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4Editorial O humor amordaçado
No Brasil contemporâneo, não basta que a liberdade de expressão seja frequentemente agredida pelo estabelecimento de novos tabus, vedando o debate sério sobre uma vasta gama de assuntos, que incluem a crítica a comportamentos e passam por questionamentos a “consensos” forjados ou impostos. Agora, também o humor convive com a mordaça, graças a uma lei por si só bastante controversa, e que agora é interpretada de forma extremamente rigorista, contrariando toda a doutrina e a jurisprudência construídas em torno desse tipo de manifestação artística.
Por decisão da Justiça paulista, o humorista Léo Lins foi obrigado a retirar inúmeros conteúdos de seu canal do YouTube, principalmente um especial que foi ao ar no fim de 2022 e já contava com milhões de visualizações. Lins não pode publicar, transmitir, e nem sequer manter privadamente em seus aparelhos arquivos “com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável”, de acordo com a juíza Gina Correa. Como se não bastasse, em um caso evidente de censura prévia, o humorista fica proibido de mencionar esses grupos em novas apresentações de stand-up comedy e, no que também pode ser visto como uma restrição indevida ao direito de ir e vir, não pode se ausentar de São Paulo por mais de dez dias sem autorização judicial – ou seja, a Justiça pode muito bem impedir a realização de turnês, atividade que faz parte do cotidiano de qualquer artista. A condenação ocorreu a pedido do Ministério Público paulista, que invocou a Lei 14.532/2023, aprovada pelo Congresso e sancionada por Lula. Ela acrescenta novos itens à Lei 7.716/89, equiparando a injúria racial ao racismo, na linha do que já havia feito o Supremo Tribunal Federal – no entanto, a legislação não trata apenas do preconceito racial, mas abrange também a discriminação por etnia, religião, procedência nacional e, graças a outra decisão do STF, orientação sexual. À época, a Lei
Léo Lins foi a primeira (ou ao menos a mais notória até o momento) vítima de uma legislação cujos efeitos foram amplamente antecipados; seria questão de tempo para que MP e Judiciário começassem a passar
14.532 foi apelidada “lei antipiada” não sem motivo, pois afirmava que “os crimes previstos nesta lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. Ou seja, Léo Lins foi a primeira (ou ao menos a mais notória até o momento) vítima de uma legislação cujos efeitos foram amplamente antecipados; seria questão de tempo para que MP e Judiciário começassem a passar por cima da doutrina e da jurisprudência, com base em leituras isoladas e arbitrárias de trechos da lei. Afinal, não faria sentido nenhum – ao menos para quem tem um compromisso mínimo com a liberdade de expressão – pretender que a legislação viesse coibir e punir toda e qualquer piada que envolvesse grupos étnicos, religiosos ou o que quer que fosse. O que as leis 14.532/23 e 7.716/89, frutos de uma discussão válida sobre formas de combater o preconceito, criminalizam são os atos claramente discriminatórios (por exemplo, negar o acesso a certos locais ou o exercício de direitos), a injúria (artigo 2.º-A, incluído pela nova lei) e a indução à “discriminação ou preconceito” (artigo 20). Uma vez configurados esses crimes, só então verifica-se a existência de outras circunstâncias que não são o crime em si, mas agravantes. É aqui que se analisa se houve “contexto ou intuito de descontração, diversão ou recreação”. Em outras palavras, é preciso analisar o que a doutrina chama de animus. O animus caluniandi, por exemplo, é a intenção clara de imputar a alguém um crime concreto que não foi cometido. Da mesma forma, existe o animus injuriandi, a intenção expressa de insultar e ofender alguém em sua honra. Mas existem, também – e citamos apenas alguns exemplos –, o animus narrandi (a intenção de narrar um fato), o animus corrigendi (a intenção de corrigir alguém) e o animus jocandi (a intenção de brincar). Sobre este último, exatamente o que está em jogo no caso de Léo Lins, existe extensa jurisprudência a protegê-lo, seja quando exercido de forma corriqueira, seja como atividade profissional, no caso dos humoristas.
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