DIÁLOGO E PROJETO MÉTODO PARTICIPATIVO
PRÁTICA 1
DIÁLOGO E PROJETO MÉTODO PARTICIPATIVO
Trabalho Final de Graduação FAUUSP | Dezembro de 2014 Alexandre Okuda Campaneli aluno
PRÁTICA
Nilton Ricoy Torres orientador 3
“Pedreiro de costas de colher, para mim não é pedreiro. O que manda, pra mim é medida, nível, prumo e esquadro!” “Olha só isso, vê se pode! O ajudante ensinando o arquiteto?!” Negão
“Negão, tu és o próprio “Operário em construção” da poesia de Vinícius de Moraes. Ontem estavas lá, comigo, me ensinando teu ofício, outro dia estavas às margens do rio Pinheiros construindo o condomínio Cidade Jardim, onde tu, com tuas vestes surradas, provavelmente não és mais bem vindo desde que terminou teu trabalho, depois de tanto suor. E se todos nós tivéssemos a oportunidade de encontrar aquele que construiu nossos lares e saber da sua história de vida e da batalha de vida que ele registrou em cada tijolo que assentou ali? Ah se as paredes falassem! E se a história da cidade contasse a história daqueles que a construíram? Pois, é, mestre. Tem coisas que não se aprende na faculdade, e outras que ela ensina a esquecer, a humildade é a principal delas. Minha formação acadêmica não me torna melhor, só capacitado para um oficio, e ainda assim, com muita falta de conhecimento prático. Agora que já estás me ensinando teu, quero ensinar-te o meu! Ai sim faremos revolução, ai sim faremos subversão!” Alex Sartori
ÍN DIC E 6
8 Introdução 12
A Pesquisa
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O Local
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O Processo
32 Inicia-se na problematização da realidade feita em conjunto Não apresenta necessariamente um produto acabado 52 Busca dados por meios qualitativos 62 Não estabelece hierarquias Busca ser legitimado pela população 68 Apresenta avanços e retrocessos 80 Busca a autonomia
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Considerações Finais
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I N T R O DU Ç Ã O 8
Nesta segunda etapa, o trabalho se propõe a analisar os diversos aspectos e nuances de uma prática mais aproximada da população dentro do campo da arquitetura. Buscando questionar o ensino de arquitetura, a atuação do profissional arquiteto e o próprio processo de projeto. Propõe-se registrar os diálogos gerados nas reuniões sob a perspectiva da produção do conhecimento e da atuação profissional do arquiteto, identificando conflitos gerados da interação entre os conhecimentos diversos, entre pessoas e profissionais de origens, opiniões e realidades distintas, assim como, de que modo e se acontecem os consentimentos, se há nesse processo algum tipo de imposição, seja ela intencional ou não. Sob esse olhar, buscaremos entender quais os níveis de interação, de exigência e comprometimento
quando o arquiteto, formado ou em formação, se dispõe a essa abertura. Se o que lhe é ensinado na faculdade é realmente suficiente para atuar sobre os problemas reais da maneira distanciada que atuamos. Afinal, se queremos um ensino voltado para a resolução dos problemas mais urgentes, será que não deveria ser feito de maneira próxima a eles? “Arriscaremos”, então, colocar o nosso conhecimento adquirido no mundo real, não através do desenho, mas do diálogo. Afinal, se falamos tanto do projeto como uma resposta à um problema, nos empenharemos em descobrir a origem da “pergunta”, como ela foi formulada e sob qual realidade, para que o projeto deixe de ser uma resposta individual e tornar-se uma tradução de necessidades e vontades mais coletivas. Iremos investigar sobre as limitações de uma prática distante daquilo que ela própria objetiva - as pessoas, provocando os profis-
sionais a olhar mais para o modo pelo qual as coisas são feitas do que para o que é feito. Mesmo assim, o trabalho não se pretende completamente conclusivo, ele é, um processo em aberto, que soma e a qual sempre lhe é somado algo com o tempo. Não possui um objetivo final, a não ser o de fazer parte de algo em construção constante. Não acaba com um pensamento absoluto, mas sim em uma proposta ao debate das formas como a cidade e a sociedade se constrói. Ele por si só não pode ser retirado de seu contexto e analisado como algo singular, ele faz parte de algo que já começou e ainda está em andamento. Ele tenta fazer parte de uma prática interessada não na própria prática ou na arquitetura, mas sim nas pessoas, nas suas histórias, problemas e situação. Uma prática apaixonada nas pessoas e não no exercício da profissão pela profissão.
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Propõe também uma atuação mais responsável, diante da realidade tão desigual que vivemos, onde utilizamos o conhecimento adquirido em locais privilegiados de forma a difundí-lo para aqueles distantes destes centro de sua produção, para que a população possa utilizá-los na luta por melhorias das condições em que vivem e para tornar a cidade um local mais democrático. Ou seja, na experiência de uma prática real, pretende-se pensar uma metodologia de trabalho - idealizada no caderno 1 - de maneira aberta, pensando não apenas nos resultados do método, mas principalmente no próprio método. E esta aproximação do exercício da profissão realizado de uma maneira mais próxima da população só foi possível devido oportunidade de acompanhar o LabHab da FAU-USP em um trabalho realizado em conjunto com os moradores do Bairro Alvarenga em São Bernardo do Campo. Faço uso também
de algumas experiências pessoais, como as discussões sobre o atual momento (primeiro semestre de 2014) de discussão do PDE do município de São Paulo, atividades que participei na TETO - Brasil e do meu atual estágio, realizado num escritório de assessoria técnica aos movimentos de moradia de São Paulo. Importante ressaltar aqui a importância dos trabalhos realizados por Luciana Ferrara, através dos quais produziu-se um conhecimento de maneira muito próxima aos moradores do bairro em questão, e sem o qual seria impossível o desenvolvimento deste trabalho.
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A P E SQ U IS A 12
O início do trabalho nos loteamentos do baixo Alvarenga aconteceu no decorrer da pesquisa em políticas públicas chamada Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em Matéria Urbanística (1). Nesse período a ONG Holos 21 atuava em conjunto com os moradores com a proposta de assessorar os moradores na discussão e elaboração do Termo de Ajustamento de Conduta, que estava em negociação com o Ministério Público. Em 2007, a ONG submeteu o projeto “Levantamento Socioambiental da Região do Baixo Alvarenga e Curso de Capacitação de gestores socioambientais” à aprovação para obtenção de recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos. Sob coordenação do engenheiro Franscisco da Silva, o projeto aprovado contou a colaboração da pesquisadora Luciana Ferrara. Dentro de seu mestrado(2), Luciana realizou, nos anos de 2007 e 2008, um conjunto de cartografias comunitárias contendo mapas diagnósticos e propositivos que subsidiariam
o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para o conjunto de assentamentos. Tais propostas formuladas pelos moradores mostram-se pertinentes ainda hoje para o processo corrente. Quando foi montado o projeto de pesquisa para trabalhar com a FINEP (chamada pública 07-2009 MCT/Finep/Cnpq/Ação Transversal Saneamento Ambiental e Habitação), havia uma preocupação mais voltada para a questão da infraestrutura, discutindo-se questões mais voltadas ao “Habitat”. Em suas pesquisas Luciana Ferrara tratou muito mais das questões relacionadas à (1) A pesquisa foi desenvoldica em conjunto com o Ministério Público e municípios da bacia da Billings entre 2002 e 2005, contando também com apoio da Fapesp - Políticas Públicas e coordenação da Profa. Maria Lucia Refinetti Martins. (2) Ferrara. Possibilidades e limites para os projetos de infra-estrutura urbana em áreas de fragilidade.
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infraestrutura e meio ambiente, o que trouxe uma nova dimensão ao LabHAB, que tradicionalmente discute questões habitacionais. Desse modo o projeto “Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano”, deriva desse linha de pesquisa já colocada que discute as tensões entre moradia e as questões ambientais das áreas de mananciais. A pesquisa tem por objetivo desenvolver alternativas urbanísticas que incorporem no próprio desenho urbano, técnicas compensatórias de gestão de água pluvial, particularmente nos casos de regularização de assentamentos precários, buscando recuperação ambiental e melhoria dos espaços públicos. Coloca-se a necessidade de desenvolvimento alternativas de recuperação urbana e ambiental e de minimizar o impacto da ocupação urbana feita de modo informal, autoconstruída e sem infraestrutura em áreas de risco e que são ambientalmente protegidas por lei.
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Essa pesquisa, pretendendo-se, desde o começo, aplicada ao contexto do local, foi proposta como uma atividade colaborativa, ou seja, estuda essas questões de infraestrutura na medida em que elas tem ou não aderência ao ambiente precário e irregular. A pesquisa coloca-se, então, numa perspectiva de construção dialógica dentro de uma postura crítica em relação ao processo, no que tange tanto quanto ao método, quanto do que é produzido através dele, aproximando alunos, professores, pesquisadores, comunidade e poder público. Busca contribuir com a formação desses diversos autores em aspectos teóricos e práticos da construção do espaço, objetivando a participação qualificada dos moradores no debate de futuros projetos de intervenção na área. Assim, numa vontade de aprofundamento das questões do bairro para criação de um diagnóstico que sirva de base para as ações futuras da prefeitura, iniciou-
se a fase mais prática da pesquisa, formulando-se, à partir do andamento das discussões com os moradores, a proposta do “Canteiro-Escola: Águas Urbanas em áreas de mananciais” no formato de um curso aberto. E com o intuito de intensificar e abranger o debate sobre a questão socioambiental realizam-se palestras, visitas, estudo teórico e prático, debates, seminários e exercícios práticos. E é à partir deste momento que comecei a acompanhar de perto este processo de construção coletiva com os moradores do bairro baixo Alvarenga, processo sobre o qual contarei adiante minhas impressões e opiniões, colocas mais num enfoque das possibilidades que a construção coletiva à partir do diálogo entre as pessoas é capaz de gerar.
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O LO C A L 16
O município de São Bernardo passou a ter um crescimento acentuado à partir da década de 50. Com a construção da Rodovia Anchieta (1947) e Imigrantes (1970) e a disponibilidade de terra, houve uma expansão do setor industrial, com a instalação da indústria automobilística e química. Entre as décadas de 50 e 70, essa industria foi o motivo de atração da população do pais para a região, tendo papel muito importante na atual configuração da ocupação urbana da cidade. Nessas décadas o parcelamento do solo caracterizou-se pela abertura de grandes loteamentos, que, muitas vezes ultrapassaram a necessidade de assentamento da população (BARRETO; SÓCRATES; TANAKA, 1976). Foi na década de 60 e 70, com a chegada das indústrias de apoio, que houve uma grande demanda de área para que os trabalhadores que vinham de outros estados pudessem morar.
Durante esta época de expansão da cidade, São Bernardo apresentou altos índices de crescimento econômico(1) e estruturação do poder público. Porém, estes fatores não significavam melhorias na qualidade de vida da maioria da população(2), principalmente dos trabalhadores das indústrias. E quando falamos da habitação dessa parcela mais pobre, predominantemente autoconstruída, identificamos o total desconhecimento quanto à legislação e parâmetros de qualidades de construção, e total descaso das secretarias do município e órgãos públicos neste processo de ocupação. Apesar da (1)Em 1977, São Bernardo do Campo tinha a maior arrecadação municipal no país proporcionalmente a sua população (MARICATO, 1977) (2)Um diagnóstico realizado pela Progresso de São Bernardo do Campo S.A. - PROSBC para obtenção de recursos do Programa Comunidades Urbanas para Recuperação Ambiental - CURA (BNH), mostrou que o provimento da rede de infraestrutura não foi equivalente a expansão da mancha urbana.
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existência de técnicos capacitados e empresas de capital misto que tratavam de questões referente à habitação popular não houve nenhuma assistência ou assessoria neste momento. Além disso, apesar da grande quantidade de loteamentos disponíveis, grande parte dos terrenos não foi adquirida pela população de baixa renda no chamado mercado imobiliário formal. No período de 1960 e 70 houve o surgimento e expansão das favelas do município. Segundo Kowarick (1979), São Bernardo passou de uma população favelada de 281mil em 1974 para 374mil em 1978, representando 9,1% da população. Os trabalhadores que conseguiam comprar lotes no mercado formal não tinham recursos para construir suas moradias, sendo frequente a presença de barracos em loteamentos. (MARICATO, 1977)
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Devido a concentração da arrecadação de impostos no poder Federal, até a Constituição de 1988 os municípios não possuíam verbas para atuar no campo da habitação. A questão da habitação de interesse social permanecia fora do alcance das prefeituras. Havia em São Bernardo, por exemplo, uma política habitacional restrita à produção de lotes urbanizados. (FERRARA, 2013) Somente à partir de 1989, o município de São Bernardo do Campo, juntamente com Diadema e Santo André, passou a enfrentar o problema da habitação, estruturando suas secretarias e utilizando mais recursos próprios do que federais (do Sistema Financeiro Habitacional) (KFOURI, 1992). O principal modo de atuação nos assentamentos precários era sua urbanização e regularização, produção de lotes urbanizados e apoio à construção comunitária ou mutirão. Na década de
80 algumas experiências de organização comunitária obtiveram êxito na luta por moradia. A população de alguns assentamentos organizavam-se em Associações para que pudessem adquirir coletivamente o direito à terra. Porém, apesar do aumento da atuação na questão da moradia na década seguinte, não supriram a demanda do município. A ocupação das áreas de mananciais nesse período foi bastante expressiva, passando de uma população residente em AMP’s de 50mil em 1980 para uma estimativa de 220mil em 2009 (IBGE - Censo 2010). Durante as décadas de 1980 e 90, as áreas de mananciais, mais afastadas do centro urbano e da rede de infraestrutura, tornarem-se uma frente de expansão urbana. A grande disponibilidade de terras e a dificuldade de fiscalização somadas ao fato do aumento da poluição da Represa Billings - que recebia toda carga de dejetos proveniente do rios Pinheiros e rio Tietê e pela
falta de instalação da rede de esgoto na região - provocar a desvalorização do local e perda do seu valor ligado ao lazer, estimularam o aumento de venda de terras e possibilitaram a abertura de diverso loteamentos irregulares. Com os impedimentos ambientais e a forma como é operado o fornecimento de infraestrutura na cidade - priorizando-se determinadas áreas - a intensa expansão urbana em áreas de proteção não foi acompanhada pela implementação de redes de serviço, como água e esgoto, coleta de lixo e etc. Vale lembrar que, para a situação dos assentamentos precários de São Bernardo do Campo, a presença de redes coletoras de esgoto não significa que este está sendo tratado, pois o coletor-tronco para o encaminhamento do esgoto até a estação de tratamento de esgoto do ABC ainda está em construção. Ou seja, muitas áreas, hoje em dia (2014) ainda despejam seus esgotos nos corpos d’água mais próximos. 19
município. O baixo Alvarenga, assim como muitos assentamentos próximos à represa Billings, possuem como único caminho de acesso a estrada dos Alvarengas, que, mesmo com sua importância para a região, ainda possui trechos sem asfalto e iluminação.
O baixo Alvarenga
Passaremos agora à nos aproximar da área de estudo em questão, compreendendo seu processo de formação, as questões envolvidas nos momentos em que o bairro surgiu e se expandiu, poderemos entender melhor seus problemas, qualidades e potencialidades. A formação dos loteamentos Parque dos Químicos, Nova América, Novo Horizonte, Ouro Verde e Parque Ideal I e II assemelha-se ao demais bairros localizados nessa região da RMSP. Chamada de baixo Alvarenga, essa parcela mais sul do bairro teve seu surgimento após a Lei Estadual de Proteção dos Mananciais de 1975 e encontra-se em situação mais precária do que a parcela norte do bairro, de formação mais antiga e que possui maior conexão com a malha urbana do
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Os seis loteamentos (mapa ao lado) foram abertos um após o outro, à partir de propriedades particulares de diferentes donos, destruindo-se a cobertura vegetal existente, a vegetação natural - Mata Atlântica - foi quase que completamente retirada. Trata-se de uma área de grande fragilidade ambiental, podemos verificar a presença de muitas nascentes, cursos d’água, além de áreas com aclive acentuado. De acordo do Luciana Ferrara e sua pesquisa, entre os loteamentos estudados, assim como nos outros na região de mananciais, houve um processo semelhante de formação, onde os loteadores organizavam-se em associações de moradores e, em nome delas, compravam e registravam os terrenos para depois vendê-lo em lotes fracionados, escondendo assim, seus nomes e envolvi-
Unidades Hab. Mapeadas
Área (m²)
1 - Parque dos Químicos
337
113.608
2 - Parque Ideal I
195
50.000
3 - Parque Ideal II
-
91.120
4 - Jardim Novo Horizonte
226
155.631,82
5 - Ouro Verde
303
50.000
87
30.000
1188
490.359,82
Loteamento
6 - Nova América TOTAL
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6 Mapa 01 Divisão dos loteamentos Fonte: LabHab FAU-USP, 2014
mento com loteamentos ilegais. Neste processo, não respeitavam nenhum parâmetro nem procedimentos de licenciamento da lei estadual de proteção aos mananciais n⁰ 898/1975 e n⁰ 1172/1976 e os da lei federal de parcelamento do solo urbano n⁰ 6766/1979. Como exemplo temos o caso do Parque dos Químicos, cuja associação, ligada ao sindicato dos Químicos, loteou a áreas em terrenos de 100 à 125m², sendo que, segundo a lei de proteção aos mananciais, deveriam haver lotes de no mínimo 7500m². Nota-se como regra geral dos loteamentos ali presentes, o prevalecimento dos interesses econômicos sobre qualquer vontade e disposição de criar-se um bairro organizado com maior qualidade urbana. A presença de curso d´água, nascentes e topografia acentuada não foi um fator levado em conta no
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desenho do loteamentos, alguns córregos menores foram aterrados, outros desviados, o viário atual não corresponde inteiramente aos desenhos iniciais do loteamento, e apesar de alguns loteamentos apresentarem áreas destinadas ao verde, serviço ou institucional, elas permanecem até hoje desocupadas (com uma exceção no Parque dos Químicos, onde há uma sede da Associação). O descaso com os procedimentos legais de aprovação do loteamento tem efeitos direto na qualidade de vida dos moradores da região. Pela lei federal n⁰ 6766/1979 é obrigação do loteador executar obras de infraestrutura no loteamento, e podemos verificar que a ausência desse tipo de obra interfere tanto em questões ambientais como político-sociais. Com o decorrer do tempo, as Associações, que inicialmente funcionavam como imobiliárias na
venda dos loteamentos, começaram a passar por diversas mudanças de diretoria, ou seja, aos poucos os moradores foram sendo incorporados e os antigos responsáveis se desligando dos loteamentos. Essas associações, reapropriadas pelos moradores, passaram a lutar pela melhoria do bairro, e, , em num primeiro momento, reivindicavam o fornecimento de infraestrutura. Hoje em dia, as associações possuem posicionamento políticos e atuações diversas, algumas mais voltadas para o bairro e sua melhoria, outras mais voltadas para a própria associação, o que, acaba dificultando uma ação conjunta. Segundo dados do Mapeamento de Assentamentos Precários do Município de São Bernardo do Campo 2010 SEHAB/SBC, os seis loteamentos somam 1.148 domicilios e 4.250 moradores. Essas famílias residem, em sua maioria, há mais de 10 anos no local, sendo frequente o convívio de duas gerações no loteamento,
inclusive dividindo o mesmo lote (FERRARA, 2013). O perfil de renda dos loteamentos em questão é baixo, grande maioria das famílias (67%) possui renda em 2 e 3 salários-mínimos (FERRARA, 2013) e seus integrantes exercem profissionais ligadas a indústria, comércio, serviços e construção civil.
A Construção do Espaço Após adquirir o lote, o morador era o único encarregado da construção de sua moradia. A autoconstrução foi o processo predominante no Bairro Alvarenga, assim como na maioria das áreas periféricas metropolitanas (FERRARA, 2013). A construção das casas ao longo do tempo acontece de modo gradual e constante e sem qualquer tipo de assistência e aprovação legal (1). Após a compra do terrenos, ergue-se um pequeno núcleo que cubra as necessidades primordiais, geralmente um 23
quarto, sala e cozinha e um banheiro. A disponibilidade de recursos de cada família que determina o ritmo da construção, assim como os acabamentos. Podemos observar num mesmo loteamentos, casas em diversos estágios e/ou estado de precariedade (imagens 1 à 4). Hoje em dia, há ainda alguns lotes à venda e algumas moradias sendo construídas, apesar de advertências da prefeitura (imagens 5 e 6). Construtivamente, verifica-se uma variedade na qualidade da moradia, pois ela depende dos recursos da famílias, método de construção, materiais utilizados e localização. Em uma visita, identificamos um grave problema referente à salubridade, pois há casas muito próximas de taludes, muros encostados em cortes bruscos no terreno sem qualquer impermeabilização (imagens 9 à 11) , cômodos sem ventilação e/ou iluminação. Entretanto, de modo geral as pessoas que vivem
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na região estão satisfeitas com a qualidade de suas casas, considerando o principal problema do bairro a falta de tratamento e estruturação da área externa, como ruas não pavimentadas e sistema de esgoto (FERRARA, 2013). Os lotes, com dimensões de 5mx25m em sua maioria, são completamente ocupados ou impermeabilizados na maior parte dos casos (imagens 7 e 8). Apesar de haver alguns pequenos jardins na frente ou fundo do lote (imagem 12), percebe-se uma alta taxa de ocupação. Este fato aliado à declividade natural da área em questão e o desmatamento para construção das moradias implica em sérios problemas de drenagem da água de chuva e estabilidade do solo. (1) Ferrara (2013) informa em sua pesquisa que, contrariamente ao que se pensa como principal forma de organização para construção em bairros periféricos - mutirão dos próprios moradores - nesses loteamentos, 55% das moradias foram construídas através da contratação de mão de obra, contra apenas 7% de mutirão.
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fotos: Situação atual do baixo alvarenga Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Com o aumento da quantidade de famílias havia a necessidade de se criar um lugar mais adequado para a moradia. Porém, diante da total inexistência de qualquer infraestrutura no local e do abandono pelo poder público local, o processo de construção do espaço estendeu-se da autoconstrução para a autoprovisão de infraestrutura. Apesar das restrições legais quanto à instalação das redes de serviços, por se tratar de uma área de manancial, houve uma mobilização interna para construir os sistemas de água e esgoto. Ou seja, transferiu-se para o morador os custos que deveriam ser arcados pelo loteador e posteriormente pelo poder público. Por meio de ações locais e particulares os moradores se colocaram a disposição para tratar de uma questão que deveria ser pensada sistematicamente, afinal o fornecimento das redes públicas de serviços é atribuição do poder público. E, apesar da autoprovisão da infraestrutura local não ser uma solução definitiva, foi o único caminho encontrado
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para a melhoria da qualidade de vida dos moradores. Ela é, antes de tudo, um reflexo da incapacidade do poder público em atuar em ambientes mais precários, principalmente quando tratamos de áreas de fragilidade ambiental, como é o caso dos mananciais. Esta autoprovisão, como prática que levou a consolidação da região, ocorreu em três momentos com escalas diferentes. Primeiramente como autoprovisão no espaço particular, misturando-se à autoconstrução da moradia (poço, fossa, despejo de águas servidas) e, posteriormente, num âmbito de necessidades coletivas e melhora do espaço habitado, onde a população articulase para a construção de canaletas de drenagem, calçadas, escadarias, praças e etc. (FERRARA, 2013). Desdobrando-se, assim, no atual momento de busca coletiva por melhorias através da organização comunitária e reivindicações.
No primeiro momento, construíram-se poços para o fornecimento de água, porém com o aumento do número de casas e fossas os moradores pararam de utilizá-los e o fornecimento passou a ser por caminhões pipas, nascentes e, posteriormente do poço coletivo construído em 1996 (FERRARA, 2013). A principal solução adotada para o esgoto foi a construção de fossas negras ou sépticas, posicionadas, como os moradores nos mostraram, na frente ou ao lado da casa. Esse tipo de solução exige uma manutenção periódica devido ao risco de vazamentos e contaminação do solo. De acordo com os alguns moradores, em chuvas muito fortes ou quando não há a devida retiradas do material, há problemas de vazamento direto para a rua. Algumas moradias próximas a córregos despejam os esgoto diretamente neles, sem qualquer tipo de tratamento.
Já as águas servidas são jogadas diretamente na rua (imagens 17 e 18), em terrenos baldios ou pequenos jardins. Podemos observar algumas soluções adotadas para evitar o contato com essas águas, onde moradores se reuniram para construir pequenas obras de escoamento, entretanto não há um modelo adotado por todos (imagens 21 à 23). A construção coletiva de pequenas praças nos terrenos baldios é, em geral, rara, porém temos lá alguns exemplos dessa iniciativa (imagens 19 e 20), mostrando, como a autoconstrução no local superou a dimensão particular e estendeu-se às esferas publicas. O caminho do pedestre é feito, necessariamente pelo leito carroçável, pois a diversidade de soluções adotadas para afastarem-se da água que corre a céu aberto, a instalação de pequenos canteiros de drenagem e a construção individual da calçada para possibilitar o acesso dos carros, impossibilita, em diversas situações, o
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caminhar pela calçada (imagem 16). Em muitas situações, devido à falta de cuidado, ou até mesmo interesse, no momento de implantação e desenho das quadras e ruas, a conexão entre duas ruas só é possível à pé, através de caminhos de terra, escadarias escavadas na terra ou por dentro de lotes vazios (imagens 13 à 15) Podemos observar também graves problemas decorrentes da ocupação do terreno acidentado, o material resultante das movimentações de terra, feitas com grandes cortes, são despejados em qualquer lugar não ocupado, aumentando a instabilidade do terreno (imagem 24). A autoprovisão de infraestrutura, longe de ser adequada, ainda sim nos serve como prática para repensar o modo como operamos no território, como o pensamos e o construímos, trazendo consigo a possibili-
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dades de melhor adaptação do desenho ao local, principalmente quando tratamos de situações precariedade e de fragilidade ambiental (FERRARA, 2013). Hoje, os loteamentos contam com abastecimento de água encanada, rede elétrica regularizada, algumas ruas asfaltadas e coleta de lixo. Porém as melhorias foram acontecendo de forma gradativa e desigual, mediante a pressão das diferentes associações de moradores sem nunca serem pensadas de forma sistêmica. As diferentes obras que ocorreram ou ainda ocorrem no bairro são elaboradas conforme exigências e/ou problemas pontuais. A chegada da infraestrutura ocorreu, portanto, pela negociação direta entre população e prefeito ou empresas concessionárias de serviços (Sabesp, Eletropaulo), sem seguir aos trâmites formais estabelecidos pela legislação ambiental (FERRARA, 2013).
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fotos: Situação atual do baixo alvarenga Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Passaremos agora para a análise do processo realizado pelo LabHab em conjunto com os moradores do baixo Alvarenga, buscando verificar como ou se os princípios de abordagem propostos no caderno 1 ocorreram. Tomaremos como parâmetro os princípios relativos ao processo, para que, à partir deles, possamos entender tanto questões pertinentes ao processo como à atuação dos profissionais envolvidos. E, por entender que alguns desses princípios naõ indissociáveis entre si, analisaremos alguns deles em conjunto, deste modo, conseguiremos compreender de forma mais complexa e sistêmica as potencialidades e fragilidades do processo.
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• Inicia-se na problematização da realidade feita em conjunto:
• inicia-se com um programa em aberto, • é um espaço de livre participação e • busca, através do diálogo, criar um conhecimento calcado na realidade.
• Não apresenta necessariamente um produto acabado: • o objetivo final é determinado coletivamente;
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Como já foi mencionado, a pesquisa que estamos desenvolvendo no momento está direcionada ao estudo de técnicas compensatórias em drenagem urbana, ela apresenta uma temática pré-determinada que visa obter um produto específico, a construção e avaliação dessas técnicas. Essa limitação é devido ao próprio contexto em que a pesquisa se insere, de financiamento da FINEP numa linha de pesquisa já existente. Num primeiro momento, essa delimitação restringe o processo de discussão dos problemas do bairro, já que, junto ao tema dado, há também uma “imposição” em relação ao tempo. Porém, como vimos na trajetória do trabalho, o projeto de pesquisa foi resultado de um processo que já vinha acontecendo há algum tempo, onde houve um direcionamento à compreensão da situação do bairro como um todo, buscando-se conhecer não apenas questões relativas à drenagem das águas, mas todas as
relacionadas ao ‘habitat’ de um modo mais geral, ou seja, da moradia ao ambiente, considerando a infraestrutura dentro de um sistema mais amplo. Assim, no começo do processo houve uma movimentação envolvendo não só os professores e pesquisadores como também os moradores no sentido de entender o bairro, suas características morfológicas e sociais, numa investigação sobre os problemas, qualidades e potencialidades da região, observando ainda as questões com a prefeitura, as tensões relacionadas com o direito à moradia e a preservação do meio ambiente, o processo histórico de formação do bairro etc. O pensar um projeto para o bairro, envolvendo discussões sobre a técnica, o desenho e a execução das técnicas alternativas de drenagem em conjunto com os moradores, iniciou-se nas pesquisas de 2002( ¹ ) numa
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discussão mais ampla sobre a questões citadas. Após um longo período de diálogo, dentro das pesquisas de Luciana Ferrara (FERRERA, 2013), que preocupavam em evidenciar as experiências e depoimentos dos moradores, pudemos chegar na proposição de uma ação mais concreta. O programa de atuação e intervenção está sendo construído aos poucos, num processo que passou por diversos outros temas de diferentes escalas de abrangência. Passamos por debates sobre as principais demandas dos bairros, sobre o funcionamento do Orçamento Participativo, sobre como levar essas demandas para as reuniões com a prefeitura, sobre como funciona a Sabesp e a sua atuação na região, seus projetos ou a falta deles, suas obras inacabadas, como funciona o tratamento de esgoto, sobre os atuais planos da prefeitura, e dentro (1) Pesquisa ‘Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em Matéria Urbanística’ em conjunto com o Ministério Público e municípios da bacia da Billings, com apoio da Fapesp e coordenação da Profa. Maria Lucia Refinetti Martins.
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deles sobre a atuação da Hagaplan (empresa responsável pela selagem e projeto de urbanização dos bairros), sobre como funciona o processo de regularização dos bairros, mediante elaboração do PRIS, e muitos outros assuntos pertinentes para o melhor entendimento da situação que estamos tratando (assentamentos irregulares em área de proteção de mananciais). A diversidade de temas discutidos, reflexo da complexidade da realidade, mostra a evolução do diálogo ao longo do tempo. Por vontade e disposição dos própios envolvidos no processo, o diálogo não ficou inscrito à uma temática única e restritiva, ele permaneceu aberto às necessidades locais, discutindo-se todos os assuntos pertinentes ao tema, seja ele de caráter mais técnico, seja ele de caráter mais global.
Pude perceber que a prioridade dos arquitetos participantes (professores e pesquisadores) não era a elaboração do projeto, mas sim o entendimento da realidade e os diversos aspectos que à compõe. Pois, mesmo tendo o programa de atuação definido pela pesquisa atual - a construção dos dispositivos drenantes - houve um intenso processo de discussão que não ficou restrito ao desenho e ao projeto. Acredito que isso ocorreu pelo entendimento de que é nosso papel, como profissionais e estudantes que pensam a construção do espaço, responder aos problemas colocados da forma mais ampla e sistêmica possível.(1)
(1) Opinião do autor
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Busca-se, ao longo do processo, ouvir dos moradores sobre os problemas de diversas ordens, para em seguida púdessemos discutí-los. Percebemos que a participação da população não é só bem quista, mas fundamental para a validação do processo como um espaço amplo de debate. A intensa participação da população nos permite olhar para a situação através de diversos pontos de vista, pois entendê-la passa também por entender a própria compreensão que as pessoas têm dela. Compreender um problema envolve tanto compreender suas origens como também os diferentes efeitos que ele causa nas pessoas. Por isso tentou-se considerar o maior número de pessoas possíveis, sejam elas mais ou menos politicamente ativas, para assim identificar não apenas os problemas que elas têm em comum (vinculados aos conflitos externos), mas também suas diferenças, que, invariavelmente, acabam por gerar conflitos de
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interesses internos ao bairro. O que se pretende nessa problematização realizada coletivamente é a própria evidenciação desses conflitos, dentro de suas relações dialéticas e de jogos de interesses, para identificarmos os agentes que mais influem na produção do espaço. Não creio que dentro desse processo se deva construir uma relação maniqueísta entre o “bem” e o “mal”, mas sim desenvolver uma ideia de resistência frente ao prevalecimento dos interesses de uma minoria detentora da maior parte do capital, construíndo-se uma agenda de luta onde se tem claro contra quais forças se está realmente lutando. Ou seja, uma resistência que se dá através da insurgência da população organizada e com objetivos claros, é um movimento de reivindicação de direitos, dentro do qual o conhecimento se coloca como uma ferramenta de luta. A resistência se afirma na medida em que é um ato de ir
contra à imposições, é um posicionamento firme frente a esse embate entre forças. Nesta experiência pudemos verificar uma luta muito clara, onde a população residente de uma área de manancial, que enfrenta não só problemas referentes à assentamentos precários como também os impasses entre as questões ambientais e ocupação para moradia, reivindica melhores condições de seu ‘habitat’. Trata-se do embate entre a população, o poder público e as empresas públicas e privadas, pela instalação de infraestruturas, como saneamento básico e asfaltamento e que se desenvolve entorno da discussão da legislação (como as leis de proteção aos mananciais muito restritivas à ocupação), e dos interesses dessas grandes empresas (que acabaram transformando serviços básicos em mercadoria).
Construiu-se ao longo das pesquisas um
conhecimento sobre a realidade do bairro muito centrado na problemática da incapacidade do poder público em lidar com essas situações de conflito entre moradia e meio ambiente e no descompromisso com a melhoria do bairro após aprovação de leis que estipulam medidas e ações para situações como esta. No momento atual, o grupo da pesquisa tem um papel bem específico nesse debate, o de assessorar os moradores da região para que o processo de regularização e urbanização ocorram da melhor forma possível, com qualidade urbana e atendimento dos interesses da população. Verificamos nas áreas dos bairros que muitas obras de drenagem, contenção e urbanização (imagens 25 à 32) estão sendo feitas de modo disperso e com baixíssima qualidade. Não houve preocupação em se constituir um plano mais geral, as diversas obras realizadas não partiram de um olhar sistêmico do lugar.
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Sarjeta r. Bertioga, r. Santana e r. Bela Vista joga a poluição difusa diretamente na represa
Escadão de drenagem Intervenção Pontual levando as águas da r. Boa Vista até a r. Bela Vista fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Muro rua sem saída Construção de muros em ruas sem saída para que a população não jogue lixo nas áreas verdes
Sarjeta r. Ayrton Senna joga a poluição difusa diretamente na represa
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Muro de arrimo da R. Boa Vista A construção do muro afetou a casa de u’ma moradora
Rua asfaltada sem guia e sarjeta Retirada do asfalto pelas águas da chuva e vegetação
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Muro de arrimo Construção de obras de contenção sem considerar a qualidade dos espaços
Muro de arrimo entre r. Santana e r. Ayrton Senna Construção do muro sem ligações entre as ruas
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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A elaboração do plano de urbanização da região, o Plano do Alvarenguinha, está sendo feito por uma empresa contratada pela prefeitura, a HagaPlan, porém, tendo em vista a condição das obras realizadas e em andamento no bairro, os moradores querem que o grupo da pesquisa elabore uma proposta em forma de plano alternativo para que possam ter uma referência de um projeto com maior qualidade. Desse modo é essencial que o projeto seja desenvolvido em colaboração com os moradores, para que de fato seja uma resposta efetiva aos problemas enfrentados pelos moradores e, principalmente, para que eles possam se apropriar do conhecimento gerado no processo. Neste sentido, a discussão não se restringe ao problema e ao projeto, ela avança sobre as questões técnicas e o desenho. À partir de uma compreensão muito ligada às discussões de Sergio Ferro de que técnica envolve tam-
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bém uma posição ideológica, e que o desenho, enquanto técnica e instrumento do fazer, também não é isento, consideramos que ao optarmos por uma técnica, ou um procedimento, ou uma metodologia, estamos também, assumindo um posicionamento político-social. Poderíamos nos estender aqui sobre uma discussão muito presente no campo da arquitetura, acerca da neutralidade da técnica, porém entendendo as limitações do presente trabalho e a extensão e o acalorado debate que o assunto apresenta, não nos cabe aqui tal discussão. Porém, a expressão da opinião do grupo da pesquisa sobre o tema é essencial para o entendimento da visão que se pretende do processo participativo. Assim, à partir desse posicionamente sobre a técnica, buscamos, através da discussão e elaboração coletiva do desenho e do projeto, promover o acesso ao que é, atualmente, um instrumento restrito a
um pequeno grupo(1). Entendemos aqui o acesso ao conhecimento técnico dentro de uma perspectiva de emancipação. Nesse ato de desenhar coletivamente há uma abertura para se conhecer o próprio desenho - tanto enquanto técnica quanto em seus desdobramentos ideológicos - entendendo não só suas possibilidades e potencialidades como limitações. Desse modo, propôs-se oficinas de ideias (imagem 33) para discussão do ambiente construído, das dificuldades e dos problemas ambientais enfrentados no cotidiano, onde também foi apresentado um conjunto de referências de modelos de drenagem, agrupadas por temas (várzea, praça/arrimo, vale, escadaria/rua/calçada, pavimentação, nascente/curso d'água, lote, manancial de ideias, contra exemplos) para embasar a formulação de um mapa que identifica-se possíveis pontos de intervenção. Após isso foram criados grupos a fim de desenvolver
Imagem 33 Oficina de ideias Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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estudos relacionados aos diversos pontos definidos no mapa (mapa 2), aos temas elencados e às técnicas. O que se pretendeu nesse momento foi um intercâmbio de conhecimentos - entre o conhecimento adquirido na universidade e aquele adquirido através da vivência da realidade local - para favorecer não só da elaboração do projeto, como também a própria formação das pessoas. Buscou-se também pensar em conjunto a possibilidade de aplicação de certas soluções nas diversas situações que se sucedem na região, passando por um crivo técnico e também de gosto e opiniões particulares. Porém esse espaço de pesquisa não demonstrou avanço quanto à uma produção mais coletiva, não havendo retomada do mesmo em qualquer outro momento, apesar do debate em torno do projeto continuar. Neste episódio pareceu-me haver uma postura passiva da população sobre a questão, esperando que o grupo realizasse as
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pesquisas relacionadas às questões mais teóricas e depois apresentasse já na forma de um projeto mais ou menos acabado, voltarei a falar mais sobre isso adiante. Houve também pouca, ou quase nenhuma, ação por nossa parte para retomar essa discussão técnica de forma mais coletiva, tanto por nossa falta de organização da agenda de trabalho quanto por motivos comentados à seguir. Nas discussão sobre a situação da região surgiu uma questão que à princípio não havíamos imaginado em tratar, mas que, por própria sugestão e vontade dos moradores, acabamos nos envolvendo. Dentro da escola em que realizávamos as reuniões - escola Estadual Domingos Peixoto - havia um projeto em andamento que buscava tratar das questões ambientais locais - "Projeto (1) De acordo com os Resultados Gerais da Amostra do Censo 2010, do IBGE, a população com mais de 10 anos de idade com pelo menos o curso superior completo é de 7,9%.
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1 - Rua do Bosque
Nascente
2 - Chegada das águas de chuva
Praça de lazer e caminhada
3 - Encontro da r. Araguassu com r. Piraporinha 4 - Córrego 5 - Vale 6 - R. Paineira com Est. dos Alvarengas
Esgoto
7 - Casa em situação de risco 8 - Chegada das águas da chuva
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Praça de lazer e contemplação Muros e escadão
10 - R. da Evolução 11 - R. Bertioga e Ayrton Senna
Praça em patamares
12 - Jardim Cruzeiro do Sul
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Mapa 2 Possíveis pontos de intervenção Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
Manancial de Ideias". Surgiu, então, a possibilidade de nos aproximarmos dessas discussão e colocarmos nossos conhecimentos sobre o tema à disposição do projeto. Em discussões com alunos e professores, elaboramos uma agenda de atividades que envolvia desde a construção de um sistema de captação de águas pluviais até a organização do "Dia do Manancial".
Escola Domingos Peixoto A ideia de produzirmos algo com a escola Domingos Peixoto consolidou-se à devido às circunstâncias do momento que atravessávamos e oportunidade de abertura da nossa “roda de diálogo” aos alunos e professores. Consideramos que a construção de algum pequeno projeto poderia aumentar a participação das pessoas, uma vez que se constataria a realização de algo que foi produzido coletivamente. 44
Foi pensado também como um exercício menor de produção coletiva, uma espécie de “laboratório” (sem a ideia de controle inerente ao termo) para a posterior construção das obras de maior porte nos loteamentos os dispositivos drenantes. O exercício de planejamento, projeto e construção realizado coletivamente, seria também um exercício para nos conhecermos melhor e entendermos a dinâmica de trabalho em conjunto de forma mais próxima. Estabeleceu-se alguns possíveis campos de ação na escola (imagem 34) e, à partir deles, desenvolvemos a idéia de construir um sistema de captação de água pluvial numa área externa abandonada da escola pensando uma futura reapropriação deste espaço (imagem 35). Ao buscarmos o auxílio de profissionais mais ligados a prática, conhecemos o professor Sérgio Molina da EMEP Madre Celina Polci, em São Bernardo
Campo, que nos contou sobre suas experiências na área de construção (1) e sobre como colocou um sistema de captação em sua casa (imagem 36). Eraldo, morador do bairro Alvarenga, comentou sobre a importância da participação de profissionais como Molina no processo, ressaltando a necessidade de aproximação entre profissionais ligado à academia da população residente des bairros mais carentes contando sempre com o conhecimento de profissionais que o construíram nesses ambientes. Ainda acerca do conhecimento, Aline, professora da escola Domingos Peixoto, salientou a necessidade de participação da comunidade, tanto nas atividades na escola, como nas do bairro, para que o conhecimento gerado nesses espaços não se perca e para que haja legitimação e valorização daquilo que for construído. Disse também que a apropriação de algo começa quando o pensamos e planejamos.
Dentro dessa aproximação com os alunos da escola surgiu a oportunidade de concedermos bolsas de pré-iniciação científica para os alunos mais envolvidos no projeto. O que funciona como um meio de aproximação entre e a população jovem residente de áreas mais carentes e a universidade. Atualmente os resultados das pesquisas acadêmicas ficam muito restritos à própria instituição que os produz, pela falta de uma ampla divulgação e disseminação do conhecimento dificilmente há um retorno real para a sociedade. Considera-se também que, através da oportunidade de inserção no processo de pensar o bairro, busca-se despertar um pensamento crítico-propositivo dos próprios processo de construção do ambiente. (1) Molina disse que iniciou na profissionão de pedreiro aos 16 anos de idade. Hoje em dia ele cursa o Ensino Superior em Pedagogia e dá aulas na Escola Municipal de Ensino Profissionalizante Madre Celina
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Imagem 34 Ideias para a escola fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
Essa etapa de atuação mais centrada na escola durou dois meses, e à partir do momento em que decidimos intervir no espaço da escola, nossas reuniões foram mais voltadas para a resolução dessa intervenção. Após a construção do sistema (imagens 37 à 45) continuou-se as ações na escola de forma mais isolada do processo que envolve os loteamentos, com o intuito de realizar o ‘Dia
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do Manancial’. Neste dia foram realizadas diversas atividade que buscaram colocar todos os alunos da escola dentro da discussão dos problemas ambientais enfrentados pelo bairro (imagens 46 à 57).
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fotos: construção na escola Domingos Peixoto Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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Atividades relacionadas ao uso da água - Explicação do sistema por uma aluna do programa de pré-iniciação científica e montagem de filtros com garrafas PET Fonte das imagens: LabHab da FAU-USP, 2014
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Atividade de plantio - Plantio de 40 mudas de árvores frutíferas nativas com os alunos da escola Fonte das imagens: LabHab da FAU-USP, 2014
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Atividade de ‘Silk’ - Explicação utilização da técnica de serigrafia. Os alunos podiam levar para suas casas o material produzido.
Pintura do muro - Os alunos marcaram suas mãos no muro como símbolo do trabalho coletivo para a revitalização do espaço antes abandonado
Fonte das imagens: LabHab da FAU-USP, 2014
Fonte das imagens: LabHab da FAU-USP, 2014
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Nesta incorporação da escola no processo, somou-se os alunos e professores da escola nas discussões das questões ambientais e urbanas do bairro, possibilitando uma perspectiva de atuação mais ampla. Com o aumento do alcance dos assuntos discutidos, agregamos ao debate não só diferentes agentes como também uma nova visão da realidade, a dos jovens em formação. Podemos, então, compreender melhor as potencialidades de uma debate que se dispõe aberto, pois deste “desvio”, abriu-se um espaço de debate que se estendeu dos problemas específicos do loteamento à escola. Ao proporcionarmos um espaço que busca somar a maior quantidade possível de agentes, prioriza-se a construção de uma visão ampla da realidade, que parte da sua compreensão como um sistema complexo e multidisciplinar. Portanto, nos distanciamos de visões e interpretações parciais sobre esta realidade.
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Retomada das Atividades no baixo Alvarenga
No segundo semestre de 2014, por questões mais internas da USP, houve uma paralisação das atividades no bairro e chegamos a ficar dois meses sem nos reunirmos com os moradores. Apesar de continuarmos nos reunindo na FAU, houve um distanciamento com os moradores, que pudemos perceber no momento de retomada das atividades nos bairros. À partir dessa retomada, as reuniãos passaram a focar a elaboração do projeto para os bairros, tendo em vista que já havíamos acumulado um conjunto considerável de informações e conhecimento sobre a região, e, considerando a questão do tempo. A análise dessa parte do processo enquadra-se mais nos princíos de abordagem que comentaremos adiante.
• Busca dados por meios qualitativos: • não dá ênfase exagerada aos dados quantitativos e estatísticos, • busca através do diálogo conhecer o local e a população.
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Mesmo que esse princípio seja indissociável do processo de problematização em conjunto tratado anteriormente, ele merece destaque como metodologia de análise dessa realidade complexa que se coloca diante de nós. Esta metodologia participativa de investigação não se limita a instrumentos e análises científicas, mas refere-se ao modo como enfocamos os problemas e a maneira pela qual buscam os suas respostas, é, portanto, um “método de leitura de mundo”. Desde o início do trabalho nos bairros(1) foi dada prioridade ao diálogo como principal meio de se conhecer o local, a delineação da história dos bairros, desde quando foram loteados até o atual momento, ocorreu à partir dos diversos depoimentos dos moradores. A construção desse conhecimento sobre a região aconteceu, então, da compilação das diversas informações extraídas dos diferentes agentes que atuaram, e que
ainda atuam na construção do bairro. Esse modo de reconstituição dos processos e acontecimentos que ocorreram nos bairros visa a documentação histórica de um modo não enviesado. Com a preocupação em entender as diversas razões que levaram à formação do bairro e também o papel dos próprios moradores nesse processo, não se separou o momento de se conhecer a história do bairro e de se conhecer a população que nele reside. A construção dessa história foi utilizada como um meio de se conhecer as pessoas envolvidas nela, assim como utilizou-se das pessoas e suas histórias e interpretações particulares para se construir a história do bairro.
(1) Pesquisa ‘Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em Matéria Urbanística’ em conjunto com o Ministério Público e municípios da bacia da Billings, com apoio da Fapesp e coordenação da Profa. Maria Lucia Refinetti Martins, 2002.
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No processo de identificação dos problemas do local, utilizou-se um método conhecido como “mapeamento participativo”, no qual ocorre a elaboração de cartografias coletivamente (mapa 3 e 4). Através da experiência do cotidiano daqueles que vivem no bairro, busca-se construir coletivamente uma base de dados palpável sobre local, que representa de forma clara e direta as impressões e conhecimentos acerca dessas experiências do dia a dia. Conduzida de forma não impositiva, a criação dessa cartografia produz um diagnóstico das próprias pessoas sobre o local em que elas mesmas vivem, assim como é um reflexo de como as pessoas se articulam e relacionam com aspectos da ocupação urbana com as características da área em questão, a região de mananciais. (FERRARA, 2013) Um aspecto de grande relevância é a possibilidade de construção de relações mais humanas entre as
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pessoas, desconstruindo-se a relação objetiva e distante que se estabelece entre objeto a ser estudado e pesquisador. Pode-se dizer, então, que o produto desse processo não foi apenas um objeto - os mapas produzidos. Esse envolvimento da população na criação de mapas do ambiente em que reside faz parte também de um processo de qualificação e politização da própria pessoa, contribuindo para o entendimento do espaço urbano diante de um olhar mais sistêmico sobre o seu funcionamento. A continuidade dos diálogos que se sucederam durante este processo possibilitou um conhecimento muito mais próximo dos problemas que esta população enfrenta, pois através deles, pudemos verificar quais são assuntos de mais recorrentes, quais as maiores preocupações, identificar quais os problemas que a população mais enfatiza e quais as expectativas e vontades mais comuns. No momento em que começamos a considerar as
Mapa 3 Cartografia Comunitário Diagnóstico Fonte: Ferrara, 2013
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Mapa 4 Cartografia ComunitĂĄrio Propostas Fonte: Ferrara, 2013
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interpretações pessoais sobre o espaço em que habitam, suas possibilidade e limitações de atuação na história do lugar e na própria história, temos uma percepção muito mais profunda sobre a realidade que estamos lidando. Dessa maneira, podemos estabelecer um programa de ações condizente com a realidade, visando atender de forma mais precisa as necessidades e expectativas dos moradores. Como já foi mencionado, no caso em questão sempre houve a discussão entorno da relação entre ocupação humana e preservação do meio ambiente, mais especificamente, entre moradia e área de manancial. Ao tentarmos compreender os conflitos resultantes dessa relação através das diversas leituras particulares dos moradores sobre a situação da região, pudemos compreender outras questões que impactarão diretamente no projeto e suas diversas escalas - como por exemplo as
relações com o poder público e empresas responsáveis pelos serviços urbanos, os conflitos internos e externos, questões sobre a legislação e procedimentos burocráticos e etc. Ou seja, através dessas “investigações” em forma de diálogo identificou-se questões fundamentais para elaborarmos um projeto e plano urbanístico capaz de provocar mudanças mais profundas na realidade. Passando para a pesquisa atual, a coleta de dados tornou-se mais específica, pois já visava pensar e desenhar o projeto pretendido. Apesar de contarmos com uma base de dado como o levantamento topográfico, não nos baseamos somente nesse modelo de representação do bairro, por mais preciso que ele seja.Também tendo em vista as constantes alterações no espaço físico em assentamentos precários, seria inviável nos basearmos somente em um material produzido pontualmente num determinado tempo.
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Por meio de “expedições fotográficas” (imagens 58 à 66), das oficinas de ideias já mencionadas e diversas caminhadas pelas ruas dos bairros buscou-se identificar os pontos problema referentes à drenagem e áreas que pudessem se tornar espaços de lazer. Esse reconhecimento do bairro ocorreu em conjunto com os moradores, ouvindo e seus conhecimentos da história dos loteamentos e as suas mudanças ao longo do tempo e suas experiências cotidianas. Através dessas atividades pudemos ter acesso à algumas características e informações sobre o bairro que se perderam conforme a expansão da ocupação ou não constam nos levantamentos, já que estes são realizados de maneira distanciada e à partir da situação presente. Conseguimos informações sobre a localização e situação das nascentes dos bairros (informação essencial para podermos trabalhar a questão das águas). Há algumas
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que foram aterradas para a construção de casas ou pela movimentação de terra feita pelos moradores. Darcy, morador do bairro Parque dos Químicos, nos contou sobre quando bebia água diretamente dessas nascentes e como isso foi se perdendo ao longo do tempo. Bárbara, filha de Darci, nos contou sobre quando era mais nova e brincava em uma área de mata ainda preservada do bairro. Pudemos também conversar com as pessoas que moram perto das áreas que identificamos como mais problemáticas, para ouvir suas opiniões quanto à possíveis alterações no espaço, e também tratar à respeito de um assunto que nos atinge diretamente, o problema da propriedade das terras, que apesar de estarmos trabalhando em uma área não regularizada, essa questão é motivo para muitos conflitos.
(1) O já comentado mapa de identificação de possíveis pontos de intervenção (mapa 2, pág 41) foi resultado dessas atividades coletivas
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Acredito que essa busca por dados mais qualitativos e menos quantitativos é essencial para um processo que se propõe transformador da realidade. A realização de projetos, principalmente em áreas mais precárias, pode esbarrar em diversas questões que ultrapassam decisões projetuais. Além disso, um processo que permite a livre participação e valoriza a opinião da população “afetada” pelo projeto respeita o processo histórico do lugar e também seu valor simbólico. O processo torna-se um meio de valorização dessa história reforçando sua importância na construção de uma memória do lugar.(1)
(1) Opinião do autor
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• Não se estabelece hierarquias: • de cargos e posições, • sobre os diversos tipo de conhecimento;
• Busca ser legitimado pela população: • devem estar claras todas as decisões, • não deve haver imposições, • exige comprometimento;
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Pode-se dizer que o processo participativo é um movimento de aproximação entre todos os agentes que atuam na construção do espaço, para pensá-lo e elaborálo coletivamente. Porém, a participação real só ocorre quando há a legitimação do processo enquanto espaço totalmente aberto ao diálogo. Para que tal abertura se consolide, ou seja, para que a livre participação de fato aconteça, não podemos admitir relações de superioridade entre os diferentes tipos de saber e conhecimento. Hierarquizá-los dentro desse espaço é um movimento que iria contra à proposta considerada, à medida que colabora para a transformação do espaço do diálogo em espaço da imposição e da legitimação de interesses restritos e decisões pré-estabelecidas. Como nossas ações atuais são resultado de um processo mais abrangente que ocorre no bairro desde 2002, esse processo de legitimação está ocorrendo
ao longo de toda essa trajetória. Ela é resultado da constatação, por parte dos moradores, da nossa vontade em trabalhar para mudanças reais, não só no exercício restrito à nossa profissão, mas principalmente através da ação em conjunto, onde colocamos nossos conhecimentos à serviço dessa população. Portanto, a confiança dos moradores foi adquirida aos poucos, gradativamente, num trabalho contínuo e na disposição em ouvir o que eles tinham à dizer sobre seu ambiente de morar e suas histórias. Um dado fundamental para verificarmos a “efetividade” do processo participativo é próprio posicionamento da população nos espaços de diálogo, ou seja, se ela participa ou não e a forma como participa. É vital para o processo que a participação ocorra de forma aberta e desimpedida, não havendo medo, receio ou obstáculos para expressão das opiniões pessoais,
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das vontades e expectativas individuais e coletivas e da própria avaliação do processo. Portanto, esta ‘liberdade’ é exercida de forma gradual e progressiva, a legitimidade e participação de um processo participativo são aspectos construídos ao longo do tempo e não condições que já nascem com ele. Este sentimento de confiança por parte dos moradores é notável, não se nota qualquer atitude que revelasse uma desconfiança em relação ao trabalho do grupo da pesquisa durante as reuniões e atividades realizadas. A participação dos moradores durante as reuniões ocorre de modo natural, não havendo qualquer restrição ou receio ao expressar a opinião, independente do nível de instrução, idade ou opinião política. Nesse exercício pude observar também a preocupação em se desvencilhar de argumentos que pudes-
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sem impôr um tipo de conhecimento ao outro. Buscouse o conhecimento de cada um através de um diálogo feito da forma mais horizontal possível, discutindo e valorizando as ideias, opiniões e propostas dos moradores. A possibilidade de realizarmos um diálogo mais horizontal foi tanto resultado do processo de legitimação do espaço, como parte desse processo. Percebe-se essa construção gradual e constante da legitimidade do espaço do diálogo. Como já estava estabelecido o objeto final de nossa atuação nos bairros em função do tema da pesquisa, a exposição das limitações, tanto em relação ao projeto como à atuação do grupo da pesquisa no bairro, de forma aberta e claro era também uma condição essencial para que pudéssemos ter um diálogo mais verdadeiro. Nas reuniões procuramos deixar claro quais os limites do nosso trabalho dentro dessa pesquisa mais voltada à
estudos técnicos. A atuação parte de uma proposta mais fechada e específica, na qual deveríamos usar os recursos disponíveis para estudar as técnicas alternativa de drenagem. Se nas pesquisas anteriores houve uma preocupação mais voltada ao cenário político-social e às questões históricas, ou seja, ao entendimento da história do lugar, neste momento nos voltamos para a elaboração de uma proposta para responder aos problemas identificados. Porém, mesmo com esse tema mais restritivo de trabalho, ampliamos um pouco o alcance de nossas ações, como já foi dito anteriormente, quando discutimos questões mais políticas e estruturais presentes no cotidiano dos bairro e quando fomos para a escola e entramos em contato com os projetos que estavam acontecendo nela. Por questões de metodologia de trabalho do
próprio LabHab da FAU-USP, a pesquisa teve um enfoque distinto do proposto pelo orgão patrocinador. O objetivo inicial da pesquisa refere-se mais ao campo da engenharia, pois busca obter dados técnicos e precisos através de experimentos controlados. Porém para o grupo da pesquisas, esta só tinha sentido na medida em que se faz aplicada à uma realidade - no caso, de um assentamento precário em área de manancial. Assim, se em sua proposta inicial a pesquisa buscava experimentos que pudessem produzir resultados objetivos ligado ao campo teórico do conhecimento, com a proposta de trabalho do LabHab, ela tomou a forma de um trabalho voltado ao atendimento das necessidades de uma realidade específica e que busca entender como as técnicas estudadas podem melhorar a qualidade do ambiente construído e a própria percepção do espaço pelos moradores. A pesquisa ganha um viés mais político-social, pois passa a subsidiar a atuação dentro de um assentamento precário
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que visa instrumentalizar a população em sua luta diária por melhorias de seu ‘habitat’, através do intercâmbio de conhecimentos. E quando nos dirigimos para a escola, o fizemos a pedido dos moradores, pois enxergavam nessa conexão a possibilidade de ampliação do alcance dos debates realizados entre os moradores do baixo alvarenga e o grupo da pesquisa. Como havia uma similaridade nos assuntos tratados no processo e na escola, achavam também incoerente que essas duas frentes de trabalho permanecessem distante uma da outra. Houve, então, um grande esforço para realizarmos atividades antes não programadas, como a construção do sistema de captação de águas pluviais, o “Dia do Manancial” e os grupos de estudos realizados na escola aos sábados, que surgiu de uma iniciativa da professora Aline Penha da Escola Domingos Peixoto e da aluna e pesquisadora Giulia
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Patitucci e visava criar um espaço de auxílio aos alunos da escola que queriam prestar vestibular.
Pude verificar durante o processo um comprometimento em fazer do conhecimento gerado dentro de um espaço de acesso restrito, a Universidade pública (por mais contraditório que isso seja), um instrumento de luta para os moradores dos bairros em questão. Se atualmente o conhecimento advindo desses espaços age mais como um instrumento de manipulação e dominação, acredito ser papel da universidade pública (por não estar vinculada diretamente à empresas e interesses econômicos) trabalhar para a retomada da ‘função social’ do conhecimento. Como instituição financiada pelo capital público ela deve estimular iniciativas que procuram trabalhar questões ligadas ao conhecimentos, visando não apenas sua produção como a promoção do acesso à ele.(1) (1) Opinião do autor
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• Apresenta avanços e retrocessos: • não apresenta necessariamente um consentimento geral e • é vulnerável à fatores externos e internos;
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Em sua pesquisa, Luciana Ferrara (FERRARA, 2013) traz um dado muito interessante e importante para entendermos alguns aspectos sobre a questão dos retrocessos que podem ocorrer ao longo do trabalho. Analisando-o, podemos pensar como alguns fatores podem influenciar no andamento e resultado do processo. Durante o processo de mapeamento coletivo além da construção de um diagnóstico sobre o bairro, houve também a elaboração de algumas diretrizes e propostas de intervenção para se utilizar como base, caso houvesse a realização de um projeto para a área. Essa cartografia, além de fazer parte do processo de conhecer e pensar o espaço, funcionava também como um instrumento de diálogo com os poderes públicos, uma vez que estavam contidas algumas reivindicações dos moradores.
Porém, com algumas alterações no cenário político de São Bernardo do Campo e entrada do prefeito Luis Marinho (PT), os caminhos de diálogo entre prefeitura e população se alteraram. O Orçamento Participativo passou a ser o meio pelo qual a população levaria suas demandas a prefeitura. Os TAC’s deixaram de ser foco dessa nova gestão do município. Não cabe nesse trabalho discutirmos esse instrumento de planejamento e seus aspectos político-sociais, mas sim analisarmos como se deram as ações dos moradores e dos profissionais diante desse novo instrumento e algumas considerações sobre organização comunitária. Importante ressaltar que, por priorizar o atendimento de interesses mais coletivos, a organização dos moradores é essencial para que eles possam levar suas demandas ao OP. Porém, pelo o que Luciana Ferrara relata (FERRARA, 2013), não houve comunicação entre as diversas
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associações de moradores ao se criarem as demandas dos bairros para o OP, o que acabou enfraquecendo as reivindicações. Esse desarticulação parece ter ocorrido devido à divergências pessoais e político-partidárias entre os próprios moradores e representantes das associações. Dentro desse cenário, o estudo resultante dos mapeamentos comunitários e dos projetos da ONG Holos21 - Estudo de Recuperação Urbana e Ambiental do baixo Alvarenga - não foram levados pelas associações ao primeiro ciclo do OP. Constatou-se que as experiências de discussão, mapeamento e elaboração coletivas não foram suficientes para superar esses conflitos internos dos loteamentos, mesmo após um longo processo de trabalho em conjunto com os moradores dos diferentes loteamentos que compõe o bairro. A expectativa de que esta forma coletiva de atuação continuasse de modo independente
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aos trabalhos da pesquisa não se concretizou, resultando no abandono deste material que poderia constituirse como uma ferramenta de uma reivindicação mais instrumentalizada. Apesar de não irmos à fundo no entendimento dos porquês dessas divergências serem tão acentuadas dentro deste ambiente, percebe-se claramente que devemos levá-las em consideração nos momentos do debate, uma vez que se conformam como expressão dos moradores e também como barreiras para uma atuação em conjunto (FERRARA, 2013).
Parece-me quase que impossível haver um consenso geral quanto às opiniões, pensamentos e propostas, mesmo dentro de um ambiente com problemas tão evidentes. Apesar dos moradores do baixo Alvarenga enfrentarem adversidades muito peculiares ao seu contexto, suas atitudes frente à elas são distintas, cada pessoa possui modos distintos de encarar esses problemas, assim como diferentes afinidades ideológicas. Acredito que este seja um dado importantíssimo quando pensamos e elaboramos uma agenda de luta com a população, admitir a existência de um conflito tão acirrado como este é também uma estratégia para o planejamento, uma vez que conflito internos também fazem parte do espaço do diálogo.(1) (1) Opinião do autor
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Na fase atual da pesquisa podemos perceber algumas fragilidades do processo participativo, sendo a principal delas a própria questão da participação. Nas primeiras reuniões, em 2013, as discussões estavam mais voltadas para as questões diretamente ligadas ao projeto. Discutindo-se sobre drenagem urbana e as técnicas alternativas, sobre a geografia dos bairros e sua configuração espacial (foi realizada a primeira expedição fotográfica pelos bairros), sobre o uso da rua e sobre infraestrutura urbana. Aqui havia uma grande participação dos moradores, onde não só os representantes de cada associação estavam presentes nas reuniões. No ano de 2014, nas primeiras reuniões, o foco das atividades ainda estava nos assuntos diretamente ligados ao projeto (foi realizada a segunda expedição pelos bairros e as oficinas de ideias) e a participação, ape-
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sar de diminuir com a virada do ano, ainda era expressiva. Nesse momento alguns outros assuntos de caráter mais político, porém também pertinentes ao projeto, passaram a tomar o foco das discussões. Entramos no debate sobre o atual processo de regularização que a região está passando, para pensarmos em como atuar dentro desse processo à partir do nosso tema da pesquisa. Tratamos de questões mais burocráticas, inclusive sobre o OP, tentando auxiliá-los nos procedimentos para levar as demandas dos bairros para as reuniões, tendo em vista que, como dito anteriormente, no primeiro ciclo de reuniões do OP não houve uma unidade nas reivindicações de cada bairro. Foi quando houve uma perceptível redução da participação dos moradores, chegando a ter reuniões em que somente os representantes de algumas associações estavam presentes.
Acredito que a participação voluntária é essencial para a própria legitimidade do processo e por assim ser, dependemos do interesse e vontade das pessoas em participar desse processo. Um processo participativo de projeto, por pretender debater questões que extrapolam o desenho e assuntos que mais diretamente ligados à ele, torna-se muito mais longo, inconstante e exaustivo. Apresenta, portanto, uma clara dependência a um comprometimento mais duradouro das pessoas. Assim, temos que tentar entender os porquês das pessoas não participarem para que se pensar estratégias para aumentar o interesse delas em participar desse diálogo.(1)
(1) Opinião do autor
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É possível elencar algumas razões para a falta de participação da população no processo, indo desde problemas resultantes de questões mais estruturais à aqueles ligados ao próprio processo. Alguns de caráter estrutural e muito perceptíveis são os advindos do modo como ocorreu a ocupação do espaço urbano e da situação econômica. Dentro desses temos o problema da mobilidade urbana, exigindo longos períodos de deslocamento dos trabalhadores e do emprego informal, onde muitos têm longas jornadas de trabalho. A luta do dia a dia dessa população é uma impeditivo para a luta pela melhoria do seu dia a dia (MARICATO, 1996). Como podemos, então, exigir que essas pessoas participem assiduamente das reuniões, e como fazemos para que os interesses de todos sejam representados dentro do processo? Acredito que só é possível a resolução dessas questões através de um longo processo de diálogo e de um envolvimento mais geral das diversas
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classes da população nesse constante luta pela melhoria da nossa realidade. Quanto aos problemas do processo, por pretender uma discussão mais ampla sobre diversos assuntos e entrar em intensas discussões políticas, a concretização das propostas feitas ao longo dele pode levar um longo tempo. É, portanto, cansativo e demorado e, por assim ser, há a possibilidade de gerar desinteresse e descrédito nas pessoas sobre o mesmo. Os trabalhos na escola Domingos Peixoto além de fazerem parte da abertura do diálogo às necessidades e exigências dos moradores, são parte de uma estratégia para chamar as pessoas para participarem do processo. Pensamos em obras mais simples e rápida de ser executada para que o sentimento se haver concretizado algo pudesse despertar o interesse das pessoas.
Porém, com as discussões mais voltadas à escola, alguns moradores que ainda participavam passaram a não estar mais presentes nas reuniões. Além disso, com a falta de interesse e pró-atividade de grande parte dos professores, a falta de divulgação das nossas ações e nossa impossibilidade em estar mais presente na escola durante a semana, a tentativa de aumentar a participação no processo não correspondeu às expectativas. Durante as obras de construção do sistema de captação de águas pluviais na escola, tivemos umas reunião para discutir a validade daquilo que estávamos executando. Apesar de incluirmos alguns alunos e professores nas discussões, não estava acontecendo a mobilização esperada dos membros da escola e dos moradores dos bairros. Nessa reunião, Eraldo, morador da região, comentou:
“..estamos produzindo conhecimento, e quando produzimos esse conhecimento mais responsável, isso leva tempo, não estamos construindo obra, e quando construímos é encima de um conhecimento produzido pela gente mesmo, não estamos perdendo tempo, a gente quer fazer alguma coisa, realizar, mas precisamos fazer do jeito certo” (1) Eraldo colocou um entendimento muito complexo sobre o processo, compreendendo que aquilo que estávamos fazendo - de uma escala menor - faz parte de um processo que engloba outras escalas de atuação. Por se tratar em longo processo que visa realizações coletivas, e por isso depende da participação das pessoas, as dificuldades e retrocessos fazem parte desse caminho que valoriza não só o produto como também os meios e modos como são produzidos. (1) Informação verbal retirada da reunião realizada na EE Domingos Peixoto, no dia 21/06/2014.
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Admito que fiquei muito surpreso com esta fala de Eraldo, e que, num primeiro momento tentei compreender o próprio processo sob esse olhar. Porém, depois de um tempo comecei a tentar estender os motivos pelos quais eu não esperava ouvir um pensamento como este de um morador e como isso impacta no meu exercício da profissão e até mesmo em minha vida. Percebi que existe um preconceito quanto ao conhecimento e capacidade de pessoas que vivem em situações como a que estamos lidando, e que por mais indesejável que ele seja, ainda está muito presente no meu modo de pensar e até mesmo dialogar, e por isso essa surpresa quanto aos conhecimentos dos outros se repetiu diversas vezes. Acredito que somente através dessa aproximação com as pessoas, de considerá-las como atores da um processo que busca mudar essa realidade, podemos nos livrar desses preconceitos.(1) (1) Opinião do autor
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Nos últimos dois meses (anteriores ao término deste trabalho) continuamos enfrentando alguns problemas de participação dos moradores, havia um nítida desmobilização dos moradores. Organizamos visitas aos bairros ecológicos de São Bernardo do Campo - Parque Andreense, João de Barro e Jardim Senhor do Bonfim - e outras duas ‘expedições fotográficas pelos bairros do baixo Alvarenga esperando maior presença dos moradores, já que se tratava de uma atividade sem discussões políticas e diretamente ligada ao projeto. Porém, mesmo na reunião em que apresentamos os resultados das visitas, algumas referências de projetos e alguns pontos para essas intervenções no bairro (imagem 67) haviam pouquíssimos moradores (apenas Gustavo, Darcy - representantes de duas associações dos bairros - e os alunos da pré-iniciação.) À partir desse ponto, começamos a pensar uma
outra estratégia, onde pesquisaríamos sobre as técnicas alternativas e elaboraríamos um pequeno projeto, composto mais de diretrizes, modelos de intervenções e desenhos esquemáticos do que de conceito técnicos e propostas detalhadas. Com esse material passaríamos a divulgar mais as reuniões e chamar os moradores, principalmente aqueles diretamente “afetados” pelas propostas, para que se pudesse discutir o projeto já sobre uma base mais ou menos desenhada. Apesar de desenhar de forma menos coletiva, ainda buscaremos apresentar todas as variáveis sobre a técnica que estamos tratando, visando garantir o pleno funcionamento do que foi construído coletivamente. Essa questão faz parte também do processo como um todo, já que toda proposta de alteração gera expectativas. Se o sistema que planejamos não funcionar do modo esperado corremos o risco de perder a confiança dos moradores, num sensação de “trabalho em vão”. 77
Acredito ser essencial para a manutenção do interesse e da participação das pessoas, trabalhar para essas expectativas sejam atendidas dentro de um processo que exige tanto esforço e comprometimento. O surgimento dessas expectativas é inerente a qualquer ação que visa uma transformação, porém acredito que sempre devemos ter cuidado com elas. Elas podem trabalhar tanto à favor como contra o processo, pois, como se espera a realização daquilo que foi planejado, o não evolução do processo pode acarretar na perda de confiança no trabalho e resultar em seu abandono.(1)
(1) Opinião do autor
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Com necessidade de fechamento do presente trabalho, infelizmente não poderei contar como se desenrolou o processo à partir de dezembro de 2014 e quais foram os resultados dessa nova abordagem.
Imagem 67 Reunião Ass. Pq dos Químicos Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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• Busca a autonomia: •Busca difundir o conhecimento; •Busca desenvolver o pensamento crítico.
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Os questionamentos que me levaram a realizar este trabalho estão muito relacionados ao princípio que comentaremos adiante. Nos momentos de conversa com as famílias com que trabalhei na ONG TETO-Brasil, pude perceber alguns pensamentos muito recorrentes dos moradores, mesmo de locais distantes uns dos outros. O que mais me chamava a atenção era o sentimento de impotência quanto à sua própria capacidade de mudança. Apesar do notável esforço que realizam em seu dia a dia, buscando melhorar sua qualidade de vida, de uma maneira geral havia um certo conformismo quanto à possibilidade de uma mudança mais profunda, que os tirasse da situação que enfrentam atualmente.
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Sob um olhar muito identificado com o de Paulo Freire e a ideia de “homem ser sujeito de sua própria história”, este trabalho coloca-se como uma tentativa de nos aproximarmos dessa condição. Buscando estimular a capacidade crítico-propositva para que todos possam participar consciente e ativamente do processo da construção da de seu “habitat”. Entretanto não acredito que o método proposto neste trabalho seja capaz de alcançar a plenitude dessa condição, ou até mesmo seja a solução para problemas de todas as ordens e escalas. Entendo método muito mais como um processo pedagógico no qual o arquiteto tem a possibilidade de contribuições importantes. Acredito que ele se constitui como uma tentativa de desenvolver a capacidade crítica e propositiva do homem e através de um modo “leitura do mundo” mais coletivo .
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Portanto, este processo é proposto muito mais como um método do ‘pensar’ do que do propriamente do’ fazer’. Ele tenta questionar alguns aspectos de nossa realidade e entender os “porquês” das coisas, para que a perspectiva da autonomia possa aparecer no durante o processo. Seguindo esse pensamento, enxergamos uma atuação do arquiteto mais afastada do espaços institucionalizados de participação, colocando-a aqui mais na forma de um “ativismo”, de um pensar através da ação de aproximação entre profissionais e população mais pobre. Ou seja, suas ações dentro desse processo buscam a perspectiva da insurgência.(1)
(1) Opinião do autor
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Como já comentado anteriormente, a atual pesquisa se propõe ao estudo de técnicas alternativas de drenagem e pela metodologia de trabalho do LabHab, colocamos esse estudo num ambiente real, visando atuar sobre seus problemas. Além disso, vimos que está ocorrendo o processo de regularização fundiária dos bairros, o qual deve ser feito por meio do Programa de Recuperação de Interesse Social (PRIS) e que a prefeitura se comprometeu a implementar o “Plano Estratégico Global do Alvarenguinha”, cujo plano urbanístico será elaborado pela empresa contratada HagaPlan. Entretanto, não satisfeitos com as obras que já ocorreram no bairro e aproveitando-se de todo o conhecimento já gerado em trabalhos anteriores com o LabHab, os moradores solicitaram que elaborássemos um plano alternativo para o bairro, para que pudessem ter um base para diálogos com a prefeitura.
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Durante as reuniões, Eraldo, morador da região, comentou sobre a importância de um embasamento teórico para que os moradores pudessem analisar as propostas feitas pela prefeitura, ressaltou também a importância desse contato da comunidade com as universidades, para que estas auxiliem com seu conhecimento mais teórico, como por exemplo, com a criação dessa alternativas para contrapor as propostas da prefeitura.(1) Podemos, então, considerar este plano alternativo e todo o conhecimento gerado no seu processo de elaboração como ferramentas de “combate” nesse enfrentamento à certas imposições externas. Ao levarmos nosso conhecimento para perto dos problemas da nossa realidade de modo não impositivo, estamos reforçando a capacidade de transformação do conhecimento. Através de depoimentos como o de Eraldo, podemos perceber que essa (1) Informação verbal retirada da reunião realizada na Associação dos moradores do Parque dos Químicos, no dia 26/04/2014.
transformação não se limita aos componentes físicos do ambiente, mas atinge principalmente os processos de sua construção e o próprios indivíduo. O que Eraldo reitera é a possibilidade de uma atuação mais autônoma, consciente e crítica da população, pois ela, passando a ser detentora de um certo conhecimento, consegue argumentar com as imposições que lhe são colocadas e ficar menos suscetíveis à manipulações. No entanto, pensar uma atuação mais autônoma ultrapassa as questões sobre o conhecimento técnico e implica em conhecer os agentes que atuam sobre o processo de produção do espaço, compreendendo o modo como operam, seus interesses e forças. Portante, implica conhecer as verdadeiras causas dos conflitos, para que os enfrentamentos possam ser direcionados à elas - o que acredito que foi várias vezes discutido durante esse diálogo com os moradores.
Verificou-se o empenho em extrapolar os limites do projeto para discutir essas questões maiores, buscando a compreensão dos diferentes agentes, das instâncias burocráticas, da legislação, sobre a própria questão das reivindicações junto ao poder público, etc. Nesses momentos de diálogo havai a abertura para que os professores pudessem compartilhar seus conhecimentos com a população e para que esta pudesse expor todos os seus conhecimentos. As discussões sobre o funcionamento do Orçamento Participativo, do PRIS, da concorrência para escolha da empreiteira que está participando do processo do regularização dos loteamentos, dos modelos de tratamento de esgoto, sobre a Sabesp, a apresentação da tese de Luciana Ferrara(1), fizeram parte do processo de aprofundamento em questões mais amplas. (1) Urbanização da natureza: da autoprovisão de infraestrutura aos projetos de recuperação dos mananciais ao sul da metrópole paulistana. Tese Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 2013
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Novamente me impressionou os conhecimentos de alguns moradores, como dos representantes das associações e aqueles mais envolvidos nas discussões políticas, sobre os processos que ocorrem tanto no bairro como na cidade. Possuem um posicionamento crítico muito claro sobre os jogos de interesses e o prevalecimento dos interesses do capital. Essa consciência é consequência das condições que estão colocadas para essas pessoa e dos seus enfrentamentos diários e, portanto, deve ser ouvida pelo arquiteto para que ele possa conhecer mais profundamente os problemas com os quais estão lidando. Pensar um projeto sem esse diálogo com a realidade e considerando-o algo tão transformador é ignorar esse conhecimento da população e toda a sua história de luta, rebaixando-a à uma ‘coisa’ que precisa ser salva de suas condições. É, portanto, ignorar a capacidade da pessoa como sujeito de sua própria história.(1) (1) Opinião do autor
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Assim, ao ampliarmos e abrirmos a discussão de projeto, podemos alcançar um processo pedagógico amplo, constituído pelas dimensões educativas presentes nas experiências da vida social e laboral (seja ela ligada ao conhecimento acadêmico ou não). Ou seja, podemos admitir relações entre ‘ensino e aprendizagem’ em duplo sentido, num processo de projeto que é indissociável do lugar e contexto em que ocorre. Como necessita dos conhecimentos existentes da população, a relação de dependência que ocorre entre aqueles que não detém o conhecimento técnico para aqueles que o detém começa a se tornar uma relação de interdependência.
‘arquiteto-educador’, dentro de um sentido amplo da palavra “ensino”. Não houve a imposição de um repertório já construído, mas sim uma tentativa de construção coletiva de um conhecimento que nos era muito limitado até o momento, através, por exemplo, das oficinas de ideias e pesquisa sobre técnicas alternativas. Apesar dessa primeira tentativa de produzirmos coletivamente o conhecimento acerca dos dispositivos não ter ocorrido de acordo com nossas expectativas, acredito que vale ressaltar a postura aberta adotada pelo grupo, que permitiu a abertura para os moradores participarem da pesquisa mais teórica.
Se, como arquitetos, poderíamos ter adotados um posicionamento mais fechado, limitando o processo de participação da população à um debate voltado para um projeto que busca responder diretamente a um problema específico, o que se buscou foi exercer o papel de
Quando estudamos as técnicas mais a fundo e os casos onde já foram implementadas, percebemos a necessidade de incorporar questões que vão além da própria técnica construtiva no debate sobre o projeto. Se transpusermos diretamente essas técnicas - pre-
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dominantemente testadas em ambientes controlados de pesquisa - para o ambiente real, onde há muito fatores externos, ainda sim corremos o risco do não funcionamento pleno dos dispositivos, mesmo seguindo corretamente suas especificações técnicas. Estudando as especificidades das técnicas alternativas de drenagens, constatou-se que há uma questão muito significativa para que elas possam funcionar do jeito esperado, a sua manutenção depois de implantadas. Tendo em vista que se faz completamente necessária a constante manutenção dos dispositivos e que há uma previsão de implantação da rede de esgoto nos bairros, na retomada das atividades do canteiro-escola no segundo semestre de 2014, houve a tentativa de se apresentar os dispositivos drenantes para os moradores através nas visitas de aos bairros João de Barro (imagem 68 e 69), Parque Andreense (imagens 70 à 73) e
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Jardim do Bonfim (imagens 74 à 76), para buscarmos referências de projeto e para conhecermos os processos pelos quais foram implantadas e como elas são mantidas. Acredito que houve um esforço por parte do grupo em incorporar os moradores no processo decisório dandolhes um maior repertório sobre o assunto. Buscou-se inserir os moradores nas discussões do projeto para que também houvesse uma maior apropriação daquilo que estávamos produzindo e para que pudessem conhecer em detalhes o projeto, entendo melhor seus problemas e qualidades. Outra razão muito importante para levarmos esse conhecimento sobre o funcionamento, execução e componentes físicos dos dispositivos para a população, é para que ela pudesse exigir da Sabesp a correta implementação da rede de esgoto, sem danificar o que iremos construir. E infelizmente, pela necessidade de fechamento do presente trabalho, não poderei relatar com se sucederam as questões aqui tratadas.
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fotos: visitas aos bairros ecológicos de São Bernardo do Campo Fonte: LabHab da FAU-USP, 2014
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CONSIDERAÇÕES FINAIS 90
Este trabalho foi uma tentativa de explorar como a arquitetura age na construção do espaço da cidade, não apenas através do projeto, mas à partir dos conhecimentos vinculados à ela e da atuação do profissional nos diversos conflitos do território urbano. Buscando entender sua potencialidade como mobilizadora de um processo pedagógico/ político/organizativo, colocando-se no horizonte dos movimentos de insurgência e resistência e de luta pela transformação social como um instrumento de qualificação. Por entendermos que há a necessidade de consolidar atitudes investigativas e produtivas que democratizem o conhecimento para que todos possam ser protagonistas dessas transformações, esse trabalho buscou propôr e verificar alguns princípios de atuação para o profissional arquiteto e seu método de fazer arquitetura focados nas relações entre os conhecimentos e nas suas formas de produção e difusão.
Essa abordagem caracteriza-se por uma proposta de diálogo aberto, buscando tirar proveito de sua capacidade como método de produção coletiva. E por acreditar na capacidade transformadora do diálogo enquanto tal, acredito que o método participativo de projeto funciona como uma frente de atuação nesse processo de transformação, ao buscar o desenvolvimento do pensamento crítico e disseminação do conhecimento restrito através de uma aproximação do "fazer arquitetura" com a realidade a qual ela se propõe alterar. Não duvidamos do poder de transformação de um projeto e sua capacidade de promover mudanças positivas no cotidiano das pessoas ou até mesmo alterar a percepção e a relação que elas têm com o espaço. Porém, o que se propõe explorar é um outro modo de inserção da arquitetura e do profissional arquiteto no debate sobre o espaço, considerando-os como um elemento
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dentro de uma discussão mais ampla. O que se pretende aqui é explorar o potencial pedagógico do processo de construção do espaço e não só o do espaço já construído. Dentro dessa oportunidade que tive de participar de um processo participativo, tanto de investigação como de proposição, me aproximei de uma prática muito mais interessante e humana da profissão. Essa prática por considerar e valorizar todas as formas de conhecimento, acredito ser muito mais comprometida e capaz de provocar transformações profundas na nossa realidade. Faço aqui algumas breves considerações muito importante para entendermos também os limites da proposta que tento elaborar. Tendo em vista que a nossa realidade constitui-
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se como algo extremamente complexo e que a sua construção acontece mediante o prevalecimento de interesses específicos, devemos compreender que há limitações, tanto operacionais como ideológicas do processo quando passamos da atuação na pequena escala de um bairro, assentamento ou comunidade, para a escala da cidade. Como poderíamos viabilizar uma atuação em tão larga escala dos profissionais, não só de arquitetura como de outras disciplinas ou como faríamos para que esses diversos processos participativos que ocorreriam simultaneamente em diversos lugares mantivessem uma unidade, uma noção de cidade, sem que houvesse "bairrismos" e conflitos entres esses novos interesses ou até que ponto conseguimos de fato exercer uma atuação autônoma nas atuais estruturas de poder? São algumas perguntas que foram surgindo no decorrer do caminho desse trabalho e que até o momento, ainda não consigo respondê-las.
O que se propôs analisar aqui foi as capacidades do processo quanto ao seus componentes pedagógicos, distante de uma forma institucionalizada de participação e mais ligada à uma prática profissional atrelada a uma militância política.