Entrevista concedida ao Midiamax www.midiamax.com.br Semana de 21/07 a 28/07/2011. Link: http://www.midiamax.com.br/noticias/761943 Midiamax: De alguns anos para cá, o Brasil vem avançando no seu processo de desenvolvimento econômico e social. O que de mais relevante o senhor pode destacar como causa desse avanço? Borges de Paula: Nada disso seria viabilizado sem as reformas empreendidas nas últimas décadas. Para exemplificar, destaco o Plano Real (1994), através do qual a inflação foi controlada, o que beneficiou a população de baixa renda e a ampliação de investimentos privados; a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), que, dentre outras coisas, fixou limites para o endividamento público em todas as esferas de governo, inibindo a volta da inflação; e o Programa Bolsa Família (2003), caracterizado pela transferência de renda para as famílias mais pobres. Tudo isso é uma conquista da sociedade. Mais do que darmos importância aos governos responsáveis por este novo cenário, penso que o melhor a fazer é ressaltar a relação de causa e efeito entre a chamada “abertura democrática” (1985) e os resultados obtidos até o momento, como o crescimento econômico. Midiamax: Mas nada impede que se tenha crescimento econômico sem democracia, não é mesmo? Borges de Paula: Sem dúvida. Há inúmeros exemplos que demonstram que a relação entre autoritarismo e crescimento econômico pode ser positiva. Basta lembrarmos do “milagre econômico” ocorrido no Brasil entre os anos de 1968 e 1973, quando, mesmo sob o regime Militar, o País cresceu 11% ao ano. Entretanto, é importante recordar que esse número foi atingido à custa da igualdade econômica e social, já que não foram adotadas políticas capazes de corrigir a concentração de rendas. Em resumo, o Brasil não distribuiu os frutos desse “milagre”. Como não podia ser diferente, não havia debate entre quem detinha o poder e os que sofriam com o modelo nacionaldesenvolvimentista. Logo, os pobres não tinham vez nem voz, o que impedia o desenvolvimento social. Midiamax: Portanto, na opinião do senhor, é preciso conciliar desenvolvimento econômico e democracia para se ter desenvolvimento social e, consequentemente, desenvolvimento sustentável, certo? Borges de Paula: Perfeito. Em primeiro lugar, devemos compreender que o crescimento econômico não pode ser obtido a qualquer preço, pois ele não é, definitivamente, um fim, mas um meio imprescindível para a melhoria da vida humana do todo social, das potencialidades de cada indivíduo, de modo que o povo de um país tenha condições de fazer escolhas livremente. E o que isso significa? Significa que, para que haja um crescimento equitativo e sustentável, o Estado deve, de um lado, regular e incentivar o mercado através do direito, e de outro, investir, sistemática e continuadamente, em políticas públicas de educação, saneamento, saúde, nutrição, segurança, participação etc. E qual seria o melhor sistema político para assegurar o fiel cumprimento desse casamento? Certamente, o democrático, pois democracia significa soberania popular, isto é, a possibilidade do povo participar do exercício do poder público, designando os governantes que propõem esta união, fiscalizando o desempenho dos mesmos, cobrando resultados e retirando-os do poder, caso frustrem a confiança
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neles depositada. Quanto mais organizado o “povão” estiver e mais pressão ele fizer junto ao poder público, mais acesso real aos seus direitos ele terá. Midiamax: Seria este o modelo de “Estado forte” mencionado no seu livro “Política, Direito e Economia: para um Estado republicano”? Borges de Paula: Exatamente. Dotado de legitimidade democrática, centrado na pessoa humana e no bem comum e limitado constitucionalmente, o Estado forte é aquele capaz de coordenar, com boas instituições, os vários interesses em jogo na sociedade, é aquele capaz de conciliar, razoavelmente, eficiência e equidade, e de corrigir as chamadas “falhas de mercado”, como a poluição ambiental. Poderíamos chamá-lo, igualmente, de Estado responsável. Midiamax: Seria o Estado paternalista? Borges de Paula: De forma alguma. Ainda que o Estado deva assegurar a segurança humana e deva, por isso, ser responsabilizado por eventuais erros omissivos ou comissivos, ele não pode subestimar o homem em liberdade, não pode ignorar a vontade que todos temos de ascender socialmente, nem tampouco desdenhar das competências de cada indivíduo para o trabalho ou para a defesa e promoção dos seus direitos políticos. Parto do princípio de que, em geral, basta uma oportunidade ou um incentivo para que uma pessoa demonstre e desenvolva as suas potencialidades. Ao Estado cabe distribuir, de forma igualitária, essas oportunidades ou incentivos aos cidadãos. Midiamax: Afinal, o Brasil mostra toda a sua força? Borges de Paula: O Estado deve instigar o chamado “espírito animal” do empresário. Agora eu lhe pergunto: dá para ser inovador ou empreendedor num País com uma elevada carga tributária e um sistema tributário caótico como o que temos? Para ser forte, o Estado precisa, antes de tudo, não ser um fardo para o setor produtivo nacional ou estrangeiro. O “bolo produtivo” precisa crescer, ainda que sob o olhar atento do Estado. O problema é que há um nó na questão fiscal brasileira que impede tanto a redução dessa carga quanto o aumento dos gastos de capital (que aumentam o patrimônio público e a capacidade produtiva do País), de que são exemplos os investimentos públicos. O problema vem sendo o aumento ininterrupto dos gastos com custeio da estrutura administrativa (gastos que não geram aumento do patrimônio estatal) e com pessoal e previdência. Para o Brasil aproveitar ainda mais as oportunidades de investimento estrangeiro, gerando emprego e renda, a presidente Dilma terá de ter coragem para desatar esse nó, adotando medidas impopulares, mas necessárias, como o corte ou a limitação desses últimos gastos. É preciso subir a poupança pública (consumir menos e investir mais), dirão os economistas. Midiamax: O Governo federal publicou, no último mês de maio, a Medida Provisória 534, enquadrando o Tablet PC (computador em forma de prancheta) nos benefícios tributários da “Lei do Bem” (n.º 11.196/05). Isso é o que se pode chamar de Estado indutor? Borges de Paula: Com certeza. Há várias maneiras de indução da economia pelo Estado. Aliás, tratei de uma delas no capítulo 5 do meu livro “Política, Direito e Economia”. O caso dos tabletes é um sinal de que o estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento, ao setor de tecnologia e à indústria nacional entrou na agenda do Governo Dilma, aplicando a norma fundamental contida no art. 3.º da Constituição Federal. Até onde eu sei, o governo concederá incentivos tributários para as empresas estrangeiras que desejam produzir este computador em território nacional, desde que as
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mesmas destinem parte do seu faturamento para investimentos em pesquisas tecnológicas no País, com o fim de desenvolver a nossa indústria. Midiamax: Mas nós não temos mão de obra qualificada para a produção destes computadores no Brasil. Borges de Paula: Eis aqui mais uma lição de casa que o governo Dilma precisa priorizar: ampliar os investimentos em educação para além dos 7% do PIB previstos no projeto de lei da segunda edição do Plano Nacional de Educação (projeto de lei 8.035). Uma boa economia se faz, dentre outras coisas, com capital humano. Não basta ter riqueza natural. Aliás, penso que seja coerente a ideia veiculada pelo senador Delcídio do Amaral (PT/MS) relativa à destinação de grande parte dos recursos do pré-sal à educação. A União precisa participar mais do financiamento da educação e a sociedade civil, por outro lado, deve pedir contas do fim que será dado aos recursos do pré-sal. É preciso tratar a educação como política de Estado, responsabilizando os gestores pelo descumprimento das metas predeterminadas. Por isso, vejo com bons olhos o projeto de lei da responsabilidade educacional (projeto de lei 8.039, do Ministério da Educação). Esse projeto prevê a alteração da Lei da Ação Civil Pública (n. 7.347/1985) a fim de que o Ministério Público possa fiscalizar a qualidade da educação pública, responsabilizando os gestores de todas as esferas de Governo pelo não cumprimento das normas constitucionais e infraconstitucionais relativas à educação. Vamos aguardar a apreciação e a decisão da Câmara dos Deputados quanto a esse projeto de lei. Midiamax: O que mais falta ao Brasil? Borges de Paula: Tenho a sensação de que a minha resposta será insatisfatória. Mas é claro que o Brasil ainda tem muito a fazer para se desenvolver de modo sustentável, a começar pelos setores estratégicos como educação, pesquisa, desenvolvimento e infraestrutura, sem falar nos serviços essenciais, tipicamente estatais, como segurança pública, saúde e saneamento básico. É trágica a situação do nosso saneamento. Nestes assuntos, o amanhã é agora! Mas o problema não está no “o quê fazer”, mas, sim, no “como fazer”. Como diria a personagem Pórcia, de William Shakespeare, “se fazer fosse tão fácil como saber, pequenas capelas teriam sido igrejas”, não é mesmo? Midiamax: Então, como poderemos erguer uma grande “igreja” chamada Brasil, onde todos possam participar da sua construção e desfrutar dos resultados alcançados? Borges de Paula: Em primeiro lugar, devemos compreender que a política é muito complexa, pois envolve interesses de muitos atores, como os atores sociais e os atores partidários, para cujas demandas, em geral, os políticos direcionam suas escolhas. Por isso, é preciso racionalizar o espaço público para que os interesses privados – dos detentores de poder econômico ou político – sejam limitados e transformados em interesses públicos, para que as receitas tributárias sejam democraticamente alocadas de modo coerente com o desenvolvimento sustentável, o que significa dizer que é preciso atacar os desperdícios, a incompetência, o clientelismo, o patrimonialismo e reduzir os incentivos à corrupção. Para serem fortes, as instituições estatais precisam ser vistas como legítimas pela sociedade, precisam, pois, traduzir as noções de interesse público, de bem comum e de responsabilidade pública.
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Midiamax: Em tempos de muitos escândalos no cenário político nacional e regional, como os casos dos cartões corporativos, Anões do Orçamento, Mensalão, Mensalinho, Sanguessugas, Ambulâncias, Uragano, Owari, entre outros, e havendo deputado federal que afirme estar se ‘lixando para a opinião pública’, como poderemos resgatar a legitimidade perdida? Borges de Paula: Com mais democracia. Não há outro caminho. Como já disse Georges Burdeau, “os males da democracia só se curam com mais democracia”. É maravilhoso vivermos, hoje, num ambiente político estável, com eleições livres e periódicas, baseadas no sufrágio universal, com diferentes partidos políticos, com liberdade de associação e de expressão. Mas isto não basta. Temos de pensar no futuro do nosso País, na nossa juventude que hoje cresce sob o manto da desconfiança interpessoal, num clima de “salve-se quem puder”, com baixo nível de solidariedade comunitária. Como podemos supor que o Brasil atingirá níveis elevados de prosperidade econômica e social se os políticos de amanhã serão estes jovens que assistem, incrédulos e à distância, a nossa política? Temos de pensar no futuro para melhorarmos o presente. Por isso, é necessário mexer com a autoestima dos brasileiros, é fundamental que eles se sintam inseridos na comunidade política. Estou convencido de que as instituições públicas precisam de um choque de transparência e de participação social para aumentarmos esse sentimento de pertencimento e, claro, para reduzirmos os espaços para a corrupção e para os gastos ineficientes. Afinal, como já disse um antigo juiz da Suprema Corte dos EUA, “a luz do sol é o melhor desinfetante”. Esse é o grande desafio que os verdadeiros políticos – aqueles que fazem profissão de fé na democracia – e a sociedade civil terão de enfrentar, juntos, com contumácia e responsabilidade, para que o setor público estatal seja “desinfetado” da cultura do sigilo e da aversão à partilha do poder. Estou curioso para ouvir o discurso da presidente Dilma na Assembleia Geral da ONU que acontecerá em setembro, em Nova York, quando, então, ela e o presidente Barack Obama assinarão uma parceria internacional para a promoção da transparência pública chamada de Open Government Partnership (Parceria para um Governo Aberto). Midiamax: O senhor gostaria de acrescentar mais alguma coisa? Borges de Paula: É verdade que não se aprofunda uma democracia sem um substantivo investimento em educação. Mas, não é menos verdade que a democracia participativa constitui por si só um meio de racionalização inclusiva e eficaz da política, já que a participação do povo no processo de decisões públicas tem um poderoso efeito pedagógico e libertador. Devemos despertar um ciclo virtuoso envolvendo transparência pública, participação e educação. Paralelamente, temos de contar com um controle eficaz do poder legislativo sobre o executivo e sobre as empresas estatais, como o BNDES, cuja musculosa capitalização, como se sabe, advém do Tesouro Nacional, sendo, pois, uma despesa pública que deveria ser inserida no orçamento e apreciada pelo Congresso Nacional. Louvo as iniciativas dos parlamentares que estão se mobilizando para que os títulos do Tesouro sejam inseridos no orçamento de 2012. Louvo, igualmente, a criação do Observatório Social de Campo Grande e de Dourados, bem como a reativação do projeto “Cidade Educadora” em Dourados. O que mais eu poderia dizer a você? Que os Tribunais de Contas Estaduais deveriam ser autônomos, com diferente mecanismo de escolha de seus conselheiros? Que o sistema de escolha do procurador geral de Justiça do Ministério Público Estadual precisa ser revisto? Que a imprensa tem um papel fundamental frente a esses desarranjos institucionais? Que, para inibir a promiscuidade política, é preciso optar-se pelo financiamento público das campanhas eleitorais? Será que é preciso lembrar que os pobres não fazem doações e
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que as grandes empreiteiras não as fazem sem interesses? Sonhar nos faz caminhar para tornar o impossível menos impossível. COMENTÁRIOS: 21/07/2011 19:38 Ives Gandra da Silva Martins (advogado em São Paulo): “Li sua entrevista. Se a Dilma não controlar o custeio da máquina esclerosada e, muitas vezes, corrompida, teremos problemas. Sua entrevista é clara e toca em pontos relevantes. Parabéns!” 26/07/2011 12:52 João Nuno Calvão da Silva (Advogado em Lisboa e Professor da Universidade de Coimbra): “Pensamento estruturado e coerente. Bem preparado, o Prof Marco Aurélio, depois de muito me impressionar, humana e academicamente, na Faculdade de Direito de Coimbra, ajuda o seu país na busca do rumo certo...” 25/07/2011 07:23 Diogo Leite de Campos (Ex Presidente do Banco Central de Portugal, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra): “Excelente entrevista, com humanismo e muito rigor. Reconheço nela as qualidades do jurista e do cidadão que é o entrevistado”. 24/07/2011 11:44 Arthur Virgílio (Diplomata e Ex Senador da República/AM): “Excelente entrevista. Concordo com tudo. No caso dos tablets, ressalvo que a presidente Dilma rompeu acordo que tinha com o Pólo de Manaus. Mas você simplesmente se referiu à importância de eles serem produzidos no País. Texto irretocável!”
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