configurações subjetivas e sociais. As reflexões da pesquisa remetem à importância de considerar, no delineamento de políticas públicas em saúde reprodutiva, as dimensões subjetivas. A terceira e última seção desta obra, “Gênero e relações étnico-raciais”, abrange textos que se debruçam sobre questões relativas à diversidade étnico-racial e suas confluências com as relações de gênero. Seu primeiro capítulo, “A implementação da Lei 10.639/2003 no ensino de ciências: reflexões a partir de uma experiência de formação continuada”, de Douglas Verrangia Corrêa da Silva, traz reflexões pautadas na análise de uma experiência de formação continuada de professores, que teve como propósito educar para relações étnico-raciais justas no ensino de Ciências, adotando como elemento norteador e problematizador a aprovação da Lei 10.639/2003, fruto de reivindicações da sociedade em geral e, mais energicamente, do Movimento Social Negro, que trouxe um importante desafio à educação em nosso país: abordar de forma adequada a história e cultura africana e afro-brasileira. O processo de formação continuada em tela foi realizado no contexto de uma pesquisa de doutoramento já concluída. No texto seguinte, “Movimento feminino nas aldeias: a mobilização de mulheres indígenas, Estado de Mato Grosso, Brasil”, Paula Faustino Sampaio apresenta um levantamento de organizações de mulheres indígenas no Estado de Mato Grosso e aborda suas vozes, suas pautas, suas singularidades, seus discursos, seus agenciamentos e suas mobilizações, oferecendo um contra-

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ponto ao modo como as mulheres indígenas são representadas na História do Brasil, que as enquadra como submissas aos homens e que não mostra a dimensão de sua atuação, bem como a diversidade de experiências e papéis socioculturais. Ainda, a despeito dos esforços para refletir sobre estas questões indígenas na perspectiva dos estudos de gênero, a autora problematiza a exclusão das demandas das mulheres indígenas das agendas feministas e o não diálogo entre o movimento feminista e o de mulheres indígenas. Ainda trazendo à tona a temática indígena, o terceiro capítulo da última seção, “Brinquedo, brincadeira e trabalho: o que fazem meninas e meninos no cotidiano da Aldeia Igarapé Lourdes?”, de Laudinéa de Souza Rodrigues e Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues, debruça-se sobre as demarcações de gênero emergentes entre as meninas e os meninos Gavião Ikólóéhj, crianças indígenas da Aldeia Igarapé Lourdes, que compõem uma das vinte e oito etnias pertencentes a Rondônia. As análises sobre essas relações de gênero sustentam-se nos relatos de professores indígenas, que atuam na aldeia, e nas observações de situações de brincadeira e trabalho vividas pelas crianças em seus cotidianos. Outro aspecto ressaltado, nas análises das autoras, é a presença de características das brincadeiras próprias das sociedades não indígenas nas atividades lúdicas das crianças Ikólóéhj. No quarto capítulo, “Educação étnico-racial, gênero e currículo”, Antutérpio Dias Pereira, tomando como foco o racismo institucional vigente no Brasil, também analisa a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira. O autor dá visibilidade ao fato de que as desigualdades raciais se tornam mais acirradas se considerarmos as mulheres negras, que se apresentam como o alvo privilegiado das práticas discriminatórias e das disparidades sociais e econômicas entre brancos e negros no Brasil. Nesse sentido, ressalta a urgência de uma escola democrática na sociedade brasileira, que reconheça, valorize e trate de forma ética e profissional a diversidade étnico-racial, ao invés de reproduzir, em suas práticas pedagógicas e em seus currículos, a discriminação e o preconceito racial. A terceira e última seção da coletânea encerra-se com o capítulo “Narrativas étnico-raciais e de gênero na campanha do monumento à ‘Mãe Preta’: pedagogias da imprensa negra”, de Maria Angélica Zubaran, que mapeia e problematiza as representações étnico-raciais e de gênero construídas em torno do monumento à “Mãe Preta”, de 1920, a partir da análise do trânsito e da circulação de ideias da diáspora negra no jornal de imprensa negra O Exemplo, de Porto Alegre, buscando, a partir da abordagem teórica dos Estu-

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dos Culturais, apontar os possíveis efeitos pedagógicos dessas representações na construção identitária dos afrodescendentes. Desejamos que os trabalhos, aqui tecidos e entretecidos, provoquem perspectivas, concepções, práticas e políticas comprometidas com o enfrentamento de preconceitos, de discriminações e das diferenças tratadas como desigualdades, que ferem direitos humanos fundamentais, que estão relacionados às suas identidades de gênero, às suas etnias, às suas culturas, aos seus prazeres, às suas subjetividades. Rondonópolis (MT), dezembro de 2015.

Raquel Gonçalves Salgado Carmem Lúcia Sussel Mariano Leonardo Lemos de Souza

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Psicologia, direitos humanos e união afetiva homossexual: o “casamento para todos” não é consenso entre os especialistas Graciela Haydée Barbero

Introdução e apresentação do problema Em meio a uma audiência pública tumultuada, em novembro de 2012, a Comissão de Seguridade Social e da Família da Câmara dos Deputados do Brasil discutiu o Projeto de Decreto Legislativo do deputado João Campos (PSDB-GO), que pretendia sustar parte da Resolução 001/99, do Conselho Federal de Psicologia, determinação que proíbe aos psicólogos tratar a homossexualidade como doença. Este fato assinala um confronto: por um lado há os que defendem a autonomia, o livre arbítrio e a liberdade de expressão de pacientes e psicólogos que desejariam “curar a homossexualidade”, por outro, os que defendem a liberdade de escolha e os direitos dos cidadãos que sofrem por esta suposta condição doentia associada a sua sexualidade e identidade de gênero. Conflito que mostra uma das contradições do pensamento liberal, difícil de resolver sem analisar as questões ideológico-políticas e teóricas a ele associadas. Em nosso país, a Constituição de 1988 – apelidada de “Constituição Cidadã” – criou uma série de prerrogativas que garantem a manutenção dos direitos civis, políticos e sociais na sociedade brasileira, nessas três esferas primordiais que garantem a construção da cidadania nas sociedades modernas. Ao longo dos 27 anos transcorridos desde então, muito se avançou na garantia de direitos para as mulheres, consagrados de maneira significativa com a promulgação da Lei Maria da Penha e, em relação à luta contra o racismo, que foi transformado em crime inafiançável e imprescritível, mas em relação à população LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, assim como intersexuais e outros), ainda há um longo caminho de conquistas a serem atingidas.


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Evidenciam-se, nesta área, muitos entraves para a construção de medidas concretas que garantam a cidadania plena dos sujeitos que se definem – ou são definidos – como homossexuais. Estes entraves ultrapassam as instâncias governamentais, já que estão inseridos no espectro da sociedade em geral, que continua a ser assumidamente homofóbica, como comprovam as pesquisas da Fundação Perseu Abramo e outras, assim como os fatos discriminatórios e violentos permanentemente sofridos pelos homossexuais ainda hoje, na nossa vida social. As discussões relacionadas à sexualidade e aos direitos sexuais tiveram início nos anos de 1960, num momento ligado à luta das mulheres – pelo uso da pílula anticoncepcional, entre outras questões –, que propiciou uma grande revolução dos costumes, gerando diversos questionamentos e problematizações sobre o direito das pessoas em relação aos seus próprios corpos e à procura de prazer. No Brasil, o início do movimento LGBTT aconteceu em 1978, juntamente com o surgimento de outros movimentos sociais, numa época em que se percebia que o país se encaminhava para o retorno à democracia. Entretanto, ao contrário de outros movimentos sociais, que, ao longo da década de 1980, foram se fortalecendo com o amadurecimento da democracia, a população LGBTT, no início dessa década, começa a se deparar com um terrível inimigo, a AIDS, que foi caracterizada como uma doença diretamente ligada ao modo de vida gay (daquela época), o que gerou ainda mais concepções estereotipadas em torno dessa população. Por sua vez, a Psicologia, no Brasil, no final do século passado, nesse momento de grandes acontecimentos e movimentos sociais, incluiu entre seus objetivos uma preocupação social, que, até então, não tinha sido explicitada. Em 1997, foi criada a Comissão de Direitos Humanos no Conselho Federal de Psicologia (CFP), que determinou que suas prioridades fossem dirigidas aos grupos populacionais que sofrem pela falta ou privação de seus direitos sociais mais básicos. A grande preocupação denunciada pela Comissão de Direitos Humanos do CFP é a de que certos recursos, práticas e profissionais da psicologia ratifiquem práticas sociais excludentes, em nome de uma neutralidade científica, penso que inexistente. Como psicóloga, psicanalista e pesquisadora, minha preocupação fundamental tem sido a procura de uma leitura crítica da(s) teoria(s), que permita a adoção de critérios científicos não contaminados por opiniões e ideologias implícitas. Mas, desde minha pesquisa de doutorado, transformada num livro

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chamado Homossexualidade e perversão na psicanálise, venho comprovando insistentemente que não se trata de uma tarefa fácil. Fundamentos teóricos semelhantes são usados como argumentos para ratificar ou retificar as mesmas questões a partir de perspectivas ideológicas opostas, especialmente quando se trata de práticas sexuais não convencionais. As instituições, tais como a Instituição Analítica, a Psicologia e até a Igreja, apresentam conflitos e divisões internas e, na questão de direitos, especialmente dos “direitos sexuais”, não parece haver possibilidades de um acordo, até o momento. Quanto à legalização do laço conjugal e familiar homossexual, os psicanalistas estão também protagonizando um acirrado debate. Eles sentiram-se convocados a opinar sobre estas questões do social, entre outros motivos, porque sua teoria, especialmente na abordagem lacaniana, baseia-se na importância fundamental e simbólica do conceito de diferença sexual e – alguns pensam – apoia-se num modelo heterossexual, se bem que as últimas teorizações lacanianas permitam superar uma perspectiva como esta. Na França, nas discussões que surgiram frente à possibilidade do Pacto de Solidariedade (PAC), que permite que se unam juridicamente, com determinados deveres e direitos, duas pessoas adultas de qualquer sexo, os pronunciamentos dos psicanalistas foram tão numerosos e contraditórios, que deram origem a uma lista com inúmeras assinaturas, na qual os assinantes deploravam a utilização insistente que se fez do saber psicanalítico para reforçar algumas teses claramente contrárias ao matrimônio gay. Este documento afirma, entre outras coisas, que a estrutura do Édipo não é um invariante histórico-antropológico e que não existe nenhuma complementaridade natural entre os sexos no nível do inconsciente, sendo que a tese lacaniana principal é, por isso, que não há relação/proporção sexual (que não se baseie num mal-entendido). Uma destas psicanalistas, a também historiadora Elizabeth Roudinesco, afirmou publicamente ser favorável a essa lei, denunciando a violência com a qual, novamente, os homossexuais foram estigmatizados em seu desejo de fundar uma família e de se beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de pessoas casadas de sexo diferente. Roudinesco afirma que lhe seria possível compreender razões religiosas contrárias a esta mutação na questão do casamento, considerando a visão imutável e essencialista da família que possuem as instituições religiosas (monoteístas), através da qual o pai permanece sendo visto como representante de Deus e a diferença bioanatômica dos sexos o fundamento de todo direito natural. Parece-lhe

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incompreensível, em contraposição, a postura negativa dos especialistas e assegura que é errada sua tentativa de justificar uma crítica baseada na concepção freudiana da família. Segundo esta autora, esse autor nunca chegara a expressar que o casamento homossexual seria o fim da família, nem a denegação da diferença de sexos, muito menos que seria negativo para as crianças, que estariam assim condenadas a terem pais perversos, ficarem sem filiação, sem Lei, etc. Lembremos que Freud não considerava os homossexuais como seres diferentes do resto dos humanos e, por isso, em seu tempo, manifestou claramente sua vontade de despenalizar esta forma de sexualidade, se bem que acabou aceitando uma postura política adversa aos homossexuais de alguns dos seus discípulos, que resultou numa exclusão dos homossexuais da instituição analítica, por muitos anos.

A família O certo é que atualmente existem novas figurações da família. A família tradicional patriarcalista se transformara em coparental, iluminada pelo ideal de amor romântico e pela escolha livre dos parceiros, que incluiu posteriormente os casais do mesmo sexo. Ao mesmo tempo, tinha se estabelecido a legalidade do divórcio em nosso país, enquanto os avanços das tecnologias reprodutivas chegaram a permitir a satisfação do desejo de filhos, mais além da questão biológica concreta da diferença dos sexos. Fundada por muitos séculos na soberania divina do pai, a família ocidental se transformou em uma família nuclear biológica a partir do início do século XIX com o advento da burguesia, que atribuía à maternidade um lugar central. Do declínio do antigo poder patriarcal, do qual Freud tornou-se testemunha e principal teórico, emergiu um processo de emancipação, que permitiu às mulheres afirmar sua diferença, especialmente ao separar maternidade de desejo sexual, e abriu-lhes o acesso ao mundo do trabalho. Esse movimento gerou angústia na sociedade e discussões similares às atuais, ligadas ao terror da abolição da diferença de sexos e à perspectiva de uma dissolução da família junto a uma – dita por alguns – “feminilização do mundo”. No final do século XIX, de fato, temia-se que as mulheres, ao trabalhar, se tornassem homens e que a diferença simbólica dos sexos fosse abolida. No século XX, havia o temor contrário de que os homens pudessem aderir ao modelo feminino. Hoje em dia, existe esta fantasia terrorífica associada às mudanças simbólicas implicadas na demanda dos homossexuais de fundar famílias. 26


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Mas o que funda a família no plano antropológico não é somente a diferença biológica ou simbólica dos sexos, senão, fundamentalmente, as leis de aliança e filiação de uma cultura. Quanto ao casamento, instituição civil desde a proclamação da República no Brasil, ele seria a tradução jurídica e legal de certo estado material da família em uma época dada, segundo interpretação das Ciências Sociais e Jurídicas. Em nada imutável e sempre evoluindo, a família está continuamente em transformação, como mostram as numerosas revisões dos códigos civis existentes, também em nosso país. Penso, com outros autores, que o que assistimos hoje não é uma revolução que conduziria ao desaparecimento da família, mas uma evolução, que, ao contrário, a faz subsistir. Podemos afirmar que existe hoje, em uma parcela de sujeitos que se consideram homossexuais, um desejo de entrar na ordem familiar da qual haviam sido anteriormente excluídos, e, fundamentalmente, uma vontade de todos eles de serem reconhecidos como sujeitos de direito, iguais aos heterossexuais. Os direitos de ter e de pertencer a uma família são direitos fundamentais. Que esta família seja também regulamentada e protegida pelo Estado é o que pretende a proposta de lei de matrimônio para todos – ou igualitário. Por outra parte, a família homoerótica e a homoparental (a que inclui filhos) são realidades que já existem, independentemente de serem – ou não – reconhecidas pela lei. Em nosso país, a despeito da inexistência de uma lei que legalize e proteja as uniões estáveis entre gays ou lésbicas, estas vêm acontecendo de fato e seus direitos já foram parcialmente reconhecidos em várias ocasiões pelos Tribunais de Justiça. A partir da ampliação das competências atribuídas ao poder judiciário e na medida em que o legislativo não resolve as demandas dos grupos organizados, os sujeitos procuraram respostas individualmente a seus problemas no judiciário, determinações que se transformaram em jurisprudência e alcançaram a muitos outros com a mesma ou similar problemática. Há decisões do poder judiciário a favor dos direitos civis de casais homossexuais, como direito à pensão em caso de morte de um dos parceiros ou parceiras, direito a colocar o companheiro ou a companheira como dependente nos convênios de saúde, direito de permanência no país em caso de estrangeiros etc., o que significa que há uma tendência a se assegurarem juridicamente os direitos conjugais de casais do mesmo sexo, uma tendência que aponta para a ampliação das possibilidades legais do que se considera uma entidade familiar.

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Segundo afirmam alguns advogados, o fato social antecede o jurídico, que, por sua vez, é anterior à lei; e estaria posto, irrefutavelmente, o fato social: pessoas do mesmo sexo se unem em convivência estável, dotada de laços afetivos e objetivos de vida comum, com frequência cada vez maior. Também é um fato que eventualmente essas uniões se desfaçam, seja pelo falecimento de um dos parceiros, seja porque simplesmente a relação chegou ao fim, como acontece com casais heterossexuais. Por isso, far-se-ia necessário refletir sobre a disciplina legal possível que permita enfrentar a lacuna referente aos pactos homossexuais de convivência, já que o início e o fim das uniões homossexuais geram efeitos no mundo jurídico, cabendo aos tribunais a tarefa de solucionar os problemas decorridos desses efeitos. Como disse a advogada Maria Berenice Dias, “subtrair juridicidade a um fato social implica deixar o indivíduo à margem da própria cidadania, o que não se comporta no âmbito do Estado Democrático de Direito” (DIAS, 2001, p. 85). Porém muitas críticas e discussões intensas e acaloradas têm impedido que a situação da legalização do vínculo conjugal e familiar homoafetivo tenha alcançado uma solução em nosso Parlamento, apesar de existir, desde 1995, um projeto de “Parceria Civil Registrada”, que teve uma longa série de transformações e nunca chegou a ser votado definitivamente.

Projetos de lei e medidas judiciais Na segunda metade dos anos 1990, para além dos limites do movimento homossexual, da contestação dos grupos religiosos e das discussões acontecidas na classe política, a sociedade brasileira havia começado a tomar consciência das uniões estáveis homossexuais existentes de fato; e aos poucos foi se firmando um debate similar ao acontecido no momento da conquista do divórcio e da proteção jurídica das relações concubinárias, o que permitiu as discussões no Congresso. O primeiro projeto de União Civil entre pessoas do mesmo sexo, apresentado em 1995, pela então deputada Marta Suplicy, sofreu modificações substanciais, justamente para diferenciar este vínculo da ideia de uma relação familiar (que era o que se exigia na época) e se transformou em projeto de Parceria Civil Registrada, apresentado pelo então deputado Roberto Jefferson. Na Câmara, nomeou-se uma comissão especial destinada a apreciar o projeto do deputado Jefferson e se promoveu (como na Argentina) uma série de audiências públicas para incluir o ponto de vista da sociedade civil. 28


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O argumento principal de quem é politicamente favorável é o da igualdade. Os homossexuais deviam ter os mesmos direitos que o resto dos cidadãos brasileiros, entendendo-se que seria um inegável avanço do pensamento jurídico e político sobre os alcances da democracia liberal. Porém, o medo de ser inconstitucional se soma ao medo dos políticos de não se tratar de uma proposta que tenha o apoio dos eleitores. Fora as audiências públicas e as discussões da Comissão Especial, que duraram seis meses, houve as discussões no plenário. Os argumentos continuam a poder ser diferenciados em duas posturas antagônicas: os que defendem a ordem e a moral estabelecidas, combatendo o que seriam – para eles – aberrações, em nome da tradição; e os que, desde o ponto de vista dos direitos igualitários, afirmam que é necessária a ruptura com o heterossexismo dominante no âmbito das representações e práticas sociais referidas à conjugalidade e à família. É justamente o tema da igualdade o que está atravessando esta problemática, como mostra o seguinte comentário de uma corretora de imóveis, de 32 anos, que mora com a companheira há cinco e disse que decidiu fazer o contrato após a decisão do STF: “Não fizemos antes, porque para ele ter validade teríamos que brigar muito na Justiça. Estou vivendo hoje meu 13 de Maio de 1888. Estamos no caminho de sermos todos iguais”1. Diferentemente de outros países de maioria católica (como Espanha, Portugal ou Argentina), cujos Parlamentos já haviam superado a restrição de direitos a homossexuais, o Sistema Político Brasileiro – e não apenas o Legislativo – é ainda muito permeável a argumentos religiosos, e seria difícil que enfrentasse a possível oposição dos eleitores. Por isso, alguns juristas e outros profissionais pensam que a decisão do STF é histórica, até por reconhecer a laicidade do Estado brasileiro. O Supremo, dessa forma, teria se adiantado na defesa de direitos individuais, visto que parcelas crescentes da opinião pública almejam vê-los reconhecidos, diante da omissão do Congresso. Na atualidade, não existe consenso nas Ciências Sociais para definir a família conjugal heterossexual (formada por um pai, uma mãe e seus filhos) como “normal”, em oposição à suposta “anormalidade” de famílias baseadas em vínculos homossexuais. Todavia, as resistências à aceitação de famílias formadas a partir de vínculos homossexuais relacionam-se ao fato de que o simples reconhecimento social da existência de gays e lésbicas desafia estruturas muito antigas a partir das quais as sociedades humanas foram 1 Este comentário foi extraído das entrevistas realizadas pela autora em pesquisa de pós-doutorado (USP/2011), que será mencionada em páginas posteriores.

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construídas, como a repressão sexual e a heterossexualidade compulsória, apesar de que, de uma maneira geral, as demandas de gays e lésbicas pelo reconhecimento de seus vínculos afetivo-sexuais, tanto quanto de sua forma especial de família, não negam a diferença simbólico-sexual entre o masculino e o feminino, mas sua consideração como o único fundamento do desejo, da sexualidade e da família. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acontecido em maio e abril de 2011, “o Brasil tem 60.000 casais declaradamente gays vivendo no regime de união estável” (IBGE, 2011). Esta foi a primeira vez que o IBGE mediu um segmento LGBT no censo brasileiro; certamente, o preconceito, o medo de retaliação social e outras tantas conhecidas razões não permitiram esta declaração por parte de muitos outros casais gays que vivem em regime de união estável no país. De qualquer forma, está claro que a família, baseada em sentimentos mútuos de amor e compromisso, é reivindicada por todos como um valor seguro. O que não significa que todos os homossexuais, organizados em movimentos de afirmação ou não, participem da vontade de definir seus vínculos amorosos dentro desta possibilidade de casamento legalizado. Sabemos que entre os militantes – e não só no Brasil – existe uma oposição entre os que desejam a legitimação jurídica de seus vínculos (integracionistas) e os que não aceitam qualquer tipo de interferência do Estado nas relações pessoais (movimento queer). Referindo-se à opinião da população, o conhecido historiador francês Michel Foucault (2000) disse numa entrevista, em 1983, que o que mais incomoda da condição gay para aqueles que não o são é o estilo de vida e não os atos sexuais em si mesmos. O que muita gente não poderia tolerar seria a ideia de que as pessoas homossexuais criassem tipos de relações até agora impensadas. Segundo alguns autores (GIDDENS, 1992, por exemplo), o mundo da homossexualidade tem funcionado como um laboratório de vivências afetivo-sexuais e de regras conjugais. Não temos conhecimento da criação de grande variedade nas relações entre pessoas do mesmo sexo, até porque, muitas se ocultavam à visibilidade social geral, mas houve algumas experiências conhecidas. Entre elas, tivemos acesso a um livro de Kath Weston, As famílias que escolhemos, publicado originalmente nos Estados Unidos em 1997, que relata as formas em que determinadas pessoas – homossexuais e outros – se uniam formando agrupações familiares espontâneas, diferentes das famílias que existiam legalmente na

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época. As experiências começaram nos anos de 1960 e tinham como fundamento a afirmação de que o parentesco não era necessariamente biológico, ou seja, que não o baseavam em relações consanguíneas. Estas famílias ampliadas incluíam também amigos íntimos. Muitas discussões se desenvolveram entre os que viveram a experiência e os que teorizaram a respeito, especialmente antropólogos, já que esta questão revalorizou o tema do parentesco, que tinha sido um pouco deixado de lado2. Weston desenvolve longamente estas questões. Segundo a lógica das “famílias eletivas”, o indivíduo tem direito de escolher qualquer pessoa como sua parceira, mesmo que não morem juntos (WESTON, 2003). No começo de sua aparição pública, os homossexuais, especialmente os homens, pareciam procurar um estilo de vida celibatário, sem compromisso e com múltiplos parceiros, mas pouco a pouco foi se vendo que existem muitas formas de se viver a homossexualidade no mundo. As mulheres, especialmente, não pararam de estabelecer vínculos intensos e duradouros entre elas. Depois da conquista de seu próprio modo de gozar, foi se evidenciando nos casais do mesmo sexo a mesma necessidade de afeto, de segurança, de confiança mútua, de continuidade, de família que a de todos os seres humanos em nossa sociedade. Também é possível que a epidemia de AIDS tenha contribuído para fomentar o desejo de perpetuação de um grupo social excluído até então das funções da paternidade e da maternidade, adaptadas à estrutura familiar da sua época. Antes da época atual, o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil fixavam os limites entre o lícito e o ilícito nas relações conjugais; a concepção jurídica do direito de família não continha espaço para as relações do mesmo sexo. Na segunda metade do século XX, algumas inovações legislativas refletiram grandes mudanças sociais, como o desenvolvimento dos valores do individualismo, que enfraqueceram cada vez mais o modelo hierárquico e patriarcal, levando em conta, principalmente, a satisfação afetiva. A Constituição de 1988 reconheceu vários tipos de família (casamento, união estável e monoparental), rompendo os paradigmas anteriores. Por isso, podemos pensar que agora caberia, na sociedade e no direito de família, a família homoparental. A família homoafetiva podia, e já o foi, ser homologada à união estável.

2 Um texto importante sobre este tema na Antropologia é o de Judith Butler (aparecido em Cadernos Pagu, n° 21(2003, p. 219-260): “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”.

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O professor e jurista Fernando Malheiros (1999) apresenta, num dos textos que compõem o livro O laço conjugal, que compila as apresentações de um congresso da Associação Psicanalítica de Porto Alegre sobre este tema, uma rápida história da evolução desta instituição, advertindo sobre as mudanças fundamentais que decorreram dos processos de transformação que estão acontecendo desde a metade do século XIX. Sua hipótese é que a base fundamental dessa mudança está apoiada no espaço que a mulher passou a ocupar no mundo social, após sua emancipação. Malheiros relembra que o casamento no Brasil não fora uma instituição do direito civil até a proclamação da República, em 1889. Antes disso, devia respeitar as normas canônicas estabelecidas pela Igreja Católica, então atrelada ao Estado. Em 1890, surgiu o casamento como instituição civil, pelo decreto n° 181, de 24 de janeiro, no qual começou seu processo de laicização. Até então, católicos ou não católicos, se queriam se unir em matrimônio, só poderiam fazê-lo numa Igreja. Por um tempo, somente se admitiu o casamento civil, mas como a população não respeitava esta norma, seja pela influência da tradição ou pelo valor dos rituais, em 1934 voltou-se a aceitar também o casamento religioso com efeitos civis, o que se sustenta até hoje. O direito de família começou a existir de forma independente com a edição do Código Civil brasileiro, em 1916. Nesta primeira versão, ainda se considerava o marido o chefe da família conjugal e era ele quem tinha a representação legal da família, a administração dos bens comuns e/ou da mulher; seus direitos incluíam a autorização da profissão da esposa. Todas estas disposições foram sendo revogadas, até que se transformaram por completo na Constituição de 1988. A questão dos filhos no casamento foi também reconhecida como um importante vínculo jurídico (filiação) pelo que a Constituição deve a eles amparar com os direitos correspondentes, estabelecendo normas que não ultrapassem o direito da intimidade das famílias e respeitem o documento atualmente em vigência, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)3, que os confirma e regulamenta a condição desses sujeitos como cidadãos. As mudanças apontam para o privilégio dos aspectos afetivos e do valor da individualidade dos seres humanos que compõem a família. Um sacramento no direito canônico, necessário à legitimação dos cônjuges no direito laico, o casamento foi perdendo sua força simbólica, na 3 Lei nº 8.069, de julho de 1990.

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medida em que aumentava o número de divórcios. O casamento deixou de ser indissolúvel e passou a se ver, cada vez mais, como um contrato. A família recomposta deu lugar aos filhos nascidos fora do matrimonio original e surgiram vocábulos, como família monoparental, pluriparental, coparental e, finalmente, homoparental. Desta forma, acabada a dominação masculina, surgem as novas figurações da família. Institui-se um modelo familiar horizontal, de formatos múltiplos, que revelava a importância do eu e do individualismo no mundo moderno. Porém a família homoafetiva representa uma mudança histórica de alcances ainda imprevisíveis, por não fundar a ordem familiar na diferença sexual. Por outra parte, Luis Camargo (2006), um psicanalista interessado no tema das relações entre a psicanálise e o direito, trata também do tema das relações conjugais – desta vez heterossexuais –, partindo da ideia de que o ser humano, por não poder realizar um verdadeiro encontro entre os sexos, já que eles não são complementares, se apoia no amor, com a esperança de reduzir sua incompletude, na eterna procura de fazer de dois, um. Referindo-se ao mundo atual, este autor entende que, junto ao divórcio, o fenômeno da coabitação juvenil, em particular, e o do amor fora do matrimônio civil, em geral, dariam conta de um profundo questionamento da vida conjugal no ocidente. Segundo Camargo (2006), os vínculos atuais tenderiam a se libertar de certos imperativos e pressões que dominavam a vida sexual e a liberar-se da rígida oposição distintiva entre atividade masculina e passividade feminina, questionando assim a possível solidez matrimonial. Desta forma, ele afirma que existem três tipos ideais no campo do amor e da conjugalidade. O primeiro, diz, aponta a intensidade e evita a fecundidade (seria o amor-paixão, extraconjugal); o segundo tende à durabilidade e à fecundidade (amor conjugal convencional moderno); e o último, um novo tipo de amor que possuiria características intermediárias, que ele chama de “coabitação juvenil”. O matrimonio monogâmico, restritivo e indissolúvel do século XX tem uma historia social, cultural e econômica que o justifica no tempo. Apresentava até o século passado uma total separação entre o amor dos cônjuges e o amor-paixão, exterior ao matrimônio. Porém o imaginário moderno teria feito com que estes opostos perdessem sua distância inquestionável e estabelecido, também, para a conjugalidade o ideal de amor romântico e de escolha livre dos parceiros, próprio do desenvolvimento dos valores do individualismo e dos direitos igualitários entre homens e mulheres de todas as classes sociais e etnias. Porém isto trouxe como consequência inevitável a

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aparição do divórcio, já que o amor, deste calibre, acaba, diz Camargo (2006). O desejo sexual não cabe de forma pacífica nos limites de um contrato, como o Direito Contratual e o Direito de Família moderno o sustentam4. Aparentemente, a descrição que faz Camargo (2006) das relações entre os sexos no mundo atual não difere substancialmente das relações que se encontram entre casais homoafetivos. Em 2011, realizamos uma pesquisa de pós-doutorado, partindo de alguma destas questões, que se referiam à forma em que sujeitos homossexuais, homens e mulheres de todo o país, vivenciavam a questão de seus vínculos e sua possível legalização através do casamento. Nela entrevistamos um número considerável de sujeitos de vários lugares do país, que afirmaram se relacionar afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, com o objetivo de aumentar o conhecimento que se tem sobre esta questão tão recoberta de mitos e preconceitos. Observamos que entre as pessoas que escolhem parceiros ou parceiras do mesmo sexo o fenômeno apresenta na experiência individual todas as formas que a singularidade impõe, desde casais homoafetivos que pretendem configurar uma família nuclear baseados nos modelos existentes, até aqueles que criam novas possibilidades e alternativas à forma de convívio, bem como pessoas que não desejam se casar. Verificamos que a discussão sobre a regulamentação das parcerias era algo de que os casais e indivíduos entrevistados estavam um pouco distanciados em sua vida pessoal, o que não quer dizer que não tivessem um posicionamento político, quase sempre favorável. Dos quarenta sujeitos que pesquisamos somente dois casais de homens e um de mulheres tinham sua união legitimada em cartórios. Das mulheres entrevistadas, a maioria afirmou que conhece e aprova a legitimação proposta, mas não recorreria a ela no momento atual, até porque elas se sentem casadas desde o momento em que moram juntas e têm projetos comuns. Algumas trouxeram a crítica da instituição (“Família sim, mas sem instituição”; “Religião também é instituição”). As mulheres de mais idade, que já viveram vários relacionamentos, foram as que mais afirmaram valorizar o casamento. Talvez isto se dê quando surge a necessidade de ter “família”. Porém, com relação a filhos, podemos dizer que o desejo expressado foi, em geral, “morno”.

4 Na apresentação do livro O laço conjugal, C. Calligaris reflete sobre o fato de que a conjugalidade se configura como um lugar de sofrimento somente a partir do momento em que já não se trata de uma instituição de conveniência deixada à iniciativa das famílias segundo os imperativos sociais e patrimoniais, e começa a exigir como fundamento o amor.

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No meio gay, há alguns grupos ou pessoas que questionam a necessidade da legalização dos vínculos pelo Estado. A resposta de um dos sujeitos da pesquisa, quando perguntado sobre seu desejo de formar família foi: “Famílias, que horror!”. De qualquer maneira, a ideia do “casamento” é algo muito novo para os sujeitos que formam efetivamente parcerias homossexuais. O desejo de ser reconhecido como cidadão integral teria se unido hoje à possibilidade de estar incluído numa ordem familiar, mas como é que isto vai acontecer? “Ainda me daria vergonha”, disse um homem, por exemplo. Na pesquisa, muitos sujeitos se referiram direta ou indiretamente à necessidade que teriam de dar visibilidade a sua escolha sexual no caso de legalizar seus vínculos, o que lhes cria grande aflição e faz com que não tenham ainda se decidido a respeito, já que o problema fundamental continua a ser o medo da rejeição, do desprezo e da desvalorização social. Mas, como disse uma entrevistada, há a esperança de que “a lei possa mudar o social”, evitando, por exemplo, “que os gays enrustidos se casem com mulheres”. Sintetizando, podemos dizer que o leque de respostas do grupo entrevistado mostra semelhanças com o que está acontecendo no mundo heterossexual; há quem anele um contrato de união estável ou casamento: aqueles/as que desejam filhos, os que se preocupam com a proteção dos bens conquistados em parceria, os que desejam uma coabitação temporária, os que sonham com o amor romântico, os que preferem sexo variado e múltiplos parceiros, os que consideram importante lutar por outros modelos de conjugalidade. As posições variam com a cultura, com a idade, com o sentimento de identidade, com a postura política, com a coragem. O que confirma que não existe nenhuma característica “homossexual” que corresponda a uma essência permanente. O certo é que, pouco a pouco, a visibilidade dos sujeitos LGBTT está sendo menos assustadora, a representação social da homossexualidade está vivendo um momento de total transformação5. Um fato interessante, que escutamos muitas vezes na prática clínica, é que adolescentes de ambos os sexos, que não se definem como heterossexuais ou homossexuais, estão experimentando mais livremente diversas possibilidades, como “beijar meninas e meninos”, para ver como é. A experiência homossexual está se abrindo como uma possibilidade 5 Concordo com a ideia de que tanto a medicina quanto alguns grupos de militância nesta área contribuíram, com seus discursos e crenças associadas, com a construção de uma identidade fundada na orientação sexual, quando em outros tempos, mesmo que rejeitados, tratava-se de comportamentos, atos e práticas sociais baseados num desejo homossexual. De qualquer forma, o “casamento” entre duas pessoas do mesmo sexo não tem porque se apoiar na ideia de que existe uma essência que defina uma pessoa como homo, bi, trans, heterossexual. A discussão sobre os vínculos permitiu superar parcialmente esta polêmica, atualmente sem solução consensual aparente.

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para todos. O que confirma, de alguma maneira, que não existe nenhuma característica “homossexual” que corresponda a uma essência permanente, se bem que seja necessária uma identidade política específica, no âmbito da luta por direitos, que deve ser localizada no mundo contemporâneo.

Os laços sociais contemporâneos No livro O direito das sexualidades, Daniel Borrillo apresenta o leque dos mais importantes debates e temas que constituem este universo na modernidade. Partindo do reconhecimento do questionamento das regras que durante muito tempo governaram as relações de gênero no mundo ocidental, realizado pelos movimentos feminista e LGBTT, que colocaram no centro dos debates políticos estas problemáticas, o autor afirma que se não conseguiram completamente seus objetivos deve-se a resíduos de ideias ligadas à moral religiosa e a alguns discursos médicos tradicionais, que constituem grandes obstáculos na construção de uma teoria jurídica da sexualidade pautada na neutralidade ética do Estado. Mas, apesar destes princípios, haveria, segundo o autor, o retorno progressivo de uma concepção conservadora da sexualidade, talvez devida a um “pânico sexual ou moral”, que marginaliza as práticas não convencionais, por considerá-las desviantes, perigosas para a sociedade ou “indignas”. Borrillo (2009) aponta assim a situação paradoxal que caracteriza o mundo contemporâneo. Penso que se trata, realmente, de uma situação paradoxal, e esta ideia pode ser lida em vários autores das ciências sociais. A contemporaneidade tem sido nomeada por esses autores de diversas formas: pós-modernidade, sociedade de risco, capitalismo tardio, modernidade líquida, sociedade de rede ou de conexões, hipermodernidade. Os sociólogos franceses Bolstanski e Chiapello, no livro O novo espírito do capitalismo, afirmam que não há neste momento uma crise do capitalismo. Para eles, o capitalismo mundial, entendido como a possibilidade de fazer o capital frutificar por meio do investimento ou da aplicação econômica, vai muito bem, enquanto as sociedades, pelo contrário, não estão em boas condições (BOLSTANSKY; CHIAPELLO, 2009). Há grande desemprego, empregos “atípicos”, famílias em nível crescente de pobreza pelo mundo inteiro, desenvolvimento da violência na vida quotidiana, e outros pormenores negativos que todos conhecemos. Enquanto o capitalismo prospera, a sociedade se degrada. Ao lado do crescimento do lucro, crescem as exclusões. A 36


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democracia, a tecnologia e a economia, cada vez mais liberalizadas, parecem aumentar o poder dos menos sobre os mais. Os autores especificam que no “novo espírito do capitalismo” não seria possível continuar com as críticas e reivindicações de épocas anteriores, como se nada tivesse acontecido. As críticas ao espírito burguês e à moral burguesa devem considerar que nos últimos trinta anos o capitalismo se desenvolveu incorporando facetas inteiras das reivindicações emancipadoras, subordinando-as à produção do lucro, esvaziando assim as exigências de libertação e autenticidade do que lhes dava corpo na experiência da vida cotidiana. Na sociedade de consumo, o indivíduo aparentemente livre está, assim, inteiramente submetido ao processo de produção, que por seu próprio desenvolvimento produz sujeitos cujo desejo é estimulado de forma a se tornar insaciável. Nessa perspectiva, Maria Betânia Ávila (2005), socióloga e coordenadora de um instituto feminista para a democracia no Brasil, afirma que a nova legalidade representada pelas mudanças relacionadas à vida amorosa e sexual representa a existência de transformações na cultura, mas que elas só seriam libertadoras se conseguissem romper com a tradição autoritária e repressiva e permitir a possibilidade de uma escolha mais livre, numa área, a dos direitos sexuais e reprodutivos, que era considerada anteriormente como alheia à vida democrática e cidadã. Ávila relembra, porém, que o campo de confronto em torno dessas questões é hoje o de uma modernidade mercadológica, que aparentemente acena com a liberdade sexual, mas se trata simplesmente de uma oferta de mercadorias e não de liberdades. Para esta autora, a dupla pressão entre uma captura pelo mercado dos propósitos libertários, enquadrados numa perspectiva consumista, e a tradição conservadora, sustentada por instituições poderosas (Igreja Católica, Igreja Evangélica etc.), faz com que a construção de um discurso libertário entre essas duas perspectivas seja um grande desafio. Um ponto de vista mais positivo é o de Luc Ferry (2007), filósofo contemporâneo, ex-Ministro de Educação na França, que coincide com as descrições dos autores que apresentamos anteriormente, apontando o paradoxo da situação, sem pensar que não haja nada resgatável na época em que estamos vivendo. A visão deste autor não é fatalista: pelo contrário, depois de constatar que a crítica desconstrutiva de muitos filósofos e estudiosos da época moderna levaram à queda de valores e ideais, e que também houve um processo de desapropriação da coisa pública no ocidente, por causa da evolução dialética da sociedade, o autor postula que a solução se encontra no âmbito da vida

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privada. Para ele, estamos no começo de um momento humanista maduro. Ele acredita que vivemos, sem tomar clara consciência disto, uma revolução de espírito formidável, que muda o sentido da vida. Fazendo uma reconstrução do ocorrido antes de chegar ao momento atual, ele afirma que, como nenhum outro, o século XX foi o das vanguardas, cujo principal objetivo foi o de desconstruir os enquadramentos tradicionais dos valores burgueses da estética e do racionalismo clássicos. Marx, Nietzsche, Freud e outros teriam contribuído para a queda dos ideais que acompanharam a modernidade lado a lado. No entanto, a desconstrução – além de levar à desapropriação democrática que mencionamos pelo declínio do Estado-Nação, e “a reboque de um gigantesco paradoxo” – teria preparado o advento da globalização liberal (FERRY, 2007, p. 29-33), conseguindo que tudo se torne fluido às exigências da globalização. A crítica niezstchiana dos valores teria preparado esse caminho. Essa crítica dos valores transcendentes, que segundo Ferry desembocara no pensamento 68, acabou virando um novo academicismo, argumenta. O autor afirma de diversas formas que esta contracultura engendrou, em um processo perfeitamente dialético6, o contrário daquilo a que visava, liberando possibilidades e poderes que pretendia aniquilar. Houve um declínio da lei, ao mesmo tempo em que surgiu uma proliferação de direitos, pela fraqueza da lei e do Estado. Sem criticar completamente a globalização, e tentando enxergar seus aspectos positivos, Ferry sustenta que por causa da competição que tomou conta da sociedade, e de outros processos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo, perdeu-se toda a transcendência. Mas, para ele, o essencial é que, como resultado, vivemos na era da globalização e também na consagração da vida privada e familiar, que haveria feito surgir outra forma de transcendência. É certo que a liberação dos costumes e a queda da tradição como valor único flexibilizaram as morais rígidas e abriram campo para o reconhecimento e a acolhida das diversidades, possibilitando as mudanças exigidas pelos movimentos de minorias, mas a situação não é simples e a interpretação não pode ser linear. Estamos vivendo um momento contraditório. Os direitos conquistados pela comunidade LGBT foram facilitados pelo momento em que vivemos, mas são o resultado de lutas e movimentos sociais, pelo que não deveriam ser considerados como objetos de consumo, nem pelos sujeitos, nem pelas ciências que fundamentam nossos critérios valorativos. 6 “Dialético”, afirma, “é um termo que tem como característica engendrar, sem o querer ou o saber, o seu contrário” (FERRY, 2007, p. 55).

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A tendência, penso, é que, em maior ou menor tempo, de uma forma ou de outra, o “matrimônio igualitário” seja aceito e legislado na maioria das nações do Ocidente. Nossa observação e interpretação dos fenômenos sociais não se inspiram em preconceitos normativos. As categorias criadas na modernidade com relação aos gêneros: hetero, homo, bissexual, transexual, etc., podem até ter data de vencimento. Os caminhos aos que conduzirá a sociedade para a existência de “famílias gays” são ainda desconhecidos. O psicanalista deve conhecer e responder à subjetividade de seu tempo, sem fazer juízos apressados.

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Mulheres travestis: queerizando ressignificações culturais e políticas Adriana Sales Wiliam Siqueira Peres

Ancorados em pesquisa realizada anteriormente, em nível de mestrado (SALES, 2012), que problematizou questões das meninas travestis que estavam matriculadas na rede pública básica de ensino de Mato Grosso, retomamos, aqui, algumas reflexões acerca das definições que até então eram trazidas para o cenário das ciências humanas. Há a necessidade de ensaiar a continuidade, sempre reflexiva, das problematizações e impressões que dizem respeito às pessoas que vivem as travestilidades em seus corpos e relações existenciais. Em tal pesquisa (SALES, 2012), estão em foco definições de pesquisadores que hoje são notáveis referências para este nosso diálogo e ainda a conceituação de travesti que foi aprovada pelo coletivo no Encontro Nacional de Travestis e Transexuais da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)1, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 2009, que, intencionalmente, era a que mais se aproximava da realidade das pessoas que vivem as travestilidades e que é a reconhecida pelo movimento social organizado das pessoas travestis no Brasil. Trata-se de um conceito que define a travesti enquanto uma identidade de gênero política que não se reduz nem ao masculino nem ao feminino, afirmando sua multiplicidade humana; corrobora com a ideia de pessoas que vivem na perspectiva das mulheres, mas que não negam elementos do universo dos homens biológicos, pois são meninas de peitos e pênis que se apresentam enquanto “elas”, mas que são plurais nas possibilidades de se expressarem enquanto pessoas trans. Com toda a dinâmica que a vida nos proporcionou, inclusive discussões e estudos desenvolvidos em um curso ofertado como disciplina do doutorado em Psicologia da UNESP, Campus de Assis-SP, propomos nova pesquisa, com a qual sentimos a necessidade de ressignificar algumas questões sobre as travestis e, numa perspectiva política queer, disparar novas possibilidades de existência dessas pessoas que vivem num gênero feminino, porém com 1 Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Fundada em 1993 por um grupo de pessoas travestis e transexuais, com o intuito de discutir a epidemia da AIDS. É uma Entidade não governamental de representação nacional com participação em várias instâncias governamentais de discussão para as políticas públicas.


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marcas que destoam de algumas teorias identitárias ou que demarcam estas identidades; assim, é importante ampliar as várias nuances que distinguimos na vida das travestis a partir do que elas apresentam nas relações e manifestações de suas corporalidades, sexualidades, amores e prazeres, principalmente em sua dimensão política. Buscamos aqui demarcar as expressões estilísticas, imagéticas e discursivas dos corpos e das manifestações humanas dessas mulheres travestis na premissa de acrescentar ao bojo das conceituações já existentes, no campo das ciências sociais e humanas, elementos que corroborem vastas, subjetivas, possibilidades de existir, de viver os prazeres e desejos, de marcar territórios, sendo como se é e principalmente dando voz a essas pessoas que sempre foram excluídas e marginalizadas na história da humanidade. Não queremos falar numa perspectiva de vitimização da existência, mas na prerrogativa de que, mesmo com todas as adversidades apresentadas nas relações sociais, sexuais e de gêneros, essas pessoas sempre confrontaram as negativas que lhes foram apresentadas e conseguiram sobreviver e, hoje, conseguem, graças aos seus astutos modos de militâncias contínuas, pessoais e coletivas, construir novas possibilidades de vida para serem felizes e reconhecidas como cidadãs. Neste sentido, precisamos trazer à tona alguns conceitos teóricos que subsidiaram, naquele momento, a referida dissertação (SALES, 2012), somando-os a outras questões teóricas e metodológicas atualizadas pela perspectiva queer, para que possamos, desta maneira, cartografar como as pessoas compreendem e marcam os corpos em dissidências de sexo e gênero, na tentativa de garantir um mapeamento mais amplo das mulheres travestis e dos elementos que as constituem, os quais fazem parte de uma naturalidade biológica, acrescida de constructos sociais e culturais e também de experiências de vida que dão o tom de como e quem pode ser, estar e circular no mundo. As configurações dessas mulheres extrapolam toda e qualquer potência de expressão de gênero reduzida ao binário e universal, para transbordarem corporalidades, sensações, imagens e estilos de existência, para além do que se espera na sociedade com padrões heteronormativos e falocêntricos, bem como lançam provocativas maneiras de apresentar-se como mulheres. Mulheres com pênis útil e funcional que, muitas vezes, como podemos observar na pesquisa citada neste ensaio, marcam e dão valor a quem são e como são vistas e desejadas nas relações amorosas, sexuais, afetivas, sociais e culturais.

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Para essa empreitada, colocamos em diálogo, então, Adriana Sales (2012), Thiago Duque (2009) e Wiliam Peres (2002; 2012), como perspectivas teóricas que contemplam não somente pesquisador@s, mas também travestis, por se apresentarem muito democráticos nos discursos de seus trabalhos e inferências sobre as questões pautadas e por tentarem garantir, numa visada muito republicana dos direitos humanos e sexuais da existência, para além das declarações vigentes binarizantes, relações científicas com correntes e posturas de teses que dão suporte para uma dimensão queer das mulheres travestis. Não podemos deixar de trazer, então, as definições que iniciaram todo o processo de inserção no mundo das pesquisas científicas, não para compreender quem são estas pessoas, mas para oferecer novas e/ou outras significâncias para a existência das travestilidades. Então, afinal quem são as travestis? Para seguir este questionamento, é necessário desfazer as amarras e trilhar caminhos nômades, novos, movediços, visualizar os corpos como espaços territoriais geopolíticos cheios de discursos e figurações, que traduzem tempos e ciclos de formação muito mais complexos e dinâmicos do que se imagina. Ser travesti pode configurar um processo de construção identitária do feminino e do masculino que demanda uma pluralidade de contextos que se inscrevem sobre o corpo e de imagens que possibilitem situá-la nas várias faces de ambientes e contextos sociais, políticos e culturais que a privilegiem enquanto ser. Não considerar somente os significados etimológicos da palavra, como nos dicionários da língua portuguesa e em publicações que tematizam as travestilidades em perspectivas patológicas, de prevenção da Aids, ou de qualquer outro sofrimento mas tomar, na fluidez das produções de sujeitas, nessas construções das subjetividades, principalmente da travesti, as imagéticas múltiplas das corporalidades. Para Benedetti2, concentrar-se na discussão da identidade social das travestis é em si uma manifestação de validade da afirmação de que este grupo social já está incorporado na sociedade brasileira. Para Hall (2006) e Giddens (2002), as sociedades modernas são sociedades de mudanças constantes, rápidas e permanentes não contemplando mais, no caso das novas expressões sexuais e de gêneros que surgem com as travestis, o tradicional, no qual o passado é venerado e os discursos normatizadores são valorizados porque contêm e perpetuam as experiências de gerações. Vale lembrar que 2 Trabalho apresentado no GT “Corpo, Salud y Dolência”, na II Reunion de Antropologia del Mercosur, Piriápolis, novembro de 1997.

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essas gerações, na maioria das vezes, são reduzidas ao modelo da heteronormatividade absoluta e falocêntrica, logo, reducionista ao sistema sexo/gênero/ desejo/práticas sexuais, apresentado por Judith Butler (2003), que impõe como modelo de crença geral que se uma pessoa nasce com sexo de macho, seu gênero necessariamente será masculino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual ativa, e, se por acaso nascer com sexo de fêmea, seu gênero será feminino, seu desejo heterossexual e sua prática passiva. Trata-se de reducionismos essencialistas que negam a emergência da diversidade sexual e de gênero, do respeito às diferenças humanas, pois tratam essas variações como monstruosidades, como aberrações ou ainda como abjeções, ou seja, não lhes conferem o direito a ter direitos, de serem cidadãs e cidadãos. Os discursos e marcadores sociais do feminino, para a mulher ou a menina travesti, implicam que carregue em si uma estética vinculada ao depreciativo social e cultural, pois é um sujeito masculino – homem – que pretende expressar uma figura feminina, mas não mulher, estabelecendo provocações, desestabilizações, incômodos, que resultam numa negociação que não é meramente idiossincrática, mas uma desestabilização das organizações das normas sociais, sexuais e de gêneros binários que permeiam e regulam os contextos sociais, nos quais as travestis se inserem para além do mundo marginal, o qual desponta para readaptações dos aspectos culturais hegemônicos. Quando falamos em cultura nos apropriamos da definição apresentada por DaMatta3 (1987), que nos esclarece que esta remete a um código que permite a indivíduos diferentes, com diversos interesses, compartilharem normas e regras, de modo que possam viver juntos numa mesma sociedade. É nesse processo que se constituem os modos de ser dos sujeitos e sujeitas, os modos de ser homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, travestis e transexuais. A cultura, no sentido antropológico, permite a produção de relações sociais que fornecem normas que dizem respeito aos modos, mais ou menos apropriados, de nos comportarmos e nos expressarmos diante de certas situações existenciais, independentemente da valoração moral dessas relações, ou seja, a cultura como código é algo que está dentro e fora de nós, como as regras de um jogo, que permitem o entendimento da ação de cada jogad@r. Assim, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra) compõem aquilo que permite relacionar as pessoas entre si e a sociedade em que vivem. 3 Texto componente da coleção Sociedade e Contemporaneidade da Universidade Luterana do Brasil de 1998.

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É nesse processo que se pode permear a constituição das novas possibilidades humanas, como as mulheres travestis, num desencadear cultural e político de seus comportamentos e nos comportamentos dos seus alheios, dando sentido a uma real percepção de si e de sua cultura, mesmo que não tenha validade perante os grupos que a cercam ou os padrões estabelecidos vigentes, pois: uma vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica, uma ação que significa, como a fonação da fala, o pigmento na pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música, o problema se a cultura é uma conduta padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma forma perde o sentido (GEERTZ, 2011, p. 8).

Dessa forma, os parâmetros que vão emergindo nas relações dos sujeitos e sujeitas, somados às suas crenças, vão dando o tom de sua constituição e formação humana e sua cultura que, segundo Geertz (2011), é pública porque o significado o é, logo está, na contemporaneidade, em colapso ou em crise. Como constata Hall (2006), tanto a sujeit@ quanto o seu grupo sofre impactos nas mudanças decorrentes de vários processos, como o da globalização em curso, pois esta estaria “deslocando estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que forneciam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (GEERTZ, 2011, p. 9). Para as travestis, esses elementos todos, por mais que pareçam democráticos, proporcionam um processo cultural de rejeição contra elas, deixando sua autoestima, sua dignidade, sua percepção e seus sistemas de pensamentos, enquanto sujeitas culturais e sociais, comprometidos. Segundo Peres (2002, p. 11), “desta forma, a socialização dessas pessoas vai se distanciando de uma socialização esperada pela sociedade patriarcal e heterossexista”, que as exclui e nega sua existência, “impondo as mais diversas formas de exclusão social, econômica, cultural, sexual e de gêneros, que, por sua vez, acarretam sofrimento psíquico e desvalorização de si”. Assim, essas sujeitas não perdem sua complexa constituição, mas se agregam a esta novos ingredientes, através da interação com o mundo exterior e as possibilidades de ser a que elas se expõem ao longo da vida. Dessa feita, todos os sujeitos e sujeitas, incluindo as pessoas Trans4, através de suas práticas sociais sexuais e de gêneros, fazem cultura, e isso permite comparar culturas diferentes como entidades equivalentes, superando a visão hierárquica de 4 Sigla que abarca todas as pessoas com identidade travesti, transexual e transgênero.

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culturas superiores e inferiores. Logo, a cultura é viés importantíssimo para significarmos as diferenças entre as pessoas, pois para Scruton (1986): A condição de homem [mulher]5 exige que o indivíduo, embora exista e aja como ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar.

Mesmo porque essas possibilidades subjetivadas de ser uma mulher travesti, construídas culturalmente, moldadas em formas não similares aos padrões dominantes do mundo ocidental masculino, provocam contraditórias situações nos seus grupos de convívio, pois suas formas, seus corpos e suas identidades políticas desestabilizam o que se quer como inteligível e aceitável, impossibilitando espaços para a fuga de reconhecimento nas relações e discursos de poder. São corpos que marcam o que se quer ser, como se quer ser e o tom de expressão de gênero que se busca. São sujeitas que constroem seus próprios sistemas de significados, ambientes subjetivos e possibilidades múltiplas de transformarem-se constantemente. Essas relações, estabelecidas para que os poderes e discursos frente às possíveis expressões de gêneros, para além de serem consideradas como uma estrutura mental fixa, estática, estável, binária e universal, sem relação com o contexto sócio-histórico, político e cultural de formação humana e individual, posto que são socialmente constituídas, dinâmicas, instáveis e dependem da situação ao assumirem uma posição de conveniência (BARCELOS, 2010, p. 18), ressaltam sua cultura e todo o processo de significações. Como referência de base, tomamos, aqui, o argumento de cultura que, para Geertz (2011, p. 9), consiste em estruturas de significados socialmente estabelecidas, nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais de conspiração e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles, não é mais do que dizer que esse é um fenômeno psicológico, uma característica da mente, da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou o que quer que seja, ou dizer ainda o que é tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a classificação dos vinhos, a noção de uma praga. 5 Palavra acrescida à citação para visibilizar os movimentos feministas e garantir autonomia para a mulher enquanto sujeita.

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Esta concepção nos leva a apostar que um povo não existe sem sua cultura. As pessoas nascem, crescem, vivem e se relacionam através dessas influências e de todo o conjunto de características por elas gerado, que denota sua própria expressão de existência, particularizando-as e diferenciando-as em relação aos outros componentes desse grupo, inclusive quanto aos modos de subjetivação que se oferecem enquanto produção. Entretanto, de modo complementar, precisamos pensar a cultura em sua multiplicidade e seus jogos de saberes, poderes e prazeres, que se alternam entre valores, sentidos e narratividades que podem ter sido produzidos pelas instâncias do poder do Estado, logo de normatização, assim como de contrapoderes e resistências a esses mesmos poderes que se mostram como hegemônicos e que produzem novas possibilidades de existências que favoreçam as diversidades humanas, que compõem uma miríade de possíveis expressões de classes, sexos, sexualidades, gêneros, raças/cor, etnias, gerações, enfim, de estilísticas dos modos de viver. Dessa maneira, as masculinidades e as feminilidades delimitam o grau de produção ou não, da qualidade ou não de nossa produção pessoal e social; “ser homem e mulher ainda está ligado à sua potencialidade de produção”, uma produção de prazeres, produtos, renda que tenha poder de compra; “O movimento contrário seria: uma incapacidade de produção, uma incapacidade de produzir prazer e de produzir produções” (RIBEIRO; SILVA, 2010, p. 6). Para Hall (2006, p. 7), “esses referenciais de identidade unificada e estável têm se fragmentado em várias identidades, muitas vezes contraditórias e mal resolvidas, como resultado de mudanças estruturais e institucionais contemporâneas”; desse modo apresenta-se a construção da sujeita travesti, pois essas “identidades organizam os significados, os papéis e as funções sociais dos sujeitos. Assim, toda e qualquer identidade é construída”. Apesar dessa confluência de significância, tanto sobre cultura quanto sobre expressões ou identidades de gênero, há teóricos, como Lave e Wenger (1991 apud BARCELOS, 2004), que consideram aprendizagem e identidade como inseparáveis. Busca-se problematizar as várias possibilidades de sentidos que as marcas de poderes e saberes possuem para a construção das corporalidades, desejos e prazeres travestis, suas relações com a escola e, através das narrativas dessas sujeitas, demonstrar a significativa importância em problematizar como essas pessoas negociam e vivem o tempo todo sua existência cultural. Soma-se ainda a teoria de Freud, segundo Hall (2006, p. 36), para a qual nossas identidades, nossas sexualidades e a “estrutura de nossos desejos são

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formados com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente”, que funciona de acordo com uma lógica muito diferente daquela da razão, e que “arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada”. Assim, os jogos de poderes e os discursos têm estreita relação com os afetos e sentimentos, uma vez que há afetividades nos pensamentos. Estas têm influência grande no que tange aos aspectos dos saberes, das construções de conhecimentos, das manifestações das sexualidades e valores que se estabelecem enquanto critérios para reconhecimento dos conceitos da vida humana e suas possíveis expressões. Para Hall (2006, p. 37), “a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente”, não se desenvolvendo impregnada dos aspectos biologicistas da existência, mas, para além, posto que é nas relações que se dão as etapas de formação das pessoas, inclusive o surgimento da expressão “travesti”. Pactua-se um processo que precisa ocorrer de maneira rápida e amplamente subjetivada, porém, “uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado”, e até muitas vezes situado, “a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida”; essa sujeita travesti refuta os elementos binários de ser homem ou mulher que lhe são oferecidos enquanto ser e se propõe a ir mais além. Assim, sua expressão travestida galga caminhos que ampliam as referências normatizadas de sexo e de gênero, tornando-se desejada pelos grupos heterossexuais que se mostram friendly às diferenças humanas positivadas. “Ela torna-se politizada” (HALL, 2006, p. 21). Com a inserção crescente das travestis em outros espaços sociais, que não mais somente os de prostituição, uma ruptura é produzida nos estigmas que sempre a delimitaram em espaços sociais/sexuais diferentes do mundo da normalidade heterossexual e de suas convenções ditas aceitáveis. Os estereótipos constituídos socialmente, de sexo, sexualidades e gêneros, as levam a provocar inúmeras inquietações que vão sendo internalizadas nos grupos específicos e reagindo perante as diferenças de valores, os quais foram nivelando os grupos nas escalas de desigualdades dos entremeios socioculturais. As ordens das construções de sexo/gênero categorizam uma nova divisão das possibilidades de existência humana, pois, como afirma Bourdieu (1999, p. 17): A divisão entre os sexos parece estar na ordem das coisas [...] ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado [...] em todo o mundo social, e em estado incorporado, nos cor48


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pos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação.

Tudo isso se soma sempre a um processo que tem por objetivo ocultar, apagar e excluir das esferas dos direitos sexuais e humanos as manifestações homossexuais, as sexualidades disparatadas e as expressões dissidentes de gêneros que expressam diferentes marcas de desejos e prazeres. De acordo com Peres (2002, p. 11), “se a expressão da homossexualidade já é vivida como estranha e desestabilizadora da moral e dos bons costumes”, principalmente nos espaços institucionalizados, na escola, por exemplo, “na sociedade contemporânea a emergência da estética travesti denuncia uma crise da binaridade dos gêneros”, que já confronta alguns elementos arraigados socialmente e culturalmente, como as cores azuis e rosas de meninos e meninas, “colocando em xeque todas as referências do que possa ser considerado masculino ou feminino, embaralhando os códigos de inteligibilidade, de modo a reivindicar novos olhares e novas significações”. Assim, a definição de travesti que nos parece mais particular, a qual assumimos por nela crer, por possibilitar que se aproprie da construção desse gênero humano feminino, é a construção de um gênero que se subjetiva, primeiramente, como apropriação de si, de seu corpo, com os outros e com as tensões que pode proporcionar; que se vale de novas atitudes, comportamentos e expectativas para além do que a sociedade valida ao que é ser homem ou ser mulher. É um processo íntimo e subjetivado que deve contemplar suas necessidades enquanto sujeitas de desejo e satisfazer aos anseios de manifestações não somente de suas sexualidades, mas de uma expressão que materialize uma forma feminina plural. Diante disso, do contexto de problematização dos gêneros em função das práticas sociais em que está imbricada, a sociedade não pode ser mais vista como estática, unificada e delimitada, reduzida a uma perspectiva binária e conservadora. As mudanças constantes a fazem sempre diversa, nas relações e nos discursos de seus sujeitos enquanto elementos centrais e coadjuvantes desse processo, advindos do jogo de forças de poderes, saberes e prazeres que lhes são peculiares. Ela é abduzida por forças que emanam dela própria e do externo que a constitui e potencializa seus sujeit@s, pois, ainda segundo Hall (2006), ela está constantemente sendo descentrada ou deslocada por forças fora de si mesma, como se dá o processo de ser travesti. Queremos apostar em subjetivações múltiplas que participam da feitura dos modos de ser travestis, das diversas referencias possíveis de ser mulher e se compor 49


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com as feminilidades, e, isso por sua vez, nos forja para ao invés de pensar em travesti, falarmos de travestilidades, das infinitas formas de ser travesti. Logo, ser uma mulher travesti é ampliar os diversos elementos que nos constroem e nos reduzem ao biológico e sua fisiologia funcional, pois para além da biologia existem as dimensões da cultura, da política e dos direitos que contribuem para a emancipação dessas pessoas, isto é, não apenas nas conceituações básicas de cada saber engessado em seus pressupostos binários e universais, mas na transmutação de valores ultrapassados, que possa contribuir para que as travestis sejam reconhecidas tanto pela sociedade como um todo, quanto por seus pares, com uma particularidade; de um mundo imagético que as promova na mais profunda singularidade de ser. Tal possibilidade existencial concebe, nessas sujeitas, problematizações tão concretas que se tornam abstratas para a mera percepção inicial dos outros, desinformados que estão a sua volta, que não têm particularidade com as discussões apresentadas pelo movimento organizado de pessoas travestis e transexuais, com pesquisas que positivam as travestilidades e com discursos que não seguem os padrões homogeneizados de identidades heterossexistas e falocêntricas que não dão espaços às novas e possíveis expressões desses gêneros. Dessa feita, todas as relações que emanam dessas sujeitas provocam nos seus cotidianos socioculturais indignações por parte daquela sociedade moralista e conservadora, que ainda não reconhece e não tem conhecimento dessas novas formas de vida, ou mesmo que as conhece, mas que as rejeita e as estigmatiza, o que denuncia uma sociedade engessada pelo modelo normatizador do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais e aponta a necessidade urgente de revisão de valores para que se consiga acompanhar o novo mundo que anuncia diversidades humanas possíveis e que merecem respeito e solidariedade política. É uma total desestabilização de uma cultura padrão heterossexual machista. Wiliam Peres (2002, p. 10), em seu estudo etnográfico com grupos de pessoas LGBTs6, especificamente com travestis, afirma que “esta sociedade tem sido composta por muitas figuras contemporâneas que são construídas a partir de relações” que vão para além das estipuladas pelos grupos majoritários heterossexuais e “que inventam outros modos de ser no mundo”. Ser uma mulher travesti pode ser, nessa prerrogativa, o desmanche das binaridades 6 Sigla que representa as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

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heteronormativas; e inclui o gênero e a expressão travesti como algo não marginal e como traço constitutivo para a identidade política dos sujeitos. Essas afirmações dão o tom dos limites para essas expressões das sexualidades e dos gêneros e estabelecem uma refutação do até onde se pode ir em cada uma delas, ampliando as variáveis da potência de ser travesti. Essas sujeitas falam de lugares muitas vezes não visíveis e em tempos que não são inteligíveis. As histórias individuais se tornam muito particulares e os tempos de cada processo intercalam-se aos padrões cronologicamente entendidos, aos tempos coexistentes em relação às epistemes da vida travesti. Para Peres (2002, p. 10), “esta escolha por este modo de vida tem sido cada vez mais expressada por pessoas que inicialmente se deparam com a expressão de suas homossexualidades”, mesmo que muitas vezes sem reconhecê-la internamente, em seu eu imagético e ficcional feminino, de mulher e “derivando-se para uma singularidade outra, caracterizada por indumentárias e adereços contrários à sua determinação de sexo biológico”. A formação de uma mulher travesti e sua complexidade surgem nas variadas fases de formação humana, na infância e/ou na adolescência e até mesmo na etapa adulta das sujeitas, mesmo porque essa formação enquanto modos de subjetivação da sujeita mulher travesti se dá de forma permanente; e a sociedade assume um papel crucial para a construção desses processos ou alienação desta possibilidade de reordenação do sexo/gênero/desejo. Os espaços socioculturais e políticos formativos constroem uma amostra do universo da comunidade onde essas pessoas se inserem. De acordo com Hall (2006), as transformações associadas à modernidade libertaram o sujeito de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Dessa forma, espaços como a escola são instituições que lidam com transmissão e construção dos saberes, promovem o respeito às diferenças e contribuem com a defesa dos direitos humanos e da cidadania, são lugares privilegiados para pensar em construção de práticas pedagógicas e de currículos que garantam a afirmação das expressões das sexualidades, dos gêneros, particularmente das travestis em sua positividade. Seus corpos, que também estão na escola, se inventam para novas relações que, embora marcadas pelas demandas sociais e culturais que influenciam a construção de uma estética corporal feminina (PERES, 2002), precisam, urgentemente, de olhares mais diversificados, menos preconceituosos para com essas sujeitas culturais e sociais. Esses sistemas, social e cultural, acrescidos das relações e discursos que englobam a figuração dessas pessoas, fazem com

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que as travestis acabem por ficar à mercê de uma estrutura cultural que não contempla suas necessidades e adversidades, estabelecendo conflitos internos e externos sobre sua formação humana e seu papel na sociedade. Por outro lado, os movimentos sociais de travestis e transexuais sugerem novas pautas e agendas emancipatórias que precisam ser acatadas como pistas para uma escola que se diga laica e inclusiva. Ainda que seja paliativo, para inicialmente poderem estar nesses espaços acadêmicos, escondem-se ou são escondidas atrás de figuras politicamente heterocorretas e apresentam barreiras em se reconhecer e ser reconhecidas. Negam-se a se apropriar da construção de uma expressão de gênero que realmente ou verdadeiramente lhes cabe, causa-lhes felicidade e sensação de acolhimento; de fato, podem ser plurais e estar entre os que as validavam enquanto masculino e feminino. As travestis inauguram um hibridismo de gêneros que demonstra as possibilidades de romper com os binarismos e promover uma cultura pautada na convivência pacífica e respeitosa entre as diferenças. Dessa maneira, Benedetti (1997) aponta que talvez o novo aqui não seja a travesti ou qualquer dos personagens que lhe rodeiam e lhe constituem, não somente, mas antes a cada vez maior visibilidade dessas sujeitas na sociedade abrangente e sua inscrição popular e social como sujeitas reconhecidas, que cada vez mais intensificam sua presença nos entremeios até então heterossexuais, com os quais todos os habitantes das cidades, em especial seus conviventes, mantêm relações cotidianas de intercâmbio e influência dos discursos e dos valores que já não são mais absolutos, logo, transitórios, efêmeros e circunstanciais. Existem relações que buscam negar essas sujeitas, com suas estéticas aleatórias aos processos binários de sexualidade, com corpos voluptuosos femininos, que possuem um pênis, utilizado para o prazer, e que podem explorar todas as formas deste corpo fluído, com direitos básicos de ir e vir, políticas públicas que as contemplem de fato e que não estereotipem de maneira pejorativa essa estilística de viver. Segundo Schneider (2000 apud PERES, 2002), A escolha por essa estética, por esta estilística da existência, se defronta com resistências, discriminações e sofrimentos, que nos levam a refletir a respeito da dor que é experimentada e sofrida pelas pessoas que se decidem por essa forma de existir no mundo, ousando ultrapassar os limites de seu próprio corpo, em função de sua felicidade. 52


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Logo, a luta pela existência se torna condição para elas, para nós. E não só o existir pelo existir, mas uma luta para ser feliz. São processos de relações que desconstroem o que se compreendia como identidades sociais e de como os fatores temporais, corporais e discursivos implicam para a travesti um ressignificar sobre os processos das sexualidades, pois seus tempos, seus corpos, seus desejos produzem ou induzem percepções que problematizam todas as novas formas de existência. Nesse aspecto, potencializar positivamente a mulher travesti é para além de necessário, em favor de uma visão ampliada dos conceitos que esta traz e se faz no delinear de sua vida por não pertencer, emergir-se, dum tempo, um corpo pré-estabelecido pelas práticas heterossexuais. Uma adolescente travesti não possui, necessariamente, o mesmo processo, o mesmo tempo, o mesmo corpo de uma adolescente nascida biologicamente mulher, pois, seus elementos de formação agregam várias questões que engendram suas expressões espaciais e temporais. Para Peres (2002, p. 11), “a expressão travesti no cenário contemporâneo se esbarra em um modo de organização social, comprometido por valores e significados culturais que se orientam pelas estruturas do patriarcalismo”, é viver o inaceitável. Porque, nessa dimensão de mapeamento, os resultantes dos processos culturais dessas sujeitas desfazem a sociedade machista vigente e seus códigos e discursos de moralismos heterossexuais. Ser uma mulher travesti é romper as barreiras identitárias que ensaiam nos colocar neste ou naquele gênero. É viver de maneira que os desejos, prazeres, discursos e imagens que contemplam estas expressões de gênero, que também não devem ter padrões únicos, não marquem negativamente estas sujeitas. É trazer para o cenário, neste caso das produções científicas e acadêmicas, as experiências de vida que dão certo, sempre deram e continuarão a dar. Pois, como se pode observar nas próprias histórias de resistências dessas pessoas, notamos como se sentem realizadas. Que mesmo frente à tão difícil tarefa de existir numa sociedade conservadora e excludente, elas conseguem se expressar, manter, existir, se relacionar. E, principalmente, elas conseguem ser felizes.

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Gêneros, sexualidades e políticas cognitivas na escola Leonardo Lemos de Souza

Este texto se propõe a disparar problematizações sobre as sexualidades e os gêneros na escola. Sua elaboração se deu a partir da necessidade de produzir, na forma de texto, um conjunto de acontecimentos e encontros produzidos ao longo de minha atividade como pesquisador e docente da universidade, envolvido com as questões das diversidades de gêneros e sexuais na escola. Mas preciso antes complementar esta posição. Como em Donna Haraway (1995), o que se escreve aqui tem a perspectiva de um conhecimento situado. Significa que estão imbricados na produção deste conhecimento elementos (sociais, históricos, biológicos, afetivos, econômicos etc.) que me atravessam e privilegiam as conexões em rede. Assim, como as feministas, quero me posicionar desde um lugar e de seus desdobramentos nos contextos em que se põem a circular. Ao mesmo tempo, este conhecimento não trata de um relativismo, que cairia na armadilha das identidades; e não é objetivista, que de outro modo seria a favor de uma pretensa neutralidade e assepsia epistêmica na busca da Verdade. Assim, quem escreve está no gênero masculino, de sexualidade dissidente da heteronormativa, pai, professor, pesquisador de universidade pública, que estuda e realiza ações na escola de educação básica, tendo o tema gêneros e sexualidades como principal preocupação. Com Haraway (1995), ainda assumo a necessidade de um conhecimento a partir de posicionamentos móveis e do distanciamento apaixonado. Por isso, de onde pesquiso e escrevo, como atividade e ofício, me coloco momentaneamente num lugar, em iminente deslocamento. Minha tentativa de conhecer e criar conexões e redes exige certo distanciamento, que está na iminência de se romper, pelo envolvimento encarnado com o que se põe a conhecer. O texto aqui em processo tem a intenção de disparar conexões, promover desconstruções e ao mesmo tempo ser contestatório sobre os sistemas de conhecimento e as maneiras de ver (HARAWAY, 1995) produzidos e gestados pela escola acerca das diversidades de gêneros e sexuais que fogem da norma. As pretensões contidas nele se desenrolam diante de um conjunto de


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experimentações de quem escreve como ex-aluno da educação básica, diante das formas de violência que se fundamentam em diversos marcadores, como as sexualidades, os gêneros, classe social, raça/etnia e idade. Também diante de experimentações, como pesquisador da escola e docente da universidade, que produzem e gestam estas violências. A esperança é que, de alguma forma, o que se denuncia e se expõe aqui possa transformar ou disparar um processo de deslocamento, mudar o foco e, assim, movimentar os saberes e as práticas para ver desde lugares em que a existência do que foge da norma é viável e vida potente. Trata-se de mapear políticas cognitivas (KASTRUP, 2008) sobre as diversidades sexuais e de gêneros na escola. Por cognição entendo os processos de conhecer e seus efeitos. Distancio-me dos modelos tradicionais cognitivos que tratam a cognição como processamento de informação vinculado à descrição ou à resolução de problemas, a sua vinculação à ideia de conhecer como representar a realidade (como cópia do real), fundada numa relação intencional e transcendente sujeito e objeto. Aproximo-me do conceito de cognição que dá destaque à processualidade do conhecer, ressaltando sua característica inventiva (não apenas resolutiva) na qual sujeito e objeto são indissociáveis. Quando tratamos de abordar as políticas da cognição envolvidas na escola acerca dos gêneros e sexualidades, estamos interessados em destacar que conhecer (produzir conhecimento) envolve uma posição em relação ao mundo e a si mesmo (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008). A cognição passa a ser um campo de problematização da produção de subjetividade (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008). Entendemos que nos coletivos instituições/grupos/movimentos se definem modos de conhecer e conhecimentos (estereótipos, crenças, valores) sobre os outros (mulheres, crianças, jovens, gays, lésbicas, transexuais etc.), criando representações/cópias/padrões e disparando políticas cognitivas que cercam as subjetividades inventivas e potentes. Aí é que a cognição se encontra com a subjetividade – e a subjetividade contemporânea. No contemporâneo, no entre tempos, estão em jogo os atravessamentos que estão envolvidos em processos de subjetivação dos sujeitos de gêneros, sexualidades, idades, raças/etnias, classes sociais, que se compõem como diferentes e fora da norma. Vale ressaltar que é pelo discurso, pelo jogo da linguagem no campo das relações de forças e da produção de subjetividades, que vejo os estudos dos marcadores de gêneros, sexuais, etários, de raça/etnia e classe social, por exemplo, em suas imbricações com a violência, a discriminação e a exclusão

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na educação. Entendo os discursos como narrativas, enunciações, práticas que não estão localizadas na unidade de um sujeito (FOUCAULT, 1969; 1987 apud TEDESCO, 2003), mas sim num entrecruzamento de um conjunto de forças e linhas de intensidade que produzem realidades (um coletivo de enunciações). Desde esse lugar, as produções discursivas podem criar um fluxo de repetições e de reproduções de realidades opressivas, cerceadoras de sentidos e reclusivas; ou podem se desviar, tomar outros rumos, que seja o da inventividade e da produção de subjetividade. Enquanto suporte teórico, complementando os autores já citados, me incluo nas perspectivas epistemológicas que promovem críticas à modernidade em seu modelo de ciência e que trazem à cena a complexidade da vida, do sujeito, da posição do pesquisador, que produz um conhecimento situado, que tem implicações éticas e políticas. Inicio o itinerário com algumas questões/problemas sobre as experiências com o tema das diversidades sexuais e de gêneros na escola que nos levaram a tecer problematizações sobre o que a escola tem produzido e sob quais operadores ela se organiza: O primeiro grupo de perguntas é referente à ética e aos conhecimentos. A escola é espaço de construção de conhecimentos e sociabilidades? Qual o papel dos conhecimentos construídos na escola? Quais conhecimentos? Quais políticas cognitivas a escola gesta? Qual a dimensão ética com que a escola pode/deve se ocupar? Um segundo grupo de questões se refere a relações entre as primeiras e os gêneros e as sexualidades. Qual a potência de inventividade da escola em se redefinir, mudar de foco, se atrelar ao cotidiano? Onde os gêneros e as sexualidades se inserem nas políticas cognitivas gestadas tradicionalmente pela escola? Não vamos dar conta de responder a todas estas questões neste breve texto, mas elas servem para inquietar e disparar o desdobramento de outras investigações e pensamentos sobre o tema. Como dito inicialmente, minha proposta, inicial, é problematizar o que denominamos gêneros e sexualidades (o plural é necessário e afirma já uma posição) como conhecimentos que circulam no espaço escolar. Para isso, cabe esclarecer que o que chamo de circulação deve se dar no campo de produção de discursos e de sentidos sobre as diversidades sexuais e de gêneros pelas pessoas que fazem o espaço escolar, seja na perspectiva da normatização ou da transgressão. Com isso, a dimensão da expressão (e

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também do jogo de palavras) “im/possível” transita (ou melhor, atravessa) entre o campo das potencialidades ou das inviabilidades (impostas por modelos normatizadores). Ilustrarei essas ideias com algumas cenas do cotidiano escolar, em narrativas de jovens travestis, de professores e de jovens, sobre a homofobia na escola. Bakhtin (1997) esclarece melhor essa perspectiva, dado que em suas ideias está presente a superação da distinção entre subjetivo e objetivo. No campo da linguagem o discurso é polifônico e, portanto, atravessado por uma multidão de vozes na qual a origem não é o mais relevante, mas sim os efeitos que produz. Portanto, trata-se de assumir a inseparabilidade da linguagem e das produções sociais humanas. A linguagem é atravessada pela história e pelo imaginário cultural, bem como pela dimensão de alteridade/ identidade na produção de realidades. Aquilo que não se diz e aquilo que se diz compreendem espaços de possibilidades de existência em diferentes campos relacionais; neste caso cabe entender como os gêneros e as sexualidades circulam, produzem sentidos e são produzidos no espaço escolar. Iniciando com a memória do campo de estudos por mim desenvolvido, minhas preocupações se voltavam para as formas como jovens produziam estratégias diante da situação de homo/transfobia na escola. Num estudo, com produções escritas de 400 jovens, pudemos mapear algumas estratégias diante de situações de homofobia. A história simulada refere-se a um/a jovem que sofre discriminação por seu comportamento dissidente da heteronormatividade e ao dilema que seu/sua colega enfrenta diante da necessidade de se posicionar eticamente sobre a situação. Outra pesquisa, com professores, apresenta a mesma situação simulada, em que professores devem agir diante da discriminação de alunos/as em relação a seus colegas dissidentes da heteronormatividade. Nessas pesquisas mapeamos diferentes perspectivas desses atores, mostrando as narrativas sobre mitos e estratégias de negação e desvio do tema do enfrentamento à homofobia. Noutras pesquisas que recentemente orientei, pude conhecer as estratégias de jovens meninas travestis para sua afirmação no espaço escolar e na sua vida cotidiana. Vamos começar por algumas mensagens dessa investigação. Em sua pesquisa, Sales (2012) pôde destacar algumas cenas da circulação das meninas travestis em escolas que apresentam a travesti entre mundos de desafios: nome social, futebol e banheiro.

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1. Nome social (Dani): Bom. No começo eles ficavam muito espantados, mas com o dia-a-dia, que você está todos os dias ali, você está todo o dia convivendo. Tão conhecendo sua intimidade. Você vai vencendo isso, eles vão se acostumando. Até os professores mesmo se acostumam. Muitos professores, na hora da chamada, não chamam nem pelo nome civil nem pelo nome social, eles chamam de Dani. Alguns, nem o nome chamam. Olham para você, vê você ali presente e marcam ali sem chamar seu nome da chamada e, assim, os meu colegas, eles aceitaram muito bem. Já a coordenação, a direção da escola, ficaram meio com o pé atrás na inserção do nome social. Eu tive que imprimir uma portaria e mostrar que eu tinha o meu direito, queria fazer valer o meu direito do nome social na chamada.

2. Banheiro e futebol (Dani): Bom, eu geralmente fico no grupo das meninas. Até o banheiro mesmo que eu uso é o banheiro feminino. Já tentaram me privar do uso, do uso do banheiro feminino, mas eu briguei e não desisti e hoje eu continuo usando o banheiro feminino. Qualquer contra ou versas que tiver eu vou registrar um boletim de ocorrência e vou levar às autoridades competentes. Já na educação física, por incrível que pareça, eu prefiro jogar futebol com os meninos, porque as meninas são muito paradas. Porque, querendo ou não, a educação física é para meninos, não é para meninas, porque na educação física tem aquela coisa, é só jogo de bola, bola, meninas não jogam bolas, meninas gostam de jogar vôlei, então não tem muito outros esportes, somente bola, bola e bola, então, eu, para não ficar fora, eu sempre jogo um futebol com os meninos, porque eu não gosto de jogar com as meninas. Nesse ponto de vista eu sou meio do contra sim. Bom, eu sempre usei o banheiro feminino, só que um certo dia, uma aluna foi até a diretoria reclamar do meu uso do banheiro feminino. Nisso eu fui chamada até a diretoria. Chegando lá, a diretora falou para mim que não queria que eu usasse o banheiro feminino, que era para mim usar o banheiro masculino, porque tinha muitas alunas que ficavam incomodadas com a minha presença no banheiro feminino. Eu falei para ela que eu entro no banheiro feminino quando 59


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eu bem entender e os incomodados que se retirem, porque é um direito meu de usar o banheiro feminino. Eu sou uma travesti. Como que eu vou me maquiar? Vou retocar minha maquiagem em um banheiro masculino? Como que eu vou fazer xixi em um banheiro masculino, sendo que o banheiro masculino é um banheiro imundo, é um banheiro sujo? Porque os homens não tem preocupação com a higiene. Então eu briguei, falei para ela que se isso repetisse mais uma vez eu ia na delegacia, ia registra uma queixa contra ela, ia processar ela e eu ia levar isso às autoridades.

Em outra pesquisa, agora com jovens, sobre enfrentamento à homofobia no contexto escolar (SOUZA, 2011), foi aplicado um questionário a partir de uma estória que versa sobre uma situação de homofobia em que um menino/ menina não é aceito para estar em companhia dos outros em atividades sociais, por conta de sua sexualidade. Responderam 100 participantes (50 homens e 50 mulheres). As respostas mais comuns são: 1. Negativas de invisibilidade ou negação da sexualidade para inserção social (68,7%): a) Isolamento social ou distanciamento dos(as) amigos/as (Ex.: João sentiu-se inferiorizado devendo procurar outros amigos); b) Negação da sexualidade, através do esclarecimento da sua sexualidade não dissidente (Ex.: João/Lara sentiu-se chateado/ magoada/ mal, pois não era lésbica e deveria prova que não era gay/ lésbica); c) Agressão (Ex.: Sentiu raiva devendo treinar em um templo de artes marciais e para agredir os preconceituosos; Ex.: Lara sentiu-se triste e deveria bater nas outras meninas); d) Inércia (Ex.: Lara sentiu revolta e vergonha pelo preconceito sofrido, e não deveria fazer nada, pois preconceituosos se acham por toda a parte). 2. Positivas (31,9%): Autoafirmação de sua sexualidade (Ex.: João sentiuse triste e com pena dos amigos, por serem preconceituosos, mas diria aos amigos de Carlos que seu jeito não impediria a amizade e que todos são iguais apesar das diferenças). Em outra pesquisa (SOUZA; MENDONÇA; DUARTE; MEDEIROS, 2010), que buscou observar como professores lidam com a situação de homofobia na escola, no sentido de uma educação para a ética das relações, foram encontradas: 1. Práticas de esclarecimento, que consistem em promover uma ação em que os professores verbalizaram sobre o certo e o errado, bem como apontaram os valores não morais presentes na ação dos alunos

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que discriminaram, por razões relacionadas ao direito, religiosas ou contrárias às verdades científicas. Ainda nessa perspectiva, as razões elencadas buscaram justificar o comportamento de quem foi discriminado.Tais tipos de práticas, no modo como foram relatadas pelos participantes deste estudo, nos levam a questionar sua efetividade na superação da discriminação e na promoção de relações verdadeiramente democráticas e de respeito à diversidade em sala de aula. 2. Práticas reflexivas, que se organizaram naquelas que mencionam a reflexão como estratégia para se conscientizar os alunos do problema da discriminação em relação à homossexualidade. As narrativas produzidas nas pesquisas relatadas nos mostram que há um espaço de circulação limitado da pluralidade de gênero e sexual nas escolas. Por outro lado, existem algumas práticas (educativas) e tentativas (inventivas) de subversão que tornam possível o que é negado (ou é impotente/impossibilitado) de circular no cotidiano escolar. Estas narrativas sobre as sexualidades e os gêneros nos levam a buscar ferramentas teóricas para compreender a escola em seu avesso, como espaço que deve transversalizar e virtualizar: conteúdos, práticas, linguagens, afetos, etc. As práticas dos professores e as respostas dos alunos e alunas sobre os modos de enfrentamento à homo/transfobia nos oferecem pistas de como a escola pode negar e despontencializar a diversidade de gênero e sexual (práticas de esclarecimento; inércia; negação). Impossibilitam que elas circulem ética e esteticamente no espaço escolar. A escola tem minado as potencialidades de existência, desde a negação de identidades, pelo nome social, e das sociabilidades, tais como das alunas travestis e dos meninos e meninas de sexualidades dissidentes. Nega-se a aproximação com a vida concreta das pessoas, tornando a escola operadora de abstrações, descolando-a do cotidiano. Najmanovich (2001), epistemóloga argentina que ressalta a dimensão do cotidiano na pesquisa contemporânea em educação, destaca essa dimensão como parte de um lugar que é negado pela escola na modernidade. Sua análise destaca o que já sabemos na carne sobre a fluidez, a instabilidade dos vínculos nas relações e nas instituições, os novos fluxos. Ao mesmo tempo a escola insiste nas estratégias da modernidade em manter valores, conhecimentos e meios elegendo o que é viável e o que não é não viável. Diz ela:

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Passado o ano 2000, não só os apocalípticos sentem a vibração da mudança. Todos, em maior ou menos medida, concordamos que estamos atravessando uma época de transformações aceleradas. As instituições da modernidade prosseguem, mas se sustentam em um delicado equilíbrio que pode ser destruído por uma suave brisa ou por uma mudança de orientação dos ventos políticos, tecnológicos, econômicos, afetivos e cognitivos. Nada tem a solidez de antes e tanto as dúvidas como as interrogações surgem dia a dia transformando nossa maneira de aprender, de nos relacionar, comunicar, comprar e vender, de amar e sofrer, de criar e produzir. Entretanto, a escola parece um museu de cera em si mesma: os uniformes, os bancos em fila indiana, o professor na frente e o sinal do recreio, embora os professores já tenham que pedir aos alunos que desliguem o celular na hora da aula.

Pode ser acrescentada, ainda, a exclusão do cotidiano como um espaço cognitivo. Um espaço de possibilidades de trocas e diversidades culturais (religiosas, étnicas) e das diversidades sexuais e de gênero. A partir de Larrosa (2002), que apresenta uma análise da educação contemporânea pelo par experiência/sentido, podemos dizer que hoje há o predomínio de uma política cognitiva na educação em que a informação e a capacitação são o carro chefe das práticas e valores destacados na escola. Para ele, tal exclusividade (porque não é possível também perder de foco estes aspectos da educação) desvia a possibilidade de articulação da educação como espaço de experiências. Experiência que se atrela ao conceito de risco, perigo e, portanto, de lançar-se a coisas novas. Em suma, considerar o conhecimento como experiência que tenha sentido, que seja acontecimento. Tratando-se das afecções que essa experiência/conhecimento implica e não somente da racionalidade que lhe é atribuída e valorada como genuína. Retomando a força das palavras e da nomeação, Larrosa (2002, p. 21) afirma que a linguagem é potente mecanismo de subjetivação. Ele diz: As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.

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Sob o domínio de palavras como razão, ensino, universalidade, capacitação, informação, competências, habilidades, heterossexualidade, homem, mulher, cristianismo, a escola se orienta por uma política cognitiva que exclui outras. Urgente é a necessidade de repensar as políticas cognitivas da escola que abolem a experiência – do sentir, do conhecer – e que também excluem outras possíveis na escola. Geralmente, ela, a escola, afirma valores que se elegem a partir da normatividade, definindo identidades e modelos necessários; só para dar alguns exemplos: para ser homem, ser mulher, ser uma família, ser pai, ser mãe, ter fé. Todas adequadas ao projeto de viabilidade da modernidade (fé viável, família viável, sujeito viável, sexualidade e gênero viáveis e, não podemos esquecer, um corpo também viável). Buscamos alguns intercessores para tentar pensar a partir de alguns dos questionamentos iniciais. Nas investigações, como vimos, percebemos o desvelamento de discursos sobre os gêneros e as sexualidades da/na escola que pontuam zonas de rupturas e repetição do normativo. O conhecimento (re)produzido deve rever a ideia de representação na qual ele se assenta. A escola como lugar de conhecimento, deve romper com a ideia de representação recorrente: como repetição e cópia de modelos normativos. Precisamos, para isso, situar os conceitos de representação, linguagem e cognição. Representação, segundo Maturana e Varela (2001), é entendida aqui como invenção, produção (de si mesmo e do mundo). Seu avesso é o conceito de representação clássico nas teorias do conhecimento, como cópia e reprodução do real. A escola tem operado com este último conceito, que a torna lugar da normatização e da cópia. A linguagem, como estratégia simbólica de representação, deve fluir e circular de modo a disparar novos fluxos de sentidos e possibilidades. Desse modo a linguagem pode ser entendida como disparadora de possíveis, e não encerrar limitações (ela pode ser inventiva). Na verdade, ela tem o potencial de produção de subjetividades. As narrativas conhecidas/produzidas do/no cotidiano sobre as identidades de gênero e as sexualidades dissidentes na escola tomam fluxos que ora potencializam, ora despontencializam a produção de subjetividades. Entendo que afirmar os gêneros e as sexualidades na escola tem essa potência de virtualizar a escola, produzir novas paisagens educativas, novas mutações. Afirmar-se como potência de vida no cotidiano escolar. Não se trata de destruir a escola como espaço institucional de transmissão de conhecimentos culturalmente acumulados, trata-se de transformar 63


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e ampliar sua política cognitiva, de entender que conhecer envolve uma posição em relação a si mesmo e ao mundo, um ethos (Kastrup, 2008) para a produção de novos códigos, éticos e estéticos. Denunciar os velhos códigos, tais como já evidenciados por Foucault em História da Sexualidade, em que os discursos científicos e jurídicos codificam e nomeiam e hierarquizam e patologizam as diferenças sexuais e de gênero. Outros e novos códigos / linguagens e sentidos podem ser produzidos no espaço das relações escolares. O que se diz / o que não se diz sobre a diversidade pode potencializar conhecimentos nos moldes de uma representação/cópia/normatividade ou como inventividade. Contribuições da cognição inventiva (no plano das práticas educativas e de aprendizagem) implicam na produção de uma ética discursiva inventiva que promove práticas democráticas na escola. No entanto, é no plano das linguagens que se pode ao mesmo tempo perceber a redução e a normatização, bem como a problematização e o desvio para outros fluxos de vida. Valendo-me da linguagem, como narrativa e, portanto, como produção e invenção de realidades, é que retomo as produções de alunos e alunas, professores e professoras sobre gêneros e sexualidades na escola. As narrativas impossíveis na escola: cerceamentos e exclusões das travestis, dos gays e lésbicas nas relações sociais da escola, nas práticas de professores. Cabe uma história recorrente, com a qual sempre me deparo no cotidiano: lembrei-me de um caso contado por um professor do ensino público, que coordena projetos voltados à saúde sexual e reprodutiva nas escolas, que afirma serem necessário trabalhos que se voltem para a discriminação e o preconceito na escola, embora o/a aluno/a homo/trans provoquem estas discriminações. Ora, vamos extrapolar esse fato para a mulher que sofre violência sexual, como provocadora da própria violência que é vítima! A origem da violência está localizada em quem a recebe? Quais valores estão implicados aqui? São modos de existência impossíveis na escola, por isso, exterminados e objetos de violência. As narrativas possíveis: as estratégias de afirmação de travestis, gays e lésbicas na escola (os enfrentamentos). A partir disso, podemos pensar em algumas teses sobre gêneros e sexualidades nas escolas. Tese 1: a escola não tem sido espaço para as sexualidades e os gêneros (nem como conteúdo, nem como parte da vida).

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Tese 2: a escola não tem sido lugar para educar, no sentido ético. Penso, aqui, na distinção dos polos ensinar/educar, considerando o primeiro como parte de tecnologias que se distinguem da arte de educar. Assim, nos discursos midiáticos, a escola tem a proposta de ser espaço do ensino, do domínio do conteúdo, sem a ética como atravessamento da formação de pessoas. Tese 3: por outro lado, os gêneros e as sexualidades subvertem a escola e a dobram, impondo a necessidade de se abarcar o cotidiano como parte da educação para a vida. Defendemos o rompimento com as teses 1 e 2 e a afirmação e a potencialidade da tese 3: a escola orientada por novas políticas cognitivas; implicadas numa nova ética para/da vida. Como diz Najmanovich (2001, p. 127): O objetivo da educação na modernidade foi de disciplinar a subjetividade para que não “infecte” com suas deformações a imagem canônica aceita de mundo [...] os estudantes foram concebidos e tratados como indivíduos uniformes e não como sujeitos encarnados, diferentes, sensíveis e criativos. A política cognitiva em voga é a da afirmação de uma “educação re-produtora e não-subjetiva” em que foram relevados os valores de homogeneidade, uniformização, seriação, sistematização em ordens lineares, precisão e exatidão.

As transformações nas práticas educativas devem ser um problema político (como espaço de gestão de possibilidades) e não “técnico”. Para Najmanovich (2001), as contribuições de Gilles Deleuze e Pierre Levy para pensar esse conceito no campo da educação são interessantes. Virtualizar a educação, no sentido de Deleuze (como possibilidade de acontecimentos) e de Levy, é propor o virtualizar como ação que muda de foco, que provoca outros campos de interrogação. Citando Levy (1999): “A virtualização passa de uma solução dada a um (outro) problema [...]. A virtualização é um dos principais vetores da criação de realidade [...] torna fluidas as diferenças instituídas aumentando os graus de liberdade”. Assim, podemos dizer que virtualizar é problematizar as narrativas cristalizadas, construídas sobre si e sobre os outros, e disparar outras problematizações. Virtualizar a educação é pôr em movimento, é problematizar.

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Corpo e diversidade: “absurdas liberdades”? Elni Elisa Willms Julio Cézar Coelho [...] só quando se está com mulher é que a gente sente mesmo que está lorde, com todos os perdões... Que é que se está vivendo, mesmo. Afora isso, tudo é poeira e palha, casca miúda. A gente vai indo, caçoando e questionando, agenciando, bazofiando, tendo medo, compra isto, vende aquilo... Como que na gente deram corda. Homem não se pertence. Mas, um chegou, viu mulher, acabou-se o pior. Começa tudo, se tem nova coragem... [...] Eu falo é mulher provável, usável (ROSA, 2001, p. 65). Leia-se, como imagem do mundo sensível, nosso corpo. Onde, em tanto que ‘mundus’ de sentidos inter-relacionáveis, não existe uma distinção de partes nobres ou não nobres, uma distinção de sexo e erotismo. O corpo sendo todo um único movimento sensual, amoroso. Por excelência a mulher, a qual mantém estreitas afinidades (simpatias) com a matéria, a natureza. E, note-se que a natureza não é regular. Muito menos acadêmica ou clássica. A natureza é selvagem, exuberante. Como as formas do corpo (LIMA, 1976, p. 93, grifo do autor).

Introdução Este texto pretende trazer algumas contribuições às discussões sobre gênero e diversidade, focando especialmente a temática de sermos um corpo que experimenta ser desejável. Embora as epígrafes expressem pensamentos sobre a mulher, neste texto compreendemos o corpo para além da inscrição biológica: “ele é assumido, aqui, [...] na intersecção entre aquilo que herdamos geneticamente e aquilo que aprendemos quando nos tornamos sujeitos de uma determinada cultura” (MEYER; SOARES, 2004, p. 9), portanto histórica e socialmente constituído, lembrando que a atividade sexual é simbólica. Corpo, este “nó de significações vivas” (MERLEAU-PONTY, 1971).


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Desde quando se pode dizer que sabemos algo de nós mesmos? E dos outros? Massas moventes, se misturando aqui e ali, desdobrando fibras e possibilidades de existência, nunca nos percebemos por inteiro. Por certo apalpamos contornos, conseguimos afirmar provisoriamente algumas paisagens que, no entanto, logo se desvanecem. Como esse nosso ser corpo movediço chega ao(s) outro(s)? Como o outro lê este nosso texto que é nosso corpo? A partir de que referências? Como podemos nos relacionar com nosso corpo de maneira prazerosa, sendo ele o lugar de diversidades? De experiências dolorosas e cicatrizes? O que estas questões têm a ver com educação? Não nos encerramos em concepções simplistas e maniqueístas de certo ou errado, real ou ficção, mas nos situamos como pessoas de identidades moventes, em trânsito, sapiens/demens (MORIN, 1996; 1997), com incertezas que nos impulsionam a encaminhar estas e outras indagações. Na travessia da escritura, a expressão “absurdas liberdades” é tomada de empréstimo a João Guimarães Rosa, na novela “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)” (2001, p. 51), como a expressar a pulsão do desejo “provável e usável” que percorre o corpo e este texto. É bem possível, como aponta Fausto Calaça (2013) ao explorar questões de gênero a partir de alguns personagens de A comédia humana, de Honoré de Balzac, que as questões aqui apresentadas causem alguma estranheza, justamente porque são familiares. Nosso trajeto se apoiará em algumas poesias, letras de músicas e referências à novela “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)” de João Guimarães Rosa (2001), além de fragmentos de autobiografia ficcional, muito peculiares, de quatro personagens, pois “Es precisamente en razón del carácter evasivo de la vida real que tenemos necesidad del auxilio de la ficción para organizar esta última retrospectiva extemporânea, un misto instable entre fabulación y experiencia viva” (RICOEUR, 1991 apud FERREIRA-SANTOS, 2010). Para além do que se constitui tabu do corpo (RODRIGUES, 1983), ousamos cantar essa experiência de ser um corpo desejável: A experiência não é uma realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir nem de identificar, não pode ser objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e distinta. A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o tempo e o espaço (LARROSA, 2014, p. 10). 68


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Tzvetan Todorov (2009, p. 75) nos sustenta quando afirma: Não posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que constituem minha vida.

Compreendemos, juntamente com Rogério de Almeida e Marcos Ferreira-Santos (2011; 2014), que, assim como o cinema, tais obras da cultura e experiências concretas de vida se constituem em itinerários de formação, para além da escola: Nesse sentido, a obra não nos molda, não nos modela, não transmite verdades a serem seguidas, imperativos a serem cumpridos – como deseja, no extremo, a formação escolar –, mas nos modula, ritma, nos cadencia, nos convoca ao diálogo, nos confronta, nos ignora, nos possibilita, significando-nos, significá-la, pois convive em mim como outros possíveis que não eu mesmo, outros eus de mim mesmo (ALMEIDA; FERREIRA, SANTOS, 2011, p. 7).

Mediados pela literatura em suas variantes (poesia, novela, letras de músicas) pretendemos atingir um pouco mais de perto a condição humana, os caracteres existenciais, subjetivos, afetivos do ser humano, que vive suas paixões, seus amores, seus ódios, seus envolvimentos, seus delírios, suas felicidades, suas infelicidades, com boa e má sorte, enganos, traições, imprevistos, destino, fatalidade (MORIN, 2003, p. 43-44).

Por isso nosso texto (escritas e corpos) viola um pouco o que é acadêmica ou socialmente aceitável, pois somente transgredindo pela linguagem poderíamos dar livre curso àquilo que experimentamos como corpos, nossos contrastes existenciais, de variadas formas. Como crianças que gostam de repetir uma brincadeira, mesmo que clandestinamente, reafirmamos nossas escolhas: É a literatura que nos revela, como acusa o escritor HadjGarm’Oren, que ‘todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas, constitui, em si mesmo, um cosmo. Traz em si suas multiplicidades internas, suas personalida-

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des virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília, a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto, pululâncias larvares em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um contém em si galáxias de sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e de amores, abismos de infelicidade, vastidões de fria indiferença, ardores de astro em chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias, relâmpagos de lucidez, tempestades furiosas...’ (MORIN, 2003, p. 44).

Assim como Friedrich Nietzsche criou um personagem para expor sua concepção filosófica de mundo, neste texto nos autorizamos criar quatro personagens que, livremente e de maneira diversa, expõem suas experiências como corpos: Sofia e Anastácio em primeiro lugar e logo em seguida Lilith e Adão. Corpos entremeados, sem pecado nos unimos na escrita deste texto! Num movimento de ir e vir e de mãos dadas com a literatura, sigamos, ciganos, moventes, pois, como afirma Sergio Lima (1976, p. 2), “É necessário envolver-se todo com a vida. É necessário expor-se”.

Diálogos com a cultura “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)” é uma das novelas que compõem o livro Noites do Sertão. Trata da história de amor de Soropita e Doralda. Soropita é um boiadeiro e ex-matador de jagunços que traz no corpo muitas cicatrizes provocadas pelas lascas de balas: um calo áspero no queixo (ROSA, 2001, p. 23); uma bala que passara por entre a carne e o couro, na coxa, que em dias de frio repuxava e doía; trazia também as marcas de bala na barriga, no quadril esquerdo, duas no braço e na orelha direita (ROSA, 2001, p. 35). Soropita não gosta que as pessoas especulem de onde e como tinha aquelas marcas, eram dores idosas, “toda qualidade de dor que se podia ter de vir a curtir, no coitado do corpo, na carne da gente. Vida era uma coisa desesperada” (ROSA, 2001, p. 35). Doralda, sua mulher, uma ex-prostituta, “não tinha os manejos de acanhamentos das mulheres de daqui, que toda hora estão ocultando a cara para um lado ou espiando no chão. Sertaneja do Norte encarava as pessoas, falava rasgado; nunca dizia “não” com um muxoxo” (ROSA, 2001, p. 31). Tinha sido Dadã e Sucena, quando Soropita a conheceu, mas isso “eram poesias desmanchadas no passado, um passado que, se a gente auxiliar, até Deus mesmo esquece” (ROSA, 2001, p. 31). Foram morar no Povoado do

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Ão, “num vão, num saco da Serra dos Gerais, sua vertente sossolã” (ROSA, 2001, p. 28). Nesse lugar isolado viviam, o “Amado” e a “Amada” um amor que Adélia Bezerra de Meneses (2010) chama de Cântico dos Cânticos do Sertão. Doralda e Soropita rompem com seus passados e cicatrizes e em transgressão vivem o erotismo sensual do encontro de seus corpos sendo que para melhor viver suas intimidades escolhem um lugar afastado. Todo o conto é perpassado por experiências sensoriais que os amantes vivenciam: cheiros de terra, plantas, frutas e flores, perfumes, sabonete, cheiros dos animais e dos corpos do casal. Doralda, por exemplo, conhece e usa “casca de cabriúva: um almíscar tão forte, bebente, encantável, que os bichos, galheiro, porco-do-mato, onça, vinham todos se esfregar na árvore, no pé...” (ROSA, 2001, p. 33). “Ela queimava alecrim, caatiguá, cipó-de-sempre, no quarto, de noite, antes de irem se deitar. Quassava1 a chegadinha, para borrifar na roupa de cama ou para fumigar” (ROSA, 2001, p. 37). Caprichava na comida, gostosa e apimentada, gostava “de bebidas de regalo. Se dava por um cálice de vinho” (ROSA, 2001, p. 24), cuidados que expressam a fúria de viver selvagemente, como anunciado por Sergio Lima, na epígrafe. Um estranho proceder viver em êxtase? Mas porque não? Como amantes, ousavam experimentar e gozar a “fome do miolo todo, do bagaço, da última gota do caldo” (ROSA, 2001, p. 60). Friedrich Nietzsche, quando trata do corpo, afirma a vida como obra de arte, criação e expressão da vontade, corpo como ponto de partida e fio condutor da existência trágica. Em A origem da tragédia, o autor deixa algumas impressões que nos guiam neste texto: “considerar a ciência pela óptica das artes e a arte pela óptica da vida” (NIETZSCHE, 2008, p. 4). E ainda afirma que “é a arte – e não a moral – apresentada como atividade essencialmente ‘metafísica’ do homem” (NIETZSCHE, 2008, p. 7), que precisa orientar a criação de si, além da proposição de que “a existência do mundo não pode se ‘justificar’ senão como fenômeno estético” (NIETZSCHE, 2008, p. 7). Citando Fausto, de Goethe, assim profere Friedrich Nietzsche: “Não deverei eu, com apaixonada violência / Dar à vida a forma mais divina?” (NIETZSCHE, 2008, p. 12). Podemos traduzir esse viver trágico numa descrição que Guimarães Rosa faz de Doralda: “Água de serra – que brota, canta e cai partida: bela, boa, oferecida” (ROSA, 2001, p. 73). Também o poeta Carlos Drummond de Andrade (1992, p. 45) exaltou a penetração de Eros nos corpos que se entregam desejáveis: 1 QUASSAR. /Triturar, amassar.// Do lat. quassare, redução das raízes e cascas a fragmentos. [...] /CHEGADINHA. Planta medicinal (MARTINS, 2001, p.404 e 114).

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Sugar e ser sugado pelo amor no mesmo instante bocamilvalente o corpo dois em um o gozo pleno que não pertence a mim nem te pertence um gozo de fusão difusa transfusão o lamber o chupar o ser chupado no mesmo espasmo é tudo boca bocabocaboca sessenta e nove vezes boquilíngua.

Uma descrição poética da vivência do desejo e suas experiências? Melhor afirmar com Michel Maffesoli (2003, p. 144): “A vida, antes que os conceitos”. Brotar para a vida e seus desejos, dar e receber, trocar instantes de pertencimentos para além de qualquer convenção social, tremer e cantar o contato entre corpos e depois despedaçar-se e recompor-se com o cheiro do café que inunda a casa, geleia de pétalas de rosas compartilhadas à mesa e na cama, corpos bebentes e saborosos, bons e belos porque se ofereceram, sem dor nem dó numa mistura homogênea de alegria e loucura. Assim, no processo de viver a escrita no corpo, este mesmo desejo pode nos percorrer, como neste trecho de Escrevivendo: Embriago-me das palavras. Minha língua lambe-as e experimento de corpo inteiro a umidade quente para melhor acolhê-las, entumecidas e vigorosas: escritas. Deixo-as entrar e sair do corpo todo do meu texto. Sem pressa, faço trocas, transito de um lado para outro, ofereço-me brincante aos toques, aos sabores, cheiros, calores e aos olhares de outras margens – exploro a dança das palavras e desperto carícias para demais sentir – outras percepções e vertigens no movimento das travessias. E se as palavras penetram mais fundo eis que desdobram outros líquidos, mais espessos, para deslizar mais e mais selvagens sentidos escritos (WILLMS, 2013, p. 245).

A criatura de Nietzsche, Zaratustra, afirma esta escrita a respeito do corpo: “Tudo é liberdade: podes, porque queres!” (NIETZSCHE, 2010, p. 241); “O querer liberta, pois querer é criar: assim ensino eu. E somente a criar deveis aprender” (NIETZSCHE, 2010, p. 246, grifo do autor). Desejar ser um corpo que cria, para o autor, é a grande libertação de toda moral e valores habituais. Criar até sua forma própria de desejar. Pressupõe alguns 72


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rompimentos, provando outras maneiras, ousar percorrer caminhos não traçados, novas possibilidades, ousando viver ao máximo a divisa “Torna-te o que tu és” (NIETZSCHE, 2009). Poderia ser assim: Um dia Sofia estava sentada ao lado de Anastácio. Num instante ela sentiu o cheiro dele. Um cheiro másculo penetrou pelo nariz e invadiu todo o corpo dela. Um calor percorreu a espinha. Um tremor entre as pernas. Um frio na barriga. Ela olha para ele: mal o conhece, socialmente diversos, como pode? Como tornar real esse desejo? O que é isso que nos visita de assalto, sem compreender? Que balança nossas certezas e valores? Ela silencia; calada para perceber esse movimento sensual. Tempo. Passam-se semanas, talvez meses. O desejo foi vivido naquele átimo, mas não no encontro dos corpos. No entanto, as lembranças das sensações vividas retornam com insistência e entre uma mensagem e outra, pulando etapas e transgredindo a si mesma, um dia Sofia o chamou. Não sem medo. Um tanto alucinada, que tanto de louca? Atirou-se de um trampolim no abismo do desejo? Sem respostas, apenas ousou dar vazão a um desejo de encontrar-se com outro corpo que também a desejava. Justo ela que quase sempre cumpre tudo em regra? Seria errado desejar? Mas onde o lugar do certo e do errado, no corpo? O fato: Anastácio correspondeu ao chamado dela. Tarde da noite entrou, outras e mais vezes, na casa e no corpo dela, viajaram. Perderam a noção do tempo. Numa conjugação de circunstâncias saborearam-se num instante de vida a mais, potência de existir e experimentar outras sensações, sentir, cheirar, respirar. Musical, Sofia ouvia o ressonar dele na madrugada. Nem dormia, muito mais lambeu e tocou, cheirou, amou e beijou. Tudo parou naqueles instantes, roupas espalhadas pelo chão, dois corpos vibrantes porque desejáveis. Parada estava a vida sem esses instantes de loucura? –, perguntava-se. Loucura de viver a esmo, sem tocar outro corpo, vivendo só de trabalho. Essa talvez a maior loucura. Ela nem viu, mas quando sentiu estava colada, eram dois corpos num só movimento: belos, quentes, latejantes. O gozo de ambos lavou toda vergonha, censura ou medo. Como sugere Gaston Bachelard “O tempo já não corre. Ele jorra” (2010, p. 96). Sofia, como Soropita, também trazia várias cicatrizes no corpo, estava começando algo do nada, da simples coragem de ousar ir um pouco além, fazendo um arredondado caminho para experimentar essa “absurda liberdade” de ser um corpo desejável junto com outro corpo que também a desejava. Sentiu-se estrela, pérola, deusa, feminina, rainha, mulher. Então o desejo nos devolve à vida? Experimentou. Sentiu. Viveu “Horas de outras coisas começarem, nada não se podia impedir”

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(ROSA, 2001, p. 85). E todo sim será maior que toda escrita. Algo assim como a letra da música “Liberdade”, da compositora e cantora mineira Ceumar em parceria com Gildes Bezerra2: E ter-se para ser livre Ser livre para se dar E dar-se para se ter E dar-se para se ter E ter-se para se dar E dar-se para ser livre Ser livre para se ter Ser livre para se ter E ter-se e dar-se E ter-se e dar-se Ser livre para se ter Ser livre para se ter

A história de Lilith O corpo é uma dimensão fundamental da condição humana e, segundo Graciema de Fátima da Rosa (2004, p. 15) pode ser visto como “cenários, mapas, territórios de protestos e de criações. Subterfúgios e dribles [...] acessórios, adornos, decorações”. Isto porque o corpo biológico tem sido historicamente utilizado como suporte da sexualidade, uma construção social, uma invenção histórica, ou seja, o sentido e a importância a ele atribuídos são criadas em situações sociais concretas, sendo que, nas últimas décadas, de forma cada vez mais exacerbada devido ao crescente apelo ao erotismo pelos meios de comunicação de massa que, também, estimulam o consumismo: a beleza, nos dias de hoje tem assumido a condição de mercadoria e o próprio corpo se tornado objeto de consumo [...]. O corpo escapa da natureza, de sua condição tácita e imutável, da formatação garantida pelo equipamento genético, para tornar-se corpo-produto, a ser trabalhado, transformado e disposto como objeto a ser apreciado como belo (SALGADO; LUIZ, 2012, p. 14).

2 Download disponível em: http://www.ceumar.com.br/ Acesso em 17/08/2014. 74


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Neste contexto, como fica a questão da sexualidade e da identidade de gênero? Por que, geralmente, tais temáticas não são discutidas na escola? É importante que os professores discutam sobre estas questões com seus alunos? Por quê? Estas, entre outras, são questões que precisam ser pensadas/respondidas por todo educador envolvido e comprometido com as difíceis e complexas condições sociais e da escola que predominam na contemporaneidade. No intuito de contribuir neste sentido trazemos a história de uma grande amiga: Lilith, que nasceu Adão, mas seu olhar e a inclinação de seus desejos afetivos e eróticos sempre estiveram direcionados para os corpos masculinos. Adão era um encantador de corpos, não importava a beleza, que é subjetiva e midiática, mas, sim, a possibilidade de se enredar, de misturar, de causar frenesi junto a outro corpo liberando um para o outro os seus corpos e, como sempre dizia “dando pro outro as dádivas dos seus corpos”. A preocupação dos amigos com a segurança de Adão, no que diz respeito aos lugares e espaços da cidade que ele, no frenesi da conquista, frequentava, era simplesmente ignorada. Ele dizia que seu corpo precisava trabalhar e este seu trabalho era como o de uma doméstica ou de uma professora e, mesmo submetido a uma lógica machista, homofóbica e sexista que não considerava que “atender aos desejos sexuais de seu corpo” fosse uma forma de trabalho, uma necessidade imprescindível para sua subsistência, ele continuaria “trabalhando”. E mais, sempre que questionado neste sentido, ia até sua antiga vitrola e colocava o vinil de Chico Buarque dizendo: escute enquanto eu danço... e sua voz misturava-se com a de Chico enquanto seu corpo gracioso, magro e alto, punha-se a bailar: De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato3

3 Obtido na internet http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/geni-e-o-zepelim.html. Acesso em 18/08/2014. 75


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Com o passar do tempo, já com cabelos brancos e rugas, diante da velhice eminente que tanto o assustava, Adão, finalmente, faz nascer Lilith! Uma possibilidade de continuar suas junções de corpos, a partir de então, como mulher? Talvez. O fato é que, após inúmeras visitas a lojas que vendem produtos com finalidades eróticas, como lingeries, espartilhos, perucas, maquiagens e sandálias, de variadas cores – as vermelhas e prateadas eram as suas preferidas – nasce Lilith. Isto é, Lilith toma o corpo de Adão, apossa-se de seu corpo. A maior dificuldade era encontrar um número de sandália para que Lilith pudesse desfilar, uma vez que Adão calçava 42, mas ela sempre dava um jeito. Com roupas, acessórios e pinturas novas, Lilith passa a ter diversas opções para se ornamentar e escolher a cor da peruca para seus encontros com outros corpos. No ritual de Lilith nunca falta uma boa música e as cantadas por Maria Bethânia, ainda em disco de vinil, sempre predominam, entre elas: O meu amor tem um jeito manso que é seu E que me deixa louca quando me beija a boca A minha pele toda fica arrepiada E me beija com calma e fundo Até minh’alma se sentir beijada, ai O meu amor tem um jeito manso que é só seu Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos Com tantos segredos lindos e indecentes Depois brinca comigo, ri do meu umbigo E me crava os dentes, ai4

Todos os encontros de Lilith com outros corpos passavam e ainda passam por este ritual, pois todos são amados por ela na mesma intensidade, não importa a cor da pele, a altura, o peso, o título e, sim, a possibilidade de se entregar, de rolar pelo chão, de sentir o enrijecimento na relação e em seu próprio corpo, experimentando o corpo em poesia com Carlos Drummond de Andrade (1992, p. 27): O chão é cama para o amor urgente, amor que não espera ir para a cama. Sobre tapete ou duro piso, a gente compõe de corpo e corpo a úmida trama. E para repousar do amor, vamos à cama.

4 Obtido na internet http://letras.mus.br/chico-buarque/45155/. Acesso em 18/08/2014.

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As novas tecnologias corroboram para um avanço quase ilimitado para seus desejos afetivos e eróticos, sobretudo, agora que não precisa mais do corpo de Adão, nem de transitar por ruas, avenidas, vielas, igrejas, mercados. Aquele Adão que, antes, perpassava o periférico geográfico sua principal atração libidinosa, agora é Lilith e descobriu que pode encantar corpos também, por meio das novas TICs5. Inebriada pelo contato com a internet, a web cam e os sites de relacionamentos, permite que ela, agora, tenha seu próprio espaço: seu lar. Ali ela é a Rainha, a Diva do sexo sem fronteiras. Lilith é pública somente para o outro corpo e vice-versa (como Lilith e seu espaço), pois ainda vivemos numa sociedade vigiada, onde os desejos dos corpos são mantidos em segredos, caso contrário, são punidos, sobretudo, quando fogem ao estabelecido como “normal”. A transgressão de Lilith não demonstra ter regras e ela se sente feliz por não tê-las, principalmente as biológicas. Seus objetivos são muito bem definidos: prazer e felicidade mútua. Esta é a história de Adão, que é Lilith, que é Adão. Nasceu num espaço/ tempo em que a masculinidade sempre foi e continua sendo supervalorizada. Adão que foi educado em uma escola em que aprendeu a ser o macho, o dominante, que descobriu que vivia em uma sociedade patriarcal e machista e que seu corpo não se encaixava muito bem nos papéis a ele atribuídos por essa sociedade. Adão que vislumbrava, desde cedo, os trabalhos ‘delegados’ às mulheres como símbolos de inferioridade e submissão e que, na idade adulta, se descobriu e se assumiu, embora, ainda, no âmbito do privado, MULHER: Lilith!

Considerações Finais A desconsideração de obras da cultura que se constituem em itinerários de formação, para além da escola, forma lacunas imensuráveis no campo educacional. A história de vida de pessoas como Lilith, que era/é Adão, de Sofia e Anastácio, não são consideradas/aceitas/contadas em espaços públicos e/ou privados de nossa sociedade, em particular, na escola que, dizem, é um espaço/tempo criado histórica e socialmente com a finalidade exclusiva de promover a educação dos sujeitos o que, segundo o Dicionário Aurélio online significa “s.f. Ação de desenvolver as faculdades psíquicas, intelectuais e morais: a educação da juventude”. 5 Tecnologias da Informação e da Comunicação.

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Diante de tal realidade é que, neste texto, procuramos despertar a atenção dos educadores em geral para questões que, por serem vividas pelas pessoas, precisam ser pensadas/respondidas urgentemente, mas para uma “tomada de decisão”, como diz Luckesi (1997): como atingir os objetivos educacionais quando há omissão do que ocorre no cotidiano? Quando se fala em diversidade, mas os problemas relacionados ao corpo e aos desejos afetivos e eróticos que ele emana não são sequer pauta de discussão e debate? Quando questões como sexualidade e identidade de gênero são consideradas verdadeiros tabus? No pequeno movimento do cosmos e deste texto trouxemos à cena histórias e estórias de corpos reais e ficcionais. Foi uma escolha mostrar esse trânsito entre a literatura e a ciência, as tensões que nos atravessam como pessoas: No entanto, a existência, que não é uma escolha, impõe uma escolha fundamental: se aprovo ou não minha existência. Se eu a gozo, se eu a aceito como é. Quem não afirma a vida, a idealiza, a moraliza a submete à lógica do dever ser. Impondo-lhe condições, adia permanentemente uma realização que, embora efêmera, está ao alcance de todos: a adesão ao instante presente. Essa escolha essencial e constante – e nunca exclusivamente racional – é que possibilita ao homem assumir seu destino, ou seja, a somatória das escolhas que faz com o fortuito da existência. Aprovar a existência, amar o próprio destino (amor fati), aceitar o eterno retorno faz parte de como o homem se insere no mundo, como expressa seu imaginário (FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2012, p. 154, grifo dos autores).

Fizemos uma experiência de nos inscrever neste texto sob a ordem trágica (NIETZSCHE, 2008; 2010; 2011; ROSSET, 1989; 2008; 2010; WILLMS, 2011), portanto afirmando a existência de nossos corpos e nossos desejos, mesmo que errantes e efêmeros. Todos os fragmentos da cultura e das histórias que aqui trouxemos, cantam um pouco da diversidade da condição humana e sua complexidade. Gozamos a absurda liberdade de uma escrita que pode transverberar um pouco mais de poesia para a vida de outras pessoas. Se é provocador? Então atingimos o nosso intento, pois provocar, segundo a etimologia, é “evocar adiante”.

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CORPO, SEXUALIDADES E TEMPORALIDADES



Gênero e sexualidade no cotidiano escolar Carmem Lúcia Sussel Mariano

Introdução Por muito tempo, a escola e a sala de aula foram tratadas como espaços de admissível neutralidade em relação à sexualidade e às relações de gênero. No cotidiano escolar, a sexualidade está presente das mais variadas formas: nos pressupostos acerca da conformação das famílias ditas “estruturadas”; no comportamento e nos papéis esperados para homens e mulheres “de bem”; nos cochichos daqueles assuntos que causam curiosidade (“não se deve falar dessas coisas” na escola); nas letras e coreografias dos hits musicais, supostamente dirigidas para o público adulto, apropriadas pelas crianças e adolescentes; na rotina da educação infantil em que as crianças, desde cedo, indicam suas curiosidades no campo da sexualidade; nas brincadeiras, piadas, apelidos que maltratam e estigmatizam os garotos mais sensíveis ou delicados e as meninas mais “assanhadas”. Como nos ensina Louro (2003, p. 81), “a sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém possa se ‘despir’”. Infelizmente, a preocupação em tornar o tema da sexualidade pertinente ao conteúdo escolar não foi decorrente do reconhecimento de que todas as pessoas têm o direito à informação e ao debate sobre o seu corpo e as formas singulares de viver a sexualidade e a afetividade, mas, sim, em razão da epidemia de AIDS/HIV e do aumento da incidência de gravidez na adolescência. Direitos sexuais de crianças e adolescentes é um assunto que suscita resistências, constrangimentos e perplexidades por abrigar a ideia de que essa dimensão humana faz parte das vivências, dos saberes e das curiosidades de todas as crianças e adolescentes. Ainda tem força a ideia socialmente construída de que as crianças são seres assexuados e que as manifestações e vivências relativas à sexualidade constituem algo impróprio para o tempo da infância. Esta visão decorre, também, da associação que geralmente se faz entre sexualidade e genitalidade, como se a dimensão da sexualidade humana só fosse despertada a partir da maturidade sexual para a procriação.


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Para além dessas questões, debater e implementar os direitos sexuais de crianças e adolescentes é algo que, conforme salienta Vanessa Bizzo (2008, p. 25), perpassa “os princípios de autonomia e proteção da infância e adolescência [que], no contexto das sociedades ocidentais individualistas e adultocêntricas, estão em tensão”. É uma questão atravessada pelas relações de poder e pela dominação de adultos sobre crianças: “não só a esfera da vida sexual e reprodutiva é do domínio de adultos, mas também a posse/administração do dinheiro/capital e a ação política” (BIZZO, 2008, p. 25). Portanto, este texto se propõe a refletir sobre o quanto lidar com as relações de gênero e sexualidade no cotidiano da escola implica num exercício de desmantelamento em seu próprio interior de valores e práticas sexistas, machistas, heteronormativas e adultocêntricas.

Sexualidade na cultura contemporânea Sexualidade é algo bastante amplo e de modo algum tem correlação apenas com a genitalidade. Weeks (2000, p. 29) apresenta uma descrição bastante simples e clara sobre o que está envolvido quando utilizamos o termo sexualidade: “usarei o termo ‘sexualidade’ como uma descrição geral para a série de crenças e comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente modeladas”. Com Foucault (1988), pudemos compreender a sexualidade como uma “invenção social” na medida em que ela se inscreve na cultura a partir de múltiplos discursos que regulam, que instauram saberes, que normalizam, que produzem “verdades” sobre o sexo. No contexto da cultura ocidental contemporânea, embora muitos avanços tenham ocorrido no campo da sexualidade, esta ainda tem sido moldada por valores patriarcais, heteronormativos e adultocêntricos. Entretanto, tais “verdades” vêm sendo seriamente questionadas e desestabilizadas em favor da consideração de que a heterossexualidade não constitui a única forma “correta”, normal ou sadia de sexualidade. Isto porque cada vez mais tem sido possível superar a ideia de que a sexualidade estaria amarrada no organismo, como se fosse decorrente da ação de hormônios ou dos genes. Embora não se possa deixar de considerar a dimensão biológica, ela não é, por si só, determinante da identidade de gênero ou da orientação sexual, bem como dos comportamentos sexuais. Ou seja, a desvinculação entre sexo e corpo, identidade de gênero e orientação sexual, tem possibilitado que “em vez de uma sociedade completamente 86


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organizada segundo um binário sexual compulsório, vivemos em uma era de multiplicação de sexualidades, reinvenção dos gêneros e sua definitiva desvinculação do sexo biológico” (MISKOLCI, 2010, p. 96). Outra desvinculação no campo da sexualidade que provocou rupturas importantes foi a separação entre sexo e reprodução. Giddens (1993) assinala que tal separação, possibilitada pelo advento dos métodos contraceptivos, disparou mudanças históricas concernentes à sexualidade, pois a liberou das necessidades de reprodução e marcou profunda transição na vida pessoal: a sexualidade passou para a esfera de domínio potencial do sujeito, tornando-se “propriedade” sua. Ainda, a separação entre sexo e reprodução permitiu o aumento da autonomia sexual feminina. Ao mesmo tempo, houve o florescimento de outras identidades sexuais (homossexual, bissexual, transexual, etc.) que geraram consequências diretas sobre a intimidade e a flexibilidade da identidade de gênero, não se restringindo a um mero avanço na permissividade sexual, constituindo-se em uma revolução inacabada. Para Giddens (1993), a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina foi um impulso para iniciar a dissolução da velha divisão entre mulher virtuosa e mulher degradada. Entretanto, embora com menos força do que outrora, a distinção entre mulheres “respeitáveis” e “vadias”, legitimada pelo ideário patriarcal, ainda prevalece em nossa cultura. A recente pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgada em abril de 2014, sobre a tolerância social à violência contra as mulheres, traz o dado estarrecedor de que mais da metade d@s respondentes concordou total ou parcialmente com a afirmação: “tem mulher que é para casar, tem mulher que é pra cama”. Este dado aponta o quanto ainda é forte a ideia arcaica de que algumas mulheres são adequadas para o casamento ou parcerias amorosas e outras se destinam somente ao sexo, ideia esta compartilhada por homens e mulheres. Segundo dados da pesquisa, “é comum ainda classificar as mulheres de acordo com seu comportamento sexual, avaliando-o sob a perspectiva masculina, e considerar que mulheres sexualmente livres não são boas companheiras” (IPEA, 2014, p. 12). Se hoje o termo “mulher degradada” caiu em certo desuso, outras categorizações depreciativas da figura da mulher circulam, mormente sobre o tipo de mulher a ser escolhida para uma parceria amorosa: aquela que não é “muito rodada”, “piriguete”, “festeira”, “fácil” e que “sabe se dar valor”. Impossível não indagar: nesse ideário, o valor de uma mulher estaria associado a quê? Uma interessante reflexão é possibilitada a partir da pesquisa de Desser (1993) com adolescentes grávidas brasileiras, a qual identificou que ainda

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vigora, socialmente, a existência de um sistema de “normalização” da atividade sexual pré-marital, pautado no que a autora denomina de “sancionamento condicional do exercício da sexualidade”. E isso significa, essencialmente, que o motivo da ocorrência do intercurso sexual para uma garota deve ter se originado, via de regra, como um ato de paixão, de descontrole, de desatino momentâneo, em que a “inocência” e a “honestidade” feminina não foram corrompidas pela premeditação do ato sexual. Ou seja, o exercício da sexualidade feminina é até consentido, desde que este não seja programado, pois, se o for, será tomado como evidência de promiscuidade. Assim, “assumir a sexualidade e exercê-la racionalmente gera culpa, gera sexualidade culpada. A mulher adolescente é objeto e fonte de sexualidade: imoral e desviante se sujeito” (DESSER, 1993, p. 15). A esta análise podemos acrescentar que se trata de uma visão adultocêntrica sobre a sexualidade de adolescentes, pois naturaliza valores e representações dos adultos sobre a sexualidade nessa etapa etária. O que se depreende disso é um ideário que contribui para o não uso de métodos de prevenção da gravidez e DSTs, pois, caso as garotas tomem tais cuidados, podem se sentir ou serem julgadas como duplamente imorais já que, ao portar uma camisinha, por exemplo, estariam planejando um ato sexual. Desse modo, o sexo não planejado, aquele que seria resultado de um impulso natural incontrolável, é até desculpável, moralmente aceitável. Mas uma jovem que carrega um preservativo estaria planejando o ato sexual, o que a torna moralmente condenável. Portanto, pode ser muito pouco efetivo fornecer informações sobre as doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez e os métodos anticoncepcionais para adolescentes de modo desconectado das questões de gênero, sexualidade e cultura e sem colocar @s adolescentes como participantes desse processo educativo, rompendo com a lógica adultocêntrica.

A sexualidade está fora da infância? As crianças, por seu turno, constituem outro grupo social cuja sexualidade é objeto de cerceamento e repressão. Carvalho et al (2012) problematizam o quanto ainda é difícil garantir, nas práticas institucionais, os direitos sexuais de crianças e postulam que tal dificuldade reside principalmente na indiferenciação entre sexualidade e genitalidade, ou seja, na ideia de que a sexualidade de uma pessoa é algo atrelado somente à genitália. As autoras trazem a reflexão 88


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de que, embora todos concordem que a sexualidade é um elemento que faz parte da constituição humana, sua aceitação parece ser restrita somente a quando sua genitália se apresente biologicamente desenvolvida para exercer a prática sexual e, a partir dessa óptica, “cria-se uma legitimidade para se expurgar do universo infanto-juvenil a possibilidade de experiências que envolvam a dimensão sexual” (CARVALHO et al., 2012, p. 70). Foucault (1988) descreveu que, desde a era vitoriana, em nome da garantia da pureza do universo infantil, o sexo foi apartado da rotina das crianças e uma série de modos de controle foi sendo arquitetada para expurgar a sexualidade dos discursos e práticas das crianças. Assim, ainda nos soa muito atual a constatação de Foucault: “As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fecharem os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado” (FOUCAULT, 1988, p. 10). Essa ideia da infância afastada das questões da sexualidade e da criança como um ser inocente e assexuado é uma construção social que vem persistindo e causando assombros e desconfortos nos adultos. Por conta da visibilidade na sociedade e nos meios de comunicação de comportamentos e temas relacionados à sexualidade, muitas crianças apresentam saberes e discursos elaborados acerca do assunto, disparando “pânico moral” em pais e educador@s que, no afã de preservar a suposta inocência da infância, negam ou sabotam as iniciativas das crianças, recusando-lhes a possibilidade de dialogar sobre estas questões. Não é raro as crianças incluírem, em suas brincadeiras, alusões a práticas sexuais, bem como, por meio das brincadeiras, revelarem seus saberes e discursos sobre a sexualidade. Geralmente, elas escolhem os locais mais escondidos, pois sabem que tais brincadeiras são desautorizadas pelos adultos. Não é raro, também, que, movidas pelo pressuposto da preservação da pureza e da inocência das crianças, educador@s e instituições escolares tenham a postura de interditar tais práticas e saberes, sem dialogar e procurar entender o modo como as crianças estão interagindo com tais informações. Carvalho et al. (2012) relatam situações observadas em um grupo de crianças entre cinco e seis anos de idade, em uma escola de Educação Infantil do município de Rondonópolis (MT), que envolviam brincadeiras com alusões a práticas sexuais, denominadas pelas crianças de prexecar. A reação de professoras e da instituição, ao tomar ciência de tais atitudes, foi a de retirar do espaço a

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mesa sob a qual este grupo de crianças brincava de prexecar, bem como os brinquedos que davam suporte para tais brincadeiras, buscando garantir o envolvimento desse grupo com outras interações lúdicas que não abrangessem o tema da sexualidade. Tais condutas foram alvo de protesto das crianças, que nem por isso deixaram de brincar de prexecar num canto da sala, utilizando-se de outros objetos. Isso, sem dúvida, configura uma postura arbitrária e autoritária por parte da instituição, que denota uma “recusa coletiva da sexualidade infantil, visto que o seu reconhecimento implica em ter que lidar com o que se nega, construir subsídios e elementos que não se encontram acabados no campo social, mas que devem ser construídos conjuntamente, nas situações concretas do dia-a-dia” (CARVALHO et al., 2012, p. 78). No caso relatado, as crianças revelaram ter clareza de que as brincadeiras de prexecar eram reservadas aos bonecos e eram “coisas de adultos”, que “criança não pode fazer”. Ou seja, as crianças “parecem compreender alguns limites que delimitam infância e idade adulta, mas polemizam a rigidez destas barreiras ao demonstrar que também a sexualidade faz parte de seus universos, ainda que de modo reconfigurado” (CARVALHO et al., 2012, p. 78). As crianças sabiam que estavam lidando com essas práticas no plano da brincadeira e, muitas vezes, os adultos, tomados por certo “pânico moral” de que tais questões não pertenceriam ao universo da infância, não compreendem que, nas interações lúdicas, as crianças vão contemplar, ao seu modo, os elementos da cultura em que vivem. Mas, de modo muito paradoxal, ao lado de representações de pureza e ingenuidade associadas às imagens infantis, temos observado imagens bastante erotizadas das crianças, principalmente, das meninas. Jane Felipe (2003) destaca que os corpos vêm sendo instigados a uma crescente erotização, especialmente, via meios de comunicação de massa, alargando-se para as crianças, de modo a configurar um processo de erotização dos corpos infantis. Seguindo as pistas de Jane Felipe, muito facilmente podemos identificar, na produção cultural de nossa época, músicas e coreografias com conteúdo sexual que remetem à sensualidade e erotização, sobretudo, a feminina. Igualmente tem sido comum encontrarmos letras de músicas que mais parecem um culto à virilidade masculina. Não se trata de reprimir ou barrar o acesso de crianças e adolescentes a estas produções culturais; trata-se de, enquanto educadores, poder dialogar com eles e elas de modo a identificar os modelos identitários que estão sendo veiculados sobre o masculino e o feminino, os quais remetem à normalização de que as mulheres, para se constituírem

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enquanto tal, precisam ser sensuais e os homens, viris. Como lembra Louro (2003, p. 41), “homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos de repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações que instituem gestos, modos de ser e estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas apropriadas”.

Gênero, sexualidade e cultura lúdica Os jogos e brincadeiras também têm forte papel de normalização e de construção de referências identitárias de gênero. Via jogos e brincadeiras, circulam informações e aprendizados sobre como é ser homem e ser mulher na sociedade. Segundo Brougère (1998), o brincar constitui atividade dotada de uma significação social e a cultura lúdica é instituída pelo acesso às referências que permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas. Assim, exemplifica o autor: “são raras as crianças que se enganam quando se trata de discriminar no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira”, o que não é fácil para os adultos. A cultura lúdica compreende os esquemas de brincadeiras que permitem organizar jogos de imitação ou de ficção e se apoderam de elementos da cultura. Portanto, nas culturas lúdicas de crianças e adolescentes, podemos encontrar revelações de como as relações de gênero vão sendo construídas e, ao mesmo tempo, como vão fabricando o que é ser menino ou menina, os modelos de masculinidade e feminilidade e suas imbricações com a sexualidade. Por exemplo, na pesquisa realizada por Altmann (1998) em uma escola municipal de Belo Horizonte, ela identificou que as brincadeiras entre os meninos envolviam o bater, “dar porrada”, chutar, bem como a cobrança entre os meninos para uma adesão a estas brincadeiras, pois isso era tido como um indicador para não ser considerado “fraco” perante o grupo. Ser considerado “fraco” era associado pelo grupo à pessoa homossexual e, na visão deles, tido como não homem. Assim, aqueles meninos que se recusavam a participar de tais brincadeiras eram chamados de “gay, boiola, gayola, bichinha”, explicitando uma associação depreciativa e preconceituosa da homossexualidade. Nessa mesma pesquisa, notou-se que, nos jogos e brincadeiras das meninas, sobressaíam as questões como a sedução, o romantismo e o namoro, demarcados pela heterossexualidade. O que está posto nessas brincadeiras relatadas é algo muito sério: são construções estereotipadas do que é ser homem e ser mulher. No caso das 91


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meninas, as brincadeiras remetem ao ideal romântico da união e do cuidado dos filhos e da preparação para o universo doméstico e, no caso dos meninos, as brincadeiras estão atreladas, principalmente, à força, à virilidade e à agressividade, pautadas num investimento de que “ser homem de verdade” implica precisar provar, publicamente, a heterossexualidade por meio de atitudes brutas e violentas. Transgredir tais delimitações de gênero pode custar, ao estudante, manifestações preconceituosas. E o preconceito recai, de forma mais insidiosa, sobre os meninos que ousam atravessar as fronteiras instituídas para a masculinidade heterossexual já que tem sido mais comum as meninas assumirem atividades que, até pouco tempo, eram exclusivamente masculinas do que meninos se ocuparem de afazeres e atividades percebidos tradicionalmente como femininos. Problematizar tais situações de brincadeiras com @s estudantes pode ser um caminho para desmontar a lógica de legitimação de preconceitos e estereótipos que sustentam desigualdades de gênero e a heteronormatividade. É importante pensar que, quando oportunizamos o desenvolvimento de brincadeiras e jogos simbólicos que possibilitem à criança vivenciar outros papéis do que aqueles tradicionalmente esperados para homens e mulheres (meninas cozinham ou cuidam de bebês, homens dirigem carros), estamos permitindo que as crianças participem dos processos de mudanças na sociedade para maior igualdade de gênero e respeito às diversidades. Neste sentido, proporcionar que meninos brinquem de cozinhar ou de cuidar de bebês, significa liberar o florescimento de outras masculinidades. Não raro, educador@s agem com certa permissividade ante as brincadeiras violentas e agressivas dos meninos e interditam quando eles querem brincar de boneca ou de cozinhar. Que tipos de masculinidades estamos cultivando? Por acaso, desaprovamos que homens de hoje cuidem dos bebês, cozinhem e realizem tarefas domésticas? Por acaso, aprovamos condutas agressivas e violentas dos homens?

Diversidade sexual na escola A escola é uma instituição da sociedade e, desse modo, em seu cotidiano, estarão presentes as virtudes e mazelas produzidas por essa mesma sociedade. Mas, devemos pensar a escola como uma via de mão dupla: ela é influenciada pelos valores da sociedade, mas, ao mesmo tempo, a escola tem influência 92


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sobre o processo de construção de valores na sociedade, contribuindo para suas transformações. Ao identificarmos o cenário de discriminações e preconceitos, por exemplo, nas questões de gênero e sexualidade, vemos, no espaço da escola, as possibilidades de peculiar contribuição para alteração desse quadro, bem como para redução das desigualdades, inclusive as etárias. Neste sentido, é impossível não olharmos para a trajetória normalizadora, homogeneizadora e adultocêntrica que a escola carrega e que precisa ser revista. Pelo ideal de homogeneização, somos levados a crer que @s estudantes negr@s, indígenas, homossexuais, transexuais, lésbicas, meninos e meninas deveriam se adaptar às normas e à normalidade, ou seja, por meio de uma reiteração simbólica de tudo o que circula na escola, busca-se desqualificar, minimizar ou eliminar as diferenças, vistas como “defeitos”. Uma lógica perversa se opera: espera-se que aquele que é discriminado adapte-se às regras para que seja tratado como “igual”. O que está em jogo é um processo de esvaziamento do sujeito que se apresenta diferente do padrão socialmente construído e espera-se que @ alun@ tome a iniciativa de ir eliminando ou controlando suas singularidades indesejáveis. E, a partir dessa lógica perversa, as pessoas que não se comportam de acordo com o que socialmente se espera de homens ou de mulheres são consideradas ”anormais”. Mas, não há nada de natural naquilo que é considerado como “certo” por uma dada sociedade no campo da sexualidade. Família, escola, igrejas, instituições médicas e legais, mídia, colaboram mutuamente neste processo constitutivo do que é considerado “certo” ou “errado” ou o “padrão” a ser seguido no campo da sexualidade; ou seja, normalizamos, enquadramos como “normal” somente as condutas que estão dentro desse “padrão” construído. Assim, se a normalização tem como referência a heterossexualidade, tudo o que for diferente disso, será tido como desviante. Ora, a escola precisa romper com o sistema de valores familiares, culturais e sociais que acabam por determinar modelos tidos como “corretos” de vivenciar a sexualidade segundo o qual, o que estiver fora desse padrão, é considerado um “desvio”. Por exemplo, sabemos que é uma construção social a ideia de que o desenvolvimento “normal” da sexualidade conduz à união de um homem e uma mulher e que qualquer outra alternativa representa um desajuste ou problema. Mas, apesar disso, a escola, na maioria das vezes, apresenta apenas um tipo de sexualidade “normal”: aquela que pressupõe o encontro entre adultos heterossexuais, excluindo as outras expressões de sexualidade e formações familiares. Assim, conforme salienta Louro (2003),

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a heterossexualidade é colocada sempre no polo positivo, ficando relegadas as outras possibilidades que não se ajustam a esse modelo – tais como o homoerotismo, autoerotismo, reprodução independente e fora do casal heterossexual, transgênero, intersex, assim como o resultado das uniões consideradas “precoces”, como o caso da gravidez e maternidade na adolescência – ao silêncio, à marginalidade; ou encaradas como “problema” a ser enfrentado. Dessa forma, inclusive nas creches e pré-escolas, é sempre apresentado, às crianças pequenas, seja nas estórias contadas ou nas músicas, nos jogos e nas atividades propostas, o modelo do casal heterossexual. Dificilmente, na creche e na pré-escola, as crianças ouvem estórias que contemplem outras formações familiares. A escola produz e transmite valores e modelos de conduta que acabam normatizando a sexualidade heterossexual, tanto por meio dos conteúdos da educação formal, como através da interação cotidiana com colegas e educador@s. Na interação cotidiana, não é raro educador@s assistirem passivamente a atitudes de rejeição, menosprezo, chacota ou hostilidade às expressões da sexualidade que divergem da heterossexual. Nestas situações, ao não dialogar com @s estudantes sobre essas atitudes, reforça-se, sustenta-se e legitima-se o preconceito e o desrespeito à diversidade sexual. O silenciamento d@ educad@r acaba funcionando como uma permissão para que tais desrespeitos e atitudes preconceituosas continuem a ocorrer, levando aqueles que não se enquadram no modelo heteronormativo a se refugiar no segredo e no silêncio.

Sexualidade na organização do trabalho pedagógico A abordagem da sexualidade no currículo e no trabalho pedagógico das escolas brasileiras é uma discussão antiga, que enfrenta entraves e resistências. É sintomático que esta abordagem tenha sido impulsionada pela preocupação social a partir da década de 1980 com o anunciado crescimento de incidência de gravidez na adolescência e o risco de infecção pela AIDS, ou seja, preocupações de caráter preventivista. Somente no final da década de 1990, as temáticas de gênero e sexualidade foram contempladas nas políticas educacionais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996 e, como tema transversal, no eixo “Orientação Sexual”, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1997 e 1998. Esse eixo esclarece que o trabalho de orientação sexual realizado pela 94


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escola não substitui nem concorre com a família e exige um planejamento e propõe uma intervenção por parte d@s educador@s em diálogo com a família, inclusive porque “pretende-se que a sexualidade deixe de ser tabu e, ao ser objeto de discussão na escola, possibilite a troca de ideias entre esta e as famílias”. Ou seja, os PCN pressupõem que a escola tem o papel de buscar avançar as discussões de gênero e sexualidade para além dos muros escolares, de modo que possa contribuir para que as famílias também reflitam sobre valores e condutas que sustentam desigualdades e alimentam preconceitos e estereótipos. Muitas vezes, podem ocorrer tensões entre a família e escola na abordagem desta temática e é preciso considerar que os valores vivenciados pelos pais na sua infância, bem como na relação pais-filhos eram muito diferentes daqueles que hoje são convocados a vivenciar com seus filhos. Os PCN, não obstante abriguem limitações nas temáticas de gênero e diversidade sexual, representam uma ruptura com a ideia de que a sexualidade é algo pertencente somente à esfera privada das pessoas e da família. Embora nos PCN os eixos “corpo: matriz da sexualidade”, “relações de gênero” e “prevenção das doenças sexualmente transmissíveis/AIDS” estejam alocados na área de Ciências Naturais, o documento também prevê que a temática “orientação sexual” seja trabalhada transversalmente, ou seja, que a abordagem não se restrinja a essa área para que não se constitua uma atividade meramente informadora e reguladora de atitudes e condutas. Uma demarcação importante dos PCN é o fato de a sexualidade ser vista como uma dimensão humana que vai além da capacidade reprodutiva e estar relacionada com a busca do prazer e da afetividade, busca essa entendida como uma necessidade fundamental das pessoas. Além disso, a sexualidade é concebida no documento como sendo construída ao longo da vida, desde o nascimento, manifestando-se de formas diferentes a cada etapa do desenvolvimento humano (RIBEIRO, 2013). Nos PCN, a concepção do tema sexualidade se subsidia nos postulados da Organização Mundial de Saúde. A sexualidade forma parte integral da personalidade de cada um. É uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida. A sexualidade não é sinônimo de coito e não se limita à presença ou não do orgasmo. Sexualidade é muito mais do que isso, é energia que motiva encontrar o amor, contato e intimidade, e se expressa na forma de sentir, na forma de as pessoas tocarem e serem tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e tanto a saúde física como a 95


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mental. Se a saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada como um direito humano básico (BRASIL, 1998, p. 295).

Deste modo, priorizar somente a prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e o tema da reprodução humana e seus modos de evitá-la ou limitar os temas de sexualidade às aulas de ciências, não contempla uma educação voltada para o prazer, a afetividade, a liberdade e a valorização da diversidade sexual. Os conteúdos relacionados à sexualidade humana devem ser trabalhados por todas as disciplinas e por todos @s educador@s, isto é, nas diferentes áreas do currículo. Sem dúvida, trabalhar estas questões na escola constitui um grande desafio. Provavelmente, a maior dificuldade em trabalhar com temáticas da sexualidade na escola seja decorrente da visão que se construiu de que as crianças são seres assexuados cuja suposta inocência deve ser preservada e, para tanto, não deveriam ter qualquer contato com essas questões. Assim, muitas vezes, sem perceber, são criadas várias estratégias para interditar esse assunto. Por exemplo, em situações de abordagem sobre o corpo humano é comum a apresentação do corpo nu com genitália encoberta ou mesmo sem a genitália. Aliás, é uma raridade encontrarmos bonecas e bonecos que apresentem a genitália. Ou seja, o cotidiano da escola é permeado por ações que desautorizam o aparecimento do corpo nu. Ao ficarmos sempre encobrindo a genitália ou sumindo com ela nas figuras do corpo humano, não acabamos ensinando às crianças que a sexualidade e o corpo são motivos de vergonha? Ou seja, as ações de interdição acabam ensinando algo. Outro recurso utilizado na escola para evitar os desconfortos quando se fala dessa temática é recorrer ao conteúdo biológico e científico sobre a questão e se limitar apenas a essa dimensão. Ribeiro, Souza e Souza (2004) trazem relatos de situações de estudo do corpo humano nas quais, quando @s alun@s utilizavam apelidos para nomear órgãos da genitália (por exemplo, “bolas” para nomear os testículos) ou faziam perguntas sobre o uso da camisinha ou sobre sexo e DSTs, as professoras se reportaram somente às explicações e às categorizações do campo biológico ou científico. Desse modo, fica a mensagem de que essa é a única forma permitida de falar sobre o assunto dentro da escola, ou seja, é uma forma de interditar que o assunto apareça a partir de outras perspectivas ou a partir dos próprios saberes dos alunos. Nessa escola, os autores observaram também a “interdição na forma de uma ação que desautorizou o aparecimento do corpo nu de crianças, autorizando 96


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apenas o corpo com a genitália encoberta” e analisaram que “essas situações tornam visível a ação de mecanismos que produzem verdades sobre a sexualidade: pode-se falar nela, mas através do discurso biológico; pode-se olhar o corpo, mas desprovido de sexo” (RIBEIRO; SOUZA; SOUZA, 2004, p. 115). Muitas vezes, @s educador@s também negam ou colocam no campo “não autorizado” os saberes e/ou condutas com conotação sexual que @s alun@s apresentam, como se somente @s educador@s pudessem demonstrar conhecimentos nesse campo. Assim, não é rara a tentativa de interditar e reprimir manifestações de crianças e adolescentes com conotação ou referência a atos sexuais, pois são vistos como algo anormal. Então, quando @s alun@s trazem, espontaneamente, os conhecimentos que têm sobre sexualidade, a reação de adultos pode ser o julgamento de que isso é algo completamente inapropriado para a idade. As crianças constroem seus saberes sobre a sexualidade a partir das mais variadas fontes: família, mídia, músicas, clube, escola, grupo de amigos. As crianças não são pessoas à parte da sociedade e não são seres assexuados; portanto, não constitui uma aberração o fato de elas falarem, gesticularem, fazerem referência a atos/condutas sexuais, terem curiosidades e saberes referentes ao corpo e à sexualidade. E isso, de modo algum, representa uma “precocidade” das crianças no campo da sexualidade, pois elas vivenciam e atribuem significados muito diferentes daqueles dos adultos. No entanto, os adultos tendem a julgar tais falas e comportamentos do campo sexual como inapropriados ou anormais porque os olham a partir da ideia da preservação da suposta inocência. Ao interditar e proibir, os adultos ensinam que se deve silenciar sobre estas questões, que a sexualidade é algo feio e condenável, que as dúvidas e saberes das crianças não são legítimos. Em relação aos adolescentes, até é mais comum se admitir que se deve abordar a temática da sexualidade com eles já que, do ponto de vista biológico, estariam aptos para diversas práticas. Mas o que ainda tem preponderado é uma representação d@s adolescentes como seres irresponsáveis, contribuindo para uma abordagem com adolescentes pautada em uma espécie de “pedagogia do medo”, cujo foco recai somente na prevenção da “gravidez indesejada” e de doenças sexualmente transmissíveis, ou seja, acaba prevalecendo uma abordagem negativa da sexualidade, não obstante o exercício da sexualidade com responsabilidade seja algo importante tanto para adolescentes como para adultos.

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Considerações finais Enfatizamos neste texto que a temática da sexualidade no cotidiano escolar é algo que extrapola o planejamento de conteúdos específicos. Embora possamos pensar que “nós não tivemos educação sexual”, não podemos afirmar que nós não fomos educados sobre a sexualidade, ou seja, não podemos dizer que nós não tenhamos valores sobre a sexualidade e estes valores são socialmente construídos. Assim, para o nosso trabalho como educadores, é necessário questionar e estar abertos para repensar os preconceitos e estereótipos sob os quais fomos educados. O papel d@s educador@s não é somente o de transmitir conteúdos correlatos a sua disciplina, como se sua atuação com @s estudantes pudesse ocorrer de modo isolado às relações que se dão no interior da escola e da sociedade. A escola, por seus propósitos, pela obrigatoriedade legal e por abrigar distintas diversidades (de gênero, sexual, étnico-racial, etárias, culturais) requer que a atuação d@s educador@s esteja comprometida com a tarefa de educar para a valorização da diversidade e para a diminuição das desigualdades, inclusive as etárias. Um dos maiores desafios da escola é buscar romper com as tentativas que se operam no seu cotidiano para ajustar @s alun@s ao “padrão” tido como “normal”, bem como as práticas desrespeitosas que não incluem as crianças e adolescentes como participantes do processo educativo e que não os consideram como atores sociais de pleno direito. Quando @s educador@s compreendem que seu papel não é o de atuar como vigilantes da sexualidade de crianças e adolescentes, a prática pedagógica fica mais fácil e mais respeitosa. Um dos maiores desafios para todos é olhar a temática de gênero e sexualidade por vários ângulos, é perceber as assimetrias que atingem crianças e adolescentes, é reconhecer que esse outro criança/adolescente tem menos poder na escola e na sociedade, é romper com atitudes adultocêntricas que desconsideram as vivências, os medos, as alegrias e tristezas das crianças e adolescentes; é questionar o que parece ser “natural” e inquestionável.

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Infância, sexualidade e contemporaneidade em debate: entre o sagrado e o profano1 Raquel Gonçalves Salgado Carmem Lúcia Sussel Mariano Evandro Salvador Alves de Oliveira

Introdução A infância, como tempo da inocência, é uma das imagens seculares na qual se fundam as concepções da vida humana, de sujeito e de mundo, na cultura ocidental. A família nuclear e a escola, no auge da modernidade do século XVII, se consolidam como instituições sociais que assumem a responsabilidade de dar vida e corpo a essa imagem, que se perpetua nos discursos, nas práticas sociais, nas cenas políticas e nas relações cotidianas com as crianças, nas mais diferentes esferas da vida social. Ainda que estejamos vivendo, em tempos atuais, transformações culturais e subjetivas intensas, postas por práticas de consumo, pela emergência de novas tecnologias que medeiam as relações humanas e mexem com estruturas sociais e paradigmas balizadores de sistemas de pensamento, o manto sagrado da inocência em torno da infância mantém sua força simbólica. Neste trabalho, debruçamo-nos sobre o debate, que consideramos indispensável no campo da educação, sobre as imagens sociais da infância, muitas vezes paradoxais, que circulam na vida social, na escola e nos discursos públicos, e trazem ora a inocência como moldura, ora a sexualidade, por um lado, como o elemento violador dessa sacralização e, por outro, como valor da cultura do consumo. Nas cenas do processo histórico de constituição do conceito de infância na cultura ocidental, a sexualidade precisa ser expurgada da vida das crianças para a solidificação do desenho da infância inocente. Por outro lado, no tempo presente, outras cenas aparecem: crianças que compartilham assuntos, 1 Este artigo foi produzido a partir do trabalho completo apresentado no Grupo de Trabalho “Educação de Crianças de 0 a 6 Anos” (GT-07), da 37ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), na Universidade Federal de Santa Catarina, em outubro de 2015.


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saberes, experiências e valores atravessados por discursos midiáticos que têm na sexualidade o seu mais forte dispositivo; crianças cujos corpos são ressignificados nessa rede complexa de signos contemporâneos – produtos e imagens – em busca de uma visibilidade alcançada pela sedução e erotismo. Diante dessas cenas, buscamos discutir algumas questões: que imagens de infância aparecem nas cenas da vida cotidiana e maculam a aura da inocência? Como as experiências das crianças com a sexualidade têm desenhado outros territórios e mapeamentos da infância no cenário contemporâneo, sobretudo nos contextos educativos? Para tanto, entramos no debate, iniciado por Buckingham (2007) na virada do século XXI, sobre a infância na contemporaneidade, a partir da publicação de trabalhos de pesquisadores que passam a se debruçar sobre o fenômeno das repercussões das transformações culturais na vida das crianças, principalmente nos Estados Unidos. Um desses pesquisadores é Neil Postman, que publica, em 1994, em Nova York, a obra O desaparecimento da infância, a qual passou a assumir um status paradigmático para os argumentos que advogam a favor do esmaecimento de fronteiras entre a vida adulta e a infância, a ponto de desembocar na morte desta última na contemporaneidade. Por entendermos que este é um debate que, embora tenha se iniciado há mais de uma década, carrega, ainda, tensões e controvérsias, sobretudo no campo da educação, optamos por, neste artigo, retomá-lo, dando visibilidade à sexualidade das crianças como um dispositivo de poder que se efetiva no campo dos discursos (FOUCAULT, 2006). Assim, trazemos à tona cenas de crianças, em espaços educativos, que compartilham referências simbólicas da mídia fortemente pautadas em modos de se relacionar com o corpo, relacionamentos amorosos e sedução, bem como discursos públicos que situam a sexualidade das crianças na ordem do risco e da prevenção. Com o propósito de tornar o debate mais profícuo, ancoramo-nos em uma pesquisa realizada com crianças, com idades entre 4 e 5 anos, de uma escola de Educação Infantil (EMEI), da rede pública municipal de ensino. A abordagem metodológica pauta-se na imersão no cotidiano das crianças dentro da escola2. Nas interações estabelecidas com as crianças, o pesquisador-adulto se insere em um processo discursivo que se abre para a compreensão dos sentidos que são produzidos nessas interlocuções. Nos 2 Nessa pesquisa, adotamos como recurso metodológico a observação participante das relações entre as crianças, acompanhada por registros em diários de campo e em gravador de voz digital, mediante a autorização prévia das crianças e pais ou responsáveis.

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tempos e espaços da pesquisa, as crianças, nos diálogos que estabelecem entre si e com os adultos – pesquisador e professora –, constroem valores e experiências que dão vida aos grupos e culturas lúdicas que compõem. Buscamos, como grupo de pesquisa, pôr em prática uma metodologia que assumisse que as relações com as crianças, na pesquisa, fossem o mote para a compreensão dos discursos que se processam nesse contexto. Além disso, consideramos que tais discursos são atravessados por outros discursos sociais, que circulam entre as crianças, constituindo seus valores, experiências e modos de organização social no espaço educativo. Nesse sentido, admitimos que a produção de conhecimento sobre a infância não se dá no tratamento metodológico de tomar a criança como um sujeito isolado, arrancado de seu contexto, mas como ator social que, no próprio processo de pesquisa, traz os sentidos de viver a infância em uma temporalidade e cultura bem específicas.

Uma história da infância: a inocência e a sexualidade das crianças no jogo de poder e prazer A história contada por Philippe Ariès (1981) sobre o processo de construção histórica do conceito de infância na cultura ocidental é recheada de elementos singulares que trazem situações do cotidiano vividas por crianças e adultos, nas sociedades da França e da Inglaterra, da Idade Média à Modernidade. Um desses elementos diz respeito à presença da sexualidade nas relações cotidianas de crianças e adultos nesses contextos. Com o propósito de dar visibilidade às mudanças de valores, práticas sociais e costumes que marcam as rupturas da cultura moderna em relação à medieval, Ariès (1981) debruça-se sobre os relatos do médico Heroard, em seu diário, sobre os relacionamentos cotidianos do menino Luís XIII com os pais e as amas. Diário este considerado pelo historiador como o documento mais exemplar da ausência do sentimento moderno da infância na virada do século XVI para o XVII. A ausência do decoro nas condutas, os contatos corporais de crianças com adultos em brincadeiras sexuais, os gestos, os toques e as palavras despidas de vergonha e pudor não maculavam a inocência da criança, atributo que, nesse momento histórico, tampouco era assumido como condição da vida infantil. Ariès (1981) mostra que um dos mais fortes pilares de sustentação do conceito moderno de infância está exatamente nesse processo de moralização das condutas infantis com o claro propósito de afastar da vida das crianças toda 103


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e qualquer ideia ou manifestação que remeta à sexualidade. Gerson, um dos mais emblemáticos representantes dessa corrente moralista que ganha força no século XVII, revelou-se como um “excelente observador da infância e de suas práticas sexuais” (ARIÈS, 1981, p. 132). Seu esforço lança para o campo dos discursos públicos normas que passam a ser aplicadas por meio da fiscalização e vigilância intensa das condutas e dos relacionamentos das crianças e desembocam na instauração de um sentimento de culpa que, além de reger suas ideias e comportamentos, é fortemente reiterado por educadores e confessores. A doutrina moralista, inicialmente impulsionada por Gerson e posta em prática nas instituições educacionais, pauta-se em princípios que prescrevem a vigilância das crianças em seus tempos e espaços cotidianos, a seriedade, o recato, a modéstia e a decência nas condutas e nas linguagens como regras indispensáveis para a educação das crianças (ARIÈS, 1981). É no século XVII que, na cultura ocidental, a noção de inocência infantil se impõe, com o enaltecimento da fragilidade e vulnerabilidade das crianças. Elas, ao serem comparadas com os anjos, ficam envoltas no manto sagrado da inocência como marca de sua impecabilidade. A díade inocência e infância, como destaca Ariès (1981, p. 144), resulta de uma dupla atitude moral perante esta última: preservá-la, por um lado, da imundície da vida mundana, exacerbada pela sexualidade permitida e, por outro, fortalecê-la por meio do desenvolvimento do caráter e da razão, como antídotos contra as “paixões desregradas” e os instintos mais primitivos. As mudanças de atitude perante a infância, afirma Gélis (2010), demarcam mutações culturais e sociais profundas, incluindo outras relações com o corpo que, a partir do século XVII, com a constituição da família nuclear burguesa, é arrancado simbolicamente da família-tronco-comunitária para individualizar-se na família conjugal. Até o início do século XVII, como nos mostra Foucault (2006, p. 9), os “corpos pavoneavam” sem incômodo nem descanso. Já no auge desse mesmo século, a sexualidade também é expurgada da vida coletiva e cuidadosamente encerrada no quarto do casal. A ordem familiar moderna encerra-a na função de reproduzir e atribui ao casal a legitimidade de dizer sobre ela e normatizá-la, nomeando-a como segredo. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a ver-

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dade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais (FOUCAULT, 2006, p. 9-10).

Mais do que repressão, destaca Foucault (2006), o que o século XVII inaugura é um sistema poder-saber-prazer, no qual a sexualidade se apresenta como dispositivo privilegiado. A sociedade vitoriana burguesa, no auge do capitalismo, ao dizer sobre a sexualidade, coloca-a no campo do discurso ao mesmo tempo em que a enclausura na ordem do segredo. Trata-se de uma sociedade que “fala prolixamente de seu próprio silêncio” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Ao tornar-se fato discursivo, a sexualidade passa a funcionar como um dispositivo de poder que prolifera pelos mais diversos canais: instituições sociais, espaços, regulamentos e condutas. No caso das crianças, as escolas são fortes espaços sociais em que a sexualidade se prolifera como discurso que, quanto mais se enuncia, mais adquire existência como algo a ser contido e disciplinado; mais ganha efeitos de poder. O espaço da sala de aula, dos pátios, dos refeitórios, dos dormitórios, o arranjo das mesas e cadeiras, tudo isso fala de maneira prolixa da sexualidade das crianças como forma de constatar e controlar sua existência (FOUCAULT, 2006). Constitui-se uma aparelhagem social de produção de discursos sobre a sexualidade, na qual cabe muito mais falar do que condenar ou tolerar, com o propósito de gerir e regular segundo padrões perfeitos de utilidade e funcionamento. “O sexo não se julga apenas, administra-se” (FOUCAULT, 2006, p. 31). Nesse processo de administração da sexualidade, cumpre, também, mantê-la sob a égide do segredo, no instante em que é posta como discurso e dela se passa a falar. Nessa teia de relações, instauram-se, para Foucault, espirais de poder e prazer, elementos estes que não se anulam, ao contrário, interpenetram-se num movimento que se efetiva, por um lado, no poder invadido pelo prazer que persegue e que se afirma na resistência a esse mesmo poder e, por outro, no prazer que se realiza na vigilância e na fiscalização, bem como no escape a esse poder. À medida que as sexualidades ditas periféricas – dentre elas está a sexualidade das crianças – são isoladas e assim consolidadas, as relações de poder com a sexualidade e o prazer se multiplicam e se entranham com eficácia nos corpos e nas condutas (FOUCAULT, 2006, p. 56). Entramos no século XXI, numa era aparentemente muito distinta da Época de Ouro da Infância (século XVII), mas ainda fortemente atravessada 105


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por debates e embates sobre esse tempo de vida, suas linhas divisórias com a idade adulta, o que pertence ou não ao seu território. É sobre a rede dos discursos mais contemporâneos que nos debruçamos para compreender como a sexualidade das crianças continua sendo um discurso que aparece como um divisor de águas da infância com as outras temporalidades da vida humana.

Quando o “anjo” cai no mundo Neil Postman (1999), atento às intensas transformações tecnológicas, culturais, sociais e subjetivas que, nas últimas décadas do século XX, já estavam presentes nos Estados Unidos, põe a público a obra intitulada O desaparecimento da infância. Suas análises fundamentam-se na afirmação de que a infância se define em íntima relação com as tecnologias de informação e comunicação vigentes em uma sociedade. No caso da sociedade moderna, a emergência da imprensa foi uma das fortes desencadeadoras da infância como conceito e paradigma da cultura ocidental, posto que o valor social das crianças advém da necessidade de educá-las, no interior das escolas, para que possam compreender e compartilhar os conhecimentos e as informações de uma cultura que vai se tornando cada vez mais letrada. É, portanto, dentro das escolas que as crianças se formam para assumir uma cidadania cujo exercício torna imprescindível, a cada dia, a apropriação dos signos linguísticos da tecnologia impressa que se efetiva por meio da alfabetização, do ensino da leitura e da escrita. Com o olhar focado nas mudanças tecnológicas e culturais a partir da segunda metade do século XX, Postman (1999) anuncia a derrocada da infância em seu sentido moderno. Para ele, enquanto a prensa tipográfica cria condições indispensáveis para o delineamento da linha divisória entre os mundos de crianças e adultos, a televisão derruba essas fronteiras. Enquanto a impressa requer formação, posta em prática pelos adultos nas escolas, para que as crianças possam compreender as informações e os conhecimentos que faz circular na sociedade, a mídia televisiva, ao contrário, não exige de seu público qualquer tipo de preparação para interpretar seus signos nem promove segregações. Com a televisão, os segredos, antes preservados, agora se diluem na corrente de informações que esse meio de comunicação abre para todos/as, sem distinção etária. Dentre esses segredos, estão assuntos e experiências que remetem à sexualidade. Para Postman (1999, p. 94), um mundo sem segredos é um perigo para a infância e para a demarcação de sua fronteira com o mundo adulto: 106


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O novo ambiente midiático que está surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. Dadas as condições que acabo de descrever, a mídia eletrônica acha impossível reter quaisquer segredos. Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância.

Nessa perspectiva, a sexualidade, que havia sido expulsa do jardim da infância, com a mídia televisiva, passa a estar disponível para todos e quebra a divisória das idades, apresentando-se como um único produto para crianças e adultos. Tensões e contradições permeiam o debate sobre a infância contemporânea. David Buckingham (2007), em sua tese de doutorado3, entra nesse debate, ressaltando que tanto aqueles que, como Postman (1999), decretam a morte da infância com o advento da mídia na cultura ocidental, quanto os que consagram a sua redenção com a tese da expertise natural das crianças em relação às novas tecnologias, como Tapscott, Papert, Katz e Rushkoff4, fundamentam-se em perspectivas essencialistas da infância. Partindo da ideia de infância como construção social, que ganha diferentes sentidos em distintas épocas e culturas, Buckingham (2007) afirma que as fronteiras entre infância e vida adulta são desenhadas e redesenhadas, ao passo que as referências simbólicas em que estas se constituem também vão assumindo novas facetas. Definir categoricamente o que pertence ao mundo da infância e ao mundo adulto significa tratar as experiências e relações entre crianças e adultos como acontecimentos apartados das transformações que movimentam a vida social e cultural. Nesta perspectiva, o desaparecimento da infância, portanto, só faz sentido dentro de uma lógica unívoca da infância, presa aos valores e às práticas culturais do momento histórico em que foi forjada. O jardim sagrado da infância, erigido na Época de Ouro, tem sido cotidianamente violado pelas próprias crianças, que resistem a ficar confinadas em seus cercos (BUCKINGHAM, 2007, p. 16). Por outro lado, a linha divisória entre o mundo da infância e o mundo adulto é insistentemente patrulhada, inclusive nos dias atuais, na família, na escola e nas demais esferas da vida pública, no sentido de se retirar as crianças ou, ao menos, afastá-las de terrenos profanos, sitiados pela violência e pela sexualidade. A aproximação das crianças desses territórios – ou, até mesmo, o seu ingresso neles – acaba 3 O título original da tese em inglês é “After the death of childhood: growing up in the age of electronic media”, publicada em Londres em 2000. 4 Autores citados e comentados na obra de Buckingham (2007).

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por desenhar outras imagens da infância e da vida adulta, o que resulta em processos de negociação permanente. Configura-se – nas análises de Buckingham e Bragg (2004), em uma pesquisa, realizada na Inglaterra, com crianças, adolescentes e seus pais, sobre o que pensam a respeito dos programas de mídia que trazem a temática da sexualidade – uma espécie de “efeito dominó”: a cultura da mídia e do consumo deflagra o alargamento das experiências das crianças com a sexualidade e, com isto, a perda da inocência. Nesse encadeamento, o conhecimento e as experiências sexuais das crianças, potencializados pelos discursos midiáticos, enfraquecem as fronteiras entre a infância e a vida adulta, erigidas historicamente para protegê-las. Retomando as análises de Foucault (2006), vemos que os discursos que aprisionam as crianças no jardim sagrado da infância são os mesmos que visam protegê-las, enquanto os que as libertam dessa redoma são os que podem violentá-las. Entrando no mundo real, deparamo-nos com crianças que, em suas interações cotidianas com músicas, danças, filmes, novelas, publicidade, desenhos animados, vão compondo outros valores e sentidos para suas experiências de infância. Nessa rede de discursos midiáticos, as crianças põem em xeque a inocência que, há séculos, se instituiu como um dos seus mais emblemáticos atributos, consagrando-se como sinônimo de “natureza infantil”. Além disso, desafiam o lugar dos adultos – pais e professores/as – que, na maioria das vezes, relutam em compreender tão intensas e profundas mudanças. Letras e danças de músicas do funk carioca5, muito presentes nos discursos e nos saberes que as crianças compartilham, trazem uma erotização fabricada e têm como correlato um ideal do corpo feminino sedutor, fortemente atrelado ao consumo. Por outro lado, essas mesmas letras e danças, já presentes nas culturas das crianças, retiram a sexualidade do esconderijo do segredo da vida adulta e a tornam visível nas experiências e nas vidas das crianças. Trazemos aqui uma situação vivida na pesquisa com as crianças de uma escola de Educação Infantil, em que a música funk “Ela é Top”6, cantada por Mc Bola, passou a ser o hit do momento. A introdução da música e das danças na turma se deu a partir de uma das meninas, que se destacou por dançá-la e cantá-la, com coreografia sensual, rebolados, mãos nos joelhos, 5 O funk é um gênero musical que derivou da música negra norte-americana no final da década de 1960. 6 “Ela é top” é uma música que obteve sucesso na mídia. Sua composição é de Mc Bola e Leo Rodrigues. Mc Bola é o cantor da música e personagem principal (além da moça bela e sensual) do videoclipe disponível na internet em: <http://www.vagalume.com.br/leo-rodriguez/ela-e-top.html>. Acesso em 30/03/2015.

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descendo até o chão. Questionada por nós, pesquisador e professora, sobre como aprendeu a letra da música e sua coreografia, a menina, acompanhada de sua irmã gêmea, que também integra a turma, contou que, quando estavam em casa ouviram a música e assistiam ao videoclipe no notebook da tia porque não possuíam aparelho de TV em casa. As meninas disseram, ainda, que a ausência da televisão se devia ao fato de os pais serem evangélicos e proibirem-nas de assistirem TV. A tia, por outro lado, permitia que as meninas tivessem acesso tanto à música quanto às danças, uma vez que o videoclipe estava disponível na internet. A presença intensa da música acabou deflagrando uma oficina, organizada pelo pesquisador e pela professora da turma, com o propósito de compreender, por meio de diálogos com as crianças, os sentidos que constroem sobre a música e as imagens que a acompanham. Apresentamos o videoclipe, via Youtube7, às crianças, utilizando o notebook, na videoteca da escola. Desse modo, música, dança e enredo foram foco de um debate na turma, provocado pela seguinte questão: o que significa ser top, arrasar no look, tirar foto no espelho, postá-las no Facebook? Apresentamos, abaixo, o refrão da música “Ela é top”:

Ela não anda, ela desfila Ela é top, capa de revista É a mais mais, ela arrasa no look Tira foto no espelho pra postar no Facebook A música nos convida a refletir sobre como as crianças decidem compartilhar referências culturais não autorizadas pela família, porém, valorizadas pelo grupo de pares na escola. Essas referências simbólicas, que trazem a sensualidade e a exibição do corpo como valores, são da ordem do segredo para a infância, assuntos aos quais as crianças não podem – ou ao menos não poderiam – ter acesso. O interessante é que, ao desvendarem o mistério e atravessarem a suposta fronteira da infância para a vida adulta, as meninas o mantêm como sigilo na família, mas o compartilham e exibem-no na escola, junto às outras crianças. Após a exibição do videoclipe, fizemos perguntas sobre o refrão da música: 7 Youtube é um site que permite aos seus usuários carregarem (fazerem o download) e compartilharem vídeos em formato digital.

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Pesquisador: E quando a música fala assim: “Ela é top”, o que quer dizer “ela é top”?

Criança: Ele [o Mc Bola] pega a revista e fica olhando pra ela. Ele pega a revista, ele olha, ele olha ela. Professora: Então, peraí, vamos ver se nós entendemos. Então, quer dizer que é top quem sai na revista? Criança: É!!! Pesquisador: Então, ser top quer dizer estar numa capa de revista? Criança: É, olha lá (apontando para o vídeo). Ela olha pra ele e depois ele olha com o óculos dele pra ela. E ele olha na revista, e é ela.

Tal como no discurso da música, ser top significa, para as crianças, aparecer na capa da revista. O “olhar” tem presença marcante nos discursos das crianças, aparecendo como a principal referência para definir o que é top: “ela olha pra ele e depois ele olha com o óculos dele pra ela. E ele olha na revista, e é ela”. Trata-se da conquista de uma visibilidade precisa, que não pode ficar sob suspeita: os óculos que conferem e certificam a imagem que está na revista, visível a todos em largo alcance. Outra questão explorada por nós foi o ser “mais mais”, que também aparece no refrão da música. Pesquisador: Mas o quê que é esse “mais mais”? É mais o quê? Quando fala assim: “ela é mais mais”, o que poderia ser? As crianças pensam... Pesquisador: Pode ser mais gorda? Crianças: Nãoooooo!!! (Em coro elas responderam e riram). Pesquisador: Mais magra pode? Crianças: Pooode!!! Pesquisador: Por que não pode mais gorda? Criança: Porque é igual a minha mãe. Professora: Uai, por que é mais gorda não pode ser top?! Crianças: Nãoooo!!!... Professora: Me fala uma coisa, gorda não pode ser top? Por 110


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quê? Criança: Não pode. Porque senão o vestidinho curto não serve. Pesquisador: Ah tá! Tem que ser magra, então! Magra pode? Criança: Sim. Magra pode! Pesquisador: Tem que ser mais o quê? Criança: Tem que ser mais top, tem que ser mais.... tem que ser top. As crianças entraram numa discussão de que para ser top tinha que tirar foto no espelho.

Requisitos são necessários para conquistar a visibilidade. Um deles é ter o corpo magro, esbelto e sensual, que aparece como forte signo de beleza na cultura midiática contemporânea. Corpos não fabricados e trabalhados, de mulheres comuns, como a mãe, mencionada por uma das crianças, não alcançam a visibilidade e o status de “mais mais”. Pesquisador: Gente, e quando a música fala: “tira foto no espelho pra postar no Facebook”? Criança: É porque ela tira foto no espelho, vai e coloca no Facebook. Criança: Não, é assim ó: ela tira foto e coloca no face. Pesquisador: O que é Facebook, eu não sei gente...é o quê? Crianças: Eu sei, eu sei, eu sei!!! Crianças: É isso aí, ó!!! (Apontam para o notebook). Pesquisador: Ah, é o computador?! Hummm!... E o que faz no Facebook? Criança: Facebook é internet, ele tem internet, ele tem um monte de coisa, tem vez que ele passa música. Pesquisador: Alguém aqui tem Facebook? Criança: Eu tenho. Eu sei, é um computador. Pesquisador: E vocês já tiraram foto no espelho para colocar no Facebook? Crianças: Eu já! Eu já!

Posar frente ao espelho, usar o celular para tirar foto e postá-la no Fa111


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cebook, tudo isso funciona como estratégia para garantir a visibilidade e a identidade top que a música consagra. O corpo feminino magro, esbelto e sensual, de vestido curto, aparece como um produto que precisa ser exibido nas vitrines da cultura midiática. As crianças já percebem e identificam espelhos dessa cultura – no caso, o Facebook –, nos quais suas imagens e corpos precisam ser projetados para conquistar visibilidade. Nesses espelhos, o olhar para si requer o aval constante do olhar do outro, representado por uma esfera midiática que atravessa fronteiras de tempo, espaço e, certamente, etárias. Nesses espelhos, as crianças são, também, convidadas a mirarem-se e aprenderem a compor suas identidades, corpos, experiências e desejos, ancorados em códigos que circunscrevem subjetividades e as relações humanas nas molduras da cultura do consumo.

Quando a sexualidade das crianças entra em cena no debate público Se nestas cenas as crianças lidam com questões que estariam “fora da infância”, é a existência em si da infância que estaria em xeque, ou seria o modo como a infância vem sendo construída por determinados discursos que a circunscrevem como um tempo de inocência e de proteção? Impossível não adentrarmos aqui no terreno melindroso, minado por tensões, decorrentes em boa parte do debate político sobre a infância e seus direitos. Se as crianças puderam, mesmo que tardiamente, ter seus direitos reconhecidos em marcos legais (Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança / ONU de 1989, Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990), ainda é ambíguo o modo como nós, adultos, lidamos com a alteridade da criança. Muito embora tais marcos legais confiram aos sujeitos até os 18 anos direitos de proteção, provisão e de liberdade/participação, foram os direitos de proteção que tiveram maior ênfase não somente nos próprios textos legais, mas também na difusão e defesa desses direitos. Quando nos pronunciamos sobre os direitos das crianças, em geral, é sob a perspectiva da proteção, ante sua vulnerabilidade inerente, mas não podemos negar a dignidade humana das crianças que também está inscrita nos direitos de liberdade e participação. Não se trata de ponderar qual vertente de direitos é a correta, trata-se de uma tensão insolúvel posta no mundo contemporâneo pelos marcos legais da infância entre a proteção e a liberdade de crianças, em boa parte porque 112


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nós, adultos, ainda ensaiamos sobre como lidar com a alteridade das crianças (RENAUT, 2002). Em especial sobre a questão da sexualidade de crianças e jovens, tanto a Convenção quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não a contemplam pela ótica do “direito a”, mas sim somente na perspectiva do “direito de” serem protegidos contra o abuso e a exploração. Pirotta e Pirotta (2005, p. 88) salientam que o ECA “é tímido no tocante aos direitos sexuais e reprodutivos”, posto que sua formulação é pela negativa: “tem sempre o intuito de prevenir o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes pelos adultos. É notável a ausência de direitos afirmativos referentes à vida sexual e à vida reprodutiva”. Deste modo, problematizamos que a ênfase dada à perspectiva do abuso e da proteção obnubila os direitos sexuais de crianças e as invisibilizam como portadoras de interesses próprios. Dessa maneira, estaria prevalecendo uma perspectiva tutelar em relação às crianças. A exclusão da perspectiva dos direitos na discussão da sexualidade de crianças pode acarretar a violação de vários outros direitos: o direito à privacidade, ao sigilo, à informação, à não discriminação, ao consentimento informado (VENTURA, 2005; PIROTTA; PIROTTA, 2005). Os discursos que circulam sobre a infância contribuem sobremaneira para o modo como as representações da infância são construídas. Se é inegável o direito da criança de ser protegida contra abusos sexuais, problematizamos os efeitos dessa perspectiva da sexualidade das crianças associada preferencialmente ao viés negativo, do abuso, da violência, da exploração. Tal perspectiva reforça a imagem da “inocência violada da infância”, permitindo sua inscrição como “vítima”.

Algumas considerações Músicas, danças, funk, sensualidade, sedução, beleza, visibilidade: ingredientes que alimentam as culturas das crianças e ganham presença na escola. São discursos da ordem do “profano”, se consideramos a sua potência de macular o princípio fundador da infância moderna, que é a inocência. Discursos estes que, mesmo rejeitados pela família e pela escola – instituições sociais que são os ancoradouros históricos da imagem da infância inocente –, estão presentes nos corpos, nos gestos, nas linguagens, nos artefatos, nas roupas e nos valores das crianças. É irrevogável o papel que as mídias eletrônicas hoje cumprem na com113


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posição das experiências culturais da infância contemporânea. Não há mais como afastar as crianças desses signos e códigos midiáticos que, muitas vezes, desfazem o mapeamento da infância de fronteiras bem definidas com o mundo adulto (BUCKINGHAM, 2007). Nessa cultura, que tem a mídia como um dos seus espaços sociais mais intensos de produção simbólica, o “profano” entra na escola sem pedir licença. Penetra nas relações das crianças, em seus grupos, a ponto de se tornar linguagem comum. Perguntamo-nos: o que a escola faz com isto? Como vê, recebe, responde e se responsabiliza por isto? Não são perguntas fáceis de responder ou, pelo menos, para as quais tenhamos respostas definitivas ou acabadas. A forte tendência de responder a tais questões é operar com esses discursos “profanos”, unicamente pela via da proteção, haja vista sua potência violadora do mais caro valor imputado à infância, sua inocência. Entendemos que esse esforço está destinado ao fracasso, dada a impossibilidade de arrancarmos essas referências simbólicas das vidas das crianças. Por outro lado, mais do que proteger, cabe àqueles/as que estão diretamente implicados/as na educação das crianças apropriarem-se desses signos, objetos, imagens e discursos pelo viés da crítica, com a abertura de fendas para a criação de culturas que não permaneçam encerradas dentro da moldura da lógica do consumo, em que corpos, sexualidade, beleza passam a estar disponíveis como produtos em uma vitrine. Foucault (2006) nos provoca a pensar na produção desses discursos para além de sua superficialidade e em seus entrelaçamentos muitas vezes contraditórios: que sistema de relações de poder-prazer se enreda nos modos como a sexualidade entra nos discursos contemporâneos? O que os apelos à visibilidade se esforçam por mostrar e, ao mesmo tempo, silenciar? No caso das crianças, os discursos midiáticos “profanos”, que as libertam do “jardim sagrado da infância” e lhe arrancam a inocência, não carregam a multiplicação de poderes que circunscrevem seus prazeres na ordem do consumo?

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Referências ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. BUCKINGHAM, D. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Edições Loyola, 2007. BUCKINGHAM, D.; BRAGG, S. Dentro ou fora da infância? Crianças, adolescentes, sexo e mídia. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 16.2, p. 13-33, 2004. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. GÈLIS, J. A individualização da criança. In: ARIÈS, P.; CHARTIER, R. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes: vol. 3 São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 311-329. PIROTTA, W. R. B; PIROTTA, K. C. M. Relações de gênero e poder: os adolescentes e os direitos sexuais e reprodutivos no Estatuto da Criança e do Adolescente. In: ADORNO, R. C. F.; ALVARENGA, A. T.; VASCONCELLOS, M. P. C. Jovens, trajetórias, masculinidades e direitos. São Paulo: FAPESP: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 75-90. POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. RENAUT, A. A libertação das crianças: a era da criança cidadão. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. VENTURA, M. Sexualidade e reprodução na adolescência: uma questão de direitos. In: ADORNO, R. C. F.; ALVARENGA, A. T.; VASCONCELLOS, M. P. C. Jovens, trajetórias, masculinidades e direitos. São Paulo: FAPESP: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 31-52.

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Gênero e sexualidade nos discursos das políticas curriculares de educação infantil: desafios para pensar a formação docente Bianca Salazar Guizzo Rodrigo Saballa de Carvalho

“[...] é precisamente onde os problemas são mais intratáveis e menos passíveis de resolução que a política mais importa” (SCOTT, 2005, p. 29).

Considerações iniciais Gênero e sexualidade nos discursos das políticas curriculares de Educação Infantil é o nosso foco de análise no presente capítulo. A escolha pela análise das proposições curriculares da primeira etapa da Educação Básica em suas interfaces com a formação docente justifica-se pelo fato de que as relações estabelecidas pelas crianças com seus pares na Educação Infantil são um importante modo de iniciação na vida social mais ampla. Conforme Finco (2010, p. 52), a primeira infância é um “período em que as crianças passam a conhecer e aprender sistemas de regras e valores, interagindo e participando de construções sociais”. As experiências de gênero são vivenciadas pelas crianças desde as idades mais precoces, quando, por exemplo, as mesmas aprendem a diferenciar os atributos ditos femininos e masculinos. Por essa razão, é importante que seja analisado o papel da educação na socialização das crianças realizada na Educação Infantil a partir do questionamento dos processos de diferenciação entre meninos e meninas e da promoção de uma prática educativa não discriminatória. Corroborando os argumentos apresentados, Vianna e Unbehaum (2004) afirmam que a compreensão das relações de gênero pela escola corre o risco de permanecer em segundo plano, uma vez que geralmente as políticas não as mencionam e, quando o fazem, não exploram em todos os temas curri-


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culares os antagonismos de gênero presentes na organização do ensino e no cotidiano escolar. Desse modo, atentos à importância da discussão das questões de gênero e sexualidade desde a primeira infância, partimos da compreensão de que as políticas curriculares têm um papel importante no que diz respeito ao processo de formação de professores/as que tenham como meta a igualdade de gênero e a extinção de práticas sexistas. Enquanto pesquisadores envolvidos com o campo da Educação Infantil e da formação de professores/as para atuar em tal etapa educacional, temos percebido que, no currículo praticado pelas escolas que atendem crianças de zero a cinco anos de idade, normalmente age-se como se gênero e sexualidade não existissem. Em relação à sexualidade infantil, observamos que a mesma é negada, em virtude de uma concepção de criança inocente, construída e propagada desde a Modernidade, que ainda faz parte do ideário pedagógico contemporâneo. Com isso queremos dizer que a inocência das crianças é vista como sinônimo de ausência de sexualidade (CRUZ, 2003). Assim, para que a inocência das crianças em relação aos desejos perdure o maior tempo possível, as professoras que atuam nas escolas acreditam que é necessário negar a curiosidade infantil e vigiar seus comportamentos. Para tanto, as professoras atuam na vigilância dos comportamentos infantis, geralmente prescrevendo modos de comportamento que consideram adequados para meninos e meninas, de acordo com o que deles/as se espera, dependendo do seu sexo biológico. Vianna (2008), ao analisar a produção acadêmica sobre as temáticas de gênero no âmbito das políticas públicas de educação, percebeu contradições entre as propostas de inclusão do gênero nos currículos escolares e a ausência de ações que garantissem a devida implementação das novas exigências para a prática docente nas escolas. Isso porque existe um descompasso entre o currículo prescrito e o praticado. Além disso, conforme Ball (1994), as políticas curriculares são discursos que constituem regimes de verdade nos quais existe uma luta pela imposição de significados em relação aos modos considerados adequados de educar as crianças. As políticas curriculares, enquanto campo de produção de significados no qual a educação das crianças é “descrita, nomeada, falada, tipificada, produzida” (PARAÍSO, 2005, p. 76), nem sempre incidem diretamente no trabalho docente. Por essa razão, Ball (1994) argumenta que as políticas curriculares devem ser discutidas tanto no seu contexto de produção como de operacionalização no interior das escolas. Em relação às proposições curriculares para Educação Infantil, não é diferente. Tanto o Referencial Curricular Nacional para a Educação

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Infantil (BRASIL, 1998), quanto as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), mesmo que de modo pouco sistematizado, apresentam proposições a respeito das questões de gênero e sexualidade. Isso porque, como afirma Tadeu (2003), toda política curricular quer alguma coisa ou quer modificar alguma coisa em alguém. Inspirados em tal proposição, interessa-nos analisar o modo como as questões de gênero e sexualidade na primeira infância são descritas nos documentos curriculares nacionais, assim como os efeitos de tais proposições legais na prática de professoras que atuam com crianças pequenas. Portanto, tendo em vista o desenvolvimento do trabalho analítico, organizamos o texto em quatro seções. Na primeira seção, apresentaremos os aspectos metodológicos e conceituais da investigação. Na segunda seção, apresentaremos uma análise das proposições curriculares no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade na Educação Infantil. Já na terceira seção, focalizaremos entrevistas com professoras que atuam com crianças pequenas a respeito do modo como as mesmas percebem o trabalho com as questões de gênero e sexualidade na escola. Por fim, na última seção abordaremos alguns desafios para pensarmos a formação docente contemporânea, em relação a uma educação que leve em consideração a importância da luta pela igualdade de gênero.

Aspectos metodológicos e conceituais da pesquisa Para realização das análises, metodologicamente, estruturamos a investigação em duas etapas. Em uma primeira etapa realizamos a análise do RCNEI (BRASIL, 1998), das DCNEI (BRASIL, 1999; 2009) e das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica (BRASIL, 2010). O propósito foi observar o que tais documentos curriculares abordam sobre as questões de gênero e sexualidade na Educação Infantil. Na segunda etapa, realizamos entrevistas com professoras que atuam em Escolas Municipais de Educação Infantil, no intuito de verificar a forma como tais documentos vêm sendo utilizados ou não no contexto das instituições. Por outro lado, para a escrita do presente capítulo, optamos por um recorte menos abrangente. Focalizaremos somente a análise do segundo volume do RCNEI (BRASIL, 1998) e as DCNEI (BRASIL, 2009). Além disso, deter-nos-emos a problematizar apenas em duas entrevistas realizadas com professoras que atuam com turmas de crianças de cinco anos de idade, embora o escopo da pesquisa seja mais abrangente. 119


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Portanto, antes de determo-nos na análise e discussão dos dados da pesquisa, consideramos importante conceituar o que entendemos por gênero e sexualidade. De acordo com Louro (2007), gênero foi um conceito desenvolvido para contestar a naturalização das diferenças sexuais em diversos espaços de disputa, enquanto sexualidade é a forma como as pessoas expressam seus desejos e prazeres na relação com os outros indivíduos e com seu próprio corpo. O conceito de gênero não se restringe apenas aos papéis assumidos por homens e mulheres na sociedade, mas diz respeito às relações de poder que estão implicadas entre masculino e feminino. Nessa mesma direção, Meyer (2003, p. 15, grifo do autor) afirma que com o conceito de gênero pretendia-se romper a equação na qual a colagem de um determinado gênero a um sexo anatômico que lhe seria “naturalmente” correspondente resultava em diferenças inatas e essenciais, para argumentar que diferenças e desigualdades entre mulheres e homens eram social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas.

A partir da proposição da referida autora podemos dizer que as desigualdades e diferenças entre homens e mulheres explicavam-se pelas características biológicas, ou seja, estavam relacionadas exclusivamente a um sexo anatômico. Tudo isso faz parte de um processo de hierarquização através de práticas e crenças de distintas sociedades, que ao longo do tempo vem classificando e separando homens e mulheres desigualmente. Em contrapartida, o uso do conceito de gênero enquanto categoria analítica, possibilita a problematização de tal entendimento, a partir do argumento de que as diferenças entre homens e mulheres são produzidas culturalmente. A esse respeito Louro (2007, p. 207) enfatiza que embora a maioria das sociedades tenha estabelecido, ao longo dos séculos, a divisão masculino/feminino como uma divisão fundamental e tenha compreendido tal divisão como relacionada ao corpo, não se segue daí, necessariamente, a conclusão de que identidades de gênero e sexuais sejam tomadas da mesma forma em qualquer cultura.

Apesar de, ao longo dos tempos, a sociedade ter considerado que as diferenças entre homens e mulheres davam-se fundamentalmente em função das diferenças corporais, as diversas culturas foram transformando tanto essa 120


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ideia, como a relação masculino/feminino de acordo com suas práticas sociais, políticas e principalmente através das crenças religiosas predominantes em cada lugar. Em alguns países a figura do homem ainda é colocada em primeiro plano, enquanto a mulher existe apenas para satisfazer os prazeres do parceiro e cuidar dos filhos. Enquanto em outras regiões do mundo as mulheres vêm ocupando espaços que antes eram predominantemente masculinos no mercado de trabalho e nas relações familiares. A partir dessas considerações é possível afirmar que as diferenças entre homens e mulheres não são apenas determinadas pela biologia, mas são construções culturais e sociais. Os modos de se comportar, as condutas e os papéis assumidos são produzidos pela sociedade e pela cultura. Homens e mulheres aprendem a ser femininos ou masculinos em diferentes espaços: na escola, na família e na mídia, por exemplo. É “através das mais diversas instituições e práticas sociais, que ao longo da vida nos constituímos como homens e mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico” (MEYER, 2003, p. 16). Desde o momento que os pais ficam sabendo o sexo do bebê durante a gestação, já se inicia um massivo investimento para conduzir a criança para um padrão de masculinidade ou de feminilidade considerados normais pela sociedade. E a escola, mais adiante, também assume esse papel ao ensinar as crianças como serem homens e/ou mulheres. Muitos professores assumem esse discurso demarcando as diferenças entre meninos e meninas em suas práticas pedagógicas. É possível perceber a demarcação dessas diferenças quando, por exemplo, professores ensinam, mostram, definem e reiteram quais brinquedos devem ser utilizados por meninos e/ou por meninas. Com relação à sexualidade, a partir de Weeks (2007, p. 40) é possível dizer que ela é uma “invenção histórica, a qual tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso que nós lhe atribuímos são, entretanto, modelados em situações mais concretas”. Desse modo, cabe mencionar que na escola a sexualidade é vista como algo natural que faz parte da essência do ser humano, definida quando ele nasce homem ou mulher e está predestinado a relacionar-se com alguém do sexo oposto. Como já afirmado, a sexualidade se expressa através do nosso corpo e da relação com nossas imaginações, desejos, fantasias, símbolos e padrões culturais. Ou seja, ela se desenvolve ao longo de nossa vida de acordo com as relações que estabelecemos com outras pessoas e com nosso próprio corpo, a sexualidade é provisória e está sempre em construção. E o sexo de nascimento não determina a orientação sexual

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de cada sujeito, pois o mesmo poderá sentir atração por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A escola, ao reiterar a relação heterossexual como a única orientação saudável de se viver a sexualidade, acaba produzindo a ideia de que outras formas de vivê-la são anormais. Em consequência disso, os alunos que não se encaixam nesse padrão de normalidade acabam sofrendo em função de atos discriminatórios e preconceituosos, oriundos não só de colegas, mas também de professores e responsáveis que ainda não sabem lidar com esse tipo de situação.

Gênero e sexualidade nas Políticas Curriculares de Educação Infantil O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), elaborado em 1998, integrou a série de Parâmetros Curriculares Nacionais elaborados pelo Ministério da Educação. Dirigido às instituições e aos profissionais de creches e pré-escolas, pode ser entendido como um conjunto de referências que tem como intuito contribuir com a implantação ou implementação “de práticas educativas de qualidade que possam promover e ampliar as condições necessárias para o exercício da cidadania das crianças brasileiras” (BRASIL, 1998, p. 13). Conforme afirma Amorim (2010), o documento foi apresentado como um guia de orientações que tinha como propósito auxiliar na elaboração dos projetos educativos das instituições. O RCNEI foi publicado em três volumes, organizados do seguinte modo: o primeiro volume é o documento “Introdução”, o segundo é o documento “Formação pessoal e social” e o terceiro é o documento “Conhecimento de mundo”. Interessa-nos especialmente o segundo volume do RCNEI, no qual é apresentado o âmbito de formação pessoal e social. Esse âmbito se refere às experiências vivenciadas pelas crianças no contexto educacional e apresenta como eixo de trabalho o desenvolvimento da identidade e da autonomia das crianças. No que se refere às nossas questões de interesse analítico, localizamos duas seções específicas no segundo volume do referencial, a primeira intitulada “Expressão da sexualidade” e a segunda “Identidade de gênero”. Vianna e Unbehaum (2006) afirmam em suas análises que o RCNEI defende a importância da igualdade e do respeito entre pessoas de sexos diferentes. Conforme as referidas autoras, o documento apresenta uma grande contribuição ao ressaltar que a construção da identidade de gênero e da própria sexualidade extrapola a configuração biológica dos seres humanos, 122


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defendendo que as crianças brinquem com as possibilidades relacionadas tanto aos papéis masculinos, quanto aos femininos, para além da reprodução de estereótipos de gênero. Além disso, o documento destaca que a expressão da sexualidade relacionada ao prazer é de suma importância para o desenvolvimento psíquico infantil, abordando alguns exemplos dirigidos aos docentes. Nesse sentido, consideramos oportuno apresentar alguns excertos do documento que ratificam as colocações das autoras, como poderá ser acompanhado a seguir: No que concerne a identidade de gênero, a atitude básica é transmitir, por meio de ações e encaminhamentos, valores de igualdade e respeito entre as pessoas de sexos diferentes e permitir que a criança brinque com as possibilidades relacionadas tanto ao papel de homem como ao da mulher. Isso exige uma atenção constante por parte do professor, para que não sejam reproduzidos, nas relações com as crianças, padrões estereotipados quanto aos papéis do homem e da mulher, como, por exemplo, que à mulher cabe cuidar da casa e dos filhos e que ao homem cabe o sustento da família e a tomada de decisões, ou que homem não chora e que mulher não briga (BRASIL, 1998, p. 41- 42). A sexualidade tem grande importância no desenvolvimento e na vida psíquica das pessoas, pois independentemente da potencialidade reprodutiva, relaciona-se com o prazer, necessidade fundamental dos seres humanos. Nesse sentido, é entendida como algo inerente, que está presente desde o momento do nascimento, manifestando-se de formas distintas segundo as fases da vida. Seu desenvolvimento é fortemente marcado pela cultura e pela história, dado que cada sociedade cria regras que constituem parâmetros fundamentais para o comportamento sexual dos indivíduos. A marca da cultura faz-se presente desde cedo no desenvolvimento da sexualidade infantil, por exemplo, na maneira como os adultos reagem aos primeiros movimentos exploratórios que as crianças fazem em seu corpo (BRASIL, 1998, p. 17).

Sem dúvida alguma, concordamos com Vianna e Unbehaum (2006) quando apontam que o RCNEI apresenta um importante avanço enquanto política curricular para a Educação Infantil, ao chamar atenção para o caráter social do gênero e da sexualidade a partir da problematização do determinis123


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mo biológico. Por outro lado, questionamos o fato de as questões de gênero e sexualidade serem tratadas apenas em duas seções específicas do RCNEI, como se tais discussões estivessem alijadas dos demais aspectos que dizem respeito ao desenvolvimento das crianças. Por que as questões de gênero e sexualidade também não são abordadas no terceiro volume do referencial? Gênero e sexualidade não dizem respeito ao conhecimento de mundo? De que mundo trata o referencial? Além disso, também destacamos que, para além das definições sobre gênero e sexualidade ilustradas no documento, são restritas as orientações que se referem à ação pedagógica no contexto do trabalho cotidiano com as crianças nas escolas. Diante dessa lógica de análise, consideramos importante apresentar o que diz a segunda versão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009), cujo propósito é o de orientar a elaboração das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil em nosso país. As DCNEI apresentam a concepção de currículo, de criança e de Educação Infantil que norteiam o documento. Conforme Amorim (2010) isso não ocorreu com as DCNEI (BRASIL, 1999), que orientavam a elaboração de propostas curriculares de Educação Infantil, mas não apresentavam as concepções que embasavam sua elaboração. As diretrizes evidenciam que as crianças, enquanto sujeitos de direitos, devem estar no centro do processo educativo. Para tanto, defendem uma concepção de currículo que considera o contexto da prática e a articulação das experiências e dos saberes das crianças com os conhecimentos socialmente produzidos. O que nos chama a atenção é o fato de o termo “gênero” ser citado no documento apenas uma vez. Especificamente, “gênero” é citado no quinto aspecto da Concepção de Proposta Pedagógica, onde consta que a mesma deve possibilitar a construção de novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico racial,de gênero, regional, linguística e religiosa (BRASIL, 2009).

Consideramos que as DCNEI (BRASIL, 2009) se eximem de uma importante função social no que diz respeito às discussões das temáticas de gênero e sexualidade no âmbito da escola. Desse modo, a partir da discussão apresentada a respeito da presença das questões de gênero e de sexualidade

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nas políticas curriculares de Educação Infantil, consideramos conveniente evidenciar o modo como tais proposições têm sido entendidas por professoras no contexto da atividade docente em instituições públicas de ensino que atendem crianças de zero a cinco anos de idade.

Episódios que as professoras contam: gênero e sexualidade no contexto escolar O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz (SILVA, 2002, p. 27).

Nas entrevistas, as professoras afirmaram reiteradamente que enfrentam uma série de problemas em relação às questões de gênero e sexualidade infantil no cotidiano da escola, pois não sabem como devem agir com crianças em situações que envolvem tais temáticas. Conforme os relatos das docentes, as crianças, na Educação Infantil, passam por uma fase de descobertas dos próprios corpos e, além disso, também ficam curiosas para conhecerem os corpos de seus colegas. Desse modo, a solução encontrada pelas professoras para sanar as dúvidas das crianças é o planejamento de propostas envolvendo imagens, livros e filmes para mostrar as diferenças anatômicas entre os corpos masculinos e femininos. Com essa colocação, é possível observar que o trabalho referente a gênero e sexualidade nas Escolas de Educação Infantil ainda é pautado exclusivamente pelo viés biológico. Como lembra Cruz (2003, p. 106), “a sexualidade infantil, no contexto escolar é tratada sob a ótica do problema”. Fato evidenciado nos episódios narrados pelas professoras, conforme poderá ser observado na sequência: Episódio 1: Ando muito preocupada com o comportamento do Felipe1. Ele apresenta um comportamento totalmente feminino. Não é apenas um detalhe. Ele sempre usa as fantasias das meninas, maquiagens e adora fazer penteados. Adora as músicas da Valeska Popozuda. Ele sempre traz CD de funk para a aula. É terrível. Quando ele ouve uma música de funk 1 Para preservar as identidades dos envolvidos, os nomes utilizados são fictícios. Além disso, cabe mencionar que o projeto de pesquisa do qual se origina esse artigo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade em que um de nós está vinculado.

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dança até o chão. Rebola sem parar. É uma tristeza. O pior de tudo é que a mãe dele nem se preocupa. Já chamei a mãe várias vezes na escola, mas não acontece nada. Ela ouve toda a situação e não fala nada. No outro dia ele retorna do mesmo jeito. Eu acho que é influencia de um irmão dele que é gay. Todas as crianças das outras turmas ficam olhando o Felipe. Quando eu faço a fila, sempre as minhas colegas ficam cochichando, apontando e me falando sobre o Felipe. É óbvio que eu vejo, mas o que eu posso fazer? A coordenadora e nem a diretora sabem o que fazer. Não temos nenhuma formação para lidar com esse tipo de criança. Na faculdade nunca nenhuma professora falou nada a respeito de meninos que tem comportamento de meninas (Transcrição de Entrevista – Professora de Educação Infantil – turma de crianças de 05 anos). Episódio 2: Na semana passada vivenciei uma situação constrangedora. Fiquei sem saber o que fazer. As crianças pediram para ir ao banheiro e eu deixei. Não sou uma professora autoritária que define os horários que as crianças devem ir ao banheiro. Eles pedem e eu deixo ir, mas agora terei que mudar a minha postura. Fui chamada por uma monitora apavorada pois uma menina e um menino da minha turma estavam baixando a roupa no banheiro. Fui direto ao banheiro ver o que estava acontecendo. Quando cheguei no banheiro, percebi que eles estavam bem silenciosos se observando. No momento a única coisa que pensei foi em dizer para eles colocarem a roupa. Disse que a gente só tira a roupa quando está fazendo xixi ou cocô. Fiquei muito nervosa, pois fico preocupada com a reação dos pais. Quando cheguei de volta na sala de aula, o assunto já havia se espalhado pela escola inteira. A monitora fez a fofoca e ninguém mais falava em outro assunto. Fiz uma roda com toda a turma e perguntei: Tem alguém aqui sem roupa? Eles responderam: Não! Então eu disse, pois é. Todos nós temos que usar roupas. Ninguém deve andar pelado pela escola. Esse fato acabou com a minha tarde. Percebi que as crianças ficaram caladas até o final da tarde. No mesmo dia mandei bilhete para as famílias e posteriormente conversei. O pai da menina ficou muito preocupado. Tentei explicar que era coisa de criança, mas não consegui convencer. Eu também não gostaria que isso ocorresse com minha filha. Mas o que fazer? Isso é algo que nunca se discute na escola (Transcrição de Entrevista – Professora de Educação Infantil – turma de crianças de 04 anos).

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Em ambos os episódios, é possível perceber que questões do cotidiano infantil, assumem a magnitude de um problema a ser resolvido pelas professoras. Problema que as docentes dizem não ter formação adequada para resolver. Isso porque, apesar dos esforços realizados pelas professoras na Escola de Educação Infantil, a sexualidade de meninos e meninas não consegue ser mantida fora da escola. Talvez, como afirma Louro (1998, p. 40), “uma das mentiras mais antigas e recorrentes da escola é a de que as crianças nada sabem sobre sexualidade”. No primeiro episódio existe uma evidente preocupação de caráter homofóbico da professora com a possibilidade de Felipe vir a ser gay. Esquece-se completamente que o menino tem cinco anos de idade e que em tal faixa etária o jogo simbólico (a brincadeira de papéis sociais) faz parte de sua vida enquanto criança. Caso o menino tivesse escolhido imitar um cantor de rock, de pagode ou sertanejo em sua brincadeira o mesmo não seria discriminado. A questão é que Felipe escolheu ser a funkeira Valeska Poposuda e isso foge ao controle que a professora e os demais integrantes da equipe escolar pensam ter sobre o seu corpo. Além disso, outra questão importante a ser destacada é a busca pelo histórico familiar do menino. A identificação de um irmão gay na família, de certo modo, corrobora com os investimentos que a escola realiza na busca da normalização do menino, pois existe o receio de que Felipe se torne igual ao seu irmão. De fato, como afirma Louro (1998), a escola está empenhada em garantir que seus meninos e meninas se tornem homens e mulheres verdadeiros, o que significa dizer homens e mulheres que correspondem às formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade, vinculadas à heterossexualidade. No segundo episódio a preocupação da professora é com a descoberta dos corpos que um menino e uma menina realizam no banheiro da escola. Ter visto o casal de crianças de quatro anos de idade sem roupa no banheiro, torna-se o estopim para uma série de medidas de segurança a serem tomadas pela docente. A primeira medida é a de orientar as crianças, a segunda é a de restringir a saída para o banheiro e a terceira é a de informar as famílias do problema ocorrido. A visualização das crianças no banheiro assume a conotação sexual, independente da idade das crianças. Isso porque, crianças que se comportam dando vazão a sua sexualidade tornam-se, um contraponto em relação ao discurso da criança inocente e pura (LOURO, 2007). Corroborando o argumento, Finco (2010, p. 174) afirma que “romper com modelos hegemônicos, medos e preconceitos presentes na educação de meninos e

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meninas não é uma tarefa fácil”. Isto porque, conforme a autora, a Educação Infantil possui a forte influência de uma formação docente para o magistério tradicional, no qual o foco são praticas fundamentadas em binômios como forte/fraco, masculino/feminino, mente/corpo, lento/esperto, etc.

Desafios para pensar a formação docente: notas para concluir Para finalizar, ressaltamos que, na medida em que a escola ainda é uma das mais importantes instâncias implicadas na produção das diferenças e no combate às desigualdades, torna-se imprescindível que as temáticas de gênero e sexualidade sejam abordadas no contexto da formação inicial e continuada de professores/as. Isto porque, ao direcionarmos o olhar para as escolas que atendem crianças de zero a cinco anos de idade, percebemos, assim como Cruz (2003), que tais instituições têm reforçado através de suas regras, comportamentos e discursos docentes a desigualdade entre meninos e meninas. Dessa forma, é necessário que as políticas curriculares para Educação Infantil potencializem discussões a serem desenvolvidas no interior das escolas e dos cursos de formação docente. Além disso, também consideramos imprescindível que sejam criados programas de formação continuada de professores/as de Educação Infantil, nos quais as temáticas de gênero e sexualidade sejam a tônica central das discussões. Justificamos tal argumento com o fato, constatado por Vianna e Silva (2008), de que o currículo da maioria das instituições de ensino superior de nosso país destinadas à formação docente não contempla discussões referentes aos temas de gênero e sexualidade. No entanto, essa tarefa não é fácil, pois problematizar os discursos sexistas presentes nas escolas leva tempo e demanda um esforço conjunto, já que não basta apenas que as temáticas sobre gênero e sexualidade constem nos currículos de formação docente, é preciso aproximar as escolas e todos/as os/as que dela participam das contribuições e das teorizações de pesquisadores/as para que, de fato, haja uma interlocução entre as discussões contemporâneas que problematizam as pedagogias da sexualidade e as referidas instituições. Sendo assim, concordamos com Finco (2010, p. 161) quando afirma que discutir as relações de gênero e sexualidade na formação de professores/as de Educação Infantil significa considerar o espaço da escola que atende crianças de zero a cinco anos de idade “como lugar de confronto e convívio com as diferenças”, pois pedagogias da sexualidade perpassam todas as práticas 128


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educativas e sociais. Tais pedagogias da sexualidade, conforme Louro (1998; 2007) e Weeks (2007), estão relacionadas ao disciplinamento dos corpos, aos processos de regulamentação dos comportamentos e aos investimentos discursivos cada vez mais potentes que acompanham tais processos. Subverter a educação sexista ainda presente nas Escolas de Educação Infantil é um dos desafios que propomos aos/as docentes.

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Maternidades sucessivas na adolescência: do destino ao desejo Alcindo José Rosa Alberto Olavo Advincula Reis

Introdução Muito pouco se tem investigado, numa interface entre a saúde pública e a educação, as questões subjetivas presentes na maternidade de adolescentes e, menos ainda, nas adolescentes com várias maternidades. Em parte, parece que, geralmente, a adolescência é tomada no senso comum e mesmo na literatura científica como um fenômeno uniforme aos gêneros e condições de vida, sem atentar-se para suas especificidades. Noutra parte, se tem debatido amplamente as questões subjetivas do desenvolvimento humano e suas repercussões na sexualidade, mas não tem sido dado o mesmo destaque para suas repercussões junto aos fenômenos reprodutivos. A Psicanálise é, seguramente, uma das teorias que conseguiu contemplar a sexualidade de forma ímpar e propor um conjunto de subsídios que colaboram para o avanço do conhecimento na área. Freud (1972a) diz que a sexualidade humana não se restringe apenas aos aspectos externalizados na vida sexual dos adultos. Ao contrário, desde a tenra infância já existe sexualidade, sendo que, nesse momento, sua expressão e prazeres são polimorfos e distribuídos em diversas zonas erógenas. O autor acrescenta que a sexualidade só rompe sua organização infantil na adolescência, quando as fontes de prazer, predominantemente, se unificam nos genitais, ocasião, em que as pulsões sexuais parciais se articulam para propiciar a reprodução e a busca do prazer coincide com os meios que possibilitam a reprodução e vice-versa. Esse percurso é conhecido como desenvolvimento psicossexual e é fundante do sujeito, pois permite a busca de um objeto amoroso fora do núcleo afetivo inicial – o grupo familiar –, acesso à genitalidade e à estruturação subjetiva. Ou seja, a diversidade que constitui a existência e a sexualidade humana é decorrência dos arranjos da sexualidade infantil e da forma como esta se articula num intricado campo de subjetivação.


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Com a finalidade de compreendermos os fenômenos nos termos ora levantados é preciso ter claro que a problemática em discussão alude à dinâmica inconsciente da constituição subjetiva e, possivelmente, à forma como os contextos sociais, históricos e culturais contribuem ou atrapalham as adolescentes nesses processos de individuação e, principalmente, de expressão da feminilidade, que pode ocorrer pela maternidade. Assim compreendido, o comportamento humano é justamente o produto possível das forças subjetivas que interatuam no sujeito. Freud (1972b apud DADOORIAN, 2003, p. 86), comenta que o caminho que leva à feminilidade se dá por meio da maternidade. A maternidade se coloca, assim, como um atributo que caracteriza o feminino. Através do filho, um ser que é uma extensão do seu próprio corpo, a mulher se sente plena, nada lhe falta. O filho funciona como um objeto que completa as suas carências e os seus desejos mais íntimos. O desejo de ter um filho, isto é, o desejo de ter o falo, é algo bastante forte no inconsciente feminino.

Com isso, frente ao imperativo de considerar que o fenômeno da gravidez e da maternidade na adolescência está condicionado pelos determinantes das condições de vida, temos que acrescentar que o desenvolvimento psicossexual e, no caso das adolescentes, a busca pela feminilidade, apresentam também considerável influência. Ou seja, se por um lado as questões ambientais (condições e estilos de vida, renda, escolaridade, constituição familiar, entre outros) sobredeterminam os comportamentos, por outro lado, o sujeito, a partir de seu modo constitutivo, também interage com o meio, dando-lhe arranjos que o satisfaçam. É possível, portanto, considerar que a maternidade na adolescência, bem como sua repetição, pode associar-se às tentativas de posicionar-se no suposto reino das plenitudes e com isso, separar-se do núcleo familiar de origem e demandar amor em outras fontes. Assim, gravidez e maternidade funcionam como atalhos e meios que buscam evitar a angústia, permitindo a conquista do desejado no ato, na ação, no comportamento manifesto, negando a angústia de sua separação do mundo infantil e de tudo a ele relacionado, vivência que, pressupomos, deveria ocorrer no campo simbólico. Parece, deste modo, que é necessário incluir a dimensão subjetiva como pertencente às condições de vida, pois, ao mesmo tempo em que pode ser influenciada por estas, também pode modificá-las. Ou seja, as condições de vida são mediadas por sujeitos psíquicos, que não são afetados passivamente. 132


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Há movimentos reativos, pontos de fuga e construções que buscam integrar diferentes necessidades internas e pressões ambientais. Assim, a subjetividade é o meio em que se processam necessidades, demandas e desejos. Partindo desse referencial, é preciso resgatar o conceito de gravidez e maternidade indesejada. Curiosamente, parece ser um conceito que tenta afirmar-se pela negação do desejo, por insistir em dizer do não desejo, do não querer. Mas há um contrassenso nisso, uma denúncia, uma metáfora. Não é possível negar o desejo, pode-se tentar, mas uma vez desejado, desejado está. Como dizer, então, que a gravidez e a maternidade são indesejadas? Parece-nos que esse conceito, assim como um ato falho, nos dá uma dica. Será mesmo que existe gravidez/maternidade indesejada? Será mesmo que não houve desejo? Sabemos que mecanismos inconscientes norteiam os sujeitos a tal ponto que, mesmo racionalizando ou negando seus desejos, demandam comportamentos que certamente concretizarão, de uma forma ou de outra, o desejo não reconhecido. Dadoorian (1994) esclarece que a gravidez em adolescentes pode ser decorrente do imperativo biológico, ou seja, um impulso na direção da capacidade reprodutiva, atendendo ao destino da espécie, mas também pode ser decorrente do próprio desejo de ter um filho, respondendo assim, a uma demanda individual, principalmente, por que a função social feminina está geralmente atrelada à maternidade. Temos, portanto, que as fantasias que cercam a maternidade (ser mulher, ser mãe, cuidar e ser cuidada), a valoração social que se imagina adquirir (ter um parceiro, ser esposa, casar-se, ter casa, filhos, etc.) e o conforto subjetivo que se espera conseguir (trazido pela fantasia de um bebê-objeto de amor) parecem servir de atrativo para comportamentos que certamente levarão a adolescente a engravidar, ainda que ela racionalmente refira não ter o desejo pela maternidade. Deste modo, é possível considerar que comportamentos, sentimentos e fantasias que circundam a gravidez/gestação e a maternidade carregam em si possibilidades de realização de desejos e demandas, pois permitem um atalho para (1) o acesso ao universo adulto; (2) a ascensão a um status quo de reconhecimento social (DADORIAN, 2000); e (3) a conquista de um objeto amoroso (FREUD, 1972b). Neste sentido, recorrendo também à antropologia, temos que a gravidez pode ser, na contemporaneidade, um ritual de passagem, que pode ter uma eficácia simbólica (LEVI-STRAUSS, 1996), operando satisfatoriamente a

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transição entre um status e outro. Seria uma espécie de passaporte para entrar na vida adulta e de reafirmação de projetos de mobilidade e ascensão social, mantendo assim firme o projeto de ser alguém na vida (PANTOJA, 2003). Finalizando esta exploração da temática, temos que maternidades sucessivas ainda na adolescência parecem ser repetições de tentativas para a elaboração de conflitos remanescentes do mundo infantil, tentativas de metamorfosear uma dada realidade em busca de outra, que se imagina ser mais confortável. Dadoorian (1994), ao articular condições de vida e subjetividade, aponta que a vivência de situações de falta de amparo afetivo da família pode provocar a vontade na adolescente de ter um filho, onde esse aparece como objeto privilegiado de reparação de uma carência. Com isso, pode-se indagar o seguinte: que motivações intrínsecas estão presentes na jovem que busca a maternidade? O que não é suficiente numa primeira gestação, que uma segunda logo vem? Que relação pode existir entre sucessivas gravidezes de uma adolescente e a forma como lida com suas carências sociais e afetivas? Tendo em vista estas considerações, temos a finalidade de estudar, em um grupo de adolescentes com maternidades sucessivas, como a maternidade se articula ou não ao querer ser mãe.

Método O estudo é de natureza qualitativa e foi feito a partir de entrevistas semiabertas com 49 adolescentes que tinham mais de um filho nascido vivo, residentes no município de Rondonópolis (MT) e oriundas das classes populares. As entrevistas trataram de caracterizar suas histórias de vida. Para análise dos dados, sistematizamos as observações, falas e comentários obtidos nas entrevistas. Este material foi tomado como narrativas de pesquisa, e as analisamos a partir da abordagem hermenêutico-dialética que, segundo Minayo (1992), permite compreendê-las como parte de processos sociais e de conhecimento, pois representam aquilo que se apresenta e se esconde na comunicação. A sistematização permitiu também que elaborássemos categorias e déssemos a elas tratamento estatístico, que ocorreu por meio de frequência simples e foram expressas em percentuais.

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Discussão dos resultados Durante as entrevistas, não foi fácil, para a maioria das adolescentes, reconstruir parte de suas histórias de vida na medida em que requeriam fragmentos relacionados ao seu grupo familiar de origem. Aliás, até mesmo a respeito das próprias vivências, muitas vezes, recorriam a outras pessoas da residência para ajudá-las. A impressão geral foi que o passado é uma dimensão da vida que não se registrou ou que não foi integrada às vivências do presente. Pareceu colaborar para o solapamento da própria história, o desenraizamento que marca a origem e a trajetória de vida das adolescentes entrevistadas. Segundo disseram, seus ascendentes vieram, em sua grande maioria, de outras regiões do país. Ao se estabeleceram, vincularam-se à região, mas não ao lugar. Suas histórias são marcadas por perambulações por todo o Mato Grosso e por uma série de interrupções nas atividades que faziam aqui e acolá. A construção de um sentimento de pertença pareceu obnubilada e, aparentemente, também a de identidade cultural. Pareceu contribuir para o fenômeno a fragmentação do grupo familiar, chamando atenção o fato de que, ao entrarem na adolescência, 72,9% não contavam, pelos mais diversos motivos, com a presença paterna, diferentemente, das restantes, que foram criadas em ambientes familiares tradicionais. Esses dados confirmam o estudo de Persona (2004), quando descreve o alto percentual de ausência paterna, por morte ou abandono, entre adolescentes com repetição de gravidez. Foi considerável, também, o percentual de adolescentes criadas apenas pelas mães, 37,5%, percentual maior que o encontrado por Borges (2004), em que uma em cada quatro adolescentes coabitava apenas com a mãe. Sobremaneira, chamou a atenção neste estudo, o considerável percentual de adolescentes, 31,3%, que foram criadas por terceiros, quer sejam famílias adotivas ou outros parentes. Neste sentido, estudos feitos por Dadoorian (1998; 2000; 2003) apontam que a ausência paterna parece relacionar-se à antecipação da busca de um objeto amoroso fora do arranjo familiar e, consequentemente, a maternidade parece ser uma forma ou uma tentativa de reconstruir a tríade pai-mãe-filho, ao mesmo tempo em que afirma sua potência feminina. Pareceu também que a busca do pai se relaciona com o considerável percentual de adolescentes, 59,2%, que na ocasião da primeira gravidez, mantinham parcerias com homens relativamente mais velhos, corroborando 135


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dados do estudo feito por Persona (2004). Curiosamente, durante algumas visitas para realização das entrevistas, confundimos o parceiro da adolescente, tomando-o como seu pai e indagamos se ele estava contente com a chegada do neto. Analisando esta situação de outra forma, temos que da condição de filha desamparada, a maternidade coloca a adolescente como provedora. Esta situação também parece ser uma espécie de compensação afetiva. Chamou atenção que 39,5% tinham representações positivas em relação ao pai, enquanto que 61,5% se referiram a ele de maneira indiferente e negativa, principalmente quando se referiam àqueles pais que abandonaram a mãe ou que nunca as assumiram. O constante uso do advérbio “nunca”, para se referirem às ações que, julgavam, os pais deveriam ter-lhes provido, denotou a intensidade do quanto ansiaram pelo pai. Entretanto, como nos foi dito por muitas adolescentes, “ele nunca apareceu”, contrariamente, ao ocorrido com 27,1% de adolescentes, para as quais, o “pai sempre esteve presente”, mesmo quando foi embora. Nestas proporções, temos, então, que, para boa parte das adolescentes, as experiências com o pai se pautaram por vivências dramáticas, permeadas por histórias de abandono, violência e mortes. No que se refere às mães, o cenário é menos dramático e os conflitos são de outra natureza, mais ligados à convivência e administração do cotidiano, muito embora, histórias de abandono materno também tenham sido mencionadas. Quando comparadas aos pais, os percentuais de representações positivas a respeito das mães se invertem. Tinham-nas em boa conta, 66,7% das adolescentes. Suas histórias revelaram típicas concepções sobre a mãe, como a de que “mãe é sempre boa”, “mãe é guerreira”; mostraram também, os consideráveis esforços a que se submeteram muitas de suas mães para criar vários filhos sem o parceiro. Entre suas mães, 69,3% tiveram pelo menos três filhos. Considerando a indicação aventada por Persona (2004) a respeito de que a história familiar de gravidez na adolescência se repetiria nas gerações seguintes, identificamos que apenas 12,2% das mães das adolescentes ficaram grávidas antes dos 15 anos, enquanto que entre as adolescentes entrevistadas, 49% assim ficaram, corroborando, apenas em parte, a indicação da autora. Embora algumas mães discordassem dos comportamentos das filhas e tivessem tomado atitudes punitivas drásticas, como a expulsão de casa e a não aceitação do parceiro da filha dentro de casa, de maneira geral, a mãe surge como a grande apoiadora das adolescentes, muitas vezes, assumindo

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por completo a criação dos netos, tarefa exercida também por considerável número de sogras, o que parece sugerir, nestes casos, uma falha na tentativa da adolescente de modificar sua situação subjetiva, ou seja, ela continua na posição de filha. Neste sentido, ainda que o modelo de família tenha uma força cultural, subjetiva e social muito grande, a tal ponto que as adolescentes pleiteavam constituir uma, o que se observou, em conformidade com outras pesquisas, como as de Borges (2004) e Santini (2002), foi que na origem e na criação das adolescentes, os arranjos familiares nucleares não foram predominantes, apenas 27,1% assim se caracterizaram. Nesse sentido, os estudos feitos por Borges (2004), Brandão (2006) e Dadoorian (1998; 2000; 2003) apontam que o papel da família é preponderante na forma como os adolescentes constroem e administram a vida sexual e reprodutiva. Os indicadores cotejados até o momento mostraram-se razoáveis como analisadores das articulações presentes na interface entre arranjos familiares e maternidade, entretanto não pareceram tão importantes quanto à consideração da explícita vontade das adolescentes pela maternidade. Entre elas, 47% manifestaram ter demandado livremente a primeira maternidade. Vários temas de natureza subjetiva foram apontados pelas adolescentes e parecem ter em comum, a ideia de que a maternidade era uma condição bem quista e demandada. Ela soou, entre tantas coisas, como oportunidade de “segurar o homem”, “agradar o marido”, “conquista pessoal”, “evitar a solidão”, “nova responsabilidade” e “satisfazer a vontade de ser mãe”. Talvez isto ajude a justificar porque 63,2% ficaram grávidas nos primeiros doze meses após a iniciação sexual. A primeira maternidade mostrou-se muito convidativa às adolescentes e a sua concretização pareceu contemplar uma série de perspectivas que vinham se alinhavando ao longo de suas vidas: a menarca as tornou moças, a primeira relação, mulheres e a gravidez, mães. Pareceu, portanto, seguir certa lógica entre acontecimentos, descobertas e significações. Definitivamente, esses eventos as posicionaram no reino da feminilidade, no qual a potência feminina se revelou sem pairar dúvida. Assim, ao final do percurso, a maternidade pareceu ter o caráter demarcador, não apenas entre o mundo infantil e adulto, mas também entre o universo feminino e o masculino, principalmente, porque o papel social feminino na contemporaneidade ainda está fortemente vinculado à maternidade, tal como apresentado por Freud (1972a; 1972b) e pelos estudos de Dadoorian (1998; 2000; 2003).

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Numa perspectiva sociológica, outras significações e gratificações pareceram se associar à perspectiva trazida pela primeira maternidade, especialmente, quando se considerou que as participantes pertenciam aos segmentos populacionais mais pobres. Foi observado que essa população possui valores de vida que se organizavam em torno do presente, diferentes aos de outros segmentos populacionais que vislumbram objetivos menos imediatos e que requerem certa mediação temporal entre desejos, demandas e satisfações, tal como é a promessa feita pela escolarização e pela profissionalização. Ou seja, o apelo consumista que a pós-modernidade traz, apregoando o tempo todo que o indivíduo deve fazer escolhas entre cumprir sua demanda ou postergá-la, em nome de um benefício maior, pareceu não ter sequestrado essas adolescentes antes da primeira gravidez. Afinal, nos contextos de maior pobreza, o próprio instrumental de produção e domesticação das demandas, parece não conseguir chegar com toda sua força ou, ao menos, não conseguiu produzir subjetivações iguais às que promove em outras camadas sociais. A esse respeito, convém perguntar: Que sonhos razoáveis a escola têm prometido às adolescentes pobres ou lhes permitido sonhar? Que perspectivas o mercado de trabalho lhes tem apresentado, que não a expropriação de si e o consumo? Qual a diferença entre cuidar do filho da patroa e do próprio filho? Assim, a ausência de horizontes, que na verdade são valores externos a elas, pareceu fazer com que essas adolescentes se entretivessem consigo mesmas, com seus próprios recursos, desejos e demandas. Nesse sentido, a maternidade foi um sonho possível, talvez, o único. Pirotta e Schor (2004) dizem que a postergação de uniões conjugais, construção de famílias menores, adesão aos métodos contraceptivos e planejamento das gestações são procedimentos adotados por jovens que possuem maior escolaridade. Ou seja, invertendo o raciocínio, são jovens que tomaram como valores, a escolarização e a inserção no mercado de trabalho. A questão que se coloca, então, é: quais são os valores das camadas populares e como que a escolarização pode contribuir com elas, sem precisar tipificá-las como desajustadas e tornar a maternidade na adolescência um problema. Pareceu-nos, portanto, que a maternidade, nos contextos de grande pobreza, surge como uma possibilidade de uma produção própria e original. Como diz Pantoja (2003), ser alguém na vida é cativante frente à massificação sofrida. “Ter um filho”, “ter um parceiro”, “ter uma casa”, “ter obrigações”, ter algo que lhe é próprio num mundo de im-propriedades são dimensões que produzem diferenças e parecem dar sentido para a vida.

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Associa-se a isto, a forte valoração social atribuída à maternidade, que acaba sendo tomada como uma estratégia de reconhecimento e ascensão entre seus pares, familiares e sociedade e que pode produzir alguma mobilidade social, tal como apontado por Carvalho (2007) e Pantoja (2003). Também pareceu fazer parte dessa complexa teia de motivações para demandar a maternidade, um cenário de considerável carência afetiva. Suas histórias a todo o tempo foram entrecortadas por relatos de situações de abandono e privações, impostas ora pelo Estado, ora pelo grupo familiar, que, por vezes, se fragmentou ou nem mesmo se constituiu. Diz Dadoorian (2003, p. 90) que “a vivência de situações de carência afetiva e relacional com a família pode também provocar o desejo na adolescente de ter um filho, em que esse aparece como o objeto privilegiado capaz de reparar esta carência”. Nesse sentido, há um fenômeno psíquico intrigante. Parece haver um deslocamento para o filho ou para a ideia de tê-lo, de que ela, a adolescente-mãe, não o privará daquilo de que julga ter sido ou de fato foi privada. Isto pareceu ser uma forma de reconstruir as próprias vivências infantis a partir do filho. Não é de estranhar, portanto, o simbolismo presente na fala de uma delas quando disse que “era uma criança cuidando de outra criança”, ou seja, cuidava dela mesma. Assim, a maternidade, para a grande maioria das adolescentes, não foi uma surpresa abominada. Diferentemente do que comumente se diz, observamos que a primeira gravidez foi vivenciada com expectativas positivas e com uma série de modificações no cotidiano das adolescentes, geralmente realizações construtivas, derivadas de certos projetos de vida. Com isso, não se está negando que, por exemplo, entre aquelas que objetivaram provocar aborto, as vivências desestruturantes ocorreram. Temos, então, que o contexto subjetivo de ocorrência da primeira maternidade, mesmo quando não planejada, mostrou-se acolhedor e em sintonia com as demandas individuais frente às necessidades do meio. Isto corroborou indicações feitas pelos estudos de Dadoorian (1998, 2000, 2003), Carvalho (2007) e Pantoja (2003), nos quais esses autores versam sobre os benefícios sociais e psicológicos que a gravidez traz às adolescentes. Não se pode negar, portanto, que a gravidez pareceu dar-lhes algum direcionamento na vida, ideia que a maioria, prontamente, parece ter encampado. Algumas deixaram de fumar, de usar drogas, outras deixaram de passear, de gastar, muitas referiram que “mudou a cabeça” e o “comportamento”. Passaram a “compreender a mãe e o mundo”. Tudo em nome do ideal materno

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e das representações que tinham em torno do que era ser mãe. O mesmo fenômeno foi observado quando elas se referiram aos parceiros, que também se sentiram honrados com a paternidade, conforme também observado por Heilborn (2002). Contudo, esse panorama das adolescentes que ficaram grávidas pela primeira vez demandando a gravidez é, consideravelmente, diferente do cenário daquelas que não demandaram a gravidez, especialmente, na segunda e terceira maternidade. Na primeira gravidez, 53% das mães adolescentes “não queriam”, na segunda, 61,4% e na terceira, 100%. Justificaram que as maternidades estavam “fora dos planos”, pois percebiam que “era muito cedo”, que estavam “muito novas”. Disseram ainda que, apesar de saberem disso, a gravidez “simplesmente aconteceu”, o que, pareceu-nos, provocou-lhes sentimentos contraditórios sobre a situação, como o estranho sentimento de que “fui invadida de novo”. Frente ao “não queria” e à impotência diante da situação, sobrou-lhes considerar a possibilidade de provocar o aborto, o que nesses casos, não ocorreu. Então, pareceu que a única saída foi se sujeitarem à força social da experiência e ao destino materno, acompanhadas do pai do filho ou permanecendo no grupo familiar onde estavam. Ao longo da gestação, a maioria descobriu que a maternidade proporcionava algumas gratificações e acabaram aceitando a maternidade, algumas de bom grado, outras, “a contragosto”. Pelo observado, logo descobriram também que, pouco a pouco, as gratificações se transformavam em responsabilidades, aliás, descoberta feita também por aquelas que demandaram a maternidade. Coincidentemente, o percentual de adolescentes que disse não ter desejado o primeiro filho, 53%, foi o mesmo percentual de adolescentes que referiram ter usado métodos contraconceptivos antes da primeira gravidez, o que parece justificar que, 36,8% das participantes, tenham levado mais de doze meses para ficar grávida após terem iniciado a vida sexual. Observou-se, de igual modo, que houve considerável aumento do uso de contraceptivos – especialmente de pílulas – antes da segunda e da terceira maternidade, aparentemente na mesma proporção em que diminuiu a demanda pelo filho seguinte, assim como aumentaram as intenções de provocar o aborto na segunda e na terceira gravidez. Pareceu, portanto, que a adesão aos contraceptivos envolve a elaboração de ambiguidades entre ser e não ser mãe, entre posso e não posso. Entretanto, isso parece fazer algum sentido para aquelas adolescentes que tiveram

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informações e acesso aos contraceptivos, tendo em vista que aquelas que não tiveram acesso, aparentemente, nem chegaram a vivenciar esse conflito. Conclui-se, portanto, que a demanda pela maternidade e a maior ou menor ambiguidade do como ela é vivenciada, parecem colaborar para que as adolescentes adotem ou não os contraceptivos e os utilizem de maneira adequada ou não. Além disso, a ambiguidade da demanda pela maternidade parece relacionar-se com as tentativas de provocar o aborto. Vislumbra-se, assim, do ponto de vista das adolescentes, outra visão para a questão do planejamento das gravidezes. Uma parte delas parece que sempre demandou a maternidade e, por isso, não se importou em conhecer e recorrer aos contraceptivos. Houve outra parte, que não demandou e, aparentemente, por isso, recorreu aos contraceptivos. E, provavelmente, houve uma terceira parte, que não identificou qual era a demanda e correu os riscos. Não se pode dizer, portanto, que não houve planejamento. Ou seja, o discurso da não adesão aos planejamentos e aos contraceptivos é exterior às adolescentes. Quando considerarmos o olhar da adolescente-mãe, observamos que seus planejamentos seguem outra lógica. Temos, assim, que dois contextos delinearam-se na abordagem das maternidades sucessivas na adolescência. O primeiro referiu-se à ocorrência da primeira gravidez que, apesar de muitas vezes surgir em situações pouco estruturadas, pareceu logo se associar à demanda de ser mãe e às gratificações sociais decorrentes. O segundo contexto aproximou-se mais do não querer e às dificuldades socioeconômicas presentes na criação de vários filhos. Também entre os parceiros, a satisfação com a nova gravidez diminuiu na segunda e na terceira gravidez, grande parte motivada pela avaliação das condições financeiras em que viviam. Muitas fugas de parceiros, segundo as adolescentes entrevistadas, pareceram ser justificadas por não conseguirem pagar a pensão e correrem o risco de serem presos. Curiosamente, o Estado, na ânsia de proteger, criminaliza situações que deveriam ser resolvidas numa outra esfera. Temos, com isso, que as histórias sobre a segunda e a terceira maternidade não mais continham o entusiasmo da primeira. Ao contrário, foram muitas as referências de que perderam autonomia e liberdade e de que não podem mais fazer isso e aquilo. O status social alcançado com a primeira maternidade dissolveu-se. As gratificações viraram duras obrigações do cotidiano e da criação dos filhos.

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Pelo observado, às precárias condições de vida se ligaram tamanha preocupação e decepção, sentidas e descritas por 71,4% das adolescentes aos descobrirem-se grávidas pela segunda vez. As dificuldades financeiras pareceram ser um dos maiores entraves para quererem bem a segunda e a terceira maternidade. Neste sentido, muitas pareciam, antes da nova gravidez, aguardar o crescimento do primeiro filho para tomar alguma providência, como separar-se, ir embora, trabalhar, entre outras coisas. Ledo engano! Ademais, a não demanda pela nova maternidade decorreu também do fato de ela ter-lhes ocorrido em período tão próximo ao filho anterior, rompendo com certo planejamento que pareciam ter e que até consideravam a possibilidade de outras gravidezes, mas em outro momento da vida – e até mesmo com outro parceiro. Novamente, há que destacar que o percentual de mães adolescentes que demandaram a segunda maternidade, 28,6%, coincide com o percentual daquelas que se mostraram satisfeitas com a nova maternidade. Geralmente, para essas, as preocupações foram de outra natureza, como descobrir qual era o sexo do bebê e a compra do enxoval. Finalmente, o quadro geral desenhado por essas argumentações demonstra que para a maioria das adolescentes com maternidades sucessivas, a primeira maternidade foi demandada e lhes trouxe consideráveis benefícios frente às condições de vida em que sobreviviam. Entretanto, essas mesmas condições mostraram-se duras realidades para o prosseguimento da criação do primeiro filho e dos seguintes, o que levou a maioria delas, a não demandar a segunda e a terceira maternidades e a vivenciá-las de modo diferente ao ocorrido na primeira vez. Esses aspectos permitem concluir que houve, no grupo estudado, diferenças substanciais entre a primeira maternidade e as demais. Enquanto as primeiras maternidades foram norteadas por certo desejo e vivenciadas como um sentido de busca de si por meio da maternidade, as outras não se pautaram pelos mesmos anseios. Esse não querer pareceu ser condicionado pelas próprias e precárias condições socioeconômicas que dificultavam a criação dos filhos. Pode-se afirmar, portanto, que os valores sobre a maternidade são diferentes nas maternidades sucessivas quando comparados aos valores dos contextos de ocorrência de apenas uma gravidez na adolescência.

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Considerações finais A investigação acerca do desejo das adolescentes pela maternidade levou-nos à reflexão de que o planejamento da vida sexual e das maternidades é um valor cultural das classes sociais cooptadas por certos modos de vida e que, portanto, a escolarização e a profissionalização são valores muito distantes das vivências das periferias nas condições em que se encontram. Lá, as necessidades, os desejos e as demandas são outros, nem por isso menos dignos. Nesse afã, dois contextos foram caracterizados. O primeiro refere-se à desejabilidade da primeira gravidez, que, geralmente, foi bem quista pela adolescente, pois pareceu vislumbrar, na maternidade, o sentido de construção de si e de seu mundo. De outro modo, o segundo contexto, que se pautou pela indesejabilidade da segunda e demais maternidades, caracterizando, portanto, importante mudança dos valores sobre a maternidade. Essa mudança se deu, principalmente, em função das condições socioeconômicas em que as adolescentes viviam e que pareceram contribuir, em maior ou menor grau, para a indesejabilidade da segunda e demais maternidades, diferentemente do que ocorreu com a primeira maternidade, onde a valoração social e pessoal da maternidade pareceu influenciar em maior proporção. Estamos, portanto, conceituando que a gravidez e a maternidade na adolescência – e, provavelmente, em todas as etapas da vida – expressam uma demanda e não, como querem alguns, o indesejo. Muito mais que um trocadilho, esse raciocínio traz à baila, o debate entre razão e desrazão, entre controle e descontrole, entre “não posso” e “quero”, entre “correr risco” e “não correr risco”. Obviamente que, no senso comum, quando as pessoas se referem à gravidez indesejada, estão falando no sentido de não-planejada, mas não é possível deixar de assinalar seus outros sentidos. Abramoway, Garcia e Silva (2004, p. 134), em raciocínio análogo à problematização feita acima, dizem que, ao sublinhar o caráter de problema e associar gravidez na adolescência com gravidez “indesejada” ou “não planejada”, sutilmente se marginalizam análises sobre o simbólico, os significados para os jovens de suas experiências [...]. Medos, inseguranças, baixa autoestima, assimetrias de gênero nas negociações sobre direitos sexuais e reprodutivos podem derivar em uma gravidez, quer para mulheres jovens quer para adultas, inclusive como forma compensatória. Aliás, é inte-

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ressante notar que se acentua o caráter de não planejada, não desejada, para as gravidezes ocorridas entre jovens, sem se fazer referência que tal tipo de gravidez possa ocorrer também para mulheres adultas.

Provavelmente, isso explica porque, apesar dos incessantes esforços dos programas governamentais e de outras esferas, como a saúde pública e a educação, para informar adolescentes sobre os meios de proteção à gravidez e ao HIV, ainda assim as gravidezes não planejadas e as infecções sexuais continuem ocorrendo. Entretanto não se nega que nas regiões mais carentes, onde a falta de informação e de meios contraceptivos ainda é aviltante, muitas gravidezes ocorram por isso. Contudo como explicar os casos daquelas adolescentes que, mesmo tendo acesso facilitado, ainda assim, usam-nos incorretamente, ou se esquecem de usá-los, e ficam grávidas? Ou seja, a articulação da informação passa pelas condições sociais, econômicas e culturais, mas passa também pelo subjetivo e talvez por isso, garantir informações e condições de acesso a anticonceptivos não tem sido suficiente. O desejo e a demanda são sempre deseducados e não atendem aos apelos da razão e dos planejamentos externos. Talvez por isso as políticas públicas precisem definitivamente considerar as dimensões subjetivas em suas intervenções.

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A implementação da lei 10.639/03 no ensino de ciências: reflexões a partir de uma experiência de formação continuada Douglas Verrangia Corrêa da Silva

Introdução A aprovação da Lei n.o 10.639/2003, fruto de reivindicações da sociedade em geral e, mais energicamente, do Movimento Social Negro, trouxe um importante desafio à educação em nosso país: abordar de forma adequada história e cultura africana e afro-brasileira. Em 2004, o Parecer CNE/CP n.o 003/2004 (BRASIL, 2004) estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, esclarecendo parâmetros que podem ser seguidos pelos sistemas de ensino para cumprir com o dever assumido: fazer justiça à história e cultura provenientes do continente africano, em contínuo desenvolvimento e transformação na diáspora negra. Professores/as, formadores/as de professores/as e pesquisadores/as de todos os componentes curriculares, inclusive o ensino de Ciências, passam a se questionar sobre formas concretas de promoção desse tipo de ensino. Àqueles/as educadores/ as críticos ligados ao ensino de Ciências, que decidiram tomar sua parte nesse desafio, uma série de questionamentos vêm sendo feitos, dentre os quais os mais frequentes são: porque ensinar história e cultura africana e afro-brasileira no ensino de Ciências? Porque é obrigatório? Como fazer isso se, de forma geral, os/as docentes não são preparados/as para tal ação? O ensino de Ciências, assim como todos os componentes curriculares, tem papel importante na promoção de relações sociais éticas entre os/as estudantes. Infelizmente, a diversidade étnico-racial ainda não é considerada uma questão central na formação de professores/as dessa área, tanto inicial quanto continuada (VERRANGIA, 2009). Nesse contexto, destaco alguns argumentos apresentados em outro trabalho (VERRANGIA; SILVA, 2010) que ajudam a compreender a necessidade de evidenciar o papel do ensino de Ciências no combate ao racismo e na valorização da história e cultura afro-brasileira e africana, dentre eles:


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• as inúmeras evidências de desigualdades educacionais relativas às diferenças étnico-raciais em nossa sociedade (PAIXÃO, 2003); • o fato de que nosso país assumiu nacional e internacionalmente o compromisso de combater o racismo, inclusive por meio de uma educação antirracista (BRASIL, 2004); • o consenso existente entre educadores conscientes da importância de desenvolver ensino crítico e não alienante, manifesto, por exemplo, na Lei n.º 9.394, de 1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB); • a relevância, também consensual na área da educação, da necessidade de vincular o ensino à realidade dos alunos, suas vivências concretas, socioculturais; • o uso do conceito de raças, cunhado no contexto das ciências naturais, no passado e no presente, para fins de dominação e alienação (ANDRADE, 2002); • a necessidade de superar a ideia de neutralidade política das ciências naturais (SANTOS, 2006); • o compromisso de tratar adequadamente a diversidade cultural que forma a sociedade, no contexto de uma educação para a cidadania, como apontam a legislação já mencionada e as diretrizes educacionais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), e autoras/ es de referência na área (KRASILCHIK; MARANDINO, 2004). O Parecer CNE/CP n.o 003/2004 nos propõe o desafio de trabalhar na escola a educação das relações étnico-raciais. Isto é, proporcionar aos nossos alunos processos educativos que os levem a superar preconceitos raciais, viverem práticas sociais livres de discriminação e que contribuam para seu engajamento em lutas por justiça social e étnico-racial. A fim de contribuir para que esse desafio possa ser vencido, teço, a seguir, algumas reflexões pautadas na análise de uma experiência de formação continuada de professores/as, com o intuito de educar relações étnico-raciais justas no ensino de Ciências.

A pesquisa O processo de formação continuada aqui analisado foi realizado no contexto de uma pesquisa de doutoramento já finalizada, intitulada: A educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências (VERRANGIA, 2009). O objetivo geral da investigação focou a compreensão da educação das relações 150


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étnico-raciais no ensino de Ciências. Para revelar essa educação, foi preciso conhecer processos educativos vividos pelos/as professores/as participantes da pesquisa, sua influência nas aulas que ministram e suas visões sobre o papel do ensino de Ciências na orientação de relações étnico-raciais positivas. Dessa forma, o convívio entre pesquisador e participantes fez-se central a fim de atingir o objetivo do estudo. No convívio com docentes brasileiras, a investigação se deu no contexto de um curso de formação continuada de professores/ as, em que o pesquisador atuou como formador. A partir de meados de 2005 até o fim de 2008, o pesquisador conversou informalmente e entrevistou professores/as de Ciências e Biologia, tendo o objetivo de compreender suas visões acerca da possibilidade de ensinar Ciências para combater o racismo e valorizar a diversidade étnico-racial. As entrevistas realizadas foram ricas e contribuíram para as definições tomadas antes do início efetivo do contato entre pesquisador e participantes de pesquisa. Um dos temas que chamou a atenção, após as entrevistas realizadas, foi a existência de uma maioria absoluta de docentes que nunca haviam pensado sobre a questão levantada. Com o intuito de compreender a fundo a educação das relações étnico-raciais mais do que fazer um diagnóstico, já bem delineado por outras pesquisas, decidiu-se vivenciar esse processo e, no convívio, desenvolver estudo científico. Para tanto, educadores/as brasileiros/as e estadunidenses conviveram com o pesquisador, que procurou conhecer suas experiências. No caso do convívio com docentes brasileiras, essa interação deu-se em um curso de formação continuada que durou aproximadamente oito meses e que é o foco desta reflexão.

A experiência Após a realização de uma divulgação ampla nas redes estadual e municipal de ensino de São Carlos (SP), dez docentes, todas mulheres, e cinco estudantes de graduação se voluntariaram para participar de um curso intitulado: “Educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências”. Nesse curso, pesquisador, docentes e estudantes de graduação estudaram, planejaram, executaram e avaliaram aulas, atividades e outras ações pedagógicas com o objetivo de promover a educação de relações étnico-raciais justas nas aulas de Ciências, a partir de conteúdos dessa disciplina. No curso o pesquisador, que atuou como formador, procurou garantir processo colaborativo, orientado pela busca de formas pelas quais o ensino de Ciências poderia promover com151


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bate ao racismo e valorização da cultura e história africana e afro-brasileira. O curso foi constituído por 10 encontros de aproximadamente três horas cada, entre 24 de março e 14 de julho de 2007, nas dependências do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB-UFSCar). A fim de atingir os objetivos da estratégia metodológica1 planejada, durante os encontros foram realizados/ as: estudos de textos e discussões sobre relações étnico-raciais, ensino de Ciências e suas inter-relações; levantamento e seleção de materiais, conteúdos e procedimentos de ensino convergentes ao propósito de favorecer a educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências; discussões sobre posturas e atitudes éticas alinhadas aos objetivos de educar relações étnico-raciais; planejamento de atividades e procedimentos de ensino a serem realizados em sala de aula; implementação das atividades planejadas nas salas de aula, junto aos estudantes; análise dos resultados da aplicação do planejado, junto aos estudantes, nos encontros subsequentes a esta aplicação; avaliação das atividades propostas junto ao grupo, buscando identificar aspectos positivos e negativos do trabalho realizado e de seus resultados. O trabalho também consistiu de atividades orientadas, como leituras, pesquisas individuais e planejamento de aulas – além da já mencionada aplicação em sala de aula –, realizadas em horários específicos fora dos encontros. De forma geral, a sistemática adotada na maioria dos encontros foi: início com espaço aberto para comentários, dúvidas, questionamentos sobre relações étnico-raciais; apresentação de atividades realizadas em casa; apresentação, pelo pesquisador/formador, de algumas informações sobre a temática abordada e/ou realização de atividades em conjunto; discussões sobre informações, vídeos, textos apresentados e/ou atividade realizada; planejamento de 1 A estratégia metodológica envolveu: promover atividades em que entendimentos e posturas das docentes a respeito das relações étnico-raciais fossem explicitados; realizar discussões sobre a educação das relações étnico-raciais e pedagogias de combate ao racismo; apresentar dados, textos, vídeos etc. que estimulassem a reflexão sobre tais relações; discutir a importância das relações étnico-raciais no cotidiano escolar, por meio de apresentação de informações (dados de pesquisa, vídeos, textos) e compartilhar experiências; fornecer subsídios que contribuíssem para que as docentes se sentissem seguras para lidar com as relações étnico-raciais e realizar atividades que abordassem a diversidade étnico-racial; incentivar a implementação das atividades planejadas nas salas de aulas, junto aos estudantes; discutir as principais dificuldades encontradas na implementação das atividades ou os principais motivos para a não realização das mesmas; apresentar informações que pesquisas e trabalhos na área de educação e relações étnico-raciais consideram importantes e de qualidade para a formação de docentes para abordar questões étnico-raciais; promover atividades em que as docentes explicitassem como selecionam materiais, conteúdos e procedimentos de ensino e as posturas que assumem em sala de aula; realizar discussões sobre aspectos convergentes e divergentes do trabalho que desenvolvem e o objetivo de educar relações étnico-raciais positivas; apresentar outras possibilidades de atuação que pudessem contribuir para melhoria nas intervenções pedagógicas realizadas; planejar atividades e procedimentos de ensino a serem realizados em sala de aula e que objetivem educar relações étnico-raciais; promover análise da coerência entre objetivos e atividades planejadas, procurando fornecer subsídios sólidos para tal análise e para possível aperfeiçoamento das atividades.

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próximos encontros e sugestões de temas a serem abordados; sugestão, pelo pesquisador/formador, de atividades para casa. Cabe destacar que houve também o desenvolvimento de trabalho colaborativo nas escolas em que algumas das participantes trabalhavam. Dessa forma, o pesquisador esteve junto com algumas docentes em atividades planejadas no curso e executadas em salas de aula de Ciências, no ensino fundamental.

Um breve balanço A análise dessa experiência torna evidente uma série de aspectos a serem considerados na formulação de políticas públicas com a intenção de, efetivamente, implementar a Lei n.o 10.639/03, das quais salientamos neste texto: a formação continuada de professores/as dentro do sistema público de ensino; o trabalho colaborativo entre pesquisadores/as, especialistas, integrantes de movimentos sociais/culturais e docentes; a elaboração de produtos pedagógicos que, como resultados da colaboração, possam ser disponibilizados para e revistos por outros/as docentes da rede de ensino. Um primeiro ponto a ressaltar é o fato de não contarmos com a participação de docentes negros/as na experiência, devido à impossibilidade de encontrá-los em meio a uma ampla rede de contatos estabelecidos para tal fim. Tanto no contato estabelecido nos HTPC quanto em visitas a escolas, além de solicitações feitas a professores/as de várias áreas, não foi possível encontrar docentes negros/as ministrando a disciplina Ciências Naturais na cidade de São Carlos e região. Sobre as motivações para ingressar no curso, de forma geral, as docentes manifestaram o interesse em “ampliar a formação”. Além disso, duas docentes manifestaram que a curiosidade sobre a discussão acerca das relações étnico-raciais foi a motivação para comparecerem ao primeiro encontro. Passo, então, a discutir alguns pontos-chave que, a partir da análise aqui expressa, relacionam-se com a efetivação da educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências. A estrutura escolar e o Estado constituem importante dimensão que interfere na possibilidade de que os/as docentes, no ensino de Ciências, eduquem no sentido de relações étnico-raciais positivas. Um exemplo é a constatação das docentes contatadas de que o poder público, representado pelas secretarias Estadual e Municipal de Educação, deveria promover processos de formação de professores/as adequados à realidade das salas de aula. 153


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Nesse sentido, o estudo das relações étnico-raciais está entre as prioridades em que tais secretarias deveriam investir. No mesmo contexto, foi destacada a importância de, para viabilizar a intervenção planejada, realizar um curso de extensão formalizado e devidamente registrado na Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar. O apoio da direção escolar, muitas vezes não recebido, é apontado também como dificuldade para realização de trabalho “diferenciado”, voltado às relações étnico-raciais. Esse apoio pode ser dado em alguns momentos, porém, isso não é sempre assim. Há rotatividade de diretores/as numa escola e, ao mesmo tempo, as docentes, principalmente aquelas não efetivas, são obrigadas a mudar de escola frequentemente e adaptar-se a outros/as gestores/as.

Formação inicial e continuada Na visão das docentes participantes da experiência aqui analisada, a formação inicial deixa uma série de ausências e a sensação de que a universidade não prepara para lidar com a realidade da sala de aula. Os cursos frequentados partem de uma realidade ideal e não daquela “concreta” das salas de aula. A falta de preparo para lidar com a realidade é uma falha que pode acarretar, inclusive, a desistência da profissão por parte dos/as professores/as em formação. Outra falha apontada na formação inicial é a falta de preparação para lidar com as relações entre conhecimentos e valores. Como já mencionado, as participantes sentem que não foram preparadas para identificar e trabalhar com os valores relacionados a muitos dos conteúdos conceituais que ensinam. As docentes indicam que aprendem a dar aula na prática, na sala de aula, pois se tornar professor/a é um processo que ocorre ao longo da profissão. Como já foi destacado, a experiência junto a seus/suas alunos/as é um dos elementos que contribui para essa formação. A desvalorização dos cursos de formação continuada é reforçada pela existência de muitos que não levam em consideração a experiência dos/as professores/as. Nessa mesma situação, foram mencionados vários exemplos de cursos que não deram abertura às suas ideias, reivindicações, experiências e, por isso, são considerados desestimulantes.

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Pesquisador, Formador e Participantes No fazer junto, pesquisador e participantes atribuíram significados ao ambiente em que vivem, em conversas e planejamento de atividades (dentro e fora do ambiente físico do curso), assistindo vídeos, lendo livros ou textos e compartilhando os significados que eram atribuídos a esses materiais. Esse “fazer junto”, muitas vezes foi considerado como aspecto importante da formação, como destacou uma participante, que, ao criticar outras experiências de formação vivenciadas, disse: “Não é feito como você fez, uma discussão, a gente estudar junto, ver o que é certo e o que é errado”. Enquanto responsável pelo curso, o pesquisador propôs discussões, questionando ideias, conhecimentos e análises das participantes acerca dos temas abordados no curso. Da mesma forma, apresentou informações de pesquisas, textos, vídeos, etc., além de propor trabalhos específicos a serem realizados nos encontros e fora deles. Cabe destacar, que se procurou ao máximo não centralizar informações discutidas e abrir espaço aos conhecimentos trazidos pelos/as participantes. Uma tendência observada, principalmente no início do curso, foi o estabelecimento de relativa dependência, ou hierarquia, entre “o que sabe”, o pesquisador, e “o que não sabe”, as docentes. Um dos indícios dessa relação foram falas das docentes que evidenciavam suas expectativas acerca do esperado pelo pesquisador/formador. Ao longo do curso, essa tendência foi sendo modificada, sendo estabelecido respeito entre os diferentes papéis exercidos no curso, e cada vez mais foram sendo diluídas as distinções entre formador/formandas, principalmente na análise de situações e atividades de ensino. Para essa mudança, foram fundamentais o diálogo e a manutenção de postura colaborativa. O fazer junto, analisar junto considerando as opiniões de todos/as, foi central para diminuir a necessidade de uma “palavra final” do pesquisador e estimular a participação das docentes nas avaliações, intensificando as trocas, intersubjetividade. Para que as relações de colaboração fossem efetivas, a prática social de formação continuada foi orientada no sentido de promover diálogo constante. No convívio, as participantes revelaram alguns aspectos que favoreceram o estabelecimento do diálogo e promoveram relações de colaboração. Um deles foi a realização do curso em um grupo pequeno, no qual “dava para falar”. Outro aspecto mencionado como importante para o diálogo é o “ouvir o outro”, sobre o que ele/a deseje falar, suas expectativas e angústias, mesmo 155


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que não estejam diretamente relacionadas à temática discutida no momento. Essa postura favoreceu que cada um/a se sentisse mais apto/a a expressar-se, mesmo que, aparentemente, “fora do tema”. Percebeu-se, também, que esse expressar-se, previamente julgado como destoante, na maioria das vezes trazia contribuições importantes para as discussões e estava muito conectado com as temáticas e problemáticas discutidas. Ouvir o que as docentes têm a falar não basta para o estabelecimento do diálogo. É necessário que seus interesses, suas preocupações e experiências, sejam respeitados e considerados pedagogicamente no desenvolvimento do curso. Sendo assim, pode-se afirmar que, no convívio, o diálogo é mantido pelo respeito e por relações de colaboração, construindo um “convívio harmonioso” (SIQUEIRA, 2004), o que não significa ser homogêneo nem sem conflitos, pois, muitas vezes, são os conflitos que motivam reflexões, aprendizados e mudanças de olhar. Tal concepção reflete bem as relações que permearam as relações entre participantes e pesquisador na intervenção em pauta. Mesmo havendo pontos de vista distintos e conflitos em algumas situações, não houve brigas nem atrito capaz de perturbar a colaboração, mesmo em situações em que pesquisador e outros/as participantes mostraram a alguém que sua expressão ou pensamento era baseado em preconceitos. Cabe destacar que a forma pela qual essas interações se deram foi sempre respeitosa e, principalmente, não agressiva. No curso, partiu-se da compreensão de que todos/as têm preconceitos e que o importante é identificá-los e superá-los.

Diversidade Ao interagirem, ao conversarem e fazerem outras coisas juntos, diferentes sistemas de significação do mundo foram postos em contato entre as diferentes pessoas/subjetividades que se encontraram na prática social de planejar a educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências. Os diferentes sistemas de significação em questão representam a diversidade presente no curso, em que se encontraram: mulheres e homens; negros/as e brancos/as; com filhos/as e sem; educadores/as e educandos/as; professores/as em serviço e professores em formação inicial; professores de Ciências, de História e de Português; diferentes religiões e crenças espirituais. Na prática social em pauta, interagiram docentes já formadas e estudantes em formação inicial, em uma convivência que excedeu o espaço físico do 156


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curso, pois essas estudantes realizavam estágio nas escolas em que algumas das participantes lecionavam. Tanto nos encontros do curso quanto nas escolas, as interações entre essas participantes tinham um caráter formativo evidente, uma relação respeitosa entre professoras experientes e estudantes em formação inicial. Além das diferenças de experiência como docente, também a diversidade de carreiras do magistério foi uma questão que marcou a interação entre os/ as participantes do curso. No momento do contato direto com professores/ as, duas docentes que não eram da área de Ciências solicitaram participar do curso e foram aceitas. Também participaram da intervenção estudantes do curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas da UFSCar e um licenciando do curso de Química da mesma Universidade. Devido à existência de diferentes especialidades, Ciências Biológicas, Língua e Literatura, História e Química, houve muitas oportunidades de trocas entre os/as participantes. Essas trocas envolveram conceitos, textos e outros materiais que foram compartilhados pelos/as participantes e que refletiam suas formações. As docentes identificaram que o centro das discussões era o ensino de Ciências, mas para atingir os objetivos da atividade foi necessário ir além da corrente compartimentalização do conhecimento humano. Por um lado, as docentes das áreas das Ciências Humanas manifestaram ter sido proveitoso discutir conceitos e problemáticas circunscritas, frequentemente, às Ciências Naturais. Por outro lado, as docentes de Ciências Naturais destacaram a necessidade de, para compreender as relações étnico-raciais, envolver conhecimentos “das Ciências Humanas”. Convivendo durante os meses do processo formativo, docentes, pesquisador e estudantes compartilharam suas visões acerca de temas ligados à religiosidade, que se mostrou temática importante para a compreensão das relações étnico-raciais. Ao mesmo tempo, a espiritualidade de cada participante foi sendo compartilhada em conversas pautadas pelo respeito e pela confiança que foi, aos poucos, sendo construída no convívio. As visões de mundo são tomadas como base para análises e foram discutidas e repensadas, assim como se buscou compreender as diferenças entre visões.

Disponibilidade Para atingir os objetivos formativos do curso, foi muito importante que as docentes tivessem dispostas a trabalhar de forma colaborativa e aprofundar 157


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as temáticas discutidas, resgatando e compartilhando experiências pessoais e, muitas vezes, íntimas. Essas experiências foram trazidas à tona pela memória não apenas para dar exemplos, mas foram questionadas e re-significadas. Elas referem-se a: - experiência vivida pelos/as participantes, no passado, resgatada por meio da memória ativada no convívio com o pesquisador e outros/as participantes; - experiência sendo vivida no presente; ações e reflexões geradas no contato entre sujeitos no contexto da pesquisa; - experiência projetada para o futuro, a ser vivida, depois do curso, revelada por planejamentos e desejos, sobre atitudes e mudanças. Cabe destacar que, aqui, faz-se referência à memória como a estudam as Ciências Sociais, com ênfase em sua manifestação social, não desconsiderando os conhecimentos de áreas como a Fisiologia Neurológica. Como explica uma pesquisadora argentina: “Memória dos seres humanos ativos nos processos de transformação simbólica e de elaboração de sentidos do passado. Seres humanos que trabalham sobre e com as memórias do passado” (JELIN, 2002, p. 14). Assim, referir-se à memória com esta compreensão, em que ela implica trabalho, significa incorporar a memória a um fazer complexo, que gera e transforma o mundo social (JELIN, 2002). Na intervenção aqui analisada, em diálogos estabelecidos, foram compartilhadas experiências e a elas novos significados foram atribuídos, processo que envolveu trabalho intenso de cada um/a.

Conhecimentos Cabe destacar que o conhecimento científico abordado nos encontros teve papel central nas interações produzidas. O contato com conhecimentos “novos”, ou novas abordagens utilizadas para avaliar conceitos ou situações já conhecidos, muitas vezes, chocavam-se com as ideias prévias das participantes, tensão essencial para atingir o objetivo formativo da intervenção. Esses conhecimentos ajudaram a desvelar a realidade (FREIRE, 1978) e sua historicidade.

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Esses conhecimentos mencionados não desmerecem nenhum grupo social e explicitam aspectos ignorados ou escondidos na história oficial. Alguns deles referem-se: ao conceito de raças humanas e sua história; dados demográficos e geopolíticos relativos às populações negra e não-negra no Brasil e em outros países; aspectos centrais da história evolutiva da espécie humana; questões relativas à genética e fisiologia da determinação de características como tonalidade de pele e textura do cabelo; aspectos da história das Ciências Naturais, como o movimento eugenista; as riquezas culturais e naturais da África pré-colombiana; as importantes contribuições tecnológicas e intelectuais de africanos para o desenvolvimento científico; entre outros. Esses conhecimentos ajudam a, por exemplo, questionar os materiais didáticos utilizados e a propor outros, novos, ou alterações no uso daqueles considerados inadequados. Dentre os materiais utilizados pelas participantes no planejamento de suas aulas, ficou evidente a importância dada ao livro didático. Ele ocupa um papel de destaque tal na escola que a única questão pedagógica, relatada pelas docentes, sobre a qual os pais de estudantes interferem, é sua escolha. Os livros didáticos são relevantes para a possibilidade de criar um ensino de Ciências com intuito de promover relações étnico-raciais humanizantes entre os/as estudantes. Porém, de forma geral, é consenso que esses livros não representam adequadamente a população negra, dificultando tal processo. Dessa forma, os livros utilizados foram analisados em termos do que seria necessário para que contribuíssem para o intento de educar relações étnico-raciais positivas. Em suas análises, as professoras indicam ser necessário melhorar a representação das populações africana e afrodescendente, que são geralmente omitidas ou apresentadas em situação de inferioridade. Para tanto, sugerem que os livros apresentem cientistas negros/as e tragam conhecimentos científicos que contribuam para a compreensão da diversidade humana e sua história, assim como para a superação de estereótipos raciais. Essa questão é mais urgente, tendo em vista, como foi possível perceber, principalmente junto às docentes brasileiras, que o livro didático pode contribuir para mudanças no ensino, ao trazer “novidades”, conhecimentos adequados e atividades criativas. Neste ponto, cabe destacar que um dos produtos da intervenção realizada é, justamente, um material didático produzido no curso e que, na época de escritura deste texto, estava em fase de finalização. Este material contém textos de apoio e propostas de atividades alinhadas com o objetivo de pro-

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mover ensino de Ciências dirigido à educar relações étnico-raciais justas. O material foi produzido em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Carlos e será distribuído para todas as escolas da rede municipal de ensino dessa cidade.

Relações de gênero e étnico-raciais Ao compartilharem histórias envolvendo a vida pessoal e profissional, experiências e ideologias relativas às relações de gênero foram explicitados e problematizados. A presença feminina no curso era majoritária, dez mulheres e dois homens. Nesse contexto de maioria feminina, os dois homens presentes ocupavam, no contexto do curso, papéis de relativo poder, pois eram o formador, responsável pelo curso, e o monitor. Formador e monitor procuraram, no decorrer do convívio, ser conscientes das relações de gênero e, com suas ações, evitar o estabelecimento de hierarquias, que, devido às funções mencionadas, já estavam postas. Nesse sentido, procuraram “cuidar da relação”, o que envolveu postura de alerta e auto-reflexão constante, a fim de identificar possíveis situações de desigualdade, devido à mencionada hierarquia, concretizada, por exemplo, na predominância da fala. Uma questão importante que cabe mencionar neste ponto é que, porque o curso tinha como objetivo combater discriminações, uma postura de alerta estava estabelecida entre os sujeitos. Havia, no convívio, autorreflexão e controle que, em alguns momentos, foram explicitados. O medo de ser preconceituoso/a ou de discriminar permeava as relações estabelecidas entre as participantes, mas, ao mesmo tempo, as atividades realizadas estimulavam todos/as a se manifestarem sobre seus pensamentos e concepções. Manifestações identificadas como “discriminatórias” geraram problematização das relações de gênero, assim como das étnico-raciais. De forma semelhante, essa atenção à própria fala teve reflexos sobre as expressões envolvendo pertencimento étnico-racial de docentes e estudantes. A intenção de não ser preconceituoso/a e de refletir sobre os próprios pensamentos não impediu que as participantes compartilhassem experiências envolvendo o pertencimento étnico-racial. Ao identificarem-se como brancas e de ascendência europeia, refletiram sobre sua ancestralidade e a existência de miscigenação em suas famílias. Ao mesmo tempo, ao interagir com o pertencimento étnico-racial do pesquisador e do monitor, fizeram perguntas sobre sua ascendência e relações familiares. Esse contato entre pertencimentos 160


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distintos foi, da mesma forma apontada para as relações de gênero, disparador de análises sobre a sociedade como um todo. As manifestações de concepções preconceituosas, que as docentes procuraram evitar, muitas vezes sem sucesso, foram utilizadas pedagogicamente para ampliar as compreensões sobre os preconceitos e discriminações. Desta forma, ao identificar os próprios preconceitos, as participantes encontraram uma poderosa ferramenta para a educação das relações étnico-raciais.

As aprendizagens As docentes puderam analisar suas ações antes e depois da intervenção, ressaltando os impactos do curso na prática pedagógica. Nessas análises, elas revelaram que o curso propiciou aprendizagens que levaram a mudanças em suas visões e práticas. Uma das contribuições identificadas foi que o curso “ampliou horizontes” ou “mostrou novos caminhos”. Nesse sentido, disseram passar a ter um melhor entendimento das relações étnico-raciais que ocorrem na sala de aula, assim como maior interesse por situações envolvendo essas interações. O interesse possibilitou que passassem a identificar mais facilmente tais relações no cotidiano, estimulando-as a buscar informações a respeito e a realizar atividades junto aos/às alunos/as. As aprendizagens contribuíram para que passassem a entender melhor o que sentem e as experiências vividas pelos/as alunos/as negros/as, mudando a forma de vê-los. Ao mesmo tempo, também mencionaram passar a ter consciência das dificuldades que vão encontrar ao realizar trabalho de combate ao racismo e às discriminações. As docentes explicitaram ter passado a identificar mais claramente a presença de ideologias envolvendo as relações étnico-raciais, por exemplo, na mídia. Estas ideologias referem-se, por um lado, à veiculação de estereótipos raciais e de posicionamentos políticos, como aquele desfavorável às ações afirmativas. Por outro lado, referem-se aos diferentes usos, pela mídia, do conhecimento ou do status científico, veiculando preconceitos e estereótipos, relacionados às relações étnico-raciais e de gênero (VERRANGIA, 2008). Aprendizagens feitas no curso contribuíram para mudanças na prática pedagógica das participantes. Em várias oportunidades, elas manifestaram obter subsídios para interferir nas relações étnico-raciais vividas em sala de aula. Nesse sentido, manifestaram sentir maior segurança para realizar intervenções, ou maior embasamento e mais confiança para aplicar as raras atividades presentes nos livros didáticos que utilizam. Nesse sentido, explica161


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ram se sentir mais à vontade e preparadas para, além de aplicar tais atividades envolvendo o combate ao racismo e a discriminações, ir além do escrito no livro, aprofundando as discussões propostas. As “contribuições metodológicas” também foram apontadas como relevantes, como, por exemplo, a discussão de diferentes formas de valorizar a diversidade étnico-racial no cotidiano escolar. As participantes manifestaram ser importante terem analisado e planejado atividades que podem ser aplicadas em suas classes, revelando diferentes abordagens, tais quais: tratar das relações étnico-raciais sem discuti-las diretamente; realizar intervenção não pontual; fazer intervenção sem incentivar ou estimular mais discriminações. Anita, por exemplo, relatou ter mais condições de responder determinadas dúvidas apresentadas pelos/as alunos. Já Isolda destacou a importância de ter aprendido argumentos para tornar o discurso que já tinha mais consistente. Como impacto do curso, apontaram passar a valorizar mais a diversidade étnico-racial e as contribuições culturais dos diferentes grupos, assim como ampliar interesse sobre as semelhanças e diferenças culturais entre o continente africano e o Brasil. Para tanto, as participantes apontaram a importância de terem entrado em contato com conhecimentos sobre história e cultura africana e afro-brasileira, inclusive conhecimentos relacionados às Ciências Naturais. Finalmente, as docentes também ressaltaram a importância de terem aprendido conteúdos conceituais que fazem uma interface entre as Ciências Naturais e as relações étnico-raciais, como aspectos relativos à fisiologia da determinação da tonalidade de pele, à evolução da humanidade, entre outros, já indicados anteriormente.

Conclusões A origem da educação das relações étnico-raciais se dá nas experiências, vividas no ambiente da família, da comunidade, da prática docente e no contato com a mídia. Esses espaços são marcados pelas relações sociais: étnico-raciais, de gênero e de classe social. É na experiência que os processos educativos, ao longo da vida, geram conhecimentos, valores e são perpassados por ideologias, elementos que orientam as relações vividas com os/as outros/as. Essas aprendizagens podem levar ao estabelecimento de relações pautadas em hierarquias raciais e também à procura por superar preconceitos e ao engajamento em lutas contra o racismo e discriminações, assim como valorizar a diversidade étnico-racial. 162


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Assim, ao educarem-se para viver relações étnico-raciais, os/as docentes constroem orientações para o ensino de Ciências que vão desenvolver junto aos/às estudantes, levando em conta as relações que nele procurarão estabelecer. Na prática docente, independente deste processo ser um dos objetivos do trabalho pedagógico, docentes e estudantes estarão educando-se para viver relações étnico-raciais. Uma das implicações desta pesquisa é a importância de procurar, na formação de professores de Ciências, situar as relações étnico-raciais também no centro dos processos educativos e de sua discussão. Para tanto, há de se considerar que o pertencimento étnico-racial interfere na prática pedagógica, principalmente tendo em vista que o exercício pleno da cidadania envolve as lutas por equidade travadas dentro dos grupos sociais, entre eles, étnico-raciais. Ser negro/a, branco/a, indígena, asiático, pensar sobre e assumir esse pertencimento traz para a prática pedagógica experiências e visões distintas, ricas para os processos educativos nela vividos. Cada uma dessas visões traz aportes importantes para a possibilidade de que o ambiente escolar seja benéfico para a educação de estudantes negros e não-negros. Como indica o parecer CNE/CP n.o 003/2004, “a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime” (BRASIL, 2004, p. 6). Como essa reflexão aponta, tornar real o intuito presente na Lei n.o 10.639/03 e explícito no Parecer CNE/CP 003/2004, a educação das relações étnico-raciais, é preciso que cursos/experiências de formação profissional levem em conta as complexas relações envolvendo o educar-se de cada docente. Essa conclusão não significa que tal consideração seja fácil de ser realizada, porém, ela é possível. Assim, termino este texto lembrando a fala de um dos participantes da pesquisa que deu origem a este texto. O mencionado professor, diretor de uma escola visitada, me dizia que “o professor ensina o que ele é”. A educação das relações étnico-raciais, preconizada nos documentos legais mencionados, nos apresenta oportunidade de nos tornarmos, consciente e sistematicamente, pessoas mais humanizadas e de promover processos formativos nessa direção. Esse é um grande desafio que, certamente, vale a pena enfrentar.

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Movimento feminino nas aldeias: a mobilização de mulheres indígenas, estado de Mato Grosso, Brasil1 Paula Faustino Sampaio

Nós achou que os homens não estavam tomando a luta como deveria ser e nós achou que pela luta dos homens nós nunca poderia chegar ao que nós está chegando hoje. Valéria Pereira, da Etnia Arara, em depoimento ao documentário Nativa (VARGAS; MEDEIROS, 2005).

Iracema, a virgem dos lábios de mel, é uma mulher indígena jovem, casta e bela, personagem central cujo nome dá título ao romance – Iracema – de José de Alencar, publicado em 1865; “Índia, seus cabelos nos ombros caídos / Negros como a noite que não tem luar” são versos compostos pelos paraguaios Manoel O. Guerrero e J. Assunção Flores, cantados no cancioneiro popular do Brasil desde 1953, ano de lançamento da canção “Índia” pela dupla Cascatinha e Inhana; Paraguaçu e sua irmã Moema formam um triângulo afetivo com Caramuru, o português Diogo Álvares, na comédia dirigida por Guel Arraes, lançada em 2001. Na literatura indianista romântica do século XIX, na canção popular de meados do século XX e no filme do começo do século XXI, a imagem da mulher indígena está associada à natureza, à sexualidade e ao passado. No entender do historiador Raminelli (2009), os cronistas, os viajantes e os padres da Companhia de Jesus que escreveram sobre o Brasil e sua gente, ao longo dos séculos XVI e XVII, apresentaram a mulher indígena como selvagem, feiticeira, lasciva e luxuriosa. A mulher da etnia Tupinambá foi vista, dita e mostrada pelos cronistas como a mulher primordial da América, a Eva indígena. 1 A primeira versão deste texto foi apresentada nos eventos II Congreso de Estudios Poscoloniales y III Jornadas de Feminismo Poscolonial, em Buenos Aires, Argentina, realizados nos dias 9 a 11 de dezembro de 2014; o trabalho foi publicado nos Anais Eletrônicos. A versão atual passou por algumas modificações, mas mantém o mesmo enfoque.


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De acordo com a historiadora Sousa (1986), estes relatos edenizaram a América, enquanto território, mas demonizaram os habitantes, vistos como monstros, diabos e selvagens. No âmbito do imaginário medieval, que se transformava em função das ocupações da América, cronistas projetaram o imaginário europeu cristão sobre o Novo Mundo e, assim, afirmaram sobre a América “algo que, de certa forma, já estava concebido: via-se o que se queria ver, o que se ouvira dizer” (SOUSA, 1986, p. 43). Para o sociólogo Freyre, autor da obra Casa-grande & senzala, clássico da história do Brasil, as mulheres indígenas, por gerarem filhos para o trabalho e o povoamento da terra do Brasil, submissas aos homens brancos, foram as facilitadoras da colonização. Deste modo, para Freyre (2006), as mulheres indígenas contribuíram com o projeto português de colonização e de formação da sociedade no Brasil. Na história do Brasil, as mulheres indígenas são apresentadas a partir da misoginia cristã, em seu afã colonizador e cristianizador das populações da América. Trata-se de uma perspectiva patriarcal, androcêntrica e colonizadora da história do Brasil, que enquadra as mulheres indígenas como submissas aos homens europeus e que não mostra a atuação de mulheres indígenas e a diversidade de experiências e papéis socioculturais. Esse conjunto de imagens do passado colonial é recorrente sobre as mulheres indígenas no imaginário dos(as) brasileiros(as) do século XXI, o que, por um lado, apresenta-as como personagens coadjuvantes de um passado distante, e, por outro lado, invisibiliza as experiências de mulheres ao longo dos tempos. Ademais, a historiografia brasileira somente a partir dos anos 1980 passou a dar atenção para a mulher, enquanto sujeito da história. Entretanto muito há que se pensar historicamente sobre as experiências das mulheres indígenas. Como afirma Guardia (2013, p. 484): La identificación de fuentes y documentacións para la historia de las mujeres implica rastrear a las mujeres en la historia no a través de datos olvidados sino más bien como un problema de relaciones entre seres y grupos humanos que antes habían sido omitidas.

Fazer novas perguntas, buscar novas fontes e propor outros ângulos para pensar os sujeitos femininos indígenas, estabelecendo diálogos por meio da categoria analítica “gênero”, implica também problematizar a imposição de

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leitura do colonizador. Romper com a leitura colonial implica pensar sobre “Un ‘mapa en ruínas’, como metaforiza Marta Sierra, en el cual el feminismo poscolonial está pensando justamente esas intersecciones, esos espacios ‘in-between’ donde se articulan las diferencias comunes y se elaboran estrategias de identidad colectivas, como afirma Homi Bhabba” (BIDASECA; SIERRA, 2014, p. 6). Atualmente, no Brasil, conforme dados do Censo populacional realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 896. 917 indígenas, de 305 etnias, as quais possuem hábitos, costumes e línguas próprios, metade são mulheres, observando-se, pois, “equilíbrio entre os sexos para o total de indígenas (100,5 homens para cada 100 mulheres), com mais mulheres nas áreas urbanas e mais homens nas rurais”. Apesar deste contingente populacional total indígena, que representa 0,4% da população do Brasil – ressalte-se que o método de pesquisa para contagem populacional indígena é problematizado e contestado pelos grupos indígenas e estudiosos(as) –, existem muitos silêncios em torno da vida, presente e passada dos povos indígenas. Os estudos de antropólogos, de historiadores2, de demógrafos, entre outros, vêm buscando superar os silêncios sobre a história indígena, apesar da dificuldade de realizá-los. Na perspectiva de gênero, conforme estudo de Monagas (2006), os estudos mostram o espaço político das mulheres nos percursos do movimento indígena na Amazônia Legal Brasileira e os dados sobre organizações de mulheres indígenas, notadamente para a Amazônia Brasileira. Para Potiguara (2002), ao discursar sobre os povos indígenas na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlatas, em Durban, África do Sul, em setembro, no ano de 2001, quanto à de gênero, afirmou que a luta tem sido dobrada pelo preconceito, pelo desconhecimento e pelo desinteresse dos envolvidos, o que contribui para tornar invisível a situação das mulheres indígenas no Brasil. Por isso, para falar da participação das mulheres indígenas na Conferência Mundial contra o Racismo, há um outro histórico que não pode ser ignorado (POTIGUARA, 2002, p. 224). 2 São fundamentais para compreender as questões indígenas no Brasil os estudos de Monteiro (1994a; 1994b) e Cunha (1993).

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Apesar dos preconceitos contra a presença feminina no movimento indígena e contra a organização de movimentos de mulheres indígenas, a líder da Rede Grupo Grumin de Mulheres Indígenas, instituição voltada para a educação e para a produção escrita indígena, destaca a existência de iniciativas e se coloca como mulher indígena atuante na defesa dos direitos indígenas. Matos (2012) enfatiza o protagonismo das mulheres indígenas em seus grupos e fora deles, antes e após se incorporar a perspectiva de gênero na agenda política recentemente: As mulheres indígenas jamais estiveram totalmente excluídas dos espaços etnopolíticos nos quais concepções e práticas são definidas para lidar com os/as Outros/as (sejam grupos de outras etnias ou agentes não indígenas em contato). O fato de as mulheres indígenas não frequentarem lugares públicos ou mesmo de serem limitadas quando deles participam, não significa que estão sendo mantidas alienadas das tomadas de decisão coletivas sobre o destino de seu povo. Para chegar a essa compreensão, torna-se necessário reposicionar o olhar analítico para conseguir enxergar a diferença de perfis entre as esferas pública e privada quando vivenciadas nas sociedades indígenas e as mesmas esferas quando vivenciadas nas sociedades não indígenas (MATOS, 2012, p. 46).

Entretanto, apesar dos esforços para refletir sobre estas problemáticas indígenas na perspectiva dos estudos de gênero, ainda há muito para ser estudado, especialmente no que diz respeito a evidenciar e problematizar sobre os agenciamentos, os discursos e as mobilizações de mulheres indígenas dentro do movimento indígena e em associações e movimento de mulheres. Anualmente, em 5 de setembro, ocorrem celebrações, marchas e atos nas manifestações e nos eventos do chamado “Dia Internacional da Mulher Indígena”, instituído em 1983, durante o II Encontro de Organizações e Movimentos da América, em Tihuanacu (Bolívia). A data relembra a morte de Bartolina Sisa, “uma mulher quéchua, esquartejada pelas forças realistas durante a rebelião anticolonial de Túpaj Katari, no Alto Peru”, em 5 de setembro de 1782; a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU-Mulheres) reafirma o “apoio às mulheres indígenas na busca por justiça e em defesa dos direitos individuais e coletivos” (ONU, 2012, sem paginação).

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No ensejo do Dia Internacional da Mulher Indígena, a ONU-Mulheres afirmou que “no Brasil e nos países do Cone Sul, as mulheres indígenas desempenharam historicamente um papel fundamental como agentes de mudança nas famílias, comunidades e na vida do povo”. Para a Organização (2014), “é importante reconhecer as lutas, conquistas, habilidades, e contribuições culturais das mulheres indígenas, e também sua enorme responsabilidade na transferência de conhecimento”. A ONU-Mulheres destacou também que as indígenas são essenciais em diversas economias, trabalhando por segurança e soberania alimentar e pelo bem-estar de famílias e comunidades. Valéria Pereira, liderança da etnia Arara, ao discursar para mulheres, de dezesseis etnias, no Encontro de Mulheres Indígenas na Terra Indígena Arara, em 2005, afirma que as mulheres “num pode mais baixar a cabeça, a mulher tem que aprender a se defender também”; para ela, Nós num nascemos só para carregar filhos não, nós nascemos também para ter responsabilidade. Daqui... amanhã sai uma advogada, uma promotora, pode ser uma índia também, num é só branco que tem direito não, índio também tem, nós também somos povo, tem sangue, tem luta, tem vida, também tem esperança (depoimento de Valéria Pereira em: VARGAS; MEDEIROS, 2005, 10 min.).

Frente à lógica colonial, patriarcal, machista que atribui à mulher os papéis de mãe e dona de casa, Valéria Pereira fala sobre o deslocamento necessário para as mulheres indígenas do presente, ou seja, indica a possibilidade de a mulher indígena ocupar funções na esfera jurídica, na liderança e na política, gritos de esperança e de conclamação às demais mulheres em nome de si e de seu povo. Os discursos de Valéria Pereira e de outras mulheres indígenas, apresentados no documentário Nativa, de 2005 (disponível na rede mundial de computadores), não são isolados, não são a-históricos nem individuais apenas. Tais discursos nos permitem discutir a relação entre as organizações de mulheres indígenas e os pensamentos feministas, especificamente em Mato Grosso, o terceiro em população indígena do Brasil, com o intento de problematizar os discursos e a historicidade da mobilização feminina e feminista, para compreender como tem acontecido a organização de mulheres indígenas e em que medida os discursos e as práticas eurocêntricas, colonizadoras e patriarcais se fazem presente nas chamadas novas vozes dos feminismos no Brasil. 169


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Com base nos estudos feministas descoloniais, entende-se que “é preciso lutar contra o machismo a partir das próprias concepções que imperam entre os homens, dentro das comunidades indígenas a que pertencem” (RAGO, 2013, p. 98). Neste sentido, é muito rico o documentário Nativa, sobre o “movimento feminino nas aldeias”, como indica o subtítulo do filme; gravado no 4º Encontro de Mulheres Indígenas de Mato Grosso, em 2005, apresenta uma das faces da organização de mulheres indígenas na sociedade brasileira, ancorada nos mais diversos discursos feministas. O filme é dirigido por José Luiz Medeiros e Rodrigo Vargas e produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pelo Projeto Andanças. A população autodeclarada indígena nos censos do IBGE de 1991, 2000 e 2010, por Unidades da Federação do Brasil e cinco grandes regiões (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste), demonstra o crescimento da população indígena no país. Na região Centro-Oeste, no ano de 1991, a população total era de 52.735 indivíduos; no ano de 2000 a população era de 104.360 e no ano de 2010 a população registrada foi 130.494. Nesta região localiza-se o estado de Mato Grosso, cuja população indígena registrada em 1991 foi de 16.548, aumentada para 29.196 em 2000 e em 2010 para 42.538. Na Terra Indígena Arara do Rio Branco, em Aripuanã, Mato Grasso, Brasil, no ano de 2005, reuniram-se aproximadamente cem mulheres, entre elas Valéria Pereira, cuja fala é adotada como epígrafe deste texto. O documentário Nativa mostra que estas mulheres são representantes de dezesseis etnias e estão reunidas para debater problemas de suas aldeias, reivindicar mais espaços para as mulheres nas lutas em defesa da terra e da cultura e mostrar os enfrentamentos que as mulheres vivenciam em seus cotidianos, notadamente discutir a noção de submissão e de violência contra a mulher, uma vez que as mulheres indígenas, em suas singularidades, “vivem os seus próprios processos, que nem sempre coincidem com os tempos e agendas do feminismo urbano” (SALGADO, 2011, sem paginação). Parte dos debates deste encontro é mostrada no documentário. Por meio da análise dos discursos das mulheres contidos em Nativa – cujo título remete à ideia de sujeito próprio do lugar, natural, autóctone, e à ideia de que as mulheres presentes no filme são as mulheres naturais da terra do Brasil –, é possível pensar a história da organização das mulheres indígenas, uma vez que os documentários3 têm dado visibilidade a estes movimentos 3 Existem outros documentários, como As hiper mulheres e Mulheres xinguanas, que em outra oportunidade serão estudados.

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femininos. Segundo Morettin, Napolitano e Kornis (2012), o documentário vem desempenhando papel decisivo nos debates culturais do país desde o chamado cinema da retomada, questionando os limites das representações, entre outros importantes debates no fazer da história. O Conselho Indigenista Missionário é um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) cujas ações são voltadas para povos indígenas. Criado no ano de 1972, no âmbito da política integracionista das populações indígenas à sociedade envolvente, o CIMI tem objetivo de atuação definido pela Assembleia Nacional de 1995: Impulsionados(as) por nossa fé no Evangelho da vida, justiça e solidariedade e frente às agressões do modelo neoliberal, decidimos intensificar a presença e apoio junto às comunidades, povos e organizações indígenas e intervir na sociedade brasileira como aliados(as) dos povos indígenas, fortalecendo o processo de autonomia desses povos na construção de um projeto alternativo, pluriétnico, popular e democrático (CIMI, 199-, sem paginação).

O notório fomento da organização do movimento indígena pelo CIMI e atualmente o fomento das organizações de mulheres, como se pode notar no documentário Nativa, indica que “a parceria com indígenas e não indígenas é buscada para defender seus direitos e possibilitar o processo organizativo” (MONAGAS, 2006, p. 127). Para a antropóloga, o movimento de mulheres indígenas é entendido no sentido de exercer o papel de defesa dos direitos das mulheres, evidenciando a exclusão das demandas das mulheres indígenas das agendas feministas e o não diálogo entre o movimento feminista e o movimento de mulheres indígenas. Segundo Fougeyrollas-Schwebel (2009), alguns movimentos de lutas por igualdade entre homens e mulheres, a exemplo das mulheres da 2ª e 3ª Internacionais, rejeitaram a qualificação “feminista”, porque entendiam que estava marcada por fundamentos burgueses. Como quem tece uma rede, escrever sobre a organização de mulheres indígenas em Mato Grosso, dando visibilidade às tessituras em processo de produção, é deparar-se com fios diversos, fragmentados. Por meio de notícias curtas e esparsas de informativos de órgãos oficiais como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Organizações não governamentais (ONG’s), é possível encontrar alguns fios desta tessitura e começar a formar o primeiro entrelaçamento do tecido das organizações de mulheres indígenas de Mato Grosso. 171


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Nessa tessitura, vamos mostrar os fios possíveis no documentário Nativa. O filme inicia-se com a apresentação de sete mulheres e suas respectivas etnias. Jocineide (Arara), Rute (Karajá), Luciana (Munduruku), Neide (Kaioá), Urugureudo (Bororo), Irene (Arara) e Morô (Tapirapé): dentre estas mulheres, que se apresentam em meio a sorrisos e gestos de timidez, algumas com os filhos nos braços, apenas Jocineide declara-se líder de mulheres em sua aldeia. Além dela, no decorrer dos dezesseis minutos e cinquenta e seis segundos, conhece-se ainda Valéria Pereira e a Cacique dos Arara, Ana Anita, reconhecida também por ter liderado a retomada das terras tradicionais do povo Arara, ao longo das décadas de 1980 e 1990. Dentre as vozes das mulheres, destaca-se o discurso de Valéria Pereira, no qual são perceptíveis as especificidades do encontro destas mulheres indígenas: Nós, mães índias. Quantas mães não deixou hoje seus filhos para trás? Para estar aqui hoje a procurar saber como está nossas aldeias hoje, a nossa terra, o nosso alimento? Por que a vida nossa, o movimento de mulheres indígenas, a nossa política indígena é essa, não é nós pegar um arco, está na nossa boca, está no nosso coração, está no nosso espírito, tá na nossa vontade de lutar por aquilo que nós quer. Nós achou que os homens não estavam tomando a luta como deveria ser e nós achou que pela luta dos homens nós nunca poderia chegar ao que nós está chegando hoje (Valéria Pereira, da Etnia Arara, em depoimento ao documentário Nativa).

As falas acentuam a ideia de que as mulheres, para estarem ali reunidas, deixaram marido, casa e cuidado dos filhos para poder engajar-se. São expressões que atrelam o primeiro lugar das mulheres aos cuidados com a família. O tema central do documentário é a mobilização de mulheres indígenas de Mato Grosso em prol de melhores condições de vida, de trabalho, de alimentação, de saúde, de demarcação de terras e de não violência doméstica. Incentivado e promovido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o documentário Nativa tem participação da missionária da Regional Mato Grosso, Elizabeth Aracy Rondon Amarante. Para a missionária, O movimento das mulheres indígenas que, está sendo o 4º realmente, está sendo para nós uma certeza sobre o papel destas mulheres indígenas. As mulheres indígenas, às vezes muito veladamente, muito ostensivamente, são aquelas que 172


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decidem os rumos e o futuro de seu povo. A mulher tem uma sensibilidade muito maior àquilo que ameaça e que fere a gente [...]. Estes encontros têm papel importante e que a gente tem que investir na formação das mulheres [...]. Escrever a história de um povo a partir da mulher, com olhos de mulher, estilo de mulher, coração de mulher, como os rumos da mulher (Elizabeth Aracy Rondon Amarante, em depoimento ao documentário Nativa).

Percebe-se, no documentário, que o CIMI fomenta o Movimento Feminino nas Aldeias. Quanto ao discurso da missionária Elizabeth Aracy Rondon Amarante, pode-se pontuar três aspectos: 1. Exaltação da atuação das mulheres nas aldeias; 2. Características própria das mulheres, que as singularizam; 3. Formação das mulheres. Embora o discurso dessas mulheres, reunidas no 4ª Encontro de Mulheres Indígenas de Mato Grosso, evidencie a luta por igualdade de oportunidade entre homens e mulheres, por melhores condições de vida para todas e todos, contra a violência nas relações conjugais, por maior participação das mulheres nas esferas públicas, bandeiras de lutas dos feminismos ocidentais e urbanos, não se percebe nas falas das mulheres indígenas o uso do termo “feminismo”. Na fala da missionária Elizabeth Amarantes, a ênfase é para o termo “movimento de mulheres” e para a escrita de uma história no feminino, com sensibilidade feminina. A ausência do termo “feminismo”, segundo Salgado, pode ser explicada por uma postura contrária à conotação liberal, urbana e colonial do termo. Para Salgado (2011, sem paginação, sic), Embora a construção de relações mais equitativas entre homens e mulheres tornou-se em um ponto medular na luta das mulheres indígenas organizadas, o conceito de feminismo não foi reivindicado dentro de seus discursos políticos. Este conceito continua sendo identificado como o feminismo liberal urbano, que para muitas delas tem conotações separatistas que as afastam de sua necessidade de uma luta conjunta com os seus companheiros indígenas. Aqueles que chegaram ao feminismo depois de uma experiência de militância em organizações de esquerda sabem que a força ideológica que tiveram os discursos que representam ao feminismo como uma “ideologia burguesa, separatista e individualista” que separa às mulheres das lutas por seus povos. As experiências

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do feminismo liberal anglo, que de fato, partiram de uma visão muito individualista dos “direitos dos cidadãos”, foram utilizadas para criar uma representação homogeneizadora do “feminismo”.

Embora não assumam diálogos com correntes de pensamento e movimentos feministas e/ou com discursos descoloniais, as mulheres indígenas de Mato Grosso que aparecem no filme Nativa, apontam para uma experiência singular, nas aldeias, de organização comunitária de mulheres, que, segundo Rago (2013, p. 98), “se opõe ao individualismo característico do feminismo desde seu início na Europa, no século XIX, e que sobretudo investe contra as formas de dominação neoliberal global”. Neste sentido, a necessidade de lutar para conseguir a demarcação da terra ou para coibir a violência doméstica ou para ampliar a atuação de mulheres nos movimentos indígenas e nos movimentos de mulheres indígenas estabelece uma perspectiva política própria para estas mulheres. Levantamento realizado pela Articulación Feminista Marcosur (AFM) mapeou quarenta e três organizações de mulheres indígenas no Brasil. Deste total, um número de vinte e cinco organizações situam-se na Região Norte (das quais vinte estão no Amazonas) e dez na Região Centro-Oeste. Em Mato Grosso, há cinco associações, uma articulação e uma comissão. As cinco associações de mulheres indígenas de Mato Grosso são: Associação de Mulheres Indígenas da Aldeia Formoso, Associação de Mulheres Indígenas do Povo indígena do Karajá – Barra do Garças, Associação Oridiona das Mulheres Paresi (AOMP), Associação de Mulheres de Otaparé e Associação de Mulheres Indígenas Terena Urbana (AMINTU). A articulação e a comissão são: Articulação das Mulheres Indígenas Xavante – Aldeia São Domingos Savio e Comissão de Articulação de Mulheres Indígenas do Mato Grosso (COAMI-MT). Ainda há participação de mulheres indígenas de Mato Grosso no Conselho Nacional de Mulheres Indígenas (CONAMI) e na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Este levantamento mostra a existência de organizações de mulheres indígenas e sua abrangência, o que permite levantar mais perguntas do que respostas. Quem são estas mulheres? Quando fundaram estas associações? Quais as formas de atuação? Quais bandeiras defendem? E, tendo em vista as dificuldades destacadas no relatório para localizar e mapear estas associações, ainda se pode perguntar: existem outras?

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Levantamento realizado por esta autora entre agosto e outubro de 2014, nos jornais locais, em entidades ligadas às políticas públicas para as mulheres, na Igreja Católica, na FUNAI, em páginas da rede mundial de computadores, detecta a existência de mais associações de mulheres indígenas em Mato Grosso. São elas: TAKINÁ – Organização de Mulheres Indígenas do Mato Grosso; e a Associação Yamurikumã das Mulheres Xinguanas. A organização TAKINÁ aparece em reportagens de jornais e em sua própria página na rede social Facebook; também aparece nas páginas da home page do Conselho Indigenista Missionário, como organizadora: do Encontro Estadual de Mulheres Indígenas de Mato Grosso, em 2010; da II Assembleia de Mulheres Indígenas do Estado de Mato Grosso, em 2012; e do XI Encontro de Mulheres Indígenas do Estado de Mato Grosso, em 2013. Especialmente, a organização TAKINÁ é referida em notícias da Secretaria de Políticas Públicas Para as Mulheres, do Governo Federal, e em noticiário eletrônico da FUNAI e da CIMI, o que permite constatar a sua atuação permanente nos últimos anos. A Associação Yamurikumã das Mulheres Xinguanas aparece na página do Instituto Catitu. O Instituto Catitu foi criado em 2009 e se define como “uma associação sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que propõe aos povos indígenas novas possibilidades de expressão, transmissão e compartilhamento de suas visões de mundo e de seus conhecimentos” (CATITU, 2009, sem paginação). O Instituto Catitu, apoiado pela Embaixada da Noruega, tem como uma das linhas de atuação fomentar ações que estimulem e ampliem o protagonismo indígena, especialmente o das mulheres. Neste sentido, destaca-se a formação audiovisual para povos indígenas, que resultou na produção de aproximadamente 30 filmes – que conquistaram novos públicos e inúmeros prêmios Brasil afora (CATITU, 2009, sem paginação).

O Instituto Catitu, a Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX), a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina / Universidade Federal de São Paulo (SPDM/UNIFESP), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Instituto Socioambiental e a Rainforest do Japão, objetivando fortalecer o protagonismo das mulheres da Terra Indígena do Xingu, localizada em Mato Grosso, promoveram o 1º Encontro de Lideranças Indígenas Mulheres

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do Xingu, realizado de 11 a 13 de outubro de 2013, evento que foi filmado e gerou o vídeo Encontro das mulheres xinguanas, com o objetivo de “divulgar as ideias discutidas no Encontro e mobilizar parceiros para dar apoio às ações das mulheres xinguanas. Apesar do levantamento da Articulación Feminista Marcosur – constituída em 2000, quando do Seminário sobre Integração Regional e de Gênero, sob organização do Centro de Comunicación Virginia Woolf (Cotidiano Mujer)4, com integrantes feministas de Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru – apresentar oito associações de mulheres indígenas para Mato Grosso, não há referência ao Nativa, seja enquanto movimento de mulheres, seja enquanto documentário. O encontro Nativa, realizado em 2005, cuja realização, como assevera a missionária Elizabeth Amarantes, estava em sua 4ª edição, é um movimento que se iniciou no começo do século XX e que deita raízes nos movimentos indígenas dos anos 1970/1980/1990 pela demarcação de terras, como podemos destacar na fala da Cacique Ana Anita sobre sua liderança na demarcação de terras do seu povo. Embora não assumam explicitamente o discurso feminista, os discursos das mulheres indígenas, no documentário Nativa, e também as notícias sobre as associações de mulheres e a realização de encontros e assembleias indicam a atuação de mulheres indígenas dentro e fora de suas aldeias, quase sempre com fomento de organizações como o CIMI, o Instituto Catitu, a FUNAI; em discussão está “el lugar fronterizo donde es posible cerrar la herida colonial para que nasca una nueva mestiza; esa cicatriz en el alma” (BIDASECA; SIERRA, 2014, p. 6).

Considerações finais Percebem-se dois momentos de organização dessas mulheres: 1. Sobre as demarcações das terras; 2. Em relação aos problemas como saúde, educação, segurança alimentar, alcoolismo, violência doméstica e atuação política delas dentro e fora das aldeias, como representantes de sua aldeia/etnia. Nas linhas delineadas percebe-se a tessitura de maior participação nas decisões das comunidades e a atuação de mulheres por meio de associações bem como 4 Centro de Comunicación Virginia Woolf (Cotidiano Mujer) é uma “organización feminista especializada en la comunicación y defensa de los DDHH, que este año cumple sus 30 años de vida” (COTIDIANDO MUJER, 2009, sem paginação).

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a divulgação de suas ações por meio de documentários, reportagens e redes sociais, o que torna visível suas as ações. Enquanto a missionária Elizabeth Amarante destaca o caráter complementar entre mulheres e homens nas aldeias, Valéria Pereira, como uma voz dissonante, aponta para um protagonismo feminino que supere o papel reservado para as mulheres até o momento. Valéria não quer ser complemento, Valéria diverge em relação à postura da missionária. Disso vêm algumas indagações. Que tipo de organização de mulheres é incentivado pelo CIMI? Com que finalidade? Qual a relação dessas mulheres (de 16 etnias) com o CIMI? Onde começa e onde termina a influência do CIMI sob as organizações de mulheres? Qual relação das organizações de mulheres indígenas com a defesa da tradição dos povos indígenas? Até que ponto o pensamento colonizador permanece vigente na organização de mulheres? Estas são questões para continuar a conhecer o universo de mulheres indígenas de Mato Grosso, no presente e no passado.

Referências ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Moderna, 2011. AFM. Articulación Feminista Marcosur. Quem somos. Disponível em http://www. mujeresdelsur-afm.org.uy/que-somos. Acesso em 24/09/2014. BIDASECA, Karina; SIERRA, Marta. Políticas de lo mínimo: genealogías coloniales en los mapas del Sur. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 22, n. 2, ago. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X20140002 00013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 out. 2014. CIMI. Conselho Indigenista Missionário. Disponível em: http://www.cimi.org.br/ site/pt-br/?. Acesso em 23/09/2014. COTIDIANO MUJER. Centro de Comunicación Virginia Woolf. Disponível em http://www.cotidianomujer.org.uy/sitio/. Acesso em 02/08/2014 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Histórias dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FOUGEYROLLAS-SCHOWEBEL, Dominique. Movimentos Feministas. In: HIRATA, Helena et al. (Org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 144-149. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006.

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Brinquedo, brincadeira e trabalho: o que fazem meninas e meninos no cotidiano da Aldeia Igarapé Lourdes? Laudinéa de Souza Rodrigues Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues

Introdução Olhar atento à formiga que carrega migalhas de pão, à aranha que tece sua teia com precisão e leveza, à borboleta que abre suas asas com magnitude para mais um voo. Olhar que leva às coisas esquecidas pelos adultos, o mistério e o fascínio pelo mundo que fora desconhecido e desvelado por quem um dia foi pequeno. As crianças demonstram verdadeiro encantamento pelo não sabido. O encantamento e o olhar curioso as movem para novas descobertas, para a exploração de um ambiente desconhecido ou para a transformação de um objeto simples e sem utilidade em um brinquedo que possibilita a construção de novos saberes. As particularidades que permeiam esse momento da vida humana não se restringem aos meninos e meninas das sociedades denominadas majoritárias, mas também àqueles dos mais distantes e distintos espaços, entre eles a Aldeia Igarapé Lourdes, onde se localizam os pequenos Gavião Ikólóéhj, que são crianças indígenas que compõem uma das vinte e oito etnias1 pertencentes a Rondônia. Neste contexto, o presente texto busca apresentar e discutir as demarcações de gênero emergentes entre as meninas e os meninos Ikólóéhj, a partir das observações de situações de brincadeira e trabalho e ainda dos relatos dos professores indígenas entrevistados. Propõe-se, também, a destacar a presença de características das brincadeiras comuns em sociedades não indígenas nas atividades infantis das crianças Ikólóéhj. Para tais reflexões, são utilizados referenciais teóricos da Sociologia da Infância e da Antropologia da Criança, entre eles Corsaro (2011), Brougère (2010), Tassinari (2007) e Cohn (2000; 2002). 1 Disponível em: http://www.funai.gov.br/. Acesso em 06 de jun. de 2013.


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O Povo Gavião Ikólóéhj O Povo Gavião, também conhecido como Gavião de Rondônia, autodenomina-se Ikólóéhj (Ikolen), que quer dizer “gavião” em sua língua. Esta pertence ao tronco linguístico Tupi, que possui maior concentração entre os povos localizados em Rondônia. A família linguística é a Mondé, assim como de outros povos indígenas da região, entre eles, os Suruí (Paiter) e os Cinta Larga. Atualmente os Gavião Ikólóéhj habitam a Terra Indígena (T. I.) Igarapé Lourdes, localizada na bacia do Igarapé Lourdes, um dos afluentes do Rio Machado, no Município de Ji-Paraná, região leste de Rondônia, que faz divisa com Mato Grosso. Os primeiros registros de contato com os Gavião Ikólóéhj são de 1940. Esse processo foi marcado por conflitos entre seringueiros e índios Arara, casamentos interétnicos, mas, por fim, alianças políticas. Entre as aldeias dessa etnia encontra-se a Igarapé Lourdes, com distância média de Ji-Paraná de 100 km pela estrada que corta a área indígena; ou 130 km por água, via Rio Machado. Na Aldeia, a comunidade tem acesso à educação escolar que é oferecida pela Escola de Ensino Fundamental Xinepuabah e conta com o trabalho de professores advindos da própria comunidade.

Caminhos trilhados para a pesquisa Os dados aqui apresentados são provenientes de uma pesquisa de mestrado2 cujo foco foi investigar se havia a presença de discussões acerca da infância e da criança indígena nos dois cursos de formação indígena para a docência ofertados em Rondônia – a Licenciatura em Educação Básica Intercultural, oferecida pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), e o Magistério Indígena Projeto Açaí II, oferecido pela Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (SEDUC – RO). A abordagem metodológica da pesquisa foi de cunho qualitativo e de tipo etnográfico para que houvesse maior aproximação da realidade dos colaboradores e das crianças da Aldeia. Os instrumentos utilizados para a coleta dos dados apresentados nesse texto foram entrevistas semiestruturadas com os professores indígenas da comunidade e observação da rotina das crianças da Aldeia Igarapé Lourdes, com registros detalhados em caderno de campo. 2 A dissertação de Mestrado é de autoria de Laudinéa de Souza Rodrigues (2014), sob orientação de Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues, e se intitula “Xíxìhra Ikólóéhj: a criança na perspectiva da formação de professores indígenas Gavião”, vincula-se ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis.

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O cotidiano de meninas e meninos da Aldeia Igarapé Lourdes Na Aldeia Igarapé Lourdes, foi possível realizar diversas observações das crianças em momentos de brincadeira e trabalho em que o Igarapé era um dos lugares onde havia maior frequência dessas situações, principalmente para a realização de tarefas domésticas como lavar louça e roupa. As crianças desenvolviam seus pequenos trabalhos com prazer e sem pressa, à sua maneira faziam do labor uma brincadeira. O trecho do registro de campo ilustra um pouco isso: Sobem do Igarapé duas crianças, uma menina de talvez cinco ou seis anos e um menino de três ou quatro anos; ambos não pareciam ter entrado no rio. Cada um carregava uma varinha pequena e, na ponta do anzol, dois ou três peixinhos, ainda “sem tamanho”. Ambos de calção, camiseta, sem chinelo ou sandália, caminhavam pelo chão de terra, passaram pela escola e observaram seus peixinhos soltando gargalhadas. Seguiram rumo às casas correndo e sorrindo, até que um dos peixes do menino caiu. Pararam, voltaram e a menina ajudou o pequeno a pegar o peixinho novamente. Voltaram a correr com suas varinhas gritando algo em sua língua (RODRIGUES, 2014, p. 74-75). Figura3 01: Crianças carregando peixes recém pescados no Igarapé

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 6 de abril de 2013 3 A utilização das imagens desse trabalho foi autorizada pelos colaboradores da pesquisa, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso, Fundação Nacional do Índio e Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.

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Melià (1979), sem especificar uma etnia, expõe que em certo momento da vida a criança passa a imitar o adulto em seu trabalho e demais atividades por meio do jogo. Para o autor, a criança das sociedades indígenas “aprende as atividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire as habilidades de usar e fazer instrumentos e utensílios de seu trabalho” (MELIÀ, 1979, p. 14). O pesquisador ressalta que as crianças indígenas, desde cedo, brincam utilizando como brinquedo imitações dos instrumentos de trabalho dos adultos. Entre as crianças Ikólóéhj não havia muitas diferenças. Utilizavam brinquedos que imitavam instrumentos de trabalho, bem como aqueles que seriam aproveitados apenas durante as brincadeiras. Os meninos brincavam com arco e flecha, “espingarda” confeccionada com madeira, carrinho de plástico, estilingue, bola de gude, pipa e düj düj4. Em relação às meninas, já não havia muitas opções. Elas se divertiam com bonecas industrializadas, brincavam de cozinhar ou transformavam em brincadeira o trabalho que deviam fazer. Existiam momentos em que as brincadeiras permitiam a interação de meninas e meninos, como natação, pega-pega, futebol e vôlei. Essas brincadeiras envolviam disputas e não eram organizadas por sexo dos participantes. As demarcações sociais entre meninas e meninos apareceram nitidamente nas observações de campo. Em nenhum momento meninas foram vistas com düj düj ou brincando de carrinho. Assim como meninos não foram vistos brincando com boneca ou lavando utensílios domésticos enquanto se divertiam no Igarapé. Mesmo que as brincadeiras dos pequenos Gavião se mesclem com aquelas vistas em sociedades não indígenas, há uma diferenciação das atividades lúdicas a partir do gênero. Essa diferenciação não pode ser vista como inata à categoria em que as crianças vivem, mas são postas pela sociedade a que pertencem. É válido o apoio em Brougère (2010, p. 44) ao afirmar que “à infância, são associadas, por tradição cultural, representações privilegiadas do masculino e do feminino”. Para ele, a sociedade, de modo geral, considera para as atividades infantis femininas os espaços domésticos, espaços internos do ambiente familiar, em detrimento dos externos. Os meninos exploravam a arte da caça aos insetos com seus instrumentos artesanais nos arredores da Aldeia, enquanto que as meninas restringiam-se a lavar panelas no Igarapé. 4 Brinquedo utilizado por meninos para caçar insetos. Espécie de atiradeira feita com pedaço de bambu, possuía dois furos seguidos onde eram encaixadas as pontas de uma lasca da mesma planta. Colocava-se um espinho ou pedrinha dentro e atirava-se no alvo/inseto. A pronúncia se parece com “dêi dêi”.

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Figura 02: Crianças brincando no Igarapé Lourdes

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 9 de abril de 2013

Figura 03: Meninos brincando com bola de futebol no campo

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 18 de maio de 2013

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Figura 04: Menina brincando de boneca dentro de casa

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 18 de maio de 2013

As diferenças das atividades infantis se evidenciam também na fala dos entrevistados, como se pode verificar no depoimento de Daniel Cegue Ahv Gavião: Menina brinca de boneca. Tem carrinho hoje que vem da cidade que alguma criança brinca também. Tem espingarda que faz com pedaço de madeira, o menino brinca disso aí. [...] Criança brinca de cozinhar alguma coisa. A mulher faz chicha de brincadeira. Acho que elas brincam assim pra aprender alguma coisa. [...] Os meninos brincam de carrinho e flecha também. Outra criança consegue matar passarinho com estilingue. A criança usa isso aí até hoje e mata passarinho. No rio brinca de pular (RODRIGUES, 2014, p. 77-78, grifos da autora).

E também na fala de José Palahv Gavião: A criança Gavião brinca com arco e flecha, natação, brincadeira na água e no mato, pega-pega correndo. As meninas fazem aquelas atividades de casa. Lavar roupa, aquelas pequenas quantidades de panelas, pratos, talheres, essas coisas. Com criança homem, ele já vai pro rio pegar sua linhada ou flechinha pra tentar pegar os peixinhos. Nessa aldeia mesmo tem uma criança pequena de quatro anos, três anos já pode

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ir no rio pegar aqueles peixinhos pequenos como lambarizinho. Vão com irmão mais velho e irmã. Isso é considerado trabalho porque a mãe exige (RODRIGUES, 2014, p. 78).

Nos excertos acima nota-se que há uma fusão entre brinquedos e brincadeiras típicos de sociedades nativas e aqueles produzidos por não indígenas. Eles partilham os mesmos espaços e dividem a atenção dos sujeitos. No entanto, os brinquedos industrializados não substituem aqueles cuja finalidade é similar ao trabalho adulto tradicional do Povo Gavião, como o arco e flecha e o düj düj. Outro brinquedo bastante utilizado pelos meninos nos momentos de coleta de dados era um barquinho feito de madeira. Em sua parte frontal amarrava-se uma linha ou barbante que tinha a ponta presa a uma vara para ser puxado. A chuva, que frequentemente caía na Aldeia na época da coleta de dados, parecia ser um convite para que alguns meninos fossem para o pátio puxar seus barquinhos nos lugares de forte enxurrada. Figura 05: Meninos brincando com barquinhos durante a chuva

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 8 de abril de 2013

Assim, diante da visibilidade que o brinquedo possuía nas atividades cotidianas das crianças da Aldeia Igarapé Lourdes, não seria possível tratá-lo neste trabalho como um simples objeto vazio de sentido. Para Brougère (2010), ele possui funções sociais que lhe conferem uma razão de ser e são alguns membros da sociedade – neste caso, as crianças – que dão sentido à sua produção e consumo. 187


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Mas o brinquedo possui outras características, de modo especial a de ser um objeto portador de significados rapidamente identificáveis: ele remete a elementos legíveis do real ou do imaginário das crianças. Neste sentido, o brinquedo é dotado de um forte valor cultural, se definimos a cultura como o conjunto de significações produzidas pelo homem. Percebemos como ele é rico de significados que permitem compreender determinada sociedade e cultura (BROUGÈRE, 2010, p. 8).

Sendo rico em significados, o brinquedo se torna, nas mãos da criança, um objeto e uma imagem a ser decodificada por meio da brincadeira. Ele representa a ideia que determinada sociedade possui acerca das meninas e meninos e permite aos pequenos a compreensão do seu contexto cultural. É por meio da brincadeira que as crianças conferem significados ao brinquedo. Assim, ela não é determinada pelo brinquedo que a criança escolhe utilizar, pois o artefato é ressignificado a partir da ação da criança sobre ele (BROUGÈRE, 2010). De acordo com Brougère (2010), ao utilizar um brinquedo, a criança explora todas as possibilidades dele para lhe dar sentido e função a fim de ser útil na brincadeira. Para o autor, se a brincadeira “não é a única razão de ser do brinquedo, trata-se da situação em que este é mais utilizado” (BROUGÈRE, 2010, p. 9). Ainda se tratando deste objeto ou recurso utilizado pela criança, este não necessita de uma função específica, pois é usado livremente conforme o desejo de quem o manuseia. No contexto das crianças Ikólóéhj, os brinquedos eram utilizados por elas em momentos que a brincadeira assemelhava-se às atividades adultas, bem como em atividades que não possuíam qualquer relação visível com o labor. Os objetos apropriados pelas crianças, mesmo que feitos de um simples pedaço de bambu, eram a representação de uma sociedade para elas. Manusear um düj düj, verificar todas as suas possibilidades de uso, descobrir o momento certo para atacar o alvo/inseto ou conhecer o lugar mais adequado onde encontrar os bichinhos que serviriam de caça para os meninos, todos esses detalhes poderiam ser considerados apenas como um cenário em que um menino brinca com seu brinquedo artesanal e nada mais; entretanto, levando em conta os estudos de Brougère (2010), a existência e a apropriação desse objeto que é levado à brincadeira vai muito além do que os olhos podem ver. Se o brinquedo é rico em significados e é a representação que a sociedade possui de suas crianças, os que foram vistos sendo manuseados pelos

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pequenos da Aldeia estão permeados pelas significações da cultura Ikólóéhj. Bonecas sendo cuidadas como bebês por meninas, estilingues utilizados para caçar pequenos pássaros ou ainda as panelas que eram lavadas pelas meninas enquanto se divertiam no Igarapé nas mãos das crianças passam a representar particularidades do contexto social de que elas fazem parte e as interações com a sociedade abrangente: Através do brinquedo, a criança entra em contato com um discurso cultural sobre a sociedade, realizado para ela, como é feito, ou foi feito, nos contos, nos livros, nos desenhos animados. São produções que propõem um olhar sobre o mundo, olhar que leva em conta o destinatário especial, que é a criança. Nesse aspecto, a especificidade do brinquedo está no fato de ter volume, de propor situações originais de apropriação e sobretudo em convidar à manipulação lúdica (BROUGÈRE, 2010, p. 69-70).

Contudo, não é o brinquedo isolado que revela as significações da sociedade, mas sim quando explorado e apreciado pela criança, isto é, no momento da brincadeira. Ele abre possibilidades de ações nas representações das crianças e desencadeia a brincadeira (BROUGÈRE, 2010). Por meio dele há uma reprodução e modificação de parte da realidade a partir da significação que adquire em determinada sociedade. Essa reprodução da realidade através do brinquedo e da brincadeira foi vista intensamente entre as crianças da Aldeia e se relacionava a aspectos do labor daquele Povo. O trabalho como uma maneira de brincar não é característico apenas da Etnia Gavião, mas também de outros povos nativos, conforme se pode ver em outras pesquisas. Tassinari (2007) descreve que, em suas observações de pesquisa com os Karipuna, as crianças faziam pequenos trabalhos em parceria com adultos, trabalhos que, aos poucos, eram dificultados à medida do crescimento dos pequenos, mas, caso a criança não mais tivesse vontade de realizá-lo, deixava-o inconcluso para distrair-se com outra ocupação. Nunes (2002), em pesquisa com os A’uweē-Xavante, relata que o cotidiano de meninos e meninas dessa etnia alterna-se em atividades domésticas em que podem apenas atuar como observadores, realizá-las sozinhos ou ajudar um adulto. Conforme a autora, as tarefas podem variar entre “lavar a roupa e louças, tomar conta dos irmãos e irmãs menores, dar-lhes banho, levar água para casa, ajudar a preparar algum alimento, levar e trazer recados ou coisas, enxotar as galinhas de dentro das casas etc.” (NUNES, 2002, p. 73). A pesquisadora ressalta que tais atividades de que as crianças participam

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são desempenhadas de verdade, com a utilização de instrumentos reais, e os resultados que produzem possuem um motivo e finalidade real. Contudo, a criança só faz aquilo que é capaz, para que sua participação seja significativa, o que lhe permite ter liberdade para não terminar um trabalho que iniciou ou que, simplesmente, não teve os resultados esperados. O trabalho a ser realizado por uma criança de contexto indígena não é tido como uma obrigação que deve ser cumprida no tempo que o adulto acredita ser adequado, mas no prazo que a criança precisa para compreendê-lo em sua realização e significado (NUNES, 2002). Na pesquisa de campo realizada na Aldeia Igarapé Lourdes foram notadas diversas situações de labor realizadas principalmente por meninas. Uma cena comum refere-se a elas descerem ao Igarapé com pilhas de panelas organizadas dentro de bacias ou carrinhos de mão. Uma das observações registradas é apresentada no trecho extraído do caderno de campo: Na parte mais alta da pedra uma menina de talvez sete ou oito anos de idade estava sentada perto de uma bacia com provavelmente uma rede ainda suja e molhada. Mais abaixo outra menina, um pouco menor, lavava algumas peças de roupas que, já cheias de sabão, eram esfregadas pelas mãozinhas da pequena índia. Logo, a menina maior vai ajudá-la. A pequena abria a roupa sobre a pedra e ali esfregava uma barra de sabão e uma escova que mal lhe cabia na mão; em seguida passava para a criança maior que, com um pouco mais de força, girava o braço e batia a roupa na pedra para tirar o sabão. (RODRIGUES, 2014, p. 81). Figura 06: Meninas lavando roupas no Igarapé Lourdes

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 5 de abril de 2013

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Mesmo com pouca idade, as meninas desempenhavam atividades domésticas que, geralmente, são realizadas por adultas, tanto que a menina maior teve que auxiliar sua colega. Tal atitude evidencia não só a aprendizagem do labor como também o desenvolvimento de hábitos de colaboração entre as crianças Ikólóéhj. No contexto da etnia Xikrin, Cohn (2000; 2002) assegura que, até certa idade, as crianças não possuem responsabilidades e os trabalhos que desenvolvem referem-se a coisas menores como pegar água, reavivar o fogo ou pegar algo para o adulto. Assim, não são solicitadas a realizar atividades difíceis ou perigosas para sua idade. De acordo com a autora, essas crianças “não participam de modo decisivo das atividades produtivas, não andam sozinhas longas distâncias, não constituem família, não abraçam as responsabilidades dos adultos” (COHN, 2000, p. 204). A atuação da criança em suas próprias brincadeiras e demais atividades se modifica conforme vai crescendo. Cohn (2000) relata que elas podem ir à roça com a mãe, ficar em casa com outras crianças e, caso já seja grande, acompanhar o pai em uma pesca, ou ainda, após certa idade, determinar seu próprio roteiro de ocupações, podendo, com outras crianças, explorar capoeiras, utilizar canoas e fazer pequenas caçadas. Característica similar foi observada entre os meninos da Aldeia Igarapé Lourdes, conforme descrito no trecho do caderno de campo: Durante a tarde vi que um grupo de cinco ou seis meninos não se separavam, andavam perto da escola e casa de apoio. Às vezes brincavam de luta, davam socos, rolavam agarrados pelo chão. Pouco depois, aqueles que possuíam estilingues esticavam os braços, puxavam a borracha e, ao soltá-la, acertavam a mira (que poderia ser uma mangueira, logo atrás da casa de apoio, ou quadro branco pregado em uma árvore ou simplesmente uma folha dentre muitas). Os meninos brincaram assim por horas. Em um momento todos foram para uma cerca de madeira parecida com um curral onde estava o gado de Daniel. Eu não quis ir até eles, pois, certamente fugiriam, como sempre faziam. No fim da tarde encontrei de perto o grupo de meninos em frente à casa de apoio, entre eles o filho mais novo de José Palahv. Quando me viu, tentou esconder pelas costas algo que havia na mão. Pensei que fosse um peixe. Não havia mais tempo para que guardasse no bornal que carregava em um dos ombros. Me aproximei e, quando ele tentou fugir, conversei, disse que não tiraria foto e pedi para ver. Em sua mão estava um pássaro de aproxima-

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damente 15 cm, de cor cinza claro, com a cabeça machucada pela pedrada, seu corpo mole e sem vida na mão do menino. Logo o grupo se desfez e neste dia não mais os vi juntos (RODRIGUES, 2014, p. 83).

Figura 07: Grupo de meninos brincando próximo ao Posto de Saúde

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 21 de maio de 2013

Trabalho e brincadeira confundem-se ao olhar de um pesquisador. Contudo, os colaboradores da pesquisa expressaram com clareza suas percepções acerca do que diferenciava as duas atividades. É o que se verifica no relato de Adão Abapéh Gavião: As meninas ajudam a mãe nas tarefas de casa, como lavar louça e limpar casa. A mãe vai brigar se ela não quiser fazer o trabalho. Isso aí é trabalho mesmo, não é brincadeira. Os meninos brincam fora da casa com os amigos e de corrida no rio. Como o pai caça longe da aldeia, não costuma levar a criança pra caçar no mato. [...] Quando o menino pesca no rio, pesca para comer, isso aí não é brincadeira. Mas, quando a criança só brinca no terreiro, isso não é importante (RODRIGUES, 2014, p. 83-84, grifos da autora).

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Figura 08: Meninas indo ao Igarapé para lavar panelas

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 21 de maio de 2013

Daniel Cegue Ahv Gavião confirma a separação entre trabalho e brincadeira nas atividades infantis na Aldeia: Tem muitas crianças que ajudam a mãe. Lava alguma coisa que tem na casa, a roupa, o prato, pega água. O menino ajuda pegar água quando a mãe manda ele. Tem algum que vai pescar no rio pra ajudar a mãe, pra ele alimentar, pra comer (RODRIGUES, 2014, p. 84, grifos da autora). Figura 09: Menino pescando no Igarapé Lourdes

Fonte: Acervo da pesquisadora. Data: 17 de maio de 2013

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É perceptível a ideia de que o trabalho consiste naquilo que a criança faz porque a mãe ou o pai solicitou; a finalidade da operação ultrapassa o simples prazer e também colabora com a providência de alimento para a família; e a situação envolve disciplina, visto que a “mãe vai brigar se ela [a menina] não quiser fazer o trabalho”. Assim, brincar de carrinho ou pipa pode não apresentar qualquer contribuição para a comunidade já que não representa ligação com o trabalho tradicionalmente necessário à sobrevivência. Aqui se evidencia novamente a diferenciação de gênero que se coloca entre os Gavião, qual seja, a atividade da menina está muito mais ligada ao trabalho do que a do menino. A fala do professor Adão Abapéh Gavião é emblemática nesse sentido: “As meninas ajudam a mãe nas tarefas de casa, como lavar louça e limpar casa. [...] Isso aí é trabalho mesmo, não é brincadeira. Os meninos brincam fora da casa com os amigos e de corrida no rio”. Nota-se que as meninas desempenham as mesmas atividades da mãe e isso é uma maneira de ensinar-lhes os afazeres que serão seus também, na vida adulta. Ainda que os resultados não sejam os mesmos, a realização da tarefa – dita feminina – já surte um efeito imediato, pois a louça é lavada e a casa é limpa. No caso dos meninos, suas atividades foram tratadas por Adão Abapéh Gavião como uma brincadeira por não ter o efeito esperado de um trabalho realizado. De acordo com o professor, o trabalho é aquela ação que possui uma meta, uma finalidade importante que contribui com a família e a comunidade. Ao contrário da brincadeira, que se apresenta como algo de menor relevância por não oferecer contribuições ao grupo, como para a alimentação. Nessa perspectiva, é possível a apropriação do que Corsaro (2011) destaca sobre crianças em sociedades ocidentais. Para o autor, em situações assim, as crianças podem negociar, compartilhar e criar cultura entre si e com o adulto. No contexto indígena, as meninas e os meninos citados pelo entrevistado apropriam-se da cultura do seu povo em situações semelhantes, a partir do que é determinado para cada um de acordo com a demarcação de gênero. Contudo, ao apropriarem-se, elas também recriam essa mesma cultura. Nesse contexto, as atividades realizadas pelas crianças na Aldeia Igarapé Lourdes são similares àquelas executadas pelos adultos. Contudo, não se trata apenas de uma imitação ou de um preparo para o futuro, mas de viver um presente, de um agora com possibilidades de prazer e aprendizado. Mesmo em momentos em que meninas desempenham atividades domésticas, não se pode afirmar que ali não há a brincadeira, pois, visivelmente, os utensílios

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que lavam no Igarapé muitas vezes incorporam outro sentido em suas ações. Panelas, talheres, canecas plásticas e bacias entram no “faz de conta” que só os grupos de meninas conhecem e compreendem, por os terem inventado. Mesmo realizando um trabalho que tem por finalidade a limpeza dos utensílios da escola ou da própria casa, as meninas mergulham na fantasia para elaborar suas brincadeiras nos momentos de labor. Nesse cenário fantasioso criado pela criança é que ela se relaciona com os objetos e também com as representações e significados que eles possuem. Ao apropriar-se dos objetos/brinquedos, a criança o insere na cultura lúdica disponível que é autônoma, por um lado, e, por outro, interdependente da cultura global. É da cultura global que são retirados “elementos do repertório de imagens que representa a sociedade no seu conjunto” (BROUGÈRE, 2010, p. 56). Assim, quando meninas e meninos da Aldeia Igarapé Lourdes realizam suas atividades, em grupos ou sozinhos, além de deleitarem-se nas sensações que o brinquedo e a brincadeira proporcionam, também manipulam, apropriam-se e ressignificam os elementos culturais do seu Povo. Ao brincar, entram numa cultura particular que existe naquele momento entre os Ikólóéhj e a relacionam com sua própria cultura. Vale ressaltar que a brincadeira não é algo inato à criança. Elas aprendem a brincar e brincam de maneiras diferentes com o passar do tempo, o que confere novas significações ao brincar. Como argumenta Brougère (2010, p. 111): A criança não brinca numa ilha deserta. Ela brinca com as substâncias materiais e imateriais que lhe são propostas. Ela brinca com o que tem à mão e com o que tem na cabeça. Os brinquedos orientam a brincadeira, trazem-lhe a matéria.

Tendo claro o que é o brinquedo e a brincadeira, pode-se assegurar que nesses momentos as crianças também criam suas próprias culturas de pares. Corsaro (2011), ao tratar da reprodução interpretativa, afirma que as crianças participam tanto de suas culturas de pares, quanto daquela do mundo adulto do qual fazem parte. Essa reprodução interpretativa faz com que as crianças sejam inseridas na cultura adulta, negociando com os adultos e produzindo culturas de pares com outras crianças. Assim, “é particularmente importante a ideia de que as crianças contribuem com duas culturas (a das crianças e a dos adultos) simultaneamente” (CORSARO, 2011, p. 95). Tal contribuição com a cultura adulta significa que 195


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as crianças realizam alterações nela no decorrer do tempo e é evidente que essas modificações variam de acordo com cada contexto cultural e social. Segundo Corsaro (2011), do ponto de vista da reprodução interpretativa, a criança não é vista como aquela que internaliza a cultura adulta de uma forma individualizada e solitária, mas um sujeito que, ao participar da cultura, é capaz de produzi-la e reproduzi-la. Tal processo também vai se verificar entre as crianças Ikólóéhj, que ressignificam e produzem suas culturas de pares em suas relações com os adultos, bem como com outras crianças da Aldeia. Nesse sentido, as culturas produzidas pelos grupos infantis influenciam a cultura geral do Povo Gavião evidenciando que os pequenos Ikólóéhj são também protagonistas no que diz respeito à produção cultural de sua comunidade.

Considerações finais Nos dados coletados foi possível conhecer alguns dos brinquedos utilizados pela criança Gavião e em quais circunstâncias eles eram usados. As brincadeiras dos meninos geralmente consistiam em caça de insetos com düj düj ou de pássaros com estilingue. Já as meninas comumente mesclavam sua brincadeira com alguma tarefa doméstica como lavar roupa ou louça no Igarapé. Assim, demarcações sociais de gênero entre meninas e meninos apareceram nitidamente nas observações de campo, mas havia também brincadeiras sem essas diferenciações, como natação, futebol e vôlei. Entre as atividades consideradas como brincadeiras, foram observadas tarefas ligadas ao trabalho, cuja finalidade ultrapassava o simples prazer e colaborava com atividades domésticas e providência de alimento para a família. As meninas desempenhavam as mesmas atividades das mães e isso era uma maneira de ensiná-las os afazeres que seriam seus na vida adulta. Ainda que os resultados não fossem os mesmos, a realização da tarefa dita feminina já tinha um efeito imediato, pois a louça seria lavada e a casa seria limpa. Já no caso dos meninos, brincar de carrinho ou pipa não oferecia contribuição direta para a comunidade, já que não representava ligação com o trabalho tradicionalmente necessário à sobrevivência. A partir dos dados, foi possível conhecer o que os professores indígenas pensam a respeito da criança Ikólóéhj. Ficou evidente nas análises que eles revelam uma criança indígena que vive em um contexto de intensa aprendizagem, tanto em suas relações com o outro quanto na interação com a natureza. 196


Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação

Neste processo de aprender e ensinar, as meninas e meninos se deparam com conhecimentos tradicionais e ainda com aqueles que passam a fazer parte do contexto Gavião, decorrente do contato com o não indígena. As crianças Ikólóéhj foram descritas pelos professores entrevistados como crianças que possuem liberdade para viver nessa cultura que está sempre em movimento, num misto de saberes que são próprios do Povo Gavião com outros que dizem respeito a uma maneira diferente de viver. Aquelas crianças, além de constituírem uma categoria criada pela sociedade abrangente – a infância –, são sujeitos que aprendem a cultura posta em seu grupo, mas que também a transformam, recriam, ressignificam, dão novos sentidos a tudo, produzindo novas culturas.

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Educação étnico-racial, gênero e currículo

Antutérpio Dias Pereira

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar (Nelson Mandela).

Introdução Neste texto, discutiremos alguns conceitos, como o de discriminação1, que pode ser entendido como um processo de separação existente entre os indivíduos, que se estabelece pela diferença, seja esta de ordem social, étnicoracial, religiosa, cultural, econômica, política, linguística ou fenotípica. A discriminação está intrinsecamente vinculada ao conceito de racismo, que é a falsa ideologia de que diferenças (reais ou imaginárias) orgânicas e intelectuais são geneticamente transmitidas entre grupos humanos e estão intrinsecamente associadas à presença ou à ausência de algumas características ou capacidades socialmente significativas e de que tais supostas diferenças constituem uma base legítima de distinções injustas entre grupos socialmente definidos como raças. Existem três tipos de racismo: individual, cultural e institucional. Neste capítulo trabalharemos com o racismo institucional, que tem dois sentidos: o primeiro é a extensão institucional de crenças racistas individuais, o que gera a criação e o emprego de instituições constituídas a fim de manter uma vantagem racial com relação às outras “raças”. O segundo é decorrente de algumas práticas institucionais que atuam de forma a limitar, a partir de bases raciais, as escolhas, os direitos, a mobilidade e o acesso de grupos de indivíduos a outras posições. Podemos citar como exemplo prático quando um gestor público muda o horário das creches municipais de 12 para 6 horas de 1 Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008.


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atendimento, prejudicando as mães e pais (na maioria negros) que precisam trabalhar e não têm com quem deixar as crianças e não têm condições de pagar as mensalidades das creches particulares. Em nome da eficiência da gestão, prejudicam-se milhares de pessoas, sendo que a economia poderia ser feita de forma mais eficiente, cortando os altos salários dos cargos do primeiro escalão do governo municipal. O Estado, ao ser acusado de praticar o racismo institucional, utiliza como defesa a ideologia da “democracia racial” (oportunidades iguais para todos), que é utilizada para silenciar e diminuir a presença do negro na sociedade (MOURA, 1994, p. 89). Não podemos ter democracia racial se não temos plena e completa democracia social, política, econômica e cultural. As desigualdades sociais e econômicas existentes entre brancos e negros no Brasil, que se traduzem em um surpreendente quadro de desigualdade racial, mostram que as mulheres negras formam o elo mais frágil desta relação. Este quadro é extremamente agravado pelo tamanho das diferenças existentes entre os gêneros. Há uma necessidade gritante de ressaltarmos, por exemplo, que apenas as desigualdades de gênero não conseguem caracterizar a situação social, política e econômica das mulheres negras brasileiras. Precisamos incluir, no caso das mulheres negras, a dimensão racial que constitui uma variável fundamental que determina a posição social, econômica e política que ocupam. A pobreza e a marginalidade a que é submetida a mulher negra reforça o preconceito e a interiorização da condição de inferioridade, que, em muitos casos, inibe a reação e a luta contra a discriminação sofrida. O ingresso no mercado de trabalho do negro ainda criança e a submissão a salários baixíssimos reforçam o estigma da inferioridade em que muitos negros vivem. Contudo, não podemos deixar de considerar que esse horizonte não é absoluto e mesmo com toda a barbárie do racismo há mulheres negras que conseguem vencer as adversidades e chegar à universidade, utilizando-a como ponte para o sucesso profissional (SILVA, 2003). O reconhecimento dessa invisibilidade, bem como o questionamento e embate promovido pelo feminismo negro, permitiu perseguir uma visão mais plural do debate de gênero e das perspectivas de subordinação a que estavam submetidas mulheres negras. Neste contexto, a percepção da vivência de uma “dupla discriminação” experimentada por estas mulheres se tornou bastante discutida, respaldada pela expressiva desigualdade que estrutura o espaço social destes sujeitos e pelas denúncias do movimento negro, principalmente no que se refere ao racismo e ao machismo na Educação.

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Educação, gênero e descolonização dos currículos? A educação é uma prioridade para as famílias de baixa renda e se apresenta como uma das formas de possível mobilidade social ascendente para os seus filhos, por isso outro desafio é vencer as desigualdades educacionais entre brancos e negros no Brasil. Os resultados do último censo do IBGE (2010) mostrou que houve progresso na educação, no Brasil, em todos os níveis educacionais e para todos os grupos raciais, porém as desigualdades permanecem. A taxa de analfabetismo entre pessoas pretas e pardas de 15 ou mais anos de idade era de 14,4% e 13,0%, respectivamente, contra 5,9% dos brancos. Ou seja, a taxa dos negros é mais do que o dobro da dos brancos. É preocupante também a proporção de analfabetos funcionais2, que é o dobro da taxa de analfabetos e a diferença entre brancos e negros se mantém inalterada. Em relação aos anos de estudo, a média do país é de 7,4 anos, sendo que os negros possuem em média dois anos de estudo a menos que os brancos. Vários estudos apontam que a origem das desigualdades devem ser pesquisadas a partir de um conjunto complexo de fatores, que tem como princípio norteador o racismo; podemos citar como exemplo a renda familiar. Segundo pesquisa do Ipea, De toda forma, ainda são percebidas situações de maior vulnerabilidade nos domicílios chefiados por mulheres, em especial, os por mulheres negras, quando comparados aos domicílios chefiados por homens. Os dados de rendimento, por exemplo, mostram que a renda domiciliar per capita média de uma família chefiada por um homem branco é de R$ 997, ao passo que a renda média numa família chefiada por uma mulher negra é de apenas de R$ 491. Do mesmo modo, enquanto 69% das famílias chefiadas por mulheres negras ganham até um salário mínimo, este percentual cai para 41% quando se trata de famílias chefiadas por homens brancos (IPEA, 2011).

Para Rosana Heringer (2001), a redução das desigualdades entre os gêneros (levando em conta os fatores educacionais e econômicos) não será 2 A condição de analfabeto funcional aplica-se a indivíduos que, mesmo capazes de identificar letras e números, não conseguem interpretar textos e realizar operações matemáticas mais elaboradas. Tal condição limita severamente o desenvolvimento pessoal e profissional. O quadro brasileiro é preocupante, embora alguns indicadores mostrem uma evolução positiva nos últimos anos. Ver Wood Jr. (2013).

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alcançada com adoções de medidas paliativas; deve-se investir maciçamente na busca de melhores condições educacionais, de forma ampla, através de programas específicos para os grupos mais afetados pela desigualdade, principalmente as mulheres negras. Mas, para que isso aconteça, precisamos superar nossos preconceitos e lutar por uma descolonização dos currículos escolares3. Nilma Lino Gomes (2012, p. 99), procura instigar a nossa ação intelectual neste sentido através de vários questionamentos: Quanto mais se amplia o direito à educação, quanto mais se universaliza a educação básica e se democratiza o acesso ao ensino superior, mais entram para o espaço escolar sujeitos antes invisibilizados ou desconsiderados como sujeitos de conhecimento. Eles chegam com os seus conhecimentos, demandas políticas, valores, corporeidade, condições de vida, sofrimentos e vitórias. Questionam nossos currículos colonizados e colonizadores e exigem propostas emancipatórias. Quais são as respostas epistemológicas do campo da educação a esse movimento? Será que elas são tão fortes como a dura realidade dos sujeitos que as demandam? Ou são fracas, burocráticas e com os olhos fixos na relação entre conhecimento e os índices internacionais de desempenho escolar?

Como responder a estas indagações se a educação que praticamos está voltada para uma realidade alienígena e alienante? Como podemos trabalhar a descolonização dos currículos se não conseguimos descolonizar a nossa alma? A nossa mente ainda está presa a uma formação massacrante, unicultural, conservadora, machista, homofóbica, eurocêntrica e extremamente racista. Por estes motivos é que uma análise da educação brasileira não pode se esquivar destas questões nem, principalmente, de apontar o racismo, que no Brasil é velado, camuflado. De acordo com Flávio Antonio da Silva Nascimento (2010, p. 15), Uma das estratégias mais brilhantes de dominação da elite brasileira é praticar o Racismo e negá-lo, ocultá-lo, deixando aquele que é alvo deste desnorteado, sem defesa e se situando como a maioria, talvez, na esfera da não percepção do fenômeno, ao que reportamos devido ao peso da continuidade 3 Por descolonização dos currículos escolares entendemos o fim do eurocentrismo, do machismo, do racismo, a busca por uma escola multicultural, humanista e progressiva, que respeite as diferenças e busque o igualitarismo sexual, étnico e religioso.

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dos efeitos da Ideologia da Democracia Racial sobre a nossa gente. Não se sabe se é negro ou não, desconfia-se que não é bem branco; acaba-se assim aceitando a mestiçagem que a Ideologia da Democracia Racial enquadra.

O racismo é parcialmente invisível, não aparece claramente como um dos maiores problemas sociais brasileiros, tanto pelos procedimentos do IBGE, como por aspectos da Ideologia da Democracia Racial, como pela crença de que o Brasil é um país miscigenado e pela louvação que se faz dessa suposição. O fato de a elite praticar o racismo hipócrita e glamorosamente negá-lo também concorre, em maior escala, para encobri-lo na sociedade; e a escola tem um papel fundamental ao transformar esta farsa em verdade institucional. Segundo Gomes (apud SANTOMÉ, 1995, p. 63), há uma intima relação entre racismo, currículo e culturas negadas e silenciadas: Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção a arrasadora presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder continuam a ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação.

É necessário abrir um diálogo em que a cultura negra, as questões de gênero, os movimentos sociais, as questões sociais e educacionais se inter-relacionem nos currículos, porque apenas discutir cultura negra na sala do educador não resolve as tensões que existem, o cotidiano das salas de aula decorrente destas negações e silêncios. Precisamos acabar com a falsa cordialidade (ou a falsa harmonia) que existe no meio educacional. O conflito é necessário; ele oxigena as relações educacionais e desmascara o racismo, que é um dos principais fatores que impede a implantação das leis 10.639/03 e 11.645/08.

A descolonização dos currículos e a implantação das leis 10.639/03 e 11.645/08 No dia 9 de janeiro de 2014 fez 11 anos que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história

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e cultura afro-brasileira. Projetos, programas, cursos, minicursos voltados para a preparação dos professores da Educação Básica e concursos específicos para a História da África e do Negro brasileiro foram abertos nas principais instituições federais, estaduais e municipais, em várias partes do país. Mas ainda há muito a ser feito em termos de pesquisa e ensino para que a Lei 10.639/03 (ampliada pela Lei 11.645/08, com a inserção da obrigatoriedade do ensino de história e cultura dos povos indígenas) seja efetivamente implantada e venha a modificar o ensino de história e transformar o processo de ensino/aprendizagem no Brasil. Segundo Gomes (2012, p. 105), em relação a formação de professores para atuarem dentro da Lei, há vários questionamentos que devem ser levantados: como lidar com a diversidade cultural e étnico-racial em sala de aula? É possível superar o modelo monocultural de conhecimento e de ensino? Juntamente aos autores Gonçalves e Gonçalves e Silva (2000, p. 62), podemos indagar: é possível aos professores e professoras incluir a equidade de oportunidades educacionais entre seus objetivos? Como socializar, por meio do currículo e de procedimentos de ensino, para atuar em uma sociedade multicultural?

Vale lembrar que a criação da Lei 10.639/03, só foi possível devido à manifestação dos movimentos negros por uma demanda social historicamente construída através da luta de vários coletivos de negros, os quais foram apoiados por alguns setores progressistas das universidades brasileiras que desde a metade do século XX vêm pesquisando sobre a permanência do racismo e a história do negro, comprovando as desigualdades raciais. No universo dos professores de todos os níveis educacionais existem casos de racismo e preconceito, que não são isolados e que muitos preferem não ver. Uma pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (Fipe)4, financiada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), indica que 99,3% das pessoas, no ambiente escolar, demonstraram algum tipo de preconceito, étnico-racial, socioeconômico, contra portadores de necessidades especiais, de gênero, de geração, de orientação sexual ou territorial. Sendo que entre estes 94,2% têm preconceito étnico-racial. 4 Pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2009. Disponível em http://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/06/17/ult105u8241.jhtm. Acesso em 11/02/20015. 204


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Esse racismo ambíguo se faz presente em nossa estrutura de desigualdade, em nossas ações cotidianas e na produção do conhecimento. Vários de nós, professores e professoras, temos histórias para contar sobre o silenciamento a respeito da África e sobre a questão afro-brasileira em nossos cursos de formação inicial. Carregamos marcas do tempo da educação básica, quando docentes e colegas manifestavam preconceitos e realizavam práticas discriminatórias em relação aos negros. Convivemos e conhecemos literaturas, materiais didáticos e de apoio pedagógico eivados de estereótipos raciais, sem a devida mediação pedagógica do professor e sem a necessária revisão e atualização das editoras. Em outros momentos, nós mesmos podemos ter sido sujeitos realizadores ou destinatários de tais práticas (BRASIL, 2014, p. 12).

Para lutarmos contra essas amarras, devemos pensar a cultura como um processo dialético, que constrói identidades e ao mesmo tempo é criado por elas. É por isso que não podemos esquecer que essas culturas são criações históricas. A sociedade brasileira necessita com urgência de uma escola democrática que reconheça, valorize e trate de forma ética e profissional a diversidade étnico-racial; que não reproduza em seu interior práticas de discriminação e de preconceito racial; que, antes, eduque para e na diversidade; uma escola que se realize, de fato, como direito social para todos, sem negar as diferenças. Concordamos com Gomes (2012), quando ela alerta que não podemos aceitar que os conteúdos determinados sejam considerados como mecanismos de ruptura do processo de ensino eurocêntrico nas redes de ensino brasileiras; eles não podem ser tratados como “novos conteúdos escolares a serem inseridos” ou como mais uma disciplina que vai sobrecarregar a grade. Há necessidade de uma mudança estrutural, conceitual, intelectual, epistemológica e política. Alguns professores, de forma solitária, têm buscado amenizar essas falhas no sistema educacional, apontadas pelas leis 10.639/03 e 11.435/08, mesmo com dificuldades extremas: falta de recursos financeiros, de orientação, de formação. Eles têm se organizado e trabalhado com o intuito de oferecer aos alunos uma história diferente, que possibilite aos estudantes conhecer, respeitar e valorizar a matriz africana que está na origem da sociedade brasileira. Melhor seria se esses profissionais pudessem vivenciar de maneira mais próxima algumas experiências culturais que 205


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expressam publicamente a relação com essa matriz. Essas lacunas em nossa formação pessoal, profissional e política exigem mudanças de posturas e práticas. Por isso, faz-se necessário recontar a história, dar visibilidade aos sujeitos e suas práticas, e enfatizar a atuação protagonista da população negra no Brasil e no mundo, seus elos com o continente africano e as diferentes culturas produzidas nesse complexo contexto (BRASIL, 2014, p. 18).

No âmbito dos cursos de formação de professores, as Instituições de Ensino devem reconhecer que precisam reorganizar seus currículos para uma sociedade democrática e ele deve ser debatido com a comunidade que as cerca. A história e a contribuição da população afro-brasileira devem ser contempladas nos currículos: O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessam apenas aos alunos de ascendência negra. Interessam também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois, ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas (BRASIL, 2014, p. 18).

Quanto às etnias indígenas brasileiras sobreviventes, os problemas se repetem. A sociedade brasileira precisa assumir que há um enorme preconceito contra os povos indígenas. O desconhecimento da sua história e cultura, ou melhor, da sua diversidade cultural e histórica, impera na sociedade brasileira, que, pelo senso comum, considera-os “atrasados”, “selvagens”, “vagabundos”, “preguiçosos” e “inúteis”. Com a Lei 11.435/08, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atendendo a uma reivindicação dos povos indígenas e dos setores sociais que lhes apoiam, as escolas são obrigadas a colocar nos seus currículos a História e a cultura indígenas. O maior desafio é formar professores que consigam combater o preconceito contra essa parte da população. Precisamos mudar o direcionamento educacional da história e da cultura brasileira. Por exemplo: quando houve a comemoração dos 500 anos de descobrimento, houve uma visão romântica deste fato histórico. Os ameríndios habitavam a nossa região há mais de 50 mil anos, de acordo com pesquisas arqueológicas. Segundo Gomes e Silva (2002, p. 29-30),

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O trato da diversidade não pode ficar a critério da boa vontade ou da intuição de cada um. Ele deve ser uma competência político-pedagógica a ser adquirida pelos profissionais da educação nos seus processos formadores, influenciando de maneira positiva a relação desses sujeitos com os outros tanto na escola quanto na vida cotidiana.

A nossa prática docente atual requer do profissional da educação, um comprometimento com as transformações sociais, criando o hábito do exercício reflexivo ininterrupto do seu fazer pedagógico, buscando uma compreensão do contexto social em que esse profissional se encontra inserido. As habilidades exigidas ao profissional do magistério pelas transformações sociais e econômicas vão além daquelas adquiridas em sua formação inicial, confirmando a necessidade da formação continuada, que pode ajudá-lo a apreender novos conceitos, que corroboram o papel social da escola.

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Narrativas étnico-raciais e de gênero na campanha do monumento à “mãe preta”: pedagogias da imprensa negra Maria Angélica Zubaran

A presente análise pretende demonstrar o trânsito e a circulação de ideias da diáspora negra no jornal de imprensa negra O Exemplo, de Porto Alegre, por ocasião da campanha para a construção de um monumento à “Mãe Preta”, em 1920. Busco mapear e problematizar as representações étnico-raciais e de gênero construídas em torno da “Mãe Preta” e apontar os possíveis efeitos pedagógicos dessas representações na construção identitária dos afrodescendentes. A partir da abordagem teórica dos Estudos Culturais, a imprensa é entendida como um artefato cultural que não apenas informa, mas que produz discursos e representações que contribuem com a formação e a constituição dos sujeitos e de suas subjetividades e identidades. De acordo com Hall (2003) não existe uma identidade negra fixa, imutável, essencial. Ao contrário, para o autor, a construção das identidades negras passa, necessariamente, pela forma como os negros são representados e como representam a si próprios nos mais variados locais da cultura, em situações históricas específicas. Por outro lado, há o entendimento de que a identidade étnico-racial não é linear e não se estabelece, unicamente, por um centro de poder hegemônico, mas, como aponta Gládis Kaercher (2010), define-se para além do modo como fomos educados pelas pedagogias da racialização em funcionamento na cultura brasileira. Ou seja, para além das pretensões das representações homogeneizantes das elites, haverá sempre espaço para a negociação e para a ressignificação das representações da cultura dominante. O contexto histórico da década de 1920 foi marcado pela presença de um emergente nacionalismo cultural pós Primeira Guerra Mundial, pela participação de trabalhadores imigrantes em movimentos operários reivindicando melhores condições de trabalho e pelas manifestações da Semana de Arte Moderna em defesa de uma cultura nacional, que juntos contribuíram para impulsionar um orgulho nacionalista entre pensadores e políticos brasileiros, que começaram a repensar a relação entre a população racialmente diversa e a identidade nacional.


Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação

Este estudo se dá em uma perspectiva interdisciplinar, que articula os campos teóricos dos Estudos Culturais e da História Cultural. Na perspectiva da História Cultural, utilizo-me do conceito de apropriação cultural, conforme Chartier (2002), para compreender os processos de circulação de ideias e as diversas formas como os diferentes sujeitos interpretam os textos que leem, atribuindo-lhes seus próprios sentidos e significados. Neste sentido, busco avaliar de que forma os articulistas do jornal O Exemplo se apropriaram dos textos culturais disponíveis na cultura da época, para veicular seus próprios valores e interesses. A partir dos Estudos Culturais, aproprio-me das discussões de Stuart Hall sobre raça, particularmente de seus textos “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?” (HALL, 2003) e “The Spectacle of the ‘Other’” (HALL, 1997), para questionar as representações étnico-raciais veiculadas na imprensa negra de Porto Alegre no movimento em prol da construção do monumento à “Mãe Preta” na década de 1920. Conforme aponta Sovik (2011), a opção de Hall pelas “questões de raça” foi determinada em parte por sua dupla condição diaspórica, de afrodescendente e de imigrante caribenho, mas também pela sua resistência à forma em que os discursos dominantes tentaram encaixá-lo nas hierarquias sociais. A autora destaca que, para Hall, “o significante ‘raça’ é um conceito classificatório importante no sistema da construção da diferença”, um “significante flutuante”, “deslizante”, significando diferentes coisas em diferentes épocas e lugares. Stuart Hall (2005, p. 7) chama atenção para a complexidade das construções racistas que, por um lado, no seu aspecto mais óbvio, constroem “um mundo de opostos maniqueístas: eles e nós, primitivo e civilizado, claro e escuro, um universo simbólico preto e branco”, cuja violência implícita na representação racista não pode ser negada; por outro lado, as narrativas racistas “funcionam simbolicamente como os mitos, que representam em forma de narrativas a resolução de coisas que não podem ser resolvidas na vida real, mas que são projetadas no âmbito das representações”. A circulação de ideias entre a imprensa negra dos EUA e a imprensa negra brasileira em torno de questões étnico-raciais no início do século XX foi analisada por José Antônio dos Santos (2011) e por Amilcar Araújo Pereira (2013). José Antônio dos Santos, a partir das discussões em torno da diáspora africana, argumenta que, na década de 1920, os redatores da imprensa negra meridional estabeleceram trocas transnacionais com a imprensa negra norte-americana, com troca de exemplares do Chicago Defender dos EUA pelo Clarim da Alvorada de São Paulo. 210


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Nessa mesma direção, Pereira (2013, p. 149) aponta que “a partir de 1920 e também na década de 1930, a circulação de informações na diáspora negra se ampliou muito”. De acordo com o autor, a década de 1920 foi um momento de grande intercâmbio cultural entre a imprensa negra afro-americana e a afro-brasileira, momento em que os norte-americanos olharam com interesse para as relações raciais no Brasil e ao mesmo tempo trocaram referências sobre a luta contra o racismo. Também Micol Seigel (2009) e Paulina Alberto (2011) destacaram que no início do século XX, a imprensa brasileira transformou-se em um espaço de apropriações e debates intensos, sendo visível a sua importância no que concerne à circulação de ideias. Micol Seigel (2009), a partir de uma perspectiva transnacional, investigou o intercâmbio de informações ocorrido por ocasião da campanha do monumento à “Mãe Preta” no Brasil, na década de 1920, analisando as trocas culturais entre a imprensa afro-americana, do Chicago Defender e os jornais brasileiros A Notícia (RJ) e O Clarim d’Alvorada (SP). De acordo com Seigel (2009, p. 314), a proposta da construção de um monumento à “Mãe Preta” começou nos EUA, quando “as daughthers of the American Confederacy (filhas dos confederados norte-americanos) propuseram a construção de uma estátua para a Mammy na capital dos Estados Unidos”. A autora aponta que, quase três anos depois, em 1926, a campanha se estendeu para a imprensa do Rio de Janeiro, para o jornal A Notícia, através de seu redator Cândido de Campos, que passou a defender a construção de um monumento à “Mãe Preta” como forma de celebrar a mistura racial que no Brasil teria contribuído para o caráter específico de fraternidade racial na formação da identidade nacional brasileira. Segundo a autora, a partir do jornal A Notícia, a proposta foi encampada por José Correia Leite, fundador e editor do jornal da imprensa negra paulista O Clarim da Alvorada e, graças a Robert Abott, editor do jornal afro-americano Chicago Defender, a campanha para a construção de um monumento à “Mãe Preta” no RJ e em SP também repercutiu no exterior, “assinalando a diferença marcante entre a harmonia racial brasileira e o antagonismo racial norte-americano” (SEIGEL, 2009, p. 332). Na esfera da imprensa negra paulista, a autora sublinha que “os escritores afro-brasileiros acharam o discurso da fraternidade nacional apropriado às suas reivindicações de uma cidadania inclusiva [...] e a empregaram numa direção antirracista” (SEIGEL, 2009, p. 325). Seigel (2009) conclui que a campanha realizada no Brasil para a construção de um monumento à “Mãe Preta” nos anos 1920 contribuiu para mudar o discurso sobre raça no Brasil,

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adotando a retórica da harmonia racial uma década antes de Gilberto Freyre. No entanto, com a Revolução de 1930, a mobilização da construção do monumento foi abandonada e a ideia só foi retomada no início dos anos 1950, resultado da pressão do movimento “Clube 220”, uma agremiação negra paulista. O monumento à “Mãe Preta” foi inaugurado no Largo Paissandu, no centro da cidade de São Paulo, junto à igreja da Nossa Senhora do Rosário, em 1953, e transformou-se em um ponto de referência para a comunidade negra paulista. Também Paulina Alberto analisa as narrativas e representações da “Mãe Preta” em sua tese de doutorado, depois publicada em livro, intilulada Terms of Inclusion. A autora salienta que os proponentes brancos da estátua da “Mãe Preta” no RJ ecoaram reformulações nacionalistas da identidade nacional e publicamente defenderam uma identidade nacional misturada em 1926. Na mesma direção de Seigel (2009), também Alberto (2011) argumenta que a campanha do monumento a “Mãe Preta” foi o começo de uma importante mudança na forma como a elite brasileira pensava sobre raça, tornando possível imaginar os afrodescendentes como parte integrante da nação. Ademais ela argumenta que o monumento era um tributo ao ideal popular de fraternidade racial. Para Alberto, enquanto os jornalistas brancos defenderam a noção de tolerância racial e elogiaram a passividade da “Mãe Preta”, os jornalistas da imprensa negra paulista usaram o simbolismo da Mãe Preta para destacar as contribuições dos negros à nacionalidade. Segundo Alberto, tanto a ideia de distintas raças, a branca e a negra, como o ideal da mestiçagem foram estratégias políticas encaminhadas pelas lideranças negras paulistas com o objetivo de afirmar o pertencimento dos brasileiros negros a uma nação racialmente e culturalmente inclusiva, e de, ao mesmo tempo, preservar seus direitos a uma identidade distinta, como negros descendentes de africanos. Para Alberto (2011, p. 120), “juntas essas ideias ajudaram os afrodescendentes a encontrar espaços de inclusão e a denunciar o persistente racismo”. A partir dessas análises, apresento o seguinte questionamento: como as ideias disseminadas por ocasião da campanha para a construção de um monumento à “Mãe Preta” no jornal A Notícia no Rio de Janeiro e no jornal O Clarim da Alvorada na imprensa negra paulista foram apropriadas pelas lideranças do jornal O Exemplo? Antes de contemplar essa questão, faço uma breve apresentação do jornal O Exemplo, para contextualizar a sua importância na comunidade negra porto-alegrense.

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O jornal O Exemplo (1892-1930) O jornal negro O Exemplo surgiu em Porto Alegre, em 11 de dezembro de 1892, resultado da organização de um grupo de jovens negros, que se reunia em uma barbearia situada à rua dos Andradas, no centro da cidade de Porto Alegre. Esse grupo de afrodescendentes, que deu início ao jornal, estava composto por Arthur de Andrade, Marcílio Freitas, Aurélio Bittencourt Júnior, Sérgio Bittencourt, Alfredo de Souza e Esperidião Calisto. Sobre o formato e a periodicidade do jornal O Exemplo, Maria Angélica Zubaran (2008, p. 166) afirma que Era um jornal semanal, de quatro páginas, que saía aos domingos, de tiragem modesta e vendido pelos próprios editores na sede do jornal ou através de assinaturas semestrais. Após alguns anos de existência, no final do século XIX, entre 1892 e 1897, O Exemplo voltou a circular no início do século XX, em 5 de outubro de 1902 e manteve-se em atividade até 1905. Após um período de interrupção, reapareceu em 1908 e se manteve em circulação até 1911. A última fase se inicia com seu reaparecimento em 1916 e se encerra definitivamente em 1930.

Conforme afirmou o poeta e militante negro Oliveira Silveira, o jornal O Exemplo teve uma trajetória de 37 anos de publicações, com algumas interrupções; dedicado à comunidade negra e aos populares, é um patrimônio cultural da comunidade negra rio-grandense1. Para Zubaran (2008), o jornal representou um espaço alternativo de produção de significados e de representações sobre as identidades negras no Rio Grande do Sul. A presente análise pretende demonstrar o trânsito e a circulação de ideias da diáspora negra no jornal O Exemplo e mapear e questionar as representações étnico-raciais e de gênero da “Mãe Preta” construídas nas narrativas produzidas pelos redatores desse jornal, na ocasião da campanha para a construção do monumento à “Mãe Preta”. Em artigo intitulado “Mãe Preta”, publicado no jornal O Exemplo em maio de 1926, o redator Mário Rodrigues apoiava a campanha iniciada no jornal A Notícia do Rio de Janeiro e cumprimentava Cândido de Campos pela iniciativa, demonstrando o trânsito e o intercâmbio de ideias entre o jornal 1 Manuscritos de Oliveira Silveira, sob salvaguarda de sua filha Nayara Rodrigues Silveira.

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carioca e o jornal O Exemplo. Mário Rodrigues representou a “Mãe Preta” como “um tipo abnegado”, cujos gestos e atitudes emanavam uma “paciência heróica”, um “exemplo de resignação e doçura”, de “pureza e altruísmo”, um “império de fidelidade” (O Exemplo, 26/maio/1926). Também o articulista Leandro Pierini, em artigo intiltulado “Mãe Preta”, em maio de 1928, manteve a representação da “Mãe Preta” como doce e submissa. Ele afirma: “Conseguiremos esse desideratum, não há dúvida, concretizaremos no bronze ou no granito eterno a figura amorosa e submissa da Mãe Preta”. Neste sentido, na direção apontada por Hall (1997), as representações da “Mãe Preta”, embora idealizadas, permaneceram estereotipadas na imprensa negra porto-alegrense, pois persistiram as imagens de humildade, bondade e submissão típicas da representação do “nobre selvagem” do final do século XIX. Segundo Hall, esse regime racializado de representação tem persistido século XX adentro. Na direção das teorizações sobre as representações racializadas discutidas por Hall, a “Mãe Preta” não foi apenas representada em termos de suas características essenciais, mas também foi reduzida, em sua essência, à submissão e à fidelidade às famílias de senhores e senhoras brancas, conforme se observa na narrativa que segue: No lar era ela a paciência e a bondade. Tinha pela família a quem pertencia apego e amor, pelo sinhô moço ou pela sinhazinha desvelos frementes e cálidos anseios, próprios de mãe legítima e a eles dedicava-se com a submissão resignada e reverente dos seres afetivos e simples (13/maio/1928).

Nessa narrativa o autor naturaliza o trabalho submisso e subserviente da “Mãe Preta”: é natural que a “Mãe Preta” sirva seus senhores brancos. O narrador constrói um cenário de relações raciais fraternas entre a “Mãe Preta” e seus senhores, escamoteando a violência e a desigualdade de poder que marcaram essas relações, como tem demonstrado a recente historiografia sobre a escravidão no Brasil. A “Mãe Preta” foi também representada como naturalmente conformada com seu mundo de privações e impotente diante das “durezas do cativeiro”. Ela naturalmente suportava o martírio e a dor como se observa a seguir: Foi escrava. Passou por todas as provações, por todos os martírios e por todas as durezas do cativeiro. Devia ser por isso má e perversa, cheia de ódio contra a raça escravizadora. 214


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Não o foi, porém. Soube apesar de tudo amar e querer bem a quem lhe tirara o direito de ser livre. Trabalhou e sofreu. Pela dor dignificou-se, tornou-se grande e heroica, suportou o martírio e conquistou a veneração do Brasil [...]. Este Brasil saberá perpetuar a memória da Mãe Preta num monumento digno e eterno (O Exemplo, 1928).

Nesse sentido, no contexto das relações raciais no Brasil na década de 1920, as narrativas em defesa da construção do monumento à “Mãe Preta” produziram um efeito pedagógico: construir um monumento para reverenciar a memória coletiva de todos aqueles que, como a “Mãe Preta”, suportam com passividade e submissão os martírios do cativeiro, particularmente, apontando lugares subalternos para os corpos femininos e negros. Conforme apontou Alberto (2011), a passividade e a submissão da “Mãe Preta” eram atributos que interessavam aos intelectuais brancos, após o desencantamento com os trabalhadores imigrantes estrangeiros, que a partir do início do século XX protestaram contra os seus patrões em movimentos grevistas. Neste sentido, os intelectuais e políticos brancos que apoiaram a ideia do monumento à “Mãe Preta” pretendiam que a “homenagem” servisse pedagogicamente, como modelo de submissão e fidelidade para os trabalhadores e trabalhadoras nacionais afrodescendentes. Hall (1997) observa que um impedimento à efetiva desmontagem da construção discursiva de “raça” é que o pensamento biológico nunca sai inteiramente de cena, não porque as diferenças são consideradas genéticas, mas porque são visíveis. O fato visível de diferença, diz Hall, faz com que a diferença racial esteja próxima à diferença sexual. Nesse sentido, Hall (2000) destaca a importância dos Estudos de Gênero, como movimentos que têm gerado grande impacto nas esferas acadêmicas e sociais, possibilitando mudanças na teorização social e nas ciências humanas e problematizando concepções dadas como universais especialmente aquelas que definem o que é “próprio” para homens e para mulheres. Também Guizzo (2011) ressalta a contribuição dos Estudos de Gênero para relativizar, tensionar e problematizar as questões relacionadas às diferenças atribuídas a mulheres e homens, tomadas por muitos/as estudiosos/as, como algo “naturalmente” dado e não como algo culturalmente constituído. Segundo a autora, os estudos de Joan Scott e Louro têm compreendido o conceito de gênero como uma categoria relacional, ou seja, ele deve ser entendido desde uma lógica que abrange feminino e masculino, isso pelo fato de que

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é pouco provável entendermos a construção do feminino sem levarmos em conta os aspectos e as relações culturais, sociais e históricas que estão estreitamente vinculados à formação do masculino e vice-versa. Na direção apontada por esses autores, entende-se que as representações mais recorrentes sobre a “Mãe Preta” que circularam na campanha pela construção deste monumento no jornal O Exemplo, em Porto Alegre, na década de 1920, mantiveram uma noção de gênero tradicional, associando a mulher negra a papéis e atributos considerados femininos, tais como: a maternidade, a doçura e a delicadeza. De outro lado, revelando a ambivalência das representações na imprensa negra, observa-se que os jornalistas de O Exemplo apropriaram-se da imagem da “Mãe Preta” para tecer críticas ao preconceito racial e à ausência de direitos legais. Na coluna intitulada “Em gratidão à Mãe Preta”, assinada com o pseudônimo Bargioras, construía-se a noção de que o monumento à “Mãe Preta” significaria o reconhecimento de uma dívida da nação, não somente para com a “Mãe Preta”, representada como “a injustiçada de mesquinhos preconceitos de raça, proscrita nas leis, sem direitos”, mas também para “com os africanos que outrora – há bem pouco tempo! – nas nossas lavouras sustentaram com mão de ferro, a riqueza econômica do Brasil e das mulheres africanas”, cujos “seios opulentos [...] fizeram o esplendor de quantos destinos” (O Exemplo, 13/maio/1926). Nessa narrativa, se observa mais uma vez, a manutenção de uma noção de gênero tradicional, que associa o homem negro ao trabalho e a mulher negra à maternidade e à reprodução da espécie, mesmo que elas tenham mantido a mesma rotina de trabalho ao lado dos homens escravizados nas lavouras de cana-de-açúcar e de café no Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Conforme apontaram Nilma Nilo Gomes e Shirley Aparecida de Miranda (2014), o cenário de hierarquização que articula gênero e raça incide diretamente sobre os corpos e ensina como posicioná-los e vivê-los em meio a regras que produzem o corpo normal como corpo branco. Por outro lado, conforme apontou Alberto (2011), a presença da retórica da contribuição do trabalho negro na década de 1920 era uma resposta construída pelos afrodescendentes à discriminação dos nacionais no mercado de trabalho e à preferência pelos trabalhadores imigrantes europeus, continuamente representados como bons trabalhadores, enquanto os trabalhadores nacionais eram representados de forma negativa, preconceituosa e pejorativa. Em novembro de 1926, o jornal O Exemplo voltava a referir-se ao Monumento à “Mãe Preta”, reproduzindo na primeira página do jornal, sob o título “o monumento da gratidão nacional”, o discurso do deputado federal do

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Rio Grande do Norte, Georgino Avelino, dirigido ao presidente da Câmara, concitando-o a apoiar a iniciativa do jornal A Notícia para a construção de um monumento à Mãe Preta. O discurso foi reproduzido com uma pequena introdução do jornal O Exemplo que o apresentava como “o sentimento da nossa gente”. O deputado Avelino ao longo do discurso constrói a noção de uma “raça brasileira”, “nova e pujante”, formada pela integração de “raças estranhas” que imprimiram uma “fisionomia típica e particular da nação”. Para Georgino Avelino: Foi nos pontos de atividades, constituído pelas fazendas e pelos engenhos, nesses pontos de centralização de homens de várias cores e estaturas, hábitos, línguas e ideologias que o espírito das três raças estranhas pela primeira vez gerou a alma da nova raça brasileira, que imprime fisionomia típica e particular a nossa evolução coletiva (O Exemplo, 7/11/1926).

O deputado Avelino acrescentava à ideia de uma nova raça brasileira, a noção de um espírito brasileiro, no qual as três raças, brancos, negros e indígenas, conviveriam sem hierarquias, antecipando assim, a noção da democracia racial já em meados dos anos de 1920: A diferença das hierarquias sociais pelas quais se achavam distribuídas em proporções diferentes os diversos grupos étnicos foi anulada pela definição inalterável do tipo espiritual brasileiro, em cuja fisionomia, brancos, pretos e selvícolas se reconhecem condensados em um parentesco indissolúvel (O Exemplo, 14/11/1926).

Observa-se que também na imagem que foi selecionada para veicular a representação visual da “Mãe Preta” no jornal O Exemplo houve uma apropriação particular dos redatores. A imagem escolhida pelo jornal como símbolo para a “Mãe Preta” inseriu a imagem da criança negra abandonada aos pés da “Mãe Preta”, em uma iconografia que tradicionalmente representava apenas a “Mãe Preta” e a criança branca, e assim, transformava essa imagem em uma lembrança do sofrimento das “Mães Pretas” e das dificuldades da raça negra, conforme se pode observar a seguir (Fig. 1):

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Fig. 1 Imagem da “Mãe Preta”. Fonte: O Exemplo, 13 de maio de 1926.

Considerações finais No contexto das relações étnico-raciais e de gênero no Brasil, na década de 1920, as ideias veiculadas pela grande imprensa do Rio de Janeiro e pela imprensa negra paulista, foram seletivamente apropriadas pelos jornalistas da imprensa negra do Rio Grande do Sul. Os redatores do jornal O Exemplo apropriaram-se da noção de fraternidade racial disseminada pelos intelectuais, jornalistas e políticos brancos para assinalar, em defesa de seus próprios interesses, as contribuições dos africanos e seus descendentes à identidade nacional. Neste sentido, a “Mãe Preta” foi acionada para relembrar o trabalho dos negros na construção da riqueza nacional, enquanto as mulheres negras foram simbolicamente associadas à nação por meio de representações que as vincularam à maternidade e “aos seios fartos”, naturalizando suas identidades e associando seus corpos aos ditames da procriação e aos papéis e atributos tradicionais de feminilidade. Por outro lado, o reconhecimento positivo das contribuições da “raça negra” na nacionalidade brasileira, na campanha pela construção do monumento à “Mãe Preta” na década de 1920, como apontou Alberto (2011), marcou uma significativa mudança na ideologia do branqueamento e produziu uma inflexão nos ensinamentos hierárquicos de Oliveira Vianna, que propunha o desaparecimento progressivo da população indígena e negra no Brasil e projetava a nação brasileira como branca. 218


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Por outro lado, a imprensa negra do Rio Grande do Sul, ao representar o Brasil como um lugar onde duas raças distintas, a branca e a negra, por meio de suas relações compartilhadas com uma “Mãe Negra” simbólica, eram irmãs e conviviam sem hierarquias, antecipou as noções de democracia racial construídas na década de trinta por Gilberto Freyre, na direção apontada por Seigel (2009) e Alberto (2011) para a imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo. Conforme propõe Hall (2003), na diáspora negra há apropriação, cooptação e rearticulação seletiva de ideologias e culturas, junto à preservação de tradições africanas. Assim, se por um lado, registra-se, na campanha ao monumento à “Mãe Preta” no jornal O Exemplo, uma continuidade com as representações hegemônicas de raça e de gênero disseminadas na grande imprensa carioca e na imprensa negra paulista, por outro lado, observa-se que esses discursos e representações foram ressignificados e deram lugar a projetos alternativos, capazes de subverter significados produzidos inicialmente e de argumentar em favor da inclusão social e dos direitos dos negros a uma cidadania brasileira inclusiva e antirracista.

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KAERCHER, Gládis. Pedagogias da racialização ou dos modos como se aprende a “ter” raça e/ou cor. In: BUJES, Maria Isabel Edelweiss; BONIN, Iara Tatiana (Org.). Pedagogias sem fronteiras. Canoas: Ulbra, 2010. SEIGEL, Micol. Uneven Encounters: Making Race and Nation. In: BRAZIL and The United States. London: Duke University Press, 2009. SOVIK, Liv. Pensando com Stuart Hall. In: GOMES, Itania Maria Mota; JANOTTI JR., Jeder (Org.). Comunicação e Estudos Culturais. Salvador: Edufba, 2011. p. 49-62. Disponível em: http://compos.com.puc-rio.br/media/gt5_liv_sovik.pdf. PEREIRA, Amilcar Araújo. Mundo negro: relações raciais e a constituição do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: FAPERJ, 2013. SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da história: trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. 2011.Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. ZUBARAN, Maria Angélica. Comemorações da liberdade: lugares de memórias negras diaspóricas. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 161-187, jul. 2008.

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Sobre os autores Adriana Sales Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus de Rondonópolis, e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professora da rede pública de ensino, atuando na Superintendência de Formação dos Profissionais de Educação da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso e professora do curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, na UFMT, Campus de Rondonópolis. Ativista do movimento travesti brasileiro e atual gestão de diretoria da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades.

Alberto Olavo Advincula Reis Graduado em Psicologia pela Université de Paris VII – Université Denis Diderot (1971), Mestre em Psicologia pela Université de Paris VII – Université Denis Diderot (1977) e Doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (1993). Professor Livre Docente da Universidade de São Paulo. Coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Saúde Mental Coletiva (LASAMEC). Tem como foco de pesquisa os estudos e as investigações sobre a Saúde Mental Coletiva, com ênfase em crianças, adolescentes e jovens. Coordenador do Núcleo de Psicopatologia, Políticas Públicas de Saúde Mental e Ações Comunicativas em Saúde Pública (NUPPSI). Presidente do Centro de Estudos de Desenvolvimento do Ser Humano (CDH).

Alcindo José Rosa Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP/SP. Professor Associado do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus de Rondonópolis. Foi professor conteudista do Curso de Especialização Gênero e Diversidade da UAB/UFMT, em 2011-2012, do qual é, atualmente, professor formador. Coordenou projeto na área de saúde na escola por meio do PRO/PET Saúde/SEGETS/MS. Atualmente, é tutor da Residência Multiprofissional em Saúde da UFMT/CUR.

Antutérpio Dias Pereira Possui graduação, especialização e mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor de Ensino Superior (Faculdade Eduvale de Jaciara). Foi professor temporário por duas vezes na UFMT, Campus de Rondonópolis. É professor concursado em História pela Secretaria Estadual de Educação. Foi presidente do Movimento Negro de Rondonópolis. Atualmente, é doutorando em História Cultural pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e professor conteudista e formador do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.


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Bianca Salazar Guizzo Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e do Curso de Pedagogia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Licenciada em Pedagogia pela mesma Universidade. Faz parte do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE) vinculado à UFRGS.

Carmem Lucia Sussel Mariano (Organizadora) Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP. Atualmente, é professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), no curso de graduação em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Educação e na especialização em Gênero e Diversidade na Escola. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea (GEIJC). Tem atuação na área de Psicologia Social e Estudos da Infância, com ênfase em sexualidade e direitos da criança e do adolescente.

Douglas Verrangia Corrêa da Silva Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Carlos (2000), Mestre (2004) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos e Doutor em Educação pelo PPGE-UFSCar com estágio doutoral na City University of New York (CUNY) (2009). Tem experiência na área de Educação e Formação de Professores, atuando principalmente no contexto do ensino-aprendizagem de conceitos científicos e relações sociais, com ênfase nas relações raciais. É consultor da UNESCO (na área Relações Étnico-Raciais), docente no Programa de Pós Graduação Profissional em Educação da UFSCar (PPGPE) e professor adjunto do Departamento de Metodologia de Ensino (DME) da Universidade Federal de São Carlos.

Elni Elisa Willms Professora Adjunto II da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis, atuando no Curso de Pedagogia. Doutorado em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Pesquisadora vinculada aos grupos de Pesquisa Estigma e Diferenças na Educação e Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação em Educação e Cultura (GEIFEC), da FE-USP. Disponível para pesquisas sobre o brincar, diversidade, saberes e práticas de educação ancestral.

Evandro Salvador Alves de Oliveira Possui graduação em Educação Física – FUNEC/SP (2006). Mestrado em Educação pela UFMT/PPGEdu (2014). Doutorando em Estudos da Criança pela Universidade do Minho (Portugal), especialidade de Educação Física, Lazer e Recreação. Membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) da UMinho e do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea (GEIJC) da UFMT. 222


Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação

Graciela Haydée Barbero Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo. Realizou pós-doutorado no IP/USP, em 2011. Atualmente, é líder de pesquisa e Professora Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Campus de Rondonópolis. Tem longa experiência na clínica psicanalítica e supervisão. Atua principalmente nos seguintes temas de pesquisa: homossexualidades, erotismo sado-masoquista, violência doméstica, o papel da lei nos vínculos violentos, novas conjugalidades e união afetiva homossexual. Atualmente, está finalizando uma pesquisa intervenção na cadeia feminina da cidade de Rondonópolis e atua como professora formadora e conteudista do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.

Julio Cézar Coelho Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis (1995) e Mestrado em História pela UFMT, Cuiabá (2005). Nascido em São Borja e viajante por “mares” navegados. Chegou ao Mato Grosso e se apaixonou. Desde então, trilha os caminhos da Educação e da História e, principalmente, junto àqueles que caminham com música, poesia, vontades e desejos de uma vida melhor a todxs. Atualmente, é professor formador e conteudista do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola (GDE).

Laudinéa de Souza Rodrigues Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Foi bolsista PIBIC no projeto “A busca do diálogo na interculturalidade: impactos culturais e relações dialógicas”, em que realizou sua pesquisa no subprojeto “Educação escolar e educação indígena: encontros e desencontros”. Possui especialização em supervisão, orientação e gestão escolar pela Faculdade Santo André. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis, no qual pesquisou a criança e a infância na perspectiva da formação indígena para a docência. Pesquisa os seguintes temas: infância, criança indígena, educação e educação escolar indígena, educação infantil, formação de professores indígenas.

Leonardo Lemos de Souza (Organizador) Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Psicólogo e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Realizou estágio pós-doutoral no Departamento de Psicologia Básica da Facultat de Psicologia da Universitat de Barcelona (UB). Atualmente, é Professor Assistente Doutor da UNESP, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

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Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação

Membro do Grupo de Pesquisa Epistemologia e Psicologia: processos e contextos de desenvolvimento humano, do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades, do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea (GEIJC) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT/Rondonópolis. Tem como área de investigação a psicologia social e do desenvolvimento humano e seus desdobramentos na educação e na cultura contemporânea, com interesse nos processos de subjetivação na contemporaneidade atravessados pelos marcadores de juventude, gêneros, sexualidades, tecnologias, ética e cognição. Professor do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.

Maria Angélica Zubaran Doutora em História na State University of New York, Pós-doutorado no Birkbeck College da London University professora adjunta do Curso de História e do Mestrado em Educação da Universidade Luterana do Brasil. Pesquisadora do NEABI/Ulbra, coordenadora do projeto “O Direito às Memórias Negras: Preservando o Patrimônio Afro-Brasileiro nas coleções do Jornal O Exemplo (1892-1930)”, EDITAL Minc/UFPE 2013. E-mail: angelicazubaran@yahoo.com.br.

Paula Faustino Sampaio Graduada em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus de Rondonópolis. Coordenadora do Programa de Extensão “Oficinas de Gênero e Cidadania”, da UFMT, voltado para as instituições educacionais. Pesquisa sobre gênero e feminismo em Mato Grosso. Tutora à distância da Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, da UFMT/Rondonópolis. Foi professora de História das redes públicas e particulares de ensino e atuou no Ensino Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos. Ministra formação continuada para professores(as). Foi tutora do Curso de Licenciatura em Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba, UFPB/Virtual. Nasceu em Cabaceiras (PB), lugar com belo pôr do sol e lindas flores de mandacaru.

Raquel Gonçalves Salgado (Organizadora) Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com estágio doutoral no Centre for the Study of Children, Youth and the Media (Institute of Education / London University). É Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), no Campus de Rondonópolis, e atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) e no Curso de Psicologia. Atualmente, é coordenadora do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea (GEIJC). Seus principais temas de investigação são: infância, mídia, cultura lúdica, educação infantil, corpo, relações de gênero e sexualidade na cultura contemporânea. 224


Gênero, Sexualidade, Diversidade e Educação

Rodrigo Saballa de Carvalho Pedagogo, Mestre em Educação (UFRGS), Doutor em Educação (UFRGS), Pós-Doutor em Educação (UFPEL). Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH- UFFS). Professor do Curso de Pedagogia da UFFS. Líder do Grrupo de Pesquisas em Educação, Cultura e Políticas Contemporâneas – UFFS.

Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis, lotada no Departamento de Educação, e também compõe o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu/UFMT/CUR), na Linha de Pesquisa Linguagens, Cultura e Construção do Conhecimento.

Wiliam Siqueira Peres Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pósdoutorado em Psicologia e Estudos de Gênero pela Universidade de Buenos Aires. Docente da graduação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em Esquizoanálise e processos de subjetivação. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades.

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Sobre o livro Capa Miolo Tipologia utilizada Papel

15,5 cm por 22,5 cm 31 cm por 22,5 cm Minion Pro Capa: Supremo 250g Miolo: p贸len bold 80


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