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Touch the Dark Cassandra Palmer Karen Chance
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— Cassie, olhe para mim!
Defendi-me dele, sabendo desde criança que olhar um vampiro diretamente nos olhos fazia com que fosse mais fácil para ele controlarnos, mas todas as pessoas nos ignoraram, suponho que acharam que eu era apenas uma péssima dançarina.
Ao contrário do que diz a lenda, o toque do corpo dele contra o meu era quente e tão macio como cetim encorpado, mas também podia ser feito de aço, tal era a esperança que eu tinha de me libertar dele. Minha pulsação acelerou e achei que ia desmaiar quando ele inclinou a cabeça e eu senti seus lábios percorrendo meu pescoço. Acho que meu coração chegou a parar quando ele beijou delicadamente a pele, como se estivesse saboreando a pulsação à flor da pele. Parecia que o meu sangue conseguia senti-lo, como se corresse mais devagar e mais espesso nas veias, à espera de ser libertado por ele. Comecei a transpirar, mas isso não tinha nada haver com o calor dos corpos apinhados num lugar pequeno. Iria ele matá-la ali mesmo, diante de duas centenas de testemunhas?
Eu já devia esperar que algo assim acontecesse. Sempre que confiava em alguém, era traída; sempre que amava alguém, essa pessoa morria. Uma vez que ele já estava morto, suponho que o padrão se mantinha.
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Capítulo 1 Percebi que estava em apuros assim que vi o obituário. O fato de ter o meu nome escrito lá me deu uma espécie de pista. O que eu não sabia era como eles tinham me encontrado e quem era o cara com tanto senso de humor. Antonio nunca foi muito dado à comédia. Eu nunca percebi se isso tinha alguma relação com o fato de ele estar morto ou se ele sempre foi um filho da mãe taciturno. O óbito estava no monitor do computador do escritório, no lugar do habitual logótipo da agência de viagens. Parecia que uma parte de uma página de jornal tinha sido digitalizada e depois colocada como wallpaper do computador, e ela não estava ali meia hora antes, quando eu saí para ir comer uma salada. Se não estivesse tão assustada, teria ficado impressionada. Eu pensava que os rufiões de Tony nem sabiam o que era um computador. Nessa noite, mais tarde, andei a procura da minha arma num armário de arquivo, enquanto lia a descrição que o engraçadinho fazia da minha morte macabra. Tinha uma arma melhor no meu apartamento, juntamente com outras surpresas, mas voltar lá provavelmente não seria a melhor opção. E a não ser que estivesse à espera de problemas que justificassem o risco de andar com uma arma escondida, a única coisa que tinha na mala era uma latinha de spray lacrimogêneo, para usar em potenciais assaltantes. Passados mais de três anos de uma relativa segurança, tinha começado a pôr em questão a necessidade até disso. Tornei-me descuidada e só podia ter esperança de que isso não fosse agora provocar minha morte.
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Sob o meu nome estava uma descrição com um parágrafo de um infeliz incidente que envolvia a mim, um atirador desconhecido e duas balas na cabeça. O jornal tinha a data do dia seguinte, mas o ataque deveria ocorrer às 8h43 desta noite, na Peachtree Street. Olhei de relance para o relógio; faltavam vinte para oito, portanto tinham me dado uma hora de vantagem. Parecia muita generosidade da parte de Tony. Supus que ainda não estava morta porque me matar assim de repente era fácil demais para um cara que andava constantemente matando pessoas. No meu caso, ele queria uma coisa especial. Finalmente encontrei a minha Smith & Wesson 39131 debaixo de um panfleto de um cruzeiro para o Rio. Fiquei pensando se seria um sinal. Mas eu nunca teria dinheiro suficiente para sair do país, e uma loura bochechuda de olhos azuis poderia parecer um pouco óbvia ao lado de todas aquelas senhoritas de olhos escuros e rasgados. Além do mais, eu não sabia se Tony tinha contatos no Brasil, mas não me admiraria se os tivesse. Quando se anda por aí há tempo suficiente para se lembrar de agüentar mais bebida do que Michelangelo2, estabelecemse alguns contatos. Tirei um pacote de balas do compartimento para armas da minha bolsa e enfiei a Smith & Wesson dentro. Coube como se tivesse sido feita para ela, como de fato era. Eu tinha comprado a arma, a minha primeira, e três bolsas de mão há quase quatro anos a conselho de um agente federal chamado Jerry Sydell. Tal como muita gente, ele achava que eu era doida, mas, como eu tinha ajudado a dar cabo de uma das maiores famílias criminosas da Filadélfia, ele estava disposto a me dar alguns conselhos de graça. Ajudou-me a escolher o revólver semi1
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Marca de arma norte americana muito conhecida
Michelangelo, mais conhecido como Miguel Ângelo, foi um pintor, escultor, poeta e arquiteto
italiano, considerado um dos maiores criadores da história da arte do ocidente.
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automático de 9 mm, que combinava com um punho suficientemente pequeno,que era o caso das minhas mãos, mas com o poder de desencorajar qualquer coisa que andasse sobre duas pernas. "À exceção de fantasmas e monstros", dissera ele com um sorriso matreiro. "Com esses está por conta própria”. Ele também tinha me levado todo o dia para um treinamento de tiro durante duas semanas, fazendo-me chegar a ponto de, mesmo não conseguindo ainda acertar na parede de um celeiro, falhar por pouco. Continuei as sessões de treinamento sempre que tinha dinheiro para elas, por isso já conseguia acertar um alvo — se fosse grande e se eu estivesse a menos de três metros de distância. Tinha a secreta esperança de nunca ter que atirar contra nada que não fosse um alvo. Não era por minha culpa que as coisas não tinham acontecido assim. Acho que Jerry até gostava de mim — eu lembrava lhe a filha mais velha — e ele queria me ver seguir o caminho certo. Achava que eu me envolvera com as pessoas erradas quando era muito nova para ter juízo, o que era mais verdade do que ele pensava; e que depois perceberia e iria denunciá-las. Nunca saberei como é que ele explicava o fato de uma órfã de vinte anos conhecer o funcionamento interno de uma importante família criminosa, mas decerto não foi por ter fé naquelas "tretas de feitiçaria", como ele dizia. Jerry não acreditava no sobrenatural — em nada relacionado com isso. Como eu não queria que ele me trancasse numa pequena cela acolchoada, nunca lhe contei sobre minhas visões, nem o quanto ele se aproximara da verdade com o comentário dos fantasmas e dos monstros. Sempre fui uma espécie de ímã para fantasmas. Talvez faça parte de toda a cena da clarividência; não sei. Tony sempre foi cauteloso em relação ao que me deixava estudar — acho que tinha medo de que eu
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descobrisse alguma maneira de usar as minhas capacidades contra ele, se soubesse muito — portanto não tenho grandes conhecimentos em relação ao meu talento. Obviamente, pode acontecer que o meu poder de atração para o mundo dos espíritos se deva simplesmente ao fato de conseguir vê-los: deve ser uma chatice assombrar alguém que nem sabe que estamos ali. Não que eles me assombrem propriamente, mas é verdade que gostam de exibir-se quando estou por perto. Às vezes isso não é ruim, como quando encontrei aquela velhinha em um beco quando era uma adolescente em fuga. Na maior parte das vezes tenho tendência a ver os fantasmas como corpóreos, sobretudo quando são novos e poderosos, por isso demorei algum tempo a perceber o que ela era. Estava ali para funcionar como uma espécie de anjo da guarda do seu neto, que ajudou a criar. Morreu quando ele tinha dez anos e o namorado da filha começou a espancá-lo assim que foi viver com eles. O rapaz fugiu em menos de um mês. Ela me disse que não tinha passado uma década tomando conta dele para agora o abandonar, e que tinha certeza que Deus não se importaria de esperar um pouco por ela. A seu pedido, antes de seguir o meu caminho, dei ao pequeno dinheiro suficiente para se meter num ônibus e seguir para a casa da irmã dela, em San Diego. Naturalmente, eu não disse esse tipo de coisas a Jerry. Ele não acreditava em nada que não pudesse ver, tocar ou ferir com uma bala, limitando assim os temas de conversa. Desnecessário dizer que também não acreditava em vampiros, pelo menos até, uma noite, dois dos capangas de Tony o apanharem e o degolarem. Eu sabia o que estava preste a acontecer a Jerry porque "Vi" os seus últimos segundos de vida quando me preparava para entrar no banho. Como de habitual, tive uma visão nítida, a cores, próxima e pessoal da carnificina, o que quase me fez escorregar e quase partir o pescoço no chão escorregadio do banheiro. Assim que parei de tremer o
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suficiente para pegar um telefone, liguei para o número de emergência do Programa de Proteção de Testemunhas. Mas a agente que atendeu ficou desconfiada, quando eu não quis dizer como sabia o que ia acontecer. Disse que iria dar o recado a Jerry, mas não se mostrou muito disposta a lhe interromper o fim de semana. Por isso liguei ao principal assassino de Tony — um vampiro chamado Alphonse — e recordei-lhe que a função dele era descobrir o local onde o governo tinha me escondido e não se arriscar a enfurecer o Senado ao matar humanos que nem sequer sabiam de alguma coisa. Jerry não lhes resolvia problema algum porque as informações que ele tinha estavam prestes a ficar desatualizadas. Nunca tive grande sucesso em alterar os resultados das minhas visões, mas tinha esperança de que a referência ao Senado fosse suficiente para fazer com que Alphonse pensasse duas vezes. O Senado é um grupo de vampiros ancestrais que aprovam leis a que os menos poderosos têm de obedecer. Embora não tenham mais consideração pelos humanos do que Tony, gostam da liberdade de serem apenas um mito e tem muito trabalho para não chamarem atenção sobre os mortais. Matar agentes do FBI é o tipo de coisa que costuma irritá-los. Mas Alphonse se limitou a distrair me enquanto seus lacaios localizavam a chamada. Afinal de contas, a única coisa que pude fazer foi garantir que, na altura em que alguém chegasse à minha porta, eu já estaria num carro saindo da cidade. Percebi que, uma vez que o governo nem sequer admitia a existência de vampiros, as chances de conseguirem me manter em segurança não eram muitas. Achei que teria mais chances se estivesse por conta própria, e, durante mais de três anos, estive certa. Até agora. Não me dei ao trabalho de tirar nada do escritório a não ser a arma: era uma coisa que acontecia quando se fugia para salvar a vida. — as prioridades ficavam bastante reduzidas. Não que a minha 9 mm fosse
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fazer grande coisa a um vampiro, mas Tony usava muitas vezes criminosos humanos para trabalhos menores. Eu esperava sinceramente que ele não achasse que valia a pena chamar os verdadeiros talentos por minha causa. A idéia de levar uma bala no cérebro não me agradava, mas me agradava ainda menos as chances de acabar como uma das suas aquisições permanentes. Ele nunca permitiria que eu fosse transformada porque, tempos atrás, tivera um médium que se transformou em vampiro e que, depois disso, perdera totalmente as suas capacidades, e ele considerava que o meu dom era muito útil para pôr em risco. Agora eu temia que ele corresse esse risco. Se eu perdesse o meu talento depois da transformação, ele podia cravar-me uma estaca e vingar-se do inferno que eu o tinha feito passar. Caso contrário, teria uma adepta imortal com lealdade garantida, uma vez que é extremamente difícil ir contra os desejos do vampiro que nos criou. Do ponto de vista dele, era uma situação em que todos saíam ganhando, partindo do princípio de que ele ignoraria a sua raiva durante tempo suficiente para perceber. Verifiquei a arma e certifiquei-me de que tinha um carregador cheio de balas. Se me apanhassem, eu não ia ceder sem lutar, e se as coisas dessem errado era mais fácil eu engolir a última bala do que chamar de mestre àquele bastardo. Diferente da ultima vez, havia uma coisa que eu tinha de fazer antes de pegar carona para mais uma vida nova. Escapei da agência o mais rapidamente que pude, caso os lacaios de Tony decidissem adiantar um pouco o prazo limite, e evitei a porta de entrada esgueirando-me pela janela do banheiro. Parece sempre tão fácil quando as pessoas fazem isso na televisão. Acabei com uma coxa arranhada, as meias rasgadas e o lábio mordido por tentar não dizer palavrões. Por fim, consegui passar, comecei a correr uma ruazinha transversal até uma garagem e cortei caminho até uma Waffle House3. O 3
Cadeia de restaurantes norte-americana
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trajeto foi curto, mas enervante. Os becos que eram familiares me pareceram subitamente esconderijos perfeitos para os capangas de Tony e todos os barulhos soavam como uma arma a ser engatilhada. A Waffle House tinha luzes fluorescentes brilhantes no estacionamento, o que me fez sentir terrivelmente exposta quando o atravessei. Felizmente, as cabines telefônicas estavam na penumbra, perto de uma das paredes laterais do edifício. Parei diante daquela que funcionava e tirei uns trocos da minha mala, mas ninguém atendeu na discoteca. Deixei o telefone tocar vinte vezes enquanto mordia o lábio e me convencia de que aquilo não queria dizer nada. Era sexta-feira à noite — provavelmente ninguém conseguia ouvir o telefone por causa do barulho, ou tinha tempo para atender, se conseguisse. Demorei algum tempo a chegar lá a pé, uma vez que estava tentando passar despercebida e evitar partir meu tornozelo dentro das minhas botas novas de cano alto e saltos afiados. Tinha-as comprado porque condiziam com a adorável minissaia de couro que uma vendedora me convencera a comprar e tinha planeado exibi-las na discoteca depois do trabalho, mas elas não eram feitas exatamente para andar a correr. Supostamente, eu sou uma poderosa clarividente, mas acham que tinha vindo alguma coisa à minha cabeça dizendo para optar por tênis ou, pelo menos, sapatos baixos? Não, que diabo! Da mesma maneira que nunca ganho na lotaria. Tudo o que "Vejo" é o tipo de coisas que fazem parte dos pesadelos e dos problemas graves de alcoolismo. Era uma daquelas noites quentes da Geórgia, em que o ar parece uma manta pesada sobre a pele e a umidade é desmensurada. Havia uma leve névoa no brilho dos postes, mas a maior parte da luz disponível provinha da lua, que iluminava as ruas lustrosas de chuva e
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dava um tom prateado às poças de água. A noite descolorava os edifícios da parte baixa da cidade, atenuando-os a um cinza claro que se misturava com as sombras e escondia os topos dos arranha-céus. Naquela noite, o bairro histórico parecia uma coisa perdida no tempo, sobretudo quando passei a Casa de Margaret Mitchell4 na West Peachtree. Pareceu-me perfeitamente natural quando uma das carruagens puxadas a cavalo que asseguram o negócio de turismo deu a volta à esquina — fora o fato de ir todo galope e quase ter me atropelado. Tive um segundo para ver os rostos assustados dos turistas que se agarravam à suas queridas vidas no banco de trás, antes da carruagem ricochetear no passeio e rumar rua abaixo até se perder de vista. Arrastei meu corpo coberto de lama para fora da sarjeta e olhei desconfiada em volta. Um riso alegre atrás de mim explicou como aquele cavalo velho e gordo tinha sido convencido a experimentar um novo recorde de velocidade. Um rastro de neblina, quase indistinguível na chuva miudinha, passou à deriva. Agarrei-o, metafisicamente falando. — Portia! Não teve graça! A gargalhada tiniu novamente e uma bela dama sulista, com uma saia armada para completar o quadro, materializou-se à minha frente. — Teve, sim. Viu a cara deles? O regozijo cintilou naquilo que em tempos tinham sido uns olhos mais azuis do que os meus. Naquela noite eram da cor das nuvens agitadas do céu. Procurei na minha bolsa um lenço de papel para limpar as botas. 4
A casa na qual a famosa autora da novela “E o vento levou”, viveu.
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— Pensei que ia deixar de fazer isso. Se afugentar os turistas, com quem é que vai brincar? Não há muitas empresas dispostas a fingir que Atlanta, tal como Savannah ou Charleston, tem bairros históricos suficientes para tornar rentáveis os passeios puxados a cavalo. Se Portia continuasse com suas brincadeiras, qualquer encanto sulista que tivesse conseguido sobreviver à expansão urbana — que ofereciam locais de lazer tão respeitáveis como o Mundo da Coca-Cola5, a sede da CNN e o centro comercial Underground Atlanta — estava condenado. Portia fez um beicinho tão atraente que deve ter sido treinado no espelho quando ela era viva. — Não tem graça nenhuma, Cassie. Lancei-lhe um olhar infeliz, enquanto tentava limpar as roupas salpicadas de lama, mas só consegui manchá-las. Nunca na vida tentara fugir parecendo chique. — Eu tenho um imenso senso de humor, só que não esta noite. Tinha começado a chover e os pingos trespassavam Portia e caíam no asfalto. Odeio aquilo; é como ver televisão com muita interferência. —Não viu o Billy Joe, certo? Chamo a Billy Joe de meu espírito da guarda, mas isso não é totalmente exato. Ele é mais um transtorno que, de vez em quando, se torna útil, mas naquele momento eu não me sentia desgostosa. Billy é o que resta de um apostador americano de origem irlandesa que não 5
Exposição permanente sobre a história da Coca-Cola, que está patente em Atlanta.
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conseguiu perder a mão certa em cartas em 1858. Um par de cowboys irados, que presumiram corretamente que tinham sido enganados, enfiou-lhe dentro de uma bolsa e atirou-o ao Mississipi. Felizmente para ele, na hora uma condessa estava por ali de visita com um colar enorme e feio que funcionava como uma espécie de bateria sobrenatural, congregando energia mágica do mundo natural e armazenando-a até ser necessária. Quando o espírito dele deixou o seu corpo, foi repousar no colar, assombrando-o da mesma forma que outros fantasmas faziam a coisas mais convencionais, como criptas. Isso lhe deu poder suficiente para continuar a existir, mas eram as minhas ocasionais doações de energia vital que o tornavam tão móvel como ele era. Eu descobrira o colar numa loja de velharias quando tinha dezessete anos e, desde então, Billy e eu constituíamos uma equipe. É óbvio que ele não poderia levar uma mensagem à discoteca para mim, e evitar que eu tivesse de ir lá pessoalmente, mas podia servir de vigia, para o caso de alguns mauzões se aproximarem muito. Isto partindo do princípio de que eu conseguiria encontrá-lo, coisa que requeria alguma ajuda fantasmagórica. Existem muitos fantasmas em Atlanta, e, na sua maioria, comuns do tipo “vamos assombrar alguma coisa até resolvermos os nossos assuntos ou nos desvaneçamos”, como Billy Joe. Há também alguns espíritos da guarda e um ou outro espectro, se bem que estes últimos não sejam tecnicamente fantasmas. Os espectros são como um cinema sobrenatural que exibe o mesmo filme varias vezes, até nos fazer gritar. Como geralmente isso é uma coisa traumática, dar de cara com um não tem graça nenhuma. Durante um par de meses, depois de me mudar para cá, passara o meu tempo livre a conhecer as ruas daquela zona, e uma das coisas mais importantes de que andei a procura foram às zonas de espectros. Descobrira cerca de cinqüenta que estavam relacionadas com o incêndio da cidade durante a Guerra Civil, mas a maioria era bastante fraca para provocar algo mais forte do que uma pontada. Mas
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entre o meu apartamento e a agência existia uma grande, onde antigamente um escravo tinha sido estraçalhado por uma matilha de cães. Depois de certo dia, ter sido apanhada aí, passei a dar uma grande volta para não passar por lá. Tenho muitas recordações que preferia esquecer; não preciso do pesadelo dos outros. Mas Portia não é um espectro. Houve alturas em que pensei que ela fosse uma coisa pior. Portia é um daqueles fantasmas que revivem varias vezes as partes trágicas de suas vidas, mas não como um filme monótono. São assombrações com uma fixação, semelhante à de um humano obsessivo que lava as mãos cinquenta vezes por dia. E são móveis, portanto podem seguir uma pessoa e continuar a pensar naquilo que os preocupa vinte e quatro horas por dia. Dissuadi Billy Joe para fora disso há algum tempo - ele estava transtornado porque morreu novo, mas eu só consigo agüentar um certo número de lamentos de “a vida que eu devia ter tido” antes de começar a ficar irritada. Infelizmente, tinha apanhado Portia com disposição para conversar e demorei mais de dez minutos para descobrir — depois de uma descrição pormenorizada dos botões de marfim que ela costurara ao seu vestido de noiva por estrear — que ela não tinha visto Billy Joe. Típico. Eu passo a maior parte do tempo desejando que ele vá embora, mas ele só desaparece quando eu preciso dele. O meu nível de irritação deve ter sido notável em meu rosto, porque Portia parou no meio da história sobre uma festa em que dois oficiais tinham andado brigando por causa do último lugar disponível no cartão de dança dela. Era uma das suas preferidas e, claramente, ela não estava agradada por ver minha atenção desviada. — Não está ouvindo, Cassie. Aconteceu alguma coisa? — Um estalido zangado do seu pequeno leque finalizado em renda demonstrou que era melhor que tivesse acontecido.
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— Tony me encontrou e eu preciso sair da cidade. Mas tenho de passar primeiro pela discoteca e preciso de um vigia. Assim que o disse, percebi que devia ter ficado de boca fechada. Os olhos de Portia ficaram ainda maiores e, encantada, ela bateu palmas com as suas delicadas mãos enluvadas. — Oh, que divertido! Eu ajudo! — Hum, é muito generoso da sua parte, Portia, mas não me parece que... quer dizer, há muitas maneiras de entrar na discoteca, e você não conseguiria cobrir todas. — Mas um brilho familiar e penetrante surgiu nos olhos de Portia e eu cedi imediatamente. Na maior parte das vezes, ela era um doce, mas quando se irritava com alguém as coisas podiam ficar feias num instante. — Vou arranjar ajuda. — Prometeu ela. — Vai ser como uma festa! Desapareceu num redemoinho de saiotes e eu suspirei. Alguns dos amigos de Portia eram ainda mais irritantes do que ela, mas meia dúzia de vigias eram melhor do que nada. E eu não tinha que me preocupar com o fato de que os lacaios de Tony fossem por eles. Mesmo que ele mandasse vampiros, eles não veriam coisa nenhuma. Por mais estranho que pareça, há muita gente na comunidade sobrenatural que não acredita em fantasmas. Ora, há quem concorde que existe um ou outro espírito perturbado que fica a pairar sobre a sua sepultura por uns tempos, antes de aceitar o inevitável, mas poucos acreditariam se eu lhes falasse da quantidade de espíritos que ficam por aqui depois da morte, da quantidade de tipos diferentes que existem e de como alguns deles conseguem ser tão ativos. Espíritos como Portia e
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Billy Joe são, para a comunidade sobrenatural, o que os vampiros são para os humanos. Histórias e lendas antigas ignoradas por falta de provas. O que posso dizer? É um mundo estranho. Cheguei à discoteca passado alguns minutos, sem fôlego e com as dobras dos pés doloridas, mas intacta. Aparecer por ali foi, claro era, uma idéia muito ruim. Mesmo que ninguém tivesse me seguido, havia uma dúzia de pessoas na agência e no meu prédio que sabiam que eu trabalhava ali meio período. Além disso, ficava apenas a um quarteirão de distância da Peachtree, coincidência que não me agradava. Se acabasse por ser morta, tencionava regressar e assombrar Tony. Mas eu não podia ir embora sem avisar o meu companheiro de casa e tratar de algum tipo de preparativo para ele. Já sentia culpa suficiente mesmo sem acrescentar mais uma vida arruinada às minhas contas. A discoteca, com o seu teto alto com juntas de aço à mostra, paredes de cimento grafitadas e uma enorme pista de dança era maior do que a maioria, mas naquela noite havia por debaixo das luzes da discoteca figuras rodopiantes suficientes para a tornar quase claustrofóbica. Eu estava grata pela multidão, já que tornava menos provável que alguém reparasse em mim. Esgueirei-me pela porta das traseiras e não me deparei com nenhum problema — pelo menos não do tipo homicida, de arma em punho. Um dos empregados do balcão tinha estado doente, por isso estavam com pouco pessoal e Mike tentou convencer-me a substituí-lo assim que me viu. Numa situação normal, eu não teria me importado, já que o meu trabalho habitual num dos seus espetáculos originais não rendia muito em gorjetas. Eu leio cartas de tarô três noites por semana, embora nunca tenha gostado das cartas. Uso-as porque é isso que esperam de mim, mas não preciso olhar de soslaio para as imagens arcaicas para saber o que vai acontecer. As minhas visões vêm em
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tecnicolor e com som são muito mais completas. Mas a maioria das pessoas iria preferir uma leitura padronizada àquilo que eu revelo. Como já disse, sou a melhor em "Ver" coisas ruins. No entanto, naquela noite recusei a oportunidade de ganhar uma grana. Achei que atender ao balcão não era a maneira como queria passar a minha última hora de vida. — Qual é a novidade? — Gritou-me Mike alegremente, fazendo uma manobra à lá Tom Cruise com as garrafas de bebida, para jubilo da multidão. Suspirei e meti a mão na mala. Os meus dedos agarraram o baralho de tarô engordurado que Eugenie, a minha velha governanta, me oferecera quando fiz dez anos. Ela mandara uma bruxa com sentido de humor enfeitiçar as cartas, e eu mantinha-as comigo porque era bom para entreter os clientes. Mas as previsões — que funcionavam como uma espécie de anel de humor kármico —, tinham o hábito sinistro de acertar na mosca. Levantei a mão e surgiu uma carta. Não era uma carta que eu quisesse ver. — A Torre. — Começou uma voz ecoante, antes de a atirar de volta ao baralho e bem para o fundo da mala. — Isso é bom? — Perguntou Mike, antes de se distrair com o decote de uma bela loura. Limitei-me a acenar com a cabeça e apressei-me a sair dali, perdendo-me na multidão antes que ele pudesse ouvir mais alguma coisa. A voz era apenas um crocitar abafado proveniente da minha mala exageradamente cheia, mas eu não precisava ouvir para saber o que dizia. A Torre significa uma mudança enorme e cataclísmica, daquelas que alteram completamente uma vida. Tentei convencer-me de que
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podia ter sido pior, podia ter sido a Morte, mas isso não serviu de grande consolo. A Torre é provavelmente a carta mais temida do baralho. A Morte pode ter muitos significados, muitos deles não sendo o literal, mas a Torre indica sempre confusão para alguém que queira uma vida tranqüila. Suspirei...qual era a novidade? Finalmente localizei Tomas na Masmorra — o apelido que Mike dava à sala do piso inferior — atravessando um mar de corpos vestidos de negro com uma bandeja de copos sujos. Como sempre, parecia comestível, para quem gosta de músculos esguios, pele como mel sobre natas e cabelo negro que lhe roça a cintura quando ele não o tem puxado para trás. A primeira vista, o seu rosto era demasiado marcado para ser atraente, com as maçãs do rosto salientes e as fortes feições angulares, mas a delicadeza de alguns dos seus traços compensava esse fato. Tinha o cabelo afastado do rosto por uma trança espessa, um indicador de que estava a trabalhar, uma vez que o prefere solto, mas algumas partes tinham-se libertado e encrespavam ao redor da sua cabeça em finas madeixas. O uniforme fora escolhido por Mike: uma camisa preta de seda tecida num padrão de rede que revelava mais do que tapava, calças de ganga pretas lustrosas6 que lhe assentavam como uma segunda pele e botas pretas de couro que lhe chegavam ao meio das coxas. Tinha mais aspecto de estar à frente de um clube de striptease do que a servir mesas, mas o sex appeal exótico que fazia dar água na boca suscitava uma grande reação nas góticas. A mim também não me feria propriamente a vista. Há cerca de um ano, Mike decidira que Atlanta já tinha bares suficientes de música country, por isso transformou o bar da família num paraíso progressivo no piso de cima e num sonho gótico no inferior.
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Tecido vulgar geralmente verde ou amarelo.
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Algumas pessoas da cidade resmungaram, mas o pessoal mais jovem adorou. Parecia que Tomas tinha sido feito para este lugar, juntamente com a decoração, e ele atraía muita clientela, mas preocupava-me o fato de passar metade de cada noite recusando propostas. Pelo menos eu deduzia que ele as recusava, já que nunca levou ninguém para o apartamento. Mas, dado o seu passado, às vezes eu ficava pensando se não teria sido uma das minhas jogadas mais parvas, ter-lhe arranjado este emprego em particular. Tomas tinha muito melhor aspecto do que na altura em que o vi pela primeira vez, quando freqüentava o abrigo local com o tipo de olhar mortiço que eu reconhecia dos meus próprios tempos de rua. Lisa Porter, a gerente que auto se intitulava mãe galinha daquele lugar, apresentou-nos quando eu passei por lá, para uma das minhas erráticas sessões de voluntariado. Começamos a conversar enquanto separávamos as roupas doadas recentemente em pilhas de uso: as precisam de concerto e as que só seriam aproveitáveis como trapos de limpeza. O fato de eu ter falado sobre ele a Mike nessa mesma noite e de ele o ter contratado depois de uma breve entrevista no dia seguinte diz muito acerca da personalidade de Tomas. Mike dizia que ele era a melhor contratação que já fizera — nunca adoecia, nunca se queixava e tinha uma aparência dos sonhos. Eu não estava assim tão certa desta última parte: a aparência era efetivamente marcante, mas, pessoalmente, eu achava que ele precisava de uma marca ou de uma cicatriz, qualquer marca naquela pele pálida e dourada que o fizesse parecer mais real. Ele tinha mais aspecto de um morto-vivo do que a maioria dos vampiros que eu conhecia, e ainda por cima assumia a pose inconsciente e a confiança tranqüila deles. Mas ele estava vivo e, desde que eu conseguisse afastar a minha personalidade agourenta dele, era provável que se mantivesse assim. — Tomas tem um minuto?
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Pensei que ele não tivesse me ouvido com o barulho da música, que o DJ mantinha dolorosamente alta, mas ele assentiu com a cabeça. Eu ainda não devia estar ali, por isso ele percebeu que se passava alguma coisa. Abrimos caminho pela multidão, o que me valeu um olhar de censura da parte de uma mulher com mechas roxas e batom preto por estar a roubar a atração principal. Ou se duvidar foi da minha camiseta e brincos com smileys que ela não gostou. Geralmente, eu usava algo gótico, ou o mais próximo que conseguia sem parecer verdadeiramente horrenda — o preto não favorece as louras arruivadas — mas isso era quando estava trabalhando. Descobri bem depressa que ninguém leva a sério uma cartomante se ela aparecer em tons pastel. Mas nos meus dias de folga reservava-me o direito de não ter o aspecto de quem vai a caminho de um funeral. A minha vida já é suficientemente deprimente sem ajuda. Abaixamo-nos por detrás do balcão para entrar na sala dos fundos. Lá era mais sossegado, o que significava que nos conseguíamos ouvir um ao outro se estivéssemos próximos e gritássemos, mas o barulho era um problema menor do que olhar na cara de Tomas e decidir o que dizer. Tal como eu, ele tinha ido cedo para as ruas. Ao contrário de mim, ele não tivera nada para negociar a não ser ele próprio. Eu não gostava do olhar que lhe assomava aos olhos sempre que lhe perguntava acerca do seu passado, por isso, normalmente, evitava fazê-lo, mas deveria ser uma variação do tema habitual. A maioria dos pequenos de rua tem a mesma história para contar, que gira em torno de ser usado, maltratado e atirado ao lixo. Eu pensara que lhe estava a fazer um favor ao deixá-lo morar no meu quarto de hóspedes e ao arranjar-lhe um emprego a sério, para variar, mas uma parte da ira de Tony era um preço elevado a pagar por seis meses de estabilidade.
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A nossa relação não era suficientemente próxima para me ajudar a perceber de que forma manter Tomas em segurança sem parecer que estava abandonando-o. Parte do problema residia no fato de nenhum de nós gostar de desabafar, e a isso não ajudava o fato de termos começado mal. Na noite em que ele se mudou lá para casa, eu saí do banheiro e encontrei-o deitado nu na minha cama, com o cabelo espalhado como um borrão de tinta nos meus lençóis brancos. Eu ficara ali parada, agarrada à minha toalha do Ursinho Pooh e a olhá-lo fixamente, enquanto ele se esticava como um gato no meu edredom de penas, cheio de músculos luzidios e uma maleabilidade graciosa. Estava completamente à vontade e eu percebi porquê; decerto não parecia um pequeno de rua faminto. Nunca lhe perguntei a idade, mas deduzi que ele era mais novo do que eu. O que o tornava bastante novo para ter aquele olhar específico nos olhos. Não consegui impedir-me de seguir a linha que uma mão com dedos longos percorreu pela parte lateral do seu corpo, desde os mamilos até à virilha. Era um convite descarado, e eu demorei um instante a parar de babar e perceber o que estava acontecendo. Finalmente compreendi que ele pensava que tinha a obrigação de pagar o seu quarto da forma que considerava ser a habitual. Nas ruas, as regras não existem, pelo que, quando me recusei a aceitar dinheiro, ele depreendeu que eu queria outro tipo de pagamento. Eu devia ter tentado explicar, dizer-lhe que toda a minha vida se resumira a ser usada e que com certeza absoluta eu não iria fazer o mesmo a outra pessoa. Sem duvidas, se o tivesse feito, teríamos começado a conversar e esclarecido algumas coisas. Infelizmente, o que fiz em vez disso foi enlouquecer me e expulsá-lo do quarto, juntamente com o cobertor que eu rapidamente atirara para cima dele. Não sei o que ele pensou daquilo tudo, uma vez que nunca falamos daquela noite. Acabamos por cair numa rotina mais ou menos descontraída, dividindo as tarefas domésticas, cozinhando e indo às compras como quaisquer dois colegas de quarto, mas ambos guardamos os nossos segredos. Às vezes
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apanhava-o a olhar para mim com uma expressão estranha e achava que ele estava à espera de que eu o abandonasse como todos os outros. Odiava o fato de ser exatamente isso que eu estava prestes a fazer. — Saiu mais cedo? — Ele tocou no meu rosto e recuei, querendo afastar-me daqueles olhos confiantes. Não havia maneira de fugir ao que tinha de fazer, mas não estava desejosa de ver o rosto dele a fechar-se, nem de ver a pouca fé que ele pudesse ter reconquistado nas pessoas a esvair-se por minha causa. — Não. — Troquei o pé de apoio e tentei pensar na forma de não fazer com que isto soasse a uma rejeição. Não era por culpa dele que a minha vida estava a ir por água abaixo. Mais uma vez. — Tenho de dizerte uma coisa importante e você têm que ouvir e fazer o que eu te pedir, está bem? — Vai ir embora. — Não sei como é que ele soube. Talvez eu estivesse com aquele olhar. Ele já devia o ter visto antes. — Não tenho escolha. — Por consentimento mútuo, saímos pela porta das traseiras para a superfície calçada que rodeava as escadas para o piso térreo. Não era lá grande vista, mas pelo menos era mais sossegado. O ar cheirava a chuva, mas a chuva que tinha estado ameaçando romper a tarde toda tinha se segurado. Se eu me apressasse, talvez conseguisse chegar ao terminal de ônibus antes de ficar encharcada. — Lembra que eu te disse que me aconteceram umas coisas más há uns tempos? — Sim, mas agora não tem nada com que te preocupar. Eu estou aqui. — Ele sorriu e eu não gostei da expressão nos seus olhos. Não
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queria que ele gostasse de mim, não queria que ele sentisse minha falta. Bolas, isto não estava a correr bem. Resolvi deixar de tentar de ser sutil; não era o meu forte. — Em breve vão acontecer umas coisas sérias e eu tenho de ir embora antes que elas arrebentem. — Não era lá uma grande explicação, mas como é que se diz a alguém que o vampiro bandido que nos criou e a quem fizemos o possível por destruir pôs minha cabeça como prêmio? Era impossível que Tomas conseguisse compreender o mundo de onde eu vinha, nem que eu tivesse todo o tempo do mundo para explicar. — Pode ficar com o que está no apartamento, mas leve as minhas roupas para o abrigo. Lisa há de dar-lhes bom uso. — Senti uma dor momentânea pelo meu guarda-roupa cuidadosamente reunido, mas era impossível de evitar. — Cass... —Eu falo com o Mike antes de ir. Tenho certeza que ele te deixará dormir aqui durante uma semana ou duas, caso alguém apareça no apartamento à minha procura. Provavelmente não é aconselhável que volte lá por um tempo. — Havia um apartamento no topo do prédio que sobrou da época em que os proprietários viviam por cima dos seus negócios. Mike usara-o há pouco tempo, pelo que deveria estar em boas condições. E eu certamente sentir-me-ia melhor sabendo que Tomas estava vivendo lá. Não gostava da idéia de um bando de vampiros em fúria a aparecer em nossa casa de repente à minha procura e encontrar a ele. — Cassie. — Tomas pegou minha mão com cautela, como se tivesse medo de que eu a afastasse abruptamente. Ele achava que eu sentia reservas em relação a ser tocada desde aquele mal-entendido inicial. Eu nunca o corrigi porque não queria dar a impressão errada e,
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francamente, era mais fácil conseguir portar-me bem se mantivesse alguma distância entre nós. Ele não precisava ser assediado em casa, como já acontecia no trabalho. — Eu vou contigo. — Disse com serenidade, como se fosse a coisa mais lógica do mundo. Eu não queria magoá-lo, mas não podia ficar ali argumentando, quando tinha um assassino atrás de mim. — Não pode. Desculpa, mas duas pessoas são mais fáceis de encontrar do que uma, e, além disso, se eu for apanhada... — Parei porque não consegui pensar numa maneira de lhe dizer o quão mau seria sem parecer uma doida varrida. Obviamente, era provável que as coisas estranhas que ele já vira nas ruas fossem suficientes para que tivesse um espírito mais aberto do que qualquer um, que tratava qualquer pessoa que começasse a falar sobre vampiros como um louco ou um psicopata. Mas, mesmo que eu descobrisse uma maneira de lhe dizer, não havia tempo. — Desculpa. Tenho de ir. — Não era assim que eu queria despedir-me. Havia imensas coisas que eu não dissera a Tomas por temer que pudesse parecer que eu estava a fazer-me a ele. E agora que podia dizer tudo o que quisesse, tinha de ir embora. Comecei a me afastar, mas ele agarrou minha mão com um aperto que me surpreendeu de tão forte. Antes que eu pudesse insistir para que ele me largasse, senti uma sensação muito familiar e de todo indesejada a invadir-me. O ar abafado da noite foi subitamente substituído por algo mais frio, mais sombrio e bem menos agradável. Não sei o que os não sensoriais sentem ao pé de vampiros, mas toda a minha vida fui capaz de reconhecer quando eles estão por perto. É como quando as pessoas dizem que há alguém a caminhar sobre a sua campa — uma espécie de arrepio na espinha misturado com uma sensação de
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haver algo de errado. Nunca me sinto assim com os fantasmas, como acontece por vezes com as pessoas normais, mas acontece sempre com os vampiros. Ergui o olhar e, por um instante, vi a negra silhueta contra o brilho dos postes da rua, antes de esta se esfumar na noite e desaparecer. — Merda! Saquei a arma e empurrei Tomas de volta para o depósito. Não que isso valesse de muito; se Tony tivesse enviado vampiros atrás de mim, precisávamos de mais proteção do que aquela que uma simples porta podia dar. Eu já tinha visto Tony arrancar pelas dobradiças uma tábua de carvalho maciça com apenas um movimento das suas mãos delicadas e cobertas de anéis, só porque não encontrava a chave e estava de mau humor. — O que foi? — Alguém que não quero ver. — Olhei para Tomas e tive um vislumbre do seu rosto cheio de sangue e do seu olhar sereno vazio de morte. Não era uma "Visão", era apenas o meu cérebro a produzir o seu habitual cenário da pior das hipóteses, mas foi o suficiente para me ajudar a estabelecer prioridades. Os vampiros não iriam entrar e massacrar metade da discoteca à minha procura. Tony tinha muito medo do Senado para concordar com o assassinato em massa, mas não pensaria duas vezes em eliminar um puto de rua qualquer que se interpusesse em seu caminho. Era a mesma atitude que ele demonstrara quando me deixara órfã aos quatro anos de idade para garantir o controle total das minhas capacidades. Os meus pais constituíam um obstáculo à sua ambição, por isso foram eliminados. Simples. E não era provável que o Senado fosse
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causar alarde por causa de algo que poderia ser considerado como uma atividade normal do bando. Então, a prioridade número um era tirar Tomas da linha de fogo. — Tenho de sair daqui, senão ponho toda a gente em perigo. Mas agora eles podem vir atrás de ti, pois viram-nos conversando. Vão pensar que você sabe para onde eu vou. Arrastei-o para trás ao longo do depósito, tentando pensar. Tinha sido uma estupidez vir até aqui, deixá-los verem a mim e Tomas juntos. Apesar de lhes ter dito o contrário regularmente, metade das pessoas da discoteca partiam do princípio de que ele era meu amante. Se os capangas de Tony começassem a fazer perguntas sobre ele e alguém lhes dissesse isso, iriam torturá-lo até à morte para tentarem me encontrar. Nunca devia ter me envolvido, ainda que de modo platônico, com ninguém. Eu era uma espécie de veneno — qualquer um que se aproxime de mim, tem sorte se apenas morrer. Eu tinha de arranjar uma maneira de nos tirar dali, e, tal como eu, Tomas nunca poderia pensar em regressar. Que boa vida eu o ajudei a construir. Havia ainda o problema de o vampiro nos ter deixado em paz. Eu já os tinha visto parecer que se dissolviam no vento, tal é a rapidez com que conseguem deslocar-se. Ele tivera tempo mais do que suficiente naqueles poucos segundos para atacar, rápido como uma serpente, ou para me alvejar, de uma distância boa e segura. Os vampiros não precisavam de armas contra os mortais, mas o Senado preferia que os ataques parecessem os mais naturais possíveis, motivo pelo qual a maioria dos capangas de Tony andava com elas. Ele podia ter desconfiado de que eu também estivesse armada, mas duvido que temessem minha arma, mesmo que não soubesse que tenho má pontaria. A minha maior esperança seria a de fazê-lo abrandar. Não, eu
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estava viva porque fosse quem fosse que andava por ali tinha ordens para respeitar as regras do jogo. O óbito dissera 8h43 e às 8h43 seria. Já conseguia ouvir Tony dizendo à família que tinha arranjado uma última pequena "Visão" para a sua profetisa e que, desta vez, ela nem sequer tivera de fazer o trabalho sozinho. Indaguei sobre se eles planejavam me matar aqui e me levar para Peachtree, ou se simplesmente iriam apoderar-se da minha mente e me obrigar a ir até lá como o proverbial cordeiro para o sacrifício. Não me agradava particularmente nenhum dos planos. Molhei rapidamente os lábios secos. — Muito bem, toma. Põe isto na cabeça e vai buscar o teu casaco. Enfia o cabelo aí dentro. — Mike deixara um dos seus muitos bonés de basebol numa prateleira de arrumação e eu o agarrei, mas não era possível aquele cabelo todo caber lá dentro. — Temos de encontrar alguém que tenha um casaco com capuz que te empreste. É muito fácil te identificar. — Talvez um dos góticos nos emprestasse uma capa. Se eu conseguisse que Tomas tivesse um aspecto suficientemente diferente, ele poderia ser capaz de escapar enquanto os vampiros estivessem concentrados em mim. — Cassie, escuta. Há uma... — Nunca descobri o que Tomas ia dizer, porque a porta por onde tínhamos acabado de entrar escancarouse como se nem sequer tivesse fechadura e cinco vampiros enormes entraram com tudo na sala. Pareciam um grupo de defesa de futebol americano que tinha se juntado a uma banda grunge, cheios de músculos proeminentes e cabelo oleoso pelos ombros. Por um instante gélido, todos nos fitamos. O tamanho é bastante irrelevante quando se é um morto-vivo, mas Tony gosta deles grandes, suponho que por causa do fator intimidador. Resultou que eu estava
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intimidada. O fato de eles não se preocuparem em ocultar seus rostos verdadeiros debaixo de máscaras refinadas não ajudava. Eu sabia qual era o aspecto de um vampiro quando estava caçando — já o vira vezes suficientes — mas não deixava de ser uma imagem saída de um pesadelo. Tive oportunidade de pensar sobre se viveria tempo suficiente para precisar me preocupar com maus sonhos antes de eles se transformarem numa mancha em movimento. Disparei contra um para a zona do coração, mas isso não o deteve. Não pensei que o deteria. Não que isso tivesse importância: não esperava derrotar cinco vampiros assassinos, era impossível conseguir lidar com aquela desigualdade. Tony devia estar mais irritado do que eu pensava.
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Capítulo 2 A arma foi arrancada da minha mão e eu me estatelei de cara contra a parede de alvenaria. Ao mesmo tempo, o meu braço foi torcido atrás do meu corpo e tive medo que se partisse. Não vi o que aconteceu nessa altura porque estava muito ocupada fazendo um tratamento facial de cimento, mas ouvi o que me pareceram ser todas as prateleiras de metal da sala serem viradas do avesso. Alguém rugiu de raiva, depois uma onda poderosa ondeou através do quarto como um vento quente, esmagando-se contra a minha pele numa saraivada de faíscas. Se eu tivesse tido fôlego suficiente, teria gritado, não só devido à sensação, mas também por causa da pura mesquinhez do sacana que não me dava sequer uma mínima chance de fugir. Não só Tony tinha mandado um esquadrão inteiro de vampiros atrás de mim, como pelo menos um deles tinha de ser decididamente um mestre. Mais ninguém conseguia convocar aquele tipo de poder, nem sequer cinco vampiros vulgares a trabalhar em conjunto. E também não era um mestre antigo qualquer. Na sua maioria, os vampiros passam a sua vida imortal como escravos, servindo quem os criou sem a capacidade de quebrar amarras, ou recusar uma missão. Mas alguns, geralmente aqueles que foram mais obstinados em vida, ganham poder com o passar do tempo. Quando atingem o nível de mestre, podem criar outros vampiros para os servirem e, geralmente, recebem alguma autonomia por parte dos seus criadores. O sétimo nível é o grau mais baixo de mestre e a maioria nunca progride a partir daí, mas, para aqueles que o fazem, cada degrau ultrapassado na escala rende-lhes novas capacidades e mais liberdade. Toda a minha vida estive perto de vampiros mestres, até o terceiro nível, como Tony, e já tinha visto muitos perderem a paciência. Mas nunca
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antes me sentira como se o poder deles pudesse realmente fazer buracos na minha pele. Parecia impossível que Tony tivesse convencido um vampiro sênior, de segundo ou primeiro nível, a cometer um assassinatozinho sórdido, me matar não era propriamente um desafio, mas não havia outra explicação. Gritei para que Tomas fugisse, mesmo sabendo que não serviria muito, e o meu vampiro concluiu que eu não devia estar com dores suficientes, já que conseguia fazer aquele barulho todo. Baixou a mão com que segurava minha nuca até ao meu pescoço e apertou. Lembro de ter pensado que, se tivesse sorte, ele me sufocaria até à morte antes de se lembrar de me entregar. Não iria acabar por ser uma grande noite para mim, mas era melhor do que passar a eternidade olhando para a cara feia de Tony. Passado um segundo, quando comecei a ver pontinhos rodopiando ao redor e a ouvir um ruído nos ouvidos, o vampiro deu um grito agudo e a pressão parou subitamente. Arquejei e caí de joelhos, me esforçando para respirar fundo através da garganta que ardia, enquanto ele gritava à minha frente, guinchando como se estivesse sendo literalmente despedaçado. Demorei alguns segundos pra perceber o que acontecia com ele, uma vez que não era uma coisa que acontecesse todos os dias. Uma grande pista foi à sensação quente, quase líquida, que percorreu o pentagrama7 inclinado que eu tinha nas costas, como se alguém tivesse colocado azeite quente sobre minha pele. Outro indício foi o fato do braço do 7
proteção.
Estrela de cinco pontas, a qual se atribuem poderes mágicos, muito usada como símbolo de
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vampiro e parte do seu peito estarem cobertos de linhas reluzentes e dourados enquanto fervilhavam e saltavam, cozinhando a carne entre elas e osso. Enquanto eu observava, uma saliência derretida obscurecia o pequeno corte por cima do seu peito por onde a minha bala entrara e prosseguira. Olhei, paralisada de choque. Pela forma das marcas, era bastante óbvio que a minha sentinela se incendiara e ganhara vida. Isso era irônico, tendo em conta que fora provavelmente Tony a introduzi-la na minha pele. Eu sempre pensei que ele tinha sido enganado: a sua forma original de pentagrama esticara à medida que eu fui crescendo, e tudo o que me restou foi uma tatuagem feia que me tapava metade das costas e parte do ombro esquerdo. Mas, embora já não fosse um desenho muito bonito, parecia funcionar bastante bem. Contudo, o vampiro que me atacou não era um mestre, aquele impulso de energia viera de algum lugar atrás de nós e de que forma a minha sentinela conseguia defrontar um dos garotões era uma questão em aberto. Eu estava muito impressionada por ela ter feito tanto; da última vez que anteriormente chamejara, não tinha dado um espetáculo assim tão grande. Apenas queimara o braço do aspirante a assaltante, chamuscando-o o suficiente para eu conseguir fugir. É claro que, nessa altura, tratou-se de um humano que tentou arrancar minha cabeça. Será que se tornava mais forte devido à força daquele que eu estava combatendo? Eu tinha o mau pressentimento de que ia descobrir. Sei algumas coisas sobre sentinelas, uma vez que Tony tinha sempre ao seu serviço duas sentinelas para manter as proteções mágicas em torno da sua casa e dos seus negócios. Com eles aprendi que há três categorias principais: sentinelas de perímetro, sentinelas de energia e sentinelas de proteção. As sentinelas de perímetro são as que Tony usa como camuflagem quando está a tramar algo ilegal, por outras palavras,
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a toda a hora. As sentinelas de energia são mais complexas: no seu auge, são melhores do que o Prozac para aliviar a tensão e ajudar as pessoas a ultrapassarem problemas emocionais. No seu pior, que é como Tony geralmente as usa, são capazes de lhe permitir influenciar negociações profissionais importantes. Todas as pessoas dentro do perímetro das sentinelas começariam a se sentirem muito descontraídas e decidiriam rapidamente que as bobeiras assassinas eram demasiado trabalhosas, quando podiam simplesmente fazer aquilo que Tony queria. Há dois tipos de sentinelas de proteção: os escudos pessoais e as guardas. Eugenie dera-me lições sobre o primeiro tipo quando eu era menina. Sem elas, eu até conseguia sentir a presença dos fantasmas dos fantasmas, os tênues trilhos de energia que se expandiam para trás no tempo como linhas reluzentes num mapa, dizendo-me que em tempos, talvez há centenas de anos, um espírito passara por ali. Quanto mais eu crescia, mais me distraía com as sensações, se deixar era porque a velha mansão de Tony estava entre uma necrópole índia e um cemitério colonial. Por fim, Eugenie cansou-se de ver a minha mente divagar durante as aulas e me deu as ferramentas para me proteger delas. Ensinou-me a sentir o meu campo de energia, aquilo a que algumas pessoas chamam de aura, para depois usar esse meu poder para construir uma cerca à sua volta, para proteção. Os meus escudos acabaram por se tornarem automáticos filtrando tudo, à exceção dos espíritos ativos no presente. Mas os escudos só são poderosos se a pessoa que os constrói também o são, uma vez que habitualmente se alimentam do poder pessoal e, na sua maioria, não são fortes suficientes para se projetarem a um grande ataque espiritual ou físico. É aí que entram as guardas. Concebidas por um grupo de feiticeiros, destinam-se a proteger do mal uma pessoa, objeto ou local. Podem ser programadas para afastar o perigo, geralmente virando a intenção maléfica contra o inimigo, ou, em
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casos como o meu, garantindo que qualquer pessoa que me toque com más intenções acabe a gritar de agonia. Estes tipos de sentinelas são um grande negócio na comunidade sobrenatural. Uma vez, Tony pagou uma pequena fortuna a um aspirante de sentinelas para conceber uma combinação especial de perímetro e proteção para uma esquadra de navios que transportava substâncias altamente ilegais. A idéia era fazê-las parecer restos de lixo a qualquer observador, o tipo de coisa que as autoridades não gostam de inspecionar meticulosamente. Mas o protetor era jovem e descuidado e as sentinelas falharam precisamente no momento em que os navios se dirigiam ao porto, quase diante de uma patrulha da Guarda Costeira. Tony perdeu a carga e o protetor a vida. Quando a minha sentinela foi feita, eu era muito nova para lembrar da experiência, mas quem quer que a tenha concebido sabia o que estava fazendo. Tony deve ter pagado um bom dinheiro por ela, se bem que essa era provavelmente uma situação em que ele gostaria de ter pagado menos. Os meus olhos tinham começado a lacrimejar devido ao fedor da carne queimada do vampiro, uma coisa que não se cheira todos os dias, e, por momentos, quase vomitei, antes de perceber subitamente que já conseguia me mexer. Olhei freneticamente em volta, à procura da minha arma, antes de desistir quase de imediato e começar às apalpadelas pela beira de uma estante. Não havia sinal da minha 9mm e não havia maneira de eu conseguir chegar à porta sem ela. E as poucas caixas na estante que constituíam a minha triste chance de esconderijo não iam enganar ninguém durante muito tempo. Não tinha arma, não tinha forma de me esconder e apenas possuía uma sentinela deformada como proteção.
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Decidi pelo melhor ato de coragem, um procedimento também conhecido como fugir e esconder-se, e comecei a recuar pelo corredor. Se conseguisse evitar o vampiro mestre por um minuto, talvez fosse possível chegar à pequena porta que ia dar à parte incompleta do primeiro piso. Não tinha acesso para o resto da discoteca, mas era adjacente à parede detrás ao extremo do balcão. Se eu estivesse fora do seu campo de visão, haveria uma pequena chance de os sentidos do vampiro se confundirem e de ele deduzir que eu voltara a esgueirar-me para dentro do balcão. Isso poderia me fazer ganhar alguns segundos para escapar pela parte traseira, se ele não fosse mais inteligente e não deixasse um dos seus capangas de guarda. É claro que, mesmo que ele o fizesse, talvez minha marca conseguisse derrotar outro vampiro de nível inferior. Ou talvez não. Alcancei finalmente a porta de tamanho médio no extremo da última fila de prateleiras, mas nem sequer a tinha aberto quando ouvi um estrondo e um grito inumano atrás de mim. Olhei por cima do ombro, à espera de ver um ou mais vampiros assassinos vindo na minha direção. Meu cérebro em pânico demorou alguns segundos a perceber que a pessoa que flutuava pelo corredor abaixo era Portia e que o som da luta vinha de uma distância de vários corredores. — Eu te disse que traria ajuda, Cassie! — O rosto dela brilhava de entusiasmo e as pequenas fileiras de caracóis em cada lado da sua cabeça oscilaram quando ela se virou para fazer um gesto teatral atrás de si. O que parecia ser uma brigada inteira da Confederação entrara de forma impetuosa na sala, ainda que não fosse possível caber tanta gente ali, nem de perto, nem de longe. Eu já tinha visto aquele truque por vezes, a metafísica manda os velhos físicos do costume darem uma volta, mas não deixava de ser impressionante.
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Um vistoso oficial com um longo bigode curvou respeitosamente a cabeça. — Comandante Beauregard Lewis, ao seu serviço, minha senhora. Ele fazia lembrar Custer8, uma observação que provavelmente não teria caído bem se eu tivesse sido suficientemente parva para a fazer. Mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa, um vampiro alcançou a estante e o tronco insubstancial do comandante e agarrou-me pela garganta. Beauregard desembainhou a sua espada e eu tive meio segundo para me indagar sobre o que ele pensava que ia fazer antes de a espada descer num arco cintilante que arrancou o braço do vampiro pelo cotovelo. Ele gritou e eu também, no meu caso por ter sido salpicada com uma camada quente de sangue e porque o braço amputado continuava agarrado à minha garganta, com os dedos em busca da minha traquéia. O corpo dos vampiros não morre, a menos que lhes destrua a cabeça e o coração, portanto o braço estava tentando completar a última ordem que lhe fora dada e me fazer sufocar até à morte. Beauregard tentou arrancá-lo, mas a mão dele atravessou de imediato. — Peço imensas desculpas, minha senhora — Ele disse, enquanto a minha visão ameaçava obscurecer-se pela segunda vez naquela noite. — Mas usei a maior parte da minha energia naquele golpe. —Abanou a cabeça com pesar. — É triste, mas o tempo faz fracos. — Parecia que ele esperava que eu dissesse alguma coisa, mas é um pouco difícil ser solidário quando não se consegue respirar e se tem fogos-de-artifício explodindo em nossas pálpebras. 8
George Armstrong Custer, tenente-coronel norte-americano que ficou conhecido por ter liderado uma batalha contra os índios que custou a vida aos duzentos homens que constituíam o contingente militar, incluindo a sua..
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O vampiro fez uma nova investida contra mim, mas Portia conseguiu fazê-lo tropeçar com a sua sombrinha. — Pegue-no! — Gritou ela, e o batalhão, que até então estivera meramente a observar a cena, moveu-se como um massivo e agitado rio cinzento. Foi um daqueles momentos em que se viram os olhos, enquanto o cérebro lhes diz que não podia estar vendo o que acontecia. Milhares de militares convergiram num mesmo ponto, caindo nele como água desaparecendo por um cano. Só que o cano em questão não foi feito para aquele tipo de coisa e era mais do que certo que não gostava dela. O vampiro começou a ricochetear pelas estantes, com o seu único braço se movendo como se de alguma forma ele pudesse vencer a invasão, enquanto a sua pele passava a um tom arroxeado. Quando tentei afrouxar os dedos que tinha em volta do pescoço e atirar o braço para o chão, ele já tinha parado de se mexer, imóvel como uma estátua ao fundo do corredor. Tentei me manter atenta a ele, mas fui distraída pelo braço amputado, que tentava percorrer o chão às arranhaduras e agarrar-me. Eu não tinha a certeza do que estava acontecendo, mas supus que cada um dos fantasmas estivesse a congelar um pedacinho do vampiro, transformando-o num enorme e feio picolé de gelo. Tinha começado a pensar no que aconteceria quando todos aqueles espíritos tentassem fugir da pele agora rígida dele quando se deu a explosão. Eu tinha agarrado uma garrafa de vinho e começado a bater no braço, por isso perdi o grande acontecimento. Só sei que acabei coberta de fragmentos gelados de pele de vampiro que me atingiram como pedrinhas de granizo. Portia flutuou, evitando o chão repugnante simplesmente não lhe tocando. Girou a sombrinha rendada e sorriu-me radiantemente.
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— Temos que ir, Cassie. Aquilo exigiu muito dos rapazes e eles precisam descansar. Mas queremos que saiba que foi um momento muito agradável! — Deu o braço a Beauregard e fez uma mesura, enquanto ele voltava a curvar respeitosamente a cabeça; depois desapareceram juntamente com a multidão que fluiu para fora dos restos mortais do vampiro. Sentei no meio de um pedaço de meleca derretida, muito aturdida para agir, e esfreguei o pescoço. Tinha o rosto ardendo no local onde a cascata de fragmentos de vampiro tinha me atingido, mas a minha garganta era um problema maior. Parecia que não conseguia engolir, e isso me deixou preocupada. Podia ter ficado ali sentada por um bom tempo, vendo os pedaços do vampiro derreter e cair das prateleiras, mas Tomas apareceu no fundo do corredor. — De pressa!— Agarrou meu pulso e me arrastou para a parte principal da sala. Gritei de dor, era o mesmo pulso que o vampiro quase torcera, e de surpresa por vê-lo vivo. Eu já tinha considerado a nos dois como mortos, mas agora me ocorria perguntar quem é que combatera os vampiros se o grupo de Portia tinha estado comigo. A mão dele pingava sangue e, por um instante, pensei que fosse seu, mas não vi nenhuma ferida. O meu grito deve tê-lo assustado, porque ele me largou abruptamente e eu caí no chão, arfando e sufocando devido ao esforço que o berro provocara na minha garganta maltratada. Foi então, enquanto aninhava o pulso junto ao peito e tentava não ficar mal disposta, que reparei nos cadáveres. Além do atacante, que agora tinha menos um braço e emitia sons gorgolejantes enquanto a marca lhe consumia o peito, o único que ainda se mexia estava encurralado debaixo de uma estante que parecia ter sido arrancada da parede e atirada em cima dele. Era aí que tinham estado guardadas uma série de chapas de metal que sobraram da
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decoração de armazém urbano que Mike aplicara na discoteca e que tinham sido resgatadas de uma fábrica condenada. Não eram as idéias de um designer para apoios laterais de metal elegante, aquilo eram peças espessas e afiadas como navalhas com as quais Mike tivera de ter cuidado adicional durante a instalação. Aparentemente, tinham ganhado impulso quando a estante foi arremessada, transformando-se em projeteis letais que fatiaram o vampiro como se fosse um naco de pão. Ele devia ter-se alimentado recentemente, pois os múltiplos golpes tinham derramado sangue suficiente para cobrir o chão como uma manta carmim. No entanto, nenhuma das chapas lhe tinha cortado a cabeça ou trespassado o coração, por isso, apesar dos seus ferimentos macabros, continuava vivo. Olhou na minha direção e eu o vi debater-se para erguer a arma que agarrava com uma das mãos. Tomas reparou nisso e, sem hesitar, encaminhou-se para lá e puxou para fora a chapa de metal incrustada no abdômen do vampiro. Bateu-lhe com uma série de golpes rápidos, enquanto eu o olhava incrédula e boquiaberta. Passado pouco segundos, a coisa no chão parecia mais com um monte de hambúrguer cru do que uma pessoa. O vampiro continuava a me olhar com olhos cheios de ódio, ciente do que estava acontecendo mesmo enquanto era chacinado, e eu não gritei, não conseguia fazer nada. Já tinha estado em problemas antes, mas os nervos esqueceram-se do que é permanecer num estado de completa tensão em cada minuto do dia quando já não tem que viver dessa maneira. Observei Tomas separar a cabeça do vampiro do seu corpo com um último golpe seco e deixei sair um suspiro que nem percebi ter estado contendo. Estávamos vivos. Nem podia acreditar, e a verdade é que não entendia como.
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O fato de ter crescido junto com Tony tinha me feito ganhar uma tolerância bastante elevada à violência, por isso eu estava mais ou menos agüentando até reparar que os cadáveres do quarto e do quinto vampiros tinham buracos abertos e rasgados no lugar onde deveriam estar seus corações. O ataque com uma estaca é a forma tradicional e continua a ser a maneira mais popular de lidar com um vampiro, mas suponho que arrancar o coração à mão também dê certo, embora eu nunca o tivesse visto ser feito assim. Estava pensando que podia passar sem voltar a vê-lo quando olhei para Tomas e, de repente, a sala desapareceu. Normalmente, recebo algum tipo de aviso quando estou prestes a ter uma visão. Não é que consiga impedi-las, mas os trinta segundos de desorientação que as antecedem dão-me tempo para desaparecer da vista de outras pessoas e permitem me preparar mentalmente. Desta vez não recebi nada. Foi como se o chão se abatesse e eu caísse num túnel escuro e comprido. Quando parei, Tomas estava a cerca de dois metros de distância, numa planície verde que parecia interminável sob um pálido céu azul. A sua pele parecia bronze polido, em vez de nata beijada pelo sol, e ele tinha vestida uma túnica de lã, suja e sem mangas, em vez de roupa gótica chique, mas não havia dúvidas de que era ele. Seus olhos estavam ferozes, cintilando como duas jóias negras no rosto, e sua expressão era triunfante. Estava rodeado por um grupo de homens vestidos de modo semelhante, todos com aspecto de que a sua equipe favorita tinha acabado de ganhar o campeonato. Numa encosta rochosa ali perto arrebentavam ondas, de um verde tão escuro que quase parecia negro, lançando para a terra uma brisa fresca em pancadas geladas. Seria uma cena austera, mas bela, se não fossem as dezenas de corpos por ali espalhados. Na sua maioria pareciam europeus, sendo que o mais próximo tinha roupas que podiam ter saído de um filme de piratas de baixo orçamento: camisa branca de
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algodão de mangas compridas, calças castanhas de linho e colant branco manchados. O homem tinha perdido os sapatos e o seu cabelo estava tão feroz como sua expressão. Enquanto eu observava com um fascínio horrorizado, Tomas enfiou uma grosseira faca de bronze no peito ainda arfante do homem e lhe deu um golpe profundo que o abriu do pescoço à barriga. O calor proveniente do ferimento misturou-se com o ar fresco e levantou uma nuvem de vapor, mas esta não era espessa o suficiente para me impedir de o ver arrancar costelas como se estivesse partindo galhos. Riachos brilhantes de sangue banharam-lhe a mão enquanto ele retirava o coração tremulo e o segurava no alto; depois, lentamente, como se estivesse saboreando o momento, começou a levá-lo até à boca. Seus dentes afundaram-se na carne tremente que ainda tentava palpitar, depois rasgara a veia que pulsava o que lançou uma torrente de sangue que lhe jorrou para a cara e lhe escorreu pelo queixo. O sangue se acumulou na concavidade de sua garganta, depois lançou dedos vermelhos pelo seu peito abaixo até à túnica, deixando atrás deles desenhos abstratos, parecendo-se com pinturas de guerra. Teve uma convulsão na garganta e engoliu, provocando gritos de entusiasmo nos guerreiros que observavam. Eu devo ter feito algum ruído, porque ele olhou para mim, exibindo dentes manchados de vermelho numa horrível imitação de sorriso, e estendeu a repugnante massa de carne, como se a oferecesse para partilharmos. Deu um passo em frente e eu percebi que estava colada ao chão, incapaz de o deter, incapaz de fugir, enquanto aquela mão que pingava se aproximava como uma oferta macabra. Minha paralisia finalmente terminou e eu gritei. Fez doer a minha garganta, mas eu não tinha maneira de o retrair.
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A visão se desfez e eu regressei ao depósito sangrento, olhando descontroladamente o novo Tomas, que, por uma fração de segundo, se sobrepôs ao antigo. A sua língua deslizou para fora para lamber uma minúscula gota vermelha que tinha no canto da boca, tão pequena que passou despercebida até ele chamar a atenção sobre ela. Lembro-me de ter pensado que velhos hábitos demoram se a perder, precisamente antes de começar a berrar a plenos pulmões. Ele deu um passo na minha direção, de mãos estendidas à sua frente, como se quisesse mostrar o quão inofensivo era, e eu vi que estavam novamente quase limpas. Quando se aproximou mais, uma última mancha na palma da mão dissolveu-se, desaparecendo de sua pele, como uma gota de água na areia do deserto. Percebi que estava andando para trás como um caranguejo, enquanto chorava e praguejava, mas não me importei. Escorreguei no sangue espalhado e caí, gritei com mais força quando vi que tinha as pernas cobertas de vermelho, como se tivessem desabrochado rosas nos meu colant e botas. Tomas veio lentamente na minha direção, falando calmamente, como se eu fosse um cavalo selvagem que ele tentava amansar. — Cassie, ouve, por favor. Ganhamos algum tempo, mas temos de ir. Deve haver outros. Tropecei novamente e caí de bunda no chão, machucando-a em algo duro. Uma parte do meu cérebro que ainda estava coerente reconheceu a forma do objeto e eu apanhei a minha arma debaixo de mim. — Não te aproximes mais, senão te mato. — Apontei-a a Tomas e, apesar de ela estar tremendo descontroladamente na minha mão instável, vi que ele percebeu que eu estava falando sério. Os seus olhos, habitualmente ternos, calorosos e abertos eram agora espelhos negros
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opacos. Eu não conseguia ver nada para além deles, nem queria. Céus, nem queria. — Cassie tem que me ouvir. — Olhei para aquele rosto atraente e uma parte de mim desligou-se para ver outra ilusão desfazer-se e morrer. Pensava que tinha finalmente feito uma coisa boa, que tinha de fato ajudado alguém, salvado alguém, ao invés de estar sempre vendo as coisas que eu fazia acabar em sofrimento, o meu ou o de outra pessoa. Eu já devia saber que era bom demais para ser verdade, que ele era bom demais. “Muita areia pro seu caminhãozinho, Cassie, minha filha”, pensei, enquanto as minhas costas batiam contra a porta. Talvez devesse começar mais por baixo, adotar um gatinho da próxima vez, só que eu sabia que havia muito poucas chances de haver uma próxima vez. Conseguia ouvir a batida da música da discoteca através da porta, uma espécie de cântico misturado com techno, e parecia o Céu. Queria me perder no meio da multidão, abrir caminho até à rua e correr desenfreadamente. Eu era a campeã do desaparecimento, e no bairro turístico seria fácil tornar-me um membro anônimo alegre da multidão de sexta-feira à noite. Tinha uma conta bancária sob um outro nome, falso, e uma reserva de emergência de roupas vulgares num cacifo no terminal dos autocarros, e conhecia de cor todas as ruelas que existiam num raio de quinze quarteirões. Conseguia fugir com certeza, se conseguisse despistar Tomas. Deslizei lentamente pela porta acima, usando-a para me equilibrar e amaldiçoar os saltos altos. A minha saia enrolou-se para cima, mas eu não me dei ao trabalho de endireitá-la, exibir-me diante de Tomas era a menor das minhas preocupações. Pus-me a apalpar atrás de mim com uma mão lisa de sangue até finalmente encontrar a maçaneta da porta. Com as pernas tremulas, deixei-me cair pela abertura, fechei a
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porta com força atrás de mim e contornei o balcão de gatas. Não conseguia respirar e tinha convulsões como se quisesse vomitar, mas agüentei. Não tinha tempo para aquilo naquele momento. O espetáculo de luzes tinha começado e a massa oscilante rodopiante de dançarinos era rachada pelos golpes ofuscantes das luzes. O ritmo pulsante e o barulho da multidão me deixaram imediatamente surda, mas eu não precisava ouvir Tomas para saber que ele já estava ali. As luzes disfarçavam a cor do sangue que tinha em mim, transformandoo alternadamente em negro e prateado. As luzes baixas permitiam me misturar sem provocar um tumulto, embora eu duvidasse que estivesse com um aspeto normal. Esgueirei-me por todas as aberturas, tentando raciocinar à medida que corria, mas o meu cérebro não estava funcionando e tudo o que os meus instintos me diziam era “Mais depressa!”. Tentei, porque não havia mais nada a fazer a não ser esperar que ele me apanhasse, mas já sabia que não seria suficiente. Estava no meio da pista de dança quando Tomas me agarrou. Virou-me para eu ficar de frente para ele e eu senti uma de suas mãos deslizar pelas costas da minha queimada camiseta, juntando nossos corpos. Para as outras pessoas provavelmente parecia que estávamos dançando; só eu sabia que não era capaz de me libertar. Ele segurava com força a mão que eu tinha o revólver, obrigando a arma a baixar-se ao meu lado e afastar-se dele. Fosse como fosse, eu não teria tentado disparar. Tinha a palma da mão tão suada que só o fato de estar a segurando já me custava, e havia muitas pessoas por perto para arriscar a uma bala perdida. Além do mais, a não ser que eu estivesse enganada, uma bala não faria muito mais do que irritá-lo. Os dedos deslizaram pela minha coluna despida até ao contorno da minha sentinela. Ele percorreu as arestas de modo quase reverente.
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— Ouvi histórias acerca disto, mas nunca acreditei nelas. — A voz dele estava repleta de algo que soava a admiração. De alguma forma, ele conseguiu que eu o ouvisse, apesar da música ensurdecedora, mas eu não estava interessada em conversas. Contorci-me, tentando inutilmente me libertar do seu aperto, e amaldiçoei a imprestável sentinela. Devia estar exausta por causa da luta anterior, ou então não funcionava com os do nível dele, porque não teve qualquer reação ao seu toque. — Cassie, olhe para mim. Defendi-me dele, sabendo desde criança que olhar um vampiro diretamente nos olhos fazia com que fosse mais fácil para ele controlarnos. Depois da cena no depósito, eu não tinha dúvidas sobre o que ele era, e queria desesperadamente não o ter na minha cabeça. Uma vez que ele transpusera o meu radar de vampiros e se fez passar por humano durante meses, não havia hipótese de eu estar lidando com algo inferior a um mestre de terceiro nível, e possivelmente até mais elevado. Digamos antes provavelmente já que, em raras ocasiões, eu o vira passear em plena luz do dia, coisa que nem Tony conseguia fazer sem se arriscar a algo muito pior do que uma queimadura solar. Não que o seu nível tivesse importância; se fosse essa a sua vontade, qualquer mestre poderia me fazer cacarejar como uma galinha com pouco mais do que um olhar de soslaio. Tempos atrás, eu tive um nível de proteção para esse tipo de coisa, mas agora que o meu próprio antigo defensor me queria morta, eu era uma presa fácil; ninguém viria vingar qualquer mal que pudesse me acontecer. Na minha opinião, Tomas receberia uma gratificação por me entregar. Tony não se importava de pagar por vingança e, tendo em conta o que eu lhe custara, provavelmente pagaria com um sorriso nos lábios. Seria por isso que Tomas matara os outros vampiros, os considerando rivais em relação à sua recompensa? Quanto é que Tony
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estaria a oferecer por mim, afinal? E porque Tomas teria esperado tanto tempo para pegar o dinheiro? Digladiei-me e lutei, mas todo mundo nos ignorou, suponho que partindo do princípio que eu era apenas uma péssima dançarina. Tomas limitou-se a me prender com mais força. Considerando as raras vezes que lhe toquei, agora era uma sensação estranha ser abraçada com tanta intimidade. Era difícil me lembrar de que se tratava de Tomas. O meu cérebro colocara-o de forma firme na categoria de amigo e oferecia resistência a transferi-lo para o arquivo denominado vampiro psicopata assassino. A maneira como ele me abraçava não ajudava à confusão, a mão dele parecia muito mais do que amistosa enquanto subia e descia pelas minhas costas quase nuas, puxando-me para uma dança muito mais lenta e sensual do que a música exigia. Ao contrário do que diz a lenda, o toque do corpo dele contra o meu era quente e tão macio como cetim encorpado, mas também podia ser feito de aço, tal era a esperança que eu tinha de me libertar dele. A minha pulsação acelerou e achei que ia desmaiar quando ele inclinou a cabeça e eu senti seus lábios percorrendo meu pescoço. Acho que o meu coração chegou a parar quando ele beijou delicadamente a pele, como se estivesse saboreando a pulsação à flor da pele. Parecia que o meu sangue conseguia senti-lo, como se corresse mais devagar e mais espesso nas veias, à espera de ser libertado por ele. Comecei a transpirar, mas isso não tinha nada a ver com o calor de tantos corpos apinhados num lugar pequeno. Ele iria me matar ali mesmo, diante de duas centenas de testemunhas? Senti um arrepio quando percebi de que era provável que ele conseguisse se safar. Ele podia muito bem levar meu corpo dali sem que ninguém desconfiasse de nada; tudo o que veriam seria Tomas cuidar de sua companheira de casa, que desmaiara por causa do calor. Que cavalheiro.
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Eu já devia estar esperando que algo assim acontecesse. Sempre que confiava em alguém, era traída; sempre que amava alguém, essa pessoa morria. Uma vez que Tomas já estava morto, suponho que o padrão se mantinha. — Por favor, não resista. — A respiração dele sobre minha pele úmida me fez estremecer. A sugestão percorreu minhas veias como uma droga, banhando-me com um brilho confortável e rosado que afastou parte do medo e a maior parte da dor, mas também me dificultou o raciocínio. Não foi tão forte como se eu tivesse estabelecido contato visual, mas, ainda assim, me fez sentir como se eu estivesse rodeada de água-pesada, em vez de ar, com cada pequeno movimento precisava de mais esforço do que era preciso. Não que isso tivesse importância: o meu esforço estava apenas em tirar as dores entorpecentes causadas pelo meu pulso machucado. Seu rosto não revelava nada, mas seu corpo não estava assim tão controlado, e eu conseguia senti-lo dilatado e firme contra suas calças de ganga. Ele roçou os lábios quentes nos meus. — Não quero te machucar. — Sussurrou. Se tivesse valido a pena, eu o teria lembrado que se fosse ele a me executar ou meramente me entregasse a Tony, o resultado final seria o mesmo. Mas não tive tempo para dizer nada antes que os lábios dele voltassem a assombrassem os meus; depois, o seu controle desapareceu subitamente e ele cobriu minha boca num beijo sufocante que não teve nada da anterior ternura. Os braços dele comprimiram-se, me apertando contra cada centímetro do seu corpo, me beijando quase em desespero, como um homem faminto num banquete. Aquela mão forte deslizou pelas minhas costas, até encontrar o cós de minha curta saia de couro e puxá-lo para cima. De repente, levantou-me totalmente do chão e encostou-me à sua
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cintura, me obrigando a enrolar as pernas em volta dele para não cair, a sobrecarga sensorial foi tanta que demorei um minuto para perceber que ele estava voltando ao depósito em passos de dança. Aparentemente, preferia que as suas matanças acontecessem em privado. Ainda estava me beijando quando a primeira rajada de energia irradiou dele, fazendo estremecer até à ponta dos meus dedos. Ou alguma coisa tinha interrompido a sua concentração, ou ele já não estava dando se ao trabalho de se preocupar. E porque haveria de fazer? Eu devia ser a única sensitiva ali e já sabia o que ele era. Ele podia parecer o mesmo a todas as outras pessoas, mas para mim era como se a sua pele estivesse mergulhada em ouro fundido, fazendo-o brilhar como um sol em miniatura na sala escura. A quantidade de energia que ele irradiava fez eriçar os pequenos pêlos dos meus braços e nuca, enquanto rodopiava e estalava à nossa volta. Até o ar parecia ganhar peso, dando uma sensação idêntica à que ocorre antes de arrebentar uma tempestade, de repente, tudo ficou mais claro, mais brilhante e mais nítido. Toda aquela força não tardou a encontrar um foco. Atingiume como a maré alta no mar, me inundando, onda após onda, com o seu poder, tornando difícil me lembrar do porque estava lutando ou do que quer que fosse. Ele interrompeu o beijo e eu fiz um pequeno e involuntário som de protesto antes de ele deslizar novamente a boca pelo meu pescoço. Mas desta vez não me importei; desta vez parecia um gesto curiosamente meigo, embora uma pequena parte do meu cérebro tivesse reparado que o cabelo dele estava caído sobre a minha camisa arruinada, escondendo-a das luzes mais brilhantes do bar. Lucille, que atendia um pedido a poucos metros dali, ergueu-me o polegar em surpresa, enquanto nos esgueirávamos para detrás do balcão. Não tentei pedir ajuda. Raciocinei e percebi que Lucille não podia fazer nada
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nem se fosse contra um vampiro bebê, quanto mais um mestre. Mas a verdade é que eu simplesmente não me importava. Tomas deve ter pensado que eu estava prestes a fazer uma bobeira, ou talvez não quisesse correr riscos. Tornou a beijar-me e, fossem quais fossem os seus motivos, não havia dúvidas de que ele sabia o que estava fazendo. O toque sedoso dos seus lábios contra os meus confundiu ainda mais meus pensamentos e, quando finalmente nos separamos, eu estava muito aturdida para lembrar de não o olhar nos olhos. A minha mente ficou imediatamente paralisada, vazia de pensamentos que não fossem sobre Tomas, como se tivessem ligado um interruptor no meu cérebro. A luz atenuou e a música diminuiu até eu só conseguir ver o rosto dele e não ouvir mais nada a não ser minha pulsação. Porque eu nunca reparei no modo como os seus olhos se inclinavam para cima de maneira tão sedutora? As pestanas eram uma orla negra de seda ao redor das minúsculas chamas que a iluminação do bar fazia dançar em suas pupilas. Algo em mim reagiu ao calor que vi naquele olhar fixo, porque minhas mãos ganharam vontade própria e começaram a percorrer sua barriga lisa através da barreira de sua camisa. Tudo o que parecia importar era o toque daqueles músculos rígidos debaixo daquela pele sedosa; tudo o que eu queria era chegar ao seu pescoço e afundar as mãos naquela cascata de reluzente cabelo negro, para perceber se era tão macio espesso e pesado como parecia. Mas depois me distraí com a imagem de um mamilo moreno, revelado por uma das muitas brechas da sua camisa, o tipo de coisa que me distraiu mais vezes do que eu conseguia contar. Descobri que se sentia tão bem como parecia, tão bem como eu sempre soubera que seria, e que se comprimia agradavelmente sob os esforços dos meus lábios e dentes, como se estivesse a ansiar pelo meu toque. Considerando tudo isto, mal reparei quando Tomas me levou ao colo de regresso ao depósito e fechou a porta com o pé.
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Respirou fundo e de forma tremula e afastou-se lentamente de mim. Passado um momento, falou com uma voz áspera, completamente diferente do seu tom habitual. — Dá-me a arma, Cassie. Alguém pode se machucar se ela disparar acidentalmente. — O som da sua voz, seco e curiosamente nivelado, clareou um pouco a minha cabeça. O fato de ver o meu primeiro atacante também ajudou. Jazia em três pedaços, tendo sido completamente comido ao meio pela sentinela. Através dos destroços do seu corpo, vi farpas enegrecidas no local em que parte de um pentagrama inclinado se incendiara no chão de madeira. Fitei aquela imagem, sentindo-me um pouco tonta e muito estranha. De repente, percebi a piada: alguém pode se machucar. Ora, isso tinha graça. Agarrei-me a Tomas para não cair, com a minha arma a pender inutilmente contra suas costas. Ele a tirou da mão frouxa e escondeu-a noutro lugar. Não vi aonde pôs; ela simplesmente desapareceu. Ele olhava para mim com preocupação, e, de súbito, isso também teve graça. Comecei a dar risadinhas. Esperava que Tony lhe pagasse bem, ele tinha um ótimo senso de humor. — Cassie posso te levar no colo, se quiser, mas temos de ir. — Olhou de relance para o relógio da parede. Marcava 8h37. — Ouça, temos tempo para cumprir o nosso compromisso. — Eu continuava a dar risadinhas e a voz não parecia a minha. Percebi vagamente que estava prestes a ficar histérica, quando Tomas se mexeu. Quando dei por mim, estava de novo em seus braços e estávamos lá fora, correndo tão depressa por uma rua obscurecida que os postes pareciam uma mancha uniforme numa linha longa e prateada. Após um segundo se juntaram a nós duas figuras negras, uma de cada lado.
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— Dorme. — Ordenou Tomas, enquanto o mundo passava a correr. Vi que estava terrivelmente cansada e que dormir parecia ser uma bela idéia. Sentia-me quente e confortável, embora tivesse a cabeça de tal maneira ao andar que parecia que o céu noturno se abatia na nossa direção, ou que estávamos voando até às estrelas. Lembro de tê-lo pensado de forma sonhadora, mesmo antes de adormecer, que, no que respeitava a mortes, esta não era assim tão má.
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Capítulo 3 Acordei cansada, com dores e seriamente assustada. A minha disposição não melhorou com o fato de Tomas estar a pairar sobre mim, a ponto de o seu rosto vazio e virado ao contrário ter sido a primeira coisa que vi. — Se afaste de mim! — Resmunguei, enquanto me esforçava para conseguir sentar. Tive de esperar alguns minutos até que a sala parasse de rodar e, quando isso aconteceu, não fiquei nada entusiasmada com o que vi. Ótimo. Tinha sido largada na sala de espera do Inferno. A pequena câmara fora esculpida em pedra vermelha e estava iluminada por apenas dois assustadores castiçais de parede. Eram feitos do que pareciam ser facas entrelaçadas e sustentavam archotes9 verdadeiros e com um cheiro maléfico. Isso me fez logo perceber que estava num local cheio de sentinelas poderosas, que poderiam interferir com a eletricidade. O que não era bom. Aquele lugar teria sido perfeito para uma câmara de tortura, não fora o fato de em vez de ter damas de ferro10 e esmagadores de polegares, estava apenas mobiliado com o muito desconfortável sofá preto de pele onde eu estava deitada e uma mesinha de canto com algumas revistas. Uma delas era um exemplar da Oráculo, o equivalente a Newsweek11 para o mundo mágico, mas, como acontecia com a maioria dos objetos de leitura das salas de espera, estava vários meses desatualizada. 9
Pedaço de cabo de esparto alcatroado que se acende para iluminar. Objeto de tortura medieval que consistia numa espécie de sarcófago que, quando era fechado, trespassava as vítimas com espigões de metal. 11 É uma revista norte-americana semanal publicada na cidade de Nova Iorque e distribuída para os Estados Unidos. 10
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Todas as semanas eu passava por uma certa cafeteria em Atlanta para a ler, não que fosse dar o caso de acontecer alguma coisa no meu outro mundo que pudesse afetar a minha nova vida. No entanto, duvidava que o artigo de capa desta edição, acerca do impacto das importações asiáticas a baixo custo no mercado dos remédios mágicos, se incluísse nessa categoria, e o outro não passava de um artigo de fofoca. HERDEIRA DE PÍTIA12. DESAPARECIDA! Bradava a manchete de sete centímetros e meio do Olhar de Cristal desta semana. TEMPO FORA DE ORDEM! Revirei os olhos, mas parei, porque doía muito. Suponho que a história de BRUXAS RAPTADAS POR MARCIANOS que eles andavam a seguir se tinha esgotado. — Mia Stella, o Senado incumbiu Tomas de ser o seu guardacostas; ele não pode deixar-te — repreendeu ternamente uma voz familiar ao lado da porta. — Não dificulte as coisas. — Não estou fazendo. — Depois daquilo que tinha passado, achava que estava a ser a razão em pessoa. Sentia-me seriamente nauseada, tão cansada que cambaleei quando me obriguei a levantar, e os meus olhos ardiam como se eu já tivesse libertado o choro bom e copioso que desejava. Mas não ia mudar de idéias. — Não o quero perto de mim. Ignorei Tomas e um fulano desconhecido vestido com roupas de corte do século XVII e concentrei-me no único amigo que tinha na sala. Não fazia idéia do que Rafe fazia ali. Não que eu não estivesse contente por tê-lo ali - dava-me gosto ter todos os amigos que pudesse arranjar mas não sabia onde é que ele encaixava. Rafe era o diminutivo de Rafael, o ídolo de Roma e o artista preferido do papado até cometer o erro de recusar a encomenda de um abastado mercador florentino em 12
Sacerdotisa de Apolo em Delfos.
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1520. Tony andava tentando competir em termos artísticos com os Medicis13: se eles tinham Miguel Ângelo, ele precisava de Rafael. Rafe disse-lhe que já tinha mais encomendas do que aquelas que conseguia satisfazer e que, fosse como fosse, ele pintava afrescos para o Papa. Não ia viajar até Florença só para pintar uma sala de jantar. Não tinha sido uma boa jogada. Desde então, Rafe tinha pintado tudo o que Tony queria, incluindo o meu quarto de criança. Fizera o meu teto cheio de anjos que pareciam tão reais que, durante anos, eu pensei que eles me guardavam enquanto dormia. Ele foi uma das únicas pessoas da corte de Tony que tive pena de deixar, mas fugi dali sem sequer dizer um adeus. Não tive alternativa: ele pertencia a Tony e, se o seu mestre lhe fizesse uma pergunta direta, ele teria de lhe dizer a verdade. Portanto, se ele estava aqui agora, era porque Tony assim o queria. Isso diminuiu de alguma forma a minha alegria pela reunião. Tomas não disse nada, mas também não foi embora. Olhei-o intensamente, mas isso não teve qualquer efeito óbvio. Isso constituía um problema, uma vez que eu precisava fugir e, quanto mais amas-secas houvesse, maior era o desafio. Havia ainda a questão de só o fato de olhar para ele me provocar tantas emoções que eu começava a ficar com dor de cabeça. Não era tanto a violência que me perturbava. Durante a minha infância, vira violência suficiente para conseguir esquecer os acontecimentos na discoteca, agora que ultrapassara o choque de ter sido Tomas o responsável por eles. O fato de já não estar ajoelhada numa poça de sangue era uma ajuda, bem como o fato de os vampiros que ele matara terem estado a tentar fazer-me o mesmo. A minha atitude podia ser resumida de maneira muito simples: eu estava viva, 13
Rica família florentina; grandes mecenas das artes.
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eles não, parabéns para mim. Sobreviver na corte de Tony ensinava nos a sermos pragmáticos em relação a estas coisas. Também dava a Tomas os louvores por ter salvado minha vida, se bem que eu provavelmente já estivesse longe de perigo se não tivesse ido avisá-lo. Estava até disposta a ignorar o fato de ele me ter levado dali sem uma única explicação, tendo em conta que o meu estado de espírito nunca pedira uma conversa calma. Vendo bem as coisas, calculei que estivéssemos mais ou menos quites, exceto à parte da traição. Isso era uma coisa diferente. Isso não era provável que eu o perdoasse em breve, se é que alguma vez perdoaria. Eu partilhara com Tomas fragmentos dos meus tempos de rua, coisas de que nunca falei com ninguém, para o incitar a desabafar. Preocupara-me com o fato de ele não ter amigos, apesar de toda a atenção que lhe davam na discoteca, e indaguei-me sobre se ele teria algumas das mesmas fobias relativas a relações que eu tinha. Tinha-me permitido gostar dele, que infernos, e durante todo o tempo tudo aquilo que ele me dissera tinha sido mentira. Para não falar do fato de ele ter roubado intencionalmente o meu livre-arbítrio, obrigando-me a parecer idiota, o que eu ainda estava combatendo com a cara corada. Esse tipo de coisa é considerado uma coisa séria nos círculos dos vampiros; se eu estivesse nas boas graças de Tony, ele teria feito uma cena por causa da influência indevida exercida sobre a sua serva. — Deixe-me falar com ela. — Disse Tomas a Rafe. Antes que eu pudesse protestar, os outros saíram da sala para nos darem uma ilusão de privacidade. Era só aparência; com a audição que os vampiros tinham, não fazia diferença nenhuma. Não me dei ao trabalho de baixar a voz.
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— Deixa-me dizer isto de forma simples. — Disse eu, furiosa. — Me mentiu e me traiu. Não quero te ver, não quero falar contigo e nem sequer quero respirar o mesmo ar que você. Nunca mais. Entendeu? — Cassie, tente entender; só fiz aquilo a que fui obrigado...— Reparei que ele tinha algo na mão. — E o que está fazendo com a minha bolsa? — Eu já devia saber que ele iria vasculhá-la, Tony não poderia saber que surpresas eu teria escondido, mas, por se tratar de Tomas, senti aquilo como outra traição. — Tiraste alguma coisa? — Não, está como a deixou. Mas Cassie... — Devolve-me! — Agarrei a e quase caí. — Não tinha o direito... — Torre! Torre! Torre! — O meu baralho de tarô caiu no chão e parecia estar tendo um acesso de raiva. Senti lágrimas nos olhos. Era apenas a porcaria de um baralho de cartas, mas era a única coisa que eu tinha que Eugenie me tinha dado. — Estragou-o! Pus-me de joelhos para apanhar as cartas espalhadas e Tomas se ajoelhou ao meu lado. — São as sentinelas daqui. — Disse ele, calmamente. — São muito fortes, interferem com o encantamento. Deve ficar tudo bem depois de sairmos, ou então, posso mandar reconstruir para ti. É um feitiço simples. Com uma palmada, afastei-lhe a mão das minhas pobres cartas confusas. Sabia como elas se sentiam.
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— Não as toque! — Guardei-as desajeitadamente, com mãos tremulas, enquanto ele se sentava sobre os calcanhares e observava-me. — Desculpa, Cassie. — Disse, por fim. — Eu sabia que ia ficar transtornada... — Transtornada?! — Virei para ele, tão furiosa que quase deixei de ver. — Me deixou pensar que era um garoto pobre e maltratado que precisava de uma amiga e eu, estúpida como sou, acreditei! Confiei em ti e você me entregou... — Parei e respirei fundo antes que perdesse as estribeiras. Não ia dar-lhe a satisfação de me ver chorar. Não ia. Voltei a colocar as cartas na mala e verifiquei o resto do seu conteúdo, para dar tempo a mim mesma de recuperar o controle. Passado um minuto, levantei os olhos. — Nem tudo o que se estraga tem conserto, Tomas. —Eu não te menti, Cassie. Juro. Olhando para os seus olhos tão sinceros, quase acreditei nele. Quase. — Então, o que é? Um pobre vampiro mestre maltratado? Por favor. — Eu não menti. — repetiu ele, com mais ênfase. — Me mandaram te manter em segurança. Foi isso que fiz. Para isso, tinha de ganhar a tua confiança, mas não menti para conseguir. Nunca te disse que fui maltratado, se bem que, se o tivesse dito, não estaria longe da verdade. Qualquer um dos servos de Alejandro podia dizê-lo. Eu não queria acreditar que ele estava fazendo isto. Não estava esperando um pedido sincero de desculpa, mas o fato de ele nem sequer reconhecer o que tinha feito era demais.
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— Me dá nojo. — Disse eu, voltando a pôr-me de pé. Encaminheime para a porta e coloquei a cabeça para fora. Rafe estava no corredor tentando fingir que não tinha ouvido uma palavra. — Ou ele vai embora, ou não tem nenhuma colaboração da minha parte. No segundo seguinte, as mãos de Tomas estavam em volta dos meus braços, com um aperto que quase infligia dor, enquanto ele me puxava de volta para si. — O que é que sabe de maus-tratos? — Perguntou, num tom baixo e feroz. — Sabe como me tornei vampiro, Cassie? Gostava mais de mim se te dissesse que eles me reuniram com o resto da minha aldeia e nos levaram para sermos caçados por Alejandro e a sua corte? Que a única razão por que não estou morto se deve ao fato de um dos cortesãos dele achar que eu era suficientemente atraente para ele me salvar para seu deleite? Que eu tive de ver pessoas que tinham suplantado a peste e a conquista, que tinham combatido a meu lado durante anos contra as mais arrasadoras probabilidades, serem chacinadas por um louco para o seu prazer doentio? É isso que quer ouvir? Se isso não for suficientemente macabro para merecer o teu perdão, acredito que tenho muitas outras histórias. Podíamos trocá-las, mas acho que ia ficar sem nada para contar antes de mim. Você andou nas ruas durante uma mão-cheia de anos; eu estive com Alejandro durante três séculos e meio! — Tomas, por favor, liberta a Mademoiselle Palmer. Para minha surpresa, o homem com as roupas estranhas interviera. Eu tinha pensado que ele parecia saído da Inglaterra da Restauração, mas agora percebia de que as suas origens pertenciam ao outro lado do Canal da Mancha. O seu sotaque era tênue, mas
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indiscutivelmente francês. Eu quase me esquecera de que ele estava ali. O mais estranho foi que Tomas fez imediatamente o que ele pediu, afastando-se como se o contato comigo o queimasse, mas aqueles olhos negros permaneceram postos nos meus, como se esperassem uma resposta. O que eu deveria dizer? Passaste por momentos difíceis, por isso não faz mal me ter entregado a pessoas que podem me fazer ainda pior? A tua vida foi péssima, por isso não me importa que destrua minha? Se assim fosse, ele havia de esperar muito tempo. — Talvez possa me confiar a sua proteção por algum tempo? — Foi verbalizado como uma pergunta, mas o francês alto conduziu-me pelo corredor abaixo sem esperar por uma resposta. Pouco depois pude ver o meu antigo némesis, mas não nas circunstâncias que esperara. O rosto gordo de Tony parecia o mesmo de sempre, o que não era surpreendente, visto que ele não mudava desde 1513, à exceção do vestuário. Usava aquilo que eu gostava de considerar a sua farda de mafioso — um terno com riscas fininhas que parecia ter sido roubado de um segurança de um bar clandestino, coisa que talvez tivesse acontecido. Ele gostava do fato porque em tempos alguém lhe dissera que as riscas verticais o faziam mais magro. Mentiram-lhe. Tony morreu com mais de cento e trinta quilos, o que, numa estrutura de um metro e meio, significava que ele tinha aproximadamente a forma de uma bola de futebol com pernas. E não havia dieta nem exercício que conseguisse mudar isso agora. Apesar do peso e do infernal sentido estético, Tony tinha melhor aspecto do que Alphonse, o seu chefe de segurança, que, como sempre, estava parado atrás do ombro esquerdo do mestre. Embora naquele momento eles fossem apenas reflexos num grande espelho, percebi que estavam na antiga fortaleza na Filadélfia. Fiquei surpreendida porque até mesmo para Tony era um descaramento enorme voltar para lá, mas já
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devia esperar; a falta de bolas não era um dos seus defeitos. Sabia onde eles estavam porque Tony se exibia na sua cadeira habitual, um trono que viera do palácio de um bispo nos tempos em que a moda eram imensos entalhes e talha dourada. As costas da cadeira elevavam-se a um bom metro e oitenta do chão, mas Alphonse não precisava se esticar para ver por cima delas. Contudo, a altura não abonava a favor da sua aparência. A sua constituição parecia ter sido moldada por alguém que sabia que aspecto deveria ter um capanga; ele tinha uma das caras mais assustadoras que eu alguma vez vira. Não estou falando do tipo de vilão sensual de Hollywood — o fulano era mesmo feio. Em tempos, ouvi dizer que, antes de ser transformado, ele tinha sido um dos assassinos contratados de Baby Face Nelson14, mas a mim parecia-me que ele tinha sido espancado — repetidamente, com um taco de basebol, no rosto. Quando eu era criança, fascinara-me o fato de ele quase não ter perfil, porque o seu nariz não era mais saliente que a linha das suas sobrancelhas a lá Homem de Neandertal. Começo sempre a rir quando os filmes representam os vampiros como lindíssimos, sensuais e com uma interminável parafernália de roupas caras. A verdade é que, quando se está morto, tem-se basicamente o mesmo aspecto que se tinha quando se era vivo. Suponho que a passagem de centenas de anos possa ensinar a uma pessoa alguns truques de beleza, mas a maioria dos vampiros não se incomoda com isso. Alguns dos mais jovens fazem um esforço, porque isso facilita a caça, mas a maioria dos mais velhos está-se nas tintas. Quando se consegue fazer alguém acreditar que o nosso aspecto está entre a Marilyn Monroe e o Brad Pitt com uma mera sugestão, a maquiagem começa a parecer um desperdício de dinheiro. Apesar da presença de Tony e do seu rufia de estimação via espelho encantado, eu estava bemdisposta. Estava com um aspecto bem mais vergonhoso do que qualquer 14
Gangster norte-americano da época da Depressão, que, na década de 1930, foi considerado o inimigo nº1 do FBI até à data da sua morte, em 1934.
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um deles, com o meu sutiã cor-de-rosa a espreitar da minha camisa esfarrapada, o rosto esfolado a deitar sangue e pedaços derretidos de meleca de vampiro a escorrer-me das botas. Mas continuava viva, ainda humana, e Tony estava com um ar infeliz. As coisas não podiam correr muito melhor. É claro que Tony não era o único problema à vista, mas eu achei que tinha chance de escapar, já que tinha conseguido chegar até ali. Se o Senado me quisesse morta, o espião deles já me podia ter eliminado em qualquer altura nos últimos seis meses. Olhei de relance para a enorme sala onde Tomas entrara. Ele ficou parado ao pé da porta, tecnicamente obedecendo ao meu pedido de se manter afastado, mas de modo nenhum suficientemente longe para o meu gosto. Estava falando com um dos guardas da câmara, um conjunto a condizer de seis louros de um metro e oitenta que pareciam ter saído de uma tapeçaria medieval, com alabardas 15 Penduradas nas costas largas e elmos com pequenos protetores nasais completando o quadro. Reparei que ele vestira um blusão de ganga preto por cima da roupa da discoteca; condizia com as calças de ganga, mas dava-lhe aspecto de motoqueiro com ar de mau. Tinha o rosto na sombra, pelo que não consegui ver a sua expressão, mas, provavelmente, não teria depreendido nada a partir dela. Pelo menos, nada que eu quisesse ver. Foi arrepiante o modo como tive de me debater para não ir até com ele, o modo desesperado como quis vê-lo a iluminar-se para mim da maneira como nunca fazia para as outras pessoas, como quis ouvi-lo dizer que ia tudo correr bem. Eu sabia que ele era, sabia que tinha mentido, mas uma parte de mim ainda queria confiar nele. Tinha esperança de que fosse apenas um 15
Espécie de lança de longa haste, terminada em ferro largo e pontiagudo, atravessado por outro ferro em forma de meia-lua.
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efeito retardado da anterior invasão mental e disse a mim mesma para esquecer. Os meus olhos teriam de se habituar ao fato de que ele podia parecer o meu Tomas, mas não era; o homem que eu pensava que conhecia nunca existira fora da minha imaginação. Obriguei a minha atenção a desviar-se de volta ao acontecimento principal, coisa que não deveria ter sido tão difícil como foi, tendo em conta a ostentação. Uma laje espessa de mogno tinha sido incrustada numa mesa retangular maciça que, juntamente com a fileira de assentos ao longo do lado oposto, era a única mobília da sala. Parecia pesar quase uma tonelada e estava apoiada sobre um estrado de mármore negro igualmente gigantesco, a que se acedia através de um conjunto de degraus reluzentes. Elevava o Senado a uns bons noventa centímetros acima do chão, onde humildes suplicantes, ou prisioneiros, como era o meu caso, tinham autorização para estar. O resto da sala — ou caverna, pois descobri mais tarde que ficava vários níveis no subsolo, — era esculpida em pedras vermelha e pintada com chamas tremeluzentes de enormes candelabros de ferro negros. O espelho escorado à esquerda da mesa era um pormenor feio e dissonante, mas só porque naquele momento refletia o rosto de Tony. Fora isso, a decoração consistia nos brilhantes estandartes e brasões dos membros do Senado, que pendiam por detrás de cada um dos seus assentos. Quatro desses escudos estavam cobertos de negro, e as pesadas cadeiras de tecido brocado diante deles estavam viradas para a parede. Não era bom sinal. — Exijo uma compensação! — Voltei a desviar a minha atenção para Tony, que repetia a sua exigência pela quinta vez pelo menos. Ele pertence à escola de argumentação do "repete teu ponto de vista até eles cederem", sobretudo porque não teve muita prática. Ninguém na sua família faz outra coisa que não seja lamber suas botas e, depois de centenas de anos a fazer esse tipo de coisa, a pessoa estupidifica-se. —
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Eu acolhi-a, criei-a, tratei-a como um dos nossos e ela me enganou! Tenho todo o direito de exigir o coração dela! Eu podia ter realçado que, já que não era vampira, espetar-me uma estaca era um pouco exagerado, mas preferi me concentrar em questões mais importantes. Não que eu pensasse que o Senado dessa importância aos negócios de Tony, mas era uma oportunidade para desancar aquele nojento e eu não ia deixá-la escapar. — Mandaste matar os meus pais para poder monopolizar o meu talento. Disseste-me que as minhas visões te ajudavam a evitar os desastres que eu via e que estavam sendo transmitidas para avisar outras pessoas, e afinal estiveste sempre a aproveitar-te delas. Está furioso por eu te custar algum dinheiro? Se alguma vez me aproximar o suficiente, corto-te a cabeça. — Disse de forma prosaica, uma vez que matar Tony era um sonho antigo que eu não tinha muitas chances de concretizar. Tony não parecia muito transtornado com a minha explosão, coisa que eu já esperava. Há séculos que as pessoas o ameaçavam, mas ele continuava por aqui. Ele me dissera tempos atrás que a sobrevivência era a resposta mais eloqüente que podia dar aos seus difamadores e suponho que ainda seja assim. — Ela não tem provas de que eu tenha algo a ver com esse infortúnio. Vou ficar aqui sentado para ser insultado? — Eu Vi! Virei-me para a líder do Senado, que oficialmente se chamava Cônsul, com a intenção de defender a minha situação, mas ela estava fazendo festas a uma cobra com comprimento suficiente para lhe dar
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duas voltas ao corpo, o que me distraiu bastante. Parecia domesticada, mas, mesmo assim, fiquei de olho nela. Os vampiros tendem a esquecerse de que o que para eles seria irritante, como a mordida de uma serpente venenosa, resultaria um pouco mais grave para os mortais que trabalham com eles. Aqueles de nós que sobreviveram tempo suficiente aprenderam a ser muito cautelosos. — A mulher está alucinando — Protestava Tony, esticando as suas rechonchudas mãos brancas de modo inocente. — Sempre foi perigosamente instável. — Sendo assim, surpreende-me que tenha confiado nas previsões dela. A voz da Consulesa fluiu pela sala, quase como uma presença tangível na minha pele. Só a descarga do seu poder me fez estremecer e senti-me grata por esta não se dirigir a mim. Pelo menos por enquanto. Ela já não se vestia com roupa de linho branco esvoaçante e toucados dourados, mas suponho que, quando se tem aquela: força, não seja necessário exibi-la. Porém, eu não me sentia desiludida, tendo em conta que a sua indumentária consistia, sobretudo em serpentes multicoloridas que deslizavam e se entrelaçavam nela tão profusamente que só de quando em vez se revelava um pedaço de pele nua. A pele dela era iluminada pela luz do archote e reluziam como se a Consulesa estivesse vestida com jóias vivas: ônix, jade e esmeralda, com um ou outro clarão de olhos rubi. Contudo, não era apenas a indumentária que dominava a atenção; a autoridade na sua voz e a inteligências naqueles olhos negros demonstravam que, de certa forma, ela ainda era uma rainha. Eu não a reconhecera e ninguém se dera ao trabalho de se apresentar, mas Rafe, que estava atrás de mim para me dar apoio moral, supunha eu, sussurrara um nome ao meu ouvido enquanto nos aproximávamos da mesa. Ao ver o meu ar de espanto, os dentes
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reluziram-lhe na barba escura, enquanto me dirigia o seu habitual sorriso devasso. — Não foi uma serpente que a mordeu, mia Stella. — Eu não confiei nela. — Tony mentia com descaramento. — Ela foi meramente uma conveniência. A mão de Rafe no meu braço apertou com mais força e eu mordi o lábio. Explosões repetidas de raiva podiam irritar a Consulesa — o que não era uma jogada inteligente — mas era difícil ficar calada. Eu não fazia idéia de quanto dinheiro dera a ganhar àquele asqueroso no decorrer dos anos, mas tinha sido muito. Tinha a certeza de que ele ganhara pelo menos dez milhões quando comprou reservas de cítricos imediatamente antes de uma série de desastres naturais ter destruído as plantações de laranjas na Califórnia e provocado uma flecha na subida de preços. Isso não acontecia todos os dias, mas também não foi um acontecimento isolado. Mas a ganância de Tony nunca foi o maior problema que tive com ele. O que me fez perder as estribeiras, para além de ter descoberto o que se passou com os meus pais, foi a sua decisão de permitir que o fogo devastasse um quarteirão inteiro porque ele queria comprar umas quantas propriedades baratas na área. Eu falara-lhe disso com uma semana de antecedência, tempo mais do que suficiente para ele ter dado o alarme, mas é claro que não o fez. Eu fitara com horror fotos nos jornais dos corpos carbonizados de crianças e tivera um momento de clarividência. Algum trabalho de investigação confirmara aquilo de que eu já suspeitava: ele usara o meu talento para ajudar a planejar assassinatos, a organizar golpes políticos e a traficar com êxito drogas e armas ilegais, sem que as autoridades percebessem. E isto era apenas o que eu sabia. No dia em que finalmente juntei as peças do jogo, prometi
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a mim mesma que, de alguma forma, iria fazê-lo pagar. Na verdade, já pagara, mas, na minha opinião, não fora o suficiente, nem de perto nem de longe. — Nesse caso, ela não deverá ser uma grande perda. Será remunerado pelos teus direitos sobre ela. — Consulesa, com todo o respeito, a única coisa que quero é que ela me seja devolvida. Sou o seu mestre por direito, como certamente a minha gente concordará. — Não. — O olhar negro deslizou na minha direção por um momento, e, de repente, eu percebi o que sente um coelho quando olha para cima e vê um falcão. — Nós temos planos para ela. Tony vociferou e eu comecei a reparar que Alphonse não estava a se esforçar em nada para ajudar o seu patrão irritado. A opinião que tinha acerca da sua inteligência subiu de nível. Se a argumentação de Tony o levasse a uma sepultura tardia — desta vez de forma permanente — Alphonse teria uma chance de controlar a operação, e isso era bom para mim. Eu e Alphonse não éramos propriamente amigos, mas, tanto quanto eu sabia, ele não tinha nenhuma razão para me querer morta, para além do fato de essa ser uma ordem de Tony. Sorri de forma matreira; continua a falar, Tony. Infelizmente, passado um minuto, um dos dois enormes vampiros com tangas de pele de leopardo que emolduravam a cadeira da Consulesa avançaram e retiraram o espelho. Que pena; eu estava começando a me divertir. A pressão da mão de Rafe avisou-me para que mantivesse uma expressão vazia. Como não era boa idéia demonstrar medo ou fragilidade perante uma assembléia — e esta era afinal a assembléia das assembléias — também não era muito inteligente demonstrar
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demasiado jubilo. Alguém o poderia considerar como um desafio, e isso seria muito mau. Reajustei depressa a minha expressão para a cara de pôquer que usara durante a adolescência. Não era difícil: a pouca alegria que eu conseguira reunir teria esfumaçado se de qualquer maneira quando me virei de novo para o Senado. Já sem Tony por perto para distraí-los, a atenção de todos recaiu de súbito em mim, e isso era enervante, mesmo para alguém que assistira com regularidade a reuniões familiares. Tony insistira depois de a sua telepata residente ter sido transformada e perdido os poderes, para que eu estivesse lá, principalmente se as famílias rivais quisessem mandar representantes. Não sei por quê. Não consigo ler mentes e as probabilidades de "Ver" alguma coisa acerca de alguém presente eram escassas. Dissera-lhe uma centena de vezes que não conseguia ligar meu dom como se estivesse a ligar a televisão e que, quando ele de fato surge, não sou eu que escolho o canal. Ele ignorara-me, talvez por gostar do prestígio de ter a seu lado a sua clarividente pessoal, como se fosse um cão treinado. Seja como for, depois da quantidade de pessoas muito assustadoras que eu já tinha visto, pensava que nada era capaz de me impressionar. Estava enganada. Além do lugar da Consulesa, havia doze lugares à mesa. Mais da metade estavam vazios, mas os que estavam preenchidos compensavam esse fato. Ao pé de mim estava sentada uma mulher de cabelo escuro, com um vestido comprido de veludo. Uma pequena boina decorada com pérolas do tamanho do meu polegar emoldurava-lhe o rosto, e um denso bordado dourado desenhavam o seu trajeto pelas saias cor de vinho. A sua pele tinha o brilho opalescente da pele naturalmente pálida que não vê o sol há séculos e estava marcada apenas por uma cicatriz em volta da garganta, que um lenço de seda não conseguia esconder. Alguém se aproximara o suficiente desta beldade para lhe tirar a vida, mas não percebera que isso não era o suficiente para matar um vampiro. Se 0 coração ficar intacto, o corpo irá regenerar-se, se bem que
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estremeço ao pensar no enorme esforço que deve ter sido necessário para curar uma ferida daquelas. Ao lado dela estava sentada a única pessoa da mesa que eu conhecia. Dificilmente não o reconheceria, já que Tony se gabava da sua ligação com a famosa linhagem de Drácula a cada oportunidade e tinha retratos dos três irmãos na parede da sua sala do trono. Ele não tinha sido criado por Vlad Tepes III, o Drácula da lenda, mas por Mircea, o irmão mais velho desse herói. Nós recebemos o na Filadélfia quando eu tinha onze anos. Tal como muitas crianças, eu adorava uma boa história, o que era uma sorte, já que havia poucas coisas que Mircea mais gostasse de fazer do que falar sobre os maus e velhos tempos. Ele contou me que, numa época em que Vlad e Radu, os seus irmãos mais novos, estavam em Adrianópolis na condição de reféns — o sultão otomano não confiava que o pai deles honrasse um tratado de outra forma — Mircea encontrara uma cigana vingativa. Ela odiava o pai dele por ter seduzido e depois ignorado a irmã dela, que fora a mãe de Drácula, por isso amaldiçoou Mircea com vampirismo. Acho que a idéia era acabar com a linhagem familiar, uma vez que um vampiro não pode ter filhos e toda a gente tinha partido do princípio de que os reféns não iriam regressar. Mas, como Mircea realçava, na verdade ela fizera-lhe um favor. Pouco tempo depois, uns assassinos húngaros que trabalhavam para uns nobres da terra capturaram-no, torturaram-no e enterraram-no vivo, coisa que poderia ter sido muito aborrecida se ele já não estivesse morto. Tendo em conta as circunstâncias, foi mais um inconveniente do que outra coisa qualquer. Quando conheci, era demasiado nova para perceber que o jovem atraente que me contava histórias tradicionais romenas era, na verdade, mais velho do que Tony cerca de um século. Ele lançou-me um sorriso encorajador a partir de um rosto que durante quinhentos anos pareceu ter apenas trinta. Sorri-lhe automaticamente em resposta; a minha
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primeira paixonite fora por aqueles olhos castanhos de veludo, e já tinha esquecido de como ele era atraente. Aquelas mesmas feições tinham valido ao seu mais vivido irmão Radu cognome de “o Belo”, no século XVI. Mircea parou para sacudir um bocado de pêlos do seu vistoso terno preto. Além de Rafe, que preferia um estilo mais casual chique, Mircea era o único vampiro que eu conhecia que dava importância à moda moderna. Talvez fosse por isso que nunca o vira com as vestes da corte da antiga Valáquia16, ou se calhar as roupas dessa altura não prestavam para nada. Fosse como fosse, ele tinha agora um aspecto totalmente atual, à exceção do longo rabo de cavalo negro. Eu estava contente por vê-lo, mas, mesmo partindo do princípio de que ele tinha boas recordações de mim, tinha dúvidas que um voto me servisse de muito. Por falar na necessidade de atualizar o guarda-roupa, o vampiro ao lado de Mircea — o mesmo que andou a passear-se pela sala de espera — parecia saído de um anúncio da GQ, se a revista fosse publicada no século XVII. Tendo em conta que eu passara muito tempo numa discoteca gótica, não me opunha à sobrecasaca bordada, à camisa plissada e aos corsários que ele vestia. Eu já tinha visto vestimentas mais estranhas, e pelo menos esta lhe ficava bem — os colants de seda mostram melhor as pernas do que a maior parte dos modelos modernos, e as dele mereciam ser exibidas. O único problema é que tudo aquilo era em cetim amarelo-canário. Lamento, mas um vampiro vestido de amarelo não me parece bem, sobretudo quando a isso se acrescentam uns olhos azuis brilhantes e uns lustrosos caracóis arruivados que lhe desciam em cascata até ao meio das costas. Ele era muito atraente, com um daqueles rostos francos e sinceros em que se confia automaticamente. Irritava-me que 16
É uma província histórica da Romênia, situada ao norte do rio Danúbio.
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pertencesse a um vampiro. De qualquer modo, dei-lhe um sorriso hesitante, com base na teoria de que mal não faria, e pensei que talvez ganhasse pontos por ser a única outra pessoa vestida de amarelo na sala. É claro que a minha camiseta com rosto sorridente, não estava com o seu melhor aspecto, o que talvez explique por que razão ele não sorriu em resposta. Ele observava-me de modo quase faminto, com um olhar tão intenso que eu dispensei um momento para desejar que ele já tivesse comido. Precisava tirar aquele sangue de cima de mim antes que começasse a parecer a alguém um aperitivo ambulante. Os restantes vampiros, os dois que estavam mais longe da Consulesa, eram tão parecidos que eu conclui que fossem parentes. Mais tarde descobri que era apenas coincidência. O homem era quase tão velho quanto a Consulesa e começara a vida como um dos guardacostas de Nero17, apesar de a sua mãe ter sido uma escrava capturada num local bem mais a norte do que a Itália. Fora um dos preferidos do Imperador por ter gostos ainda mais sádicos do que o seu mestre: querem adivinhar quem incendiou, de fato, Roma? A mulher, que era tão parecida com Portia que eu tive de olhar duas vezes, tinha nascido no sul do pré-guerra civil. Dizia-se que tinha matado mais soldados da União nos trinta e tantos quilômetros ao redor da sua casa de família do que o exército da Confederação, e que lamentara o fim da guerra e a caçada fácil que assim terminara. Portanto, apesar de serem de épocas, países e de terem antecedentes diferentes, pareciam gêmeos, com as suas feições pálidas e o cabelo negro e ondulado. Até tinham uma cor de olhos semelhante, um dourado acastanhado claro, como a luz que atravessa as folhas de Outono, e estavam vestidos com indumentárias brancas e prateadas que se complementavam. É preciso dizer que a dele era uma toga, enquanto ela parecia que ia a caminho de um baile na cidade de Savannah, mas ficavam bem juntos. 17
Foi um imperador romano que governou de 13 de Outubro de 54 até a sua morte, a 9 de Junho de 68; O reinado de Nero é associado habitualmente à tirania e a extravagância.
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A Consulesa deu-me tempo para tirar as medidas a toda a gente antes de falar, mas, quando o fez, eu não senti desejo de olhar para mais nenhum lado. Onde quer que os seus olhos delineados com Kohl18 pousassem, parecia que me espetavam alfinetes na pele. A sensação não era propriamente dolorosa, mas eu tive a impressão de que os alfinetes poderiam transformar-se em espadas com muita facilidade. — Está vendo quanto dos nossos lugares estão vazios, quantas vozes foram silenciadas. — Pestanejei com surpresa. Tinha pensado que havia um problema, mas não esse — quatro vampiros anciãos não são propriamente fáceis de matar. Mas ela confirmou-o. — Estamos muito enfraquecidos. A perda de alguns dos melhores de nós é sentida com intensidade por todos nesta sala, mas, se continuar, terá eco em todo o mundo. Ela parou e, primeiro, pensei que fosse para fazer uma pausa teatral, mas depois ela abstraiu-se da minha presença. Alguns dos realmente antigos fazem isso por vezes, ficando metidos consigo durante um minuto, ou uma hora, ou um dia, e esquecendo-se de que mais alguém existe. Eu já me habituara a pequenos intervalos com Tony, portanto não me deixei perturbar. Reparei que Tomas estava agora acompanhado à porta por outro fulano que eu não conhecia. .
Ao seu lado estava aquilo que parecia ser uma estátua em tamanho real, daquelas muito grosseiras, sem tinta a tapar a exterior de argila e as feições mal definidas. Tomas e este novo fulano pareciam estar discutindo sobre qualquer coisa, mas as suas vozes soavam baixas demais para se ouvir. Tive um breve momento de nostalgia pela sala de 18
Marca antiga de cosméticos para os olhos, utilizada para escurecer as pálpebras e como mascara para cílios, datada de 3500 ac
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audiências de Tony, onde a maioria dos presentes eram trastes assassinos, mas pelo menos eu sabia os seus nomes. Já estava enervada o suficiente por estar com a roupa encharcada de sangue diante de um grupo de vampiros com poder para me matar com pouco mais do que um pensamento, não precisava de estar também a trabalhar às escuras. Rafe era um conforto atrás de mim, mas eu teria preferido alguém mais especializado no ramo das armas e facas. — Faltam-nos seis. — Continuou de repente a Consulesa. — Quatro são irrecuperáveis e os outros dois pairam a beira do abismo. Se algum poder que conheçamos os conseguir restituir, isso será feito. Mas pode muito bem acontecer que o esforço seja em vão, pois o inimigo adquiriu recentemente uma nova arma, que pode destruir-nos no início da nossa concepção. — Resisti ao ímpeto de olhar de soslaio para Rafe, que, esperava eu, estaria a perceber isto melhor do que eu. Talvez ele pudesse esclarecer-me mais tarde, se a Cônsul nunca chegasse a fazer sentido. — Tomas venha até nós. — Ela mal tinha acabado de falar quando Tomas apareceu ao meu lado. — Ela pode ser útil? — Ele fez questão de não olhar para mim. Eu queria gritar com ele, perguntar-lhe que tipo de covarde é que nem sequer conseguia olhar para mim enquanto me traía, mas os dedos de Rafe apertaram-me de modo quase doloroso e eu recuperei o controle. — Creio que sim. De vez em quando, ela fala quando não parece haver ninguém presente, e esta noite... não consigo explicar o que aconteceu a um dos assassinos. Eram cinco. Eu matei três e a sentinela dela tratou do outro; mas, quanto ao último... — Tomas, não diga nada. — Decididamente, eu não queria que ele terminasse aquela frase. Não seria bom se o Senado concluísse que
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eu era uma ameaça, e se eles soubessem do vampiro que explodiu, poderiam ficar um bocadinho tensos. Como é que até um mestre antigo pode combater aquilo que não vê e nem sente? É claro que a intervenção de Portia tinha sido um golpe de sorte — eu não ando por aí com um exército de fantasmas e certamente não posso ordenar a nenhum com que me cruze que lute por mim, mas era impossível o Senado saber disso. Não sei porquê, tinha dúvidas de que acreditassem na minha palavra. Na sua maioria, os fantasmas são demasiado fracos para fazerem o que os amigos de Portia tinham conseguido; ela deve ter chamado todos os espíritos ativos do cemitério e, mesmo trabalhando em conjunto, eles quase não tiveram poder suficiente. Não era uma coisa que eu conseguisse reconstituir, mas, se o Senado não acreditasse nisso, eu poderia ser morta. O maxilar de Tomas contraiu-se, mas ele não olhou para mim. Grande surpresa. — Não sei bem como morreu o último assassino. Cassandra deve tê-lo matado, mas eu não vi como foi. — Isso era verdade, mas era certo que ele vira pedaços congelados de vampiro por toda a ala, não havia assim muitas maneiras de terem ido parar lá. Fiquei surpreendida por ele ter usado uma resposta evasiva por minha causa, mas isso não fez diferença. Um olhar de relance à Consulesa foi suficiente para perceber que ela não se deixara enganar. Antes que ela pudesse pedir-lhe explicações, o louro baixo que tinha estado à escuta à porta passou de súbito pelos guardas e correu na nossa direção. Não fiquei preocupada; pela maneira de ele se mover e pelo bronzeado que tinha nas faces, era fácil perceber que não se tratava de um vampiro. Dois dos guardas seguiram-no, com tanta rapidez que não passaram de borrões de cor contra as paredes de pedra vermelha, depois ultrapassaram-no. Chegaram primeiro até nós e
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colocaram-se entre mim e Rafe e o recém-chegado, embora não tenham tentado refreá-lo. Na verdade, pareciam mais interessados em vigiarme. — Irei falar, Consulesa, e é melhor que ordene aos seus servos que não me ponham as mãos em cima, a menos que deseje que isto se transforme numa guerra! — A voz estrondosa do louro revelava um britânico bem-educado, mas a sua indumentária não condizia. O cabelo era a única coisa normal nele — cortado rente e sem nenhum estilo aparente. Mas sobre a sua camisa havia munições suficientes para aniquilar um pelotão, e ele tinha um cinturão a pender-lhe na parte de baixo das ancas que, juntamente com uma faixa que lhe atravessava as costas, parecia conter todas as armas portáteis existentes no mercado, uma de cada tipo. Reconheci uma catana19, duas facas, uma espingarda de canos serrados, uma besta20, duas pistolas, uma delas presa à sua coxa , e um par de granadas, juro por Deus! Havia outras coisas que não consegui identificar, incluindo uma fileira de garrafas com rolha ao longo da parte da frente do cinturão. A roupa, uma espécie de cruzamento entre um cientista louco e o Rambo, teria dado vontade de rir, mas a verdade é que eu gosto de mostrar respeito por alguém que anda com tanto armamento assim. — Está aqui de favor, Pritkin. Não te esqueça disso. — A Consulesa parecia aborrecida, mas várias das suas serpentes silvaram na direção do fulano. O homem riu com desdém, com os brilhantes olhos verdes cheios de escárnio. Perguntei-me se teria uma atração pelo abismo e encostei com força em Rafe. Os braços dele deslizaram em volta da minha cintura e eu me senti um pouco melhor. — Ela não é vampira, não tem o direito de falar por ela! 19
A catana ou facão é algo com cabo em madeira e uma lâmina curvada, muito utilizado para desbastar mato e pequeno arvoredo. 20 Arma antiga com que se arremessavam setas.
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— Isso é facilmente remediável. Dei um salto quando uma voz grave e sibilante falou ao meu ouvido. Virei-me nos braços de Rafe e vi um vampiro alto e cadavérico com cabelo negro oleoso e olhos salientes e cintilantes a curvar-se na minha direção. Só o tinha visto uma vez e não nos tínhamos dado bem. Não sei porquê, não me parecia que desta vez fosse ser diferente. Jack21, ainda por vezes chamado pela sua famosa alcunha, tivera um fim abrupto na sua anterior carreira nas ruas de Londres quando conheceu Augusta, um dos membros do Senado que agora estava desaparecida, quando ela estava de férias na Europa. Antes de o trazer, ela mostrou lhe o que era um verdadeiro bom momento de estripação. Ele fora promovido ao Senado recentemente, mas servira como torturador não oficial deles quase desde que ela o criara. Tempos atrás, fora para Filadélfia fazer uns trabalhos como freelancer e não gostara do fato de Tony se ter recusado a oferecer me como bônus por um serviço bem feito. Eu tinha ficado aliviada por não o ver na câmara do Senado quando cheguei, e não havia nenhuma entrada desse lado da sala. Mas perceber de onde ele viera não era tão prioritário como me indagar sobre a razão de ele ter os lábios enrolados para trás, e as presas compridas e amareladas totalmente expandidas. Rafe afastou-me com uma sacudidela e Tomas mudou de posição para conseguir encarar os dois recém-chegados. Antes que as coisas se tornassem mais interessantes, a Cônsul interveio. — Senta-te, Jack. Ela pertence a Lorde Mircea, como sabes. — Mircea sorriu-me, aparentemente impassível. Ou ele confiava muito mais em Jack do que eu, ou o fato de ser o mestre de Tony, e, pelas leis dos vampiros, também meu, não tinha grande significado para ele. Eu 21
Jack, o Estripador foi o pseudônimo dado a um assassino em série não-identificado que agiu no miserável distrito de Whitechapel em Londres na segunda metade de 1888. O nome foi tirado de uma carta, enviada à Agência Central de Notícias de Londres por alguém que se dizia o criminoso. Suas vítimas eram mulheres que ganhavam a vida como prostitutas.
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apostava na segunda hipótese, sabendo a sorte que tinha. Jack afastouse, mas a contragosto. Gemeu como uma criança a quem tiraram uma guloseima quando tomou o seu lugar. — Ela parece uma vagabunda. — É melhor isso do que parecer um coveiro. — Era verdade, as suas pesadas roupas vitorianas teriam parecido perfeitamente adequadas num funeral, mas não foi por isso que o disse. Eu já aprendera que o medo era poder, e eu tinha um medo de morte de Jack. Até em vida ele fora um monstro; agora era do tipo que até os vampiros evitavam. Mas eu não ia dar-lhe a vantagem de saber o quanto me afetava. Já para não dizer que, para ele, o terror era um afrodisíaco. Tony dissera que, na verdade, ele preferia que as vítimas se aterrorizassem com a sua dor, e eu não iria dar-lhe esse prazer. Em resposta, ele exibiu-me novamente as presas. Pode ter sido um sorriso, mas duvido. — Os magos não têm monopólio sobre a honra, Pritkin — Prosseguiu a Cônsul, ignorando a mim e a Jack como se fôssemos duas crianças mal comportadas a fazerem uma birra à frente de um convidado. — Manteremos o nosso acordo com eles se eles mantiverem o deles conosco. Eu me mexi e lancei outro olhar ao homem — aliás, ao mago. Eu já conheci magos, mas apenas renegados que de vez em quando faziam serviços a Tony. Nunca me impressionaram grandemente. A maioria deles tinha sérias dependências em relação a uma qualquer substância ilegal — uma conseqüência de viverem constantemente sob ameaça de morte — e o vício deles tinha a bênção de Tony, desde que os mantivesse ávidos pelo trabalho. Mas nunca tinha visto um em boas condições, sobretudo um membro do Círculo, se é que ele o era. Tony
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temia tanto o Círculo de Prata como o Negro, por isso sempre sentira curiosidade em relação a eles. Os rumores que circulavam acerca do Círculo de Prata, cujos membros supostamente praticavam apenas magia branca, eram assustadores, mas do Negro nem sequer se falava. Quando até os vampiros consideram um grupo demasiado intimidador para fofocar sobre ele, é provável que seja melhor evitá-lo. Fiquei pensando a que tipo pertenceria ele, mas não havia nenhum sinal nem insígnia à vista na sua estranha indumentária. Fez sinal na minha direção. — Ela é humana e usa a magia; isso faz com que caiba a nós decidir o seu destino. — Flexionou as mãos como se quisesse agarrar em algo, talvez numa arma, talvez em mim, talvez nas duas coisas. — Entregue-me e eu juro que nunca terá motivos de arrependimento. Mircea olhava para ele da mesma forma que uma boa dona de casa olha para um inseto que rasteja pelo chão da cozinha que acaba de limpar. — Mas a Cassie pode vir a ter, não é? — Perguntou, com a sua habitual voz amena. Eu nunca o ouvira elevá-la, embora ele tenha vivido com Tony durante quase um ano. A Consulesa parecia tão calma como uma estátua de bronze, mas uma onda de poder vibrou ao meu lado, como uma brisa quente de Verão contendo minúsculas gotas de ácido no interior. Encolhi-me e resisti ao impulso de limpar a pele. Se 0 mago reparou, não deu sinais disso. — Ainda temos de determinar quem tem mais direitos, Pritkin.
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— Não há nada a discutir. A Pítia quer que lhe devolvam a vigarista. Mandaram-me vir buscá-la e, de acordo com o nosso tratado, não têm o direito de interferir. O lugar dela é junto do seu povo. Eu não fazia idéia do que ele estava falando, mas achei estranho que parecesse tão preocupado com o meu futuro. Nunca o vira na vida, e o fato de nenhum dos magos que tinham ido com Tony nunca me terem olhado duas vezes não ajudava à minha confusão. Enquanto mera clarividente de estimação do vampiro, eu estava abaixo de cão. Irritarame o fato de renegados terem mais status do que eu na comunidade mágica e me terem tratado como uma charlatã numa feira. Mas, naquele momento, eu aceitaria de bom grado um pouco de indiferença desdenhosa. Toda a sessão começava a parecer com uma matilha de cães lutando por um osso, sendo que o osso era eu. Não me agradava, mas não podia fazer grande coisa em relação a isso. — O lugar dela é junto daqueles que melhor a podem defender e ao seu dom. — A Consulesa serenou bem os ânimos. Indaguei-me sobre se isso seria um talento inato ou se os seus dois mil estranhos anos De vida tinham ajudado a ensinar-lhe compostura. Talvez as duas coisas. — Acho interessante, Pritkin, que o teu Círculo fale agora em protegê-la. Não há muito tempo você pediu a nossa ajuda para a encontrar, viva ou morta, insinuando que a última hipótese era preferível. Os olhos do loiro faiscaram perigosamente. — Não se atreva a pôr palavras na boca do Círculo! Não entende o perigo. Só o Círculo a pode proteger, e proteger os outros dela. — Pela primeira vez ele olhou diretamente para mim e, se ele fosse um vampiro, a contorção do seu rosto poderia ter mostrado presas expostas. Assim, fez-me perceber que eu tinha mais um inimigo com que me preocupar. O olhar dele lançou-se sobre mim como um Chicote e ele
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não pareceu ter gostado do que viu. — Deixaram-na amadurecer sem supervisão, afastada de todos aqueles que poderiam ter-lhe ensinado a controlar-se. É uma receita para o desastre. Cruzei o olhar com aqueles olhos verdes semi cerrados e algo quase parecido com medo atravessaram-os por um segundo. A mão encaminhou-se para a faca que tinha embainhado no pulso e, por um instante, eu pensei mesmo que ele fosse lançá-la contra mim. Rafe deve ter pensado o mesmo, pois ficou tenso, mas a voz da Consulesa intercedeu antes que alguém pudesse mexer-se. — O Círculo de Prata já foi grandioso, Pritkin. Estás a dizer-nos que não consegues proteger um dos teus apenas porque ela é uma ovelha tresmalhada? Tornaste-te assim tão fraco? O rosto dele encheu-se de raiva e a sua mão continuou a afagar a faca, embora ela tenha permanecido no seu pequeno estojo de metal. Olhei para aqueles olhos verdes cristalinos e, de repente, percebi tudo. Já sabia quem, ou, pelo menos, o que ele era. Dizia-se que o Círculo de Prata tinha um grupo de magos treinados em técnicas de combate, tanto humanas como mágicas, que reforçavam a sua vontade. Os magos com quem Tony se dava tinham um medo de morte deles, porque eles estavam autorizados a matar feiticeiros vigaristas mal os vissem. Os magos que irritassem o Círculo eram proibidos de voltar a usar a magia; se o fizessem e fossem descobertos, era uma sentença de morte. Mas porque é que o Círculo de Prata tinha mandado um maldito mago de guerra atrás de mim? A maior parte das pessoas, mesmo na comunidade mágica, trata os clarividentes como charlatães, sem mais capacidades do que uma bruxa no Dia das Bruxas; o radar deles nem sequer nos registra. Mas o fato de existirem muitas fraudes não significa que alguns de nós não sejamos genuínos. Indaguei-me sobre se o Círculo também teria finalmente chegado a essa conclusão e decidido começar a eliminar
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aqueles que rivalizassem com o poder deles, começando por mim. Parecia o tipo de coisa que me calhava em sorte. Se o mago me atacasse enquanto eu estivesse sob proteção do Senado, eu estava segura de que poderiam matá-lo e safar-se. Nem mesmo o Círculo de Prata poderia contestar a morte de um dos seus membros se tivesse sido ele a provocá-la. Assim, havia boas, probabilidades de ele não me matar, mas, ainda assim, lancei um olhar furioso a Tomas. Ele podia ter-me devolvido a arma assim que chegamos. A verdade é que eu não iria conseguir fazer mal a alguém do Senado com ela, mesmo que fosse suficientemente louca para tentar, e teria sido um consolo. Sobretudo se ele fazia tensões de deixar entrar magos de guerra armados até aos dentes. — Ela já ostenta a nossa maior sentinela. Esta noite, ela drenou força de todos nós; não foi só o seu vampiro que a salvou! — Não. Foi um esforço conjunto, tal como deve ser toda esta iniciativa. — interrompeu o GQ suavemente. Fiquei surpreendida por alguém se atrever a falar pela Consulesa, mas ninguém o contrariou nem sequer pareceu achar estranho. Talvez o Senado fosse um grupo democrático, mas, se assim fosse, seriam os primeiros vampiros, que eu conhecia a encaixar nessa categoria. A hierarquia na corte de Tony tinha por base a força, sendo que "o que importa é conseguir" era basicamente a única regra. Nas outras famílias passava-se o mesmo, tanto quanto eu sabia. O Senado governava porque era suficientemente forte para assustar até vampiros como Tony, o que, significava que o ruivo não podia ser tão inofensivo como parecia, senão já o teriam comido vivo há anos. Para minha surpresa, o GQ reconheceu que eu estava na sala, ao invés de falar de mim como se eu fosse uma peça de mobília.
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— Permita-me que me apresente. Chamo-me Louis Cesar. — Disse ele, fazendo uma mesura perfeita. — A vosso serviço, mademoiselle. — Os olhos dele eram intensos quando olhou para mim, mas moderou um pouco o olhar. Eu deixei de ter a impressão de poder vir a fazer parte do menu. Ao contrário da maioria das mulheres do século XXI, eu sei qual é a resposta adequada a uma mesura formal. Tanto a preceptora como a tutora que Tony me atribuíra tinham nascido na época vitoriana, portanto posso fazer mesuras como as melhores delas. Pensava que tinha esquecido parte desse treino inicial, mas algo em Louis-César faz com que ele regressasse. Ele perdeu o espetáculo indubitavelmente divertido de mim a tentar comportar-me de acordo com os padrões da ama em cima de botas de sair à noite com dez centímetros de salto, salpicadas de sangue, e dentro de uma minúscula minissaia porque olhava novamente para a Cônsul. Eu estava tão concentrada na cena que se passava na mesa de honra que o segundo atentado da noite à minha vida me passou completamente ao lado. A primeira pista que tive foi quando uma vaga de poder me atingiu como se uma tempestade de areia tivesse começado a soprar sabe-se lá de onde. Partículas quentes e penetrantes roçaram-me a cara por um segundo, antes de Tomas empurrar Rafe para o lado e se agarrar a mim, com força suficiente para me tirar o ar dos pulmões quando caímos no chão. Eu fiquei virada para cima, o que me permitiu ver dois dos guardas da câmara parados imóveis no meio da sala, com a carne a evaporar-se lentamente dos ossos, como se estivesse a ser devorada por insetos invisíveis. Passado um segundo, os esqueletos despidos estatelaram-se no chão, sendo que os corações e os cérebros tinham desaparecido juntamente com os seus restantes tecidos moles.
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Mal vi o que aconteceu a seguir porque nada se passou à normal velocidade humana e Pritkin estava à minha frente. Ele mantinha-se ao meu lado, agachado, com uma faca de aspecto assustador numa mão e uma arma na outra. Outra faca e dois frascos pequenos pairavam no ar por cima da sua cabeça, como se estivessem presos por cordões invisíveis. Por um instante, pensei que ele decidira eliminar-me com todo o Senado a ver, mas ele não olhava para mim. A estátua que eu vira anteriormente à porta estava subitamente ao nosso lado. Apesar de ter apenas uns entalhes esbatidos no lugar dos olhos, parecia estar a olhar para Pritkin como se aguardasse ordens. Reconheci o que era quando a vi mexer-se, embora nunca tivesse visto nenhum antes. Os feiticeiros que Tony contratava temiam quase tanto os golems como os magos de guerra. Eram figuras de barro que ganhavam vida por antiga magia hebraica cabalista. Originalmente, faziam recados aos rabinos que tinham poder suficiente para os criar. Talvez alguns ainda o fizessem, mas agora a maioria deles servia os cavaleiros, a denominação correta dos magos de guerra. Pritkin apontou para mim e o golem virou o seu olhar vazio na minha direção. — Protege-a! — O golem tomou o lugar dele, com os olhos inexpressivos fixos em mim, enquanto o seu mestre se juntava ao combate. Eu desviei o olhar da criatura, que me aterrorizava mais do que os assassinos, e vi Jack a atacar um dos guardas que restavam, o guarda grunhia, pigarreando como um animal, mas Jack parecia um menino na manhã de Natal, todo corado e com os olhos a brilhar. Desdenhou Pritkin com um gesto que dizia claramente: “Este é meu”.
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O outro guarda estava fora de cena, arranhando o peito no lugar onde o sangue se amontoava em redor da rapieira22 que o trespassara completamente, como se a sua pesada cota de malha nem sequer existisse. A lâmina ficou quase trinta centímetros para lá das suas costas, fazendo reluzir um vermelho escuro à luz tremula dos candelabros. Sempre achei que as rapieiras eram coisas refinadas e quase efeminadas quando as via nos filmes, mas, aparentemente, eu estava errada. Esta tinha uma lâmina poderosa, como se um punhal de dois gumes tivesse sido esticado até ficar com dois centímetros e meio de largura e quase um metro de comprimento. Enquanto eu me debatia para respirar, Louis-César arrancou-a do peito do vampiro e, com o mesmo movimento fluente, decapitou-o. Tudo foi feito a tal velocidade que, por momentos, os meus olhos pensaram que ele tinha falhado. Depois a cabeça caiu de cima do pescoço e ressaltou pelo chão. O vampiro tinha as pálpebras em movimento e as presas à mostra quando a cabeça rebolou até parar a menos de meio metro de mim, com o capacete ainda milagrosamente posto. Juro que a boca se mexeu, abocanhando o ar vazio como se tentasse alcançar me o pescoço, ainda que o seu sangue vital se espalhasse em redor numa mancha cada vez maior. Eu devia estar a fazer algum barulho abafado, ou então o golem considerou a cabeça como uma ameaça, porque rapidamente a afastou com um pontapé. Isso teria sido bom, se ele não tivesse subestimado o peso dela e não a tivesse lançado pela mesa do Senado, fazendo-a embater, cheia de sangue, contra a parede atrás da cuidada cabeleira da beldade. Um rastro de sangue manchou o tampo da mesa brilhante diante dela e gotas salpicaram lhe o cabelo, onde cintilaram como pequenos rubis. 22
A rapieira, ou espadim, é um tipo distinto de arma branca, uma espada comprida e estreita, popular desde o período Medieval até a Renascença, que se tornou a arma mais comum daquela época, principalmente na Itália e na Espanha nos séculos 16 e 17.
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Ela foi buscar a cabeça por baixo da mesa e ofereceu-a educadamente ao seu companheiro, que, de modo igualmente educado, a recusou. Estava ocupado limpando o tampo e colocando a mão sobre o sangue derramado. As gotas ascendiam ao encontro da palma da sua mão como se fossem de ferro e ele fosse um ímã. Tal como acontecera anteriormente com Tomas, elas desapareceram na sua pele como se fosse creme. — Este tipo de coisa está a tornar-se cansativa. — Disse ele, em tom de conversa, e a beldade assentiu com a cabeça no intervalo das lambidelas à reluzente coluna vertebral que espreitava do pescoço destruído do seu troféu. Tive de fechar os olhos por um momento e esforçar-me por manter o estômago no lugar, mas, pelo menos, não estava gritando. Em primeiro lugar, isso não teria demonstrado força diante do Senado, o que seria mau. Em segundo lugar, ainda tinha a garganta ardendo devido à quase ter sido estrangulada no início da noite. Em terceiro lugar, não conseguia engolir ar suficiente, graças ao peso de Tomas. Tentei desviálo para um dos lados, mas foi como tentar deslocar uma estátua de mármore. Ele limitou-se a fazer mais força para baixo, até eu gritar de dor; depois o seu corpo amoleceu, fundindo-se sobre mim como uma colcha quente de cetim. Poderia ter sido relaxante, se não se desse o caso de eu não conseguir respirar fundo nem me mexer e de Jack e o outro guarda estarem lutando perigosamente perto. Eu não percebia a razão por que ninguém tinha matado o guarda, principalmente porque ele tinha alcançado a sua enorme alabarda 23 e olhava para mim com a concentração obstinada que a maioria dos 23
A alabarda é uma antiga arma composta por uma longa haste. A haste é rematada por uma peça pontiaguda, de ferro, que por sua vez é atravessada por uma lâmina em forma de meia-lua (similar à de um machado). É considerada a arma de infantaria mais eficaz contra invasores em fortificações e muralhas.
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homens reserva ao canal da Playboy. Se o Senado me queria morta, não teria sido mais fácil deixar que Tony fizesse o serviço por eles? E, se não queria, porque é que Louis-César não estava a repetir o seu desempenho anterior, ao invés de se limitar a ficar ali parado? Talvez julgasse que o guarda nunca conseguiria passar por Pritkin, Rafe e Tomas, mas eu não estava assim tão certa. A mim, a lâmina da alabarda parecia-me horrivelmente afiada, e eu sabia com que rapidez os vampiros conseguiam mover-se. O guarda só precisava de uma fração de segundo para me transformar no prato principal da Miss Geórgia 1860 quando ela terminasse o seu aperitivo. Mas ninguém fez nada, a não ser Tomas, e ele apenas rastejou pelo meu corpo acima, a ponto de conseguir fazer um relatório pormenorizado acerca do padrão da renda do meu sutiã, caso lhe fosse pedido. Ele parecia calmo, mas eu sentia o coração dele saltando contra a minha pele. Não era reconfortante saber que ele também estava preocupado. Olhei para alem de sua cabeça escura, para o lugar onde as chamas das velas dançavam ao longo da enorme lâmina da alabarda, o que se passava a menos de quatro metros de distância. Enquanto eu olhava fixamente, o guarda lançou-se contra mim, rangendo os dentes como um tigre encurralado, e tudo acabou tão depressa como tinha começado. Jack era uma faixa de um feio tecido verde-escuro e um clarão de mãos pálidas. Eu pestanejei e o guarda caiu, com braços e pernas presos ao chão por quatro grandes facas enterradas através da sua pele na pedra subjacente. Duas delas eram objetos substanciais, com estranhos punhos de madeira, como se em tempos pudessem ter sido utensílios de cozinha. As outras eram as reluzentes peças de prata pertencentes ao mago, que as chamou de volta a si com um gesto assim que Jack conseguiu controlar o prisioneiro. Soltaram-se do vampiro com um audível som de rasgão e voaram até ele, uma delas instalando-se na bainha do pulso e a outro
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desaparecendo pela sua bota abaixo. Ele nem se tinha dado ao trabalho de utilizar as que tinha na cintura. Ele e o golem desviaram-se para permitir que Tomas me pusesse de pé. Apesar de ter acabado de ajudar a salvar-me a vida, tinha os olhos frios quando olhou para mim, como fragmentos de gelo verde. A Consulesa parecia imperturbável pelo distúrbio, mas um pequeno franzir de testa manchava o seu rosto habitualmente perfeito. — Tenha cuidado, Jack. Quero respostas, não um cadáver. Jack sorriu-lhe ditosamente. — Terá as duas coisas. — Prometeu, inclinando-se depois em direção ao corpo. Eu desviei rapidamente o olhar, mas ouvi os sons de carne rasgada e estalidos de ossos. Supus que ele tivesse recuperado as suas facas, partindo os membros da vítima enquanto o fazia. Engoli em seco algumas vezes. Tinha-me esquecido de como a vida da corte pode ser interessante. — Como eu dizia, madame, la mademoiselle não está bem, obviamente. Talvez lhe possamos explicar as coisas depois de lhe dar oportunidade para descansar? — Louis-César falou de forma descontraída, como se os acontecimentos dos últimos minutos nunca tivessem ocorrido. Entretanto, Jack retirara um conjunto de reluzentes utensílios cirúrgicos de um estojo que puxara de dentro de um bolso. Alinhou-os lentamente ao lado da sua vítima em estertor, dando uma ligeira e sibilante gargalhada enquanto O fazia. Ótimo; pelo menos havia alguém se divertindo. — Não temos tempo a perder, Louis-César, como sabe.
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— Ma chère madame, temos todo o tempo do mundo... agora. — Trocaram um olhar, mas eu não soube interpretá-lo. — Se me for permitida a sugestão, eu poderia explicar a Mademoiselle Palmer o nosso dilema e fazer-lhe o relatório antes de amanhecer. Isso ia lhe dar tempo para terminar o... interrogatório. — Olhou para mim de relance e o meu pânico ante a idéia de ficar sozinha com um cara que acabara de transformar um poderoso vampiro numa espetada deve ter transparecido. Ele acrescentou rapidamente: — Rafael pode acompanhar-nos, claro. Eu não gostava do fato dele conseguir interpretar-me com tanta facilidade, mas saber que teria a companhia de um amigo fez-me sentir melhor. Pelo menos até ver Jack a começar a puxar um longo e reluzente cordão de intestinos para fora das agora abertas entranhas do vampiro, pendurando-o no braço como se fosse uma faixa de salsichas. Parou para lamber os dedos como um menino faz com um sorvete, depois olhou de relance para cima e piscou-me o olho. A pele entre os meus ombros arrepiou-se como se quisesse fugir para outro lado qualquer. Conclui que não iria gostar desta conversa, independentemente de quem estivesse envolvido.
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Capítulo 4 Finalmente ficou decidido que Louis-César, Rafe e Mircea me acompanhariam até ao meu quarto e me esclareceriam. Pritkin não gostou, mas não estava preparado para desafiar a decisão da Consulesa. Tendo em conta que isso teria significado confrontá-la num duelo, fiquei aliviada por sabê-lo. Já me chegavam às lutas que tinha tido naquela noite; além do mais, não sabia o que aconteceria se um mago de guerra do Círculo de Prata enfrentasse uma vampira com dois mil anos, mas não era um espetáculo a que eu quisesse assistir. Sentia-me grata por dois dos meus três companheiros serem meus amigos, ou, pelo menos, neutros na amizade, mas isso também me deixava ansiosa. O Senado estava agindo de modo suspeitavelmente amável, defendendo-me contra aspirantes a assassinos, recusando-se me entregar a Tony ou ao Círculo, assegurando a minha saúde e garantindo que os meus companheiros fossem aqueles que eu gostaria. Fiquei pensando no que pretendiam, e no quanto eu não ia gostar de lhes fazer a vontade. Passado pouco mais de um minuto, eu já não estava assim tão certa de ter sido uma boa idéia ter abdicado do meu guarda-costas. Estávamos sensivelmente a meio de um segundo lanço de escadas quando nos cruzamos com um lobisomem que ia descer. Era um espécime enorme cinzento e preto, com o típico focinho comprido e a boca cheia de dentes afiados como lâminas. Uns olhos amarelos prenderam-se aos meus por um segundo e eu fiquei paralisada, a meio caminho do degrau seguinte. Só vira um lobisomem uma vez, e nunca assim tão perto, mas percebi instintivamente o que ele era.
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O que me impressionava não era apenas o seu tamanho; naqueles olhos havia uma inteligência que nenhum animal poderia ter. O que eu não conseguia perceber era o que ele fazia ali. Dizer que os vampiros e os metamorfos não se dão bem é um eufemismo absurdo. Talvez tenha algo a ver com o fato de ambos serem predadores, ou talvez Tony tivesse razão quando insistia que os metamorfos invejavam a imortalidade dos vampiros. Seja qual for a razão, eles são como água e azeite. Ou, mais frequentemente, como sangue e pêlo, sendo que ambos acabam a voar quando eles se encontram. Eu estava à espera de uma reação, provavelmente severa, de um ou mais dos meus acompanhantes, mas a única coisa que notei foi à mão de Rafe a comprimir-se ligeiramente no meu pulso. LouisCésar cumprimentou o metamorfo com um aceno de cabeça, como se fosse habitual encontrar lobos gigantes na escadaria. — Sebastian, prazer em ver-te. — O metamorfo não respondeu, claro, pois estava na forma animal, mas esgueirou-se por nós sem nos desafiar. Foi uma experiência verdadeiramente surreal. Também me permitiu perceber que já não estava no Kansas, nem em Atlanta. Quando saímos das escadas para as zonas à superfície, consegui finalmente espreitar por uma janela e confirmar que, estivesse onde estivesse, não era no norte da Geórgia. A vista também me explicou porque é que a Consulesa estava preocupada com o tempo. Eu devo ter perdido mais horas do que pensava desde que Tomas me enfeitiçara, as suficientes para ser levada, e não apenas para a outra ponta do estado. As cores do lado de fora da janela pertenciam a uma paleta diferente das que se viam na Geórgia: os verdes e cinzentos sarapintados do Sul profundo tinham sido substituídos por céus azuis-escuros e nuvens anis. Uma cúpula negra e incrustada de estrelas estendia-se sobre mim, mas a
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linha violeta-escura ao longo do horizonte demonstrava que o deserto começava a lembrar-se do dia. — Está quase amanhecendo. Louis-César seguiu o meu olhar enquanto abria uma porta de rompante. — Ainda falta algum tempo. — respondeu ele, com sinceridade. Semicerrei os olhos devido ao tom extemporâneo. Até Rafe, com a avançada idade que tinha, ficava tenso quando se aproximava a aurora, com tendência para falar demasiado e deixar cair coisas. Quanto mais novo era o vampiro, mais cedo isso começava. Era uma espécie de rede de segurança incorporada para garantir que ninguém acabava frito, e eu nunca tinha visto ninguém ficar completamente imperturbável. Contudo, o francês parecia perfeitamente à vontade. Ou ele era muito mais poderoso do que os vampiros que eu conhecia ou era um grande ator; fosse como fosse, isso não me fez sentir melhor. Passei por ele e dei por mim na sala de estar de uma suíte decorada a condizer com aquilo que eu imaginava que seria a vista da janela durante o dia. Paredes turquesa claras estavam cobertas por mantas nativo-americanas em tons queimado, turquesa e vermelho navajo, um tapete a condizer fora colocado sobre o soalho de madeira crua e mosaicos de barro cru serviam de contorno à lareira. O sofá, a cadeira e a otomana de couro tinham um tom condizente de vermelhoescuro, e já estavam suficientemente usados para parecerem confortáveis. Era uma sala estranhamente alegre; aparentemente, o Senado não partilhava o amor de Tony pelo gótico.
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— Por favor, mademoiselle, asseyez-vous. — Louis-César foi pôrse ao lado da rígida poltrona estofada perto da lareira. Olhei de relance para Rafe, mas ele fixava resolutamente a vista, o que restava dela. Tinha as mãos firmemente entrelaçadas atrás das costas e os ombros tensos. Pois é, na hora exata: a aurora estava a chegar. O que eu queria era arrastá-lo e obter algumas respostas diretas, mas, mesmo partindo do princípio de que ele estava com disposição para isso, não tive chance. Mircea pôs uma mão leve debaixo do meu cotovelo, um toque apenas suficiente para me conduzir à cadeira. — Louis-César não se sentará enquanto uma senhora estiver em pé, dulceata. — Minha querida: o nome carinhoso que me chamava quando eu me sentava ao seu colo e ouvia as suas histórias. Esperava que ele estivesse sendo sincero, se Rafe fosse o meu único amigo ali, estava metida em sarilhos. Deixei-me cair na cadeira e o francês ajoelhou-se diante de mim. Sorriu de modo reconfortante. Eu pestanejei. O homem — não, o vampiro mestre — tinha covinhas. Das grandes. — Gostaria de tratar de sua ferida. Se me der licença? Eu acenei cautelosa com a cabeça, pouco convencida de que um vampiro fosse a melhor pessoa para limpar sangue, principalmente um vampiro que, pouco tempo antes, parecera bastante esfomeado. Mas a variedade de sangue seco não os atrai e, além disso, a verdade é que eu não tinha alternativa. Ele estava sendo educado, pedindo-me autorização, como se o que eu dissesse tivesse importância, mas eu era mais esperta do que isso. Havia dois membros do Senado no quarto; eles podiam armar-se em cavalheirismos durante o tempo que quisessem,
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mas, quando chegasse a hora, eu faria a vontade deles. Eles sabiam disso, e eu também. Louis-César sorriu mostrando aprovação e eu percebi subitamente porque é que ele estava a deixar-me inquieta. A esta curta distância, consegui perceber que ele era um dos vampiros com o aspecto mais humano que já tinha visto. À exceção de Tomas, que tivera uma razão para ter o aspecto mais humano possível, a maioria dos vampiros esquece-se de pequenas coisas, como respirar, fazer os seus corações bater e deixar que a sua pele ofereça uma cor um pouco mais credível do que a da neve acabada de cair. Até Rafe, que era bastante convincente, geralmente só se lembrava de pestanejar algumas vezes por hora. Mas eu podia ter passado por este na rua e tê-lo confundido com um humano, desde que ele mudasse de roupa. Dei por mim a contar os segundos entre a respiração para ver se lhe escapava alguma. Não escapou. Durante o meu crescimento, vi milhares de vampiros de todo o mundo, alguns tão vistosos e transcendentais como a Cônsul e outros de aspecto tão normal como Rafe. Até hoje, teria jurado que reconheceria um deles em qualquer lado, mas Tomas enganara-me intimamente durante meses e Louis-César poderia ter feito o mesmo, se quisesse. Isso não me agradava — fazia-me sentir uma não-sensitiva, como se fosse uma entre os milhões de pessoas que estão desprotegidas do sobrenatural por nem sequer conseguirem ver que ele existe. Eu tinha crescido junto de vampiros, mas o poder que os membros do Senado irradiavam não se assemelhava a nada do que eu alguma vez sentira. Isso me fez pensar no que mais me estaria escapando, e essa idéia me gelou. Louis-César examinava meu rosto lentamente, acho que mais para me dar oportunidade de me habituar a ele do que propriamente
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por necessidade. Não resultou. Quando um reluzente caracol castanho, que se soltara do aglomerado que tinha no pescoço, roçou o meu ombro, dei um salto como se ele me tivesse dado um estalo. A mão dele, que estava estendida para me tocar no cabelo, imobilizou-se de imediato. — Mille pardons, mademoiselle. Mas talvez possa fazer-me o favor de puxar o cabelo para trás? Seria bom ver a extensão da ferida. Entregou-me um gancho dourado que retirara do seu próprio cabelo. Aceitei-o, tendo o cuidado de não roçar os dedos dele nos meus. O meu cabelo mal chegava aos ombros, mas eu prendi a maior parte dele num rabo-de-cavalo trapalhão enquanto ele observava. Tentei dissuadir-me do quase ataque de pânico que estava preste a ter, mas não resultou. Um qualquer instinto mais antigo do que a razão, mais antigo do que as frases educadas ditas em salas bem iluminadas, queria que eu fugisse e me escondesse. É claro que isso poderia ter sido uma reação à noite que eu tinha tido, mas uma parte de mim não gostava nada mesmo de o sentir ali tão perto. Obriguei-me a ficar sentada quieta enquanto ele terminava o seu exame, fingindo que os meus braços não estavam com pele de galinha e que a minha pulsação não estava a acelerar pelas minhas veias como se eu estivesse fugindo para salvar a vida. Eu não compreendia a minha reação, mas a dura experiência ensinara-me a confiar nos meus instintos, e todos eles me imploravam sonoramente para que saísse dali. — Ah, bon. Ce n'est pás très grave — murmurou ele. Ao ver a minha expressão, ele sorriu, o que lhe iluminou até os olhos. — Não é grave— traduziu. Eu esforcei-me por não gritar. Louis-César ergueu-se e encaminhou-se para uma mesa próxima, e, subitamente, eu pude voltar a respirar. Tentei perceber o que é que
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ele tinha que me alarmava tanto, mas não havia nada palpável. O seu rosto, estruturado em traços agradáveis e simpáticos, parecia ser o de um homem talvez cinco ou seis anos mais velho do que eu, se bem que, a julgar pela sua indumentária, ele já andava por aqui há séculos. Os seus olhos eram serenos — de um azul calmo, sarapintado de cinzento, que não mostrava nenhuma tentativa visível de me influenciar — e os seus movimentos, embora graciosos, não eram nada que um comum mortal não pudesse imitar. É verdade que os meus nervos não estavam grande coisa — nem mesmo eu estava habituada a ser quase morta duas vezes na mesma noite — mas isso não explicava a razão por que, de todos os possíveis candidatos, era Louis-César que me aterrorizava. Ele regressou e o meu pânico crescia a cada passo que ele dava. Observei-o da mesma maneira que um pequeno animal observa um predador, mantendo-me em silêncio, mal respirando, na esperança de que a coisa grande e má não me atacasse. Voltou a ajoelhar-se, numa poça de cetim e renda brilhantes, e as luzes de cima reluziram sobre umas listras ruivas que serpenteavam pelo seu cabelo. Trouxera um estojo de primeiros socorros e alinhou lado a lado um anti-séptico, várias compressas e um pacote de toalhetes nos mosaicos à frente da lareira. — Vou limpar a ferida, mademoiselle, e fazer-lhe um curativo. Amanhã virá uma enfermeira para melhorar o meu esforço desastrado. — Ele estava descontraído, até mesmo alegre, mas eu precisei de todo o auto controle que tinha para não fugir porta fora. Uma mão pálida e esguia, emoldurada por renda branca em cascata, pegou na minha, imunda e manchada de sangue. Ele tinha os dedos frios e apertava ligeiramente, como se achasse que o seu toque me daria conforto. Não deu. Por mais cuidadoso que ele fosse, eu sabia que aquele toque poderia apertar-se num instante, aprisionando-me
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com tanta segurança como uma algema de aço. Senti os dedos da sua outra mão a percorrerem com destreza a minha pele arranhada e, depois, um roçar muito tênue do pano, quando ele começou a limpá-la. Embora o anti-séptico só tenha ardido ligeiramente, eu estremeci e fechei os olhos. Tive um pressentimento muito ruim de que sabia o que estava por vir. — Mademoiselle, sente-se indisposta? — A voz dele vinha de longe e ecoava enganadoramente nos meus ouvidos. Invadiu-me uma sensação familiar de desorientação e combati-a com tudo que tinha. Debati-me com o maior esforço de sempre, tentando empurrá-la de volta à parte de mim que habitualmente a continha, fosse ela qual fosse, implorando-lhe que regressasse à sua latência. Fosse o que fosse que me quisesse mostrar, eu estava absolutamente convicta de que não o queria Ver. Mas, como sempre, o dom foi mais forte do que eu; sempre foi assim. Cedi ao inevitável quando senti um arrepio frio instalar-se no meu rosto. Não estava frio na sala de estar, mas parte de mim já lá não estava. Respirei fundo e abri os olhos. A sensação de frio vinha de uma janela parcialmente aberta à noite. A brisa beliscava-me a pele nua, provocando pele de galinha em toda a carne à mostra. A janela parecia ser uma espécie de vitral, só que não tinha cor nem desenho, à exceção de pequenos losangos no lugar onde as suas muitas vidraças tinham sido unidas. O vidro era espesso e ondulante, como acontecia em algumas casas históricas de Filadélfia, e devolvia apenas um reflexo indistinto. Mas foi o suficiente para me fazer começar a respirar mais depressa. Olhei com pânico em redor e os meus olhos iluminaram-se num espelho do outro lado do quarto. A imagem que refletiu foi também ela esbatida, mas mais por causa da luz tênue, que provinha de algumas velas e uma lareira com lume baixo, do que devido a uma fraca
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estrutura. Na verdade, tratava-se de uma obra-prima de um espelho, enorme, com uma moldura dourada sólida, opulenta como a restante pesada mobília de madeira entalhada. O quarto dava uma sensação de luxo: a cerejeira escura da grande cama de quatro colunas brilhava devido ao reflexo das chamas provenientes da lareira de mármore e ecoava a cor das pesadas cortinas de veludo do dossel. As paredes eram de pedra, mas ostentavam tapeçarias penduradas, com umas cores tão vivas e vibrantes como se tivessem sido terminadas naquele mesmo dia. Um ramo de rosas vermelho-escuro repousava numa mesa próxima, dentro de uma taça de porcelana pintada. No entanto, eu não estava com disposição para apreciar a cena, demasiado alheada pelo reflexo no espelho. Um homem estava ajoelhado numa cama, aproximadamente no lugar onde eu deveria estar. Eu não conseguia dizer quem ele era porque tinha uma máscara de veludo preto a tapar-lhe a maior parte da cara, à exceção das aberturas para os olhos. Tinha um ar cômico, como se fosse parte de um mau personagem do Dia das Bruxas, mas eu não estava com vontade de rir. Talvez porque era a única coisa que ele tinha vestida. Longos caracóis arruivados pendiam por detrás do veludo, colando-se ao seu tronco, e, à luz das velas, reluziam com madeixas de bronze e fiapos de ouro. A luz calorosa e levemente dourada do quarto inundava-o, pingando pela sua pele abaixo, desde o peito musculado aos abdominais lisos e ao ligeiro entalhe do umbigo. Brilhava nas minúsculas gotas de suor que lhe orvalhavam o tronco, que o ar fresco da janela ainda não secara, por isso parecia que ele tinha vestida uma camisa transparente incrustada de pequenos diamantes. Era uma estátua dourada que ganhara vida, só que as estátuas não costumam estar exuberantemente eretas. Engoli em seco e ele fez o mesmo, e os olhos azuis no espelho dilataram-se quando se percebeu o que se passava.
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Mas isso era loucura, para não dizer impossível. Eu não protagonizava as minhas visões. Eu era uma observadora, estava à margem, tão invisível e desligada como um fantasma. Ou, pelo menos, assim o era até esta noite. Antes de sequer começar a pensar no que fazer, eu senti uma mão quente a fechar-se sobre mim num lugar muito íntimo e baixei os olhos em choque para dar com uma jovem morena deitada debaixo de mim, quase enterrada na pilha de mantas que havia na cama. O quarto cheirava a sexo, abafado e pesado, e agora eu sabia por quê. Uma mãozinha delicada brincava com a minha — dele — carne com um toque seguro. Ela agarrou-me novamente, desta vez com mais força, e eu observei com algo próximo do horror uma parte anatômica que eu nunca possuíra a ficar ainda mais longa sob a mão dela. Uma vaga de sensações que me eram familiares surgiu daquele adereço muito pouco familiar, juntamente com pensamentos que eu estava absolutamente certa de não serem meus. Ela roçou uma unha pela ponta rosada que se curvara na sua direção e eu quase gritei. Nunca tinha sentido uma excitação destas. Obviamente, a minha experiência não era propriamente vasta, e vinha do outro lado da moeda, mas isto era quase insuportável. Eu estava habituada a um calor lânguido que aumentava lentamente e se dispersava do meu âmago percorrendo-me as veias, não a esta necessidade desesperada de me enfiar no corpo branco dela o mais profundamente que conseguisse. Ela contorceu-se nas mantas que jaziam espessas e suaves contra a nossa pele nua. — O que se passa, meu belo? Não me diga que já perdeu o interesse! — Ela acelerou o ritmo e, de repente, eu fiquei com dificuldade em respirar. — Consegue um terceiro; eu sei que sim.
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O meu quase transe quebrou-se quando ela se aproximou, umedecendo os lábios, e eu me atirei para trás. Gemi de dor, não só porque ela hesitou por um segundo antes de largar, mas também porque o meu corpo emprestado exigia a libertação. Eu estava tão estimulada que até doía, mas não estava nada interessada naquela oferta. Pensei sinceramente que ia ficar indisposta quando fitei a expressão divertida dela e depois a forma inegavelmente masculina que eu exibia. Não há palavras para o que eu estava a sentir — confusão total e incredulidade eram muito pouco para o descrever. As minhas mãos treparam até à beira da máscara e puxaram-na para cima. Fitando-me a partir do espelho estava o rosto de Louis-César, brando devido ao choque. Eu queria gritar-lhe para que ele fizesse isto parar, para que saísse de dentro de mim, mas eu sabia que o que estava a acontecer era o oposto. De alguma forma, eu invadira-o, e não fazia idéia de como o fizera nem de como desfazê-lo. A mulher soltou um guincho e agarrou-se à máscara, arrancando-a da mão e tentando colocá-la novamente no lugar. — Não corra riscos, monsieur! Sabe como os seus guardiões têm falta de imaginação — nunca a tire. — Ela levantou os olhos para me sorrir maliciosamente. — Além disso, gosto que a use quando fazemos amor. — Envolveu o meu pescoço com os braços e tentou puxar-me para ela. — Sinto frio sem o seu calor. Beije-me. Afastei-me dela com uma sacudidela e rastejei até à ponta da cama, indagando-me sobre o que aconteceria se eu cedesse à neblina negra que ameaçava toldar-me a vista e desmaiasse. Acordaria novamente no lugar ao que pertencia ou estaria presa aqui? Decidi nem sequer pensar nessa última hipótese. Passado um momento, a mulher suspirou e voltou a deitar-se na cama, acariciando de leve os seus
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pequenos seios. Os seus mamilos eram muito castanhos, em contraste com o branco da pele, e ela observava-me com um sorriso cúmplice. — Está cansado, meu amor? — A mão dela passeou mais para baixo, emaranhando-se no pêlo escuro da vulva, e ela sorriu maliciosamente. — Aposto que consigo reanimá-lo. Antes que eu sequer conseguisse tentar persuadir o meu cérebro sobrecarregado a pensar numa resposta, a pesada porta de carvalho abriu-se, deixando entrar uma mulher de meia-idade, flanqueada por quatro guardas. A sua expressão mostrou-me que não viera para se juntar a nós, graças a Deus. — Levantem-no. — Dois dos guardas arrastaram-me para fora da cama e a mulher que eu acabava de conhecer bem demais guinchou e puxou as cobertas até ao queixo. — Marie! O que estás fazendo? Sai imediatamente! Sai, sai! A mulher mais velha ignorou-a e olhou para mim, sem que o desprezo no seu já pouco atraente rosto lhe melhorasse o aspecto. Os seus olhos percorreram-me desdenhosamente. — Sempre pronto, estou a ver. Herdaste isso do teu pai. — Olhou de relance para os guardas. — Tragam-no. Fui obrigada a sair do quarto sem hipótese de me vestir. A morena atirou-me um robe extremamente brocado, que eu vesti sobre a constrangedora prova do estado em que estava, mas não houve tempo para calçar sapatos nem sequer vestir umas calças. A rapariga na cama lançou estranhas obscenidades atrás de nós, dirigidas, sobretudo à mulher mais velha. Percebi de que ela não estava falando em inglês,
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embora eu conseguisse entendê-la perfeitamente. Ou talvez fosse este corpo que conseguia, e que, de alguma forma, o estivesse a traduzir para mim. Não tive tempo para pensar nisso, uma vez que fui empurrada por um longo corredor de pedra até uma escadaria. Havia concavidades profundas no centro de cada degrau, no lugar que milhares de pés tinham pisado no decorrer de centenas de anos. Lá em baixo estava escuro, e o ar que se levantava era gelado, a ponto de eu ficar surpreendida por não ver o meu hálito sair da boca. A mulher parou ao cimo das escadas e virou-se para mim. Agora já não parecia desdenhosa; a emoção nos seus olhos escuros aproximava-se mais do medo. — Não avançarei mais. Já vi o que te espera e não tenho qualquer desejo de tornar a vê-lo. — A sua expressão alterou-se para algo semelhante à pena. — Toda a tua vida obteve as recompensas que provêm do silêncio. Esta noite vais conhecer o castigo por o teres quebrado. Virou as costas sem dizer mais nenhuma palavra e os guardas começaram a empurrar-me em direção àquele buraco negro. Neste corpo, eu era mais forte, mas nada que se parecesse à força necessária para enfrentar aqueles tipos. Olhei para trás, selvagemente, na direção da mulher, mas ela já se afastava de costas muito direitas dentro do seu vestido cor de amora. — Por favor! Madame! Porque está a fazer isto? Eu não disse nada. Juro! — As palavras não eram minhas — saltaram dos meus lábios sem convite — e não a demoveram. — Se queres saber a quem atribuir os louvores do trabalho desta noite, pergunta ao teu irmão. — Atirou ela sobre o ombro, antes de
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desaparecer para dentro de uma sala e fechar a porta com firmeza atrás de si. Foi um som muito conclusivo. As escadas eram demasiado estreitas para os meus captores conseguirem segurar-me nos braços, mas, uma vez que estavam atrás de mim e não havia outro caminho a seguir senão para baixo, isso não tinha grande importância. Quase não havia luz; apenas umas lascas finas de luar se filtravam pelas janelas ridiculamente estreitas enquanto descíamos. Os degraus estavam escorregadios por causa da umidade e a concavidade no meio tornava quase impossível manter um passo seguro, principalmente sem sapatos. Além disso, estava um frio desconfortável, apesar do robe, se bem que, pelo menos, isso parecia ter-me livrado de qualquer ereção duradoura. Mas um peso muito pouco familiar pendia solto entre as minhas pernas, uma sensação indesejada e estranha que, mais do que tudo me fazia querer começar a gritar sem parar. Dei uma topada com o dedo do pé a cerca de metade do caminho para baixo, mas quase me senti grata pela dor; estava muito perto de perder totalmente as estribeiras e o latejo no pé deu-me outra coisa em que pensar. A luz dos archotes tremelicava nas escadas quando finalmente chegamos ao fundo, fazendo dançar as sombras sobre tudo e fazendo reluzir os rastos de líquido que escorriam pelas paredes. De repente, deixou de ser arrepiante; estava um frio muito intenso, como se o sangue se tivesse transformado em gelo nas minhas veias. Fiquei surpreendida por não ver gelo a pender das paredes, mas as gotas de umidade escorriam livremente. Muito pior do que o frio cortante ou o ambiente circundante eram os lastimosos gemidos que vinham do lado de lá de uma porta revestida a ferro, a alguns metros de distância. Eram suaves, abafados pela madeira espessa, mas, ainda assim, perturbadores. Era doloroso
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ouvir vozes assim tão ásperas, tão cheias de desespero e tão certas de que a ajuda por que gritavam nunca iria chegar. Tentei instintivamente recuar, deslocando-me para um charco de luz proveniente de um castiçal ali perto, quando uma mão grosseira me empurrou para frente. Tropecei, batendo com os joelhos no chão de pedra irregular. — Lá para dentro. Demorei a obedecer à ordem, mas um pontapé nas costelas impulsionou-me e uma mão grosseira endireitou-me. Olhei para baixo e vi um homem calvo e obeso, com um avental ensangüentado e calças de lã ásperas e imundas. Com um metro e sessenta e cinco, não estou habituada a olhar de cima para muitos homens, pelo que pestanejei para ele com dor e confusão. Uns lábios carnudos apartaram-se num sorriso, revelando uma boca cheia de dentes cinzentos, e eu retraí-me. Isso pareceu agradar-lhe. — Ótimo. Tenha medo, M’sieur le Tour. Lembre-se de que esta noite não é nenhum príncipe. — Olhou-me de cima a baixo. — Em breve veremos se está à altura do seu nome. Esta noite é meu! Uma enorme chave de ferro encaixou na fechadura e a porta abriu-se com balanço. Tive um breve vislumbre de um quarto grande e quadrado, com paredes espessas de pedra e um teto alto, antes de ser empurrada lá para dentro. Voltei a cair, desta vez sobre uma palha nojenta que fedia a urina e coisas piores e que pouco fazia para amaciar o chão duro. Uma parte de mim sentia-se ultrajada pelo modo como este homem grosseiro estava a tratar-me, mas, passado um momento, todos os sentimentos se esvaíram, à exceção do horror. Encontrei os olhos da mulher nua e emaciada que estava impossivelmente distendida numa grade e fui incapaz de desviar o olhar. O sangue correra a fio do seu corpo torturado e secara em rios espessos e viscosos na sua pele, e
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havia manchas castanhas a cobrir o chão por baixo dela. O sangue era tanto que me custava a acreditar que proviesse de um só corpo. Homens acorrentados ao longo das paredes choravam, implorando-me que os salvasse, mas eu mal dei por isso. Toda a minha atenção se centrou na mulher, embora ela não emitisse qualquer som. A luz dos archotes refletia-se nos seus olhos abertos e eu não sabia dizer se era um efeito da luz ou se ainda ali ardia alguma vida. Para o bem dela, esperava que não. O homem viu a direção do meu olhar fixo e encaminhou-se para ela. — Sim, a sua amiga não constituirá uma diversão por muito mais tempo. — Ele testou uma das cordas que lhe atavam as mãos e eu vi que ela não tinha unhas. As pontas dos dedos pareciam ter sido despedaçadas, ou devoradas por algum animal, e os nós dos dedos estavam tão inchados que ela não teria conseguido fechar as mãos, mesmo que tivesse liberdade para o fazer. No decorrer dos anos, eu vira muita coisa na corte de Tony, mas, regra geral, a violência fora rápida e inesperada, como aquilo que me acontecera esta noite. Normalmente, quando eu tinha chance de reagir, já estava tudo terminado. Por vezes, Tony utilizava a tortura, mas eu nunca tinha assistido. Eugenie fora muito rígida nesse aspecto, e eu começava a perceber porquê. Isto era pior do que a ferocidade que eu conhecia: era demasiado casual, demasiado direto, demasiado estudado. Não havia raiva por detrás disto, nada de pessoal que o mitigasse ou, pelo menos, o tornasse compreensível. A dor dela fazia parte do serviço. — No entanto, ela servirá para uma demonstração. — Continuou o homem. Deslocou-se até o par de homens que operavam a grade e apresentou uma garrafa encardida de vinho. — Isto é o que acontece a
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todos aqueles que enraivecem o rei. Observe e grave na memória, sacana. Enquanto eu me mantinha imóvel, sem dizer nada, o homem derramou o vinho sobre a cabeça, rosto e pescoço da mulher. Ensopoulhe o cabelo até este começar a pingar no chão de pedra debaixo dela numa poça vermelha e fina. Saí do meu estado de choque quando percebi o que estava para vir. A mão dele alcançou o coto de uma vela e eu mexi-me. — Não! Não pode fazer isso! Por favor, m'sieur, imploro-lhe... — Pelo deleite que lhe invadia o rosto, eu já conseguia perceber que lhe tinha dado exatamente a reação que ele pretendia e que ele não fazia tenções de parar. Ele observou o meu rosto com algo parecido a júbilo quando levou a vela a um archote próximo. Já quase tinha derretido, mas, ainda assim, uma chama minúscula acendeu-se no pavio. Não tentei discutir novamente com ele, mas lancei-me para frente, agarrando na vela que ardia. Lutei com ele para lhe tirar, mas os dois torturadores agarraram-me nos braços e arrastaram-me para longe dele. O homem, que depreendi ser o carcereiro, virou para mim com uns olhos aos quais pouca humanidade restava; depois sorriu. Curvou-se e, muito lentamente, apanhou do chão o coto da vela e tornou a acendê-la. Olhei para a mulher enquanto ele se aproximava; não conseguia evitá-lo. Havia um brilho de lágrimas nos seus olhos castanho-claros e ela pestanejou uma vez, com gotas de vinho a cair-lhe das pestanas, antes de o corpo dele me obscurecer a vista. Parte da minha mente dizia que ele iria parar, que ele não iria, não poderia, fazer aquilo. Ouvi uma voz na minha cabeça a dizer que ele queria aterrorizar-me, que esta cena fora encenada para me deixar mais suscetível depois, o que poderia ser verdade. Mas isso não a salvou.
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A cena diante de mim vacilou e uns pensamentos que eu não reconheci começaram a assolar-me a mente. Diante dos meus olhos passaram cenas de outros lugares, outras pessoas, como se estivesse a ser projetado um filme num véu transparente à minha frente. Durante tudo aquilo, continuei a ver a mulher e o torturador, imobilizados um segundo antes de acontecer o impossível. Aquela voz na minha cabeça voltou a ouvir-se, balbuciando acerca de ser criada no cativeiro sem nunca ter conhecido a verdadeira crueldade. Eu vestia linho fino e rendas feitas à mão, insistia ela; tinha os meus livros, a minha guitarra e as minhas tintas para me divertir; os meus carcereiros curvavam-se quando entravam no meu quarto e não se sentavam na minha presença a não ser que eu lhes desse autorização. Havia sangue real a fluir-me nas veias e nunca ninguém se esqueceu disso. Eu nunca vira uma brutalidade destas; nunca conhecera um medo assim. E logo atrás disto estava um acesso de pura raiva. Isto não era justiça, não era necessário para manter a paz ou a estabilidade na terra, ou quaisquer que fossem as expressões sonantes que eles agora utilizavam. Eram os atos de um covarde sádico que mantinha as mãos imaculadamente brancas na corte enquanto estas coisas eram feitas à porta fechada em seu nome. E era a mim que chamavam abominação. Abanei a cabeça e tentei fazer calar a voz e limpar as teias de aranha da minha vista; passado um segundo resultou. Mas, então, regressei ao pesadelo, com uma visão nítida daquela vela a avançar em direção ao seu destino. Numa incredulidade aturdida, observei o torturador levar a pequena vela a algumas madeixas do cabelo ensopado de vinho da mulher. Este se incendiou com um silvo audível e as chamas alastraram avidamente ao resto da cabeça e ombros. Em segundos, à parte de cima do corpo ficou resumida a um contorno escuro numa cortina dançante de fogo. Gritei, já que não podia fazer
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mais nada. Os outros prisioneiros recomeçaram o choro, até que o quarto se encheu de guinchos e do som de correntes a batendo escusadamente contra uma pedra inflexível. Não podíamos fazer mais nada por ela, por isso fizemos com que os nossos gritos quase abalassem as paredes, mas a mulher propriamente dita não fez nenhum som enquanto ardia. — Mademoiselle Palmer, o que foi? O que se passa? — O rosto de Louis-César surgiu diante dos meus olhos e eu senti vagamente algo me abanar. O choro agudo e desesperado da cela enchia a sala, e demorei um minuto para perceber de que vinha de mim. — Mia Stella, acalma-te, acalma-te! — Rafe afastou o francês com um empurrão e puxou-me para o seu peito. Passei as mãos sob a caxemira da sua camisola, puxando-o para o mais perto possível, e enterrei a cara na suave seda da sua camisa. Inspirei profundamente o aroma familiar da água-de-colônia de Rafe, mas isso não afastou o cheiro da prisão encharcada de urina e da carne queimada daquela que em tempos fora uma mulher pouco mais velha do que eu. Passado um minuto, ergui o olhar e encontrei os olhos de LouisCésar. — Diga-me que ela já estava morta, que ela não sabia! — A minha voz era desesperada e o meu rosto no espelho sobre a lareira tinha olhos dilatados e assombrados. Pareciam os da mulher, só que os dela tinham visto coisas bem piores do que os meus. — Mademoiselle, garanto-lhe que estou disposto a fazer tudo o que estiver ao meu alcance para a ajudar, mas não compreendo aquilo que me pede. Rafe afagava-me o cabelo e esfregava-me as costas em círculos apaziguadores.
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— Foi uma visão, mia Stella, apenas uma visão. — Sussurrou ele. — Já as tiveste antes; sabes que as imagens se esbatem com o tempo. Abanei a cabeça e estremeci nos braços dele até ele me puxar mais para si. Abracei-o com tanta força que, se ele fosse humano, teria ficado com dores. — Assim não. Assim, nunca. Eles torturaram-na e queimaram-na viva, e eu não pude... Eu limitei-me a ficar ali parada... — Os meus dentes queriam tiritar, mas eu mordi o lábio e não deixei. Isso iria fazerme lembrar o frio terrível daquele lugar e depois poderia ser levada a pensar na única fonte de calor. Não iria pensar nisso; não iria pensar e aquilo iria desaparecer. Mas no momento em que ecoava as palavras de Rafe, sabia que estava a mentir. Eu já tivera milhares de visões na minha vida, umas do passado, outras do futuro, e nenhuma delas muito agradável. Já vira todo o tipo de coisas terríveis, mas nunca nada me afetara como isto. Com o tempo e a prática, aprendera a libertar-me do que Via, a tratá-lo do mesmo modo que as outras pessoas fazem com as notícias perturbadoras na televisão - como distante e não propriamente real. Mas a verdade é que eu nunca tomara parte na ação, nunca cheirara os cheiros nem provara o medo de alguém que vivera as situações. Era a diferença entre passar de carro por um acidente de viação brutal e estar envolvida nele. Não me parecia que conseguisse esquecer o olhar fixo daquela mulher nos tempos mais próximos. — Mon Dieu, viu a Françoise? — Louis-César deu um passo na nossa direção, parecendo arrasado, e eu retraí-me. — Não me toque! — Antes, ele cheirara vagamente a uma água de colônia dispendiosa, mas agora parecia tresandar à carne queimada
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da mulher. Eu não queria apenas que ele não me tocasse; nem sequer o queria no mesmo quarto que eu. Ele recuou e o seu franzir de testa aprofundou-se. — As minhas sinceras desculpas, mademoiselle. Eu não desejaria que tivesse testemunhado tal coisa, de modo nenhum. Rafe olhou para ele por cima da minha cabeça. — Está satisfeito, signore? Disse-lhe que não deveríamos usar ainda as Lágrimas, que quando ela já está transtornada ou indisposta as visões não são agradáveis. Mas ninguém me dá ouvidos. Talvez agora compreenda... — Parou quando Mircea apareceu perto do meu cotovelo e lhe entregou um pequeno copo de cristal. — Ela que beba isto. — Ordenou ele, e Rafe obedeceu de imediato. — Mas eu não lhes dei. — Protestou Louis-César. — Nem sequer as tenho comigo. Rafe ignorou-o. — Bebe, mia Stella; vai fazer-te bem. — Instalou-se ao meu lado na grande poltrona e eu beberiquei o uísque durante alguns minutos, até a minha respiração retomar ao normal. Era tão forte que parecia corroer-me a garganta ao descer, mas a sensação era agradável. Qualquer coisa que empurrasse para longe as recordações o teria sido. Percebi de que machucara com o punho a outrora imaculada camisola de caxemira de Rafe, reduzindo-a a uma rodilha encharcada e amassada. Larguei-a e ele sorriu. — Tenho outras, Cassie. Você está bem e eu estou aqui. Pensa nisso, e não no que quer que tenhas "Visto".
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Era um bom conselho, mas estava a custar-me segui-lo. De cada vez que eu olhava para Louis-César, as imagens ameaçavam apoderar-se de mim novamente. Porque é que o Senado quisera que eu "Visse" algo esta noite, sobretudo uma coisa daquelas? O que é que ele me tinha feito para tornar a visão tão diferente? — Preciso de um banho. — Anunciei abruptamente. Era, sobretudo, uma maneira de me afastar de Louis-César, mas era indubitável que precisava dele. Mircea pegou minha mão e levou-me até uma porta do outro lado da entrada. — Ali há um banheiro, e deve haver um robe. Vou pedir que tragam comida enquanto toma banho e falaremos quando estiveres pronta. Se precisar de alguma coisa, não hesites em pedir. — Aquiesci com um aceno de cabeça, devolvi-lhe o copo quase vazio e escapuli para o fresco oásis de azulejos azuis do banheiro. A banheira era suficientemente grande para passar por uma sauna, e eu me coloquei lá para dentro com gratidão depois de despir a minha roupa estragada. Deixei correr a água o mais quente possível e recostei-me, tão cansada que, por um minuto, me limitei a contemplar o sabonete, desejando vagamente que alguém me lavasse as costas. As minhas emoções, felizmente, tinham fugido para outro lugar, deixandome uma sensação de vazio. Eu já estava exausta fisicamente e agora o meu estado mental não era muito melhor. Finalmente dediquei-me ao ato de limpar o sangue seco do meu corpo e do meu cabelo. Disse a mim mesma que o que "Vi" não tinha nada a ver com o mundo moderno, que a pobre mulher tinha sofrido e
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morrido séculos antes de eu sequer ter nascido. Por mais horrível que tivesse sido, não era um aviso acerca de um desastre iminente ou qualquer outra coisa sobre a qual eu pudesse fazer algo. Tentei acreditar que era apenas uma versão mais intensa de um dos soluços psíquicos que eu por vezes tenho quando toco em coisas muito antigas que tenham conhecido circunstâncias traumáticas, ainda que não tivesse sido isso que eu sentira. Cedo aprendera a ter cuidado com vibrações psíquicas negativas. Alphonse colecionava armas antigas de todos os tipos e, uma vez, quando era criança, rocei acidentalmente numa metralhadora que ele adquirira recentemente e que estava limpando. Imediatamente tive vislumbres da chacina na qual ela fora usada, e o que "Vi" provocou-me pesadelos durante semanas. Geralmente, eu conseguia perceber se um objeto tinha probabilidades de dar problemas antes de lhe tocar, quase como se este emitisse um aviso que eu conseguia sentir se estivesse com atenção. Mas poucas pessoas desencadeavam essa reação — até mesmo aquelas com séculos de idade, como Louis-César, que, indubitavelmente, já tinham visto a sua quota de tragédia. Ainda assim, eu habituara-me a evitar dar apertos de mão a estranhos, para não saber acidentalmente quem andava a enganar a mulher ou quem estava prestes a cometer um crime. E nunca, nunca toquei em Tony, nem sequer ao de leve. Conclui que um novo nome acabara de entrar para a lista daqueles a evitar a todo o custo. Enxagüei-me, deixei sair à água ensangüentada e comecei de novo. Queria sentir-me limpa, mas algo me dizia que isso iria demorar muito tempo a acontecer. Despejei tanto gel de banho que a espuma transbordou para os lados da banheira e verteu para o chão. Não me importei. Só pensava em poder ficar no banho até ao raiar do dia e em adiar ouvir fosse o que fosse que o Senado tinha planejado para mim. Sentia-me grata por estarem a proteger-me, mas duvidava que essa
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ajuda não custasse um preço elevado. Não que isso tivesse importância. Eu não sabia onde estava e, mesmo que fugisse, só estaria correndo de volta à confusão com Tony. Fossem quais fossem as intenções do Senado, eu provavelmente teria de pagar. O problema é que eu tinha prometido a mim mesma que, à exceção do que se relacionasse com Tony e os seus rufiões, nunca deixaria as minhas capacidades serem usadas para voltarem a machucar alguém. Não fazia idéia - fato pelo qual estava realmente grata — de quantas pessoas eu tinha prejudicado ou matado indiretamente enquanto trabalhava para o rei da escória, mas sabia que o número não era pequeno. Nesta altura, não sabia para que efeitos estavam a ser usada alguma das minhas visões, mas isso não me fazia sentir muito melhor. As pessoas que constroem bombas nucleares não estabelecem as políticas que decidem quando as usar, mas eu pergunto-me se isso as ajuda a dormir à noite. Eu não dormia bem há muito tempo. Se as intenções do Senado resultassem em dano para outros, o que parecia ser um palpite seguro, eu estava preste a descobrir o valor exato que dava aos meus princípios.
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Capítulo 5 Eu percebi que o meu pulso esquerdo estava torcido, mas não quebrado, e que o arranhão em meu rosto não era tão grave como eu pensara inicialmente, mas minha bunda não se deu tão bem. Ter caído em cima da minha arma no depósito me deixou com um hematoma do tamanho da palma da minha mão, que agora se transformara num roxo pouco atraente. Ótimo. Combinava com as marcas de dedos em volta do meu pescoço, o que, pelo menos, me deixava harmonizada. Eu tinha acabado a inspeção, quando Billy Joe entrou pela janela. Olhei para a porta, realmente disposta a repreendê-lo, mas sem gostar da idéia de espectadores. Billy era o meu trunfo e a minha melhor chance de sair daqui. Eu não queria que ninguém soubesse que ele estava por perto. Ele viu minha expressão e sorriu. — Não se preocupe. Alguém lançou um maravilhoso feitiço silenciador nesses quartos. Seja lá o que estiverem a planejar, eles estão falando sério sobre não serem ouvidos. — Bem, nesse caso: onde diabos você esteve? — Minhas emoções vieram à tona quando o vi tentando parecer casual, como se ele não tivesse me abandonado anteriormente. Billy Joe, um jogador de cartas que, em vida, bebia muito e fumava charuto, era um dos meus únicos amigos agora que ele estava morto há muitos anos. Mas dessa vez fizera besteira e ele sabia disso. O jogador grande e resistente brincava com sua pequena gravata
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borboleta e parecia envergonhado. Eu sabia que sua reação era verdadeira, e não outro dos seus fingimentos, pois ele ainda não tinha feito nenhum comentário lascivo sobre a minha falta de roupa. — Encontrei a Portia e ela me contou o que aconteceu. Fui para o clube procurando por você, mas você já tinha saído. — Ele empurrou o seu chapéu de feltro com um dedo, quase transparente, depois se solidificou um pouco mais. Foi você quem fez aquilo? A sala dos fundos estava uma bagunça, e havia policiais espalhados por toda à parte. — Sim, eu tenho o hábito de matar cinco vampiros, e depois deixar os corpos para a polícia a ter um ataque. — A política habitual entre a comunidade sobrenatural era limpar sua própria bagunça. Em algumas circunstâncias, você pode se meter em mais problemas por deixar corpos espalhados que possam dar a um patologista mais palpitações no coração do que a morte em si. Isso não costumava acontecer, e foi como um monte dessas lendas antigas surgiu, imagino eu, mas quanto mais a população humana se expandida, mais a política tornou-se vital. O Senado não gostava da idéia de ver vampiros picados em laboratórios, enquanto alguns cientistas humanos tentavam descobrir o segredo da vida eterna, nem de ter governos aterrorizados dando início a uma versão moderna da Inquisição. — Quais corpos? — Billy Joe solidificou-se a ponto de que eu podia ver uma mancha vermelha em sua camisa da moda amarrotada — pelo menos para a moda de 1858, o ano que os cowboys lhe tinham dado um passeio muito íntimo e pessoal no interior do Mississipi. — Havia sangue por toda parte e parecia que um ciclone passara por ali, mas não havia nenhum corpo. Eu encolhi os ombros. Eu não estava realmente interessada em saber que Tomas tinha um cúmplice que tinha chamado a equipe de
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limpeza. Se algumas das pessoas nas quais eu confiava estavam mentindo para mim, eu não queria saber. — Ótimo, então compense o fato de quase me deixar ser morta. O que você sabe sobre o meu problema aqui? Billy Joe cuspiu um pedaço de tabaco de mascar fantasmagórico contra a parede do banheiro. Enquanto escorria da parede, deixava um rastro viscoso de ectoplasma, e eu fiz uma careta para ele. — Não faça isso. — Hei, você não tem nada vestido por baixo? — Ele se sentou ao lado da banheira e deu umas pancadas ineficazes nas minhas bolhas de sabão. Se ele se concentrasse, conseguia deslocar as coisas, mas ele estava apenas brincando, por isso a sua mão passava por elas. Obrigueio a virar-se de costas enquanto saía da banheira e me secava. Eu sei que é idiotice, mas Billy Joe não se encontra com uma mulher há 150 anos e às vezes ele se distrai. É melhor não deixar sua mente vagar. — Fale comigo. O que você sabe? — Não muito. Tive dificuldade em encontrar você. Você sabe que está em Nevada? — Como eu poderia... espere um minuto. Por que você teve dificuldade em encontrar-me? — A maioria dos fantasmas está presa a um único local — normalmente uma casa ou uma cripta — mas Billy Joe assombra o colar que eu comprei em uma loja de velharias quando eu tinha dezessete anos, então ele é mais móvel. Comprei-o porque pensei
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que era apenas uma peça de imitação vitoriana que poderia servir para o aniversário de Eugenie. Se eu soubesse o que vinha com ele, eu não tenho certeza se não o teria deixado no estojo. Mas já que não fiz, e já que eu estava usando-o como de costume, ele não deveria ter tido problemas para me localizar. Quanto ao tempo de viagem, bem, vamos apenas dizer que ele pega uma rota mais direta do que a maioria das pessoas. — O que você está fazendo em vez de verificar as coisas por aqui? — Billy Joe parecia culpado, fato que não o impediu de tentar olhar por baixo de minha toalha. — Pare com isso. — Eu tive uma súbita revelação. — Espera aí. Nós estamos em algum lugar perto de Las Vegas, não estamos? — Sim, cerca de 50 quilômetros. Esse lugar se parece com uma fazenda, exceto por não ter nenhum cavalo, nenhum turista e que os trabalhadores da fazenda estão vestidos de forma um pouco engraçada. Claro, isso não importa, pois tudo o que qualquer ser humano sempre vê é um desfiladeiro grande e vazio com imensas placas a dizer para não se aproximarem. — Cinquenta quilômetros? — Billy pode retirar energia das reservas armazenadas em seu colar até cinqüenta. — Não me diga que, enquanto eu estava enfeitiçada, era transportada para o meio do país, ameaçada e aprisionada, enquanto você estava nos cassinos! — Agora, Cassie querida... — Eu não posso acreditar nisso! — Eu não costumo ficar com raiva dele, uma vez que é praticamente um desperdício de tempo, ele é a definição de incorrigível, mas esta foi à última gota. — Eu quase fui morta! Duas vezes! Se você não se importa com isso, pense sobre o que
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aconteceria com o seu precioso colar se alguém o tirasse em mim ou cortasse minha garganta. Deixe-me contar para você: Acabará em alguma caixa de jóias de uma velha senhora em Podunk, EUA, a centenas de quilômetros de lugar nenhum! Billy Joe parecia arrependido, mas duvido que fosse por se sentir culpado pelo que poderia ter-me acontecido. Ele é incapaz de ficar longe de sua base por muito tempo, ou os seus poderes se acabam, razão pela qual eu sabia que ele havia de aparecer, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais ele se afasta da fonte, mais depressa a sua força se consome. O que mais o assusta é ficar preso numa pequena cidade rural, sem bailes, clubes de striper ou antros de jogo por perto. Para ele, seria o equivalente ao inferno. Comigo ele tinha a garantia de um ambiente urbano, uma vez que é difícil uma pessoa esconder-se numa cidade pequena. Tinha também algo ainda mais importante. Com o passar do tempo, nós tínhamos desenvolvido uma espécie de relação simbiótica. Billy Joe é um desses espíritos que podem absorver a energia de um doador vivo, muito como um vampiro. Os vampiros absorvem a energia vital através do sangue, o que, em termos mágicos, é o repositório da força vital de uma pessoa. Quando eles se alimentam, eles recebem parte da vida do doador, que substitui o que perderam quando fizeram a passagem, pelo menos por um tempo. Alguns fantasmas podem fazer a mesma coisa e, como os vampiros, eles nem sempre perguntam primeiro. Mas Billy Joe prefere um doador consciente, para não mencionar que ele diz que o "golpe" é muito mais duradouro quando vem de mim, por alguma razão. Em troca de eu concordar em dar-lhe energia adicional de tempos em tempos, ele concordara em manter-se alerta em relação aos sinais do regresso iminente de Tony. Naquele momento, eu me senti enganada.
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— Se você não vai me ser útil, é melhor eu vender essa coisa feia. Limpei algum vapor de água do espelho e olhei para a monstruosidade que tinha ao pescoço. Era de ouro trabalhado à mão, com um padrão pesado e intrincado que consistia numa massa de trepadeiras contorcidas e de flores à volta de um cabochão24 de rubi no meio. O vendedor de velharias partira do pressuposto de que era de vidro, uma vez que não estava habituado a ver jóias não lapidadas e esta estava incrustada de anos de pó acumulado. Mesmo todo limpinho, era, sem sombra de dúvida, um dos colares mais feios que eu já vi. Eu geralmente usava dentro da minha roupa. — Eu quero que você saiba, eu o ganhei de uma condessa! — E, a julgar por todas as marcas de penhor, ele era muito importante para ti, não era? — Eu sempre fui resgatá-lo, não fui? Billy Joe estava começando a ficar chateado, por isso, decidi parar. Eu precisava que ele cooperasse se eu quisesse descobrir qualquer coisa. — Eu não quero brigar. Não essa noite. Eu só preciso saber algumas coisas, como por que o Senado agarrou-me e... Billy Joe levantou a mão. — Por favor, eu sei o meu trabalho. — Ele se acomodou na banheira e falou enquanto eu examinava meus joelhos. Arranhões em carne viva e hematomas tinham surgido em ambos, apesar da altura das minhas botas, prometendo rigidez para o dia seguinte. Eu sabia que eu deveria me sentir sortuda por estar viva mesmo toda dolorida, mas de alguma forma aquele pensamento não me animou. Talvez porque eu não achava que eu ia ficar assim por muito 24
Pedra preciosa polida, mas não facetada.
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tempo. — Aquele vampiro lá fora, Louis César, veio da Europa por empréstimo. É uma espécie de campeão de duelos. Dizem que ele nunca perdeu uma luta, e, pelo que ouvi dizer, ele já esteve em centenas. — Depois desta noite, já pode acrescentar mais uma ao número total. – Não que o guarda tivesse parecido um grande desafio, mas suponho que contasse, já que ele tinha decapitado o cara. — Sabia que o Tony subornou uns lunáticos para me matarem mesmo à frente do Senado? — Isso é loucura. O Mircea o mataria. Eu me animei um pouco. Eu não tinha pensado nisso dessa forma. Se Tony tivesse estado por trás do segundo atentado à minha vida, teria feito com que Mircea parecesse má figura, já que, nos círculos dos vampiros, nada lhes arruinava mais a reputação do que não ser capaz de controlar um subordinado. Muito embora eu geralmente gostasse dele, sempre tive a impressão de que Mircea era uma pessoa ruim para se confrontar. — Nós só podemos esperar que sim. — Pois, bem, isso não me parece o estilo do Tony. — Encolhi os ombros. Na minha opinião, Tony não tinha nenhum estilo. — Seja como for, quando soube que o Louis César era o segundo na linha de comando do Senado Europeu, fiz alguma investigação para você. — Ótimo. Então, diga-me alguma coisa que me interesse. Billy Joe emitiu um suspiro longo e sofredor.
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— Muito bem. Você está no quartel-general da MAGIC, a Aliança Metafísica para uma Maior Colaboração Entre Espécies, mais conhecida como a reunião central das coisas que se encontram à noite. — Eu sei disso. — Na verdade, acho que já tinha percebido, pelo menos inconscientemente. Eu nunca estive ali, mas onde mais poderia um mago entrar de repente numa reunião do Senado e um vampiro cumprimentaria um metamorfo como se fosse um velho amigo? Simplesmente eu não tivera tempo para pensar nisso, e não é que eu soubesse grande coisa acerca do que se passava pela ONU do sobrenatural. Tony não estava interessado em discutir os problemas. Ele era mais do tipo de lhes enfiar uma estaca e esquecê-los, uma prática que funcionava em muitos seres além dos vampiros. É uma das semelhanças entre espécies que a MAGIC decidiu realçar: não há nada que sobreviva muito bem com um grande pedaço de madeira espetado no coração. — Bem, talvez haja algo aqui que você não saiba. O Senado está liderando isto porque é um vampiro que está causando problemas, mas todos estão chateados. Sabe aquele mestre russo com quem o Tony costumava fazer negócio, o cara que geria metade dos negócios clandestinos em Moscou? — Rasputin? — O antigo conselheiro de Nicolau II, o último czar da Rússia; fora envenenado, alvejado, esfaqueado e afogado por um príncipe qualquer que achava que ele exercia influência excessiva sobre a família real. Tinha razão: a czarina amava o autoproclamado monge desleixado porque o seu filho era hemofílico e apenas o olhar hipnótico de Rasputin era capaz de o curar. Em troca, Rasputin obteve poder e muitos dos seus amigos foram nomeados para cargos governamentais importantes. O príncipe e o grupo de nobres que ele convencera a ajudá-lo a destituir o novo poder da cidade tinham ficado muito
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surpreendidos ao verem que o veneno, o esfaqueamento e os ferimentos de bala não pareciam ter perturbado Rasputin. Só quando ele caiu de uma ponte e eles içaram da água gelada o seu cadáver aparentemente sem vida é que ficaram satisfeitos. Desde então os historiadores têm discutido a razão pela qual ele teria demorado tanto tempo a morrer. A máfia russa podia ter-lhes dito: é difícil matar alguém que já está morto. — Sim, esse mesmo. O Rasputin ficou chateado porque o lugar do Senado que ele queria foi para Mei Ling. Ele não tem mais chance de entrar para o Senado Europeu — a maioria desses filhos da puta malucos fazem com que até ele pareça frágil — mas pensou que tinha o lugar garantido aqui. O que se ouve por aí é que ele não reagiu bem à rejeição. Ele desapareceu por uns tempos e, há cerca de seis meses, apareceu novamente e começou a atacar membros do Senado. Já matou quatro e feriu outros dois com tanta gravidade que ninguém sabe se eles sobreviverão, e agora desafiou a Consulesa para um duelo para tentar assumir o controle de toda a organização. Ela pediu um favor ao Cônsul da Europa e trouxe este Louis César como o seu campeão. Mas é claro que isso não deixou Mei Ling satisfeita. — Aposto que não. — Eu conheci a segunda na linha de comando da Consulesa, uma beldade americana baixinha de origem chinesa que não passava de um metro e vinte e cinco e pesava em torno de trinta e oito quilos, quando eu tinha sete anos. Ela causara-me uma forte impressão. A segunda posição na linha de comando não é como a de um vice-presidente americano. Ele ou ela não estão lá para assumir o poder caso a Consulesa seja morta — o restante dos membros do Senado votarão em encontrar um substituto, a menos que isso seja decidido num duelo, e nesse caso é o vencedor que fica com tudo. O título também não implica que o seu detentor seja o segundo membro mais poderoso do Senado — é possível, mas não um pré-requisito. Cada
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membro do Senado tem uma função específica na organização, uma espécie de ministério. Os segundos na linha de comando são nomeados por uma única razão: por serem intimidadores. Seja quem for que detenha o cargo, é também conhecido como o "Obrigador", porque ele ou ela obriga a cumprir os decretos do Senado usando os meios que forem necessários. Isso pode incluir tudo, desde a diplomacia até a violência, mas Mei Lin era conhecida por preferir a última. Ela deixara isso claro no dia em que visitara a sala de audiências de Tony para arrastar um dos seus vampiros para interrogatório. Fosse o que fosse que ele tivesse feito, era óbvio que não queria falar com o Senado acerca disso. Na verdade, era tão contrária à idéia que propôs um desafio. Mei Ling era nova no cargo e não tinha grande reputação; além disso, tinha apenas cerca de cento e vinte anos e parecia uma boneca de porcelana, por isso suponho que ele pensasse que podia derrotá-la. Espanta-me o fato de que até os vampiros antigos por vezes se esqueçam que não é o tamanho, mas sim o poder que interessa, e, embora este esteja muitas vezes relacionado com a idade, isso nem sempre acontece. Alguns vampiros muitos séculos mais velhos do que Mei Ling nunca terão a força dela, e eu já vi homens muito fortes serem obrigados a ajoelhar-se ante ao olhar de uma criança. A transição para vampiro não torna uma pessoa deslumbrante se for vulgar, inteligente se for burra ou poderosa se for fraca: um fracassado em vida é um vampiro fracassado, que vai passar sua imortalidade servindo os outros. É uma das maiores desvantagens desta situação, uma coisa que os filmes nunca parecem realçar. Mas, de vez em quando, efetivamente dá a alguém que foi subestimado enquanto mortal a oportunidade de brilhar. Nesse dia, eu vi uma flor pequenina e de aspecto frágil literalmente rasgando um vampiro em pedaços ensangüentados. Vi também o grande prazer que ela teve com isso, o modo como os seus olhos negros
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brilharam com uma alegria feroz pelo fato de ela conseguir fazer aquilo, por mais uma vez um homem a ter subestimado e porque, desta vez, ele pagaria por isso. Que eu visse, ela não o matou. Ele tinha a cabeça intacta e aos gritos quando ela ordenou que os pedaços fossem metidos em cestas para serem despachados para o Senado. Nunca mais o vi depois disso e, que eu saiba, nunca mais ninguém que estava presente naquele dia tornou a desafiar Mei Ling. — Porque é que a Consulesa trouxe um combatente? Eu pensei que ela ou a Mei Ling conseguiriam lidar com isso com um simples desafio. — A Consulesa é poderosa, mas não é uma duelista. E a Mei Ling não tem a experiência do Rasputin. Ele já era velho quando tentou assumir o poder na Rússia; corre o rumor de que ele nunca foi derrotado num combate e de que não se preocupa muito com a forma como ganha. Ninguém viu os combates com os senadores mortos, mas os primeiros dois a serem atacados ainda estão vivos — por assim dizer. E, depois de o encontrarem, o Marlowe manteve-se consciente durante tempo suficiente para dizer que o Rasputin conseguira virar três dos seus próprios vampiros contra si, e um deles já estava com ele há mais de duzentos anos. Algumas peças dispersas do quebra-cabeça começavam a unir-se, contei a Billy Joe acerca da minha mais recente fuga e ele pareceu apreensivo. — Pois, isso faz sentido. Não sei como são escolhidos os guardas do Senado, mas é quase certo que seja do grupo de um dos membros, portanto quem é que esperaria que um deles se rebelasse?
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— Mas porque o Rasputin me desejaria morta? — estremeci, e não foi de frio. Estava habituada à idéia de Tony querer me matar, mas, de repente, havia um monte de recém-chegados tentando pegar o bonde. E qualquer um deles seria suficiente para provocar numa pessoa sã um caso sério de paranóia. — Não faço idéia. — Billy Joe parecia extremamente alegre para o meu gosto e eu olhei-o furiosamente. Ele gosta tanto de falar de um bom combate como de se envolver em um, mas eu não era a sua diversão. Ele prosseguiu rapidamente. — Mas ainda não ouviste a melhor parte. O Marlowe matou dois dos seus atacantes antes de desmaiar e os corpos foram abandonados quando os seus reservas apareceram. Mas ninguém conseguiu identificar os vampiros mortos. É como se tivessem saído do nada. — Isso é impossível. Não duvidei da parte de Chris Marlowe ter sido difícil de matar. Antes de fazer a passagem, ele fora o rapaz mal comportado da Inglaterra elisabetana e envolvera-se numas centenas de lutas de bar no intervalo da escrita de algumas das melhores peças de teatro da época. As únicas que podiam rivalizar com elas eram de um cara chamado Shakespeare, que apareceu convenientemente alguns anos depois da transição de Marlowe e assumiu um estilo de escrita muito semelhante. Finalmente, quando o ator insignificante que ele arranjara para protagonista morreu, Marlowe voltou-se para o seu outro passatempo, só por diversão. Em vida, fizera algum trabalho de espião para o governo da rainha, coisa que adicionou posteriormente às suas habilidades. Era agora o responsável pelos serviços secretos do Senado, usando a sua família de vampiros como espiões da comunidade sobrenatural em geral e dos outros senados em particular. Ajudava a assegurar a paz ao eliminar qualquer um que pudesse perturbá-la, o que pode explicar
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porque Tony ficara mais preocupado com Marlowe do que com Mei Ling. A única vez que eu o tinha visto, quando ele aparecera para falar com Mircea certa noite durante a sua visita, achara que ele parecia bastante agradável, com os seus risonhos olhos escuros, os caracóis despenteados e a barba que ele estava sempre a enfiar dentro do vinho. Mas, é claro, eu não estava planejando eliminar a Cônsul. Se assim fosse, eu deveria eliminá-lo primeiro. A parte da história de Billy Joe que me custava acreditar era a dos dois vampiros não identificados. Isso era literalmente impossível. Todos os vampiros estão sob o jugo de um mestre, seja aquele que os criou, aquele que os comprou do seu criador ou o que os ganhou num duelo. A única maneira de não se ter um mestre é alcançando o poder de mestre de primeiro nível. Qualquer outra coisa, incluindo matar o próprio mestre, não servirá de nada; haverá outro qualquer a tomá-lo para si. Uma vez que existem menos de cem mestres de primeiro nível no mundo, e que, na sua maioria, estes detêm assentos nalgum dos seis senados de vampiros, esta é uma bela estrutura hierárquica que mantém tudo organizado. A maioria dos mestres dá aos seus seguidores mais poderosos alguma liberdade embora estes tenham de enviar uma certa quantia dos seus rendimentos como “prenda” anual e quaisquer servos que eles possuam estão sujeitos aos caprichos dos seus mestres. Os mestres também os controlam de tempos em tempos, como Mircea faz com Tony, porque são sempre responsáveis por eles. Se Tony tivesse ordenado um ataque a mim depois de saber que eu estava sob proteção do Senado, esperava-se que fosse Mircea quem cuidasse dele. É um sistema bastante simples, pelo menos em termos de governo, porque não há assim tantos vampiros com poder suficiente para terem grupos de seguidores. Ao contrário do que Hollywood parece acreditar, nem todos os vampiros podem criar novos vampiros. Lembrome de uma vez estar vendo um filme antigo do Drácula com Alphonse e
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de ele ter um ataque de risos quando viu um vampiro que saíra há apenas poucos dias da sepultura supostamente criando um novo vampiro. Nas semanas que se seguiram ele estivera impossível, provocando todos os vampiros mais fracos da corte por causa do bebê de três dias que era mais poderoso do que eles. Mas, para todos aqueles que atingem o nível de mestre e criam novos vampiros, é obrigatório registrá-los no respectivo Senado. Conseqüentemente, não há nenhum vampiro desconhecido a vagar por aí, pura e simplesmente. — Eram bebês? — Era a única coisa que me vinha à cabeça, se bem que isso também não fazia sentido. O que conseguiriam dois vampiros recém-criados e, por conseguinte, fracos, contra qualquer membro do Senado, ainda mais sendo Marlowe? Seria como enviar crianças para combater um tanque blindado. E que mestre iria arriscar a cabeça e o coração por não registrar quaisquer novos vampiros que tivesse criado? Todos os senados eram rígidos em relação às regras, uma vez que, se assim não fosse, surgiria o fantasma de um mestre a reunir secretamente um exército, desenterrando memórias dos maus velhos tempos em que a guerra fora quase constante. Desta forma, o número de vampiros que alguém podia ter simultaneamente sob o seu jugo era regulado de forma rígida, para manter um equilíbrio de poder. — Não. É um bocado difícil de dizer, tendo apenas os corpos, mas, com base nos estragos que eles fizeram, corre o rumor de que eram mestres. — Quando viu a minha expressão, levantou as mãos de modo apaziguador. — Hei, você me perguntou o que eu ouvira dizer e eu estou te contando. — Onde você conseguiu a informação? — De dois vampiros da comitiva do Mircea. — Billy Joe não estava dizendo que lhes tinha perguntado. Ele tem a capacidade de
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passar através das pessoas e ouvi-las às escondidas mentalmente, apanhando aquilo que elas estiverem pensando no momento. Não é tão bom como a verdadeira telepatia, uma vez que ele não consegue ir à procura da informação, mas é surpreendente a freqüência com que se torna útil. — Não foi difícil de obter. É o assunto principal nesses dias. Sacudi a cabeça, intrigada. — Não entendi. Se o Rasputin tem desobedecido às regras e emboscado pessoas, porque a Cônsul está se preparando para lutar com ele? Ele perdeu esse direito quando ignorou as regras, não foi? — A mim parecia que Rasputin estava na merda, um pensamento que me fez sentir muito melhor. Se ele fosse morto, era menos um cara mau com quem eu tinha que me preocupar. O problema não eram os ataques aos senadores — isso era perfeitamente legal — mas, sim a maneira como ele os praticara. Durante a Reforma, os seis senados tinham banido coletivamente a guerra como forma de resolver os problemas. Depois da divisão religiosa, tanto o clero católico como o protestante tinha ficado extremamente sensível, advertindo os seus rebanhos para que tivessem atenção aos malfeitores que os poderiam roubar às boas graças de Deus. A religião também constituíra um importante assunto político, com os poderes católicos a tentarem assassinar os líderes protestantes e viceversa, uma armada católica tentando invadir a Inglaterra protestante e uma grande guerra santa acontecendo na Alemanha. Todo mundo espiava todo mundo e, conseqüentemente, mais pessoas começavam a reparar na atividade sobrenatural. Muito embora a maioria dos acusados fosse tão humana como os seus acusadores — e, geralmente, mais inocente, — às vezes as autoridades tinham sorte e espetavam uma estaca num vampiro verdadeiro ou queimavam uma bruxa de verdade. A guerra aberta entre senados ou até as rixas entre casas
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proeminentes só serviria para atrair mais atenção para a comunidade sobrenatural. Por conseguinte, o duelo tornou-se a nova forma oficial de resolver contendas. É claro que Tony não iria arriscar o seu pescocinho gordo num combate aberto, e havia muitos outros sem perícia para o combate que também não gostavam do novo sistema. Portanto, a prática evoluiu para a escolha de campeões que lutassem no lugar daqueles que não o queriam fazer. No entanto, uma vez escolhidos os dois duelistas, as regras eram muito rígidas em relação ao que era e ao que não era permitido. As emboscadas eram terminantemente proibidas e aquilo que Rasputin fizera valer-lhe-ia automaticamente uma estaca espetada em qualquer parte do mundo. O Senado norte-americano nunca deixaria de persegui-lo e os outros dariam uma ajuda para desencorajar este tipo de coisa nas suas próprias áreas. Eu concluí que, ou ele era louco ou muito, muito idiota. — Suponho que ela julgue que isso é melhor do que deixá-lo apanhar as pessoas uma a uma. Além do mais, a menos que o Marlowe ou Ismitta sobrevivam para testemunhar, não há nenhuma prova real de que ele tenha trapaceado. Neste momento, ele pode dizer que os desafiou e que eles perderam, de forma justa. — Mas se ele tiver de se encontrar com a Consulesa diante de todo o conselho da MAGIC, não pode trapacear. — Bingo. Além disso, ela não tem muitas alternativas. O velho Ras deixou o Senado com um pesadelo diplomático entre mãos por causa do seu acesso de raiva. Os Sobrenaturais estão furiosos e dizem que, se os vampiros não conseguem lidar com isto, eles próprios o farão. Perderam um dos seus nobres no fogo cruzado, e você sabe como eles são em relação a esse tipo de coisa. — Na verdade, eu não sabia. Nunca sequer
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tinha visto um elfo, nem falado com ninguém que tivesse visto um. Havia vampiros na corte de Tony que nem sequer acreditavam que eles existiam. Corria o rumor de que eles eram uma espécie de peça elaborada que os magos pregavam há séculos, para tentar convencer os vampiros de que eles tinham aliados poderosos. — O círculo dos magos também está furioso, embora eu não saiba o porquê, e está pedindo a cabeça do Rasputin servida numa bandeja. A Cônsul tem de resolver isto em breve, senão as pessoas vão começar a achar que ela é fraca. A Mei Ling é boa, mas não consegue combater todos os desafiantes que hão de sair do nada se isto não for interrompido. — Mas ela não vai lutar com Rasputin. — Não, e, como eu já disse, não está satisfeita com isso. Diz-se que é por isso que ela não está aqui, anda por aí à caça dele. Mas está ficando sem tempo. O duelo está marcado para amanhã à meia-noite. Acho que ela planeja trazer a cabeça dele numa lança antes disso. — Muito bem, desejo-lhe sorte. Mas ainda não me disseste o que tudo isso tem a ver comigo. — Porque não sei, minha querida. — Detesto quando Billy Joe usa o sotaque sulista. Significa que ou ele está zombando ou prestes a tornar-se sarcástico, e eu não queria encarar nada disso. O seu sotaque habitual é uma fala arrastada do Mississipi combinada com partes de sotaque regional irlandês, lembrança de uma infância a passar fome na Ilha Esmeralda. Ele imigrara, mudara de nome e construíra uma vida nova no Novo Mundo, mas nunca perdera totalmente a sotaque. Olhei-o furiosamente. Ele podia ter a certeza de que eu não ia aturar aquela arrogância agora. Ele portara-se bastante bem, mas eu estava chateada pelo fato de ele ter deixado escapar completamente o regresso de Tony. Afinal de contas, era essa a sua função.
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— O que mais você sabe? Isso é tudo? — Eu aprendera há muito tempo que Billy Joe é um ótimo espião, mas não se pode confiar nele. Oh, ele nunca me mentiu, isso eu sei, mas, se puder ocultar algo que pode vir a causar-lhe problemas, ele o fará. — Não sabia exatamente se devia te contar, depois daquela cena toda com o Tomas. Provavelmente você não precisa ouvir falar de outro oportunista agora. — Contar-me o quê? –— Ignorei a crítica a Tomas, de quem Billy Joe nunca gostara, sobretudo porque concordava com ela. Comecei a analisar a minha pilha lamentável de roupas de gala que um dia foram caras e decidi que as botas e a saia, ambas de couro, podiam ser salvas. Mas a camisa estava em farrapos e o sutiã parcialmente queimado, embora as minhas costas estivessem ótimas. Era uma das poucas partes do meu corpo que não doíam. A camisa não era uma grande perda, exceto por eu não ter nada para substituí-la e por preferir não ter de regressar à sala de estar vestindo apenas um robe. Na verdade, não queria voltar lá de modo nenhum, mas não me ocorria nenhuma boa desculpa para evitar. — Jimmy Ratazana está na cidade. Parei de tentar limpar o sangue seco da saia e limitei-me a levantar os olhos. Estão vendo porque aturo Billy há quase sete anos? De vez em quando, ele merece o que ganha. — Onde? — Ora, Cassie, meu amor, não vai fazer nenhuma idiotice.
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— Não vou. — Jimmy era o assassino preferido de Tony. Fora a sua mão que colocara a bomba no carro dos meus pais, acabando assim com qualquer hipótese de eu vir a ter uma vida normal. Eu estava à procura dele mesmo antes de romper com Tony, mas ele demonstrara ser surpreendentemente evasivo. Não pretendia deixá-lo fugir novamente. — Onde você o viu? Billy Joe passou a mão por aquilo que há tempos tinham sido caracóis castanhos e suspirou profundamente. Não é uma coisa que um fantasma faça de forma automática; ele fazia isso de propósito. — Está no Dante's on the striper, uma das casas novas do Tony. Ele gerencia um bar lá. Mas não me parece que seja boa idéia fazer-lhe uma surpresa. Aquilo deve estar cheio de criminosos do Tony. Las Vegas só perde para Filadélfia em sua operação. — Não me dês sermões acerca do negócio com o qual cresci. Parei antes de começar a falar besteiras sobre Billy analisar minuciosamente as vistas da Cidade do Pecado ao invés de investigar o local apropriadamente, para que eu soubesse exatamente o que eu estava enfrentando. Eu perdoaria muita coisa se o vício pelo jogo dele tivesse como resultado eu conseguir por as mãos em volta do pescoço de Jimmy. — Preciso de uma blusa e de uma maneira de ir à cidade. Além disso, o Tomas me tirou a arma, quero-a de volta. — Hmm, você deveria reconsiderar isso. — Billy pareceu astuto e eu resmunguei.
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— O quê? Ainda tem mais? Fale! Ele olhou ao redor, mas não havia ajuda à vista. — Já não terá que se preocupar com o Jimmy. Ele fez qualquer coisa que chateou o Tony e, quando eu vim embora, ele estava sendo levado para o subsolo. — O que isso significa? — Significa que, provavelmente, ele já está fora de cena, ou estará em breve, por isso não há motivo para fugas. Pelo menos não nessa direção. Estava pensando talvez Reno... — Você não sabe se ele está morto. Ele pode estar lá em baixo jogando nos caça-níqueis ou outra coisa qualquer. — O subsolo fora um eufemismo para as câmaras de tortura subterrâneas de Tony em Filadélfia, mas aqui podia ter exatamente o significado literal. — Além disso, mais ninguém poderia matá-lo a não ser eu. Na realidade, embora ele certamente merecesse, eu tinha sérias dúvidas se conseguiria matar alguém, ainda que fosse Jimmy. Mas isso não significava que eu não tivesse um motivo para querer vê-lo. Tony dera o seu melhor para garantir que eu nunca soubesse nada acerca dos meus pais: eu não tinha fotografias, nem cartas, nem anuários do ensino médio. Droga, eu demorara anos até descobrir os nomes deles, em obituários de jornais antigos, que tive de ler escondida dos meus guardacostas. Eugenie e os meus instrutores tinham sido todos pessoas que Tony adquirira de outros mestres pouco tempo depois da minha chegada à corte e que não sabiam nada acerca da operação anterior. Os vampiros que estavam com Tony há anos e que podiam saber de alguma coisa eram tão calados que eu adivinhava, sem ter de perguntar, que tinham sido advertidos para não falarem comigo. Eu não era
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suficientemente burra para acreditar que ele se dera a tanto trabalho só para concentrar o meu afeto nele, principalmente porque ele raramente se esforçava para me conquistar. Não, havia algo acerca dos meus pais que Tony não queria que eu soubesse e, se ele e Jimmy tivessem realmente brigado, eu poderia ter finalmente alguém disposto a me contar. Billy Joe queixou-se, é claro, mas eu estava extremamente ocupada tentando tornar apresentável a parte que deu para salvar da minha vestimenta para me importar com isso. Por fim, ele cedeu. — Tudo bem. Mas preciso drenar energia se você espera que eu vá à procura do osso. Tem sido uma noite dura e não tenho vigor para dispensar. Eu não fiquei satisfeita. Sentia-me uma merda e tinha de ir atrás de alguém em Vegas; não precisava disto. Mas dificilmente poderia ir eu própria explorar o quartel-general da MAGIC, pelo que lhe fiz sinal para se aproximar sem a habitual algazarra. Billy Joe levou uma mão ao peito. — Aquieta-te, meu coração. — Anda logo. Juro que ele me apalpou quando nos fundimos, supondo que uma nuvem de neblina possa sentir alguma coisa. Conhecendo-o como o conheço, estou bastante certa de que consegue. Ele soprou contra mim e, como sempre, o toque dele foi um calmante para os meus nervos desgastados. Já ouvi dizer que os normais consideram a companhia dos fantasmas aterrorizante ou, na melhor das hipóteses, arrepiante; para mim, eles sempre foram como uma brisa fresca num dia quente. Nestas circunstâncias, não me limitei a abrir-me e recebê-lo, a parte de mim
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que se reunia com fantasmas, fosse ela qual fosse, puxou-o para dentro como se fosse uma criança assustada a agarrar num urso de pelúcia. Por um instante tive lampejos da vida dele: o nosso navio zarpava de uma região longínqua e nós observávamos a costa cinzenta e exposta ao vento a diminuir através de um nevoeiro de lágrimas; uma garota bonita, de quinze anos talvez, com maquiagem a mais e um vestido de noite, dava-nos um sorriso astucioso; um jovem aspirante a dono de albergue tentou enganar-nos e nós rimo-nos quando lhe tiramos o trunfo da manga, e depois tivemos de nos esquivar da faca que o cúmplice dele lançou. Era muitas vezes assim e, no decorrer dos anos, eu já vira mini-documentários suficientes para ficar espantada por Billy ter sobrevivido o tempo que sobreviveu. Por fim, ele ficou à vontade e começou a drenagem. Normalmente não era uma experiência desagradável, apenas cansativa, mas, desta vez, a dor incendiou meu corpo assim que ele começou. Não foi uma coisa devastadora, foi mais como uma descarga de eletricidade estática na maçaneta de uma porta, mas fervilhou pelas minhas veias até faíscas prateadas tremeluzirem sob as minhas pálpebras. Tentei mandá-lo sair, dizer-lhe que havia algo de errado, mas da minha boca apenas saiu um assobio assustado. Passado um segundo, a sensação produziu clarões suficientemente brilhantes para deixar marcas negativas na minha vista. Depois, tão depressa como surgira, foi-se embora. Fui varrida por um vento quente, tão espesso que parecia líquido; a seguir Billy Joe saiu de mim e zumbiu pelo teto algumas vezes. — Iupi! Ora, isto é que é uma refeição! — Seus olhos brilhavam e sua cor estava viva, mais do que era esperado. Eu endireitei-me e, pela primeira vez em algum tempo, não me pareceu que eu fosse desabar. Ao invés de me sentir cansada e um
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pouco resmungona — a minha reação habitual às sessões de petisco de Billy Joe — senti-me ótima, rejuvenescida. Foi como ter uma noite inteira de sono comprimida em poucos minutos, e, decididamente, isso não era normal. — Não que eu esteja me queixando, mas o que é que acabou de acontecer aqui? Billy Joe sorriu. — Um vampiro qualquer tem te sugado a força, querida, provavelmente para te impedir de fugir. Ele drenou muito da tua energia para uma espécie de recipiente metafísico e protegeu-o com alguma da sua própria energia, para que não conseguisses acessar-lhe até que ele te libertasse. Eu invadi acidentalmente a proteção quando tentei drenarte e tomei um susto dos diabos — Sacudiu as sobrancelhas para mim, que estavam quase tão castanhas e sólidas quanto deveriam ter sido em vida. — Droga, vamos festejar! — A festa será depois. Neste momento preciso das minhas coisas. Billy Joe saudou-me rapidamente e flutuou pela janela como um cometa resplandecente. Sentei-me à beira da banheira e indaguei-me sobre quem teria feito o encantamento. Não que isso fosse relevante; só me dava mais um motivo para não confiar em ninguém. Ainda que eu não pretendesse confiar. Quando Billy Joe regressou, eu já tinha acabado a limpeza. Ele flutuou pela janela, fazendo cara feia e de mãos vazias. — Deixei tudo lá fora. Essa coisa vai ser um problema.
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— Qual coisa? — Agarrei numa toalha para não ficar andando apenas de calcinha e fui até a janela. Percebi a que ele se referia assim que a minha mão alcançou o trinco e este tentou gritar. Enfiei a ponta da minha toalha na sua recém-adquirida boca e olhei-o com irritação. Não bastava já terem colocado proteção na minha energia, estacionado um bando de vampiros com nível de mestre na minha porta e terem-me abandonado em algum lugar no meio do deserto? Aparentemente, alguém achava que não. — Alguém lhe lançou um Marley. — Disse Billy. — Você acha? — perguntei, de modo sarcástico, agachando-me para inspecionar mais de perto. Subitamente, tinha surgido no trinco antiquado e bolboso um par de olhinhos redondos e uma boca grande e gorda. Estava a tentar cuspir a minha toalha para poder dar um grito de aviso, que sem dúvida trespassaria o feitiço silenciador e alertaria toda a gente na sala externa. Quando tentei agarrá-lo para colocá-lo no lugar, começou a andar para frente e para trás ao longo da janela, evitando as minhas mãos. Vendo a sua expressão, acho que teria me mordido se pudesse. Estreitei os olhos. — Dê-me papel higiênico. — Disse eu a Billy. — Muito. Passados alguns minutos e muitos palavrões silenciosos, o pequeno Marley ficou imobilizado, com um rolo inteiro de papel higiênico enfiado na boca e as cordas das persianas da janela enroladas umas nove vezes à sua volta. — Isso não o deterá por muito tempo. — disse Billy duvidosamente, enquanto o minúsculo alarme vibrava de indignação. Alguns pedaços de papel saíam-lhe da boca e flutuavam para o chão enquanto olhávamos. — Não é preciso. — Levantei a vidraça e a mantive aberta com o desentupidor que Billy encontrou debaixo da pia. — Seja como for, eles
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não tardarão a perceber que fugimos, este lugar está protegido até ao inferno. Rapidamente comecei a analisar a pilha de coisas que ele arrastara até à janela e conclui que, de um modo geral, ele fizera um bom trabalho. A minha arma estava de volta e eu até tinha um conjunto adicional de balas que ele arranjara em algum lugar, e, além disso, deixara cair um molho de chaves de um carro em cima das blusas. A parte ruim é que as blusas não eram exatamente as que eu teria escolhido. Devia ter especificado que não queria roupa de prostituta, mas uma garota não consegue pensar em tudo. As minhas botas e a mini-saia tinham um ar gostoso e elegante quando eu estava convenientemente vestida na parte de cima; exibindo a mais conservadora das descobertas de Billy Joe, eu ficava com ar de quem devia cobrar pela hora. Fiz um rabo-de-cavalo usando o gancho de Louis César, mas, embora este fosse mais puro, não me fazia parecer muito mais inocente. Olhei mais uma vez para o meu aspecto no espelho, suspirei e guardei as chaves no bolso. Assim que conseguisse encontrar a garagem, iria descarregar a tensão daquele dia num certo velho conhecido e, provavelmente, iria sentir-me bem melhor.
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Capítulo 6 Tony é um traste, mas eu não posso criticar a sua capacidade para o negócio. O Dante's, numa importante faixa de terreno perto do Luxor, até às quatro e meia da manhã estava lotado de gente. Não fiquei surpresa: aquilo era perfeito para Las Vegas. Tendo por modelo a Divina Comédia, conta com nove áreas distintas, cada uma delas com uma temática correspondente a um dos nove círculos do Inferno de Dante Alighieri. Os visitantes entram por um conjunto de enormes portões de ferro batido, adornados por estátuas de basalto que se contorcem em agonia e onde consta a famosa frase Ó VÓS QUE ENTRAIS, ABANDONAI TODA A ESPERANÇA. Depois, são colocados em fila ao longo de um rio pouco profundo por um dos vários Carontes vestidos de cinzento e são depositados no salão que se assemelha a uma gruta, onde, num mural de parede, está pintado de vermelho e dourado um desenho do lugar em questão. Um tipo vestido como o Rei Minos — com um conveniente crachá de identificação explicando que era ele que atribuía os castigos aos pecadores — estava entregando cópias em papel do mapa quando cheguei, mas eu não precisava de nenhuma. O desenho era um tanto lógico: o bar da comida, por exemplo, ficava no terceiro círculo, onde é punido o pecado da gula. Não foi difícil descobrir onde procurar por Jimmy; onde mais senão no círculo dois, onde todos os culpados do pecado da luxúria são castigados, poderíamos encontrar um devasso ao vivo e a cores? Como seria de esperar, a Flauta de Pan era o bebedouro do segundo círculo. Para o caso de, por algum motivo, nos ter escapado a temática do Inferno e da condenação que o salão representava, o bar
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era um pouco mais óbvio. Quase nem hesitei quando entrei, pois já tinha visto salas semelhantes anteriormente. No entanto, para alguém um pouco mais sensível, devia ser um choque entrar numa sala decorada quase totalmente com esqueletos desmembrados. A Itália renascentista, onde Tony nascera, passou por surtos regulares de peste. Ver morrer os amigos e a família e ouvir falar de aldeias inteiras a serem exterminadas tornava as pessoas um tanto mórbidas. Os ossuários, capelas construídas inteiramente com os ossos dos falecidos, traduziam a época ao seu maior extremo, e o respeito de Tony não era exceção. Candelabros elaborados, feitos do que pareciam ser — e, conhecendo Tony, possivelmente eram —ossos humanos oscilavam no teto, intercalados por grinaldas de crânios. Outras caveiras eram usadas como castiçais e as bebidas eram servidas em cálices com forma de crânio. Essas eram falsas, com “rubis” de vidro esfarrapado como olhos, mas eu não tinha assim tanta certeza em relação a alguns dos outros. Os guardanapos mostravam a Dança da Morte de preto sobre um fundo vermelho, com um esqueleto risonho conduzindo um desfile de pecadores até a perdição. Depois de os convidados se adaptarem a tudo aquilo, suponho que os empregados não fossem uma surpresa assim tão grande. Eu estava esperando humanos vestidos com togas e calças peludas, mas a criatura que me cumprimentou na entrada era mesmo genuína. Como diabos eles convenciam as pessoas de que os seus empregados estavam apenas usando vestimentas elaboradas eu nunca vou saber. Os chifres rudimentares que irrompiam do ninho de caracóis de mogno do devasso poderiam ser tão falsos como a coroa de folhas de acanto que ele tinha na cabeça, mas o seu traje — que consistia apenas numas cuecas de fio dental de couro extremamente justas — nada fazia para esconder os seus quadris genuínos cobertos de pêlo e os brilhantes cascos pretos. Também revelava, sem sombra de dúvida, que ele aprovava o decote generoso do meu top de lycra preta. Uma vez que,
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geralmente, os devassos aprovavam qualquer fêmea que respire, não o considerei um elogio. — Estou à procura do Jimmy. Os grandes olhos castanhos do devasso, que anteriormente brilhavam de prazer, nublaram-se ligeiramente. Ele pegou-me no braço para tentar puxar-me para si, mas eu recuei. Ele seguiu-me, claro. Era jovem e atraente, se a cena toda de ser metade bode não fizesse você querer fugir aos gritos. Os devassos tendem a serem bem dotados para os padrões humanos, e ele era bem dotado até para os padrões de sua espécie. Uma vez que a façanha sexual é o elemento definidor na sociedade dos devassos, ele devia estar acostumado a receber muita atenção. A mim não me impressionava muito, mas eu não quis parecer mal-educada. Os devassos, mesmo os velhos e carecas, pensam que são uma dádiva divina para as mulheres, e estragar a sua feliz fantasia tende a dar mau resultado. Não que eles se tornem violentos – é mais provável que fujam do que lutem – mas um devasso deprimido é uma visão lastimável. Embebedam-se, tocam músicas tristes e queixam-se ruidosamente da falsidade das mulheres. Depois de começarem, só param quando desmaiam, e eu queria informações. Deixei-o passar alguns minutos dizendo-me que eu era muito bonita. Isso pareceu deixá-lo feliz e ele acabou concordando em ir ver se Jimmy estava disponível, depois de me ter feito jurar que eu e o patrão éramos apenas amigos. Eu realmente esperava que Billy, só dessa vez, tivesse se enganado em relação à situação difícil de Jimmy. Percorrer os níveis inferiores da versão de Tony do Inferno não era atrativo. No caminho, eu pensara num plano que poderia fazer-me obter a informação que eu queria, partindo do princípio de que Jimmy ainda estava vivo para me dar. Uma vez que eu já o vira lá fora, à luz do dia,
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mais do que uma vez, estava bastante certa de que ele não era vampiro. A maioria das criaturas mágicas não pode ser transformada — sem mencionar que ouvi vampiros me contarem que elas têm um gosto muito ruim – mas não tinha assim tanta certeza em relação a Jimmy. Sabia que ele não era um devasso completo, já que tinha pernas humanas e os seus chifres só se viam se ele usasse um corte de cabelo muito rente. A outra metade podia ser muitas coisas, mas eu nunca o vira demonstrando nenhum poder impressionante nem começando a ficar roxo nem nada do gênero, por isso estava bastante segura de que ele era semi-humano. Isso estaria em conformidade com o hábito que Tony tinha de manter por perto alguns não-vampiros, para tratarem dos negócios quando os seus ajudantes habituais estavam dormindo. Eu não tinha certeza absoluta de que um humano-devasso híbrido não pudesse ser transformado, e há vampiros mais poderosos que suportam a luz do dia em pequenas doses se estiverem dispostos a gastar uma grande quantidade de energia para terem esse privilégio. Mas duvidava realmente que um mestre de primeiro — ou segundo — nível andasse a fazer mandados por Tony. Além disso, eu nunca sentira aquela boa sensação vampiresca em volta de Jimmy. Portanto, a não ser que Jimmy estivesse protegido pelos nove cantos, Billy Joe deveria ser capaz de uma breve possessão. Billy não gostara da idéia quando eu lhe expliquei o que queria no carro. Há muito tempo que ele não se sentia tão poderoso e, se ele teria que desperdiçar o poder numa possessão, afirmou claramente que Jimmy não seria a sua primeira escolha. Mas, como eu lhe disse, eu só precisava de tempo suficiente para aquele fracassado me dizer o que eu queria saber, e depois confessar os seus pecados à polícia de Las Vegas. Mesmo que negasse tudo posteriormente, se ele fornecesse pormenores suficientes sobre uma série de casos não resolvidos, teria dificuldade em enganar a justiça. E se o plano A não funcionasse, eu sempre podia lhe dar um tiro. Eu já estava fugindo de Tony, das famílias
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aliadas a ele, do Círculo de Prata e do Senado de vampiros; depois disso, a polícia não me assustava muito. Eu e Billy Joe sentamo-nos ao fundo do balcão. Não me lembrava de o ver tão enérgico há tempos — aquelas sentinelas que ele consumiu deviam ser mesmo boas. Parecia quase completamente sólido, a ponto de eu conseguir perceber que, antes de morrer, ele já não fazia a barba há um ou dois dias. Mas mais ninguém parecia reparar nele, se bem que também não houve ninguém a tentar sentar-se no banco dele. Se tivessem tentado, e fossem normais, eles teriam sentido como se tivessem jogado um balde de água gelada em suas cabeças. Razão pela qual nos sentamos longe de todas as outras pessoas. — Você vai me dizer por que estamos aqui? Dei uma olhada em volta, mas não havia ninguém suficientemente perto para reparar se eu começasse a falar sozinha. A maior parte do balcão, cuja clientela parecia ser exclusivamente feminina, estava ocupada paquerando os empregados, que alegremente paqueravam de volta. Ali perto, um devasso atraente de cabelo preto incitava uma das clientes a ver se conseguia descobrir onde começava a “vestimenta” dele. Ela tinha o olhar vidrado próprio de quem já estava bebendo por um tempo, mas as mãos com que ela percorria as costelas pretas insinuantes dele estavam espantosamente firmes. Franzi a sobrancelha; se eu ainda estivesse com Tony, teria feito queixa dele. Estava praticamente pedindo que alguém percebesse o que se passava e fosse correndo avisar a polícia. — Sabe por quê? Ele matou os meus pais. Deve saber alguma coisa acerca deles.
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— Arriscas-te a sermos apanhados pelo Senado, que não vai voltar a subestimar-te, devo acrescentar, para fazeres uma ou duas perguntas acerca de pessoas de quem nem te lembras? Não estás planejando mandar este cara pelos ares, não é? Uma pequena vingança por ter se metido contigo? Não é que eu me importe, mas isso pode chamar a atenção. Ignorei a pergunta e comi uns amendoins de uma pequena tigela vermelho-sangue. Matar Jimmy não seria tão satisfatório como eliminar Tony, mas pelo menos seria alguma coisa. Um sinal para o Universo de que eu me cansara de ter gente estragando-me a vida; eu era perfeitamente capaz de fazê-lo sozinha. O único problema desse cenário era a parte da morte verdadeira, que, para ser franca, me deixava nauseada só de pensar nisso. — Se a possessão der certo, daqui a pouco você verá o que ele fez. — Isso é um grande se. Os demônios é que são peritos em possessão; eu sou apenas um simples fantasma. — Nunca tens problemas comigo. — Em vida, Billy Joe caiu dentro do vinho, das mulheres e da música, com uma forte ênfase nos dois primeiros. Não posso ajudá-lo muito em relação à segunda necessidade e detesto o gosto musical dele, que vai de Elvis a Hank Williams. Mas de vez em quando o recompenso com uma bebida, se ele for excepcionalmente bom, e, claro, isso significa um pouco mais do que lhe comprar uma embalagem de seis unidades. Mas essas ocasiões não constituem uma verdadeira possessão. Embora eu o deixe entrar para usar as minhas papilas gustativas, permaneço com o controle total. Ele porta-se bem durante estes acontecimentos pouco freqüentes porque sabe que, se não o fizer, quando o seu poder se esgotar eu enterro o seu
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colar no meio de lugar nenhum e deixo-o lá apodrecendo. Mas, desde que ele obedeça às regras, deixo-o entrar em ocasiões especiais, para ele poder comer, beber e ser feliz juntamente comigo. Uma vez que não tenho o hábito de me embebedar e destruir bares, a coisa nunca é suficientemente selvagem para o gosto dele, mas é melhor do que nada. — Você é um caso especial. Com as outras pessoas é muito mais difícil. Seja como for, faça minha vontade e responda minha pergunta. Brinquei com um pauzinho de mexer a bebida em forma de caveira e indaguei-me porque hesitava. Não era assim tão difícil falar sobre a morte dos meus pais. Havia memórias dos meus anos de rua que eu nunca iria recordar de bom grado, mas, como Billy Joe realçara, eu tinha apenas quatro anos quando Tony ordenou o ataque. As minhas recordações anteriores a isso são vagas: na verdade, Mamãe é mais um cheiro do que outra coisa — o pó de talco rosado de que ela devia gostar — e Papai é uma sensação. Lembro-me de mãos fortes lançando-me no ar e me fazendo rodopiar quando me apanhavam; também conheço o seu riso, uma gargalhada profunda e rica que me aquecia de alto a baixo e me fazia sentir protegida. Segurança não é coisa que eu sinta com muita freqüência, então talvez seja essa a razão para a recordação ser tão nítida. Exceto isso, tudo o que sei acerca deles proveio da visão que tive aos catorze anos. Juntamente com a puberdade, o meu presente de aniversário cósmico nesse ano foi ver o carro dos meus pais explodindo numa bola de fogo cor-de-laranja e preta que não deixou mais nada a não ser metal retorcido e assentos de couro queimando. Eu vira tudo no carro de Jimmy, enquanto ele dava um telefonema ao patrão. Acendeu um cigarro e informou-o calmamente que o ataque correra como planejado e que ele tinha de ir buscar a garota com a babá antes de a polícia começar a me procurar. Depois tudo desbotou, e eu estava sozinha no
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meu quarto na casa de campo de Tony, tremendo como forma de reação. Para mim, a infância acabou praticamente nessa noite. Uma hora depois eu já tinha fugido, logo que amanheceu e todos os vampirinhos bons estavam em segurança nos seus quartos. Estive desaparecida durante três anos. Sem ter tido o trabalho de planejar a fuga com antecedência, não gozara de nenhum dos benefícios que os agentes federais atenciosamente me tinham fornecido da segunda vez para suavizar a experiência. Não havia falsificação de cartão de segurança social nem de certidão de nascimento, nenhum emprego garantido e ninguém a quem me dirigir se as coisas corressem mal. Além disso, eu não fazia idéia de como funcionava o mundo fora da corte de Tony, onde, de tempos a tempos, as pessoas podiam ser torturadas até a morte, mas onde nunca ninguém andava mal vestido ou passava fome. Se eu não tivesse tido ajuda de uma fonte improvável, nunca teria me safado. Quando era criança, a minha melhor amiga era Laura, o espírito da filha mais nova de uma família que Tony assassinara na virada do século passado. A casa de sua família era uma antiga casa de fazenda de construção alemã que se localizava no interior de uns belos duzentos e cinquenta mil metros quadrados nos arredores da Filadélfia. Tinha umas árvores enormes, que provavelmente já eram antigas quando Ben Franklin viveu naquela zona, e uma ponte de pedra sobre um pequeno riacho, mas não era a sua beleza que constituía a principal atração para Tony. Ele gostava dela por causa da privacidade e por estar a apenas uma hora de viagem da cidade, e não encarou muito a bem a recusa da família em vendê-la. É claro que ele podia simplesmente ter comprado outra casa naquela zona, mas duvido que isso tenha sequer passado pela sua cabeça. Suponho que o fato de termos perdido as nossas famílias devido à ambição de Tony tenha criado uma ligação entre mim e Laura. Fosse qual fosse o motivo, ela recusara-se a permanecer na sua campa
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debaixo do antigo celeiro na parte de trás e perambulava livremente pela propriedade. Foi uma sorte para mim, visto que a única outra menina próxima de Tony era Christina, uma vampira com cento e oitenta anos cuja idéia de diversão não era igual à minha, nem à de outra qualquer pessoa sã. É provável que a própria Laura estivesse perto dos cem anos, mas parecia sempre ter seis e agia como tal. Isso a transformou numa sábia irmã mais velha quando fui viver com Tony pela primeira vez, mostrando-me o prazer dos bolinhos de lama e de pregar peças. Anos depois, mostroume onde poderia encontrar o cofre escondido do seu pai — com mais de dez mil dólares que Tony não tinha visto — e agiu como vigia quando eu fugi pela primeira vez. Ela tornou praticável uma tarefa praticamente impossível, mas eu nunca tive oportunidade de lhe agradecer. Quando regressei, ela já tinha partido. Suponho que tenha cumprido a sua missão e seguido em frente. Os dez mil dólares — juntamente com a paranóia que eu aprendera com Tony — tinham-me permitido sobreviver nas ruas, mas essa era ainda uma época na qual eu tentava evitar pensar. No entanto, não foi a falta de conforto material e o perigo ocasional que me convenceram a voltar. Eu tomara essa decisão com base na percepção de que nunca iria conseguir a vingança estando fora da organização. Se eu queria que Tony sofresse por aquilo que fizera, teria que voltar. Essa pode facilmente ser considerada como a coisa mais difícil que já fiz, não só por odiar tanto Tony, mas também porque não sabia se a sua ganância iria sobrepor-se à sua ira. Sim, eu dera-lhe muito dinheiro e eu era uma arma útil que ele poderia fazer pairar sobre as cabeças dos seus adversários. Eles nunca sabiam o que eu poderia lhe dizer acerca deles e, embora isso não os mantivesse totalmente sinceros reduzia a traição mais descarada. Mas isso não me deixava muito descansada.
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Tony nem sempre é previsível: é esperto e geralmente toma decisões por motivos financeiramente válidos, mas há momentos em que não consegue controlar o temperamento. Uma vez, atacou outro mestre por causa de uma disputa territorial insignificante, que poderia ter sido resolvida com negociadores de ambos os lados que se sentassem para conversar durante algumas horas. Ao invés disso, entramos em guerra, uma aventura sempre perigosa (se o Senado descobre, você está morto, perdendo ou não a guerra), e perdemos mais de trinta vampiros. Alguns deles faziam parte do grupo dos primeiros que Tony tinha criado. Vi-o chorando sobre os cadáveres depois da equipe de limpeza no-los ter devolvido, mas sabia que isso não faria diferença da próxima vez. Nunca nada fez. Portanto, considerando bem as coisas, eu não sabia se havia de esperar braços abertos ou uma sessão na cave. Acontecera a primeira situação, mas eu sempre ficara com a sensação de que só tinha sido assim porque tinha apanhado Tony num dia bom e porque eu lhe era útil. Foram precisos três longos anos para reunir provas suficientes para destruir a operação de Tony através do sistema judicial humano. Eu não podia dirigir-me ao Senado, já que nada do que Tony tinha feito violava realmente as leis dos vampiros. Matar os meus pais era perfeitamente correto, uma vez que nenhum deles tinha o apoio de outro mestre e o ataque fora perpetrado de forma a parecer algo feito por criminosos humanos. Em relação à má utilização dos meus poderes, eles provavelmente teriam aplaudido o seu faro para o negócio. Partindo do pressuposto de que eu conseguiria entrar para falar com eles, ter-seiam limitados a devolver-me ao meu mestre para receber o castigo adequado. Mas nenhum procurador de justiça humano iria dar ouvidos a nada do que eu tivesse para dizer se começasse a falar de vampiros, e
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muito menos de algumas das coisas que se passavam habitualmente na corte de Tony. No final, tive de pegá-lo da mesma maneira que os agentes federais apanharam Capone. Apanhamo-lo com base em acusações de negócios ilícitos e evasão fiscal suficiente para prendê-lo durante cem anos. Isso não é assim muito tempo para um imortal, mas eu tinha esperança de que o Senado lhe espetasse uma estaca por ele chamar tanta atenção sobre si próprio muito antes de ele ter de se preocupar se a sua cela tinha janela ou não. Mas, quando do golpe final, Tony não estava em lugar nenhum. Os agentes federais conseguiram cercar e acusar alguns dos seus servos humanos, mas do gordo em pessoa não havia sinal. Tanto os seus armazéns em Filadélfia como a sua mansão no campo estavam vazios, e a minha antiga ama estava morta e cortada aos pedaços na cave. Tony deixara-me uma carta explicando de que forma os seus instintos o tinham avisado de que se passava algo de errado, e que por isso mandara Jimmy torturar Eugenie para descobrir o que eu estava fazendo. Os vampiros conseguem agüentar uma grande quantidade de maus tratos e Genie adorava-me; demorou muito tempo a ceder, mas, como Tony dizia, ele é do tipo paciente. Escreveu que me deixara o corpo para que eu pudesse livrar-me dele convenientemente, uma vez que ele sabia o quanto ela significava para mim. E para que eu soubesse o que eu podia esperar de um daqueles dias. — Não sei o que vou fazer. — Admiti a Billy. — Mas os meus pais não foram as únicas pessoas que ele matou que eram importantes para mim.
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— Lamento. — Billy Joe tinha o mérito de saber quando devia parar de pressionar e ficamos sentados em silêncio até o empregado voltar com efusivos pedidos de desculpa. O patrão estava indisponível a noite toda. Aparentemente, Jimmy tinha ido para casa com uma dor de cabeça. Flertei com o devasso durante alguns segundos antes de o mandar ir buscar outra bebida. Enquanto ele se afastava, Billy emergiu da sua cabeça, com um ar chateado. — E eu pensava que eu tinha uma mente porca! Nem queiras saber o que ele estava a pensar de ti. — Não quero, não. Então, onde está o Jimmy? — Na cave, como te disse. Anunciaram uma perda no último trimestre, por isso o Jimmy vai ser enviado para a arena. Que criancice tão grande. O Senado não permitiu que Tony me matasse, por isso ele ia descarregar noutra pessoa. Levantei-me e encaminhei-me para a saída. Havia umas coisas que queria perguntar a Jimmy antes de ele dar a sua contribuição para o entretenimento daquela noite. Mas sabia que era melhor apressar-me. A arena era o desporto público preferido de Tony, mas tendia a ter um efeito perigoso nos participantes. Há um século, ele decidira que era uma pena limitarse a matar quem quer que lhe desagrade e, ao invés disso, montara uma arena de boxe para resolver as coisas. Mas esta não era usada para o boxe, e apenas um dos lutadores saía vivo de cada uma das lutas de vale-tudo. Mandava as habituais lutas de Vegas para o inferno e, tal como acontece nestas, era habitualmente manipulada para que fosse a pessoa certa a perder.
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— Como é que chego lá embaixo? Billy localizou-me uma escada de serviço ao lado do banheiro das mulheres, enquanto desaparecia pelo assoalho para proceder a uma inspeção antecipada. Reapareceu na altura em que cheguei no andar inferior, sem boas notícias. — O Jimmy está programado para ser o próximo, e arranjaramlhe uma luta contra um lobisomem. Acho que pertence àquela alcatéia que o Tony derrotou há uns anos. Estremeci. Ótimo. Tony ordenara que lhes matassem o alfa para os incitar a sair do seu território e Jimmy realizou a façanha. Assim sendo, para qualquer membro daquela alcatéia era obrigatório matá-lo assim que o visse ou morrer tentando. Se ele entrasse na arena, não sairia de lá. Estiquei-me para a porta de serviço, mas Billy estava bloqueando a passagem. — Sai daí. Você sabe que não gosto de passar através de ti. — Já o tinha alimentado uma vez naquela noite, era o suficiente. — Você não vai entrar ali. Estou falando sério; nem sequer pense nisso. — A única pessoa que pode me falar dos meus pais está prestes a ser comida. Sai da frente! — Para quê? Para que te possas juntar a ele? — Billy apontou um dedo de aspecto muito substancial. — Do outro lado dessa porta está um corredor. Ao fundo estão dois guardas armados. São humanos, mas,
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se por algum milagre passares por eles, há uma sala cheia de vampiros do outro lado. Se lá entrares, estás morta, e, sem ti, eu não tardarei a desvanecer-me a ponto de não conseguir causar nenhum dano. Resultado: o Tony vence. É isso que queres? Olhei-o furiosamente. Odeio quando ele tem razão. — Então, o que sugeres? Eu não saio daqui enquanto não o vir. Billy fez uma careta. — Então vem por aqui, depressa. Corremos pelo corredor na direção oposta, e eu não tardei a sentir-me contente por Billy estar ali para me dar orientações. Aquilo era um labirinto de túneis, todos pintados com o mesmo cinzento industrial. Passados alguns minutos, eu já não fazia idéia de onde estava. Paramos várias vezes para nos escondermos em salas, a maioria delas repletas de produtos de limpeza, máquinas de jogo estragadas e, num dos casos, paredes cheias de computadores. A única coisa que não tinham era pessoas — suponho que todos os que estavam de folga se encontrariam nas lutas. Pensei que estávamos novamente a evitar sermos vistos quando Billy desapareceu para dentro de outra parede, por isso não perdi tempo a abrir a porta. Desta vez deparei-me com uma sala grande cheia até ao teto do que pareciam ser adereços e decorações adicionais. Uma coleção de máscaras e lanças africanas repousava ao lado de uma armadura à qual faltava a parte de baixo de uma perna. Uma cabeça empalhada de leão com um aspecto bastante dilapidado estava encostada a um sarcófago, que fora modificado para alojar um cartaz a anunciar um espetáculo de magia. Era vigiado por uma enorme estátua
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de Anúbis, o deus egípcio com cabeça de chacal, que parecia olhar furioso para algo no canto oposto. Segui a linha do seu olhar fixo e vítreo e descobri a cara feia de Jimmy analisando uma resistente jaula reforçada. As feições afuniladas, o cabelo negro puxado para trás e os olhos trapaceiros eram como eu me lembrava, mas ultimamente a vida devia andar a correr-lhe bastante bem, porque a sua habitual roupa larga fora substituída por um lustroso modelo amarelado que parecia ter sido feito para ele. Demorou alguns segundos para ele perceber quem eu era. Na época em que me conheceu, o meu cabelo chegava ao final das minhas costas e eu vestia-me de acordo com o que Eugenie considerava ser a vestimenta apropriada para uma jovem, o que se traduzia em saias compridas e camisolas de gola alta. O cabelo fora sacrificado num corte curto mais prático e muito menos memorável assim que entrei para o programa de proteção de testemunhas. Desde então, tinha crescido um pouco, mas não o suficiente para fazer grande diferença. E Jimmy nunca me vira com nada que se parecesse com a roupa de couro. Mas, passada a confusão inicial de alguns segundos, ele se ligou. Lá se ia o meu fantástico disfarce. — Cassandra! Merda é bom ver-te! Sempre soube que havias de voltar um dia. Tira-me daqui, tiras? Houve um grande mal entendido! — Mal entendido? — Custava-me a acreditar que ele realmente achava que eu tinha regressado à organização. Tony poderia perdoar a uma garota de catorze anos que fugira durante aquilo que ele presumira ser um ataque de angústia de adolescente, mas a uma adulta que conspirara para o destruir era um caso diferente. Pensei em deixar Jimmy onde estava, mas, embora me agradasse a idéia de o ter prendido atrás de grades, preferia falar num lugar onde fosse menos provável ser interrompida pelos facínoras de Tony.
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— Pois é. Um dos meus assistentes está tentando subir da maneira mais fácil e mentiu sobre mim ao patrão. Eu posso corrigir as coisas, mas tenho de falar com o Tony... — Demoraste mesmo a chegar. — Olhei em volta em busca do som de uma voz fininha, mas não vi nada. — Encontrei as bruxas, mas fui apanhada por um dos vampiros. Tira-me daqui! Olhei de relance para Billy. – Quem é que falou? – Estou aqui! Estás cega? — Segui o guincho até uma pequena gaiola que estava quase tapada por um leque de penas de pavão. Lá dentro estava uma mulher com cerca de vinte centímetros e muito enfurecida. Um cabelo vermelho flamejante emoldurava um rosto perfeito de boneca Barbie e um par de irritados olhos cor de lavanda. Pestanejei. Que raios o bar estava colocando nas bebidas? — É uma duende, Cass. — Disse Billy, com um ar infeliz. Flutuou diante da gaiola dela e ela fez-lhe uma cara feia. Punhos minúsculos agarraram chacoalharam-nas furiosamente.
as
grades
da
gaiola
e
— Estás surda, mulher?! Já disse para me tirares daqui! E afasta essa coisa de mim! — Conhece-a? — Perguntei, surpreendida, a Billy. Aparentemente, ele tivera uma vida social mais interessante do que eu pensava.
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Ele abanou a cabeça. — Essa não, mas já conheci outras. Não lhe dês ouvidos, Cass. Os Sobrenaturais só dão problemas. — Provavelmente, ela está destinada à arena. — Protestei, tentando lidar com o fato de que Tony arranjara maneira de entrar no mundo das Fadas, que afinal não era nenhum mito. — Estas grades são de ferro, humana! Já estou indisposta. Liberta me imediatamente! — Pestanejei, surpreendida por uma voz tão fininha ecoar daquela forma. — Não faça isso, Cass. — Advertiu Billy. — Prestar favores aos Sobrenaturais nunca é boa idéia. Viram-se contra ti, e não de uma maneira agradável. — O seu rosto minúsculo corou com um vermelho feio e ela soltou uma série de pragas numa língua que eu não conhecia, mas ele sim, obviamente. — Criatura traidora e vil! — Balbuciou ele. — Deixa-a ir para a arena, e que faça boa viagem! Suspirei. Quem quer ou o que quer que ela fosse, eu não ia deixar ninguém servindo de entretenimento ao sacana nem aos seus lacaios. — Se eu te deixar sair, tens de prometer que não interferirás em nada do que vou fazer. — Disse-lhe severamente. — Nada de nos denunciar, está combinado? — Estás doida – disse ela categoricamente. — E quando é que mudaste de roupa? O que se passa aqui? Era isso que eu queria saber.
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— Eu conheço-te? Umas asas minúsculas verdes e cor de lavanda moveram-se agitadas nas suas costas. — Não acredito nisto. — Disse ela, com nojo. — Estou numa missão com uma idiota. — Os seus olhos semi cerraram-se enquanto ela me analisava. — Oh, não. Não é a minha Cassandra, pois não? – Atirou ao ar as mãos minúsculas. — Eu sabia! Devia ter dado ouvidos à Grande Senhora: nunca, mas nunca, trabalhar com humanos! — Olha lá, dá aqui uma ajudinha. — Gritou Billy atrás de mim. — Vai-te embora – Disse-me a duende. — E leva contigo o fantasma e a ratazana. Eu trato disto sozinha. Eu tinha a sensação de que precisava saber o que estava acontecendo, mas ficar ali tendo uma conversa prolongada não era provavelmente a coisa acertada. Puxei a tranca da gaiola dela ignorando os comentários de Billy, e voltei a correr para o pé de Jimmy. Infelizmente, sua gaiola tinha uma fechadura que precisava de chave para ser aberta. — Como é que te tiro daí? — Toma. — Jimmy subiu deslizando perto das grades. — Eles esqueceram-se de me revistar. A chave está no meu casaco. Se apresse, podem voltar a qualquer momento! Estiquei-me para o casaco dele, mas a minha mão parou a meio metro das grades e recusou-se simplesmente a aproximar-se mais. Parecia que uma parede invisível de melaço espesso e pegajoso se tinha
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fechado em redor dela, uma parede que não queria desprender-se. A duende começou a zunir enquanto eu me debatia para puxar a mão para trás. — Eu solto as bruxas. – Disse ela — Mas preciso que me abras uma porta. — Eu nem sequer consigo abrir esta. — Disse-lhe eu, usando a mão esquerda para tentar soltar a direita. Essa quicou, deixando-me com duas mãos que não iam nem para frente nem para trás. Eu estava literal e verdadeiramente presa. — É um feitiço de encurralamento. — Disse Billy, pairando por ali com ansiedade. — Precisamos da libertação. — É um quê? — É uma gíria para uma variação muito forte de um prehendo. Calculo que qualquer coisa que entre num determinado perímetro da jaula vá ser apanhada como uma mosca numa armadilha e, quanto mais te debateres, mais presa irás ficar. Tenta não te mexer. — Agora é que me dizes. — O aviso dele chegou cerca de um segundo depois de eu entrar em pânico e começar a dar coices com o pé, ficando com ele preso também. Às vezes eu odiava mesmo a magia. — Billy! O que eu faço? — Fique quieta! Vou dar uma olhada. Tem de estar aqui algum lugar. — Volta aqui! — Gritei-lhe enquanto ele vagava até à armadura. — Tira-me daqui!
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Jimmy praguejou. — Tem de ser aquela coisa. — Disse ele, apontando para cima. Reparei então no que parecia ser uma maçã assada pendurada numa corrente por cima da porta há uma semana. Passado um segundo eu reconheci-a como sendo um daqueles chaveiros feios com cabeças mirradas que eles tinham na loja de lembranças do salão, juntamente com alfinetes de gravata em forma de esqueleto e blusas que diziam “Feito no Dante's”. Tony não tem vergonha nenhuma no que diz respeito a ganhar uns trocados. — É a única coisa que não devia estar aqui. A duende voou para o examinar e quase chocou de cabeça com Billy Joe, que voltara para dar uma olhada. — Sai-me da frente, seu despojo. — Ordenou ela. Billy estava prestes a dizer algo. — Provavelmente bastante profano — mas alguém se antecipou a ele. Um olho murcho, com ar de passa, abriu-se de repente na cabeça e olhou para a duende com irritação. — Chama-me disso outra vez, Sininho, e nunca hás de conseguir abrir esta porta. Limitei-me a ficar ali parada, sem conseguir acreditar que estava vendo uma duende tendo uma conversa com uma cabeça mirrada. Acho que estava na hora de eu desistir da lógica e decidir deixar-me levar. Se tivesse sorte, alguém teria drogado a minha bebida e eu estava tendo alucinações. Ninguém disse nada, por isso achei que era a minha vez. — Podes abrir a porta, por favor? — Pedi com calma. O olho parecia que só um funcionava, virou-se para mim.
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— Depende. O que podes fazer por mim? Olhei-o fixamente. Era uma cabeça mirrada. As opções eram bastante limitadas. — O quê? — Olha lá, pareces-me familiar. Costumas ir ao bar de vodu? Fica no Sétimo Círculo, lá em cima. Eu era a atração principal, sabes, muito mais popular do que a porcaria daqueles números de cabaré que este imbecil agendou. As pessoas faziam-me os pedidos e eu gritava-os para os empregados do bar. Corria às mil maravilhas. Todo mundo pensava que eu era uma sofisticada engenhoca de robótica. Às vezes também contava piadas. Do tipo: de que chamariam o Bugsy Seigel25 se ele se transformasse num vampiro? Um sugafioso! — A pequena coisa gargalhou loucamente. — Eu vou ter um ataque, sabem? — Ele é mau. — Afirmou decisivamente a duende. Eu assenti com a cabeça. Era impossível haver uma grande extensão de sentinelas num lugar onde não havia eletricidade, mas seria de fato esta a melhor solução que Tony conseguira arranjar? — Ora, temos aqui uma desmancha-prazeres, hã? Muito bem então, e quanto a esta? Um tipo entra num bar no Inferno e pede uma cerveja. O empregado responde, desculpe, mas aqui só servimos bebidas espirituosas! — Ela tem razão; ele é mau. — Disse Billy Joe.
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Gangster norte-americano da primeira metade do século XX.
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A duende bateu na cabeça com a parte plana de uma espada minúscula que sacou do cinturão. — Liberta-a, senão corto-te aos pedaços! O olho conseguiu parecer surpreendido. — Olha lá! Supostamente, não deverias conseguir fazer isso! Por que é que não estás presa como ela? — Porque não sou humana — Disse a duende, sem abrir a boca. — Agora, faz o que te digo e pára de atrasar! — Eu faria, mesmo, mas não posso sem autorização. Fiz besteira uma vez e olha aonde vim parar. Tudo o que eu queria era um carro veloz e algumas mulheres mais velozes para pôr lá dentro. Agora já me contentava apenas em ter o meu corpo de volta. Só que ele está espalhado por todo o lado desde que aquela cabra do vodu me cortou. Dá-me um desconto. Atrasei-me um pouco nos meus pagamentos é verdade, mas vá lá. — Devias dinheiro ao Tony – adivinhei. — Tive aquilo a que se pode chamar uma maré de azar às cartas – disse a cabeça, com dignidade. — Então, o Tony vendeu-te a uma sacerdotisa vodu? – Não me surpreendia. Tony dava um novo sentido à expressão "pedaço de carne". — E depois me obrigou a trabalhar no cassino estúpido dele – falou a cabeça. — Então, há uns meses, eles começaram a ficar preocupados porque um dos clientes habituais começou a desconfiar que eu não era apenas uma cara bonita e fiquei preso cá embaixo.
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Acabaram-se as festas, acabaram-se as garotas bonitas, acabou-se tudo. Tem sido extremamente deprimente. Mas, ora, talvez eles vos encolham e nós possamos fazer companhia uns aos outros. Literalmente. O que vocês... A duende interrompeu o discurso cumprindo a sua promessa e cortando a cabeça claramente em duas. Eu olhei fixamente quando as duas metades oscilaram livremente por alguns segundos, cada uma na sua ponta da fina corrente; depois voltaram a unir-se diante dos meus olhos. — Já estou morto, lembram-se? — Disse a cabeça com impaciência. —Você pode me machucar, Sininho, mas não será a tempo de ajudar os teus amigos aqui. Para isso, temos de fazer um acordo. — O que queres? — Perguntei rapidamente. — O meu corpo, claro. Tragam-me aquelas bruxas para reverterem o feitiço de bokor e montar-me de novo. Olhei a pequena coisa enlouquecida. — Isso é loucura. Ninguém consegue reverter uma coisa dessas. Mesmo que, de alguma forma, procurássemos essa mulher do vodu, nem mesmo ela poderia... — Eu prometo. — Disse a duende com impaciência. – Agora a solte. A cabeça virou-se para ela tão depressa que, se ainda tivesse pescoço, teria dado um jeito. — Repete isso.
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Para minha surpresa, ela parecia estar falando perfeitamente a sério. — Vou levar-te para o mundo das Fadas. Não faço promessas quanto ao aspecto que virás a ter, mas podes adquirir um corpo. Lá há espíritos que se manifestam sob uma forma física. — Sério? — Perguntou Billy, com mais interesse do que era do meu agrado. A duende ignorou-o. A cabeça fez uma pausa. — Tenho de pensar nisto. — Disse, e, de repente, parou de se mexer. — Porque esta coisa diz “Feito na Tailândia” no fundo? — Perguntou Billy, espiando para lá a cerca de dois centímetros e meio de distância. Trocamos olhares e Billy não precisou de incentivo. Passou para dentro da cabeça e reapareceu passado alguns segundos, com um ar irritado. — Não existe consciência ali dentro, Cass, já para não dizer que é de plástico! Foi encantada para acordar se alguém ficasse preso no encurralamento. Suponho que tenha disparado um alarme e estivesse tentando atrasar-nos durante tempo suficiente para alguém chegar aqui. — Então porque é que se calou de repente? — Acho que lhe fizemos uma oferta a que ela não sabia responder.
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Fechei os olhos e obriguei-me a me acalmar antes que tivesse um ataque cardíaco e poupasse a Tony alguns dólares de recompensa. — Então, o que devemos fazer? Já tentamos atacá-la! — Precisamos da palavra-chave, Cass — da libertação. Às vezes é um objeto em que temos de tocar, ou pode ser uma palavra-chave. Mas isto está cheio de tralha! Vou demorar algum tempo para vasculhar tudo. — O que está acontecendo? Com quem estás a falar? — Perguntou Jimmy. — Supostamente, existe por aqui uma espoleta, ou uma palavra que obrigue aquela coisa a libertar-me. — Expliquei rapidamente. — Isto não é real; foi desencadeado pelo feitiço. Jimmy pareceu surpreendido. — Quer dizer que não é o Danny? — E o Danny seria quem? — Aquela cabeça mirrada que o Tony fez a partir do que sobrou de um cara qualquer nos anos 40. Fizemos dela o modelo para os nossos chaveiros. — Pareceu irritado. — Quer dizer que puseram uma dessas geringonças de cabeça aqui em baixo? O quê? Nem sequer mereço ter o genuíno? Ainda bem que eu estava presa, senão tinha sentido me tentada a bater-lhe. — Sabes o que é a libertação ou não?
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Ele encolheu os ombros, ainda fazendo cara feia. — Experimenta "banjo". — Assim que ele o disse, aquilo que estava me segurando deixou simplesmente de existir. Eu estava fazendo força para me soltar, apesar de ser inútil, e o impulso fez-me cair no chão, sobre o meu traseiro já machucado. Jimmy agarrou-me através das grades e pôs-me de pé. — Estás perdendo tempo! — Banjo? — Temos palavras-chave para zonas restritas que são mudadas passadas poucas semanas. Eu aprovei a lista nova há uns dois dias, e essa era a primeira palavra que lá constava. — Ele viu a minha expressão. — O pessoal é contratado por causa dos músculos, não do cérebro. — Mas por que "banjo"? — Porque não? Ouça, eu tenho de inventar umas duzentas palavras por ano, está bem? Há muito tempo que me esgotaram as palavras mágicas. Além do mais, nunca a terias adivinhado, certo? — Ainda preciso que abras a porta. — Relembrou-me a duende, quando eu finalmente encontrei um porta-chaves de couro no casaco de Jimmy. Tinha as mãos trêmulas, mas era óbvio que ele não conseguia sair dali sozinho. Ou alguém tinha ficado sem algemas, ou sucedia que gostavam tanto dele como eu. As suas duas mãos tinham sido esmagadas e não estavam apenas partidas, mas destruídas a ponto de não parecer haver um dedo nem uma articulação em ordem. Supus que, mesmo que ele se safasse desta, já tinha feito o seu último serviço. — Estou tentando!
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— Não é essa. — Disse ela, impaciente. – É aquela ao pé da gaiola onde me puseram. — Ela fez girar a minha cabeça como um minúsculo ciclone. — Encostada à parede do fundo. As minhas mãos não têm tamanho suficiente para rodar aquela maçaneta enorme. — Dê me um minuto. — Disse-lhe, quando a teimosa fechadura finalmente se abriu. Jimmy saiu de lá disparado, em direção ao corredor. Eu olhei de relance para ele e depois para a exigente duende. — Vai atrás dele. — Disse a Billy. — Eu já irei. — Cass... — Vai lá! Billy saiu furioso e eu apressei-me a ir abrir a porta que a minúscula virago indicava. Estava prestes a virar-me e a seguir Billy quando descobri qual era o último negócio de Tony. Três mulheres morenas, todas por volta da minha idade, estavam sentadas no chão, de costas encostadas umas às outras, dentro de um círculo cor de ferrugem. Tinham as mãos e os pés atados e mordaças improvisadas enfiadas na boca. Olhei-as fixamente. — Meu Deus. Ele agora tem escravas? — Era um golpe baixo até para Tony. — É como se tivesse. — Respondeu a duende, voando até às mulheres. Fez uma careta e olhou para trás, na minha direção. — Isto é pior do que eu pensava. Consigo tratar do círculo, mas não consigo soltálas. Corri em frente, indagando-me sobre se alguma das outras chaves no chaveiro de Jimmy funcionaria, e bati no que pareceu ser uma
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parede maciça. Não diria que existia ali nada, mas o meu nariz magoado disse o contrário e a minha sentinela chamejou, lançando uma luz dourada pela sala. A duende começou a tagarelar agitadamente. — Estúpida bruxa! É um círculo de poder! Eu destruo-o e depois tu libertas as mulheres! Recuei e a minha sentinela acalmou, embora eu ainda sentisse o seu calor nas costas. — Não sou nenhuma bruxa. — Disse eu, pesarosamente, indagando-me sobre se teria o nariz partido. A duende tinha-se deixado cair no chão e começado a esfregar o círculo. Este era composto por uma substância seca que se lascou lentamente. — Certo. A Pítia não é bruxa. Já percebi. — Não podes apressar-te? – perguntei, passado um minuto, indagando-me sobre quão longe teria ido Jimmy no estado em que estava. — E o meu nome é Cassie. Uns olhos astutos cor de lavanda reviraram-se de modo exagerado. — Antes, eu pensava que era a posição que te tornava tão irritante, mas tu já nasceste assim, não foi? E eu estou a dar o meu melhor! O sangue secou e não está a sair com facilidade. — Sangue? — Como é que achas que os magos das trevas fazem um feitiço? É preciso uma morte, idiota. — Ela começou a balbuciar naquela outra
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língua, enquanto eu abraçava a mim própria e tentava não pensar no que Tony estaria a fazer com um membro dos Sobrenaturais, algumas escravas e um círculo de sangue. Ele estava do lado errado da lei humana desde que eu o conhecia, mas isto ia tanto contra as regras dos magos como as dos vampiros. Não sabia quando é que ele se tornara suicida, mas, de repente, eu quis sair do cassino da pior maneira. Finalmente, a minha pequena cúmplice acabou de abrir uma linha estreita através do círculo e eu ouvi um pequeno estalido. — É só isso? — perguntei-lhe. Parecia uma espécie de anticlímax. Ela sentou-se no chão e arfou. — Bem, experimenta! Avancei, desta vez de modo hesitante, mas nada me bloqueou. Ajoelhei-me rapidamente ao lado da mulher mais próxima e comecei a experimentar chaves. Felizmente, a terceira funcionou. Tirei-lhe a mordaça da boca e ela começou a gritar. Enfiei-a novamente, antes que ela alertasse o cassino inteiro, mas ela prendeu-me a mão. Começou a falar rapidamente em francês, enquanto me beijava o pulso e tudo o que conseguia alcançar. Eu não entendia grande coisa do que ela estava a dizer — a única outra língua moderna que sei é o italiano, e não há assim muitas semelhanças entre as duas —, mas os olhos castanhos iluminados que me olhavam de modo quase reverente fizeram-me lembrar algo. Senti uma sensação estranha no estômago. Eu conhecia esta mulher. Estava mais rechonchuda e parecia bem menos enfraquecida, mas, fora isso, pouco havia mudado desde que eu a vira esticada numa grade cercada por chamas. Olhei duas vezes, mas não havia maneira de negar. Tinha aquele rosto gravado na minha memória, e um olhar de relance às pontas dos dedos dela revelou que estavam cheias de
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cicatrizes. Por mais impossível que fosse, havia uma bruxa do século XVII sentada num cassino da atual Las Vegas. Uma bruxa morta, presumivelmente, uma vez que ninguém poderia ter sobrevivido àquilo que eu a vira ser sujeita. Se fosse num outro dia qualquer, eu teria considerado seriamente a hipótese de desmaiar; como estavam as coisas, limitei-me a enfiar-lhe a chave na mão e a rastejar para fora do alcance. — Tenho de ir. — Disse rapidamente e parti. O meu plano era simples: encontrar Jimmy interrogá-lo, entregá-lo à polícia e depois fugir a sete pés. Dispensava outras complicações. Não precisei de Billy para perceber que voltar pelo caminho por onde tínhamos vindo não era boa idéia. Se alguém viesse buscar Jimmy, seria esse o caminho que tomariam, e a minha única arma não valeria de muito contra o tipo de artilharia com que os facínoras de Tony andavam. Não que eu tivesse visto algum funcionário, musculoso ou não, desde que chegara aos andares inferiores, fato que começava a preocupar-me. Era manhã cedo, é verdade, mas um lugar destes nunca dormia. Devia haver pessoas por ali, sobretudo se a arena iria abrir naquela noite, mas os corredores faziam eco, de tão vazios. Segui pelo corredor até chegar ao ponto onde se ramificava. Parei, confusa, até que Billy flutuou através de uma parede e me fez sinal. — Aqui. Entrei por uma porta ali perto e dei comigo numa sala de descanso de funcionários vazia. Jimmy estava semi-escondido atrás de uma máquina de refrigerantes. — Há uma maçaneta. — Disse ele quando me viu, apontando com o cotovelo para a parede — exatamente aí. Mas eu não posso fazer nada com estas mãos. — Estendeu as mãos mutiladas e eu apressei-me
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a avançar. Por detrás da máquina estava o que parecia ser uma extensão da mesma parede de gesso acartonado amarelada e levemente manchada que compunha o resto da sala. Mas esta começava a enrolar nas pontas, se bem que eu não teria reparado nisso se não estivesse já à espera. A proteção de perímetro estava ficando velha. Fiz deslizar as mãos ao longo da parede até agarrar o que parecia ser uma maçaneta e empurrei. Uma porta abriu-se para um corredor estreito que, a julgar pelo pó no chão, não era muito usado. Não foi uma surpresa. Tony tinha sempre várias saídas, metade delas escondidas, nos seus negócios. Em tempos disse-me que era uma reminiscência da sua juventude, de quando os exércitos entravam regularmente marchando em Roma. Ele quase morrera queimado quando uns soldados espanhóis do exército de Carlos V saquearam a sua vila na década de 1530, e, desde então, ficara paranóico. Pra variar, sentia-me grata por isso. Percorremos o corredor oculto e, no final, subimos uma escada. Ou melhor, eu subi e empurrei Jimmy para cima à minha frente. As mãos dele eram uma enorme desvantagem, mas ele usou os cotovelos, eu empurrei aqui de baixo e, de alguma forma, conseguimos. Saíamos de um alçapão para um balneário. Um humano com uma roupa de demônio com lantejoulas pestanejou indistintamente quando nos viu, mas não fez perguntas. Trabalhava para Tony, portanto devia estar habituado a várias coisas estranhas. Jimmy pôs-se de pé e correu para a porta, bufando como um trem de carga, e eu não estava muito melhor. Decididamente, tinha de adicionar umas idas à academia à minha lista de tarefas, logo a seguir depois de fugir para salvar a vida e matar Tony. O balneário dava acesso a outro daqueles corredores vazios cinzentos, mas, felizmente, era curto.
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Passados poucos segundos estávamos parados perto de uma floresta de estalagmites falsas com vista para o rio. Um Caronte levava a remo alguns jogadores exaustos de volta à entrada, a alguns metros de distância. — Hei, aonde pensas que vais? — Jimmy tinha partido sem dizer uma palavra e nem sequer se retraiu quando gritei. Lutar com ele e derrubá-lo não era opção, mas, felizmente, eu sabia o que seria. — Billy, apanha-o! Fui atrás de Jimmy e senti Billy Joe a fluir por mim como uma brisa quente. Geralmente, ele era frio, ou, pelo menos, fresco, mas agora estava revigorado devido às proteções de qualquer vampiro e tinha energia de sobra. Mas Jimmy chegou ao salão em tempo recorde e ia em direção aos portões quando parou subitamente e tropeçou para trás. Eu percebi o porquê quando vi Pritkin, Tomas e Louis-César a chegarem à entrada principal. Não me preocupei em saber como me tinham encontrado nem o que tinham planejado. Agarrei em Jimmy pelo seu elegante casaco e arrastei-o de volta ao corredor. — Não vai a lugar nenhum até falarmos sobre os meus pais. — Informei-o. Algumas das maiores estalagmites estavam entre nós e o trio da MAGIC, e, por breves momentos, pensei que nos tínhamos safado sem sermos vistos. Depois ouvi Tomas a chamar o meu nome. Droga tinha sido descoberta.
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Capítulo 7 A situação difícil em que me encontrava não era propriamente um choque. O Senado tem imenso dinheiro para contratar inventores de proteções que coloquem biombos em todas as janelas e portas da MAGIC, e, provavelmente, também para defender os seus veículos. De início, eu ficara impressionada por Billy Joe ter conseguido as chaves do carro com tanta rapidez, mas, quando cheguei à garagem, vi um painel cheio delas pendurado do lado de dentro da porta. Isso, e o fato de não estar ninguém guardando os carros, dissera-me algo acerca da qualidade das proteções. Era provável que eu tivesse passado por mais do que uma, enquanto me esgueirava pela janela do banheiro, passava pela porta da garagem e roubava um belo Mercedes preto para o meu passeio até à cidade, mas, ainda assim, seria de prever que tivessem demorado mais tempo para encontrar-me. As boas sentinelas são melhores do que um alarme de segurança porque nos fornecem fatos básicos acerca de quem conseguiu passar por elas – se é humano ou não, a marca deixada pela sua aura – e, se tivermos uma que seja realmente boa, o que fizeram enquanto estiveram no nosso lugar. Mas não nos dizem para onde foi o intruso depois de sair, a não ser que tenhamos uma das supersentinelas realmente obscuras e dispendiosas que são feitas de propósito por um mestre de sentinelas. Uma vez que são os membros do Círculo de Prata que licenciam os inventores de sentinelas, não lhes seria difícil arranjar os melhores da praça para conceberem as suas defesas, e eles usam as instalações da MAGIC como outra pessoa qualquer. Mas mesmo as melhores sentinelas não nos dizem exatamente onde uma pessoa pode ser encontrada, nem se estamos ou não na pista certa. Se assim não fosse, eu nunca teria sido capaz de iludir os desordeiros de Tony o
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tempo suficiente para os feitiços dele perderem o efeito. Portanto, os vampiros haviam de saber que eu estava em Vegas, mas deveriam ter demorado horas a descobrir o local exato. Alguém que me conhecia bem e que sabia que Jimmy aqui estava deve ter-lhes dito onde haviam de procurar-me. Caso contrário, estariam a vigiar o aeroporto ou a percorrer a faixa. Eu iria ter uma conversa pouco agradável com Rafe se alguma vez tornasse a vê-lo. Jimmy recompôs-se, libertou-se de mim com um safanão e saiu disparado pelo corredor. Uma nuvem prateada desceu do teto e seguiu atrás dele ao mesmo tempo em que a porta só PARA FUNCIONÁRIOS atrás de nós era metida para dentro a partir do lado de fora. Lá se ia a idéia de não alertar os humanos. Eu nem sequer me virei para trás, mas desci o corredor correndo, atrás do meu prisioneiro em fuga. Não ia deixá-lo escapar enquanto tentava argumentar com os palhaços do Senado. Ouvi Pritkin blasfemando, mas nessa altura já tinha chegado à porta do balneário, fechando-a com estrondo atrás de mim. Uma vez que a porta não iria detê-los por mais do que um segundo, precisava encontrar Jimmy rapidamente. Ignorei a pergunta de um humano semivestido com uma roupa de demônio e esquivei-me de bancos e armários abertos até chegar à saída. Uma rajada de ar quente do deserto despenteou-me o cabelo quando saí, e eu levantei os olhos e percebi que tinha saído do edifício. Estava numa das partes laterais, num local onde os elaborados adornos do portão da frente davam lugar a um simples estacionamento de asfalto cercado por uma vedação de arame. Provavelmente seria ali que os funcionários estacionavam. Praguejei, pensando que seria difícil encontrar Jimmy no meio das filas e filas de veículos, mas depois o vi saindo disparado para a parte de trás do estacionamento. A nuvem tremeluzente de Billy perseguia-o como uma auréola fora do lugar.
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Saquei da minha arma e continuei a perseguição. Ainda me sentia pouco convicta de conseguir matar de fato alguém, mesmo sendo alguém que o merecia tanto como Jimmy, mas podia perfeitamente ferilo. E isso daria tempo a Billy Joe para experimentar as suas técnicas de possessão. Avancei com pressa por uma fila de carros depois de verificar que ainda tinha a trava de segurança trancada. Não teria graça nenhuma se poupasse o trabalho a todo mundo e me alvejasse a mim própria. Ainda não tinha chegado a metade da fila quando ouvi a porta atrás de mim escancarar-se com força suficiente para se soltar das dobradiças. Por mais estranho que pareça, em vez de ganhar velocidade, Jimmy derrapou e parou naquele preciso instante, uns metros apenas à minha frente. Eu pensei que ele tivesse chegado ao seu carro e estivesse pensando em como haveria de usar as chaves com as mãos estropiadas, mas, passado um minuto, percebi que o que ele tinha afinal encontrado eram reforços. Duas dúzias de caras feios ergueram-se do estacionamento como espantalhos espetados num milharal. Não perdi tempo a contá-los, mas pelo menos cinco ou seis eram vampiros. Como diabos Jimmy conseguira montar uma emboscada? Derrapei e parei ao mesmo tempo em que um forte aperto familiar me prendeu pela cintura. Na verdade, foi algo irônico. Passei mais tempo do que queria fantasiando sobre estar nos braços de Tomas, mas agora que já tinha passado uma noite inteira nessa situação, estava ficando rotineiro. Pritkin surgiu no meu campo de visão quando Tomas me arrastou para trás. Tinha a metralhadora de fora e olhava-me com algo próximo do ódio através daqueles olhos límpidos. Fiquei perturbada até perceber que, na verdade, ele estava olhando por cima do meu ombro. Um som alto de crepitação e estalidos ouviu-se a partir do lugar onde estava Jimmy, como se uma floresta de
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árvores tivesse decidido cair simultaneamente, e eu olhei de relance para cima. — Só podem estar brincando. — Foi o que consegui dizer antes de Tomas se lançar para cima de mim e de cairmos um sobre o outro. Esfolei as mãos no asfalto, perdendo mais um bocadinho de pele, mas mantive-me agarrada à arma, por algum tipo de milagre. Pois, estava ficando decididamente rotineiro. Consegui vislumbrar parcialmente a imagem à minha frente através de uma brecha no cabelo de Tomas. No grupo de Tony, quase todos tinham apelidos. Acho que é uma espécie de regra tácita dos gângsteres, porque praticamente todos tinham um apelido relacionado ou com a sua arma preferida ou com o seu traço físico mais proeminente. Alphonse era o "Basebol" por causa do que conseguia fazer com um taco, e eles não se referiam ao campo desportivo propriamente dito. Eu sempre depreendera que o apelido de Jimmy se devia ao seu aspecto, que se assemelhava bastante a uma ratazana, ou à sua personalidade. Estava errada. Ao que parecia, Jimmy o semidevasso era também Jimmy o homem-ratazana. Ou algo assim. Os metamorfos não eram a minha especialidade, mas eu nunca vira nada assim. Dei uma olhada. Nunca sequer ouvira falar de algo assim. Provavelmente por bons motivos, já que qualquer pessoa que visse isto iria querer esquecêlo o mais rapidamente possível. Fosse o que fosse, tinha um corpo gigante e peludo que parecia ser feito de retalhos. A sua cabeça estreita tinha chifres de cabra salientes, os dentes grandes e afiados eram da cor de uma pia enferrujada e a cauda cor-de-rosa era tão espessa como a minha panturrilha. Tinha cascos de cabra nas patas traseiras que cheiravam mal até não poder mais. E, fosse no que fosse que Jimmy se tivesse
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metamorfoseado, existia um sério nepotismo no Dante's, já que estava rodeado por uma tribo de seus parentes. O meu cérebro continuava a dizer aos meus olhos que eles estavam vendo coisas. Em primeiro lugar, os devassos já são criaturas mágicas e, como tal, supostamente imunes a dentadas de metamorfos, portanto o que eu estava a ver era tecnicamente impossível. Em segundo lugar, por que razão haveria um grupo de metamorfos, fosse de que tipo fosse, trabalhando para Tony? Esse tipo de colaboração simplesmente não existia; todo mundo sabia disso. Mas a verdade é que era difícil contrariar a evidência que contorcia uns duros bigodes pretos a poucos centímetros de distância. — Ratazanas. — Demorei um instante para perceber que Pritkin estava comentando o tipo de metamorfos que enfrentávamos, ao invés de expressar uma ligeira irritação. Pois bem, eu estava certa. Um ponto para mim. Tinha ficado confusa porque o DNA do metamorfo parecia ter-se misturado com os genes do devasso e resultado numa mistura muito pouco apelativa. Jimmy — depreendi que era ele porque tinha vestido o que restava de sua outrora elegante roupa — era uma torre de pêlo cinzenta e branca com garras de oito centímetros que pendiam de braços em forma de cordas com músculos. A mudança parecia ter-lhe dado uma ajuda às mãos. Ainda estavam ensangüentadas, mas aparentavam estar funcionais. Havia outra coisa que tinha mudado. Ele nunca fora assim muito ameaçador na sua forma habitual — era uma das razões por que dera um bom assassino contratado, pois as pessoas tinham tendência a subestimá-lo — mas neste momento estava a sair-se muito bem. Eu estava armada, mas Tomas prendera debaixo de mim tanto o meu braço
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como a arma. Jimmy estava mesmo à minha frente e eu não podia fazer mais do que olhá-lo fixamente nos seus olhos redondos. Eu não estava contente, mas também mais ninguém estava. Pritkin não se dera ao trabalho de se preocupar com os regulamentos acerca de armas de fogo, tendo simplesmente tapado a sua coleção com um casaco comprido de couro. Tinha a metralhadora numa mão e um revólver na outra, e estava apontando os dois para Jimmy. Louis-César tinha seu espadim de fora, o que parecia bastante estranho, tendo em conta o fato de ele ter escolhido uma roupa mais normal para vir dar o passeio fora da MAGIC. Vestia uma blusa apertada e umas calças jeans desbotadas quase brancas. Moldavam-se de forma tão justa à parte de baixo do corpo que mais valia terem sido pintadas, o que me fez concluir que eu estava errada; afinal, as roupas modernas exibiam lindamente o seu físico. Ele examinava os metamorfos como se tentasse decidir qual deles esfaquear primeiro. Eles devem ter pensado a mesma coisa, porque a atenção da maior parte das ratazanas estava centrada nele e não em mim. — Tomas, leva a Mademoiselle Palmer de volta à sua suíte e certifica-te de que ela fique confortável. Nós já iremos. — A voz de Louis-César era tão calma como se tudo o que ele e Pritkin planejassem fazer fosse tomar uma ou duas bebidas e, quem sabe, jogar cartas. Eu já estava mesmo ficando cansada de ter pessoas mandando em mim. — Não! Nem pensem que eu vou embora antes de... — Eu levo-a. — Pritkin falou ao mesmo tempo em que eu e veio na minha direção, arrastando obliquamente os pés para conseguir manter as armas apontadas à multidão de ratazanas e respectivos
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batedores vampiro. Eu estava prestes a mandá-lo para o inferno — não ia a nenhum lugar com ele e o seu arsenal — quando Tomas agarrou em mim e começou a recuar. — Tomas, põe-me no chão! Tu não percebes, há anos que ando a procura dele! — Bem podia ter ficado calada, tal foi à atenção que me prestou, e lutar com ele seria um desperdício de tempo. Desisti e ergui a minha arma, na esperança de que a curta distância compensasse o péssimo ângulo e me permitisse pelo menos dar um ou dois tiros a Jimmy. Duvidava que fizesse grandes estragos, tanto devido à minha falta de jeito como porque os metamorfos eram notoriamente resistentes, mas eu só precisava fazê-lo abrandar o suficiente para Billy fazer o seu trabalho. Ele podia descobrir o que eu queria saber e contarme mais tarde. Mas, antes que eu pudesse disparar, Tomas virou-me num dos braços e tirou-me a arma com o outro. Eu estava começando a ficar muito cansada dele fazer aquilo, mas, armada ou não, não ia ceder. Esta poderia ser a minha única oportunidade para enfrentar o assassino de Genie, e eu não ia perdê-la. — Billy Joe, o que diabos estás esperando? Faça isso! A nuvem suspensa condensou-se e abateu-se sobre Jimmy como uma pedra. Tomas tentou afastar-me com um puxão, mas eu combati-o. Ele não queria magoar-me e isso atrasou-o por um instante. Passou-se um segundo, não mais do que isso; depois Billy Joe saiu de rompante de Jimmy como se tivesse sido disparado de um canhão e veio esbarrar diretamente em mim. Não lhe ofereci resistência, pensando que poderia não lhe ter restado energia suficiente para a possessão e que ele precisasse drená-la para completar o processo. Mas a força continuou a fazer pressão sobre mim até eu achar que ia sufocar, como se houvesse mais dele do que era habitual e não restasse espaço suficiente dentro da minha pele para nós os dois.
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Não tive tempo para pensar, quanto mais para reagir, antes de uma explosão tremenda me abalar de dentro para fora, como um avião comercial a despressurizar na cabine. Senti qualquer coisa rasgando-se e pensei que fosse a minha blusa, o pouco que restava dela. Agarrei-me instintivamente a ela, já que tivera de deixar para trás o sutiã arruinado, mas a minha mão não encontrou as curvas familiares sob a Lycra. Em vez disso, os meus dedos deslizaram sobre um denim muito gasto. Olhei para baixo e vi o cocuruto da minha cabeça. Pestanejei, mas a imagem não mudou: eu ainda estava agarrada ao peito. Senti uma completa sensação de desorientação, mas não tive tempo para lidar com ela, porque Jimmy decidiu apressar-me e foi um inferno. Jimmy rasgou-me, literalmente, ferrando-me o braço com aqueles dentes que pareciam facas. Gritei e deixei cair no chão o corpo que tinha nos braços. Tive tempo para ver um par de enormes olhos azuis a olharem de baixo para mim com espanto antes de Jimmy começar a sacudir a cabeça, tentando arrancar-me o braço. Reagi sem pensar, para me libertar da dor lancinante, e fiquei a olhar em choque quando o corpo dele passou por mim à deriva e foi embater contra um carro ali perto. Arremessá-lo tinha sido inacreditavelmente fácil, como se ele não pesasse mais do que uma boneca. Olhei em volta e parecia que todo mundo se movia em câmara lenta. Vi Pritkin fazendo um buraco do tamanho de uma bola de basquete no desgraçado carro à frente do qual Jimmy estava antes de eu o lançar em vôo. Consegui ver a explosão que saiu da boca da arma e o vidro que rebentou do pára-brisa pareceu flutuar até ao chão tão lentamente como folhas a cair de uma árvore. Pritkin virou-se de forma igualmente lenta para enfrentar a maré de corpos peludos que se dirigiam para ele com passadas calmas em vez de num ataque a toda a força.
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A única pessoa que se mexia a uma velocidade normal era LouisCésar, que espetou um pau no coração de uma ratazana e que, enquanto eu olhava, sacava da espada para a virar contra outra. — Não me ouviste? Tira-a daqui! — Ele estava olhando para mim e eu pestanejei para ele, indagando-me sobre do que estaria ele a falar. Então, ele sacou de uma faca curta de arremesso e lançou-a a garganta de uma ratazana que, de alguma forma, se esgueirara para o corpo que jazia aos meus pés. A faca apanhou-a na nuca e ela guinchou, dando patadas na faca com as garras de fora, de forma a cortar a sua própria carne. Rebolou para se afastar da pessoa que estivera prestes a atacar e eu baixei o olhar para fitar a minha própria imagem deitada no asfalto. Finalmente reparei que o braço ensangüentado que Jimmy estava a morder não era meu. Senti a dor, vi o sangue, mas a carne por debaixo do banho de sangue tinha um tom suave, quase de mel, uma cor que eu só conseguiria ter se a vaporizasse sobre mim. A mão tinha dedos longos, o braço era musculoso e o peito que apoiava este meu novo braço era tão liso como o de um homem. Demorei alguns segundos para perceber que era o peito de um homem e que tinha vestida à camisa de rede de Tomas e o seu casaco de denim. Cambaleei contra um Volkswagen próximo e o corpo aos meus pés sentou-se. — Cassie, onde estás? — Os meus olhos azuis brilhavam de raiva e do que parecia ser medo. Era difícil de dizer; não estava habituada a ler a minha própria expressão. — Responde-me, que inferno! Ajoelhei-me ao lado do que tinha sido o meu corpo e olhei para aqueles olhos familiares. Por um segundo, o rosto pareceu-me errado, até eu perceber que estava a ver-me da maneira como todos os outros me viam, em vez da habitual imagem ao espelho. Não havia como negá-
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lo: de alguma forma, eu tinha acabado no corpo de Tomas. O que levantava a questão: quem é que estava no meu? — Quem és tu? — Agarrei na minha arma, tentando não reparar que Jack tivera alguma razão em relação ao meu guarda-roupa ultimamente, e o meu corpo soltou um guincho. — Deixa-te disso, droga! — Se os olhos azuis conseguissem soltar faíscas, os meus estavam a sair-se muito bem. — Quem és tu? Quem está aí dentro? — Antes que eu conseguisse obter uma resposta, Jimmy recompôs-se do golpe que eu desferira contra ele e virou-se novamente para nós. Tive tempo de sobra para tirar a minha arma do cinturão de Tomas e dar-lhe um tiro. Vi uma flor carmim a desabrochar no peito dele, ligeiramente abaixo do coração, se é que o coração de uma ratazana está no mesmo lugar do de um humano, mas ele continuou a avançar. Alvejei-o novamente, desta vez no braço. Foi por engano — eu estava apontando para a cabeça — mas acabou por ser bom, porque ele estava prestes a sacar uma arma. Deixou-a cair e agarrou-se ao peito, enquanto eu me ajoelhava pensando onde é que ele escondera uma arma nas poucas peças que restavam de sua roupa. Parou a poucos centímetros de distância, dando me mais do que tempo para terminar o trabalho, mas não estava olhando para mim. — Manda parar o teu gorila de estimação, senão nunca encontrarás o teu pai. — A voz era indubitavelmente de Jimmy, portanto aprendi outra coisa, os metamorfos conseguiam falar enquanto estavam nas suas formas alteradas, pelo menos os devassos conseguiam. — O quê? — Descomprimi o dedo do gatilho, e Jimmy lançou-me um olhar obsceno.
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— Não estava a falar contigo. — Baixou o olhar para quem quer que estivesse a ocupar o meu corpo e fez uma careta. — Podemos fazer um acordo; não sejas estúpida — manda-o parar. O Tony não vai dizer-te o que queres saber. Ele gosta muito de manter o Rog onde está. — O meu pai está morto. — Eu não conseguia perceber qual era o jogo de Jimmy, mas este não ia resultar. Ele parecia irritado, se bem que isso pudesse dever-se ao sangue que lhe pingava dos dedos e salpicava o asfalto. — Diabos, não estou a falar contigo! Fui obrigada a olhar para cima por causa de uma explosão e vi que Pritkin e Louis-César tinham estado atarefados. Havia seis corpos peludos espalhados pelo estacionamento, estendidos ao redor dos carros e caídos no chão, mais ou menos o mesmo número dos que ainda estavam ativos. Louis-César matava metodicamente dois dos que restavam enquanto se esquivava às garras velozes que tentavam decapitá-lo. Pritkin, por sua vez, estava de fato a dar cabo deles e, pela expressão no seu rosto, a adorar cada momento. Rebentou com outro carro, atravessando com um tiro um grande homem-ratazana que, surpreendido, baixou os olhos para a parte central do corpo que lhe faltava antes de cair de joelhos. Depois, deteve outro que saltara do teto de uma minivan para a sua frente, gritando qualquer coisa que fez o metamorfo irromper em chamas em pleno ar. Pedaços em brasa choveram sobre os escudos de Pritkin – conseguia vê-los faiscando num azul elétrico onde quer que esbarrassem — mas nenhum os atravessou. Custava-me a acreditar que não houvesse ninguém no bar incomodado com o barulho. As rajadas de metralhadora não são propriamente silenciosas, e muito menos os gemidos, guinchos e sons de desordem que as acompanhavam. Também era estranho que os
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vampiros não atacassem nem fossem embora. Cinco deles permaneciam ali, observando a ação como se estivessem à espera de alguma coisa. — Tomas, atrás de ti! — Louis-César saltou sobre o corpo da enorme ratazana à sua frente e lançou-se na minha direção. A sua expressão, bem como uma praga proferida pela minha própria voz atrás de mim, disse-me que eu tinha escolhido uma má altura para me distrair. Rodopiei e vi que Jimmy tinha agarrado o meu corpo pelos cabelos e que tinha uma daquelas garras de oito centímetros comprimida contra a minha garganta. — Disse-te para a levares daqui! — Louis-César olhava para Jimmy, mas falava comigo. Ou melhor, com Tomas, só que ele não parecia estar ali. Porém, eu não estava muito preocupada com o vampiro enraivecido ao meu lado; a garra, que fizera um corte fino à volta da minha garganta, prendia toda a minha atenção. Uma multidão de pragas muito inventivas saiu da boca no meu corpo, algumas delas soando-me muito familiares. Bem, pelo menos eu sabia quem guardava o meu corpo. — Cala-te, Billy. Não piores as coisas. Os olhos azuis dilataram-se e focaram-se em mim. — Espera aí, tu estás aí dentro? Meu Deus pensava que estavas morta! Pensava... — Eu disse para te calares. — Eu não estava com disposição para um dos discursos de Billy e precisava pensar. Muito bem, um problema de cada vez. Não me serviria de muito perceber qual a maneira de
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recuperar o meu corpo se a sua garganta fosse, entretanto, cortada, portanto era melhor tratar de Jimmy agora e entrar em pânico depois. — O que queres, Jimmy? — Fique quieto, Tomas! Já fez estragos suficientes esta noite. — Eu trato disto. — Louis-César parecia atrasado em relação à ação, mas eu não ia perder tempo explicando-lhe. — Cala-te. — Disse-lhe eu, e a expressão de incredulidade que lhe invadiu o rosto teria sido engraçada noutras circunstâncias. — Continue, Jimmy, o que queres para... a... libertares? Querias fazer um acordo, lembras-te? — Era surreal estar ali no corpo de outra pessoa a discutir com uma ratazana gigante, mas eu só via o meu corpo com a expressão assustada de Billy Joe. Eu não podia confiar nele para nos tirar daquela situação: ele nem sequer chegara aos trinta antes de acabar afogado como um gatinho não desejado. — Quero sair daqui vivo; o que achas? — Jimmy olhou de relance, não para os vampiros ao meu lado, mas para aqueles que passeavam perto da luta. Ok, afinal, talvez não fossem amigos dele. — E a gostosa aqui vai comigo. O Tony há de esquecer o nosso problemazinho se eu lhe levar a Cassie, e é exatamente isso que vai acontecer. — Nem pensar. — Eu não ia ficar ali parada e deixar que Jimmy me levasse. Nenhuma das minhas fantasias acerca do corpo de Tomas incluía fixar residência permanente. — Tenta outra vez. — Está certo. Tudo bem. Então e se eu lhe cortar a garganta? Gostas mais assim? O Tony havia de preferi-la viva, mas aposto que até um cadáver há de servir para eu voltar às suas boas graças.
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— Se lhe fizeres mal, juro que vais demorar dias a morrer, e hás de implorar pela morte antes que ela chegue. — Louis-César soou extremamente convincente, mas matar Jimmy, por mais devagar que fosse, não iria fazer-me ressuscitar. — Ele tem uma certa razão, Jimmy. A única coisa que ainda te mantém vivo é a Cassie. Se a matares, nós tratamos de ti antes que o Tony tenha sequer chance. — E então? Eu solto-a e vocês matam-me da mesma forma? Acho que não. — Devias lembrar-te de que existem muitas maneiras de morrer — interpôs Louis-César, e eu poderia tê-lo chutado. — Quantas vezes tenho de te dizer para calar-se? — Ouvi o tom de pânico na minha voz e obriguei-me a me acalmar. Se eu perdesse as estribeiras agora, não haveria maneira de o Bonitão e do Rambo nos convencerem a sair desta. Sobretudo porque Pritkin parecia ter desaparecido, provavelmente à caça de homens-ratazana. — Falaremos quando isto estiver terminado. — Disse calmamente Louis-César. — Não sei o que se passa contigo... — Precisamente. Não sabes. Não sabes, de fato. — Sorri para Jimmy, mas isso só pareceu enervá-lo. Percebi o porquê passado um segundo, quando cortei o lábio numa presa. As presas de Tomas estavam totalmente expandidas, mas eu não sabia como retraí-las. Ótimo, negociando a minha vida com um cara de língua presa — tal era a minha sorte. — Muito bem, que tal assim, Jimmy? Tu entregas-nos a Cassie e nós te damos uma vantagem. Digamos, de duas horas? Até prometo distrair ali os vampiros durante tempo suficiente para fugires.
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São lacaios do Tony, não são? Vão ali ficar vendo-nos matando-te ou terminando o trabalho se conseguires fugir de nós. Mas nós podemos mantê-los entretidos e sem te chatear por um bocado. Ora, é justo, não é? Jimmy lambeu o focinho com uma língua longa e pálida e contorceu as suas orelhinhas de rato. — Tu dirias o que quer que fosse para a recuperares, depois me mataria ou deixaria que eles o fizessem. Além disso, se eu não a levar ao Tony, estou morto de qualquer forma. Ri-me com desdém. — Desde quando os metamorfos acatam ordens de vampiros? Não acredito que você bajulara-o por todos estes anos! Jimmy guinchou; suponho que lhe tenha atingido um ponto nevrálgico. — Vem aí uma nova ordem, vampiro, e há muitas coisas prestes a mudar. Em breve poderás estar recebendo ordens nossas! Recuei. Queria atingir o orgulho dele, não incitá-lo a fazer uma besteira. — Pode ser, mas não te servirá de muito se não sobreviveres para assistir a isso, certo? Não me conheces, por isso não irás acreditar na minha palavra. Mas e na da Cassie? E se ela te prometer garantir o nosso bom comportamento? — Jimmy parecia dividido, como se realmente quisesse acreditar em mim, e eu sabia o porquê. O ferimento de bala no braço não tinha muito mau aspecto, mas a ferida que tinha nas costas
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era uma coisa diferente. A longa faixa de pêlo branco que lhe descia pela parte da frente do corpo tinha uma mancha crescente de vermelho, e a respiração dele parecia esforçada e um pouco borbulhante. Dez contra um em como lhe tinha atingido um pulmão, e até mesmo um metamorfo iria ter problemas para curar isso. — Vá lá, Jimmy. É a melhor oferta que vais receber. — Diz aos teus capangas para recuarem se quiseres fazer um acordo, senão ela morre. — Cuspiu para o chão à minha frente para realçar a ameaça, e o cuspe continha sangue. Jimmy estava ficando sem tempo e, assim que ele percebesse isso, eu também estaria. Os seus bigodes contorceram-se e eu percebi com surpresa que conseguia de fato cheirar-lhe o medo. Era uma coisa tangível, a ponto de eu sentir que conseguia fazê-lo rolar na minha língua como vinho. Era almiscarado, com um sabor doce subjacente, se bem que este último poderia ser devido ao sangue. Agora que eu reparara nos sentidos apurados deste novo corpo, eles estavam a revelarem-se suscetíveis de me distraírem bastante. De repente percebi que Louis-César não estava zangado; estava furioso: dele irradiava um aroma efervescente e apimentado em ondas, e eu tive a sensação de que este era tanto dirigido a mim — ou melhor, a Tomas — como a Jimmy. Estava misturado com a miríade de aromas que subitamente me atordoavam por todos os lados: o bafo tênue e distante dos esgotos que corriam debaixo de terra, os vapores de gasolina e as guimbas de cigarro do estacionamento, e o cheiro ruim de repolho azedo há um dia atirada em uma lixeira. Por outro lado, o meu corpo cheirava bem, muito bem, e inicialmente pensei que fosse por me ser familiar. Depois percebi com choque que, na verdade, ele cheirava a um prato delicioso, quente, fresco e pronto para comer. Nunca tinha pensado que o sangue tivesse um cheiro doce, como uma torta de maçã
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quente ou uma sidra fumegante num dia fresco, mas agora pensava. Quase conseguia saborear o sangue a correr sob a quentura daquela pele e sentir como seria magnífico a deslizar pela minha garganta. A idéia de eu cheirar a comida para Tomas perturbou-me a ponto de eu só ver o que acontecera à minha frente depois de estar quase terminando. Uma nuvem sufocante de um gás azulado aumentou à nossa volta, obscurecendo o estacionamento e deixando meus olhos ardendo. Foram disparados vários tiros e ouvi Louis-César gritar para Pritkin que se abaixasse. Acho que ele tinha medo que aquele maluco, que dera a volta para enfrentar à luta a partir de um novo ângulo, me atingisse em vez de Jimmy. Uma vez que eu partilhava dessa opinião, não interferi. Eu estava prestes a divagar pelo azul, para tentar encontrar-me antes que acabasse morta, quando o meu corpo surgiu rastejando da nociva nuvem, chorando e arquejando. Não percebi o que se passava com ele — não me custava nada respirar — até me lembrar de que Tomas não precisava respirar e que eu não o tinha feito durante todo o tempo que estivera dentro dele. Isso fez com que eu começasse a ofegar como um peixe, enquanto o meu corpo engatinhava e me agarrava pelos tornozelos. — Socorro! — Eu estou bem? — Deixei-me cair de joelhos, quase nos embaraçando durante o processo, e comecei a apalpar a minha roupa. — Diga-me que não deixaste que me retalhassem! — Mal conseguia falar por causa da pulsação na minha garganta, mas, fora a ferida de arestas finas que tinha no pescoço maltratado e os olhos aturdidos e lacrimejados, eu parecia estar intacta. — Fica aqui. — Disse a um Billy Joe muito confuso. — Vou atrás do Jimmy. — A minha cabeça acenou e uma mão deu-me uma palmada. Parei para puxar a blusa de Billy para cima antes que deixasse sair alguma coisa e depois rastejei para a briga.
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Pritkin gritava qualquer coisa, mas, embora eu conseguisse ouvilo, também conseguia ouvir todo o resto, e refiro-me mesmo a tudo. As conversas no balneário eram tão distintas como se estivessem acontecendo no meio do estacionamento. A música, o tinir das máquinas caça-níqueis e uma discussão entre um empregado e um dos cozinheiros na cozinha eram todos claros como a água. As pulsações cardíacas dos poucos metamorfos que restavam, alguns dos quais eu conseguia ouvir tentando fugir rastejando por debaixo dos carros, a respiração de toda a gente à minha volta e o som de um pedacinho de papel a ser soprado pelo estacionamento transformava a noite sossegada na hora do rush no terminal ferroviário. Talvez os vampiros tenham aprendido a serem seletivos e a distinguir entre o que é trivial e as coisas mais importantes. Acho que tem de ser assim, senão ficam loucos. Mas eu não o sabia fazer e, embora conseguisse ver o rosto sinistro de Pritkin, não conseguia perceber por que motivo ele estava zangado. Uma vez no coração dos rodopiantes gases azuis venenosos, descobri que os olhos de Tomas conseguiam ver contornos, mas não feições distintas. Ainda assim, não foi muito difícil distinguir o corpo caído de uma ratazana gigante. Bolas! Já sabia que eles iam estragar tudo. Não era provável que eu fosse desperdiçar nenhuma lágrima com Jimmy, mas queria saber o que ele prometera contar-me acerca do meu pai. Além do mais, tínhamos feito um acordo, e eu não gostei que os meus supostos aliados tivessem tomado a liberdade de o alterar sem sequer me dizerem uma palavra. — É melhor que ele não esteja morto. — Comecei eu, quando o rosto corado de Louis-César me apareceu à frente. Não me adiantei mais porque a mão dele se esticou e me apertou de uma maneira que poderia esmagar uma garganta humana. Ele estava a dizer algo num tom de voz severo que não parecia muito a sua voz habitual, mas eu não o percebi.
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Tive um segundo para pensar, "Droga", antes de a desorientação que me era familiar me inundar e de o azul se desvanecer. Fechei os olhos, sem querer acreditar que isto era real, que ia ter uma visão logo agora, mas não havia maneira de o negar. De repente, voltei àquele mesmo corredor de pedra frio e pouco acolhedor, ouvindo vozes repletas de um desespero inimaginável. Deixei-me cair de joelhos com o choque, não por causa do que me rodeava, se bem que isso estivesse longe de ser acolhedor, mas por causa das vozes. Anteriormente pensara que eram as pessoas no interior da sala de tortura que proferiam os gemidos agudos, mas agora sabia que não eram. Os homens acorrentados à parede tinham começado a gritar apenas quando me viram, e os seus tons de voz, embora desesperados, não tinham soado assim. Isto era um coro de centenas, talvez milhares, e não estavam vivos, pelo menos não mais. Percebi que o frio gelado do corredor se devia menos ao tempo do que aos gases venenosos de espíritos aglomerados nele. Eu nunca tinha sentido tantos fantasmas ao mesmo tempo num só lugar, como se uma névoa espiritual penetrasse nas paredes e enchesse o ar a ponto de sufocação. Era o desespero sob a forma tangível, como uma película de gordura congelada no meu rosto a percorrer-me a garganta até eu pensar que iria sufocar nela. Desta vez eu estava sozinha e, sem a crueldade do carcereiro para me distrair, podia concentrar-me nas vozes. Lentamente, foram-se tornando um pouco mais distintas. Rapidamente desejei que isso não tivesse acontecido. Havia decididamente uma sensação de inteligência, de muitas mentes ali, e nenhuma delas era feliz. Inicialmente pensei que pudessem ser demoníacas, tal era a imensidão de — por falta de palavra melhor — raiva que por ali fluía. Mas não me davam a mesma sensação dos poucos demônios que eu encontrara; davam a sensação de fantasmas. Depois
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de alguns minutos absorvendo a sua fúria, percebi finalmente. Regra geral, as assombrações estão tratando de uma das três questões principais: morreram antes do tempo, morreram injustamente — a maioria das vezes, mas nem sempre, assassinadas — ou morreram com algo vital por terminar. Por vezes há outros fatores que contribuem para isso — os fantasmas, tal como as pessoas, podem ter muitas coisas a chateá-los ao mesmo tempo — mas normalmente está lá um dos três grandes. O que eu estava a sentir eram milhares de fantasmas que tinham todos os três grandes e também uma galáxia inteira de questões a contribuir para isso. Se ainda estivessem vivos, poderiam ter mantido todos os psiquiatras dos Estados Unidos trabalhando dia e noite até o próximo século para tentar ajudá-los. Mas no mundo dos fantasmas não há psiquiatras. O que há é vingança. Um fantasma criado por razões de vingança ou recebe satisfação, ou recebe uma compensação ou fica pairando desejando-a até a sua energia se esgotar. A maior parte dos fantasmas não tem doadores habituais de energia como sucede entre mim e Billy Joe, por isso desaparece com o tempo, tornando-se cada vez menos poderosos até só restarem as suas vozes, e depois fazem finalmente a passagem para onde quer que os fantasmas vão. Pressenti que, nesta multidão, alguns estavam prestes a ficar sem energia, enquanto outros eram tão poderosos como se tivessem morrido no dia anterior, coisa que podia bem ter acontecido. As implicações eram dilacerantes: onde quer que eu estivesse, aquele lugar era usado para tortura há décadas, pelo menos, e provavelmente há séculos, acumulando energia negra espiritual suficiente para ser sentida até por não sensoriais. Eu duvidava que existisse alguém, por mais insensível que fosse ao mundo psíquico, que conseguisse entrar nesta câmara de horrores sem se sentir seriamente arrepiado.
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Olhei em volta, mas ainda era apenas eu e o coro. Não sabia o que fazer. Estava habituada a que as minhas visões se comportassem de forma previsível: surgiam; atingiam-me como um trem de carga; iam-se embora; eu gritava; a coisa passava. Mas, ultimamente, as minhas capacidades psíquicas estavam ramificando-se para áreas novas e ficando desconfortáveis, e eu sentia-me rancorosa por o ter universo decidido subitamente mudar as regras. Sobretudo porque, se eu tivesse de ficar presa em algum lugar, não teria certamente escolhido este lugar. Um vento frio bateu-me na cara – eles estavam ficando impacientes. — O que vocês querem? — Eu mal sussurrei, mas seria de pensar que tinha agarrado num galho e cutucado um ninho de vespas. Foram tantos os espíritos que me assolaram simultaneamente que eu vi apenas clarões de cor, vislumbres de imagens e um rugido nos meus ouvidos, como se um furacão tivesse decidido soprar pela parede. — Parem! Parem com isso! Não consigo entender vocês! Encostei-me à parede e só quando caí através dela é que percebi que não tinha corpo, pelo menos corpóreo. Passado um instante de espanto, reconheci a sala de tortura que visitara anteriormente, mas, desta vez, estavam lá apenas as vítimas. Levantei-me e dei alguns passos hesitantes à frente. Sentia-me muito sólida. Os meus pés não desapareceram na pedra como eu quase estava à espera, e conseguia ver o meu braço. Felizmente era o meu, e não o de Tomas; pelo menos o meu espírito sabia qual era o meu corpo. Apalpei o braço e este também era sólido. Conseguia sentir a minha pulsação. Estava respirando. E, no entanto, nenhum dos prisioneiros parecia reparar em mim. A mulher que eu libertara no cassino estava deitada mesmo à minha frente, de costas na grade, tal como eu me lembrava, só que não estava queimada. Não estava com bom aspecto, mas eu conseguia
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discernir uma tênue subida e descida do peito e um pestanejar ocasional, por isso percebi que estava viva. Ouvi um barulho atrás de mim, olhei por cima do ombro e vi umas duas mil pessoas, todas paradas em silêncio, observando-me. Não era possível que a sala suportasse tanta gente, mas a verdade é que estavam lá. E, ao contrário da minha experiência com a brigada de Portia, aquilo não parecia estar arruinando-me os sentidos. Conseguia vê-los sem que os meus olhos se trocassem ou tentassem sair-me da cabeça; talvez estivesse a habituarme àquilo. — Não sei o que fazer. — Disse eu, mas ninguém me deu qualquer pista. Virei-me novamente para a mulher e vi com surpresa que ela me olhava diretamente. Tentou dizer qualquer coisa, mas dos lábios rachados apenas lhe saiu um leve grasnar. Alguém me entregou uma gota de água. Era viscosa e vagamente verde, e eu olhei para ela de forma duvidosa. — Esta coisa é nojenta. — Pois é, mas parece que não há mais nada. — Para que vejam como eu estava desorientada, demorei pelo menos cinco segundos a ligar a voz à pessoa. Levantei lentamente os olhos, depois dei um salto para trás, deixando cair a água viscosa pela sala num grande arco. — Merda! Tomas! — Engoli o coração de volta ao lugar a que pertencia. — O que fazes aqui? — Ele segurava um balde que continha mais daquela água nojenta. Parecia sólido, mas isso não queria dizer
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nada. Eu também parecia e tinha acabado de cair através de uma parede. — Não sei. — Senti-me inclinada a acreditar, já que ele parecia tão abalado quanto eu me sentia. Suponho que aquilo fosse estranho até para um vampiro. A água no balde tremelicava numa mão que não estava totalmente estável, tal como não estava a voz dele quando falou. — Lembro-me de teres assumido o controle do meu corpo e de ser incapaz de falar ou reagir. Depois, de repente, estávamos aqui. — Olhou maravilhado em redor. — Onde é que estamos? — Não sei bem. — Foi aqui que estiveste antes? — Algo que parecia entusiasmo assolou as suas feições. — Aquela é a Françoise? — Ele viu a minha surpresa. — O Rafael falou-me da visão que te transtornou. Esta é a mulher que viste? — Acho que sim. — Eu ainda estava olhando o balde que ele segurava, porque me ocorrera que ele não deveria ter isso. Se, de alguma forma, ele tivesse se colado à minha visão, ambos deveríamos estar ligados pelas regras habituais. Na verdade, não estávamos ali; aquilo era uma gravação, uma imagem de algo que tinha acontecido há muito tempo. Nós não deveríamos ser mais do que os espectadores de um filme em relação ao que acontece na tela. Mas ali estava ele, segurando um balde pesado como se não fosse nada. — Onde é que arranjaste isso? Ele pareceu confundido. — Estava ali ao canto. — Fez sinal com a mão que tinha livre para um lugar onde o estado da palha evidenciava que ela servia também
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como privada. Claro que toda a sala cheirava como um cruzamento entre um esgoto a céu aberto e um açougue onde a carne não era assim muito fresca e onde se permitia que os restos ficassem a apodrecer aos cantos. Tive o pensamento mesquinho de que era injusto ter de cheirar aquilo quando nem sequer tinha corpo. As minhas visões antigas nunca eram complementadas por cheiros e sensações, e era de longe preferível assim. — Não posso dar-lhe isso. — Que se lixe a metafísica; eu tentaria percebê-la mais tarde. Se Tomas podia segurar em um balde, era obvio que podíamos interagir com este lugar, pelo menos em parte. E se isso era verdade, talvez pudéssemos alterar algumas coisas que tinham corrido — ou iam correr — seriamente mal. A minha prioridade era tirar dali a mulher, mas ela não iria durar muito sem ter o que beber e continuava a lançar olhares ansiosos ao balde nojento. Fiquei pensando em quanta sede se teria de ter antes que uma coisa daquelas nos parecesse desejável. Tomas cheirou-a e mergulhou o dedo para a provar. Lembrei-me de como ele tinha os sentidos apurados quando ele fez um som de desagrado e cuspiu aquilo. — Tens razão. Cerca de um terço é sal. É meramente outra forma de tortura. — Atirou-a para o chão e a coisa nociva ensopou a palha seca. — Vou tentar encontrar outra coisa. — Não! Tens de ficar aqui. — Porquê? Não sou apenas um espírito aqui? O que poderia acontecer?
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Olhei nervosamente para os milhares de fantasmas que nos observavam em silêncio e indaguei-me sobre se deveria contar-lhe. Normalmente, os espíritos não me assustam. Há exemplos raros que, como Billy, podem alimentar-se da energia dos humanos até um certo nível, mas eu sempre consegui repeli-los quando quis. Além do mais, a maioria deles considera que é necessária mais energia para atacar um humano do que aquela que obtêm durante o processo, por isso normalmente não se dão a esse trabalho, a menos que os irritemos. Mas as coisas tinham mudado. Aqui eu não tinha a proteção de um corpo e todas as defesas que lhe vinham apensas. Eu era um espírito estrangeiro no território deles e, se eles decidissem ficar aborrecidos com isso, eu poderia estar metida numa grande confusão. Billy dissera-me que os fantasmas podem canibalizar-se uns aos outros por causa da energia — ao que parece, é muito mais fácil do que usar doadores humanos. Ele já fora roubado mais do que uma vez, e numa ocasião tinha sido tão mau que eu tive de lhe doar rapidamente algum poder, senão ele poderia terse desvanecido a ponto de não conseguir voltar. Agora ali estava eu, enfrentando vários milhares de fantasmas famintos que tinham todos os motivos para estarem enfurecidos por eu estar intrometendo-me no território deles. Até agora não tinham feito nada, mas podiam não gostar de nos ter vagando pelo seu castelo. Eu não pretendia descobrir. — Nem queiras saber. — Disse-lhe brevemente. Ele não contrapôs, mas as suas sobrancelhas uniram-se enquanto examinava a mulher. Parecia genuinamente preocupado com ela, o que abrandou um pouco a minha atitude em relação a ele. Também me fez pensar se ele próprio estaria igualmente em perigo. Billy Joe estava lá atrás no nosso tempo, tomando conta do meu corpo, mas Tomas não tinha atualmente nenhum espírito residente – que era outra maneira de dizer que ele estava morto. É claro que ele morria todos os dias quando
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o sol nascia, mas esta não era a maneira habitual. Esperei que não encontrássemos um cadáver permanente quando regressássemos. — Vamos soltá-la. — Disse eu, tanto para distrair a mim como a ele. Começamos a tentar libertar a mulher da grade, mas era mais difícil do que parecia. Embora tivesse tentado não a machucar, fiz alguns estragos. As cordas tinham corroído sua carne e seu sangue secara em volta delas quase como cola; quando as retirei dos pulsos e tornozelos, vieram também atrás pedaços de carne ensangüentada. Olhei em redor pela sala, na esperança de ver outra fonte de água, mas não havia mais nada além dos homens acorrentados às paredes. Um deles estava pendurado numa saliência de pedra a quase três metros do chão. Tinha os braços atados atrás de si, puxados para cima num ângulo terrível, e pesos presos aos pés. Não se mexia, mas balançava como um boneco articulado. Havia outro deitado na palha em baixo, gemendo baixinho. Olhei melhor; na verdade, parecia que tinha sido cozido em água fervendo. A sua pele apresentava um horrível vermelho mosqueado e estava descascando em tiras. Os outros homens magros mostravam sinais de que os torturadores já tinham passado algum tempo com eles. As costas estavam em carne viva, aqui e ali faltavam mãos e pés e pedaços de carne tinham sido tirados a escopro26. Virei-me de costas antes que ficasse mal disposta. Algo me tocou no cotovelo e eu olhei para baixo e vi um cantil flutuando no ar ao meu lado. Peguei nele com cuidado, olhando para a multidão suspensa com alguma desconfiança. Mas nenhum deles fez qualquer movimento ameaçador, e o recipiente cheirava a uísque. Eu teria preferido água, mas o álcool poderia entorpecer-lhe a dor.
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Ferramenta de aço, para lavrar metal, madeira, pedra, etc.
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— Toma, bebe isto. — Ajoelhei-me próximo à cabeça da mulher e levei-lhe o cantil aos lábios. Ela engoliu um pouco do conteúdo e depois desmaiou misericordiosamente. Deixei Tomas a tomar conta dela e fui tentar libertar os homens, mas depressa se tornou óbvio que isso não iria acontecer. A mulher tinha sido presa com cordas, suponho que devido ao fato de as correntes não serem muito maleáveis, mas os homens estavam presos com ferro. Olhei de relance para Tomas. Eu não queria falar com ele, muito menos lhe pedir ajuda, mas era impossível eu conseguir libertá-los sozinha. — Consegues partir isto? — Perguntei, por fim. — Posso tentar. – Ele juntou-se a mim e ambos demos o nosso melhor, mas nada aconteceu. Mal conseguimos levantar as pesadas correntes, quanto mais fazer algo tão exigente como parti-las. Parecíamos ter perdido imensa força com a transição. Só de soltar a mulher, eu ficara como se tivesse passado três horas num trabalho monótono no nível máximo. De um modo geral, concluí, as coisas não estavam correndo bem. Eu não sabia onde estava, como iria voltar, nem quando iriam aparecer os torturadores. Uma ratazana ao canto da sala contorceu-me uns bigodes minúsculos e eu atirei-lhe o cantil. Ah, sim, e se conseguisse voltar ao meu lugar, estaria no meio de uma luta que eu não estava absolutamente certa de estarmos vencendo. Até para mim este era um dia realmente mau. — É inútil, Cassie. — Disse Tomas, passados alguns minutos.
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— Aqui sou tão fraco como um humano, e a minha força está desvanecendo-se rapidamente. Devíamos ajudar a mulher enquanto podemos. Não há nada a fazer em relação aos outros. Concordei com relutância. Parecia ser a minha noite de salvamentos. Olhei para o exército fantasmagórico que me olhava pacientemente. — Hã, alguém sabe como se sai daqui? Os fantasmas olharam para mim, depois uns para os outros. Houve alguma agitação até que um deles foi empurrado para fora da multidão. Era um jovem, com dezoito anos, talvez, com uma vestimenta que parecia uma versão pobre da de Louis-César. Era de lã azul e ele tinha um chapéu marrom na mão, com uma elegante pena amarela a sair da aba larga. Calculei que ele tivesse sido um dândi27 em vida, pois tinha uma gravata muito dobrada, uma cabeleira longa e quase totalmente encaracolada e os seus sapatos de pele tinham uns laços amarelos grandes e cômicos. Bastante colorido, para um fantasma; pela minha experiência, calculei que estivesse morto há um ano, ou menos. Fez uma reverência, e, embora não fosse tão cortês como a de Louis-César, usou a mesma expressão. — A votre service, mademoiselle. Ótimo. Olhei para Tomas, ajoelhado ao lado da mulher verificando lhe a pulsação. .— Por acaso
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não falas francês?
Indivíduo que se traja com apuro exagerado
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Ele abanou a cabeça. — Algumas expressões, mas nada que sirva para aqui. — Pareceu amargo. — Raramente me permitem entrar na sede do Senado. — Desde quando falam francês em Vegas? Ele olhou para mim com impaciência. — O Senado europeu está sediado em Paris, Cassie. — Não sabia que fazias parte dele. — Há muitas coisas que não sabes. Não tinha tempo para tentar perceber ao que ele se referia. Olhei para o jovem fantasma com alguma irritação. Por mais grata que me sentisse por já não estar no corpo de Louis-César, sentia a falta de ter acesso ao seu conhecimento. — Não falamos francês. — Disse-lhe eu. O jovem pareceu confuso, e gerou-se mais agitação. Um outro homem, desta vez mais velho e vestido de forma mais simples, com corsários castanho-claros lisos e um casaco azul-marinho, foi empurrado para frente. Não se dera ao trabalho de tapar a careca com uma peruca e parecia ser do tipo direto. — Fui negociante de vinhos em vida, mademoiselle. Tive de visitar a Angleterre com freqüência; talvez lhe possa ser útil?
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— Ouça, não sei o que faço aqui. Nem onde estamos. Nem o que vocês querem. Alguma informação ajudaria. Ele pareceu confuso. — Queira-me desculpar, mademoiselle, mas também nós estamos um pouco confusos. Vocês são espíritos, mas não como nós. Serão anjos, enviados finalmente em resposta às nossas preces? Bufei. Já tinha sido comparada a muitas coisas na vida, mas nunca a isso. E era mais do que certo que Tomas não tinha qualificações, a não ser que os anjos caídos contassem. — Hã, não. Não realmente. — O homem mais novo disse qualquer coisa e o mais velho pareceu chocado. — O que ele disse? O homem pareceu constrangido. — Ele teme pela vida da sua amada, que ela morra como ele, como todos nós, neste lugar de sofrimento interminável. Disse que não se importaria se vocês viessem do diable, do próprio Satanás, desde que trouxessem esperança de vingança. Mas não falou a sério. Olhando para a raiva no rosto do jovem, tive dúvidas. — Não somos demônios. Somos... é complicado. Eu só quero tirála daqui antes que o carcereiro volte. Sabe me dizer onde estou? — Está em Carcassonne, mademoiselle, o verdadeiro portão do Inferno.
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— E isso é onde? Quer dizer, estamos na França? — O homem olhou para mim como se eu lhe tivesse perguntado em que ano estávamos, o que, na verdade, seria a minha próxima pergunta. Que se dane. Não tinha tempo para explicar a um fantasma que, não, eu não era maluca. Pelo menos, achava que não era. — Deixe estar. Diga-me só para onde levá-la. Eles vão matá-la, ela tem de fugir. — Ninguém foge. — Ele parecia desiludido. — Não está aqui para vingar a morte da Françoise? Eu estava ficando um bocado enervada. Não tenho muita paciência, e a que tinha já havia desaparecido. — Eu preferia que ela nem sequer morresse. Vai ajudar-me ou não? Algo do que eu disse chegou ao jovem, porque ele começou a falar rapidamente com o seu companheiro. A mulher voltou a si enquanto eles discutiam e eu dei-lhe uma palmadinha no braço, uma vez que não havia lugar abaixo dos pulsos em que pudesse tocar-lhe sem a machucar. Ela olhou para mim com os olhos arregalados, mas não disse nada. Tanto fazia; nenhuma de nós estava em condições para um interrogatório. O homem mais velho virou-se para mim, com um ar desaprovador. — Mesmo que a ajudemos, ela poderá morrer, como aconteceu a outras. Abdicará da vingança para ela viver uns dias? Desisti. O dia tinha sido longo e, decididamente, eu não ia ficar ali parada ouvindo sermões de um fantasma chato. Para isso já me bastava
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Billy Joe. — Eu não sou o maldito anjo da morte, está bem? Não estou aqui para obter vingança por vocês. Se a quiserem, vão vocês buscá-la. É isso que fazem os fantasmas. Agora, ou me ajudam, ou saiam da minha frente. O homem mais velho endireitou-se com indignação. — Não podemos vingar-nos, senão já o teríamos feito! Este castelo é usado para tortura há séculos, e alguma coisa lhe fizeram, algum feitiço lhe lançaram, que faz com que seja impossível interferirmos. Acredita mesmo que teríamos ficado só observando, deixando acontecer tais atrocidades, se tivéssemos escolha? Se não é um espírito, então deve ser uma feiticeira poderosa. Ajude-nos! Ajudenos e seremos seus escravos. – Ajoelhou-se sobre um joelho e, de repente, todo o grupo estava ajoelhado. Era totalmente injusto. — Hã, como se chama? — Pierre, mademoiselle. — Muito bem, Pierre. Eu não sou uma bruxa; sou uma clarividente. Provavelmente conhece mais magia do que eu. Não posso desfazer-lhe um feitiço, nenhum feitiço. Tudo o que sei é que aquela mulher vai morrer muito em breve se não a tirarmos daqui. — Ele não parecia satisfeito, mas o jovem a seu lado já tivera a sua conta. Lançouse em frente e começou a puxar-me pela mão e a falar tão depressa que, mesmo que eu soubesse francês, provavelmente não o teria compreendido. Pierre olhou-me de modo adverso, mas concordou em traduzir depois de incitado pelo fantasma mais novo.
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— Existe uma passagem subterrânea, mademoiselle, da base de uma das torres até ao rio Aude. Há muito que é um trajeto de fuga em tempos difíceis. O Etienne pode mostrá-la. Olhei dubitamente para Tomas. — Consegues levá-la no colo? — Ele assentiu com a cabeça e preparou-se para levantá-la. Os seus olhos dilataram-se ligeiramente e ele cambaleou antes de se pôr de pé. — O que foi? — Ela pesa mais do que eu esperava. — Franziu a sobrancelha. — Temos de apressar-nos, Cassie, senão a minha força pode falhar por completo. Concordei e puxei a maçaneta da porta. Depois de algumas falsas partidas, abriu-se finalmente — eu estava sempre a atravessá-la com a mão. Conseguia solidificar-me o suficiente para mexer nas coisas, mas Tomas tinha razão — estava tornando-se mais difícil. Quando chegamos ao corredor, eu já ofegava, mas não havia ninguém para ouvir. Suponho que todos os torturadores estivessem na pausa para o café. No entanto, ao contrário do que aconteceu no Dante's, eu tinha a certeza de que havia pessoas por perto e de que estas chegariam em breve. O jovem fantasma aparecia e desaparecia enquanto descíamos um lance de escadas diferente do que eu usara da última vez. Estas não eram mais luminosas, mas a pena amarela no chapéu dele possuía aquela boa velha luminescência fantasmagórica e nós seguimo-la como se fosse uma vela. Desta vez não dei uma topada com o dedo do pé, se bem que não tardei a desejar não ter falhado a minha sessão de caminhada tantas vezes. O simples fato de descer as escadas começava a dar-me a sensação de estar correndo a maratona. Senti-me solidária
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com as sessões de queixas de Billy Joe de cada vez que eu lhe pedia para me trazer alguma coisa. Quando chegamos ao fundo da escadaria, estava derrotada. Comecei a encostar-me à parede, mas parei quando quase caí para dentro dela. — Quanto falta? — O jovem não respondeu, apenas me incitou desesperadamente a seguir em frente. Olhei em volta, mas o coro não tinha vindo com ele. Não fiquei preocupada. Eles pareciam mais interessados em machucar alguém do que em salvar uma vida, coisa que não os tornava simpáticos para mim. Chegamos numa passagem tão escura que a única luz provinha da pena oscilante no chapéu do nosso guia. Tornou-se cada vez mais úmida à medida que prosseguíamos, a ponto de logo começarmos a andar em poças de água que não conseguíamos ver, que eu esperava que significassem que estávamos aproximando-nos do rio. O maldito túnel parecia interminável, e teias de aranha acumuladas há décadas prenderam-se no cabelo da mulher, mas eu não tive energia para as sacudir. Finalmente, emergimos do outro lado, mas só uma Lua minúscula em quarto crescente e a extensão da Via Láctea que arqueava sobre nós é que conferiu alguma luz à cena. A noite sem eletricidade moderna é extremamente escura, embora, depois do túnel, me tenha parecido quase luminosa. A força de Tomas sucumbiu passado pouco tempo e eu tive de ajudá-lo. Colocamos a mulher entre nós e quase a arrastamos por trilhos empedrados e estreitos. Não queria arriscar-me a machucá-la, mas ficar ali também não era boa idéia. Eu sabia o que aquele carcereiro psicopata tinha planejado. Mesmo que ela morresse durante a fuga, era muito melhor do que ser queimada até à morte.
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A cidade que rodeava o castelo era seriamente arrepiante à noite, com as filas de casas inclinando-se tanto sobre a estrada em certos lugares que os vizinhos de lados opostos da rua poderiam dar apertos de mão. Sempre que uma coruja piava ou um cão ladrava, dávamos um salto, mas prosseguíamos. Tentei não olhar para trás para o contorno maciço do castelo, com os seus telhados cônicos a produzirem agourentas sombras negras no céu escuro. Desejei que estivesse próximo fosse qual fosse o destino que o Pena tinha em mente. Demorou uma vida, demorou uma eternidade, a ponto de eu já só conseguir concentrar-me em pôr um pé à frente do outro e não cair. Por fim, quando estava prestes a ter de pedir uma pausa para não desmaiar, vi uma luzinha ao longe, tão tênue que, inicialmente, pensei que a tinha imaginado. Lentamente, foi-se tornando mais brilhante e juntou-se numa vela colocada à janela de uma pequena casa. O Pena não se materializou, talvez por estar tão esgotado como eu, mas eu reuni energia suficiente para bater à porta em vez de a atravessar com o punho. Por fim, esta se abriu, deixando sair uma luz que parecia insuportavelmente brilhante depois da escuridão. Fechei os olhos com força e, quando os abri, estava olhando para a cara preocupada de Louis-César.
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Capítulo 8 Eu estava deitada no chão. Demorei um instante para perceber que estava de volta à época correta e ao meu próprio corpo. Teria chorado de alívio se tivesse força para isso. Billy Joe surgiu sobre mim e parecia irritado. — Porque você não me disse que conseguia fazer isso? Fiquei encurralado aqui dentro! Podia ter morrido! Não tentei me sentar, uma vez que o asfalto parecia fazer uma versão bastante violenta da dança do hula debaixo de mim. — Não faça birra. Você já está morto. — Isso foi totalmente desnecessário. — Pare de reclamar. — Billy Joe estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas teve de sair dali porque Louis-César se curvou sobre mim, e ele não estava disposto a ser encurralado em mais nenhum corpo. — Mademoiselle Palmer, está bem? Consegue me ouvir? — Não me toque. — Decidi que afinal queria me sentar, sobretudo porque a minha saia tinha subido a ponto de deixar à mostra as minhas calcinhas cor-de-rosa de renda, mas eu não o queria perto de mim de maneira nenhuma. Sempre que nos tocávamos, eu acabava
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perdida no tempo. Os meus sentidos tinham tentado me alertar anteriormente, mas era impossível distinguir entre o medo provocado pela proximidade dele e o terror generalizado de ser capturada pelo Senado. Fosse como fosse, já tinha tido experiências de fora do corpo suficientes para muito tempo. — Onde está o Tomas? — Eu ainda estava chateada com ele, mas a idéia de o ter matado acidentalmente não era agradável. — Está aqui. — Louis-César afastou-se cerca de meio metro e eu vi Tomas parado ao lado dele. Olhava para o francês com uma expressão estranha, algo aturdido, quase como se não o reconhecesse. — Você está bem? — Perguntei, preocupada. Esperava que ele estivesse consciente, pois não fazia idéia de como ir à procura de um espírito à deriva. Passado um longo momento, Tomas assentiu com a cabeça, mas não falou. Achei que isso não era bom. — Quantos dedos têm aqui? — Ora, pelo amor de Deus! — Billy Joe se enfiou no meio de nós, tendo o cuidado de não tocar em ninguém, e me olhou furiosamente. — Ele está ótimo. Voltou a si há alguns minutos, quando você decidiu voltar a juntar-se a nós. — Fez um ar zangado. — Qual é a idéia de tirar férias no meio de uma crise? Ignorei-o. — Me ajude a levantar. — Tomas pensou que eu estava falando com ele e se ajoelhou, obrigando Billy Joe a sair dali. Sentei-me e olhei em volta. Havia onze homens-ratazana mortos, incluindo Jimmy. Os seus olhos vítreos de ratazana me fitavam acusadoramente através do fumo que se dissipava e eu praguejei. — Droga! Eu queria falar com ele! — Ataquei Pritkin, que estava parado, com os braços erguidos de forma
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dramática, quase como se estivesse empurrando algo, só que não havia nada ali além do ar. — Matou-o antes que eu pudesse lhe perguntar sobre o meu pai! Pritkin não estava prestando atenção em mim. Tinha os olhos focados no exterior do nosso círculo e não estava com bom aspecto. Tinha a cara vermelha, os olhos vidrados e as veias laterais do pescoço inchadas. Quando falou, saiu num sussurro abafado. — Não agüento muito mais. — Aquilo não fez sentido até eu reparar num tênue matiz azul no ar à nossa volta e perceber que estávamos no interior dos escudos do mago. Ele criara uma bolha de defesa à nossa volta quando expandiu a sua própria proteção, mas esta parecia débil e fraca, completamente diferente dos seus antigos escudos. Talvez a tivesse esticado demais; os escudos pessoais eram concebidos para uma pessoa apenas. Ele tinha razão; não iria durar. — Temos de levar a Cassie para fora daqui! — disse Tomas, e eu reparei que também o rosto dele parecia tenso. Não como se ele estivesse levantando umas dezenas de quilos, como Pritkin, mas como se estivesse aterrorizado. Mas ele não estava observando o mago, nem nada que estivesse atrás dele. Estava olhando para mim. Louis-César era o único que parecia normal, sem sinais visíveis de tensão naquele rosto agradável. — Mademoiselle, se já recuperou o suficiente, posso sugerir que regresse a MAGIC? Tomas a levará. Pritkin balbuciou algo e um símbolo reluzente escreveu-se no ar por um instante, tão próximo que eu conseguiria ter me esticado para lhe tocar, antes de se dissolver nos escudos. Eu sabia o que ele estava
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fazendo porque um dos magos da corte de Tony tinha instalado uma sentinela de perímetro na caixa-forte dele usando palavras de poder. Eu ficara intrigada por ele conseguir construir um feitiço protetor com algo tão intangível como uma palavra, mas ele explicará que estava a usando para concentrar a sua própria energia. A magia tem muitas proveniências. Diz-se que os Elementais e, a um nível muito mais baixo, os licantropos, vão buscar a deles à natureza, drenando a imensa energia do planeta à medida que esta se desloca pelo espaço a velocidades aterradoras. A gravidade, a luz do Sol, a força de atração da Lua, tudo isso pode ser convertido em energia se souber fazê-lo. Até já ouvi especular que a Terra gera um campo mágico da mesma forma que gera um campo gravitacional, e que um dia alguém há de arranjar maneira de o explorar. Mas este é o santo graal da teoria mágica moderna, e até agora ninguém conseguiu fazê-lo - embora já tivessem sido perdidas horas incontáveis a tentá-lo. Até que o mistério seja solucionado, os feiticeiros humanos só podem obter uma pequenina quantidade da natureza; a maior parte dos seus poderes provém deles próprios. À exceção dos que fazem magia negra, que conseguem obter uma tremenda energia mágica roubando as vidas de outros ou do Além, mas pagam um preço elevadíssimo por isso. Há magos inerentemente mais fortes do que outros, mas a maioria usa algum tipo de embuste para aumentar as suas capacidades. A maior parte tem talismãs que reúnem energia natural durante longos períodos como se fosse uma bateria para ser utilizada por ordem do mago, como o colar de Billy. Alguns deles estabelecem ligações com outros feiticeiros, o que lhes permite obter poder em épocas de necessidade, como o Círculo de Prata. Outros alistam como aliadas criaturas mágicas que consigam absorver a energia natural melhor do que eles. Eu não sabia o que Pritkin poderia estar usando além do seu próprio poder, mas não parecia dar um bom resultado. Os seus escudos
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brilharam um pouco mais depois de o símbolo lhes tocar, mas voltaram a esmorecer quase de imediato. Alguma coisa estava lhes sugando a força, e em grande velocidade. Olhei em volta, mas não consegui descobrir a origem da ameaça. O parque de estacionamento parecia sossegado, se não mesmo tranquilo - as carcaças em chamas de dois carros nas redondezas viamse tenuemente através do fumo azul disperso. Semi cerrei os olhos a Louis-César, mas duvidei que ele me dissesse grande coisa. Por sorte, não precisava dele. — Billy? O que está acontecendo? — Com quem você está falando? — Pela primeira vez, Louis-César começou a parecer menos calmo. — Ela pode ter um traumatismo. Disse ele a Tomas. — Tenha cuidado com ela. Ignorei-o porque Billy flutuava perto de Pritkin e tinha começado a gesticular loucamente na minha direção, depois a toda à volta, depois em direção à noite. — Billy! Que raio está fazendo? Não é que mais alguém te possa ouvir — desembucha! — O seu espírito companheiro não pode ajudá-la, sibila. — A voz saiu da escuridão, e eu reparei que os cinco vampiros que aguardavam nos limites exteriores do parque estavam agora acompanhados de um amigo. Ele era difícil de ver na luz crepuscular, mas a sensação que emanava dele não era agradável. Fiquei feliz por não conseguir ver a sua cara. — Construí defesas contra ti. Ninguém pode ajudá-la, mas você também não precisa. Não está em perigo, sibila. Venha comigo e eu garanto que ninguém lhe fará mal. Valorizamos os seus dons e queremos
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ajudá-la a desenvolvê-los, não se manter escondida e assustada para o resto da vida. Venha a mim e eu deixarei os seus amigos, se é que são amigos, partirem em paz. — O meu nome é Cassie. Acho que está enganado. — Eu não estava interessada numa conversa, mas Billy Joe estava tentando me dizer algo e eu tinha de dar-lhe tempo para brincar às charadas. — Usei o título adequado, Miss Palmer, se bem que o seu nome também seja interessante. Alguma vez alguém lhe disse o que significava? — Ele riu-se. — Não me diga que a deixaram crescer na completa ignorância? Que falta de visão. Nós não cometeremos o mesmo erro. — Cassandra era uma vidente na mitologia grega. A amante de Apolo. — Eugenie assegurara-se da inclusão dos mitos gregos e romanos nos meus estudos — ao que parece, era uma parte importante da educação de uma jovem nos tempos dela — e eu não me queixara, porque achava que até era engraçado. Tinha me esquecido da maior parte das coisas, mas me lembrava da origem do meu nome. Até agora, pensava que Cassandra era um bom nome para uma clarividente. — Não é bem assim, minha querida. — A voz era cheia e rica, e poderia ter sido atraente se não fosse acompanhada por aquela coisa vaga e subliminar que me fazia lembrar fruta podre: demasiado madura e farinhenta. — Apolo, o deus de todos os videntes, amava a bela humana Cassandra, mas ela não lhe correspondia no afeto. Fingiu amálo durante o tempo suficiente para ganhar o dom da presciência; depois fugiu. Ele acabou por encontrá-la, claro está tal como você, ela não podia esconder — se para sempre — e exigiu a sua vingança. Ela podia manter o dom, disse ele, mas apenas veria acontecimentos trágicos e
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ninguém acreditaria nela quando os profetizasse, até que fosse tarde demais. Estremeci; não consegui evitá-lo. As palavras dele eram muito dolorosas. De alguma forma, ele parecia saber que tinha acertado e tornou a rir-se. — Não se preocupe, adorável Cassandra. Ensinarei-Lhe que pode existir beleza nas trevas. — O que está acontecendo? — Silvei a Billy, mais para bloquear aquela horrível voz sedutora do que à espera de resposta. O mago das trevas respondeu, muito embora não devesse ter conseguido ouvir um murmúrio àquela distância toda. — As defesas do cavaleiro branco estão falhando, sibila. Em breve falaremos cara a cara. Decidi que essa conversa não ia me agradar. Olhei de relance para Billy Joe. — Se lembra daqueles três dias depois de eu sair de Filadélfia da última vez? — Ele fitou-me inexpressivamente por um segundo, depois abanou violentamente a cabeça e começou a fazer gestos tempestuosos. Sim, ele lembrava-se bem. Eu só conhecia uma palavra de poder. Não era uma arma, mas destinava-se a acrescentar resistência em períodos de emergência drenando as reservas do corpo - todas as reservas. Era perigosa de usar, uma vez que, se o poder que concedia se esgotasse antes que a ameaça estivesse terminada, estaríamos fracos como um gatinho quando os
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maus da fita nos apanhassem, mas tinha um efeito forte enquanto durava. Eu a usara para me manter acordada durante mais de três dias seguidos depois de fugir de Tony pela segunda vez. Tinha a investigado e treinado com um dos magos vigaristas da corte, pois sabia por experiência própria que os amuletos de localização das sentinelas de Tony levariam setenta e duas horas para se esgotar. Eu tinha tido sorte da primeira vez que fugi, adormeci num autocarro e os meus perseguidores não perceberam qual dos seis veículos que tinham acabado de sair da estação apinhada de gente era o meu. Quando me apanharam o rastro, eu já tinha acordado, entrado em pânico e trocado de autocarro. Consegui ganhar tempo durante os necessários três dias, mas várias vezes escapara por pouco e não queria repetir o truque. Os capangas de Tony tinham ganhado muita prática para me localizar durante o meu primeiro desaparecimento e desta vez eu não teria a vantagem do elemento surpresa. O meu plano deu certo, mas o preço era elevado: quando o espasmo finalmente se esgotou, dormi durante uma semana e perdi quatro quilos e meio. Provavelmente, teria perdido muito mais como a minha vida - se Billy Joe não tivesse percebido que a troca de energia entre nós funcionava para os dois lados. Ele tanto podia dar-me energia como retirá-la de mim, e neste momento ele estava abastecido. Billy flutuou mais para baixo, aumentando a agitação do braço e a expressão carregada. Estava obviamente tentando me dizer que não queria falar em voz alta e que só havia uma alternativa. Suspirei. — Entra lá. — Um fluxo quente instalou-se em mim e Billy flutuou para dentro, mostrando-me novamente a imagem dele escavando a campa da sua mãe na Irlanda enquanto se instalava. — Perdeu a cabeça?
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— Só me diga se vai funcionar — se nós conseguimos reforçar os escudos? — Como assim, “nós”? Suspirei. — Não reclame; sabe que pode dispensá-la! Conseguimos fazêlo? — Sei lá! — Billy estava no auge da mordacidade. — Eu não ando por aí brincando com palavras de poder! Se esta coisa ricochetear, pode ser mau, muito mau. — Da última vez deu certo. — Da última vez você quase morreu! — Ora, Billy, não sabia que você se preocupava. Agora responde à pergunta. — Não sei. — Repetiu, com teimosia. — Teoricamente, eu devo conseguir redirecionar o poder para fora em vez de para dentro, mas... — Ótimo. — Concentrei-me nos escudos tremeluzentes, ignorando o fato de Louis-César e Tomas terem uma espécie de discussão. Há muito tempo que não tentava fazer isto e, se fizesse asneira, poderia não ter outra oportunidade. Pritkin estava quase roxo e já só se viam as partes brancas dos olhos. — Espera! Preciso pensar um pouco! Agüenta aí os cavalos...
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Billy continuou falando, mas eu o ignorei. Não tínhamos tempo para uma discussão prolongada. Eu não conseguia esticar a minha sentinela como Pritkin havia feito; se os escudos dele desaparecessem por completo antes de eu conseguir fortalecê-los, estávamos feitos. Concentrei-me e proferi a única palavra de poder que conhecia. A energia fluiu através de mim a tal ponto que eu pensei que ia levitar do asfalto. Passado um segundo, Billy esculpiu uma resplandecente runa dourada no ar, que pairou diante de mim durante um minuto, reluzente, brilhante e perfeita. Mas eu não tive muito tempo para a admirar, uma vez que caí de bunda no chão passado um segundo, quando a energia me deixou com o mesmo ímpeto perturbante com que tinha surgido. Lembrei-me, de forma súbita e vívida, da razão pela qual não fazia muitas vezes este tipo de coisa. Rebolei para o lado e gemi, tentando não vomitar. Tinha a nítida sensação de que não iria me safar. Então, Billy começou a me dar algum do seu poder roubado. Eu não estava à espera de sentir nada - quando ele me ajudou da outra vez, eu só soube depois de isso acontecer - mas isto eu senti. Fui percorrida por uma energia faiscante, quente e maravilhosa, e sentei-me abruptamente. Bolas! Podia ficar viciada nisto. O riso de Billy ecoou na minha cabeça e eu sorri. Não admira que ele tivesse andado por aí às voltas como um cometa. —O que é que você fez? — Pritkin também estava sentado, com um ar perplexo. Olhou-me. — Você reforçou os meus escudos? — Ele fitou-me com incredulidade enquanto eu admirava a minha obra e de Billy. Belas paredes azuis, tão opacas que provavelmente poderiam ser vistas por normais e tão espessas que eu poderia conduzir um carro à volta do seu perímetro, iluminado pelas luzes florescentes. Pritkin devia proteger-se com água, porque havia ondas como vagas calmas espalhando-se por elas.
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— Fazemos uma boa equipe - felicitei o meu ajudante. — E já nem tenho vontade de vomitar. — O que é que você fez?! — Pritkin agarrou-me pelos braços e a minha sentinela fervilhou ligeiramente. Ele me largou, olhando furiosamente e esfregando as mãos. — Não pode ter tanto poder, nenhum humano pode! — Talvez o tenha pedido emprestado. Os olhos dele semi cerraram-se. — A quem, ou a quê? Não me cabia explicar. — Alguém me diz, por favor, o que está a acontecendo? — Antes que alguém pudesse responder, os escudos começaram a saraivar e a silvar. Aquilo que parecia uma nuvem negra começara a mordiscá-los, engolindo aquele belo poder em pequenas dentadas, como uma praga de gafanhotos se abatendo sobre uma pradaria. Pronto, talvez ainda não estivéssemos fora de perigo. Decidi obter algumas respostas da única pessoa ali que me diria a verdade. Entrei e encontrei Billy. — Desembucha. — Não acredito que fez isso! Faz alguma idéia do que aconteceria se eu não tivesse sido capaz de canalizar aquele poder todo simultaneamente? Podia ter ricocheteado para o interior do escudo e fritado a nós todos!
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Interrompi. — Grita comigo depois. Só me diz o que está a acontecendo, rápido. — Os magos dos dois círculos estão lutando, e nós estamos encurralados no meio. Que tal este resumo? — Está bem, agora a versão que faz sentido. Ouvi um som estranho e percebi que eram dentes a ranger. Não sabia que ele conseguia fazer aquilo. — Flutuei pelo mago das trevas depois de ter regressado ao seu corpo, mas ele percebeu e protegeu-se contra mim. Acho que não consigo fazê-lo de novo. Mas, antes de ele me expulsar, soube que o Círculo Negro se aliou a Rasputine, juntamente com uma série de outros grupos que não estão contentes com o estado das coisas. Eles parecem pensar que ele tem uma boa hipótese de ficar com tudo, e não querem perder a pilhagem. E, o que é ainda mais divertido, parece que o Tony também se fez amiguinho deles. Anda vendendo feiticeiros aos elfos da luz e sabe que, se alguém na MAGIC descobre, terá sorte se apenas lhe espetarem uma estaca. — O quê? Não está falando sério. — Eu tinha acabado de descobrir que o mundo das Fadas não era um mito. Certamente não o compreendia o suficiente para perceber o discurso incoerente de Billy. — É uma longa história. Só precisa saber que o Tony quer proteção. Os elfos das trevas seguiram o problema até ele e não estão contentes. Não se podem dar ao luxo de fazer cruzamentos com os
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Elementais da luz, mas, com feiticeiros férteis a ajudarem à escassez da população, é isso que vai acontecer muito em breve. E nessa altura a luz irá governar todo o mundo das Fadas. — Mas isso é bom, certo? — Não sabia quantas das minhas histórias da creche eram baseadas em fatos, mas se os Elementais das trevas fossem realmente compostos por trolls, banshees, gnomos e afins, não seria melhor ser a luz a vencer? Billy suspirou. — Nós dois temos de ter uma longa conversa um dia destes. Não, não seria bom. Eu não confio em nenhum dos Elementais, mas pelo menos os das trevas têm regras. A luz tem se tornado cada vez mais anárquica ultimamente — refiro-me aos últimos séculos — e não há maneira de dizer o que eles farão se não houver nada que lhes dê equilíbrio. Por isso é que aquela duende demente estava aqui. Em condições normais, iria estar a nas tintas para humanos escravizados, mas se o tráfico vai beneficiar a luz, ela quer lhe pôr um fim. Resumindo, o que nos interessa é que o Rasputine prometeu proteger o Tony em troca de ele te matar. Não foi difícil de convencer. — Aposto que não. — Então eu tinha ainda mais um inimigo. Devia começar a fazer uma lista. — Porque é que o Rasputine me quer matar? — Ele te vê como uma ameaça, mas não sei porquê. Pode ser que o mago saiba, não consegui perceber. O que descobri foi que o Rasputine chamou os lacaios do Tony há cerca de meia hora e disse-lhes que vinha a caminho daqui. Provavelmente por isso é que o Jimmy ainda estava vivo. Estavam muito ocupados posicionando a volta do casino todos os assassinos que tinham para se preocuparem em matá-lo. Só
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que ninguém esperava que entrasse dançando valsa pela porta da frente. Estavam vigiando as entradas laterais e dos fundos, por isso ficaram um pouco confusos. — Bem, pelo menos isso explica como é que eu consegui passear em corredores desertos. Ocorreu-me uma coisa. — Eu nem sequer sabia que vinha para cá até à hora de sair. Como é que o Rasputine descobriu? — Boa pergunta. Decidi esquecer isso, pelo menos por enquanto. — Mas porque é que o Tony havia de desafiar o Mircea e o Círculo com uma coisa tão arriscada como a escravatura? — O negócio entre os utilizadores de magia não era uma coisa espantosa, mas a maioria das pessoas decidira que os enormes lucros possíveis com a venda de poderosos telepatas ou artífices de sentinelas não valiam as penas impostas caso o Círculo os apanhasse. Eu já tinha ouvido o próprio Tony dizer que era um jogo para tolos. Então, o que acontecera para ele mudar de idéia? — O Mircea vai matá-lo. — Não se o Rasputine matar o Mircea e o resto do Senado primeiro. Nesse caso, o Tony fica com um lugar no Senado, fora do controle do seu mestre, e deixa de haver tributos a pagar. Poder e riqueza, os suspeitos do costume.
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— O Tony não é forte o suficiente para se afirmar sozinho, mesmo sem o Mircea. Na melhor das hipóteses pertence ao terceiro nível; você sabe disso. — Talvez ele pense que o Ras vai o ajudar. Ou talvez venha se contendo. Ele tem idade suficiente para já ter avançado para o segundo nível, se é que alguma vez isso vá acontecer. Talvez não tenha dito a ninguém, pois isso teria feito com que o Mircea o vigiasse muito mais de perto. Podia estar à espera de uma oportunidade para romper com ele, mas não se atrevia a dar o passo sem um aliado importante. — Que agora já tem. — Assim parece. Então, companheira, o que quer fazer? — O que é que enfrentamos exatamente? Billy Joe suspirou de forma teatral. É o som que faz quando sabe que não vou gostar do que ele tem para dizer. — Dois magos das trevas, cinco vampiros aqui e outros quinze dispersos em volta, e pelo menos seis são mestres. Ah, e oito normais armados até aos dentes. — O quê?! — Ora, o que você esperava? Vegas é uma das fortalezas do Tony. E hão de chegar mais, vi mais meia dúzia de normais e oito ou nove vampiros na cave. Assim que perceberem que foi avistada, aparecem por aqui. Este sítio está prestes a ficar muito cheio. Fiquei ali sentada, aturdida.
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—Estamos fodidos. — É a opinião consensual. Neste momento, o plano é deixar que o Tomas a agarre e te leve daqui, enquanto o Louis-César e o mago ficam para trás e tentam abrandar toda a gente durante o tempo suficiente para você fugir. — Isso é suicídio! — Pois é, e o pior é que provavelmente nem vai dar certo. Estamos cercados, querida. Não há maneira de o Tomas conseguir passar por todos eles. — Merda. — Pensei por um segundo. — E os reforços? Fui interrompida por Louis-César, que me gritava ao ouvido. — Mademoiselle, consegue me ouvir? Sacudi-o antes que ele pudesse me tocar. — O que você quer? Estou um pouco ocupada. Ele me olhou com estranheza, mas moderou o tom de voz. — Tem de ir agora, mademoiselle. Lamento, mas não podemos lhe dar mais tempo para se recompor. — Não vou a lugar nenhum. O Tomas nunca conseguirá passar por um exército daqueles, e você sabe disso. Dois cavaleiros negros, seis mestres e pelo menos catorze outros vampiros?
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Descobri o aspecto com que Louis-César ficava quando alguém lhe perturbava a calma. — Como é possível saber aquilo com que nos deparamos? — Foi o servo fantasma dela que lhe disse. — Afirmou Pritkin, e eu reparei que ele estava novamente ajoelhado, concentrado nos escudos que se evaporavam rapidamente. — Consegue ver o Billy? — Eu estava surpresa. Poucas pessoas conseguiam. — Não. — Disse Pritkin, por entre dentes cerrados. Tinha o maxilar tão contraído que fazia sobressair o pequeno músculo lateral. — Mas me disseram o que você consegue fazer. Pelo menos certas coisas. — O suor escorria-lhe a fio pelo rosto, encharcando-lhe a camisa, e ele me olhava com desespero. — Se tiver mais truques, sugiro que os use. Eu só consigo abrandar o processo; não consigo pará-lo. Suspirei. Por que achava que iria me arrepender disto? — Me dê um minuto. Voltei lá dentro para saber se Billy Joe tinha alguma idéia brilhante. Tinha, mas não me agradou. — Não posso possuir o mago, porque ele está protegido contra mim. Mas você é muito mais forte sob a forma de espírito do que eu, porque está viva. Se conseguíssemos replicar o que aconteceu... — Não! Nem pense que vou possuir mais alguém! E se eu não conseguir voltar? E se ficar presa? Inventa outra coisa qualquer. — Não
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tinha me agradado ser Louis-César e decididamente não queria descobrir como era o interior de um feiticeiro de magia negra. — Não acho que vai ficar presa. Ele é um mago. Assim que você entrar, não terá muito tempo até que ele te obrigue a sair. Se conseguisse distraí-lo por uns minutos, aposto que os nossos três heróis conseguem dar conta dos vampiros. — Três contra vinte? Não parece que isso é ser um pouco otimista? — Você é quem não quer fazer. — Pode ter certeza. — Tem uma idéia melhor? Engoli em seco. Tinha de haver uma alternativa. O Senado tinha enviado três operacionais poderosos só para me arrastar de volta do Dante's, portanto me queriam muito. Se não regressássemos e ninguém se apresentasse, era certo que enviariam reforços, mas não havia maneira de saber o tempo que isso iria demorar. — Quanto tempo falta para o nascer do sol? Talvez consigamos agüentar os capangas do Tony até eles terem de procurar abrigo. O Louis-César deve ser capaz de tolerar um bocadinho de sol, e eu sei que o Tomas consegue. Billy Joe riu-se, mas não soou a contentamento. — Claro que sim, e acha que o nosso mago vai durar tanto tempo? Olhei de relance para Pritkin e não consegui contrapor. Tinha os
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olhos protuberantes e deviam ter arrebentado várias veias, porque parecia chorar lágrimas vermelhas. Mas eu não estava em posição de ajudá-lo. Já tinha visto muita magia em ação no decorrer dos anos, mas tinha acabado de executar o único passo que sabia, e Billy Joe não seria capaz de substituir esse tipo de perda de energia duas vezes. No entanto, se eu não fizesse nada rapidamente, o meu passeio para me vingar de Jimmy poderia acabar por custar três vidas. — Está bem. — Traguei um pouco de ar. — Faz lá isso. Eu não conseguia ver Billy Joe quando ele estava dentro de mim, mas sentia melhor as suas emoções do que quando lhe lia o rosto, e ele estava incrédulo. — Tem certeza? É que não quero ter de te ouvir por causa disso por toda a eternidade, se você acabar como um espírito permanente. Eu te conheço. Vai me assombrar. — Pensei que tinha dito que isso não ia acontecer! — Disse que provavelmente não aconteceria. Sou novo nisso. — Tal como me perguntou, tem outro plano? Porque se não tem... — Foi o mais longe que fui antes de Billy Joe embater contra mim como um zagueiro aplacando um atacante. Continuou a fazer força até eu chegar ao ponto em que teria cancelado tudo, feito qualquer coisa, dito qualquer coisa, para parar com aquela pressão horrível, mas eu não conseguia me mexer. Foi como ficar encurralada entre um rolo compressor e a encosta de uma montanha; não tinha para onde ir. Um segundo depois de ter concluído que iria morrer se a pressão não parasse, me senti subitamente voando em liberdade. Foi um enorme alívio, mas a sensação agradável de flutuar durou apenas um segundo, antes de eu me chocar contra algo que parecia uma parede de tijolos.
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Doeu tanto que, se não tivesse me ocorrido que não tinha corpo, pensaria ter todos os ossos do corpo partidos. Ouvi uma gargalhada ecoando ao meu redor. — Ah não, fantasminha. Já te disse. Não vai me enganar outra vez tão facilmente. Vá para casa, pra sua amante, antes que eu te mande para um lugar que não te agrade muito. Percebi do que era a parede; representava as sentinelas do mago, e estas eram muito mais potentes do que eu estava esperando. Mas eu não podia seguir o conselho dele. Não sabia voltar sem a ajuda de Billy Joe, portanto tinha de ir em frente. Ultrapassar estas sentinelas era literalmente uma questão de vida ou morte. Podemos nos proteger com qualquer coisa, desde que tenha um significado para nós: pedra, metal, água, até mesmo ar. É simplesmente uma maneira de visualizar e manipular o nosso poder. Eugenie protegiase com neblina, o que eu achava estranho, mas com ela parecia dar certo. As sentinelas do mago eram fortes, mas de um tipo bastante normal: tal como eu, ele imaginava uma parede, só que a dele era de madeira e a minha sempre fora de fogo. Quando me concentrava, conseguia ver uma fortaleza de árvores enormes, como a floresta de sequóias da Califórnia, elevando-se tanto que os seus cumes se perdiam de vista. É claro que, na realidade, elas não tinham “cumes”; eu sabia que, fosse qual fosse a linha da sentinela que eu decidisse percorrer, veria sempre esta mesma parede impenetrável. Olhei para trás, para onde tinha “aterrado”, e vi a marca do meu corpo carbonizada nos toros, lascando a madeira à sua volta devido ao impacto. Deve ter sido assim que ele sentiu a minha presença, o que me deu uma idéia. Eu nunca sequer ouvira falar de alguém que já tivesse
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feito isto, mas a verdade é que isso era válido para a maioria das coisas que tinham acontecido hoje. Em vez de me concentrar nas sentinelas dele, me concentrei nas minhas. Regra geral, não sinto as minhas defesas. A técnica está tão enraizada que é como caminhar ereta: é difícil quando se tem nove meses de idade, mas, quando se chega à idade adulta, não é preciso pensar para se atravessar uma sala. Mas agora demorei uns segundos me concentrando e a familiar cortina de chamas ergueu-se ao meu redor, um calor reconfortante em vez de um ardor cáustico. Concentreime mais e, lentamente, um pequeno rebento de fogo, em forma de mão de criança, saiu da minha sentinela para tocar no toro mais próximo. Incendiou-se como a madeira seca tacada pela luz do verão, e não tardou para que toda uma seção da parede ficasse em chamas. Ouvi vagamente o mago me amaldiçoando, fazendo ameaças e jurando me pregar a mais baixa parede do Inferno para toda a eternidade. Ignorei-o. Estava usando toda a minha força para manter a parede em chamas e recusando a permitir que nova madeira se consolidasse em torno da velha. Não tinha força suficiente para réplicas inteligentes. Por fim, depois do que pareceu ser uma semana, surgiu um buraquinho na parede. Não esperei que se tornasse maior e forcei a entrada. Era muito apertada e dava a sensação de que os meus flancos estavam sendo rasgados por farpas em cortes ensangüentados, apesar de saber que isso era impossível. De repente, o fumo e o fogo da floresta ardendo desapareceram e eu consegui ver. O escuro parque de estacionamento estendia-se à minha volta e uma brisa me soprava o rosto. Pritkin, Tomas e Louis-César estavam do outro lado do parque e o meu corpo olhava para mim de olhos arregalados. Gritei para Billy Joe.
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— Está tudo bem! Sou eu quem está controlando! — Então para com o maldito ataque! O Pritkin está quase tendo uma trombose! Olhei ao redor, confusa, depois espreitei lá para dentro. — Não estou fazendo nada! — Era verdade, pelo que conseguia perceber. Eu tinha partido do princípio de que me apoderar dele iria quebrar a concentração do mago e resolver o problema. Mas percebi que os escudos de Pritkin tinham diminuído a ponto de mal conseguir proteger os três homens, e era provável que falhassem a qualquer momento. — E agora? Vi o meu corpo se curvando e sussurrando para Pritkin. Ele olhou para mim e eu acenei. Os olhos dele se dilataram. Ele disse algo, mas eu não consegui perceber. — O quê? — A pulseira! — A minha voz ressoou pelo parque de estacionamento enquanto Billy Joe gritava do alto dos meus plenos pulmões. — Ele disse para você a destruir! Uma figura escura começou a correr na minha direção pelo parque de estacionamento. Dava a mesma sensação profundamente doentia que eu sentira com o mago, portanto não precisei de apresentações. De alguma maneira, o outro cavaleiro das trevas percebera o que estava acontecendo, e não gostou.
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Olhei para baixo e descobri uma pulseira no pulso esquerdo do mago. Era de prata e constituída por aquilo que pareciam ser pequenos punhais entrelaçados. Não encontrei o fecho; parecia estar soldada ao seu braço. Olhei para Pritkin e vi desespero no seu rosto. Bolas, esta coisa tinha de sair já. Como não consegui arrancá-la, a mordi, dilacerando-a com os dentes dele, concentrando-me na parte onde dois dos punhais se uniam. Finalmente, depois de ele ter os dedos cheios de sangue, ela se soltou. Não tive de perguntar se tinha feito o correto, já que Pritkin se deixou cair no chão, ofegando de alívio, e os vampiros à volta dele entraram em ação. Louis-César arremessou uma faca no vampiro que estava ao meu lado, que lhe teria arrancado a cabeça se não tivesse embatido contra o enorme colarinho de aço que ele usava. Mas isso não lhe fez ganhar muito tempo. Tomas estendeu uma mão e eu finalmente pude ver o que tinha acontecido anteriormente no depósito. O vampiro caiu de joelhos e emitiu um gorgolejo abafado, com o coração literalmente saltando do peito. Foi deslizando até Tomas, que o apanhou como se fosse uma bola de basebol ligeiramente maior do que o habitual. O outro cavaleiro das trevas estava a menos de dois carros de distância de mim. Parou e levantou uma mão e, de repente, eu não conseguia me mexer. Mas antes que eu conseguisse entrar em pânico, as três bruxas que eu ajudara a libertar no casino saíram detrás de um carro estacionado e formaram um círculo em volta dele. Eu estava prestes a gritar que fugissem, quando o mago sucumbiu subitamente, aos gritos, libertando a pressão sobre mim. Foi um alívio, mas não me senti melhor por muito tempo. O que parecia ser uma corrente de água gelada começou a me subir pelos pés. Eu não conseguia ver nada, mas as minhas sentinelas começaram a
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fervilhar em torno das nádegas. Se me concentrasse, conseguiria ver um riacho se erguendo do chão para fluir à minha volta. Mago esperto; conseguia se proteger com mais do que um elemento. E o meu fogo não parecia estar fazendo grande dano à água dele. À medida que as chamas surgiam, pequenos rebentos de madeira, alguns deles com galhos e folhas, começaram a enrolar-se pelas minhas pernas metafísicas acima. Ótimo. O mago das trevas ia ficar seriamente irritado quando voltasse à carga, coisa que, à velocidade a que ia, iria demorar cerca de dois minutos. — O que está acontecendo com você? — Um vampiro veio correndo até mim. Reconheci-o vagamente da corte de Tony, um louro grande e desmazelado que eu sempre achei que precisava de se bronzear — o seu aspecto de surfista não combinava com a pele morta branca. — Disse que conseguia neutralizá-lo! Ele vai limpar o chão com a gente! — Segui o gesto dele até ao local onde o combate tinha recomeçado. Indaguei-me sobre quem seria o “ele” a que o cara se referia, porque a mim todos os três me pareciam bastante letais. Pritkin podia ser um crápula do pior, mas era um elemento dos diabos para se ter a combater. Estava no chão, mas as suas espantosas facas suspensas tinham voltado. Na verdade, parecia que todo o seu arsenal estava em ação. Enquanto eu observava, ele arrebentou um vampiro com um tiro de metralhadora enquanto cinco facas eram lançadas sobre outro, uma delas quase o decapitando. O vampiro devia ser um mestre, porque não caiu, mas as facas animadas o seguiram, espetando-o repetidamente como um enxame de abelhas particularmente letais. Ele as enxotava, à medida que o sangue começava a verter de umas dezenas de cortes profundos, mas elas continuavam a voltar. Bramiu de raiva, mas preferiu ser cortado às fatias a fugir. Mas dois outros vampiros, que estavam sendo perseguidos por granadas, optaram por não seguir o seu exemplo. Decidi que, se era
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assim que Pritkin combatia quando estava meio morto, não queria vê-lo no auge da força. Tomas também estava se saindo bem, envolvendo dois vampiros numa luta de facas tão rápida e furiosa que eu não conseguia ver nada, a não ser uma ou outra lâmina a cintilar com as luzes do parque de estacionamento. Vários outros jaziam ao seu redor com os agora familiares buracos abertos no peito. Enquanto isso, Louis César decidira passar à ofensiva sozinho. Enquanto Pritkin e Tomas mantinham os atacantes ocupados, ele enfrentou o bando de vampiros à minha volta. O surfista nunca devia ter ouvido falar na reputação do francês, já que se lançou a ele e durou cerca de um segundo. Aquela espada de aspecto maléfico estava de novo em ação e o fato de o transformar em espeto nem sequer fez Louis-César atrasar o passo. Arremessou uma faca ao segundo mago das trevas, mas esta ricocheteou como se ele estivesse com uma armadura. Mas, fosse o que fosse que as três bruxas estivessem fazendo, surtia efeito. O mago estava no chão, debatendo-se para se levantar de forma tão ineficaz como um escaravelho virado de patas para o ar, enquanto elas começavam a cercá-lo, entoando cânticos em uníssono. Inicialmente, fiquei satisfeita por ver o francês, já que bastou que os outros vampiros à minha volta lhe lançassem um olhar apenas para fugirem, mas mudei rapidamente de idéia. Pestanejei e, não sei como, a lâmina ensangüentada de Louis-César surgiu debaixo do meu queixo. O seu olhar demonstrou muito claramente que ele não fazia idéia de quem eu era. — O teu Círculo cometeu um erro ao nos desafiar. — Me disse, calmamente, como se estivéssemos conversando numa festa. — Felizmente, monsieur, não preciso de você vivo para emitir uma
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declaração de guerra. Deve bastar deixar o teu corpo num local freqüentado pela tua gente. —Louis-César, não! — Eu não podia falar, com medo de que a espada dele espetasse mais minha garganta, mas a voz que vinha de trás dele era minha, tal como a mão que lhe agarrava no braço da espada. Parecia que Billy Joe decidira merecer o seu sustento. — Mademoiselle, por favor, volte para junto de Tomas. Isto não vai ser agradável. — O Tomas está um bocado ocupado agora. — Respondeu Billy. — E, seja como for, eu não sou a Cassie. Ela está aí dentro. — Apontou para mim. — E eu não sei o que irá acontecer se matar o corpo enquanto ela estiver aí. Talvez ela regresse, talvez não. A voz de Louis-César suavizou-se ligeiramente. — Está louca, mademoiselle. É possível que tenha um traumatismo e não pode fazer esforços. Dê-me um instante, que eu mesmo já a levo daqui. Engoli em seco. Eu sabia que, com a força que ele tinha, conseguiria trespassar-me com a espada mesmo com Billy Joe pendurado no seu braço. Também conseguia sentir o pânico do mago, e o medo dele alimentava o conflito de interesses que estávamos tendo. O fluxo do que parecia ser água gelada já me chegava aos joelhos. — Billy! Como é que eu saio daqui? — O movimento da minha boca empurrou o gume da faca para a pele do mago e eu senti uma corrente quente de sangue começar a gotejar-lhe do pescoço. Alguém gritou dentro da minha cabeça, mas eu ignorei.
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— Não sei. — Billy Joe agarrava no braço de Louis-César com as duas mãos e estava praticamente pendurado nele. O suor escorria do meu rosto, mas não parecia que ele estivesse fazendo qualquer diferença. — Estou aqui preso até que você volte. O teu corpo sabe que morrerá sem um espírito, por isso está me prendendo com toda a força. Não tenho como te ajudar. — Não acredito que me convenceu a fazer isto! — Como acha que eu me sinto? Não quero acabar dentro de uma mulher! — Fez uma pausa. — Bem, pelo menos não assim. Louis-César estava perdendo a paciência. Num rápido movimento que não fez tremelicar a espada nem um pouco, puxou Billy Joe contra si. — É melhor fechar os olhos, mademoiselle. Não quero perturbála ainda mais. — Acho que é seguro dizer que matá-la conta como perturbador. — Disse Billy Joe, com a voz abafada, mas Louis-César não estava prestando atenção. Ele me catalogara como uma fêmea histérica e não passava dali. Se eu conseguisse sair viva desta confusão, ia lhe mostrar o que era histerismo. Só me ocorria uma idéia, e era um tiro no escuro. — Não me mate! Eu sei da Françoise! — Foi só o que me ocorreu, a única coisa de Louis-César que eu sabia que o mago provavelmente não conheceria, mas não pareceu impressioná-lo muito.
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— Não se salvará com fracas mentiras, Jonathan. Conheço teus truques há muito tempo. — Então e Carcassonne? Hã? Então e aquela maldita sala de tortura? Eu a vi arder! Estivemos falando disso há umas horas! — Chega! Você vai morrer. Billy Joe deu um pontapé para cima no último instante e atingiu a lâmina de modo que ela trespassasse o ombro do mago e não o seu coração, mas doeu como o raio. Gritei e me contorci para trás, mas a lâmina era tão comprida que eu continuava presa a ela como uma borboleta num alfinete. Tive finalmente alguma ajuda quando um pequeno frasco voou até à minha mão. Aparentemente, o Sr. Mago decidiu que tínhamos uma causa em comum. O frasco parecia um dos pertencentes à fileira de pequenos recipientes que Pritkin tinha prendido ao cinturão, mas este tinha saltado de um bolso interior qualquer. A água fria já me chegava à cintura e eu não sabia o que iria acontecer se esta se apoderasse de mim, mas naquele momento estava mais preocupada com Louis-César. Não tentei resistir aos impulsos que me percorriam o cérebro, mas lhe atirei com o frasco. —Vou te matar antes que consigas proferir o encantamento — Prometeu ele, mas reparei que ele olhou para o frasquinho com um certo respeito. — Não preciso do encantamento a esta distância. Se me matar, morrerá em breve. E ela também. — As palavras surgiram na minha mente, mas não eram minhas. Ainda assim, as disse. Pareceram fazer efeito, pois Louis-César hesitou.
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O mago devia estar esperando aquela reação, porque aproveitou a oportunidade para avançar para a batalha interior. Eu já tinha água gelada pelo pescoço. — Billy! Ele está ganhando; o que eu faço? — Estou pensando... deixá-lo? — Billy Joe não pareceu muito seguro de si mesmo, mas ele já fizera isto muito mais do que eu. — O quê? Se ele respondeu, eu não ouvi, porque a água se fechou sobre a minha cabeça. Mas, em vez de me afogar, como quase estava à espera, senti-me abruptamente voando de novo. Aterrei com força, e a desorientação que havia sentido quando voltei com Tomas não foi nada, comparada com o que se passou comigo passado um segundo. Foi como se existissem duas de mim, cada uma delas seguindo numa direção diferente, despedaçando-me durante esse processo. Gritei e alguém me apertou em volta da cintura. O sangue me latejava nas veias como se estivesse prestes a explodir por cima da minha cabeça, e a dor erra horrível. A sensação era a de todas as enxaquecas que já tive na vida juntas numa só. Queria desmaiar, mas não tive essa sorte. Permaneci consciente enquanto o mundo balançava à minha volta como um carrossel desgovernado, até eu vomitar no asfalto. — Cassie, Cassie! — Billy Joe apareceu na minha frente, com os olhos tão dilatados que eu conseguia ver uma faixa branca em volta da pupila. Demorei um segundo para perceber que eram os olhos dele e que ele tinha a sua habitual indumentária de jogador-cowboymulherengo em vez da minha pele. A sua camisa plissada era vermelho vivo, os seus olhos cor de avelã tão vivos e astutos como se ele não estivesse morto há um século e meio. Naquele momento, acreditei realmente que conseguia esticar-me e lhe tocar, que ele estaria sólido. Depois me ocorreu que era a minha energia que lhe tornava os olhos tão
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brilhantes e o rosto corado. Sacana. Teria o descomposto por ter me drenado até eu ficar quase seca numa hora de necessidade, mas estava muito indisposta. Parecia que alguém entrara dentro de mim e me virara o estômago do avesso. Quis vomitar novamente, mas não tive energia para isso. Louis-César me pegou no colo como se eu pesasse tanto como uma boneca de pano e eu olhei em volta, desorientada. Como é que ele conseguia me pegar só com um braço? Não precisava do outro para encostar a espada no mago? Só que não havia nem mago nem corpo. Era só eu, um vampiro mestre e um fantasma muito bem abastecido; nada de preocupante. Nos juntamos a Pritkin e Tomas, comigo levada ao colo por não estar em condições de andar. Era difícil perceber onde estava a parte de cima, uma vez que esta parecia estar mudando regularmente. Reparei que Tomas se ocupava enfeitiçando um grupo bastante grande de pessoas, incluindo vários agentes da polícia, que tinham aparecido para ver o que era aquela agitação toda. Eu não sabia que ele conseguia enganar vários normais em simultâneo. Agora que penso nisso, não sabia que alguém o conseguia. Outra pista que me dizia que eu não estava lidando com um vampiro mediano. Não, aqueles caras estavam espalhados por toda a paisagem, entremeados com os metamorfos mortos. Os corações e as cabeças estavam a vários metros dos corpos, mas, pelo menos, pareciam estar todos lá. Pritkin guardava o seu arsenal, que pairava diante dele numa fila obediente, com cada arma aguardando a sua vez. Olhou para mim com olhos semi cerrados enquanto limpava e escondia as suas facas ensangüentadas.
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— Você possuiu um membro do Círculo Negro. — Disse ele, como se fosse uma novidade. — E tem bruxas poderosas ao seu serviço. Quem eram elas? Olhei de relance para onde tinham estado as mulheres, mas lá só estava o segundo cavaleiro das trevas, deitado num ângulo pouco natural, com a cara ossuda e branca virada para os primeiros raios de sol. Tinha os olhos abertos, mas duvido que visse alguma coisa. Percebi que deviam tê-lo matado, mas, naquele momento, isso não me interessava muito. — Não sei. — A voz me saiu muito rouca, o que, levando em conta a quantidade de maus tratos que as minhas cordas vocais tinham sofrido ultimamente, não devia ter sido uma surpresa. Mas foi. —Você não é humana. — Não era uma pergunta, e Pritkin parecia estar esperando que outra cabeça crescesse em mim a qualquer momento. — Lamento desiludi-lo, mas não sou um demônio. — Lhe disse. Ultimamente, parecia que tinha de dizer aquilo muitas vezes. Provavelmente não era bom sinal. — Então o que é? Billy Joe flutuou por ali, me erguendo o polegar e me lançando um sorriso atrevido. — Vou verificar umas coisas. Até logo.
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Suspirei. O sol estava quase nascendo, não era a melhor hora para me meter em problemas, mesmo em Vegas. Então, porque é que eu estava tão certa de que Billy Joe iria conseguir? — Sou a sua clarividente amigável das redondezas. — Disse a Pritkin, cansada. — Me pague adiantado, meu senhor, e eu lhe direi a sua sorte. Só que. — Fui interrompida por um enorme bocejo. — Provavelmente não irá lhe agradar. — Aninhei-me mais perto da parede de algodão quentinho atrás de mim e me deixei levar.
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Capítulo 9 Acordei com pequenos raios de sol nos olhos. Vinham de uma grande janela sobre a cama queen size em que alguém me deitou. Bocejei fazendo careta. Tinha a boca seca e com o gosto ruim, e os meus olhos estavam tão grudados que tive que forçá-los a abrir para ver. Quando consegui, pisquei, confusa. Não parecia um quarto mobiliado por vampiros, a menos que fosse o quarto de Louis-César. Era amarelo desde a pintura e o acabamento das paredes até à colcha de retalhos e às fronhas. Apenas uns detalhes em tons pastel no tapete entrelaçado e duas gravuras de inspiração indígena combatiam a maré amarela, mas pareciam estar em minoria. Sentei e logo percebi que não tinha sido uma boa idéia. O meu estômago ficou embrulhado, mas não havia nada para por pra fora. Eu me sentia tão fraca como se estivesse com gripe há uma semana e queria desesperadamente escovar os dentes. Quando o quarto parou de rodar, levantei tropeçando e comecei a explorar. Ao colocar cabeça para fora da porta do quarto, percebi duas coisas: estava de volta aos meus aposentos na MAGIC e tinha visitas. O curto corredor do lado de fora do meu quarto terminava na sala de estar para onde eu tinha sido levada antes do meu passeio não programado ao Dante's. Várias cabeças muito familiares viraram-se para mim e eu franzi-lhes a sobrancelha até localizar a entrada para um santuário com azulejos azuis a poucos metros. Alguém, e eu esperava mesmo que tivesse sido Rafe, tinha tirado as minhas roupas arruinadas e tinha me enrolado num robe turco. Era agradável, não fosse o fato de ser três vezes maior do que eu e me fazer tropeçar ridiculamente. Mas consegui chegar ao banheiro sem cair e fechei a porta na cara de Tomas.
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Pelo sim, pelo não, verifiquei a janela. Desta vez, nenhuma carinha zangada me cumprimentou. Ao invés do Marley, a sentinela tinha sido fortalecida a ponto de eu nem sequer ter de me concentrar para ver a cintilante teia prateada que bloqueava a minha única saída. Era um pouco exagerado, levando em conta que também havia um guarda humano armado do lado de fora. Seria de pensar que eles tinham algo realmente assustador ali dentro, em vez de uma clarividente dilapidada com aquilo que parecia ser a mãe de todas as ressacas. Fechei as cortinas e encolhi os ombros. Na verdade, não estava a espera de me safar duas vezes da mesma maneira. Embora eu tivesse tomado um banho longo, ninguém me interrompeu. O banho não ajudou muito. A minha lista de ferimentos tinha aumentado e eu estava exausta, embora tivesse tido, supunha eu, umas seis horas de sono. Tinha também recebido um presente. Alguém colocara com firmeza a pulseira do mago das trevas no meu pulso. E alguém a tinha consertado, porque havia um círculo perfeito de punhais minúsculos por baixo dos meus dedos, como contas de um rosário. Ótimo; exatamente o que eu precisava: mais uma peça de joalharia barata. Tentei tirá-la, mas não saía da minha mão, e não seria agradável tentar mordê-la. Da última vez tinha sido com os dentes do mago; desta vez seriam os meus. Saí rigidamente da banheira, me sentindo com cem anos, e olhei para o espelho. Nunca tinha sido particularmente vaidosa, mas foi um choque me ver com um aspecto tão pálido. Meu cabelo estava uma bagunça e quase solto da presilha. Arrumei-o melhor que pude apenas com as mãos, mas não havia nada a fazer em relação à minha pele magra nem aos círculos negros que envolviam meus olhos como se fosse um jogador profissional de futebol americano. Suponho que ser quase morta uma dúzia de vezes acaba com a aparência de uma pessoa.
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Afastei-me do espelho e procurei por minha roupa. Encontrei apenas as botas, que tinham sido limpas, engraxadas e guardadas atrás da porta. Não me pareceu que ficassem bem com o robe, por isso as deixei onde estavam. Teria dado qualquer coisa por, pelo menos, uma peça íntima limpa, mas não conseguia encontrar nenhuma. Acabei colocando o robe de volta e decidi ficar sem nada por baixo, em vez de voltar a vestir os restos esfarrapados e ensangüentados do que já tinha sido um belo conjunto de lingerie. Senti-me agradecida pelo robe ser grande já que, pelo menos, ficava toda coberta. Fazia-me parecer ter doze anos, mas talvez o Senado me arranjasse qualquer coisa se eu pedisse. Antes eles estavam de bom humor. Claro que isso foi antes de eu fugir e quase provocar a morte a três pessoas, quatro, se contarmos comigo. Respirei fundo e fui enfrentar a situação. Havia seis pessoas na sala, se contássemos com o golem ao canto. Demorei um segundo para percebê-lo porque as cortinas escuras tinham sido fechadas, bloqueando a luz do sol. As luzes estavam piscando por causa das sentinelas, mas a sala estava escura. Louis-César, ainda com o uniforme justo, estava encostado à prateleira da lareira, com ar tenso. Tomas estava na cadeira de pele vermelha junto à lareira. Ele e Rafe tinham vestidas calças pretas quase idênticas e camisas de seda de manga comprida, mas a de Tomas era negra como o seu cabelo e a de Rafe carmim claro. Rafe estava no divã com Mircea, que era o único do grupo com o mesmo aspecto da noite anterior. Olhando para ele, descontraído e elegante, quase podia acreditar que tinha adormecido acidentalmente na banheira e que nada do que se passara no Dante's tinha alguma vez acontecido. Aquele pensamento feliz foi esmagado pela imagem de Pritkin, todo vestido em caqui, como um caçador, de pé ao lado da porta. Não tirava os olhos de mim, como se quisesse ver a minha cabeça colocada por cima de uma
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placa dizendo PROBLEMA RESOLVIDO. Pois é, isto iria ser muito divertido. Rafe mexeu-se assim que me viu. — Mia Stella! Melhor se sentar, sim? Estávamos tão preocupados! — Me abraçou com força. — Eu e o lorde Mircea fomos ao quartel-general de Antonio no centro da cidade, mas você não estava lá. Se Louis-César e Tomas não tivessem te encontrado... — Mas encontraram, portanto está tudo bem, Rafe. — Ele assentiu com a cabeça e tentou me conduzir até ao sofá, mas eu não queria ficar ali presa. Não que eu fosse fugir, não importava onde me sentasse, mas não me agradava a idéia de estar confinada. Além disso, as únicas pessoas da sala em quem podia mais ou menos confiar eram Rafe e talvez Mircea e preferia estar onde conseguisse ver seus rostos. Sentei-me na almofada aos pés de Tomas e me concentrei em fechar o robe bem apertado. — Lamento, mas suas roupas eram irrecuperáveis. — Disse Rafe, pedindo desculpa. — Estão providenciando outras para você. — Tudo bem. — Não tentei prolongar a conversa. Estava prestes a saber o que o Senado queria e tinha certeza de que não iria gostar do que era, não ajudaria em nada criar um bom ambiente. — Mia Stella. — Rafe olhou de relance para Mircea, que levantou uma sobrancelha sem ajudar. Pobre Rafe; ficava sempre com os trabalhos difíceis. — Pode nos dizer quem é Françoise?
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O olhei fixamente. De todas as coisas que eu achei que ele poderia dizer, esta seria a última. Aliás, nem sequer estava na lista. — O quê? — Me falou sobre ela. — Disse Louis-César, vindo se abaixar à minha frente. Encolhi-me, muito embora ele tivesse me carregado no colo pelo estacionamento e nada tivesse acontecido. Não queria correr riscos. — No casino. — Não querem falar sobre Tony? Ele está vendendo escravos aos Elementais. — Nós sabemos. — Respondeu Mircea. — Uma das bruxas que você ajudou veio até o Círculo nos dizer onde estavam. Permitiram que eu tivesse um lugar no interrogatório, Antonio é responsabilidade minha. Os magos estão... bastante preocupados, como você pode imaginar. Eu estava confusa. — Talvez eu esteja meio devagar, mas porquê bruxas? Os humanos não seriam alvos mais fáceis? — As mulheres que eu libertei não eram fracas, como podia comprovar o mago morto. — Durante séculos, depois de as suas próprias linhagens começarem a se extinguir, foi essa a estratégia deles. Nunca ouviu as histórias sobre crianças humanas que foram levadas misteriosamente pelos Elementais? — Perguntou Mircea. Eu assenti com a cabeça era coisa comum nos contos de fadas. — Essas crianças eram criadas no mundo das Fadas e se casaram com esses seres. Isso melhorou a fertilidade, mas não demoraram em perceber que as capacidades
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mágicas dos filhos dessas uniões eram consideravelmente menores do que as suas. — Então começaram a roubar bruxas. — Sim, mas em 1624 foi feito um acordo entre os Elementais e o Círculo de Prata, que estabelecia que não ocorreriam mais seqüestros. — Suponho que agora este acordo não tenha muita validade. Mircea sorriu. — Pelo contrário. Os elfos da luz juram que não sabem nada sobre esta prática e que apenas os das trevas estão envolvidos. — Franzi a sobrancelha. Pelo que Billy disse, parecia que a verdade era justamente o contrario. — Os das trevas, com certeza, afirmam o inverso. — Disse Mircea, ao reparar na minha expressão. — Mas, seja como for, não é da nossa conta. Não seremos arrastados para as políticas dos Elementais por causa da ganância de uma pessoa, tal como dissemos claramente aos embaixadores deles há algumas horas. Lidaremos com Antonio, mas termina aí o nosso envolvimento. Eu não estava surpreendida. Apesar da sua presença na MAGIC, os vampiros nunca tinham se interessado muito pelos assuntos das outras espécies. Colaboravam até certo ponto apenas para protegerem seus próprios interesses. — Só uma bruxa é que se apresentou? O que aconteceu às outras duas? — Deviam ser das trevas. — Disse Pritkin, olhando para mim com olhos semi cerrados. — Interditadas pelo Círculo devido aos seus crimes.
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Caso contrário, não teriam fugido tão rapidamente. A nossa bruxa sabia pouco sobre elas porque estiveram quase sempre amordaçadas. Mas disse que uma delas a reconheceu e insistiu que as ajudasse contra o mago das trevas. Porém, você disse que não as conhecia. — E não conheço. — Não podia falar sobre Françoise, soaria loucura, e nem eu mesma compreendia. Os feiticeiros vivem mais tempo do que a maioria dos humanos, mas, bruxa ou não, se era mesmo ela naquele castelo francês, já deveria ter morrido de velhice. Sem falar que seria preciso uma ótima memória para reconhecer imediatamente o rosto de uma pessoa que tinha visto durante alguns minutos centenas de anos antes. Eu a reconheci porque, para mim, o nosso encontro tinha acabado de acontecer. Mas como é que ela tinha me reconhecido era uma questão em aberto. — E suponho que também não conhece a duende que a ajudou a libertar suas servas? É muito conhecida dos Elementais das trevas. Pritkin estava me irritando. — Não, não conheço. E elas não eram minhas servas. — Disse que viu Françoise ser queimada até à morte. — LouisCésar era aparentemente um homem determinado. Decidi acompanhar o comentário dele, já que Pritkin não acreditava em nada do que eu dizia. — O que aconteceu com o mago? Morreu? — Estão Vendo? Ela nem sequer tenta negar!
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Pritkin atravessou a sala a passos largos. Eu teria percebido a irritação dele mesmo que não conseguisse vê-lo, uma vez que o meu novo brinquedo saltou no meu pulso como um choque elétrico. Consegui não gritar, mas enfiei a mão mais fundo no bolso do robe para que a pulseira não ficasse à mostra. Algo me dizia que Pritkin não iria ficar contente de ver aquilo. Tomas veio se colocar entre nós. Fiquei nervosa por não tê-lo visto, mas me senti agradecida por ter uma barreira entre mim e o mago. Os capangas de Tony sempre tinham acreditado que os magos de guerra eram perigosos, sedentos de sangue e malucos. Tendo em vista que as pessoas que diziam isto eram assassinos em série que trabalhavam para um vampiro homicida, eu poderia dar crédito a sua opinião. — Porque eu teria que negar? O fato de tê-lo possuído lhe salvou a vida. — Não estava à espera de um obrigado, mas teria sido simpático se ele tivesse parado de me olhar ameaçadoramente. — Teria preferido morrer a ser salvo pelas artes das trevas! — Lembraremos disso da próxima vez. — Disse Tomas. Dei uma risadinha. Não estava tentando enfrentar ninguém, mas me sentia tonta de fome e exausta. Naquele momento, era de fato engraçado. Só Pritkin não parecia achar o mesmo. Mircea se levantou quando alguém bateu à porta. — Ah, o lanche. A disposição melhorar depois de comermos. — Um jovem entrou com um carrinho que me deu água na boca só com o cheiro.
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Passados alguns minutos, eu estava em meio a um prato de panquecas, salsichas, batatas fritas e fruta fresca. Tinham sido servidos numa bela travessa de prata com pratos de porcelana verdadeira, guardanapos de linho e mel de ácer genuíno, melhorando consideravelmente a minha disposição em relação ao Senado. Tinha acabado de me servir de mais chá quando Pritkin fez um som de desagrado. Não conseguia imaginar qual seria o seu problema; ele também tinha um prato. — Nada te incomoda, não é? — Indagou. Reparei que ele não só não estava comendo como me olhava da mesma maneira que eu provavelmente olhei para os homens-ratazana no casino. Como se eu fosse algo que ele não conseguia entender, mas de que sabia não gostar. Como tinha a boca cheia, ergui-lhe uma sobrancelha. Ele gesticulou ferozmente. — Olhe para eles! Espetei um pouco de salsicha num garfo e olhei em redor. Os vampiros estavam se alimentando, mas não comiam panquecas. Eles conseguem comer comida sólida, como Tomas provou muitas vezes, mas não conseguem obter nutrientes a partir dela. Só há uma coisa que lhes dá isso, e eles estavam aproveitando ao máximo. Aparentemente, LouisCésar já tinha comido, ou se fosse verdade o que se dizia do Senado, que seus membros eram tão poderosos que só precisavam se alimentar uma vez por semana. Porém, Rafe, Mircea e Tomas tinham se juntado a mim para o lanche e estavam se alimentando dos híbridos homens-sátiros do Dante's. Enquanto crescia, tinha visto tantas vezes cenas como esta que não me incomodavam mais. Todos os prisioneiros capturados vivos eram sempre usados como alimento. Uma das poucas coisas que é considerada verdadeiramente depravada nos círculos dos vampiros é
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desperdiçar sangue, mesmo o dos metamorfos. O sangue é precioso; o sangue é vida. Eu cresci com esse mantra; aparentemente Pritkin não. A única coisa que me chamou a atenção foi a imagem de Tomas se alimentando do pescoço de um atraente jovem metamorfo que me parecia vagamente familiar. Tinha olhos castanhos chocolate que combinavam com o pêlo escuro que lhe começava no meio das costas e cobria suas partes íntimas. Estava nu e suas mãos e pés tinham sido amarradas com grossas correntes de prata. Aquele era o procedimento padrão, uma vez que a humilhação fazia parte do castigo, mas eu pensei que não fosse ajudar muito neste caso. Não sabia o que ele sentia em relação às correntes — os metamorfos não gostavam de prata — mas, na verdade, os sátiros preferiam estar nús. Acreditam que o ato de vestir roupa sugere que têm algo a esconder, que há partes do seu corpo que não são perfeitas. Este não tinha nada de que se envergonhar, e o seu corpo reagia à alimentação da maneira habitual, tornando-o ainda mais impressionante. Mas devia ter sido uma reação involuntária; o seu rosto estava tão desfigurado de medo que demorei um minuto a identificá-lo como o empregado que tinha me cumprimentado no bar de sátiros. A cena me incomodou, e não foi por conhecer o metamorfo nem por ele estar obviamente aterrorizado. Era melhor que ele aprendesse a sua lição agora e evitasse testar a paciência do Senado no futuro; eles não eram conhecidos por darem terceiras oportunidades. Concluí finalmente que o meu cérebro estava se opondo à imagem das presas que se expandiam dos lábios de Tomas e a vê-lo engolir o sangue do sátiro como se fosse sua bebida preferida. Parecia que ainda era difícil pra eu colocar "Tomas" e "vampiro" na mesma categoria. Apesar do meu desconforto, não desviei o olhar. Era considerado sinal de fraqueza demonstrar emoção quando se testemunhava um castigo, e má educação ignorá-lo, já que a idéia de o fazer em público era para que pudesse ser visto. No entanto, voltei a focar a minha atenção em Mircea.
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Observá-lo a desfrutar da sua refeição me incomodava menos do que olhar para Tomas, e, fosse como fosse, ele estava no meu campo de visão. — Pensava que não gostava de sangue de metamorfo. — Disse eu, tentando fazer o que era considerada uma conversa normal nas cortes. Mircea estava presente quando Tony executou o alfa, mas negou a honra de o drenar. — Antes me disse que tinha um gosto amargo. — É um gosto que se adquire. — Respondeu Mircea, deixando cair no chão o metamorfo negro que estava pendurado em seus joelhos. — Mas não posso ser indelicado. Vou precisar de força esta noite. Servi-me de mais chá e olhei com cobiça para o prato intocado de Pritkin. — Não vai comer isso? — Não consegui evitar; por algum motivo, estava faminta, provavelmente graças a Billy Joe. O mago me ignorou, fitando com horror o metamorfo inconsciente. Mircea fez deslizar o prato do mago até mim e me lancei agradecida a ele. — Antonio voltou a ter problemas com aquela matilha depois do líder deles ser morto? — Perguntou ele, como se soubesse o que eu estava pensando. Coloquei mel sobre as panquecas intocadas do mago e as cobri com manteiga. — Acho que não. Pelo menos eu nunca mais ouvi falar em problemas. Mas Tony nem sempre me contava tudo. Mircea me lançou um olhar irônico. — Já somos dois, dulceata. Bogãtia stricã pe om28. 28
Significa: “Doçura. Riquezas são a ruína do homem”.
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— Sabe que não entendo romeno, Mircea. — A prosperidade, tal como o desejo, arruína muita gente. Balancei a cabeça. Não era possível que Tony fosse se arriscar a enfurecer o Senado e o Círculo apenas pelo lucro. — Acho que o que Tony quer é poder. Ele tem dinheiro. — É muito sábia para a idade que tem. São os seus fantasmas que lhe ensinam essas coisas? Quase derramei chá quente por cima de Tomas. — Ha! Não me parece. — As únicas coisas que Billy me ensinou foram uns truques de cartas ilegais e meia dúzia de versos sujos. — Está se ouvindo? — Pritkin olhava para mim com repugnância. — Essa coisa acabou de cometer um assassinato e você nem sequer piscou! Está escravizando os espíritos dos mortos, como fez ao seu servo fantasma e às bruxas das trevas? É por isso que está aí sentada sem dizer nada? Quase decidi que não valia a pena me dar ao trabalho. Mas estava me sentindo muito melhor depois de ter devorado as panquecas e Pritkin precisava mesmo acordar para a vida. — Antes de mais nada, o metamorfo não está morto; apenas desmaiou. Em segundo lugar, eu não “escravizo” espíritos; pelo que sei, isso nem sequer é possível. E, em terceiro lugar, os metamorfos não deixam fantasmas. Os vampiros também não. Não sei porquê, mas é assim.
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— Porque as almas deles já foram para o Inferno? — perguntou ele, aparentemente despreocupado com os olhares que Mircea e Rafe lhe lançaram. Os outros não reagiram; Tomas por estar comendo e Louis-César por estar aparentemente sofrendo de uma séria enxaqueca. — Quando o vi em ação no Senado, fiquei pensando se teria uma atração pelo abismo. Começo a pensar que tem mesmo. — Então admite que vão me matar mais cedo ou mais tarde. Olhei de relance para Mircea, que parecia estar contemplando a idéia de comer sobremesa. — Mais cedo do que imagina. — Achei melhor explicar antes que o mago tivesse um ataque. — Este sujeito fazia parte de um grupo que tentou nos matar há umas horas. Mas os vampiros não vão matá-lo, pelo menos desta vez. Dá-se um aviso pelo primeiro delito, juntamente com uma lição concreta que o torne memorável. Se a lição for suficientemente impressionante, a maior parte das pessoas não precisa ser avisada uma segunda vez. Pritkin parecia enojado. — Então, eles não são monstros e bestas assassinas, são só incompreendidos; é isso? Mircea estava tentando não rir. Não estava fazendo um grande esforço. Senti os meus próprios lábios tremendo quando cruzei o olhar com ele. — É uma besta assassina, Mircea?
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— Com certeza que sim, dulceata. — Respondeu alegremente. Mircea piscou o olho antes de trocar a sua vítima amedrontada por outra que acabara de chegar. Esta era humana, parte do exercito diurno de Tony, descobri. Devia ser um daqueles contratados pelos músculos e não pelo cérebro, pois os seus olhos cor de avelã brilhavam com um ultraje que ele não se esforçava por esconder. Aparentemente, já tinha ofendido alguém, uma vez que, a acrescentar às correntes nos tornozelos e pulsos, tinha uma mordaça enfiada na boca. Olhei de relance para Pritkin e o vi enrijecer o maxilar. Se ele se opunha ao castigo dado aos metamorfos por provocação, o que pensaria sobre um humano passar pelo mesmo? Talvez pelo fato do jovem ter um ar tão rebelde, Mircea passou pelo pescoço, a habitual fonte de alimentação, sem lhe lançar mais do que um olhar contemplativo. Fisicamente, o homem se aproximava da perfeição, com cachos acobreados desarrumados, feições clássicas e músculos bem definidos. Mas, mesmo abaixo do mamilo esquerdo, tinha uma pequena cicatriz que chamou a atenção de Mircea. Os dedos brancos e compridos do vampiro percorreram a pequena imperfeição como se a estivesse gravando em sua memória — ou, conhecendo Mircea, a pensar em acrescentar uma semelhante do outro lado. O peito é outra fonte de alimentação popular, e o homem se encolheu como se soubesse disso. Vi o suor a escorrer pelo lábio superior e ele engoliu nervosamente em seco. A protuberância escondida nos espessos pêlos ruivos do peito do homem levantou-se tentadoramente ao toque de Mircea e ele ficou nervoso. O homem se balançou, com os olhos dilatados, mas não se afastou mais de meio metro antes que um aceno de cabeça de Mircea fizesse Rafe devolvê-lo ao sofá. O prisioneiro estava tenso devido ao toque do corpo de Rafe encostado às suas costas, com um braço lhe envolvendo a cintura como um torno. Parecia estar mais preocupado com ele do que com a maneira
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como Mircea lhe observava os pontos de pulsação — como se estivesse se decidindo entre pratos preferidos num menu. O homem ergueu o olhar, cruzando-o com o meu, e os seus olhos se dilataram de surpresa, como se, pela primeira vez, reparasse que havia mais pessoas na sala. O rubor que já lhe coloria o rosto desceu rapidamente até o meio do peito. Fazendo-me pensar há quanto tempo estaria sob as ordens de Tony; a maioria deles não corava nem em vida. Mas ele se esqueceu de mim quando as mãos ilusoriamente esguias de Mircea o forçaram subitamente a se ajoelhar. Não percebia que se debater só tornava as coisas mais divertidas para os vampiros, e os seus músculos das pernas e das coxas incharam quando ele resistiu. Vi a direção que tomava o olhar de Mircea e percebi o que aconteceria depois. O homem foi arrastado para o sofá e os seus joelhos foram abertos à força. Ele parecia mais preocupado com o fato de estar exposto diante de um grupo de estranhos do que com o perigo iminente que corria, mas, quando um conjunto de presas perfeitas e reluzentes surgiu no rosto atraente de Mircea, se esqueceu da vergonha. Tentou rebolar para fora do sofá, mas os tornozelos e braços acorrentados não permitiram grande liberdade de movimentos. Mircea tornou a colocá-lo de joelhos, para obter um melhor ângulo, mas não o atacou de imediato. Prolongou o momento, deixando que o pânico do homem aumentasse à medida que percebia exatamente a força que um vampiro podia ter. Debatia-se tentando escapar do aperto de Mircea, com pequenas lamúrias que escapavam da mordaça. Até eu conseguia ver a artéria femoral, notoriamente inchada na coxa em esforço. Quando os seus esforços de resistência enfraqueceram, fosse devido ao cansaço ou por não ter acontecido mais nada, Mircea atacou, afundando aquelas presas na pele sedosa na junção da coxa do homem. Um grito abafado escapou por detrás da mordaça quando a artéria foi atingida, e os olhos dele saltaram quando os lábios de Mircea selaram a
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mordida e começaram a sugar. Ele tornou a tentar resistir, mas Rafe se aproximou para garantir que o seu mestre conseguiria se alimentar sem ter que se preocupar em refrear a refeição. Foi clara a retração de Pritkin quando Rafe mordeu subitamente a jugular tensa, mas foi suficientemente esperto para não interferir. Os vampiros estavam no seu direito, desde que a alimentação fosse suspensa pouco antes da morte. Olhando para a expressão do prisioneiro, me perguntei se alguém teria lhe dito isso. Não sei porquê, tinha dúvidas. Mas, embora não fosse uma cena agradável, não gostei da repulsa no rosto do mago. O homem era um potencial assassino que se ia safar com muito pouco. E a verdade é que Pritkin não tinha moral para falar. — Quantos matou esta noite, Pritkin? Meia dúzia? Mais? Perdi a conta. O mago se enraiveceu. — Isso foi em legítima defesa e para a proteger das conseqüências da sua loucura. — Olhou para o homem, que começara a soluçar como um bebê, com uma raiva crescente. Corou e colocou as mãos na cintura enquanto o prisioneiro contorcia selvagemente o corpo, num esforço para fugir à dor lancinante que cada puxão dos lábios provocava. — Isto é grotesco. Eu teria considerado muito mais grotesco se tivesse sido eu a acabar me contorcendo de agonia para que o fulano pudesse embolsar uma recompensa de Tony. Mas eu sou assim: prática. — Eles têm que se alimentar. Preferia que caçassem livremente como nos maus velhos tempos?
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— Todos sabem que eles se alimentam de quem não consegue se defender! O Círculo foi criado para dar aos humanos uma chance de combaterem estas coisas, mas você, supostamente uma humana, fica aí sentada a os defendo! Você me enoja mais do que eles. — Pritkin queria uma briga. Era visível na posição do seu maxilar e na sua postura de pernas afastadas. Queria bater em alguém, mas não se atrevia a isso, portanto iria ficar pelo ataque verbal. Pena que eu não estava me sentindo muito diplomática. — Sou tão humana quanto você, e vi o que fez esta noite, Pritkin. Até o Círculo Negro se envolver, estava se divertindo, e tem consciência disso. Não me venha com esse papo da legítima defesa. Você é um predador. Cresci com predadores suficientes à minha volta para saber. Parei abruptamente porque o homem no sofá escolheu aquele momento para dar escândalo. Os vampiros devem ter pressentido, porque se recostaram observando quando a sua vítima foi atacada por um delicado tremor que se espalhou por todo o corpo como as ondas de um terremoto. Passados uns segundos, arqueou as costas num ângulo que parecia impossível, em que apenas as suas mãos atadas e a parte de trás das coxas se mantinham em contacto com o sofá. Depois, atingiu um clímax poderoso, com repetidos espasmos indefesos. Tinha a cabeça lançada para trás e os olhos queriam se fechar, mas Rafe prendeu-lhe o olhar, recusando ao seu prisioneiro a mínima hipótese de se distanciar do que ia acontecer. O homem fitou-o, de olhos arregalados e tremendo, enquanto ejaculava sobre o próprio corpo bronzeado e na madeira polida do chão. Aquilo pareceu durar uma eternidade, como se o seu corpo não conseguisse se acalmar e ele continuasse a erupção até que o coração parasse. Mas, finalmente, terminou, desabando frouxamente para frente de modo a cobrir o rosto corado com o cabelo. Os vampiros o
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empurraram ligeiramente e o corpo caiu pesadamente no chão, entre o sofá e a mesa de centro. Percebi que tinham estado à espera que o efeito secundário sexual da alimentação o atingisse antes de pararem, confiantes de que o triplo feitiço de humilhação, dor e medo fossem suficientes para garantir que nunca mais teriam de lidar com ele. A julgar pelo olhar arrasado no seu rosto enquanto estava deitado, tremendo, aposto que tinham conseguido. O mago não olhou deliberadamente para o corpo patético no chão. Sentia-me ligeiramente culpada por eu própria não estar mais transtornada por causa do homem. Não estava certa se deveria estar, mas olhar para o rosto fixo de Pritkin me fez pensar. Também me deixou na defensiva, embora eu tivesse dito a verdade. — Os vampiros não andam por aí matando humanos, a não ser que os humanos tentem matá-los primeiro. O Senado não gosta disso — há grandes probabilidades de alguém os ver e começar com rumores perigosos, ou de que um vampiro recente não consiga desfazer-se de um cadáver e dê início a uma investigação. A caça sem restrições não é legal desde 1583, altura em que o Senado Europeu estabeleceu um acordo com o seu Círculo. Nem os capangas de Tony o fazem. — Fico aliviado ao ouvir isso. — Comentou Mircea, retirando um lenço com um monograma para limpar a boca. À exceção dos lábios, não tinha uma única mácula — era de prática, supunha eu. Uma vez que não se tinha dado ao trabalho de absorver o excesso de sangue, imaginei que estivesse saciado. O cara deve ter agüentado mais do que ele esperava. — Sei o que dizem as leis deles. — Pritkin olhou ao redor da sala com uma expressão de desdém: eu começava a me perguntar se ele teria outra expressão. — Mas existem milhares de vampiros espalhados pelo mundo. A maioria deles alimenta-se, pelo menos, dia sim, dia não.
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Isso são muitos inimigos. Ou vai me dizer que sobrevivem com o sangue de animais? Eu sei que isso é mentira! — Não ponha palavras na minha boca. — Reparei que nenhum dos vampiros se deu ao trabalho de se defender. Talvez estivessem cansados daquilo, ou pensassem que Pritkin não valia o esforço. Ou talvez tivessem dúvidas de que ele acreditasse em algo que tivessem para dizer. Provavelmente tinham razão, mas a mim não me agradava deixá-lo com a última palavra. — Os vampiros nunca desperdiçam sangue, por isso todos os inimigos vivos são tratados desta maneira. Mas é permitida uma segunda oportunidade, coisa que, pelo que ouvi dizer, é mais do que o seu Círculo dá aos feiticeiros vigaristas. Só os vampiros recebem uma sentença automática de morte por desrespeito. Pritkin olhava com impotência para o humano que tentava rastejar dali para fora com os membros atados, os olhos ainda dilatados pelo choque, mas que foi impedido pelo cansaço e pela restrição de movimentos. A falta de sangue tornou-o desajeitado e ele escorregou duas vezes no chão pegajoso. Finalmente atingiu a porta com um movimento ondulante, mas não adiantou, pois não conseguiu abrir a fechadura. Tentou usar a boca, mas falhou, e teve que se virar novamente para a sala para se levantar se apoiando à porta com as mãos atadas. Finalmente senti uma ponta de pena por ele, apesar de ser provável que ele tivesse enfiado uma bala na minha cabeça sem pensar duas vezes antes. Era difícil pensar nele como um assassino cruel, com o seu sexo flácido pendurado no meio das coxas pegajosas e o pescoço e a virilha a verterem linhas de sangue que não podia limpar. Fiquei muito contente por, desta vez, ele não ter cruzado o olhar com ninguém. O rosto de Pritkin estava irado quando se virou para mim.
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— Está me dizendo que eles castigam mais os da sua espécie do que os forasteiros? É mentira. Os monstros não entendem nada de misericórdia! Encolhi os ombros. — Acredite no que quiser, mas é verdade. Não está vendo aqui nenhum vampiro, está? Se algum tiver sido feito prisioneiro, há esta hora já terá sido estacado. — Partindo do princípio de que reagiam bem ao interrogatório. Caso contrário Jack estaria provavelmente tendo um dia cheio. — Não é uma questão de misericórdia, Mago Pritkin, lhe asseguro. — Interpôs Rafe, com os olhos no homem que agora se agarrava à porta com as mãos atadas. — Simplesmente não achamos que sua gente seja uma grande ameaça. — Pritkin fez um som de repulsa e caminhou a passos largos para abrir a porta. O homem caiu de costas no corredor e vários servos olharam para ele com surpresa antes de o levarem para ouvir seu sermão. Duvido que precisasse dele. — Então, como é que eles se alimentam habitualmente? Espera que acredite que não irão terminar mais tarde o que começaram, quando não houver testemunhas? — Era óbvio que Pritkin não iria desistir. Eu não podia acreditar que ele não sabia. Na corte de Tony, nunca vi um mago mostrar surpresa durante uma alimentação. Talvez eles tivessem simplesmente aprendido a controlar a expressão, mas eu fiquei com a idéia que não seria um grande segredo. Porém, Pritkin parecia genuinamente confuso. Mas o que será que ensinam aos magos de guerra? Olhei para Mircea. — Quer mostrar?
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Mircea riu, encantado. — Adoraria, dulceata, mas não tenho confiança em mim mesmo. A tentação de nos livrar da presença irritante dele seria demais, e a Consulesa disse especificamente que não deveríamos lhe fazer mal, a não ser que nos desse motivo para isso. — Deslizou os olhos na direção de Pritkin. — E, infelizmente, até agora tem se comportado. — Falo de mim. — Não. — Tomas falou em voz alta, me fazendo dar um ligeiro pulo de surpresa. Ele tinha estado tão quieto que eu quase me esqueci de que estava ali. — Ela não pode ser machucada. — Parece, Tomas, que essa é a conclusão a que a nossa querida Cassandra quer chegar. — Respondeu Mircea. — Que isto, quando feito em condições, não é prejudicial. — Olhou para mim. — Deve ter sido uma doadora regular na corte, certo? Conhece o procedimento? Assenti com a cabeça. — Sim, para não falar que alimento um fantasma voraz de vez em quando. — Tendo feito as duas coisas, sabia que o que os vampiros faziam pouco diferença das alimentações de Billy Joe, com a diferença de que ele conseguia absorver energia vital de forma direta e eles tinham de obtê-la através do sangue. Billy conseguia pular essa parte, o que era bom, visto que o seu corpo estava em algum lugar no fundo do Mississípi. Ele teria dificuldades em metabolizar até uma dieta líquida. Mircea deslizou até mim com aquela graça particular que tinha. Todos os não-mortos a tinham, mas ele fazia até a maioria dos vampiros parecer desajeitada. Era um veterano naquilo; eu sabia que ele não iria
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me magoar e estava satisfeito para tirar muito. Era a Billy Joe a quem eu queria esganar — se esse covarde não tivesse fugido não sei para onde. As alimentações de Billy geralmente não me incomodavam, pois eu conseguia repor a energia que ele me tirava com comida e descanso. Mas ele sabia as regras sobre a quantidade que eu estava disposta a doar de cada vez e esta noite ele quebrara todas. — O que é que vai fazer? — Pritkin começou a avançar, mas Tomas não o deixou passar. Mas também não parecia contente. — Certifique-se de que ele tem uma boa visão, Tomas. —Disse Mircea, olhando para mim com um ar pensativo. — Farei isto apenas uma vez. Cassandra já está cansada e nós temos muito sobre o que falar. Não quero adormecê-la. — Sorriu e colocou a mão sob o meu queixo. Parecia quente, mas a verdade é que parecia sempre. Os antigos não têm flutuações de temperatura relacionadas com o fato de terem comido recentemente ou não. — Não vou te machucar. — Prometeu. Veio a minha mente a razão por que sempre gostara de Mircea. Os olhos castanhos profundos e o físico gracioso tinham certamente tido o seu papel, sendo os hormônios adolescentes como são, mas a sua aparência teve menos importância para mim do que a sua honestidade. Nunca na vida o apanhei numa mentira. Estava certa de que ele era um mentiroso convincente quando queria — seria quase impossível trabalhar na corte de outra forma — mas comigo sempre foi sincero. Pode parecer coisa sem importância, mas, num sistema regido pelo engano e o subterfúgio, a sinceridade era inestimável. Sorri, apenas em parte por causa de Pritkin. — Eu sei.
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Pritkin não conseguia chegar até mim, mas conseguia gritar. — Isto é loucura! Vai deixar ele se alimentar de você? Por livre vontade? Vai acabar como um deles! Mircea respondeu por mim, com os olhos escuros fixos nos meus. Não eram de um castanho verdadeiro, percebi, mas sim uma combinação de muitas cores: café com leite, canela, dourado e uns vestígios de verde-escuro. Eram lindos. — Se nos alimentássemos livremente da população, como você pensa, Mago Pritkin, como conseguiríamos evitar a criação de milhares ou até milhões de novos vampiros? Só são necessárias três mordidas em dias consecutivos de um mestre de sétimo nível ou superior. Acredita que, se não tivéssemos restrições, isso não iria acontecer repetidamente? Fosse por acidente ou de forma intencional? Não levaria muito tempo para deixarmos de ser meramente um mito e voltaríamos a sermos caçados. Parou, mas não precisava continuar. Eu não podia acreditar que Pritkin não soubesse o que tinha acontecido a Drácula, e o próprio Mircea por muitas vezes quase tinha sido apanhado e morto nos primeiros anos. Radu, o seu irmão mais novo, não teve a mesma sorte. Tinha sido levado por uma multidão em Paris e entregue à Inquisição. Haviam torturado-o por bem mais de um século até ele ficar perigosamente louco, altura em que Mircea finalmente o encontrou e libertou. Radu estava preso desde então. — Já houve uma guerra constante. — Continuou Mircea, como se soubesse o que eu estava pensando. — Entre nós e os humanos, entre famílias de vampiros, entre nós e os magos, e por aí vai. Até que os senados reagiram, até que disseram basta, caso contrário acabaria
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destruindo a nós mesmos. Ninguém quer voltar a isso, sobretudo ao conflito com os humanos. Mesmo que vencêssemos os milhares de milhões que se nos oporiam, acabaríamos perdendo, pois quem nos iria alimentar se eles não existissem? — Olhou para Pritkin. — O nosso desejo de que haja muitos como nós correndo desenfreadamente, sem vigilância e sem esperança de secretismo, não é maior do que o teu. Mordemos para drenar um sujeito numa execução, ou para assustar, como aconteceu hoje com os prisioneiros. Mas, para uma alimentação normal. — Disse, desviando novamente a atenção para mim. — Preferimos um método mais dócil. — Sorriu, e foi como se o Sol ultrapassasse as nuvens depois de dias de chuva. Foi de tirar o fôlego. — O que vai fazer? — Pritkin olhou sobre os ombros de Tomas, me provocando. — Não vai reagir. — Quase parecia desiludido. Tomas se esticou e retirou a mão de Mircea do meu rosto. — Deixa-a em paz. Mircea olhou para ele com um ar divertido. — Ela se ofereceu, Tomas; você a ouviu. Qual é o problema? Eu prometi ser delicado. — Os olhos de Tomas brilharam e ele cerrou o maxilar. Não parecia estar gostando. Os olhos de Mircea se dilataram ligeiramente e depois faiscaram maliciosamente. — Desculpa; não percebi. Mas certamente não sentirá inveja de mim por experimentar o sabor? — Acariciou meu rosto, numa indolente carícia, mas tinha os olhos em Tomas. — Ela é tão doce quanto parece? — Tomas rosnou verdadeiramente, e desta vez sacudiu a mão de Mircea.
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Desejei que Mircea se afastasse com aquilo. Queria interrogar Pritkin e não podia fazê-lo enquanto ele continuasse com a sua fixação nos vampiros. — Podemos acabar com isto? — Se tem de ser feito, faço eu. — Disse Tomas, inclinando a cabeça na minha direção. Eu recuei imediatamente. — Na-na. Nunca concordei com isso. — Era verdade que devia umas coisas a Tomas, mas uma alimentação não era uma delas. Mircea riu de novo, num som rico e vibrante. — Tomas! Não disse a ela? — Não me disse o quê? — A minha disposição não estava melhorando. O brilho nos olhos de Mircea era malícia pura. — Que anda se alimentando de você há meses, dulceata, e que, como acontece com freqüência nesses casos, se tornou... territorial. Olhei para Tomas em choque. — Diga-me que ele está brincando. Ele tinha a resposta em seu rosto antes de falar, e eu senti o mundo desabar. Nos círculos de vampiros, a alimentação tem regras
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rígidas. O mesmo mortal não pode ser fonte de alimentação regular, uma vez que cria um sentimento de posse no vampiro envolvido e pode levar a todos os tipos de problemas por causa do ciúme. Mas tirar sangue sem autorização de alguém ligado ao próprio mundo é considerada uma violação ainda maior. Isso não se deve apenas à freqüente conseqüência sexual do processo de alimentação, mas também porque alguém que seja reconhecido como parte da comunidade sobrenatural tem direitos especiais. Tomas acabara de quebrar um conjunto inteiro de leis, para não dizer que voltara a me trair. Portanto, tudo nele tinha sido um truque vampiresco ou outro, desde a sua aparência aos meus sentimentos. Eu poderia acabar perdoando a trapaça, mas isto não. Não podia acreditar que o fizera, mas bastou eu olhar para ele para saber que o tinha feito. Tomas lambeu os lábios. — Não foi freqüente, Cassie. Eu sempre tinha que saber onde você estava, e as alimentações regulares estabelecem um laço. Ajudavam a te manter em segurança. — Mas como você é generoso. — Mal conseguia pronunciar as palavras; parecia que alguém tinha me batido. Comecei a me levantar — não sei bem porquê — quando Mircea pousou uma mão refreadora no meu ombro. Subitamente, estava com uma expressão séria, como se percebesse em parte o quanto à notícia tinha me afetado. — Tem todo o direito de estar irritada com Tomas, dulceata, mas esta não é a hora certa. A culpa é minha; não devia tê-lo provocado. Irei me conter, se você fizer o favor de esquecer, por enquanto. Caso contrário iremos desperdiçar o dia com discussões.
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— Não quero discutir. — Disse eu, e era verdade. Queria atirar qualquer coisa na cabeça de Tomas, de preferência algo pesado. Mas isso não me daria respostas, e, naquela altura, eu precisava mais de informações do que de vingança. — Tudo bem. Mas leve-o para longe de mim. — Combinado. Tomas, se não se importar? — Tomas estava com ar de quem ia discutir, mas, depois de uma notória pausa, se afastou cerca de um metro. Depois parou, com um ar obstinado. Eu teria forçado o assunto, mas ele iria se limitar a dizer que precisava estar por perto para vigiar Pritkin. Como a minha tendência era concordar com isso, fiquei calada. Mircea suspirou e envolveu novamente meu rosto com a mão em concha. Desta vez não prolongou o momento. Os seus dedos afagaram ternamente do meu queixo até ao pescoço e eu senti o poder dele me chamando. A sua carícia foi delicada, um toque leve, mas eu estremeci quando uma onda quente de prazer me percorreu o corpo, afastando parte do choque que os atos de Tomas tinham provocado. Senti um formigamento na pele e entre nós ergueu-se uma névoa de energia cintilante e deliciosa. De repente percebi a quem pertenciam as sentinelas que Billy Joe rompera anteriormente, a quem pedira emprestado o poder para se defender do ataque no Dante's. Era a mesma sensação atordoante, fervilhante e refrescante que eu senti no casino, um misto estonteante de desejo e alegria, fervor que era quase instantaneamente viciante. Sabia que devia estar irritada por causa das sentinelas que ele colocara em meu poder, mas ninguém poderia se deleitar naquela sensação e permanecer zangado. Era simplesmente impossível. Aquilo vertia sobre mim como se a luz do sol tivesse tomado forma e eu ri, maravilhada.
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Mircea começou quando as nossas energias se fundiram, depois ficou muito quieto. Eu mal reparei. Estava me afogando alegremente numa radiância gloriosa e dourada. Tinha a sensação de que ele estava me tocando em um lugar bem mais íntimo do que o meu pescoço e, por um segundo, pensei mesmo que o meu robe tivesse desaparecido e houvesse uma mão quente acariciando meu corpo todo. Tentei engolir, mas a boca ficou seca e a pulsação começou a latejar insistentemente em lugares mais macios. Tive vislumbres de uma noite do passado, em que eu e Mircea estávamos aninhados no divã do escritório de Tony, enquanto ele me afagava o cabelo e me contava uma história. Nessa visita, eu passara mais tempo com ele do que Tony, metade do tempo enroscada no seu colo, mas nunca tinha reagido desta forma. É verdade que tinha onze anos. Sentar agora no colo dele assumia uma conotação completamente nova. Mircea estava com uma expressão estranha, quase confusa, como se nunca tivesse me visto. Procurou o meu rosto por um instante, depois pegou em minha mão e curvou-se sobre ela. Senti um breve toque dos seus lábios, depois ele me soltou e recuou. Tudo aquilo demorara uns dez segundos talvez, mas me deixou sem fôlego, ruborizada e momentaneamente desanimada, como se tivessem roubado a coisa mais preciosa da minha vida. Quase me estiquei para ele, mas consegui parar antes que me humilhasse. Fiquei ali sentada, tentando desacelerar a pulsação para um nível que se aproximasse do normal, e o fitei. Tinha me esquecido de quão pessoal era a alimentação dos vampiros em relação ao que Billy fazia. Não tinha pensado nesse aspecto com Mircea, fato que agora me espantava. Ele possuía o carisma pelo qual a sua família era famosa, o seu poder era suficiente grande para ele ganhar e manter um lugar no Senado e não havia maneira de negar sua beleza masculina. É claro que eu nunca tinha conhecido Drácula, que
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morreu muito antes de eu nascer, nem o desafortunado Radu, mas, olhando para Mircea, podia perceber por que razão sua família se tornara lendária. Quando se conhecia um deles, não era provável que se esquecesse, independentemente das artimanhas usadas para apagar a memória. Ergui o olhar e vi Tomas com um ar desaprovador, os olhos desviando de Mircea para mim. Qual era o problema dele agora? Tinha acabado. Depois olhei de relance para o meu reflexo no espelho e vi que meus olhos tinham perdido a capacidade de focar, eu estava rosada e os meus lábios semi abertos. Estava com ar de quem tinha acabado de ter um bom sexo, o que não estava longe da verdade. Recompus rapidamente o rosto para perder um pouco o ar de esplendor. Pritkin parecia desiludido, como se tivesse gostado de ter visto algo que provocasse dor, em vez de prazer. — Não acredito que tenha se alimentado. Não tirou sangue; nem sequer rompeu a pele.
— Pelo contrário. — Mircea compôs o colarinho com um gesto quase nervoso. — Foi uma alimentação, se bem que muito rápida. Olhou de relance para Tomas como se fosse dizer qualquer coisa, mas decidiu se calar. De repente, lançou um sorriso voraz a Pritkin. — Rafael poderá fazer uma demonstração, se você quiser. Rafe atravessara a sala e envolvera o pulso de Pritkin com os dedos num abrir e fechar de olhos. O poder irrompeu do mago numa onda de pânico e eu senti a minha pulseira tremer no pulso.
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— Não vou machucá-lo. — Disse-lhe Rafe, desdenhosamente. — Não farei nada que não tivesse sido feito a Cassie. É menos corajoso do que ela? Pritkin não estava ouvindo. A expressão dele teria me feito começar a correr em busca de abrigo, mas Rafe se manteve firme. Não podia fazer outra coisa, já que recebera uma ordem direta do mestre do seu mestre. — Me largue, vampiro, ou vai se arrepender, em nome do Círculo! De repente, todos os elementos de Pritkin estavam à minha volta. Ele se protegeu tanto com terra, como com água, que fluíam dele em simultâneo, de modo que me senti como se estivesse sendo enterrada e afogada ao mesmo tempo. A minha pulseira saltava como se eu tivesse apanhado um pequeno animal selvagem que tentava desesperadamente fugir. Tentei respirar fundo e não consegui. Rasguei a gola do robe, mas não surtiu efeito; não era o material que ameaçava me sufocar. Arquejei em busca de ar, mas era como se os meus pulmões fossem saliências sólidas e pesadas no meu peito que tinham esquecido como se respira. Deslizei lentamente na cadeira, com a visão ficando turva. O meu único pensamento era que, numa sala cheia de vampiros, que sorte a minha ser morta pelo único humano além de mim.
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Capítulo 10 Uma mão quente deslizou por debaixo da minha gola e pousou de leve na pele da clavícula, me provocando um breve formigamento no braço. De repente, a sensação sufocante diminuiu um pouco. O ar estava pesado e difícil de respirar, mas eu agüentava. — Liberte-o, Rafael. — Clamou Mircea, e eu ergui o olhar e vi que tinha sido o toque dele a passar o poder do mago. Rafe obedeceu de imediato, limpando a mão à coxa como se não tivesse gostado mais de tocar em Pritkin do que ele de ser tocado. O mago tremeu com o esforço de recuperar o seu poder. Este continuou a fluir, mas com menos violência, como ondas a se enrolar à beira de um lago, ao invés de arrebentarem contra a costa. Mircea fez sinal com a cabeça a Rafe, que se dirigiu à porta e deu uma ordem a um dos servos. Passados alguns segundos, foi trazido mais um sátiro metamorfo. Era um jovem macho louro que, como os outros, tinha se reconvertido em sua forma não ameaçadora. O seu pêlo tinha um tom dourado queimado que combinava com o cabelo e o azul ressaltado dos olhos. Tinha mais de um metro e oitenta de altura e era tão bem constituído como a maioria dos sátiros. Se não nascem assim, trabalham para ficar, não há nada pior do que ser considerado pouco atraente, a não ser a sua impotência. Não que ele tivesse algum destes problemas. A incerteza da cela de contenção o fizera enfraquecer, mas se recuperou imediatamente quando me viu. Perdoei-o; eles não conseguiam literalmente se controlar.
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— Observe e aprenda, mago. — Rafael tirou uma faca e, sem aviso prévio, fez um corte superficial no peito do sátiro. A criatura nem gemeu, o que não me surpreendeu. Habitualmente não eram valentes, mas nunca, de livre vontade, demonstrariam medo diante de uma fêmea seminua. Rafe manteve a mão a cerca de meio metro do dorso do sátiro e, lentamente, como se puxadas por cordas invisíveis, começaram a saltar pelo ar entre eles gotas de sangue que lhe salpicaram a palma da mão. Assim que o tocaram, foram absorvidas. — Podemos fazê-lo sem o corte, sem qualquer tipo de ferimento. — Disse Mircea, calmamente. — A qualquer hora, a qualquer pessoa, em qualquer lugar. Um toque em você no metrô, um aperto de mão. — O olhar dele deslizou até mim. — Ou coisas mais prazerosas; isso bastará. Mantive o olhar nos olhos escuros de Mircea e, por um segundo, voltei a não conseguir respirar, embora desta vez estivesse combatendo o meu próprio corpo e não o poder de outro. Nenhum olhar deveria ter aquele aspeto, como se guardasse o segredo de todos os nossos sonhos, de cada desejo tornado espetacularmente realidade. A mão que ele mantinha na minha carne nua era, de repente, mais estimulante do que reconfortante. A expressão dele mudou e, antes de eu conseguir sequer pensar no que era, o meu corpo a interpretou como erótica. Na verdade, tive que me agarrar na cadeira para não me atirar para os braços dele. Nossa, por esta eu não esperava. Mircea se afastou depois de um momento, e parte do fluxo de calor que fluía pelo meu corpo se dissipou, mas o desejo se manteve. O problema, além do fato dele poder vir a ter que me matar por ordem da Consulesa era que eu não estava certa de quanto do que sentia era real e quanto era simplesmente aquilo que Mircea queria que eu sentisse. Pensei naquela primeira noite com Tomas e na sua tentativa de sedução.
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Custava a acreditar que ele tivesse ficado tão subjugado pela luxúria quando me viu enrolada na minha grande toalha com bonecos que não conseguisse se controlar. Tomas teria agido por ordem do Senado? Mircea estaria fazendo o mesmo? Eu sabia que Tomas não precisaria me tocar para se alimentar. Mircea não dissera a Pritkin, mas um mestre não necessita de contato físico. Qualquer um deles poderia ter me drenado a partir do outro lado da sala, tirando a minha vida sob a forma de partículas invisíveis e microscópicas que não seriam vistas nem reconhecidas por mais ninguém. E, se fossem tão bons como Mircea, não haveria sequer uma mancha negra ou outra marca indiciadora que revelasse que fora roubado sangue. Não me parecia que Pritkin reagisse muito bem a esta pequena informação, principalmente dada a expressão de sua cara de caça quase em pânico que ainda exibia. Parecia um homem que acordara de um sonho e se vira rodeado por monstros. Eu podia tê-lo acalmado, se ele acreditasse em alguma coisa que eu tivesse para dizer. A maioria dos vampiros não conseguiria se alimentar dele com facilidade, se é que conseguiam. As sentinelas dele eram com certeza fortes demais — ele teria que desativá-las para Rafe terminar a demonstração — e o seu treino provavelmente diria que estava se formando alguma espécie de ameaça. Mas um mortal não sentiria nada, a não ser, talvez, uma leve sensação de letargia. Só nos filmes é que os vampiros deixavam para trás um corpo com marcas de presas, a menos que quisessem provar alguma coisa. Não havia dúvida de que Tony iria receber alguns corpos em breve. Louis-César aproveitou aquele minuto para decidir que Mircea já tinha tido divertimento suficiente para um dia.
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— Se está tão interessado nos nossos hábitos, Mago Pritkin, posso lhe recomendar o estudo de vários tratados excelentes. No entanto, esta não é a hora certa. — Olhou para o colega. — O dia está acabando e a noite será cheia. Podemos prosseguir? Mircea inclinou a cabeça e deitou elegantemente no divã, parando para despir o casaco e atirá-lo para cima da mesa de centro. Também abriu a presilha de cima da camisa de colarinho alto, como se, de repente, a sala tivesse ficado quente demais. A camisa era de uma seda espessa cor de casca de ovo com um padrão chinês, que fechava com pequenas presilhas em vez de botões. O material tinha um brilho lustroso, daqueles por onde da vontade de passar as mãos para ver se é tão macio como parece, mas não tinha feito. O casaco também era liso, totalmente preto, mas nele o visual discreto funcionava bem. Era como uma moldura simples em volta de um belo quadro: tudo o que se via era o efeito geral, e era espantoso. Mudei de posição dentro do meu robe grosso. Concordava com ele - a sala parecia exageradamente quente. A pele de Pritkin estava da cor dos cogumelos velhos. Acho que começava a perceber algumas das implicações. Virou-se para Mircea. — Consegue criar mais vampiros dessa maneira? Pode convocar as tuas vítimas? — Eu mordi o lábio. Pritkin andava mesmo distraído quando saiu o Vampire 10129. A sua ignorância fazia com que parecesse estranho que o Círculo de Prata o tivesse enviado para ser a sua ligação com o Senado. Pelas coisas que os magos na corte de Tony costumavam dizer, tinha ficado com a idéia de que os magos de guerra tinham diferentes ramificações, e que cada uma delas se concentrava numa diferente categoria principal de nãohumanos, vampiros, metamorfos, demônios, Elementais e criaturas 29
Romance erótico sobre vampiros, da autoria de Paige Tyler
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mágicas como os dragões. Fiquei pensando qual seria a especialidade dele. Louis-César franziu a sobrancelha, talvez pensando no mesmo, e Mircea me estendeu teatralmente a mão. — Venha a mim, Cassandra. — Bradou. — Te ordeno! — O seu sotaque habitualmente ligeiro se acentuara a ponto de parecer o Bela Lugosi. Apesar de tudo, sorri. O sentido de humor de Mircea era visivelmente horrível, mas ajudou a quebrar a tensão. Enrosquei-me mais na macieza da poltrona estofada. — Obrigada pela oferta, mas estou bastante confortável aqui. — Na verdade, naquele momento o divã me atraía muito mais, o que fazia com que fosse uma excelente idéia ficar ali onde estava. .
Sabia perfeitamente que parte do meu problema era resultado dos efeitos secundários da alimentação, mas Mircea teria conseguido tentar uma santa. Eu não precisava de mais complicações, sobretudo, com um membro do Senado. Ele até podia gostar verdadeiramente de mim, mas vistas as coisas, faria aquilo que o Senado quisesse. Todos o fariam. Mircea estava se metendo com Pritkin. — Está vendo, meu amigo? Nada. Ela me despreza. O meu fascínio não deve ser tão forte como eu pensava. — Só uma dentada nos permite convocar um de vós. — Disse-lhe rapidamente Tomas. Olhou de relance para mim, os olhos negros com uma emoção que não consegui interpretar.
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Mantive-me calada, não querendo iniciar um debate. Mas a verdade era que, mesmo que Mircea tivesse me mordido, isso provavelmente não teria feito diferença. Os vampiros conseguiam controlar a maioria dos normais através da sua mordida: regra geral, uma bastava, duas eram sempre suficientes e, depois de três, a vítima transformava-se num vampiro ligado ao seu mestre, portanto era uma questão em aberto. Mas Tony me mordera duas vezes para garantir a minha lealdade, uma vez quando eu era criança e depois quando regressei a ele na adolescência. No entanto, se a sua idéia era me convocar — e eu apostava que sim — tinha fracassado. A minha teoria era a de que a minha associação constante a fantasmas tinha interrompido o sinal. Billy Joe estava quase sempre comigo e eu nunca dispensava o colar dele, o que nos unia mesmo quando estávamos separados. E os vampiros não conseguem interpretar os fantasmas. Um dos argumentos que Billy usara para fazer o nosso acordo foi o de que, com sorte, ele faria uma espécie de interferência espiritual. Talvez tivesse funcionado, ou talvez eu fosse uma das poucas pessoas com uma resistência natural ao chamado. Tinha dúvidas, uma vez que, geralmente, isso só acontecia com usuários de magia particularmente poderosos, mas já aconteceram coisas mais estranhas. Que diabo, estavam sempre me acontecendo coisas estranhas. Mircea olhava para mim com uma ânsia exagerada e eu sorri. — Poderia vir para perto de mim. — Assim que o disse, quis voltar atrás. Era impossível manter a cabeça limpa perto dele e eu queria estar na posse de todas as minhas faculdades mentais. Mas não precisava ter me preocupado. Por um instante, pareceu que Mircea estava considerando a oferta, mas depois sorriu e abanou a cabeça.
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— A tua oferta é simpática, dulceata, mas também estou bastante confortável aqui. — Olhou de relance para Tomas. — Talvez mais tarde. Louis-César se colocou à minha frente enquanto Tomas acompanhava Pritkin de volta ao seu lugar perto da porta. O francês parecia ligeiramente tenso. Pelo pouco que observara dele, aquilo era provavelmente o equivalente a um ataque de fúria de outra pessoa qualquer. — Mademoiselle, preciso da sua atenção por um momento, se fizer o favor. Sei que está cansada e que esta experiência tem sido difícil, mas, por favor, tente se concentrar. — Queria salientar que não tinha sido eu que tinha mudado de assunto, mas pensei melhor. — Lembra-se do nome Françoise? Olhei para ele com cautela. Com que então, estávamos de volta a esse ponto. — Sim. — Explique-me, por favor, porque é que achou que esse nome iria me convencer a poupá-la. Olhei para Tomas. Ele acenou bruscamente com a cabeça. — Eu disse-lhes o que sabia, mas não entendi bem o que fizemos. Só sei que... — Cale-se! — Ordenou abruptamente Louis-César. — Não podemos nos dar ao luxo de dizer algo que a influencie. Tornou a virarse para mim, com uns olhos de um azul acinzentado escuro que fazia lembrar um aglomerado de nuvens de tempestade sobre o mar. — Por favor, diga-me.
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— Está bem, mas depois quero fazer umas perguntas, pode ser? Ele assentiu com a cabeça, por isso contei tudo, o modo como ele me tocara e eu acabara no castelo, omitindo o lugar exato onde estava e o que estávamos fazendo quando cheguei. — Eles queimaram-na até à morte, mas não havia nada que eu, que nós pudéssemos fazer. Tivemos que ficar ali assistindo ao que acontecia. Depois eu voltei e você disse algo sobre desejar que eu não tivesse tido que ver aquilo e chamou Françoise. Não se lembra? Louis-César estava levemente verde. — Não, mademoiselle, não é assim que recordo o nosso breve período nesta sala. Nem Mircea, nem Rafael. Você desmaiou quando eu estava tratando seu rosto e, quando acordou, ficou transtornada e desorientada por uns momentos. Atribuímos esse fato às suas experiências recentes. Não houve nenhuma mulher chamada Françoise. Em tempos, fiz uma visita pelas masmorras de Carcassonne, é verdade, mas, pelo que sei, ninguém morreu nessa noite. — Fechou os olhos por um momento. — Já foi suficientemente horrível assim. — Eu não sonhei! — Eu estava cada vez mais confusa. — Está dizendo que nunca conheceu ninguém com esse nome? — Uma pessoa. — A voz de Louis-César estava tranqüila, mas os seus olhos poderiam ter acendido um fósforo. — Uma jovem cigana, filha de um dos guardas do castelo. Trabalhava como criada, creio que para poupar dinheiro para se casar com um jovem rapaz. — O que lhe aconteceu?
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Ele pareceu indisposto. — Nunca soube. Parti do princípio de que o pai dela achara que estávamos nos tornando... íntimos demais, e a mandara embora. Naqueles tempos eu tinha uma reputação péssima, e Françoise era uma das criadas que me dava assistência regularmente. Mas eu nunca lhe toquei. Não quero ter na minha cama uma mulher que não esteja lá de livre vontade. E uma criada teria tido poucas alternativas se eu tivesse... feito avanços. Eu não a teria colocado numa posição dessas. — Então, porque alguém iria querer matá-la? Ele sentou-se à beira do sofá como se eu tivesse lhe dado um murro. — Porque eu gostava dela. Dei-lhe um colar — uma mera bugiganga — porque ela não tinha jóias, e uma beleza daquelas merecia ser adornada. E por duas vezes lhe dei dinheiro — mais uma vez, apenas pequenas quantias, até porque os meus próprios recursos não eram muitos naqueles tempos. A minha idéia era apenas ajudar nas despesas do casamento e compensá-la pela sua simpatia. Ela deve ter contado a alguém, ou então viram-na com o colar e perceberam... — Disse a última frase como se estivesse falando com os seus botões. Isto não estava ajudando. — Porque alguém iria querer matá-la, só porque você gostava dela? Quem o odiava a esse ponto? Ele inclinou-se para frente, com os cotovelos sobre os joelhos e o cabelo escondendo o rosto.
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— O meu irmão. — A voz estava sufocadoramente amarga. — Através dos anos, ele fez coisas horríveis para me obrigar à submissão pelo medo. — Consegue nos dizer algo mais sobre essa visão, Cassie? — O rosto de Mircea estava muito sério. — Qualquer detalhe pode ser vital. — Não me parece. — Pensei nisso. — Naquela altura não estava nas melhores condições mentais para fazer observações — mas já tinha falado de praticamente tudo. — À exceção de que o carcereiro usou um nome estranho para mim — ou seja, para nós. M'sieur le Tour, ou coisa parecida. Louis-César estremeceu como se eu tivesse lhe batido. — Isso é significativo? — Perguntou Mircea. Ele abanou a cabeça. — Não. É só que... há muitos anos que não ouvia esse nome. Antigamente me chamavam assim, embora não fosse habitual ser à minha frente. Quer dizer “o homem da torre”; eu estava muitas vezes encarcerado numa torre. Às vezes também tinha outros significados. — Acrescentou calmamente. Olhei de relance para Mircea, que pareceu austero, mas não comentou. — Fale sobre a segunda visão, dulceata. Assenti com a cabeça, tentando ignorar o fato de minhas cartas de tarô terem acertado ainda mais em cheio do que era habitual. Decidi
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não falar nisso. Louis-César dissera que o nome não era importante e eu não queria que fosse ruim. — Tudo bem, mas também não a compreendo. Normalmente, vejo o que aconteceu em tempos ou o que está prestes a acontecer, mas é como ver televisão. Eu observo e não passa disso. — Mas ultimamente não. Mudei desconfortavelmente de posição. Nem eu tinha tido ainda tempo para processar o que andava acontecendo, portanto, como é que iria conseguir explicá-lo a outra pessoa? — Tem sido... diferente, desde ontem, ou assim. Não sei porquê. Talvez por estar no corpo de outra pessoa quando me desloquei da segunda vez. Nunca tinha me acontecido. — Nunca tinha possuído ninguém antes de hoje à noite? — Era a voz de Pritkin, envolta em ceticismo. Eu queria ignorá-lo, mas também queria saber o que se passava. — Não. Não sei como o fiz, mas quando o Billy Joe esbarrou em mim... — Billy Joe é o nome do teu espírito companheiro? — Eu não tenho um espírito companheiro. — Disse, bruscamente. — De uma vez por todas, eu não sou uma bruxa, está bem? Não sou um demônio; não sou o bicho papão! Sou uma clarividente. Sabe o que isso é? Talvez tenha sido por eu ter perdido as estribeiras, ou talvez a pulseira tenha se lembrado dele e guardava rancor. Mas, sem aviso
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prévio, duas facas idênticas, com um aspecto tão gasoso e insubstancial como Billy depois de uma noite fora, apareceram diante de mim e voaram diretamente para ele. Não pareciam reais — era uma espécie de luminosidade moldada em formas — mas funcionavam suficientemente bem. Eu não pretendia machucá-lo, mas, aparentemente, a pulseira tinha uma idéia contrária, pois os punhais se afundaram profundamente no seu peito. Ele gritou e eu me retraí instintivamente. Os punhais me acompanharam, voando de volta pela sala até desaparecerem na pulseira. — Peço desculpa! — Observei, horrorizada, duas feridas vermelhas e brilhantes apareceram em seu peito. — Não sabia que a pulseira iria fazer isso! — Olhei, chocada, para o objeto que tinha no pulso. Não devia ser capaz de ferir um mago, mas tinha ultrapassado os seus escudos como se eles não existissem. — Onde é que arranjou isso? — Mircea olhou para a pulseira com interesse. — Eu, hã, a encontrei, há pouco tempo. — Abandonou o mago das trevas por ela! — A voz de Pritkin endurecera devido à dor e ele olhava para mim com ódio. Desta vez não podia censurá-lo. — As armas das trevas são volúveis; encaminham-se sempre para a fonte de maior poder, de modo a aumentar o seu próprio poder. — Fez uma careta e se deixou cair de joelhos. — Ela é perigosa, maléfica! O peito de Pritkin, tão arrasado como se tivesse sido atingido por armas verdadeiras, jorrava sangue. Fitei-o horrorizada, sem acreditar bem no que tinha feito. Não gostava dele, mas matá-lo nunca fizera parte dos meus planos. Ele rasgou a camisa e encheu os pulmões de ar.
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Deixou-o sair lentamente, balbuciando qualquer coisa. Passados uns segundos, as feridas no seu peito começaram a se fechar. Lá se ia a conversa de ser tudo pelos humanos, ele se curava tão rápido quanto um vampiro. Enrolou o lábio. — Como então, sibila, diz que é humana? No entanto, empunha uma arma das trevas, uma arma que rouba o poder de seus adversários e o vira contra eles. As bruxas das trevas lutam por si, e esta noite a vi fazer algo que nem um mago das trevas teria conseguido fazer. Nem o próprio Círculo Negro tem poder para roubar o corpo de outro, muito menos o de um mago que estava protegido contra tais coisas! Agarrouse ao trinco da porta e pôs-se de pé. — Eu não roubei... Ele interrompeu-me com um gesto selvagem. — Mas eu já vi algo semelhante antes, uma criatura que rouba a vida dos outros e as usa em seu proveito. — Tentou passar à força por Tomas, mas não foi a lugar nenhum. Isso pareceu irritá-lo, e ele gritou por cima do ombro de Tomas. — É a mais negra das magias, apenas disponível para o mais vil dos demônios! O Círculo teve razão ao me enviar. Sabiam que eu ia entender o que você realmente é. Quantas vidas já roubou, sibila?! Quantos assassinatos foram necessários para manter sua existência miserável? Levantei-me e Louis-César não tentou me impedir. — O meu nome é Cassie Palmer! Tenho uma certidão de nascimento que prova. Não ando por aí roubando corpos. Não sou um
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maldito demônio! — Olhei para Mircea, que estava observando a cena toda como a maioria das pessoas faria num filme particularmente divertido. — Porque tenho que repetir isto? Ele encolheu os ombros. — Eu ando repetindo há anos, dulceata, e ninguém acredita em mim. Pritkin aproveitou a minha distração momentânea para ter um ataque de fúria. Sem mais nem menos, o seu lote de facas mágicas veio direito a mim. Eu não estava à espera do ataque e fiquei ali parada como uma idiota, de boca aberta. Tomas mexeu-se como um relâmpago mas apanhou apenas duas das armas. Outras duas esquivaram-se dos seus braços agitados e acertaram em mim. Não tive tempo para pensar, e muito menos para tentar me proteger. Senti a minha sentinela chamejando, mas não sabia se ela conseguia lidar com armas encantadas. Passado um segundo, eu continuei sem saber, porque as facas ficaram espetadas no dorso do golem, vibrando com o impacto. Fitei-o sem compreender, até que percebi que Pritkin devia ter-se esquecido de retirar a ordem que lhe tinha dado para me proteger. Fezlhe sinal para que saísse da frente, mas, nessa altura, Tomas já o tinha agarrado. Não sei se Tomas nunca tinha lidado anteriormente com magos de guerra, mas subestimou este. Um dos frasquinhos de Pritkin voou até à cabeça de Tomas, vertendo sobre ele uma substância vermelha que se assemelhava a sangue, mas que queimava como se fosse ácido. Tomas não o soltou, mas o líquido entrara-lhe nos olhos, deixando-o momentaneamente cego. Pritkin fez um gesto estranho, como se estivesse tentando desenvencilhar-se de uma corda invisível, e as duas facas espetadas no golem voltaram a voar para ele. Uma delas atingiu
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Tomas na perna e a outra quase lhe amputou o pulso esquerdo. Ele caiu sobre um joelho e Pritkin conseguiu escapar. Esquivou-se de uma faca lançada por Louis-César, saltou por cima dos membros mal tratados e me apontou suas duas armas. Nem pensei; só reagi, coisa que provavelmente me salvou. A minha mão projetou-se para cima e duas facas gasosas voaram na direção de Pritkin, derrubando as armas de suas mãos enquanto ele disparava. Ele conseguiu disparar várias balas, mas estas desapareceram inofensivamente no corpo do golem. Olhei-o de relance com surpresa. Parecia tão desajeitado; custava acreditar que conseguisse se mexer com tanta rapidez. Com uma palavra do seu mestre enraivecido desapareceu subitamente, e passado um segundo estava do outro lado da sala lutando com Louis-César. O francês o atravessou repetidamente com a sua espada, mas não havia órgãos vitais para atingir. Esquivou-se de seus golpes, apesar de serem tão rápidos que eu mal os via, mas conduziu-o lentamente em direção à parede do fundo, para longe da luta. Pritkin gritou qualquer coisa e se atirou contra mim, com uma granada na mão. Tomas, que se lançou contra ele como se tivesse sido disparado de um canhão, ficou paralisado no ar e caiu no chão, onde ficou deitado, imóvel. Uma fração de segundo depois percebi o motivo, quando fui agarrada por aquilo que parecia ser uma mão gigante e invisível, que encobriu os meus movimentos e os da minha pulseira. Era semelhante ao truque que o mago das trevas usara, só que desta vez não havia ninguém que se opusesse. Pritkin saltou por cima de Tomas e contornou Rafe, que também tinha sido apanhado pelo feitiço. Toda a sala era um quadro imóvel, e eu vi um sorriso sinistro surgir no rosto do mago. Os olhos dele encontraram os meus e eu percebi que aquele maluco ia, de fato, me matar, mesmo que isso significasse a sua morte.
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Mas tanto eu como Pritkin tínhamos esquecido de Mircea. Ele surgiu do nada, numa mancha escura que passou por meus olhos, agarrando o mago, quebrou seu pulso e atirou a granada pela janela. Enquanto eu ainda piscava surpresa, Mircea agarrou Pritkin pelo pescoço e o levantou do chão. Louis-César saltou por cima do sofá, passado um segundo, com o golem em pedaços atrás dele, mas eu vi em seu rosto ao se dar conta que poderia ter sido tarde demais. Ainda não conseguia me mexer, mas Rafael já conseguira se libertar do feitiço e estava combatendo dois frasquinhos que tinham atacado-o, usando o casaco que Mircea havia tirado para não tocar neles. Nessa altura, a explosão da granada abalou a sala, fazendo com que chovesse gesso do teto e estilhaços de vidro rasgassem a pesada cortina e se espalhassem pelo chão. A mão invisível me libertou finalmente e eu tossi, deixando-me cair novamente na cadeira, engasgada com pó de gesso e quase surda devido ao sonoro impacto nos meus ouvidos. Lancei um olhar furioso a Pritkin, mas ele estava verdadeiramente imobilizado. O seu arsenal já era outra questão, mas Louis-César começara a cantar baixinho fazendo com que as peças voadoras parassem. Rafe agarrou dois frascos que pairavam a sua frente e enfiouos no cesto da lareira, depois de despejar um arranjo de flores secas para cima dos mosaicos. Fechou a tampa de vime e a seguir reuniu os outros pedacinhos do arsenal voador e acrescentando-os à sua coleção. Eu consegui ver a tampa se mexendo ligeiramente para cima e para baixo enquanto seus prisioneiros tentavam se libertar. Um dos que escapou tentou me atacar furtivamente, se deslocando lentamente pela sala, sem que mais ninguém o visse. Olhei-o fixamente, indagando-me sobre que defesa seria incapaz de despedaçar o vidro e acabar me atacando com seus conteúdos, mas a minha pulseira sabia melhor do que eu como lutar. Puxou meu o braço para cima e lançou uma faca para
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estilhaçar o frasco. O pequeno recipiente evaporou-se com um estalido, deixando para trás apenas um cheiro estranho e bolorento. A voz de Mircea era calma, mas muito convincente. — Anule-os, mago, senão terei todo o prazer em te fazer uma demonstração de alimentação à moda antiga. Eu acreditei nele, mas Pritkin era mais teimoso, ou mais estúpido. A metralhadora ergueu-se sozinha do chão, apontando para mim. — Force-me, mas levarei sua vadia do demônio comigo! Louis-César lançou-se à arma e içou-a com um solavanco no momento do disparo. Fez um buraco na lareira atrás de mim. Um centímetro para a esquerda e eu teria sido feita em mais pedaços do que o golem. Uma saraivada de tijolo e argamassa juntou-se à nuvem de poeira, e vários fragmentos voadores rasparam minha pele. Gritei e, passado um segundo, parecia que a sala tinha sido arrasada por um furacão. Através da tempestade de poeira e detritos que girava à nossa volta, vi que a máscara jovial de Mircea tinha caído e que havia algo feroz em sua expressão. Eu já tinha visto outros vampiros sem o brilho humano, mas não tinham este aspecto. Ele era terrível e belo ao mesmo tempo, com uma pele de mármore reluzente, grandes presas e olhos de lava chamejante e fundida. O vento lançou Pritkin contra a parede, a força que se abatia sobre ele desfigurou-lhe violentamente o rosto. Contudo, a sua visão estava desobstruída e a expressão dos seus olhos tornava claro que ele nunca adivinhara o que se escondia por trás da fachada perfeita. O que ele pensava? Que os membros do Senado ganhavam os seus lugares
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com trabalho de caridade? Eu estava espantada pelo homem ter durado tanto tempo. — Cassandra é minha. — Disse-lhe Mircea com uma voz capaz de derreter vidro. — Se voltares a tocar nela, seja você do Círculo ou não, te levarei comigo e farei com que passe o resto da eternidade implorando pela tua morte. — Mircea! — Louis-César não tentou lhe tocar, mas a sua voz atravessou a tempestade como água fervendo num monte de neve. — Por favor, você conhece a situação. Há outras maneiras de lidar com ele. O vento acalmou lentamente e percebi que estava tremendo devido ao excesso de adrenalina. Apoiei-me sobre as pernas tremulas e andei para onde Pritkin ainda estava encostado à parede pelo poder de Mircea, embora já não parecesse correr o risco de ser obrigado a atravessá-la. Várias gotas de sangue escorriam pelo meu rosto até à gola do robe, mas eu ignorei. Em comparação com Tomas, eu tinha me safado com uma facilidade espantosa. Uma versão muito mal tratada do meu antigo companheiro de quarto revistava Pritkin em busca de armas. O pulso de Tomas já começara a se regenerar, com os tendões e ligamentos se restaurando diante dos meus olhos, mas o seu rosto era uma massa de carne escaldada e só um dos olhos parecia estar em boas condições. Estremeci ao ver a sua expressão, que dizia claramente que o mago só não estava morto ainda porque Tomas não tinha decidido qual seria o método de execução mais doloroso. Olhei de relance para Mircea e o seu rosto estava mais reconfortante. O homem que eu conhecia sempre fora uma presença calma e quase terna, que contava histórias complicadas e piadas terríveis, que gostava de se vestir bem e não se importava de jogar partidas intermináveis de damas com uma pequena garota de onze
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anos. Eu não era tão ingênua como Pritkin — sabia que a verdade era bem mais complexa. Mircea crescera numa corte onde o assassinato e a crueldade estavam na ordem do dia, onde o seu próprio pai trocara dois dos filhos por um tratado que ele não tinha intenções de cumprir e onde tinha sido torturado até o que teria sido uma morte horrível se a cigana não tivesse chegado primeiro a ele. Esse tipo de coisa não dava motivo a muita compaixão. Ainda assim, havia ali um lado mais terno, não havia? Sinceramente, eu já não sabia. Enquanto criança, nunca sentira nenhum tipo de ameaça da sua parte. Ele tinha sido o sereno e amável Mircea com olhos castanhos risonhos que se enrugavam um pouco nos cantos. Era difícil comparar essa pessoa com aquilo que eu via agora. Será que esse aspecto aterrador sempre estivera ali, fervendo a flor da pele, e eu fui simplesmente cega demais para ver? Agora eu podia ver, e isso me criava um problema. Por mais que eu não gostasse de Pritkin, não o queria morto. Ele podia ser — provavelmente era — maluco, mas eu precisava que ele me explicasse o que estava acontecendo comigo, ou que contatasse alguém que o pudesse fazer. A verdade é que eu não tinha mais ninguém a quem perguntar. — Não o mate, Mircea. — Não temos a intenção de matá-lo, mademoiselle. — Respondeu Louis-César, mantendo um olhar atento em seu colega. Tomas terminara de retirar todas as armas do mago, pelo menos aquelas que conseguíamos ver. Eu tinha a sensação que ele ainda teria muitas disponíveis, minha pulseira parecia concordar. Ela cintilava quente no pulso, parecendo mais pesada do que alguns minutos antes. Eu teria gostado de tirá-la, ela começava a me assustar, mas esta não era uma boa ocasião.
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— A partir desta noite, já estamos em guerra com o Círculo das Trevas; não temos nenhum desejo de combater igualmente a Luz. —Tenha cuidado. — Disse Rafe atrás de mim. — Certifique-se de que está completamente desarmado. — Ele é um mago de guerra. — Disse Mircea. — Nunca está desarmado. — Até estar morto. — Acrescentou Tomas, e eu reparei que ele ainda segurava em sua mão boa uma faca de combate. Moveu-se como um relâmpago — suponho que gostava da ironia de matar Pritkin com a sua própria arma — mas Louis-César foi uma fração de segundo mais rápido. A sua mão apanhou o pulso de Tomas a poucos centímetros do peito de Pritkin. — Tomas! Não vou permitir que comece uma guerra! — Se abrigar essa coisa. — Pritkin praticamente cuspiu para mim — estará em guerra conosco, querendo ou não. Enviaram-me aqui para descobrir o que ela era e para tratar dela se constituísse uma ameaça. Esperava encontrar apenas uma Cassandra, uma sibila caída, mas isto é muito pior do que eu previra. E aquilo que eu sei, o Círculo também sabe. Se eu não conseguir matá-la, esperem uma dezena, uma centena de outros no meu lugar. — Olhou para mim e, se olhar matasse, ele teria poupado o trabalho ao seu Círculo. — Já combati uma coisa destas antes. Sei o que conseguem fazer e não vou deixá-la viva. Atirou-se de novo contra mim, mas só conseguiu ser quase sufocado, porque o aperto invisível de Mircea tinha a resistência de uma luva de aço. Foi estranho, porque o rosto dele voltara à sua habitual expressão plácida. Os olhos não estavam mais do que vagamente
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interessados, as feições tinham a sua cor normal e um leve sorriso curvava-lhe os lábios. A raiva incandescente não era visível em parte alguma. Senti um arrepio. Técnicas de representação como estas me preocupavam. Voltei a desviar a atenção para o mago e percebi que a única pessoa que eu tinha a certeza de não estar me enganando era o homem que acabara de tentar me matar. Ridículo. — Eu não sou uma coisa. — Disse-lhe, mantendo-me bem fora do seu alcance. — Não sei o que pensa que está acontecendo aqui, mas eu não sou uma ameaça para você. Ele riu, com um som bastante estrangulado, dadas as circunstâncias. — Claro que não. Sou velho demais para despertar o interesse de uma lâmia. Encontrei aquela que matei sobre os cadáveres de vinte crianças que ela utilizava para sustentar a abominação que era a sua vida. Não deixarei que isso volte a acontecer. Engoli a raiva e virei-me para a janela, correndo a cortina escura para ver uma paisagem plana e avermelhada e um céu azul-claro. Um grande grupo se reunira ao redor do buraco deixado pela granada, mas ninguém se incomodou conosco. Suponho que tenham calculado que sabíamos tomar conta de nós. Virei-me novamente para aquele rosto cheio de ódio. — E se estiver errado e eu não for uma coisa maléfica? Não preferiria saber ao certo antes de me matar? — Eu já sei. Nenhum humano consegue fazer o que você fez. Não é possível.
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— Há uns dias atrás, eu teria concordado com você. Agora tenho outra opinião. — Custava-me manter o olhar no dele. Nunca ninguém olhara para mim com aquele nível de ódio. Tony queria me matar, mas eu estava disposta a acreditar que, se alguma vez me apanhasse, os seus olhos não teriam aquele aspecto. Ele via-me como um empecilho e uma forma de selar um acordo, não como a encarnação do mal. Muito embora eu soubesse que Pritkin estava errado, sentia-me culpada, e fiquei mais louca com isso do que com o ataque físico dele. A homicida lunática não era eu. — Disse que já caçou estas coisas. Não faz nenhum tipo de teste, para ter a certeza de que tem razão? Ou mata qualquer pessoa suspeita assim que a vê? — Existem testes. — Disse Pritkin, entre dentes cerrados, como se até falar comigo fosse uma tortura. — Mas os seus aliados vampiros não iriam gostar deles. Envolvem água benta e crucifixos. Olhei para Mircea com espanto e ele revirou os olhos. Mas que diabo de coisas Pritkin andava lendo? O arrepiante Bram Stoker? Os demônios podem ter medo de objetos sagrados, mas os vampiros não têm, certamente. O brasão de família de Mircea representava um dragão, o símbolo da coragem, abraçando um crucifixo, um emblema do catolicismo da família. Este decorava a parede atrás do seu assento no Senado, mas suponho que Pritkin estivesse muito ocupado a me olhar furiosamente para ter reparado. Pensei em fazer-lhe uma palestra sobre o vampirismo ser uma espécie de licantropia, no que diz respeito ao fato de ser uma doença metafísica. Mas tive dúvidas de que ele acreditasse que a origem das lendas que afirmam que um demônio vai se empoleirar em cada novo vampiro fosse a histeria da Idade Média. Pritkin parecia ver demônios em toda a parte, quer lá estivessem ou não. Na verdade, as únicas armas do arsenal de Hollywood que de fato
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funcionavam com os vampiros eram a luz do sol — pelo menos com os mais jovens — as estacas e o alho, e este último apenas quando era utilizado como parte de uma sentinela de proteção. O simples ato de pendurar aquilo numa porta não teria nenhum efeito — que diabo, Tony adorava-o sobre uma torrada com um pouco de azeite. Mircea não foi grande ajuda; limitou-se a sorrir para mim. — E pensar que sempre acreditei que as coisas de que gostava menos eram o vinho ruim e a moda feia. — Sorriu de modo tolerante ao ver a minha expressão. — Muito bem, dulceata. Acho que somos capazes de encontrar alguns crucifixos. E, se não estou errado, o Rafe tem neste momento vários frascos de água benta aprisionados. Rafe aproximou-se com a sua caixa. Parecia que havia lá dentro uma série de feijões saltitantes mexicanos, tentando urgentemente sair, e todos nós olhávamos para ela de modo duvidoso. — Não estou de acordo com isto. — Disse Tomas. — O Senado encarregou-me de manter Cassie em segurança. E se ele estiver mentindo e essas coisas contiverem ácido ou explosivos? Sabem que não podemos confiar nele. — Nunca confie num mago. — Concordou Rafe, retirando um frasco da caixa com tanta rapidez que eu nem tive como o impedir. Ele não o derramou sobre a sua própria carne, como eu temia, mas segurou o frasco tapado debaixo do nariz de Pritkin. Estou prestes a derramar isto em cima do seu braço. Se isso não for seguro, será melhor me dizer, já. Pritkin ignorou-o, com o olhar furioso ainda fixo em mim, como se estivesse mais preocupado com aquilo que eu poderia fazer do que
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com uma sala cheia de vampiros mestres. Era óbvio que não se dava com eles há tempo suficiente para compreender as nuances. Louis-César só tinha dito que não iriam matá-lo - o que ainda deixava muitas possibilidades em aberto. Eu teria ficado preocupada, mas Pritkin estava tão ocupado me lançando o olhar furioso da morte que quase não reparou quando umas gotas de um líquido incolor foram salpicadas na sua pele. Ficamos todos vendo, como se esperássemos que o seu braço começasse a derreter, mas nada aconteceu. Louis-César esticou-se para mim, mas Tomas agarrou lhe o pulso. Os olhos do francês faiscaram prata. — Tenha cuidado, Tomas. — Disse, calmamente. — Desta vez não está possuído. Tomas ignorou o aviso. — Isso pode ser veneno. — Ele pode ter tomado o antídoto, ou está disposto a morrer com ela. Não vou deixar que lhe façam mal. — Eu assumirei a responsabilidade perante a Consulesa se acontecer alguma coisa. — Não me importo com a Consulesa. — Então, é melhor se preocupar comigo. Começaram a se formar duas barras de energia tremeluzente, o suficiente para arrepiar os pêlos dos meus braços e deixar a minha pulseira dançando na pele. — Basta! — Mircea abanou a mão e o poder na sala diminuiu consideravelmente. Arrancou o frasco da mão do francês e cheirou-o
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cautelosamente. — É água, Tomas. — É apenas água, mais nada. — Entregou-me e eu o agarrei antes que Tomas pudesse contrapor. Eu confiava em Mircea e, além do mais, nem a pulseira nem a minha sentinela reagiram. — Está tudo bem. — Não! — Tomas esticou-se para pegar no frasco, mas LouisCésar afastou-lhe a mão com um safanão. Olhei para Pritkin, que me observava avidamente. — Beba! — Engoli aquilo tudo. Tal como dissera Mircea, era apenas água, embora um pouco choca. Pritkin olhou-me fixamente, como se estivesse à espera que começassem a saírem espirais de vapor por minhas orelhas ou algo parecido. — Satisfeito? Ou quer pendurar quantos crucifixos em meu pescoço? — O que você é? — Sussurrou ele. Regressei à minha cadeira, mas, como estava coberta de pó de tijolo, optei pelo divã. A janela estilhaçara-se quando Mircea atirara a granada através dela, portanto tive de sacudir primeiro os estilhaços de vidro para o chão. Era melhor que Pritkin tivesse algumas respostas, porque já estava ficando seriamente irritada. — Sou uma mulher cansada e farta de você. — Disse-lhe com franqueza. Mircea riu.
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— Não mudaste nada, dulceata. Pritkin olhou-me fixamente e parte daquela raiva terrível desvaneceu-se no seu rosto. — Não compreendo. Se você for demoníaca, não pode ter bebido água benta sem demonstrar nenhuma reação. Mas não pode ser humana e fazer aquilo que a vi fazer. Mircea instalou-se no sofá depois de o ter sacudido cuidadosamente com o seu lenço. Agarrou num dos meus pés descalços e afagou-o ociosamente. De repente, senti-me muito melhor. — Já aprendi, Mago Pritkin, a nunca dizer nunca ao Universo. — Olhou de relance para mim, com uma expressão irônica. — Ele se deleita ao nos dar aquilo que declaramos de forma tão enfática não poder existir. Louis-César olhou com expectativa para mim e eu assenti com a cabeça. — Pois é. Se as pessoas pararem de tentar me matar por um minuto, eu falo sobre Françoise, pelo menos aquilo que sei. — Expliquei rapidamente a minha segunda viagem, com o máximo de detalhes que consegui, sem comentar o fato de uma bruxa do século XVII parecer andar passeando por Las Vegas. Não queria que a minha cela, se eu acabasse dentro de uma, tivesse paredes almofadadas. — Isso é parecido com o que Tomas disse. — Comentou LouisCésar, quando terminei. — Mas não é assim que me recordo.
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— O que nos deixa três possibilidades. — Mircea contou-as com os dedos. — Que tanto Tomas como Cassandra estão mentindo, sem nenhuma razão óbvia, que tiveram a mesma alucinação ao mesmo tempo ou que estão dizendo a verdade. A mim não parece que nenhum deles esteja mentindo. — Olhou para Louis-César, que assentiu com a cabeça. — E será preciso realçar o absurdo de uma dupla alucinação com aquele grau de detalhes sobre os acontecimentos de que nenhum deles teria conhecimento se não tivesse estado lá? — O que nos deixa com a verdade. — Louis-César deu um suspiro que parecia de alívio. — E isso significa que… Mircea terminou a frase por ele. — Que eles alteraram a história.
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Capítulo 11 — Isso não é possível. — Sentia muito segura de mim. — Eu vejo o passado. Não o altero. — O poder da Pítia está se transferindo. — Murmurou Pritkin, como se não tivesse me ouvido. — Mas não. É impossível. — De repente, pareceu um garoto confuso. — A Pítia não consegue possuir ninguém. Não pode ter lhe dado essa capacidade; não a tem. — Esqueça isso. — Disse Louis-César, quase sem fôlego. Fitou Pritkin, com um rosto ávido. Será que o poder da Pítia permite à Cassandra viajar metafisicamente para outros lugares, outras épocas? Pritkin parecia ainda mais inseguro. — Preciso consultar o meu Círculo. — Disse ele, com a voz ligeiramente tremula. — Não estava preparado para isto. Disseram-me que ela era apenas suspeita de vigarice. A Pítia tem uma herdeira. Os seus poderes não deveriam passar para esta... pessoa. — Quais poderes? — Decidi fazer valer a minha vantagem, agora que tinha regressado ao estatus de pessoa, embora com hesitação. Era melhor descobrir o que ele sabia antes que decidisse que eu era outro tipo qualquer de pessoa estranha. — Não. — Pritkin abanou firmemente a cabeça. — Não posso falar pelo Círculo.
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— Tem tentado falar por eles a noite toda. — Disse Tomas, agarrando o ombro do mago com força suficiente para o fazer tropeçar, caso o poder de Mircea não continuasse a apoiá-lo. — Mas agora que pode nos ajudar a fazê-lo, se recusa? — O pulso de Tomas tinha sarado, à exceção de uma cicatriz vermelha e feia, mas o rosto não apresentava melhoras. A sua disposição também não parecia ter melhorado. — Eu...estes assuntos são perigosos. Não posso falar deles sem autorização. — Disse que eles sabem o que você sabe. — Grunhiu Tornas. — Constate-os, obtenha permissão. Pritkin olhou selvaticamente ao redor, como se estivesse à procura de ajuda. Não a encontrou. — Vou tentar, mas sei que eles irão querer se reunir para discutir isto. E hão de querer que a levemos à presença deles. Isto não será decidido rapidamente. — Quanto tempo? — Louis-César juntara-se a Tomas e, juntos, eram muito bons na intimidação. Que diabo, já eram bons separados. Pritkin cometeu o erro de tentar encobrir o seu nervosismo com a grosseria. Ele estava despreparado demais para lidar com um senador. — Não sei. Talvez dias. Os olhos azuis de Louis-César faiscaram abruptamente para um tremeluzente cinzento, como mercúrio, e as suas pupilas quase desapareceram por completo. Prendi a respiração, e não fui só eu. O único som na sala era o da respiração áspera de Pritkin, que ecoava
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sonoramente, como se alguém tivesse metido um microfone em seu corpo. Mircea libertou-o abruptamente e ele teria caído no chão se Louis-César não tivesse lhe agarrado à camisa e tornado a encostá-lo à parede. O fato de ver Louis-César em ação no casino não tinha me convencido de estar diante de um predador de predadores. Ele lutava bem, mas eu já vira muitos bons lutadores no decorrer dos anos, e não era partidária da idéia de que uma espada, por mais comprida e aguçada que fosse, substituía uma arma de fogo em condições. Passara tempo demais na corte de Tony, mais conhecida como Guns R Us30, para achar isso. Entendi porque que ele me assustava mortalmente — ele era o meu portal para a terra dos fantasmas enlouquecidos e das masmorras imundas — mas as outras pessoas não tinham esse problema, por isso eu ainda não entendia porque pareciam ter tanto medo dele. Na maior parte do tempo, quase parecia doce, com os seus grandes olhos azuis e as covinhas na face. Mas, finalmente, compreendi. Ele ainda era atraente, mas era o esplendor de um tornado no preciso instante que antecede a devastação de uma cidade. Nesse segundo, acreditei que ele poderia ter feito funcionar aquele plano maluco no Dante's, que ele realmente teria conseguido segurar vinte vampiros enquanto Tomas me levava para um lugar seguro. — Não temos dias. — Silvou, fazendo o sangue se esvair por completo do rosto de Pritkin. Mircea falou, e a sua voz assemelhava-se a um fluxo pacífico de água que percorria a sala, acalmando temperamentos e desanimando faces. Senti o meu ritmo cardíaco diminuir e consegui finalmente respirar fundo. — Talvez o Mago Pritkin queira contatar o seu Círculo em outro lugar? Acho que já nos disse o que precisávamos saber, nem que tenha 30
Tradução Literal: Nós somos as armas. ----> trocadilho com o nome da loja Toys R Us.
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sido por insinuação. — Sorriu a Pritkin. — Pode querer perguntar porque mandaram a você, o mais famoso caçador de demônios que existe, atrás de Cassie. Tem reputação de ser. — Como direi — Extremamente obstinado. Se eu fosse desconfiado, quase poderia acreditar que queriam que se enganasse em relação a ela, retirando assim uma possível rival da briga. — Pritkin olhou-o fixamente, e o seu rosto ruborizou-se lentamente num vermelho tijolo. Esperei que o coração dele não tivesse tantas alterações como as suas feições. Tinha a sensação de que, se ele não tivesse um ataque cardíaco, haveria alguém no Círculo prestes a ter que dar uma explicação. — Ele não sai daqui! — Eu e Louis-César falamos ao mesmo tempo. Ele me deu a palavra com um gesto gracioso e eu observei-o nervosamente enquanto me levantava para encarar Pritkin. Os olhos do vampiro ainda estavam prateados e eu não queria descobrir o que acontecia quando ele perdia de fato as estribeiras. — Não vai a lugar nenhum enquanto eu não tiver umas respostas. Quem é a Pítia, porque está sempre me chamando de sibila e de que poderes está falando? Pritkin obedeceu sem sequer discutir. A belicosidade parecia ter desaparecido e sua voz estava ligeiramente rouca. — Pítia era o nome da antiga vidente de Delfos, o maior templo de Apolo. Durante dois mil anos, as mulheres selecionadas para a posição eram consideradas o oráculo do mundo; reis e imperadores tomavam decisões políticas com base nos seus conselhos. A posição desapareceu com o declínio da Grécia, mas o termo ainda é usado por respeito. É o título da maior vidente do mundo, uma forte aliada do
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Círculo. É um dos nossos bens mais valiosos, uma vez que os nãohumanos não possuem o dom. — O que isso tem a ver comigo? — Toda cada vez que se escolhe uma nova Pítia, uma sibila. — O nome que damos a uma verdadeira clarividente — É selecionada como sua herdeira. É cuidadosamente treinada desde a infância para compreender o fardo e saber como carregá-lo. A Pítia está velha e o seu controle do poder começa a falhar. Este deveria passar para a sua herdeira, mas ela foi raptada por Rasputine e o Círculo das Trevas há mais de seis meses. — Os olhos dele pareciam assombrados. — Há milhares de anos que o poder da Pítia é transmitido numa tradição ininterrupta. Mas agora temo pela sucessão. A herdeira deve estar morta. Por que outra razão passaria o poder para você, ainda que parcialmente? Uma vigarista sem formação, sem conhecimento daquilo que a posição implica? Uma palavra daquele discurso ecoou-me na cabeça. Fitei o horrorizada. — Parcialmente?! Que diabo quer isso dizer? — A minha voz tornara-se estridente e eu parei para me acalmar um pouco. — Nem pensar. Diga ao seu Círculo que eu não quero esse trabalho. — Não é um trabalho. É um chamado. E a herdeira não tem escolha. — Não tenho, uma merda! Tem que encontrar essa tal de sibila e trazê-la de volta. — Olhei para Tomas, e foi quase doloroso fazê-lo. — E o que usou na cara dele? Não está melhorando.
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Rafe respondeu. — Foi sangue de dragão, mia Stella. Não te preocupes, há de sarar com o tempo. — Tomas lançou me um olhar surpreendido, como se não estivesse esperando que eu me importasse com o que lhe acontecia, e eu desviei o olhar. Reparei que Mircea me observava pensativamente, e fiz a expressão mais neutra possível. Eles que pensassem o que quisessem. Eu teria ficado igualmente preocupada com quem quer que se machucasse tentando me ajudar. Pritkin falou com uma voz cansada. — Nós a procuramos. Nos últimos seis meses, pouco descobrimos. A Pítia está muito velha e carrega o fardo do poder há mais tempo do que deveria. Começou a lhe faltar saúde, bem como a capacidade de controle. Entendemos melhor do que você a necessidade de rapidez, mas a nossa busca foi infrutífera. Eu não estava entendendo qual era o problema. — Então, nomeiem outra pessoa como sua herdeira. — Já lhe disse que não é uma posição de nomeação. O poder vai para onde quer, para quem for mais merecedor, assim dizem os textos antigos. Não deveria haver competição. Você é jovem e destreinada, enquanto a nossa sibila estudou durante anos para assumir a posição. Foi escolhida tarde, mas foi bem treinada. Não pensamos que você seria uma rival... Ele parou, tarde demais, e eu ataquei. — Sabia da minha existência? Como?
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A arrogância começou a regressar-lhe ao rosto. — Toda a sua linhagem está manchada. A sua mãe era a mesma coisa; até é parecida com ela. — Espere aí. Conhecia a minha mãe? Como? — Ele parecia ter trinta e cinco anos, talvez menos. Portanto também não estava envelhecendo a uma velocidade normal, a menos que o Círculo admitisse os seus membros aos quinze anos. — Ela era a herdeira. — Disse-me Pritkin, com os lábios esticados de raiva. — Ela tinha de ser pura, incólume, como muito bem sabia. Mas teve um caso com o seu pai, um servo de vampiros! E pior, ocultou-o do Círculo até ficar grávida de você e fugir com ele. Quem sabe o que teria acontecido ao poder se tivéssemos permitido que ele preenchesse um receptáculo impuro? — Impuro? — Ora, agora eu estava irritada. — Ela era minha mãe! — Ela era imprópria para ser a herdeira! Só posso agradecer o fato de termos descoberto a tempo. — Então, se uma pessoa não for virgem, não pode ser herdeira? — Precisamente. — Ele sorriu maliciosamente. — Mais uma razão para você ser desclassificada. Não me dei ao trabalho de corrigi-lo. Estava disposta a apostar que a minha experiência sexual dava muita luta à sibila pura como a neve deles, mas não pelos mesmos motivos. Eugenie me protegia como um falcão, e, quando eu não estava com ela, estava fugindo para salvar
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minha vida. Nunca confiei em ninguém o suficiente para se aproximar tanto assim. O fato da maioria dos vampiros da corte de Tony rivalizarem com Alphonse no que diz respeito também serviu de ajuda, bem como o terem sido advertidos para não se aproximarem de mim. A maior tentação que eu sentira tinha sido por Tomas, o espião do Senado que andara se alimentando de mim sem autorização, e por Mircea, que provavelmente estaria a engenhar qualquer esquema nefando. Eu não sei escolhe homens. — Deixe-me ver se entendo. Primeiro, conclui que eu sou um demônio por causa de um poder que eu não pedi para ter e que nem sequer compreendo. Depois, quando essa hipótese falha, diz que sou uma sibila caída e uma puta. Está faltando alguma coisa ou simplesmente não gosta de mim? Mircea riu, e até os lábios de Louis-César se contorceram. Quanto a Tomas, ou não percebeu a piada ou não estava com disposição para brincadeiras. Pritkin, claro, ficou irritado. — Tudo o que diz só confirma a minha impressão inicial. Seria um desastre enquanto Pítia. — O poder não parece se importar. — É para isso que existe o Círculo, para intervir nestes casos! — Olhou furiosamente para mim, de modo tão violento que eu me retrai antes de conseguir me impedir. — Nunca se perguntou porque sua mãe lhe deu o nome de Cassandra? É a nossa designação para uma sibila caída, que usa o seu poder para o mal ao invés do bem. Uma sibila aliada do Círculo Negro. Uma sibila capaz de invocar fantasmas e bruxas das trevas para combater por ela, de possuir humanos como um demônio e
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de comandar uma arma das trevas com tanta facilidade. Não será permitido que o poder seja transmitido para alguém como você! — E se for? — Não será. — Ele foi tão enfático que, mentalmente, acrescentei mais um grupo à longa lista de pessoas que queriam me ver morta. — O Senado irá protegê-la. — Garantiu-me Louis-César. Lanceilhe um olhar exausto. — Claro que sim. Desde que eu faça o que ele quer. Mircea sorriu maliciosamente à expressão de Louis-César. — Ela foi criada numa das nossas cortes. Achava mesmo que não iria entender a situação? Agora, leve o mago daqui. — Ordenou a Rafael. — Vamos falar de assuntos sérios com nossa Cassandra em particular. — Pritkin foi levado da sala à força e eu, pelo menos, fiquei contente por vê-lo partir. Se nunca mais conhecesse outro mago de guerra na vida, iria me considerar uma pessoa de sorte. Esperei para ver o que a contínua ajuda do Senado iria me custar. — Não iremos entregá-la ao Círculo, mademoiselle. — Os olhos de Louis-César, que tinham voltado a serem azuis, brilhavam de sinceridade. Olhei-o fixamente. Seria ele assim tão ingênuo, ou faria tudo parte da postura habitual do rapazinho honrado? — Mas, se o aliado deles vencer esta noite, poderemos não ser capazes de te proteger. — Acrescentou Mircea. — Nessa altura, Rasputine decidirá as coisas, e eu não gostaria de te ver sob o seu jugo.
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O Círculo de Prata poderá te matar se cair nas mãos deles, mas não quero especular sobre o que fará o Círculo Negro. Para você, é vantajoso que sejamos nós os ganhadores, Cassandra. Olhamos um para o outro e tivemos um daqueles momentos de perfeito entendimento. Ah, o iluminado interesse próprio: o cunho do meu velho mundo. Me senti bem ao regressar a um terreno que me era familiar. Com Mircea não se falava de honra; apenas de negócios. — Treinou Tony ou quê? Mircea riu, encantado. Louis-César lançou-lhe um olhar descontente antes de desviar os olhos para mim. — Mademoiselle, até esta noite, não acreditava seriamente que alguém pudesse fazer o que faz. Mas agora que sei, voltei a ter esperança. A Pítia é a última juíza dos desentendimentos no seio da comunidade mágica, o nosso Supremo Tribunal, se assim quiser. Sem uma Pítia forte, com poder para pôr em vigor as suas regras, o problema entre os Elementais da Luz e o Círculo de Prata pode acabar em guerra, tal como já acontece entre nós e o Círculo Negro. A estrutura do nosso mundo está se rachando. Olhou de relance para a porta e Mircea levantou ligeiramente a cabeça. — O feitiço está ativo. O Pritkin não consegue ouvir, mesmo com a audição melhorada que tem. Conte-lhe. Louis-César olhou para mim e eu tive novamente aquela sensação de um poder deslizando pela pele. Ele estava perdendo o controle. Enfiei a minha pulseira no bolso para não dar problemas. Não queria descobrir o que aconteceria se ela o atacasse.
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— Acreditamos que um adversário da Consulesa, o Lorde Rasputine, está usando a sibila desaparecida para tentar conquistar o poder. Durante meses, houve membros do Senado atacados pelos seus próprios empregados. Em alguns casos, empregados que os serviram há séculos, que pensavam serem totalmente leais, viraram-se contra eles sem aviso prévio. Os guardas que a atacaram na câmara do Senado faziam parte desse grupo. Mesmo com juramento prestado ao poder da Consulesa, eles se converteram. Agora conseguimos entender porquê. Talvez eu estivesse perdendo alguma coisa. Eu não estava propriamente no meu melhor. — Então, porquê? Rafe aproximou-se e ajoelhou-se aos meus pés. Afaguei-lhe os cachos em desalinho e senti-me um pouco melhor. Ele não podia fazer rigorosamente nada por mim, mas me fazia bem tê-lo por perto. — Não entende, mia Stella? A sibila deve ter viajado no tempo, como tu, e de alguma forma interferiu na ligação entre servos e mestres. Há muito que se pensa que a Pítia vivencia todas as épocas em simultâneo, em vez de viajar numa só direção, como nós fazemos. Pode acontecer que a sibila desaparecida esteja ganhando poder, tal como aconteceu recentemente contigo. Só que ela usou o poder para o mal. — Espera aí. — Minha cabeça doía. — Essa afirmação tem tantos problemas que eu nem sei por onde começar. Como se interfere com uma ligação tão próxima? E quanto ao fato de eu não ser a herdeira? Pritkin deixou isso bem claro. — Não. — Disse Louis-César. — Ele deixou claro que não queria que o poder passasse para você. Mas é óbvio que receia que isso tenha
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acontecido, pelo menos parcialmente, senão não teria tentado matá-la. Peço desculpa por isso. Se achássemos realmente que ele era assim tão hostil, não teríamos permitido que ficasse aqui. Mas tínhamos esperança de que ele confirmasse as nossas suspeitas. — O que aconteceu, de certo modo. — Comentou Mircea. — Ele pode não o ter dito, mas as suas reações deixaram claro que parte do poder da Pítia escapou para Cassie, e, como tal, há toda a probabilidade de isso ter acontecido também com a outra herdeira. Abanei a cabeça. — Mas Pritkin disse que a Pítia não consegue possuir pessoas, portanto a sua herdeira também não seria capaz, certo? E, se isso for verdade, impõe sérios limites ao que ela consegue fazer. As reservas de energia são consumidas rapidamente em outras épocas, muito rapidamente. Principalmente se não nos limitarmos a estar parado vendo. Quando eu estive, hum, dentro do Louis-César, não tive esse problema, mas, se ela não conseguir se agarrar a uma fonte de energia humana, não durará o tempo suficiente para fazer grande coisa. — Pode não precisar de muito tempo. — Disse Mircea, pensativo. — O ato de criar um novo vampiro é um processo delicado. Qualquer desvio pode ter resultados muito infelizes. Eu já ouvira algumas histórias de terror. Na melhor das hipóteses, o novo vampiro simplesmente não chegava a se levantar. Passados três dias, ele ou ela mantinha-se morto, e aí se percebia que tinha havido um problema. Na pior das hipóteses, erguiam-se sem quaisquer funções cerebrais relevantes, uma horrível lástima chamada "revenante". Eram como animais que viviam apenas para caçar. E, por não conseguirem raciocinar, não reconheciam a condição de mestre daquele que os
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criava. A única coisa a fazer era caçá-los antes que enlouquecessem perto de um grupo de humanos. — O que alguém sem mais poder do que um fantasma recente poderia fazer no período de uma hora? — Olhei para Tomas. — Estou certa? Quanto tempo estivemos lá? — Não pode ter sido muito mais do que isso, mas estávamos bastante empenhados. Caso contrário, poderíamos ter conseguido prolongar a nossa permanência. — Pois, eu não saberia como interferir junto de um vampiro que estivesse criando um novo servo, e, mesmo enquanto espírito, não gostaria de tentar. Como é que ela o faria? — A sibila tem o Rasputine para lhe dizer o que fazer. — Recordou-me Louis-César. — Ela iria com instruções detalhadas, e possivelmente com outros para a ajudarem. — Não seria assim tão difícil. — Acrescentou Mircea. — O indivíduo em questão tem que ser puro, sem apresentar mordida de outros vampiros de anos recentes. Têm que estar predispostos e em paz quando são criados, e saudáveis, ou, pelo menos, não gravemente doentes. Se, passados séculos, alguém interferir com alguma destas condições, um mestre poderoso como Rasputine pode ser capaz de invalidar o laço enfraquecido. — Pensou nisso por um instante. — A interferência em relação à primeira condição parece-me improvável. Teria como resultado os indivíduos não conseguirem erguer-se, o que não ajudaria à causa do Rasputine; o mestre escolheria simplesmente outros servos. Também é provável que um mestre detectasse a mordida de outro e os ignorasse.
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— O que ela teria que fazer? Ele encolheu os ombros. — Há muitas possibilidades. Envenená-los com uma toxina de ação retardante, por exemplo. Morreriam antes que se tornasse obvio que estavam seriamente enfraquecidos, e o veneno não lhes faria mal quando se levantassem. Porém, isso diminuiria severamente a ligação entre eles e seu mestre. Ou poderiam dar-lhes um estimulante suficientemente forte que os mantivesse alerta e assustados durante a transição, ao invés de pacíficos e eufóricos. — Mas, sob a forma de espírito, não podemos levar coisas conosco. — Realcei. — Onde ela levaria o veneno? — Provavelmente foi buscar o método que usou, seja ele qual for, ao lugar onde os seus aliados o tinham deixado. O Círculo Negro existe há quase tanto tempo como o de Prata — remonta a meados do terceiro milênio a.C. — e o veneno sempre foi uma das armas prediletas dos seus membros. Facilmente lhe ofereceriam o que fosse necessário. — Mas porque é que o antigo Círculo Negro havia de confiar no Rasputine? — Se era suficientemente forte para provocar este inferno, eu tinha dúvidas de que ele tivesse mesmo nascido como um plebeu russo em finais do século XIX. Provavelmente, era um nome que ele adotara, possivelmente depois de matar o dono, ou que inventara, usando depois truques mentais para fazer as pessoas acreditarem na sua história. Mas não parecia provável que ele já andasse por aqui há tempo suficiente para ter estado em Carcassonne quando eu estive lá. O Senado não teria subestimado dessa forma um vampiro assim tão antigo. — Ele é aliado dos seus congêneres modernos, que poderiam lhe indicar o que dizer. — Explicou Mircea. A sibila pode ter levado uma
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mensagem aos magos das trevas, pedindo ajuda. O Círculo de Prata é nosso aliado, e é uma aliança antiga. Interrompê-la seria um triunfo para as trevas. Minha cabeça girava. Custava muito a acreditar que o Círculo Negro, em qualquer era, se empenhasse num ganho futuro que nenhum deles iria ver. Mas o problema não era meu. — O que espera que eu faça? Que volte lá e a puxe pelo braço, ou coisa assim? Não deveria estar mais preocupado com o duelo? — E estamos. — Louis-César foi resoluto. — Daqui a menos de doze horas, está programado um duelo mortal entre mim e Rasputine. Eu irei derrotá-lo, se ainda estiver por aqui. — Planeja ir a algum lugar? Eu disse aquilo por brincadeira, mas ele não pareceu ter achado graça. — Possivelmente. Rasputine concordou com o duelo acreditando que iria defrontar a Mei Ling. Pensou que, quando eu fui nomeado como seu adversário, ele desistisse. Mas não o fez, muito embora deva saber que não consegue me derrotar. Decidi não comentar o quão presunçoso aquilo soava. — Mas ele não pode interferir com você. Você é um mestre de primeiro nível; ele não é suficientemente forte para o influenciar. Mesmo que ele enfraquecesse o seu laço com o seu antigo mestre, no seu nível isso já não tem importância. As táticas que ele usou nos outros vampiros não irão resultar.
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— Não, mas ele pode impedir que eu seja sequer criado. Pensei se devia ou não realçar o óbvio. Decidi arriscar. — Sem ofensa, estou certa de que merece a sua reputação, mas tem que haver outros campeões que a Consulesa possa escolher. Ela está aqui há dois mil anos; deve conhecer muita gente. — É verdade. — Louis-César não parecia insultado, para meu alivio. — Ela tinha outros nomes em mente, para o caso de eu recusar. — Então, qual é o problema, a não ser para você, pessoalmente? — O problema, dulceata. — Disse Mircea. — É que o Rasputine também nunca perdeu um duelo. Havia outros nomes na lista da Consulesa, mas nenhum que nos desse confiança para alcançar a vitória, independentemente das trapaças usadas contra ele. Louis-César já lutou em mais duelos do que todas as outras escolhas da Consulesa juntas. Ele tem que ser o nosso campeão, porque o nosso campeão tem que ganhar. — E o que isso tem a ver comigo? — Eu estava ficando com um pressentimento muito ruim. — Precisamos garantir que ele não volte a alterar o tempo, dulceata. Precisamos que volte atrás e o impeça de interferir com o nascimento do nosso campeão. — E como ela faria isso? —Perguntou Tomas, antes de mim. — Como é que ela pode protegê-lo de uma maldição?
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Louis-César olhava para Tomas como se ele tivesse perdido o juízo. — Qual maldição? — Não foi assim que foi criado? — Sabe perfeitamente que não! Billy Joe fluiu pela janela, numa nuvem cinzenta-clara. — Perdi alguma coisa? — Vocês estão completamente loucos. — Informei-os. Azar para os planos deles, mas eu não ia morrer pela Consulesa, nem por outra pessoa qualquer, se o pudesse evitar. — Não percebem as implicações? Eu levei Tomas comigo. Tudo bem foi por engano, mas, se eles fazem isto há tanto tempo como vocês dizem, é quase certo que já perceberam como fazer isso também. — Alguém tinha trazido a cigana para este século, e não tinha sido eu. — Eu poderia ter que enfrentar Rasputine em pessoa, e eu não sou duelista! — Perdi alguma coisa, não foi? — Billy Joe flutuou à minha volta, mas eu o ignorei. — Levou Tomas com você quando estava possuindo o corpo dele. A sibila não consegue fazer isso; o próprio Pritkin nos disse isso, dulceata. — O Pritkin é um idiota. — Relembrei a Mircea. — Não sabemos se foi por isso que o Tomas conseguiu arranjar carona. Talvez eu só precise tocar em alguém. Talvez ela também o consiga fazer.
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Billy flutuou diante da minha vista, fazendo com que toda a sala parecesse estar sendo vista através de um lenço cinzento resplandecente. — Temos que conversar, Cassie. Não vai acreditar no que eu descobri no Dante's! — Ergui uma sobrancelha, mas não me atrevi a dizer nada. Não queria alertar ninguém para a sua presença. Tinha a sensação de que iria precisar dele em breve. Tomas estava olhando para mim. — Eu sou a segunda escolha da Consulesa. Consigo lidar com o Rasputine. — Alegrei-me. Qualquer coisa que me livrasse de enfrentar o monge mau naquela casa de horrores soava promissora. Infelizmente, Mircea não parecia convencido. — Perdoe-me, meu amigo; não duvido da sua valentia, mas já vi Rasputine lutando. Você não viu. E no que à minha vida diz respeito, prefiro uma coisa garantida. Billy afastou-se alguns centímetros e pôs a mão na cintura. — Tudo bem, eu falo; você ouve. Tive um vislumbre da mente daquela bruxa que ajudou antes dela fugir com a duende. A versão condensada é que Tony e o Círculo Negro têm andado vendendo bruxas aos Elementais, e adivinha onde é que as têm arranjado? Quer dizer, os cavaleiros brancos teriam percebido se um monte de feiticeiras desaparecesse de repente, certo? - Olhei-o furiosamente. Era como ser apanhada na cadeira do dentista com um higienista conversador. Não havia maneira de conseguir responder.
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— Eu consigo derrotá-lo. — Tomas parecia seguro, mas LouisCésar emitiu um som estranho, quase como o espirro de um gato. Suponho que fosse francês. — Não conseguiu me derrotar há um século. Não está muito mais forte agora. — Teve sorte! Não voltaria a acontecer se fizéssemos outro duelo! Louis-César parecia irritado. — Não tenho que duelar com você. Sou teu dono. Pestanejei, confusa. Teria perdido alguma coisa, ao tentar seguir duas conversas ao mesmo tempo? Geralmente, os mestres e os servos tinham um laço mais forte do que estes dois demonstravam. Que diabo, embora Tony pudesse tentar matar Mircea, não falaria assim. — Achava que seu mestre era um tal de Alejandro? — Perguntei a Tomas. — E era. Fui criado por um dos seus servos, mas Alejandro o matou pouco tempo depois e me tomou para si. Estava construindo um império em terras espanholas no Novo Mundo e precisava de um guerreiro que o ajudasse. Fomos bem sucedidos e ele acabou por organizar um novo Senado, mas as suas táticas nunca mudaram. Até hoje, age como se cada pergunta fosse um desafio, cada pedido de clemência uma ameaça. Desafiei-o assim que me tornei suficientemente forte, e teria conseguido pôr fim ao seu reino de terror se não tivesse havido interferência externa. Olhei com surpresa para Louis-César.
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— Lutou com ele? O francês assentiu distraidamente com a cabeça. — O Tomas desafiou a liderança do Senado Latino-Americano. O seu Cônsul me pediu que o defendesse como seu campeão e eu aceitei. Tomas perdeu. — Disse a última frase com um leve encolher de ombros, como se quase não fosse preciso dizê-la. Parecia-me que talvez fizesse falta a Louis-César perder de vez em quando. Carregar um ego tão grande era certamente cansativo. Mas a verdade é que, se perdesse, provavelmente acabaria morto, e, neste caso, nós também. Vendo bem as coisas, talvez um pouco de arrogância não fosse assim tão mau. E pelo menos isso explicava a falta de ligação entre eles. Os servos ganhos pela força tinham que ser mantidos da mesma forma; nunca era uma relação tão próxima como a do sangue. Ocorreu-me uma coisa. — Você o desafiou? Mas teria que ser um mestre de primeiro nível para fazer isso. — Eu sabia que Tomas era poderoso, mas isto era um choque. O fato de Louis-César conseguir manter o domínio sobre um mestre de primeiro nível dizia muito sobre sua força. Eu nem sequer sabia que era possível. —Tomas tem mais de quinhentos anos, mademoiselle. A mãe dele era uma respeitada senhora da nobreza inca antes da invasão européia. —Disse Louis-César, despreocupadamente. — Foi violentada por um dos homens de Pizarro e Tomas foi o resultado. Ele cresceu numa época em que uma epidemia de varíola matara muitos nobres incas, deixando um buraco no poder. Foi capaz de organizar algumas das tribos dispersas numa força que resistisse aos avanços espanhóis e foi
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assim que Alejandro o encontrou. Embora fosse um bastardo, ele... — Tomas resmungou e Louis-César olhou-o de relance. — Uso o termo técnico, Tomas. Se me lembro bem, também sou um bastardo. — Não é provável que eu me esqueça disso. As barras tremeluzentes de poder estavam de volta, mais fortes do que antes, e, desta vez, fui apanhada no meio. Parecia que dois chuveiros de água quente tinham sido lançados sobre mim, e gritei. — Parem com isso! —As minhas desculpas, mademoiselle. — Louis-César inclinou a cabeça. — Tem toda a razão. Castigarei o meu servo mais tarde. Tomas olhou-o furiosamente, de modo imponente. — Vai tentar. —Tomas! — Eu e Mircea dissemos ao mesmo tempo, no mesmo tom exasperado. Louis-César lançou-lhe um olhar de aviso. — Tenha cuidado com o modo como fala comigo, Tomas. Não vai querer que eu torne o teu castigo ainda mais... abrangente. — É uma criança, comparado comigo! Eu já era um vampiro mestre antes sequer ter sido criado! Louis-César sorriu ligeiramente, com os olhos faiscando em prata.
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— Não era mestre o suficiente. Billy abanou uma mão pálida à minha frente. — Está me ouvindo? Tenho grandes novidades! Murmurou. — Mais tarde. — Mas ele não foi embora. — Isto é importante, Cass! O Círculo Negro manteve o negócio escondido roubando bruxas que estavam fadadas a morrer novas, num acidente ou na Inquisição ou onde quer que fosse. Podiam agarrá-las na última hora e depois vendê-las aos Elementais, sem se preocuparem com que alguém sentisse falta delas e fizesse queixa. Ninguém esperava voltar a ver alguém levado pela Inquisição — eles não absolvem muita gente, sabe? Era um truque legal para contornar o tratado. — Mas como eles sabiam? — Como poderia saber com antecedência que alguém estava destinado a morrer? A não ser que... Mircea me deu um olhar estranho e eu sorri inocentemente. Foi um erro. Aqueles astutos olhos escuros examinaram a sala, mas nenhum vampiro mestre consegue ver Billy. — Aquela bruxa que você salvou foi seqüestrada por um grupo de magos das trevas naquela mesma noite. — Explicou Billy. — Os ciganos sempre se mantiveram à parte de ambos os círculos, portanto suponho que eles tenham achado que podiam levá-la sem alertar os cavaleiros brancos. — Franzi a sobrancelha. Isso ainda não explicava como ela acabara no nosso século, já que tinha sido levada por pessoas do seu tempo, mas não tinha como perguntar. Mircea interveio antes que as coisas esquentassem ainda mais entre os vampiros.
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— Posso lembrá-los que, enquanto estão aí medindo forças, o tempo se esgota e as nossas hipóteses também? A essa disputa pode esperar; o nosso assunto não. — Mas a mademoiselle não quer fazê-lo. — Disse Louis-César, passando a mão pelo cabelo. Parecia ser um tique nervoso. Reparei que seus cachos eram mais escuros do que eu lembrava da minha visão, ou seja, lá o que era aquilo. Fiquei pensando se seria uma ilusão da luz ou se centenas de anos longe do sol escureciam o cabelo arruivado. — Receava que isto acontecesse. E não podemos obrigá-la. Eu e Mircea olhamos para ele, depois um para o outro. — Ele é real? — Não resisti a perguntar. Mircea suspirou. — Ele foi sempre assim; é o único defeito que tem. — Sorriu para mim, e era o sorriso de Tony — o seu sorriso de deixem de brigar e vamos direto ao assunto. Foi àquela expressão que me relembrou o trabalho que Mircea executou para o Senado. Ele era o principal negociador da Consulesa e, apesar dos rumores, não recebera a posição por causa do respeito que os vampiros em todo o mundo tinham ao seu nome de família. Podiam estar satisfeitos por conhecê-lo, pelo prestígio que isso envolvia, algo semelhante a uma pessoa normal poder se sentar à mesma mesa com a sua estrela de cinema favorita, mas isso não iria beneficiá-lo à mesa de negociações. Não, Mircea ganhara o lugar com justiça, sendo o melhor representante do Senado sempre fazendo acordos. E isso com pessoas que ele não conhecia tão bem como me conhecia, nem de perto nem de longe.
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— O que vai querer, dulceata? Segurança, dinheiro... A cabeça de Antonio numa travessa de prata? — Essa última é tentadora. Mas não é suficiente. Eu e Mircea tínhamos pulado a cena toda da recusa e começáramos logo a discutir. Não valia a pena falar que Mircea me mataria se eu dissesse que não. Faria porque não tinha alternativa — se não o fizesse, a Consulesa daria a missão a outro qualquer — e porque seria rápido. Mais rápido do que Jack. Não me agradava a tarefa que me haviam dado, mas, comparada com uma noite com o menino dos olhos da Consulesa, era fácil. Mas o fato de eu não ter alternativas não significava que não devesse cobrar pelos meus serviços o máximo possível. Afinal de contas, tratava-se de uma economia de mercado. Quem podiam escolher além de mim? Mircea estava com ar de quem estava pensando se a postura de ultrajado por eu ter pedido a vida de um dos seus mais antigos empregados iria resultar. Revirei os olhos. — Não se incomode. Dar a cabeça de Tony não é nada de especial, e você sabe disso. Ele te traiu. — Tem que matá-lo. Ele sorriu ligeiramente. — É verdade. Mas isso também te resolveria um problema, não é? — Mas não vai te custar nada. A tua vida não valerá um pouco mais?
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— Então, de que outra coisa gostaria, minha bela Cassandra? Deu um passo em frente, com um brilho nos olhos, e eu coloquei a cadeira entre nós. — Nem tente. Ele sorriu, sem remorsos. — Então, faça seu preço. — Quer a minha ajuda? Diga-me o que aconteceu a meu pai. Rafe deu um guincho espantado e arregalou os olhos a Mircea, que suspirou e abanou a cabeça com repulsa. Senti-me solidária; a cara de pôquer de Rafe sempre fora uma miséria — eu comecei a ganhar nas cartas quando tinha oito anos — e era óbvio que não tinha melhorado. Acalmou perante o desagrado de Mircea, mas o estrago já estava feito. Mesmo assim, Mircea me enfrentou, não esperaria outra coisa dele. — O teu pai, dulceata? Morreu com uma bomba no carro, não foi? Esse não é um dos motivos por que está zangada com o nosso Antonio? — Então a que Jimmy se referia? Disse para não o matar porque ele sabia a verdade sobre tudo que tinha acontecido. Mircea encolheu os ombros. — Uma vez que ele era o "assassino contratado”, não é essa a expressão? — para o trabalho, estou certo de que conhece os detalhes, dulceata. Porque não pergunta a ele?
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— Porque Pritkin acabou com ele antes que eu o fizesse. Mas você sabe, não sabe? Mircea sorriu, e mais uma vez percebi onde Tony foi buscá-lo. — O teu preço é o conhecimento? Olhei para Rafe e ele olhou para mim. Pensei que ele estava prestes a falar quando a mão de Mircea desceu sobre o seu ombro. — Não, não, Rafael. Não seria justo dar à nossa Cassandra uma informação pela qual ela ainda não pagou. — Sorriu, com mais calculismo do que afeto. — Estamos combinados? Olhei de relance para Billy, que flutuava perto do teto com um ar inquieto. Ele não fez comentários, por isso achei que as novidades dele não tinham nenhum peso na minha escolha. Lancei-lhe um olhar bravo e ele desapareceu, irritado, por eu não ter largado tudo por causa dele. Típico. Teria preferido descobrir mais coisas antes de concordar com as condições de Mircea, mas não tinha muitas alternativas. É difícil aumentar muito o preço quando se é uma coisa garantida, e o comprador sabe disso. Não tinha literalmente outra escolha senão ajudá-los, portanto, tecnicamente, Mircea estava sendo generoso ao oferecer alguma coisa. É claro que, provavelmente, ele queria que eu desse o meu melhor em minha missão, pelo que me manter de bom humor valia uma ou outra concessão. Ou talvez ele gostasse de mim. Não, esse tipo de pensamento era perigoso. — Está bem. Estamos combinados. Conte-me. — Daqui a pouco, dulceata. Primeiro, creio que temos que informar o Senado. Tomas, se não se importar? Pode haver instruções finais para ela. — Ele reparou na expressão desobediente de Tomas. —
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Te dou a minha palavra que esperaremos por você para o ataque. Vai acompanhá-la, não vai? — Sim. — Tomas olhou-me de maneira desafiadora, mas eu não me opus. Se Rasputine aparecesse mesmo, seria bom ter alguém comigo, sobretudo alguém que já demonstrara que sabia cuidar de si mesmo numa emergência. Nem que fosse apenas para ter companhia quando tudo fosse para o inferno. Tomas começou a dizer algo mais, mas parou quando Mircea se pôs a meu lado e colocou a mão em meu ombro. — Agora, Tomas! — Louis-César parecia impaciente. Tomas olhou o furioso, mas foi embora, batendo com a porta atrás de si. — E precisamos das Lágrimas, não é verdade? Para jogarmos pelo seguro. — Louis-César assentiu com a cabeça e saiu logo depois de Tomas. — As Lágrimas? Vou querer saber? — Nada que te preocupe, te garanto. — Mircea sorriu de forma reconfortante. — As Lágrimas de Apolo são um preparado antigo. Há séculos que são usadas como ajuda aos transes meditativos. São bastantes seguras. — Mas porque precisamos delas? Não as usei anteriormente. — E ficaste rapidamente sem energia. Elas vão te ajudar, Cassandra. Lembre-se que tenho absoluto interesse que isto corra bem. Não iria mentir para você. — Acreditei mais naquela resposta do que teria acreditado numa declaração de preocupação pelo meu bem-estar, e assenti com a cabeça. Eu usaria as malditas Lágrimas, fossem elas o que fossem. Tudo o que servisse para aumentar as probabilidades de êxito.
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Mircea olhou de relance para Rafael. — Faria o favor de ver se já arranjaram roupa para Cassie? Ela deve estar cansada de andar com um robe tão grande. — Fez um sorrisinho estranho. — Demore o tempo que for preciso. Rafe pareceu inseguro — percebi que, por alguma razão, ele não queria me deixar sozinha com Mircea — mas foi. Mircea trancou a porta atrás dele e encostou-se a ela, observando-me com uns olhos subitamente sérios. — E agora vamos às verdadeiras negociações, minha Cassandra.
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Capítulo 12 Olhei cautelosamente para Mircea. — Eu não sou a sua Cassandra. Ele começou a desabotoar as presilhas que restavam na sua camisa. — Me dá um tempo, docinho, e já veremos. — Tirou a camisa e a jogou para a ponta do divã. Não tinha nada vestido por baixo. — O que está fazendo? — Me endireitei, com a pulsação acelerada apesar de ele não ter feito nada realmente alarmante. Mas estava parado entre mim e a porta, e aquele rosto sedutor tornou-se subitamente muito intenso. Mircea começou a tirar os sapatos altamente lustrosos. — Preferiria que tivéssemos mais tempo, docinho. Há muito que esperava a renovação da nossa amizade, mas não era bem este o cenário que imaginava. No entanto. — Parou para arrumar os sapatos e as meias perto do sofá. — Começo a perceber que, contigo, o melhor é assumir o inesperado. Eu poderia dizer o mesmo em relação a ele. — Deixa disso, Mircea. Diz-me o que está acontecendo.
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Ele me observou fixamente enquanto retirava lentamente o cinto das presilhas das calças. — Presumo que não deseje ser entregue ao Círculo? — O que é que isso tem a ver com o fato de estar tirando a roupa? O que é isto? Mircea fez a ronda à sala — não havia outra maneira de descrever a forma como se movia e ajoelhou-se aos meus pés. Ergueu os olhos para mim com sentimentalismo. — Pense nisto como um resgate, docinho. Sou o cavaleiro que vem te salvar de todos aqueles que querem o seu mal. Abafei uma gargalhada. — Essa deve ser a cantada mais foleira que já ouvi. Mircea fez um ar exagerado de ofensa que me levou um sorriso relutante à cara. — Me Magoou! Garanto-te que, outrora, como se costuma dizer, era exatamente isso que eu era. Pensei nisso e, tecnicamente, ele tinha razão. É claro que os cavaleiros verdadeiros, com armaduras reluzentes, não eram bem como nas lendas. A maioria deles passara mais tempo extorquindo impostos dos plebeus do que salvando damas. — Muito bem. E o que você é agora? Ele não respondeu, mas eu reparei que os seus olhos tinham passado a um brilhante âmbar cor de canela. Da única vez que eu o vira
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assim, ele estava ameaçando a vida de Pritkin, mas agora não parecia estar zangado. Levou a mão à nuca para retirar o travessão de platina do seu cabelo comprido e escuro. — O Círculo exige que te devolvamos, docinho, e, pelo tratado que temos com eles, não temos o direito de recusar. Se fosse uma humana normal, a reivindicação de qualquer mestre seria suficiente para te manter, mas isso não acontece com uma poderosa vidente. A corte da Pítia exerce controle sobre todos esses indivíduos. — O seu cabelo se espalhava pelos ombros e costas como um manto negro. O contraste entre o cabelo escuro e a perfeição pálida da sua pele era hipnotizante. Ele me viu a admirar o seu cabelo e a sua voz reduziu-se a pouco mais do que um murmúrio. — Antigamente você gostava do meu cabelo, docinho, lembra? Quando era criança, gostava de fazer tranças. Eu andava pela corte de Antonio com tantos penteados e enfeites como uma boneca. — Levantou minhas mãos e colocou-as sobre os seus ombros, debaixo do grande peso daquele cabelo. Parecia uma madeixa de seda a me cobrir as mãos, e eu não sabia bem o que me distraía mais, se o toque do seu cabelo, se os músculos rijos dos seus ombros. — Não me importava que brincasse comigo, docinho. — Moveu a cabeça para dar um beijo nas costas da minha mão. — Continuo a não me importar. Abri ligeiramente os meus escudos para perceber se ele estava imitando Tomas tentando me influenciar, mas não havia sinais de manifestações de poder. O ímpeto revigorante que eu sentira antes simplesmente não existia. Mas a verdade é que ele não precisava realmente dele. Roçou levemente a face na minha mão e eu percebi que ele provavelmente conseguiria ouvir o bater do meu coração no pulso. Engoli em seco.
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— O que você quer, Mircea? As mãos dele tinham se mexido enquanto eu estava distraída e foi um choque senti-las deslizar subitamente para dentro do meu robe e me envolver a cintura. Eu não o sentira tirar meu cinto, mas ele não estava lá. O robe não se abriu muito, mas foi o suficiente para expor uma linha de pele do pescoço ao umbigo. Quis fechá-lo, mas Mircea tirou de lá a minha mão e comprimiu a palma contra os seus lábios. Senti um suave toque de língua enquanto ele a passava lentamente na minha pele, como se a saboreá-la. Um rasgo de desejo percorreu a totalidade das minhas terminações nervosas, partindo do seu beijo, me fazendo ofegar. — Mircea... — Tem noção daquilo que sabe, minha Cassandra? — Perguntoume suavemente. — Nunca conheci nada assim. Sobe-me à cabeça como aguardente velha. — Inspirou profundamente a pele acima da minha pulsação. — Não pode imaginar o quão intoxicante é o teu cheiro. — O seu polegar deslocou-se ligeiramente na minha cintura, subindo e descendo pelo centro da minha caixa torácica. Não era um toque exageradamente sexual, mas eu recuperei o fôlego. — Oh, que bom que sabe. — Mircea, por favor. — Tudo o que quiser. — Sussurrou o grande negociador, inclinando-se de modo a falar quase tocando minha boca, o seu hálito quente sobre os meus lábios. A boca dele assombrou a minha, suave, quase imperceptível, e eu estremeci. Ele disse que íamos negociar, mas nem sequer estava tentando estabelecer um acordo, o que, só por si, era assustador. — Tudo o que esteja ao meu alcance te dar, é teu. — A sua
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mão voltou à parte da frente do meu robe, com um dedo percorrendo a linha de pele à mostra entre o pescoço e o umbigo. Fiquei com pele arrepiada em todo esse percurso e recuperei o fôlego. Tentei me zangar, encontrar alguma emoção que pudesse conter o arrepiante lampejo de prazer. — Que diabo, Mircea! Sabe que detesto jogos! — Nada de jogos. — Prometeu ele, contraindo-se no meio das minhas pernas, apartando-as com o seu corpo. O robe abriu-se a meio das minhas coxas, mas eu não conseguia fechá-lo com ele ali ajoelhado. Tentei enxotá-lo, desejando alguma distância entre nós para conseguir pensar, mas foi como empurrar uma estátua de granito. — Quer que eu implore? — Sussurrou ele, levantando aqueles olhos reluzentes para mim. — Não, eu... — Olhei ao redor em busca de Billy, mas ele tinha saído amuado. Droga! — Eu imploro — Murmurou ele, antes que eu conseguisse formar uma frase. Estava suficientemente próximo para eu perceber que cheirava tão bem como parecia, não a água-de-colônia cara, como eu esperava, mas limpo e fresco, como o ar depois da chuva. — E suplico. — As suas mãos deslizaram para dentro do robe para me acariciar a barriga das pernas — De boa vontade. — Subiram até aos meus joelhos, afagando a pele sensível da parte de trás. — Alegremente. — Massagearam um trilho pelas minhas coxas acima. — Sofregamente. — E pararam na minha intimidade, com os polegares apalpando suavemente a carne. — Se você quiser.
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Enterrou a cara na minha barriga e as minhas mãos mexeram-se por vontade própria para pentear aquele cabelo pardo. Espalhei-o pelos seus ombros, enquanto ele me beijava pelo corpo acima. Esforcei-me por clarear as idéias, mas os seus lábios reivindicaram os meus num beijo ardente que me deixou em brasa até às pontas dos dedos. Depois deixou cair à cabeça e começou a beijar a mesma parte do corpo de cima para baixo, com movimentos lentos e quase veneradores. A sensação de ar fresco nos meus seios quando ele me abriu completamente o robe clareou um pouco minhas idéias, mas era difícil conseguir pensar com o desejo me invadindo. — Você é linda, docinho. — Murmurou ele, com as mãos me tocando de leve, de forma reverente. — Tão macia, tão perfeita. — O seu toque era tão quente que eu achei que iria deixar marcas. O seu hálito na pele sensível do meu mamilo era eletrificante; a sua língua, quando se seguiu passado um momento, era quase avassaladora, e quando ele começou a chupar, puxando profundamente, o prazer explodiu dentro de mim com tanta força que quase foi doloroso. — Mircea, por favor... me diz o que está acontecendo! Em resposta, ele me levantou repentinamente nos seus braços e me levou no colo até o quarto. Abanou uma mão e os cortinados das janelas se fecharam subitamente. Deitou-me com cuidado na cama e começou a desabotoar as calças. — O Círculo de Prata te quer muito, Cassie. O Antonio lhes disse que tinha morrido no carro com os teus pais e eles só perceberam que não era assim quando a tua sentinela chamejou pela primeira vez há alguns anos. Era a sentinela do próprio Círculo que sua mãe transferiu dela para você, e é inconfundível. Andam atrás de você desde então. Enquanto for apenas uma sibila falsa, eles têm direitos sobre você, como acontece com todos os utilizadores de magia humanos. Não há maneira de contestar a reivindicação deles sem
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nos arriscarmos a uma guerra. Bem. — Despiu as calças — Quase nenhuma maneira. Só o fato de ver Mircea apenas com uns boxers de seda preta vestidos era suficiente para me confundir a cabeça, não era preciso saber que a sociedade mágica mais poderosa da terra, que por acaso me odiava, tinha o direito de decidir o meu futuro. — Não entendo. Mircea subiu na cama e eu cheguei para trás até bater na cabeceira. Ele sorriu e, na brincadeira, puxou a ponta do meu robe, com que eu me enrolara para me proteger. — Você é adorável em tudo, docinho, mas eu preferiria dispensar essa roupa. Se soubesse que isso iria acontecer, teria arranjado algo mais apropriado. — Fez deslizar as mãos lentamente pelas minhas pernas, apalpando-as à medida que ia subindo. — Irei garantir a correção desse erro na primeira oportunidade. — Mircea! Quero uma resposta! — Afastei-me dele e olhei-o furiosamente. Depois de uma pausa, ele se sentou sobre os calcanhares, com um ar lastimoso. — Porque é que eu sabia que não ia ser assim tão fácil? — Suspirou. — Docinho, tem de ser um de nós. Você pareceu reagir melhor a mim, e eu iria sentir-me honrado por ser a sua escolha, mas, se prefere um dos outros... Não me agradará, mas, dadas as circunstâncias, irei concordar. — Do que você está falando? — Estava ficando zangada por ele continuar me ignorando.
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— O Tomas não foi enviado apenas para te guardar, Cassie. Manter-te em segurança era a sua função principal, mas ele também foi instruído no sentido de assegurar que a reivindicação do Círculo pudesse ser satisfatoriamente contestada. — Mircea arqueou uma sobrancelha. — Começo a perceber porque é que ele fracassou. — Eu... O que está fazendo? — Mircea passara uma mão pela sua cascata de cabelo e agora deslizava aquelas mãos de belas formas pelo peito abaixo, fazendo-as escorregar sobre os mamilos. Não tinha pêlos no tronco, que era perfeitamente esculpido, com músculos tonificados e uma longa cintura. Seguiu os contornos da sua barriga lisa até à fronteira descaída da única roupa que lhe restava. Demorou ali os dedos, fazendoos deslizar provocadoramente por aquela barreira insubstancial, atraindo os meus olhos para a linha de pêlos escuros que começava abaixo do seu umbigo e desaparecia por baixo da seda preta. O contraste com a pálida perfeição da sua pele era impressionante, e o tênue rosa dos seus mamilos, lhe conferia a única cor que o seu tronco apresentava. — Fazendo, docinho? — Perguntou de modo inocente. — Estou dando o meu melhor para te seduzir. De repente, esticou-se para frente e tomou as minhas mãos nas dele, acariciando-lhes as costas com os polegares. — Vou te fazer uma oferta. Responderei a uma das tuas perguntas por cada prazer a que te permitas; estamos combinados? — O quê? — Olhei-o fixamente. — Nem acredito que disse isso! — Mircea sorriu e, de repente, a velha versão provocadora voltou.
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— Você me deixa poucas alternativas, Cassie. Vai olhar, com tal desejo, mas não vai tocar. E eu quero o seu toque; quero muito. Pôs minhas mãos na barriga dele, mesmo acima da fronteira de seda. Como me limitei a ficar ali sentada, de boca seca e estupefata, ele suspirou. — Mas os meus encantos não parecem ser suficientes, por isso ofereço uma troca. Como sinal da minha boa fé, eu começo. O Círculo pode te comandar enquanto sibila falsa, mas não se você se tornar a Pítia. Nessa altura, ficará fora do alcance deles, Cassie; na verdade, irá se tornar superior a eles, por assim dizer. E o Pritkin não foi completamente verdadeiro. A sibila escolhida, a herdeira do poder da Pítia, deve permanecer casta durante a sua juventude, suspeito que para evitar que alguém obtenha uma influência indevida sobre ela. Mas não pode progredir para Pítia nessas condições. Todas as fontes antigas concordam: em Delfos, foi selecionada uma mulher madura e experiente passados os anos iniciais, porque descobriram que o poder escapava das jovens. — Tornou a sorrir e deslocou as minhas mãos mais para baixo, de modo a que eu sentisse os seus contornos, que se tornavam firmes sob o meu toque. — Ninguém sabe bem porque, mas o poder não passa por inteiro para uma virgem, Cassie. Olhei-o fixamente. — Só pode estar de brincadeira. — É claro que isso explicava o motivo por que todos, à exceção de Rafe, estavam vestidos como se estivessem a caminho de uma sessão fotográfica da Playgirl. Mircea não respondeu, limitando-se a percorrer a parte de trás dos meus joelhos com aquelas mãos talentosas, acariciando a pele de leve. De alguma maneira, ele já tinha percebido o que aquilo me fazia. — Tentamos facilitar as coisas. Enviamos o Tomas, que não costuma ter dificuldade em, como vou dizer, persuadir as mulheres a
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desfrutarem dos seus encantos!? Mas você o rejeitou, apesar de tudo o que ele fez para conseguir o seu afeto. — Mircea riu-se brevemente. — Acho que feriu o orgulho dele, docinho. Não estou certo de que alguma vez ele tenha sido rejeitado. Engoli em seco. — Ele podia ter me obrigado. O rosto de Mircea perdeu o ar de diversão. — Sim. — Concordou com leveza — E eu lhe teria tirado o coração, como deixei bem claro antes dele partir. — As mãos nos meus joelhos deslizaram até às minhas coxas e Mircea me agarrou com força. — Você é minha, Cassie. Eu mesmo iria até você se soubesse que a atração entre nós iria ser tão forte. Mas devo admitir que, até hoje, nunca olhei realmente para ti como uma jovem mulher. Para não dizer que parti do princípio de que iria se sentir pouco à vontade se o teu "Tio Mircea" adquirisse repentinamente um tal interesse. — Nunca te chamei disso. — Também nunca tinha pensado nele dessa maneira. Ter onze anos é pouco, mas não pouco o suficiente para uma paixão, e a minha fora forte. Parecia que as coisas não tinham mudado, pelo menos para mim. Nem por um segundo acreditei que Mircea sentisse alguma coisa. Era a vez dele fingir que me queria, para eu poder continuar a ser usada. Doía ter certeza de que as tentativas de sedução de Tomas tinham sido a mando da Consulesa e que as de Mircea provavelmente também eram, mas não era surpresa. No que à minha vida dizia respeito, eu aprendera há muito tempo que todo mundo queria me usar para alguma coisa. — Sobre o que mais Pritkin mentiu? — Mircea sorriu maliciosamente.
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— Isso é uma pergunta, docinho? — Engoli nervosamente em seco quando as mãos dele começaram a massagear a parte de baixo das minhas coxas. Ele reparou no meu ar confuso com um pequeno suspiro. — Não vou te magoar, Cassie. Juro que não sentirá nada além de prazer com o meu toque. — Vai responder à pergunta, por completo? — Não cumpro sempre as minhas promessas? — Assenti com a cabeça; isso era verdade. Pelo menos até agora. Ele sorriu abertamente e sentou-se sobre os calcanhares. — Muito bem, em que é que o Pritkin mentiu? — Pensou por um instante. — Em grande parte, docinho, ele não mentiu; simplesmente omitiu. Estava sendo sincero quando disse que se a sibila se passou para as trevas ou foi morta, o poder irá passar para outra pessoa. Mas foi menos sincero quando negou, de modo muito pouco convincente, que este irá te escolher assim que esteja... disponível. — Porque é que o Círculo detesta a idéia de eu ganhar o poder? O riso intenso de Mircea espalhou-se pelo quarto. — Eles a odeiam porque te temem. Ninguém pode comandar a Pítia. O Círculo está fadado a protegê-la, até a lhe obedecer em certas coisas, e você é a primeira em séculos que detém potencialmente o poder e que eles não doutrinaram desde que nasceu. Não iria ser o fantoche deles, como foram tantas outras Pítias. Iria usar o poder do modo que achasse apropriado, e isso poderia significar fazê-lo em oposição aos desejos deles, às vezes. — Parou por um segundo para despir os boxers, atirando-os para o lado com naturalidade. Os vi cair no tapete com o coração na garganta, e me recusei a olhar para ele.
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— Me disseram o que o mago das trevas te disse, Cassie. Ele te disse a verdade, mas, mais uma vez, apenas em partes. A mítica Cassandra foi à única vidente que se recusou terminantemente a estar sob o jugo de alguém. Fugiu até do próprio Apolo, para evitar ter alguém ditando a forma como o seu dom deveria ser usado. O Círculo teme que faça jus ao teu nome. — Está dizendo que tenho um exército inteiro de Pritkins atrás de mim? — Eu estava horrorizada. Tinha estado cercada por quatro vampiros mestres, um deles o campeão de duelos em título, e mesmo assim ele quase me matara. — Não necessariamente. Se for suficientemente maleável para ser usada, eles não tentarão fazê-lo. O Pritkin foi sincero quando disse que a atual Pítia está morrendo e que não conseguirá controlar o dom por muito mais tempo. Eles perderam a sibila deles e precisam urgentemente a encontrar ou localizar uma outra. Mas se vêem perante um dilema: não querem que o poder passe para você, mas quem pode dizer para onde irá se te eliminarem? Possivelmente para uma das suas outras adeptas, mas também é possível que seja para outra vigarista cuja existência eles desconheçam. Se recuperarem a sua sibila perdida ou se você se fizer de difícil, eles poderão arriscar te matar; caso contrário, irão sem dúvidas tentar te reger. Seja como for, docinho, está muito melhor conosco. Achei que isso era discutível, mas, se o resto do Círculo fosse como Pritkin, não queria decididamente conhecê-los. — O que está dizendo? Fazemos amor e, pimba, eu sou a Pítia? É disso que se trata tudo isto? Mircea riu, um som alegre e levemente maléfico.
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— Essa é outra pergunta, e ainda tem de pagar pela última. Levantei os olhos para a cara dele e os mantive resolutamente aí. — O que você quer? Ele sorriu, e desta vez foi meigo. — Muitas coisas, Cassandra, mas, por agora, me basta que olhe para mim. — Eu estou te olhando. — A única resposta que recebi foi o silêncio. Suspirei. Normalmente, não era particularmente tímida. Era freqüente Rafael ter modelos masculinos nus a andar pela casa e eu já vira a nudez utilizada como parte de um castigo inúmeras vezes. Mas este não era um qualquer desconhecido; era Mircea, que, de repente, passara de uma fantasia intocável a uma coisa muito real. Eu não era muito tímida para o olhar, como ele deve ter pensado. Estava me esforçando muito para não pular em cima dele, pelo menos até obter algumas respostas, e contemplar aquele corpo estrondoso sem poder tocar era uma coisa muito próxima da tortura. Molhei os lábios e aceitei o inevitável. Os meus olhos percorreram os delicados ossos do seu rosto e a curva perfeita dos seus lábios, descendo até à rija superfície lisa dos seus ombros e peito, chegando à barriga e à tênue linha de pêlos que anteriormente me parecera tão intrigante. Tinha um corpo soberbo, como uma estátua de mármore animada, uma dessas esguias obras primas de um gênio grego antigo. O seu sexo era perfeitamente proporcional ao resto do corpo, incircunciso e pálido, mas ruborizado por um matiz rosado escuro. Ele já estava semi-ereto, mas, quando o meu olhar se demorou, ele aumentou, ganhando peso e comprimento quase por magia. As suas pernas eram
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do melhor que eu já vira num homem, e os pés tinham uma forma tão delicada como as suas mãos elegantes. Era extraordinário. Ouvi-o inspirando de forma irregular. — Como é que consegue me fazer sentir assim só com um olhar? Toque-me, docinho, ou me deixa te tocar, senão enlouqueço. Pronto, talvez eu estivesse enganada. Mircea podia estar fazendo isso a mando da Consulesa, mas não se opunha propriamente à idéia. Isso me fez sentir um bocadinho melhor. — Responde à pergunta. — Disse eu, com uma voz estável, embora tenha saído pouco mais alta do que um sussurro. Ele gemeu e virou-se de barriga para baixo, oferecendo-me uma visão de nádegas comprimidas e ombros tensos. — Vai ter de repetir a pergunta. A minha concentração está fraca. — Se fizermos isto, eu serei a Pítia? — Isso eu não sei, nem ninguém sabe. O poder irá se transmitir em breve, quase certeza, para você ou para a sibila perdida. Só estamos tentando te manter na corrida, por assim dizer. Se a Pítia morrer e você ainda for virgem, o poder poderá passar para a sua rival. — Isso não me soa assim tão mal. Se o que tenho vivenciado é apenas parte do poder dela, não me parece que queira o resto. — Nem mesmo para ajudar o seu pai?
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Pestanejei. Não podia acreditar que me esquecera disso. Tal era o estado de confusão da minha mente. — Você prometeu me falar dele, e isso não faz parte desse acordo! — Mircea olhou para mim por baixo de uma cortina de seda escura. — Não tem piedade, docinho. E ainda não me pagou pela sua última pergunta. — Me fale do meu pai e talvez te pague. Mircea rebolou para fora da cama e começou a andar, o que não ajudou nada à minha pulsação. Em vez de se limitar a andar, ele me atormentava, como um grande felino da selva. — Muito bem. — Virou-se para mim de repente, com os olhos faiscando de dourado. — Já que você insiste, vamos falar sobre isso. Eu não queria te contar, mas me obrigou a isso. O Roger está morto, tal como te disseram. Morreu, mas não desapareceu. — Quer dizer que é um fantasma? — Abanei a cabeça. — Não é possível. Eu saberia. Ele teria vindo até mim — eu estive na casa do Tony durante anos. Não era propriamente difícil de encontrar. Mircea parou perto da cama, muito perto para me sentir à vontade, e prosseguiu como se eu não tivesse o interrompido. — O Roger era um empregado do Antonio, na verdade um dos seus humanos preferidos. O que tornou a sua traição ainda mais amarga. Foi assim que o Tony interpretou a recusa dele em te entregar quando tal lhe foi ordenado. Ele não podia deixar o Roger vivo e evitar a
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humilhação, mas não queria que a sua morte o privasse do dom do seu pai. Foi dele que recebeu a sua ligação com o mundo espírita, ele também era notoriamente capaz de fazer dos fantasmas seus servos. — Não é isso que eu faço! — Ele me ignorou. — Pode chamar do que quiser. Basta dizer que, por um tempo, o Antonio achou que isso era útil. Foi esperta ao esconder-lhe esse fato, docinho. Perguntei-lhe se também tinha esse dom, além da Vidência, e ele disse que não. — A Eugenie me disse para não contar. — Só agora percebi o porquê. É claro que os fantasmas podiam ser úteis, sobretudo quando se lidava com outras famílias. Como os vampiros não conseguem detectálos, eles são espiões perfeitos. Que diabo, ele até podia os mandar saber o que o Senado andava fazendo. Era uma grande vantagem. — O que aconteceu? — Os seus pais fugiram quando perceberam que tinha herdado os seus dons, sabendo que o Tony se apoderaria de você. Ele mandou os seus melhores operacionais atrás deles e pagou a uns magos das trevas para que criassem uma armadilha para o seu pai enquanto ele esperava. Tinha sido concebida para lhe aprisionar o espírito quando este lhe deixasse o corpo depois da morte, e funcionou na perfeição. Quando soube o que tinha sido feito ao Roger, ordenei ao Antonio que o libertasse, mas ele se opôs. Preferiu mantê-lo confinado como castigo perpétuo e um aviso para outros, apesar de ter descoberto que o Roger já não conseguia comandar fantasmas, agora que era um deles. — Mas ele o libertou por ordem sua, certo? — Eu não gostava do rumo que a conversa estava tomando.
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— Ele jurou que era impossível e me disse para pedir a um mago da minha escolha que examinasse a armadilha. Assim fiz. — Olhou para mim com pena. — Contratei o melhor, Cassie, pois gostava do seu pai. Mas o mago, um membro do próprio Círculo que me devia um favor, me disse que nunca tinha visto nada assim e que nem todo o seu poder era suficiente para a quebrar. Conseqüentemente, o fantasma do seu pai ainda reside com o Antonio. Senti os lábios dormentes. Não queria acreditar nele, mas era exatamente o tipo de coisa que o Tony faria. —Deve haver uma maneira de quebrar o feitiço. — O Círculo de Prata deve ter poder suficiente para tratar disso. Foi o que meu companheiro deu a entender. Mesmo que tenha sido o próprio Círculo Negro a gerar a armadilha, o de Prata é mais forte. Mas eles não desempenhariam tal tarefa por vontade própria. Eles desprezam o seu pai, como desprezam qualquer humano que trabalhe para nós, e culpam-no por ter seduzido a sua mãe para longe deles. Não ajudariam nem que fosse a pedido da própria Consulesa, mas se fosse a nova Pítia a pedir... — Não poderiam recusar? Mircea sentou-se na cama ao meu lado. Mantive resolutamente os olhos nos dele. — Podem, certamente, mas duvido que recusassem. Se o poder passar para ti, Cassandra, eles irão engolir o orgulho e tentar te cortejar. Se achassem que podiam comprar o teu apoio com tal tarefa, é provável que fizessem das tripas coração para conseguirem.
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De repente, eu estava deitada de costas e Mircea estava apoiado nas mãos e nos joelhos, pendendo sobre mim. — E agora, docinho, creio que me deve uma coisinha. Eu tinha uma série de outras perguntas, mas elas escaparam momentaneamente, juntamente com a minha capacidade de articular frases coerentes. Mircea me sentou e despiu meu robe, atirando-o contra a parede como se este o ofendesse. As suas mãos voltaram a deslizar lentamente pelos meus braços, dos ombros aos pulsos. Deitoume cuidadosamente de costas e deixou que os seus olhos vagueassem sobre mim tal como eu lhe havia feito. Surpreendeu-me ao demorar o tempo que quis, e o peso do seu olhar bastou para me contrair os mamilos e deixar todo o meu corpo tenso. As suas mãos não tardaram a seguir o trilho que os olhos tinham iluminado. Começou pelos meus tornozelos, depois percorreu lentamente meu corpo, acariciando e provocando a carne enquanto subia. Quando chegou aos meus joelhos, eu já me contorcia, já gemia quando ele parou para me massagear o baixo ventre e já estava completamente sem fôlego quando tornou a aprisionar-me os seios. No entanto, ele continuou a passar os dedos pelo meu pescoço e rosto, demorando-se ligeiramente nos meus lábios, depois subindo pelo meu cabelo. Quando parou, senti como se tivesse o corpo ardendo e, a julgar pelo rubor que lhe manchava a habitual tez madrepérola, ele também não estava completamente insensível. Engoliu várias vezes em seco antes de encontrar a voz. — Se tem uma pergunta, Cassie, sugiro que faça depressa. — Não estava certa de conseguir pensar em alguma, mas precisava mesmo de algo que o distraísse, senão iria me tornar muito em breve uma candidata elegível para o cargo de Pítia.
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— Como é que me encontrou? — Abriu minhas pernas e rastejou para o meio delas. Senti-me terrivelmente exposta e nada preparada para aquilo. — Mircea! — Juro que vou responder à sua pergunta, Cassie. — Disse ele, com os olhos âmbar em fogo — O mais logo. —Não! Não foi isso que combinamos. Ele soltou um gemido abafado e deixou-se cair sobre as minhas pernas, com o cabelo a pender-lhe para frente para tapar as virilhas. Permaneceu assim durante cerca de um minuto, com a respiração irregular e ofegante, antes de levantar a cabeça. O seu rosto estava rosado e os olhos brilhavam de forma sombria, mas parte do furor tinha acalmado. Tinha a voz mais baixa do que era habitual e o seu sotaque tornou-se mais acentuado quando começou a falar, rapidamente e sem preliminar. — A Consulesa desconfiou do que o Rasputine andava fazendo antes de nós, até mesmo antes do Marlowe. Os ataques começaram pouco tempo depois de o Círculo pedir ajuda a MAGIC para encontrar a sua sibila perdida e a Consulesa teve um dos seus famosos e intuitivos pressentimentos. Mas parecia haver pouco a fazer, a não ser ajudar na busca e esperar que eles a recuperassem rapidamente. As sibilas verdadeiras são raras e nós pensamos que não haveria outra pessoa com força suficiente para imitar as ações do Rasputine. Mas nos certificamos de que aquelas com capacidades atestadas fossem vigiadas de perto, no que desse o caso de ela morrer e de o poder ser transmitido. Tenho interesses profissionais em Atlanta, Cassie. Há já algum tempo que sei onde está e, claro, coloquei o seu nome na lista daquelas que tinham de ser vigiadas.
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Os olhos dele instalaram-se no meio das minhas pernas e eu me senti corar. Tentei escapar do toque dele, mas isso só fez com que ele se inclinasse e me beijasse o interior da coxa sobre o ponto da pulsação. Os seus lábios moveram-se ternamente e eu não lhe senti as presas, mas o ligeiro roçar da sua boca fez com que aquele pingo de calor líquido que se aglomerava em mim se transformasse de repente numa cheia. — Mircea, por favor... — Eu nem sequer tinha bem a certeza do que estava pedindo, mas ele limitou-se a sorrir de modo sinistro. — Não, vou responder por inteiro à tua pergunta. — Inspirou profundamente. — E depois vou te dar prazer por inteiro. — Contorcime debaixo das suas mãos e ele fechou os olhos. — Cassie, não se mexa, por favor. As vibrações são... perturbadoras, e a minha concentração já está suficientemente arrasada. — Nunca concordei em fazer sexo se respondesse à pergunta! Não é justo! Mircea parou e empinou uma sobrancelha. — Desculpa, docinho, mas o que você acha exatamente que estamos fazendo agora? — Sabe a que me refiro. — Respirei fundo e tentei ignorar a suplica que o meu corpo fazia. — Nada de penetração. Mircea percorreu a dobra do meu joelho com a língua e subiu pela minha perna, parando a pouca distância de onde eu súbita e desesperadamente queria que ele estivesse. Levantou ligeiramente a cabeça para ir de encontro aos meus olhos, mas o seu hálito ainda
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deslizava sobre os meus locais mais íntimos. O meu corpo tremeu e os dedos dele cravaram com mais firmeza as minhas coxas. — Me quer tanto como eu quero você, docinho. Por que negar isso aos dois? — Você sabe porque. Não tem só a ver com o prazer, isto é me preparar para uma coisa que eu não tenho a certeza de conseguir fazer. — Assim que o disse, percebi que tinha dito a verdade. O único motivo que me levava a não atacar Mircea eram as conseqüências que daí resultavam. Fazer sexo significava atirar a toalha ao chão em relação à minha independência, possivelmente para sempre. Fosse qual fosse a perspectiva, eu perdia. O Senado podia ser uma alternativa mais simpática e agradável ao Círculo, e Mircea batia Pritkin aos pontos enquanto carcereiro, mas não deixaria de ser uma prisão. Mas se eu não fosse a Pítia, haveria muito menos interesse no que eu era e no que estava fazendo. — E se você não aceitar o chamado, como pretende convencer o Círculo a ajudar em relação ao seu pai? Suspirei. Aí é que estava o busílis, como diria Shakespeare. Eu não queria ser a Pítia. O cargo ajudara a matar a minha mãe e só me garantia a vida numa gaiola dourada — partindo do princípio de que o Círculo não me matava. Além do mais, Pritkin tinha razão: eu não tinha sido treinada. Não sabia se agüentava "ver" mais do que já via. Não gostava dos novos poderes que tinha obtido e duvidava que fosse apreciar mais os outros, fossem eles quais fossem. Mas, se eu recusasse a posição, não tinha a certeza se poderia fazer alguma coisa para ajudar o meu pai. Conhecia Tony suficientemente bem para saber como ele podia ser vingativo. Ele veria a prisão do meu pai com o duplo propósito de torturar a ele e a mim, e nunca o devolveria voluntariamente.
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— Não estou dizendo que não. — Disse a Mircea, com franqueza. — Só preciso de algum tempo. Nada de penetração, por enquanto; escolhe outra coisa qualquer. Ele deu um beijo no meu baixo-ventre. — Não será difícil, Cassie. É um festim para os sentidos. — Responda à pergunta. Ele pareceu surpreendido, depois se riu. — Sabe que, na verdade, fiquei com a sensação de que controlaria estes procedimentos? Para a próxima já sei. — Sorriu para mim, desenhando círculos lentos e lânguidos com a boca na minha barriga, fazendo aquele delicioso calor aumentar ainda mais. Contorcime debaixo daquela leve carícia, o que obviamente lhe agradou. — Minha bela e ardente. — Eu não sou sua. Mircea sorriu maliciosamente. — Pelo contrário, sempre foi minha. Garanto-te que não fiquei quase um ano na corte do Antonio pelo prazer da sua companhia. Ao ver o meu ar espantado, riu novamente, uma gargalhada grave e tangível que fez azedar as coisas. — Ouvi falar dos teus dons e arranjei maneira de te conhecer. Sabia que uma clarividente cuja força tinha tamanha reputação seria uma aquisição útil, mas queria ter a certeza do que estava obtendo antes de negociar com o Antonio. Logo que te conheci, suspeitei poder estar olhando para a próxima Pítia, mas
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só poderia ter certeza quando fosse adulta. Desviou o olhar para longe e suspirou. — Cometi um erro ao não te acrescentar de imediato ao pessoal da minha corte, mas receei que isso fosse muito óbvio e que eu não conseguisse manter as atenções do Círculo afastadas de você. Deixei-te com o Antonio e lhe ordenei que continuasse a ocultar a tua identidade. Planejava ir te buscar quando amadurecesse, mas, nessa altura, você já tinha complicado bastante as coisas, não é? — Espera aí. Você sabia do assassinato dos meus pais? — Só soube depois de acontecer, e nessa altura pareceu-me uma questão corriqueira. — Ele viu a minha expressão carregada e suspirou. — Queria o que? Nessa altura eu não sabia de você, Cassie, e não podia castigar o Antonio por tratar os seus servos como queria. Embora eu o tenha considerado um desperdício, ele estava no seu direito. Disseramme que havia uma mulher com ele no carro, mas ela adquirira o nome do seu pai e eu não a relacionei com a herdeira fugitiva. Perdoe-me, mas, embora o seu pai fosse o mais confiável dos humanos do Antonio, isso não queria dizer grande coisa, para ser franco. Não havia nenhum motivo para relacionar a mulher dele com a corte da Pítia. — E eu? Quando soube que eles tinham uma filha? — Se Mircea tivesse deixado um bebê indefeso nas mãos gordas de Tony, a boa opinião que tinha dele iria diminuir consideravelmente. — Apenas anos depois. — Disse ele, seriamente, como se percebesse a importância que a pergunta tinha para mim. — Falei com o Rafael uns meses antes da minha visita. O Antonio o tinha mandado entregar um recado à minha corte e ele aproveitou a oportunidade para
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me contar a verdade. É claro que eu arranjei logo uma maneira de te conhecer. Acreditei nele, e não apenas por querer que fosse verdade. Mircea teria protegido os meus pais se eles lhe tivessem ido pedir ajuda. Não teria permitido que uma valiosa mais-valia como a minha mãe fosse morta, se tivesse conhecimento da sua existência. Se mais razões existissem, teria sido mau negócio irritar a Pítia e os magos quando facilmente os teria podido deixar em dívida para com ele ao devolvê-la. — Como é que o Tony me encontrou? Mircea sorriu. — De fato, como teria sido, Cassie? Ali estava eu, preocupado com a sua segurança, quando deveria estar ralado com os planos baixos que tinha para o meu servo indefeso. O que fez ao Antonio teve grande cobertura, até na imprensa humana. A minha gente começou logo a procurar por você, e eu tinha os empregados dele vigiados, não se desse o caso de ele tropeçar em você ou ser suficientemente estúpido para não o referir. Se assim acontecesse, eles teriam de distraí-lo e me avisar, mas foi aí que entrou a sorte. Um membro de uma família aliada dele estava condenado a passar a noite em Atlanta por causa do atraso de um vôo e te viu numa discoteca. Estava lendo a sina e isso lhe avivou a memória da pequena que ele tinha visto na corte. Ele informou o seu mestre, que vendeu a informação ao Antonio. Felizmente, eu já tinha te encontrado, com a ajuda da rede de serviços secretos do Senado. — O Marlowe. — De fato. — Mircea riu-se. — O homem é uma maravilha, se bem que você foi extremamente difícil de localizar, até mesmo para ele. A propósito, ele quer te conhecer. Disse que deve ter uma mente quase
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tão tortuosa como a dele — um elogio raro, docinho. Localizamos-te há menos de um ano, mas nos pareceu mais seguro te deixar onde estava e te guardar, em vez de corrermos o risco de o Círculo descobrir que a tínhamos e invocar o tratado, tal como está tentando fazer agora. — Pôs novamente um ar sério. — A Consulesa está os empatando, mas não será por muito tempo. Não conseguimos combater o Círculo Negro e o Branco ao mesmo tempo, Cassie. Entende? — Sim. — Pensei na quantidade de ataques cardíacos que quase tivera no decorrer dos anos, pensando que estava sentindo a presença de um vampiro aqui e ali, mas afinal tinha sido sempre o pessoal de Mircea. — Podia ter poupado o imenso trabalho se tivesse me dito o que estava acontecendo. — Mircea limitou-se a olhar para mim. Não se deu ao trabalho de dizer o que ambos sabíamos: nenhum vampiro mestre, muito menos um membro do Senado, iria discutir o que quer que fosse com uma mera serva. A vida dela seria planejada e ela seria informada dos planos quando chegasse à idade certa. — Foi assim que soube que o Tony me tinha encontrado? Foi o seu pessoal que te disse? Mircea deu um sorriso pesaroso. — Não, você teve sorte. O Antonio ordenou a um atirador que te enfiasse duas balas na cabeça à meia-noite, mas o Rafael o ouviu e me chamou. Ofereci-lhe minha proteção e lhe disse para vir para cá. Há algum tempo que o Antonio me dava preocupações, mas eliminar um mestre de terceiro nível, mesmo sendo seu servo, requer fineza. Mas se ele de fato desobedecesse às minhas ordens diretas e tentasse te matar, eu tinha motivos legais para o matar por desobediência. Transmiti as informações sobre você ao Senado, que tinha te atribuído o Tomas desde o desaparecimento da sibila. Para o caso de eles terem problemas em chegar até ele, e contatei também alguns colegas meus em Atlanta,
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mas eles tiveram dificuldades em te localizar. Quando chegaram ao seu escritório, já não estava lá. — Podia ter me ligado, Mircea! — Eu tentei te ligar, docinho! Para casa e para o seu local de trabalho. Mas você não atendeu. Seja como for, nos deu um grande susto. Os meus colegas se envolveram numa altercação com quatro vampiros que o Rasputine mandara atrás de você. Quando se livraram deles, você e Tomas já tinham encontrado os assassinos que o Antonio enviara. Felizmente, conseguiu tratar deles sozinha com muita facilidade. Eu estava novamente confusa. — Quer dizer que havia nove vampiros atrás de mim naquela noite?! — Nem podia acreditar que tinha sobrevivido. Há vampiros mestres que já foram mortos com menos. — Mas, se o Tony e o Rasputine eram aliados, quem é que enviou dois esquadrões da morte? Mircea sorriu. — Só agora está entendendo. A versão curta é que o Antonio mandou vampiros de nono ou décimo nível para te matar assim que descobriu onde estava. Quando o Rasputine soube o que ele tinha feito, enviou quatro mestres para lhes dar apoio. Acho que ele é mais sensato que o Antonio. Ele sabia que o Senado devia de ter colocado guardiões perto de você e queria garantir que não ia sobreviver. Você é o único poder que se pode opor com êxito aos atos dele, docinho. Ele sabe disso. Sentia minha cabeça girar.
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— Então, o esquadrão da morte do Tony foi para a discoteca e o seu e o do Rasputine foram para o escritório depois de eu sair? Nesse caso, quem é que deixou a mensagem no meu computador? — Qual mensagem? Abanei a cabeça. Isto estava ficando muito complexo para o meu gosto. — Deixa pra lá. Basicamente, o que está dizendo é que todo mundo anda atrás de mim? Mircea não respondeu porque a cabeça sombria voltara à ação, lambendo um trilho pelo interior da minha coxa acima. Sentia a língua dele quente sobre a minha pele e os lábios como veludo. — Não sei se todo mundo, docinho. Mas eu ando, com certeza. E agora, chega de conversa. — Olhou para mim com malícia. — Está na hora de pagar o que deve.
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Capítulo 13 Tentei pensar rapidamente noutra pergunta, mas foi difícil, principalmente quando as mãos dele me agarraram nas nádegas e ele me levantou. A língua dele atingiu finalmente a sua meta e eu arquejei. Ele percorreu-me lentamente com ela, explorando a minha forma, memorizando o meu sabor, antes de subitamente a mergulhar o mais longe que podia ir. Eu gritei e arqueei-me de encontro a ele, sem conseguir fazer mais nada, e ele absorveu-me. Senti o início de algo a aumentar dentro de mim, algo enorme, mas, antes que isso me toldasse completamente os sentidos, Mircea ergueu-se e afastou-se de mim. Queria gritar de frustração, mas os lábios dele selaram os meus e eu esqueci-me. Passei as mãos por aquela pele sedosa, contornando-lhe a coluna, passando-lhe pelas costelas até à fenda entre aquelas belas nádegas. Ele estremeceu sobre mim, e a sensação da sua firmeza e calor contra a minha barriga foi quase esmagadora. Queria-o dentro de mim mais do que tudo o que alguma vez quisera, com uma necessidade quase insuportável. Mas, quando senti um volume pesado e quente entre as pernas, empurrei-lhe o peito. — Não, Mircea. — Tu prometeste. Ele riu-se de forma tímida e beijou-me o pescoço. — Vou ser bom, dulceata. — Antes que eu pudesse dizer que era isso que me preocupava, ele arrastou aquele volume pesado por toda a extensão do meu sexo, sem me penetrar, mas aproximando-se
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provocadoramente. Eu estava molhada e ansiava por ele, e não achei piada nenhuma. Decidi que estava na hora de uma pequena paga. Meti uma mão entre os nossos corpos e agarrei-o. Ele estava suficientemente grosso para eu não conseguir fechar o punho, mas ele deu-lhe decididamente atenção. Apertei, maravilhada com o quão incrivelmente macia era a sua pele, e ele revirou os olhos. Era estranho segurar nele, tão quente e tão aveludado ao toque, e isso me fez sentir poderosa. Lembrei-me do que a mulher na minha visão tinha feito ao corpo de Louis-César e dei o meu melhor para a imitar. Alguns apertos e o grande Mircea deu um pequeno grito semi abafado e tremeu encostado a mim. Por um segundo pensei que o tinha magoado, mas a única coisa que aconteceu foi ele aumentar na minha mão. Sorri para a sua cara perplexa e, lembrando-me do que isso fizera ao corpo do francês, passei um dedo pela pequena racha na cabeça. Desta vez, ele gritou a sério e fitou-me de olhos arregalados. — Cassie, onde. — Ele parou e molhou os lábios. — Onde é que aprendeste a fazer isso? Ri-me. Aquilo prometia. — Se te dissesse, não acreditava. — Empurrei-lhe o ombro. — Deita-te. Ele rebolou sem questionar e eu segui-o, mantendo o pulso firme, mas tendo o cuidado de não o magoar, recordando o quão sensível era aquela parte do corpo. Deixei que a minha mão o explorasse tal como a sua língua fizera a mim, e descobri que o seu corpo era fascinante. Já vira muitos homens nus, mas esta era a primeira oportunidade que tinha para tocar num com tanta intimidade, e o facto de se tratar de Mircea estava a deixar a minha tensão arterial no máximo.
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Descobri que a pele dos seus testículos era a mais macia e passei os dedos suavemente sobre ela até ele ficar a gemer e a digladiar-se debaixo de mim. Gostei de lhe fazer aquilo, de o ver assim tão indefeso, com o seu cabelo habitualmente perfeito a desgrenhar-se à medida que o suor começava a moldá-lo à cabeça. Foi excitante fazê-lo abrir mais as pernas, expondo-o àquilo que eu decidisse fazer. A sua impotência era intoxicante e tornou-me ousada. O meu repertório não era propriamente extenso, mas eu tenho boa memória e a francesa estivera prestes a experimentar uma coisa com Louis-César que me pareceu interessante. Rastejei no meio das pernas de Mircea, percorrendo os músculos tensos com as mãos. Ele esticou-se para mim, mas eu afasteilhe as mãos. — Pára. Ele acalmou-se, mas a surpresa nos seus olhos revelou me que ele não estava habituado a receber ordens. Agarrei novamente no seu volume quando este balançou de forma sedutora à minha frente. Mais uma vez, fechou os olhos ao sentir o meu toque, uma expressão crua e vulnerável a apoderar-se do seu rosto. Acariciei-o lentamente, sem compreender o olhar de dor, uma vez que sabia que não estava a magoá-lo. — Cassie... — A voz dele cedeu e eu mandei-o calar. Aproximeime e, lentamente, cuidadosamente, lambi a haste distendida. Sabia bem, ligeiramente salgada com um sabor fumado subliminar. Também gostei do odor, que aqui era mais forte e levemente almiscarado. A combinação da sobrecarga sensorial era estonteante. Não tinha nenhuma experiência que me orientasse, mas decidi começar pela ponta e ir descendo. Parecia-me um bom plano, mas a minha língua mal lhe tinha tocado quando Mircea deu um forte salto, fazendo-me largá-lo.
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— Cassie, não faça isso! Não vou conseguir controlar-me se tu... — Já te disse que te cales. — Disse-lhe eu, com um ar zangado. Precisava me concentrar, e se ele ficasse quieto e se calasse dava uma ajuda. Disse-lhe isso e vi o seu rosto encher-se de espanto. — Asseguraram-me que nunca tinha feito isto. — Começou ele, tentando apoiar-se nos cotovelos. Lancei-lhe um olhar de advertência. — Nunca tinha. Por isso, se não ficares quieto, não me culpes se eu te machucar. Ele deixou-se cair para trás na cama e eu lancei um braço sobre o seu rosto. Ele balbuciou qualquer coisa em romeno e eu ignorei-o. Ele sabia que eu não falava a língua e estava apenas a fazer-se difícil. Se não estivesse a desfrutar tanto do seu corpo, poderia ter-me queixado. Como tal, eu regressei à cativante análise do que o fazia gemer. Desta vez, quando fiz deslizar os lábios e a língua por ele, ficou muito mais silencioso, a exceção feita a um ligeiro tremor que não deve ter conseguido evitar. Descobri que o que gostava mais era de lamber a ponta, mesmo tendo ela um sabor mais amargo. Mas valia a pena, para o ver debater-se para não se mexer ou gritar com o meu toque, com as mãos a enrolarem-se em punho nos seus flancos. Decidi ver o que faria o grande Mircea perder completamente o controlo. Arranhei-lhe acidentalmente a pele com os dentes quando o meti mais dentro da boca, e a sensação provocou-lhe um grito de alarme. Depois de perceber que tinha sido um som de aprovação, comecei a intercalar mordidelas regulares entre as lambidelas, e ele não tardou a lamuriar-se levemente, como se nem sequer estivesse ciente de o estar a fazer. Passados uns minutos, descobri a sua verdadeira fraqueza,
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quando desci para lamber a pele descaída dos seus testículos. Ele devia ser extremamente sensível nesse sítio, ou talvez a tensão já estivesse a acumular-se há um bocado. Antes que eu percebesse o que se passava, já ele me agarrara pelas ancas e me posicionara por cima dele, de modo a contrair-se novamente contra a minha entrada. Foi uma sensação tão incrivelmente boa, tão certa, que quase deixei que os nossos corpos se unissem. Mas uma qualquer parte do meu corpo falou mais alto, recordando-me o preço a pagar, e eu recuei. Mexi-me depressa demais e acabei por cair desajeitadamente da cama. Passado um segundo, o rosto corado de Mircea espreitou pela beira do colchão, olhando para mim com desnorteio espojada no tapete. Agarrei no robe e os olhos dele ensombraram-se. — Eu próprio irei rasgar em pedaços essa veste ofensiva, para que nunca mais volte a esconder a tua beleza. A sua voz era áspera e o seu olhar selvagem. Não desperdicei o tempo necessário para vestir o robe, mas enrolei-o à minha volta como se fosse um cobertor. Era um pobre substituto para o calor da sua pele, mas era muito mais fácil pensar com alguma roupa vestida. A minha respiração não estava muito regular e quase me sentia tonta de desejo por ele, mas recuei até ser detida pela janela. — Tínhamos um acordo, Mircea. — Disse-lhe, tremulamente. Ele sentou-se, o que constituía uma séria distração, visto que a sua ereção não diminuíra nem um pouco. Retraiu-se, mas manteve os olhos ardentes nos meus. Estava agora mais cor de canela do que de âmbar, uma chamejante e bela luz avermelhada. Era a cor que quase tinha feito Pritkin desmaiar; a mim fez-me querer correr de volta para ele e lançar-me sobre o seu corpo. Agarrei-me ao parapeito da janela
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atrás de mim para me apoiar e senti as suas sentinelas a fervilhar. Comparadas com o calor que a minha pele apresentava naquele momento, estavam frescas. Mircea passou a mão a tremer pela cara. Ergueu o olhar para mim com uns olhos desesperados. — Cassie, por favor, não faças isto. Já te expliquei a situação, sabes o que está em causa. Quero que isto seja um prazer para ti, não que me odeies por causa disto. Mas tem de ser feito. Tu não és como aquele mago ridículo que não percebe nada de nós. Por favor, não compliques as coisas. Ainda pode ser bonito. — E se eu disser que não? — Mircea ficou subitamente muito quieto. O quarto tremeluzia com um poder mal controlado, com o mesmo efeito das ondas de calor sobre a areia do deserto. — Não irias obrigar-me? Mircea engoliu em seco e olhou muito intensamente para o tapete durante um minuto inteiro. Quando finalmente ergueu o olhar, os seus olhos tinham regressado ao seu habitual castanho intenso. — Vamos ser completamente honestos, dulceata. Eu podia invadir te a mente, usar estratagemas para me apoderar do teu raciocínio e obrigar-te a entregares-te a mim, como sei que desejas. Mas, se o fizesse, nunca mais voltarias a confiar em mim. Conheço-te bem demais; sei o que pensas da deslealdade. É a única coisa que não consegues perdoar, e eu não quero que me vejas como um inimigo. — Então, posso ir-me embora? — Sabia a resposta, mas precisava que ele me explicasse às opções que tinha.
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— És mais esperta do que isso. — Mircea suspirou e, subitamente, o seu rosto pareceu cansado. — Se não fizermos isto, a Consulesa irá simplesmente nomear outro. Sei que tens alguns sentimentos pelo Tomas, mas também sei como estás chateada com ele. Ele traiu a tua confiança e, embora isso tenha acontecido devido a ordens a que ele não podia desobedecer, não me parece que lhe tenhas perdoado. Envolvi-me com os braços. — Não. — Houve tempos em que confiei em Tomas, o máximo que já confiei em alguém, que o desejei e que talvez mesmo o tenha amado um pouco. Mas tinha sido o homem da minha imaginação, não o verdadeiro. Agora, quando olhava para ele, sentia-me como se estivesse a ver um estranho. Não queria aquelas mãos em cima de mim. Além do mais, ele já me tinha invadido a mente a mando do Senado. Se lhe ordenassem, não tinha dúvidas de que o faria de novo. — Então, talvez o Louis-César? Ele é atraente. Preferia-lo a ele? — Mircea parecia um pouco engasgado, e acho que, por alguma razão, ainda gostava menos dessa idéia do que a de eu ficar com Tomas. Talvez por o francês ser um membro efetivo do Senado, com igual estatuto. Será que ele pensava que eu ia cair de quatro pelo primeiro cara com quem fizesse sexo e que depois fugia para a Europa? Se assim fosse, não me conhecia tão bem corno pensava. — Não. — Eu não queria sequer ter por perto um homem que mal conhecia, cujo toque me tinha lançado já por duas vezes num pesadelo.
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— Então, talvez o Rafael? Ele olha para ti corno uma filha, sabe, mas faria isto por ti, se preferires. - Abanei a cabeça. Não iria obrigar-me a mim nem a Rafael a passar por isso. Não iria estar com uma pessoa que olharia para tudo corno se fosse uma tarefa a desempenhar. Mircea estendeu as mãos. — Foi também essa a minha ilação. Portanto já vês em que pé estamos. Se nos rejeitares a todos, a Consulesa irá nomear um dos seus servos para tratar do assunto, e não me parece que isso te vá agradar. Não há mais alternativas. As tuas capacidades são demasiado importantes. Não podemos permitir que o poder passe para outra pessoa só porque eu não tive tempo para te cortejar convenientemente. Arqueei-lhe uma sobrancelha. — E o que é que ganhas com isto, Mircea? Apenas segurança? Ou a Consulesa comprometeu-se a honrar o teu pedido se isto correr bem? Também tu me queres usar? Mircea deixou escapar um longo suspiro. — Ninguém controla a Pítia, Cassie. Se o poder passar de facto para ti, eu não conseguirei segurar-te. Sempre soube disso. — Então, porque me protegeste durante estes anos todos? Porque o fazes agora? — Mircea tinha razão; eu sabia como funcionavam as políticas dos vampiros. Ele despendera muito tempo e energia a proteger-me e eu duvidava que fosse apenas para arranjar uma clarividente para a sua corte. Principalmente porque, assim que eu me tornasse Pítia, ele perderia o controle sobre o meu dom. Havia aqui mais alguma coisa que ele não estava a dizer-me.
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Ele não pareceu contente, mas respondeu. A sua habitual máscara risonha desaparecera e fora substituída por uma expressão severa e dolorida. — Tu sabes o que é perder a família, dulceata. Portanto talvez consigas perceber o que significa para mim o facto de apenas o Radu restar de toda a minha linhagem e de ele... já te disse o que lhe fizeram. — Sim. — O que não te disse, pois raramente falo nisso e tu eras apenas uma criança, é que ele ainda sofre. Todas as noites, quando acorda, é como se estivesse a ser tudo feito de novo. Eles destruíram-no, dulceata, na mente, no corpo e no espírito. Ainda agora, centenas de anos após a morte dos seus torturadores, ele chora de agonia por causa dos chicotes e ferretes deles. Todas as noites recorda mil tormentos, repetidamente. — Os olhos de Mircea ficaram repentinamente velhos e terrivelmente tristes; revelaram-me que não tinha sido apenas Radu que sofrera. — Já pensei muitas vezes em matá-lo, para o poupar, mas não consigo. Ele é tudo o que eu tenho. Mas já não acredito que vá acordar uma noite do seu pesadelo. — Lamento, Mircea. — Resisti ao impulso de ir estar com ele, de lhe afagar o cabelo desgrenhado e de o consolar. Era cedo demais para isso. Anos de experiência tinham-me ensinado a descobrir a história completa antes de oferecer solidariedade. — Mas não percebo o que isto tem que ver comigo. — Tu vais a Carcassonne. Demorei um momento a fazer a ligação, e nem assim fez sentido. — Tu libertaste o Radu da Bastilha.
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— Em 1769, sim. Mas um século antes ele não estava lá. Foi mantido aprisionado e torturado durante muitos anos em Carcassonne. — Proferiu o nome como se fosse uma injúria, coisa que provavelmente era para ele. — Sabe qual é a designação alternativa para a Pítia, Cassie? — Abanei entorpecidamente a cabeça. —Ela é chamada a Guardiã do Tempo. Tu és a minha melhor hipótese, a minha única hipótese. Mas se a Pítia morrer e tu perderes o teu poder emprestado por não seres ainda um recipiente adequado para ele, perderei a única janela temporal que alguma vez encontrei. As coisas clarificaram-se. — A Consulesa prometeu-te uma hipótese de ajudar o Radu. É o teu pagamento por eu resolver o problemazinho deles. Inclinou a cabeça. — Ela concordou em deixar-me ser o terceiro do grupo. Irei contigo na tua próxima transição. Enquanto tu e o Tomas impedem o atentado contra o Louis-César, eu salvarei o meu irmão. — Os olhos de Mircea estavam sombrios, mas muito sérios. Naquele minuto percebi que, embora ele próprio não conseguisse obrigar-me, iria colocar-se à parte a ver outro qualquer a fazê-lo. Poderia não lhe agradar, mas ele havia de gostar ainda menos de deixar Radu condenado ao seu destino. Queria odiá-lo por isso, mas não conseguia. Em parte, era pena - não podia imaginar o que teria sido passar centenas de anos a cuidar de alguém perigosamente insano, observá-lo a atormentar-se dia após dia e não ser capaz de fazer absolutamente nada. Mas era mais porque, apesar de ter todos os motivos para o fazer, Mircea não tinha mentido. Ele tinha razão; eu conseguia perdoar quase tudo, menos isso. — Como é que sabes sequer que lá vamos voltar? — Se ele ia ser sincero comigo, o mínimo que eu podia fazer era retribuir o favor. — Já não sinto a mesma apreensão, ou medo, ou o que for perto do Louis-
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César. E, quando ele me levou ao colo do Dante's, não aconteceu nada. Pelo que sei, o poder já foi transmitido, ou pode escolher levar-me para outro lado qualquer. — Acreditamos que o Rasputine irá tentar matá-lo naquela noite, aquela que já visitaste duas vezes, porque foi aí que o Louis-César foi transformado. Não sabias que foi o meu irmão que o criou, pois não? — Pensava que Tomas tinha dito que ele foi amaldiçoado. Mircea abanou a cabeça. — Não sei onde é que ele ouviu isso, Cassie. Talvez ele acredite nisso porque o Louis-César não sabia o que era ter um mestre. Tal como eu, ele teve de percorrer o seu caminho com pouca orientação. Devido ao facto de o meu irmão estar preso, o nascimento do Louis-César só foi registrado muito depois de o facto ocorrer. Quando chegou a altura de qualquer outro mestre saber da sua existência e poder tentar reivindicálo, ele já era demasiado poderoso. O Radu mordeu-o pela primeira vez na noite em que lá estiveste, depois de os carcereiros o deixarem sozinho, numa tentativa de aterrorizarem o nosso francês. O Radu tornou a convocá-lo nas duas noites seguintes, até ele se transformar. Talvez estivesse a tentar ganhar um servo que pudesse libertá-lo. — Então, porque não o fez? Mircea olhou para mim com alguma surpresa. — Não sabes quem era o Louis-César? Abanei a cabeça e ele sorriu ligeiramente. — Vou deixar que ele te conte a história. Basta dizer que ele não teve liberdade de movimentos durante muito tempo e, quando a teve, o
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Radu tinha sido levado e ele não conseguiu encontrá-lo. Seja como for, tudo o que o Rasputine tem de fazer para eliminar o nosso Louis-César é espetar-lhe uma estaca antes da terceira dentada; se o matar enquanto ele ainda é humano e indefeso, nunca terá de lutar com ele. — Ele podia matá-lo no berço ainda mais facilmente, ou quando ele era criança. Não sabes se vai ser nessa altura. Mircea abanou enfaticamente a cabeça. — Estamos em crer que o teu dom nos tem mostrado onde reside o problema, o sítio onde alguém está a tentar alterar a linha temporal. Por que outra razão estaria sempre a voltar lá? Seja como for, os registros acerca da vida do Louis-César são escassos. A primeira ocasião em que o Rasputine pode ter a certeza de o encontrar é na altura da transformação. Isso está registrado, juntamente com as circunstâncias peculiares da sua falta de mestre. Ele não irá arriscar numa coisa tão importante. Tentará matá-lo no sítio onde sabe que ele irá estar. Eu sei onde tinham o Radu preso, Cassie. Será uma questão de instantes até o libertar. — E consegues dizer-me a data exata em que a sua mente cedeu? Há uma cidade à volta daquele castelo, Mircea. Não irei ajudar-te a soltar um louco assassino em cima deles. Mircea falou rapidamente. — Já falei com o Louis-César. O Radu estava bastante são quando ele o transformou. Tu podes ajudar-me a salvá-lo, dulceata. Com outros, a tortura não tardou a acabar em morte ou, em casos raros, em absolvição. Mas com ele não. Os seus torturadores nunca o libertariam porque não acreditavam que ele pudesse redimir-se, mas não o
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matariam, pois o seu sofrimento constituía uma ótima lição para aqueles que eles desejavam assustar. — Era difícil assistir à emoção nos olhos dele; desespero era uma palavra muito suave para a descrever. — Não há escapatória para ele! Já viste aquele lugar. Consegues deixá-lo ali, sabendo qual vai ser o seu destino? Consegues trocar a vida dele pela tua virtude? Não era com a minha virtude que me preocupava; era com a minha liberdade. Mas já sabia que não devia tentar chegar a acordo com esse argumento. Era impossível que a Consulesa não tentasse pelo menos me segurar. Se eu me tornasse Pítia, talvez conseguisse evitar a manipulação dela e a dos dois círculos; talvez até conseguisse ajudar o meu pai. Era um grande tiro no escuro, mas era o melhor que tinha. Respirei fundo e afastei-me da janela, deixando que o robe se me escapasse das mãos enquanto o fazia. Mircea observou-me a encaminhar-me para ele, com a esperança a assomar-lhe os olhos. Pus-lhe uma mão no ombro, no meio da seda decadente e crua do seu cabelo, e passei com a outra levemente pela curva do seu rosto. — Respondeste à minha pergunta. Não queres a tua recompensa? Ele prendeu-me a ele e começou a falar suavemente encostado aos meus lábios, com palavras de agradecimento e paixão interligadas. Caíam-me lágrimas no pescoço e nos seios enquanto ele beijava, lambia e mordiscava o seu trajeto pelo meu tronco. Deitou-me cuidadosamente de costas na cama e beijou o percurso de volta ao centro daquela crescente pressão que regressara com vontade de vingança. Não tardou a que me deixasse quase a gritar para que algo maior do que a sua língua me aliviasse a dor. Como se me lesse a mente, Mircea fez deslizar um dedo até ao meu centro latejante e enfiou-o lá dentro. Foi maravilhoso, mas não era de modo nenhum suficiente.
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— Mircea! — Ele não respondeu, mas dois dedos deslizaram para dentro de mim e eu apertei-os, desesperada por ter mais dele. Estes acalmaram a quase-dor e aumentaram o prazer, até eu começar a fazer um som agudo e gemente e a montar a mão dele como queria montar o seu corpo. A pressão dentro de mim escalou até eu pensar que iria desmaiar devido à deliciosa e ardente dor que me provocava. Depois parou, e eu só me consegui concentrar naquela sensação maravilhosa e empolgante que me inundava repetidamente. Ouvi-me a mim mesma a gritar o nome dele, depois o mundo entrou numa erupção de cor e um som semelhante a um vento impetuoso encheu-me a cabeça. Passado um segundo, apercebi-me de que não tinha sido o vento. — Hã, Cassie? Escuta, sei que não é muito boa altura e assim... Eu estava tão embriagada pela sensação do clímax que demorei um minuto a reconhecer a voz de Billy Joe. — Billy. Tens exatamente um segundo para sair. — Mircea segurou-me enquanto eu terminava o meu orgasmo, falando suavemente em romeno. Ia ter mesmo de fazer com que ele perdesse aquele hábito. — Eu saía, a sério, mas precisamos falar. Passa-se alguma coisa. — Alguma coisa ruim. Resmunguei e empurrei-o para fora da minha cabeça. Ele apareceu a pairar sobre o ombro nu de Mircea. Mircea rebolara para cima de mim, apoiando-se nos braços, e posicionou-se cuidadosamente. — Preparei-te o melhor que podia, Cassie. — Disse-me ele, com uma voz áspera e quase sem fôlego. — Mas isto pode doer um
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bocadinho. Eu sou considerado um pouco... maior do que o habitual, mas vou ter cuidado. — Queria gritar-lhe para que se despachasse — o meu corpo queria-o lá dentro e não se importava se doía. Billy olhou de relance para o rosto raiado de suor de Mircea e revirou os olhos. — Por favor. Havias de ver-me na minha primeira vez. A condessa disse que eu tinha o maior... — Billy! —... talento que ela já tinha visto. Seja como for, ele não me parece assim tão impressionante. — Disse ele, de modo arrogante. — Cala-te e sai daqui! Billy ignorou-me e, antes que eu pudesse impedi-lo, soprou um vento gelado sobre Mircea. — Principalmente agora. Mircea uivou e olhou alarmado em redor, enquanto eu olhava furiosamente para Billy. — Enlouqueceste? Como resposta, Billy lançou nova rajada sobre Mircea. O frio não me parecia assim tão mau a mim, mas a verdade é que nunca sinto os fantasmas da mesma maneira que as outras pessoas. Mircea parecia ter sido atingido por uma nevasca; estava todo em pele de galinha, o seu
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cabelo húmido apresentava verdadeiros cristais de gelo e o resultado para as nossas atividades foi o mesmo que uma ducha fria. Antes que eu pudesse explicar a Billy o exato sarilho em que se metera, o timbre agitado de Rafael ouviu-se à porta. — Mestre! Desculpe incomodar, mas o Rasputine vem aí! Está quase a chegar! — Rafe parara à porta e estava a olhar fixamente o chão, vibrando bastante de alarme. Tomas entrou mesmo atrás dele. Eu puxei rapidamente a colcha para cima, mas ele nem sequer me olhou. Os olhos de Mircea tornaram-se inexpressivos e perplexos por um segundo, depois ele assentiu com a cabeça. — Quanto tempo temos? — Não sei. — Rafe estava com um ar frenético. Na verdade, eu nunca tinha visto ninguém a torcer as mãos, mas ele estava a fazê-lo. — O Louis-César foi ter com ele, mas aquele testa di merda russo está acompanhado de um exército de metamorfos e magos das trevas! E tem mestres suficientes para tentar derrotar-nos à luz do sol! Tomas acenou com a cabeça em concordância. — O Senado está a preparar uma defesa, mas nós somos muito menos. Com o duelo marcado para hoje à noite, ninguém estava à espera de um ataque. Eu posso levar a Cassie lá para baixo. A câmera subterrânea deve agüentar algum tempo. Mircea ignorou os braços estendidos de Tomas. Agarrou em mim, com colcha e tudo, e caminhou a passos largos, nu, até à sala de estar da suíte.
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— Mircea. — Levantei os olhos e vi-o com um ar sinistro e resoluto, e puxei-lhe o cabelo gelado para lhe chamar a atenção. — O que é que se passa? Mircea olhou para mim de relance quando começamos a encaminhar-nos para as escadas que iam dar à câmara do Senado. À nossa volta, os castiçais de ferro de parede tinham-se virado para fora, já sem os adornos pontiagudos e afiados das arestas de baixo a apontar para o chão. Começava a pensar que, se calhar, não eram nada adornos e esperei que soubessem quem eram os seus amigos. — Não te preocupes, dulceata. — Dizia Mircea. — Eles nunca conseguirão romper as sentinelas interiores. E isto pouca coisa muda. Se o Rasputine não derrotar o campeão da Consulesa antes da tentativa de domínio, os outros senados irão declará-lo um proscrito. Nada disto lhe trará vantagens. — Isso não me faz sentir muito melhor, tendo em conta que estaremos todos mortos antes que os outros senados consigam apanhálo. — Depressa! — Tomas escancarou a porta pesada que dava para as escadas quando se ouviu um tênue estrondo do lado de fora. — Eles romperam as defesas exteriores. — Vários homens e uma mulher passaram por nós a correr, em direção ao barulho da explosão. Tinham com eles artilharia suficiente para fazer Pritkin parecer ter roupa a menos. Senti o poder deles quando passaram — magos de guerra. Bem, aquilo devia fazer-nos ganhar algum tempo. — Garanto-te que isso não irá acontecer, Cassie. Eu protejo-te.
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Não respondi. Mircea iria tentar — não duvidava disso — mas Rasputine tinha de ser louco para tentar uma coisa destas. E um homem louco tem sempre uma séria vantagem quando provoca o caos. Pritkin contornou a esquina e seguiu-nos quando começamos a nossa descida. Olhei-o furiosamente e ele retribuiu o olhar. — O que se passa? Que estratagema é este? Todos o ignoraram. As escadas estremeciam sob os nossos pés e as luzes de cima balançavam perigosamente. — Vaffanculo! As secundárias cederam! — Gritou Rafe. Eu não sabia o que aquilo significava, mas uma expressão no rosto de Mircea disse-me que não era bom. — É impossível. Eles não deviam ter conseguido atravessá-las tão depressa! — Mircea aconchegou a minha cabeça ao peito dele e, passado um segundo, estávamos ao fundo das escadas. Calculo que tenhamos voado, mas acontecera tão depressa que eu não podia ter a certeza. Entramos na câmara do Senado quase no mesmo momento em que se ouviu outra explosão lá em cima, e pedaços de escada a arder caíram atrás de nós. Uma farpa em chamas falhou a minha cara por um milímetro; depois, Mircea fez um gesto e a pesada porta de metal que dava para a câmara fechou-se com estridência. Rafe olhou fixamente em volta, a medo. — Isto não pode estar a acontecer! — Preciso que vás escorar as defesas. — Disse Tomas a Mircea com urgência. — Dá-me a Cassie! — Ele tentou segurar-me, mas Mircea
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afastou-se com um safanão e atravessou a sala com outro movimento veloz. Na rocha onde antes apenas existia pedra lisa e despida abriu-se uma porta. Eu não devia ter ficado surpreendida: estas instalações tinham sido construídas por feiticeiros, pelo que era provável que existissem mais portas ocultas do que visíveis. Mas, ainda assim, era o melhor exemplo de sentinela de perímetro que eu já vira, sem uma única falha, mesmo quando vista a apenas uns centímetros de distância. Então tinha sido assim que Jack aparecera do nada da outra vez. Ouviu-se uma explosão ensurdecedora atrás de nós e, olhando por cima do ombro de Mircea, vi a pesada porta que ele acabara de proteger implodir como se fosse de papel. Um mago saltou pela abertura, mas foi trespassado por dois pedaços de ferro que surgiram do nada. Olhei de relance para cima e vi que os candelabros tinham sofrido uma transformação semelhante à dos castiçais lá de cima. Aquelas centenas de pontas afiadas estavam agora a vibrar, fazendo ecoar pela sala um latejo seco e metálico, como o som de milhares de pés a bater em uníssono num jogo de futebol. Estavam ansiosamente à espera que mais alguém enfiasse a cabeça dentro da sala. Depois de Mircea finalmente convencer as sentinelas a deixaremnos passar, descemos um corredor comprido. À esquerda e à direita, os archotes ganhavam vida. A eletricidade tem tendência a interferir com alguns tipos de sentinelas e o corredor crepitava bastante por causa delas. Passamos pelas três enormes portas metálicas que estavam tão fortemente protegidas que até parecia que a minha pele se deformava à nossa passagem, como se houvesse mãos pequeninas a percorrerem-me o corpo todo. A última sentinela foi a pior. A resistência era tão forte que, por um minuto, não pensei que fosse deixar passar algum de nós. Mas Mircea bradou uma ordem e a barreira quase física acabou por enfraquecer o suficiente para conseguirmos empurrá-la e passar.
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Lá dentro havia uma pequena sala com quatro corredores que se ramificavam em ângulos diferentes. Mircea parou, de modo tão abrupto que Tomas quase embateu nele. — Mircea! Por onde? — Como é que eles entraram tão depressa? — Perguntou novamente Mircea, e por um momento pensei que estava a falar comigo. Depois levantei os olhos e vi o rosto de Tomas. Não havia nele nada do homem que eu conhecera. Era um semblante altivo, selvagem e belo, algo que teria ficado bem numa moeda antiga. Consegui ver o nobre inca nas suas feições; o que não consegui ver foi qualquer vestígio do homem terno que eu conhecera. — Podemos falar depois! Indica-me o caminho, Mircea! Mircea sorriu, com a atenção aparentemente ainda posta em mim. — Parece que tenho sido um tolo, Cassandra. Alternei um olhar confuso entre os dois. Havia na sala uma corrente de poder crescente que me preocupava. As sentinelas também não gostavam disso; o ar estava denso e cada vez mais carregado. — Dizme, Mircea! — Exigiu Tomas. — Ninguém tem de morrer hoje. — Oh, posso garantir-te. — Respondeu Mircea, quase amavelmente. — Que alguém vai morrer. — De que é que vocês estão a falar? — Tentei pôr-me de pé, mas Mircea não afrouxou o aperto. Rafe respondeu por detrás de mim, com a voz amarga.
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— Parece que Tomas mudou de lado, mia Stella. Qual foi o preço da tua traição, bastardo? Tomas desdenhou dele, e a expressão parecia estranha no seu rosto habitualmente estóico. — Pensavas mesmo que eu ia trabalhar para me manter acorrentado? Eu devia ser Cônsul! Se não fosse a interferência daquela criatura, hoje eu lideraria o Senado Latino-Americano. Não deixarei que me mantenha sujeito aos caprichos de uma criança! — Ah, certo. — Billy Joe flutuava em redor da cabeça de Tomas. — Foi assim que os magos das trevas conseguiram desvencilhar-se tão depressa das sentinelas. Tomas disse-lhes o que esperar. Calculo que ele não esteja radiante com a idéia de continuar a ser servo daquele cara francês. — Olhou de relance por cima do ombro, para o caminho que tínhamos tomado. — Eles não tardarão a chegar. — Disse Tomas a Mircea. — Não sejas parvo. Ajuda-nos e serás recompensado. Dou-te a minha palavra! — Porque é que alguém havia de acreditar na palavra de um traidor? — Perguntou Rafe, com um tom insultuoso. Eu teria lhe dito para ficar calado se achasse que isso serviria de alguma coisa. A expressão no rosto de Tomas fazia-me lembrar Tony quando estava mal disposto, e antagonizá-lo nessas alturas nunca tinha sido boa idéia. — Quais são os teus planos para a Cassandra? — Perguntou Mircea. Os olhos de Tomas tremeluziram na minha direção.
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— Ela foi me prometida, como parte da minha recompensa. Ninguém lhe fará mal. Mircea riu-se desdenhosamente. — A Cassandra pode tornar-se Pítia. Que belo prêmio, Tomas. Achas mesmo que o teu mestre te deixa ficar com ela? — Eu não tenho mestre! — Gritou Tomas, e eu senti um raio de poder a embater nos escudos de Mircea, mesmo por cima da minha cabeça. As defesas dele agüentaram, mas eu não percebi como. Fiquei aturdida só com a proximidade da coisa e Rafe ficou no chão, aos gritos. — Rafe! Mircea põe-me no chão. — Ele ignorou-me. Eu tinha a impressão de que ele e Tomas se tinham esquecido que havia mais alguém na sala. — Se o Rasputine matar o Louis-César sem ser num combate justo, o teu lado não ganha nada. Sabes disso, Tomas. Quais são os teus planos? — O Rasputine vai combater a Mei Ling, não o Louis-César. Irá ganhar com facilidade e os outros senados terão de reconhecer o seu controle. O francês esquivou-se à nossa primeira tentativa, quando eu e a Cassie salvamos a rapariga, mas em breve isso deixará de ter importância. — O quê? — Tinha a impressão de me ter escapado alguma coisa. Mas Mircea pareceu perceber. — Cometeste um deslize há pouco, quando disseste que ele tinha sido amaldiçoado. Mas não foi, e tu devias saber disso. — És servo dele
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há um século. Eu devia ter percebido logo. Antes de tu e a Cassie interferirem, o Louis-César não tinha sido criado; estava amaldiçoado, não estava? Pela família cigana cuja filha morreu por causa dele. Foi assim que aconteceu originalmente, não foi? Demorei um segundo a absorver as palavras dele. — Só podes estar a gozar. — Disse-lhe eu. Ele lançou-me um olhar de aviso e eu calei-me. Aparentemente, Tomas não reparou. — Ela era a única filha deles. O rei ordenou a morte dela para causar uma impressão duradoura no meio-irmão dele, mas a família dela não sabia disso. Eles culparam o homem que pensavam tê-la seduzido e depois matado, quando ela deixou de ser uma diversão. A avó dela era uma mulher muito poderosa e, devido ao seu sofrimento, amaldiçoou-o com o vampirismo. Rafe conseguira voltar a levantar-se, embora não estivesse com bom aspecto. Começou a falar, mas eu abanei-lhe freneticamente a cabeça. A última coisa que eu queria era lembrar a Tomas que ele se encontrava na sala. Tomas estava demasiado embrenhado na história para se importar. — Quando percebi que a Cassie nos tinha levado para uma época em que o Louis-César ainda era humano, soube que era a oportunidade perfeita para me libertar. Pensei que, se a rapariga fosse salva, a maldição não seria lançada e ele morreria passado um período de vida humano normal. Culpo-o por provocar tanto sofrimento devido à sua
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interferência, mas em grande parte foi involuntário. Pensei que não seria uma tragédia para ele morrer como acontece a todos os homens, no momento que lhe estivesse destinado, mas devia ter sido mais firme. Não sei o que correu mal, como é que ele acabou por se tornar vampiro, mas não importa. — Olhou para mim. — Vais levar-me de volta, Cassie, e desta vez serei mais direto. Tens de ajudar-me a possuir um corpo para eu ter força suficiente para o matar. Olhei-o fixamente. O que raio esperava ele que eu dissesse: claro que sim, sem problemas? Começava a pensar que o tipo era tão maluco como Rasputine. Antes que eu pensasse no que havia de dizer, Billy Joe apareceu à minha frente. — Cassie! Eles estão na câmara do Senado. Se vais fazer alguma coisa, agora seria uma boa altura. — Fazer o quê? Preciso tocar no Louis-César para me transportar. E ele não está aqui! — Bem, é melhor inventares alguma coisa. As sentinelas do Senado vão ceder como se tivessem sido feitas por um qualquer artífice de sentinelas inexperiente, e o encantamento da câmara exterior não vai enganar ninguém se eles já souberem onde estão. Chegam aqui a qualquer momento. — Porque é que a Cassandra há de ajudar-te? — Perguntou Mircea, com um tom tão composto como se ele e Tomas estivessem a ter uma conversa educada enquanto tomavam chá. — O que é que podes oferecer-lhe que nós não possamos? Tomas olhou Rafe.
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— A vida do seu velho amigo, para começar. — Os seus olhos viraram-se novamente para mim. — Garantirei a segurança do Rafael, Cassie, se nos ajudares. Caso contrário, o Tony requereu o direito de tratar dele pessoalmente por ter agido como informador do Mircea. Estás ciente do que isso implicará? — Não entendo. — Disse-lhe com sinceridade. — Vivemos juntos durante meses. Se ia me trair, porque não o fizeste nessa altura? Porquê agora? — Eu não te traí. — Disse Tomas com firmeza. — Pensa bem. O Mircea quase deixou que te matassem; porque é que confias nele? Ele manteve-te em segurança? Ele estava lá quando foste atacada? Fui eu que te salvei, não ele! E fui eu que percebi que o Rasputine podia ser a solução para nós os dois. — Olhou para mim de modo implorante. — Não percebes? Assim que o Louis-César estiver morto, posso voltar a desafiar o Alejandro, e desta vez vou derrotá-lo! Como as coisas estão, muita da minha força tem de ser usada para resistir à vontade do meu mestre; isso me deixa demasiado fraco para fazer o que tem de ser feito. Mas esse fardo será levantado com a morte do francês, e aí eu poderei salvar o meu povo. E, depois disso, nunca mais terás de ter medo de que alguém te faça mal. Na condição de Cônsul, posso fazer mais do que meramente prometer proteção. Posso dá-la! — Tu contataste o Rasputine? Quando? — Depois da tua primeira visão, quando tive a certeza absoluta do que era capaz de fazer. Liguei ao Tony e ofereci-me para te entregar, mas só ao Rasputine. Ele prometeu garantir a tua vida em troca da minha ajuda. Como os planos dele coincidiam com os meus, concordei.
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— O Rafe disse-te que eu iria atrás do Jimmy e tu contaste ao Tony. — Disse-o, mas não acreditei. Tomas viu a mágoa na minha expressão e amaciou a sua. — Eu tinha de dizer-lhe que ias para o Dante's, Cassie. Se não houvesse acordo e eles te encontrassem primeiro, podias ter morrido. — Eu quase morri por eles saberem onde eu estava, Tomas! Eles emboscaram-nos. Ele abanou a cabeça. — Eu estava lá para garantir a tua segurança. Tu não estavas em perigo — era o Louis-César que eles queriam. Quando ele desaparecer, a Mei Ling deixará de constituir um problema. — Tomas! — Eu queria gritar por causa da obtusidade dele. Como é que alguém podia viver meio milênio e ser assim tão estúpido? — O Rasputine não precisa de mim! Não percebes? Ele já tem uma sibila que faz tudo o que ele quer. A única coisa que ele pretende é que eu morra! — Muito perspicaz, Miss Palmer. — Pritkin entrou na sala de armas em punho. Tinha-me esquecido dele. Acho que os outros também. Ele tinha os olhos postos em Tomas, mas falava para mim. — Parece que somos aliados — por agora. Vou mantê-lo aqui, mas sugiro que se apresse. Há dez cavaleiros negros lá fora. Construí algumas surpresas para as quais não foram avisados com antecedência, mas elas não agüentarão muito tempo. Eles estarão aqui numa questão de minutos.
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— As nossas sentinelas hão de agüentar! — Disse Rafe, orgulhosamente. — O traidor não podia transmitir-lhes os segredos das sentinelas interiores; não os conhecia. Pritkin fez o seu habitual som de desdém. — Acredita no que quiseres, vampiro, mas nós temos exercícios de treino mais difíceis do que as vossas pretensas defesas! Se ela não agir, a sibila morrerá e não haverá nada que impeça o Senado de ser substituído por alguém aliado das trevas. — Manteve os olhos e as armas fixos em Tomas, mas voltou a falar comigo. — Se puder fazer alguma coisa, faça-o agora. — Não sei como! — Passei uma mão pelo cabelo, querendo arrancar parte dele com a frustração, e encontrei algo sólido. Os meus dedos enrolaram-se no gancho que Louis-César me dera quando me tratara do rosto. De alguma forma, conseguira manter-se ali durante este tempo todo. Concentrei-me e senti um leve formigueiro, um eco distante da desorientação que antecedia uma visão, mas não era suficiente. Tinha-lhe pertencido, estivera em contacto com o seu corpo, por isso deveria ter funcionado como foco, da mesma maneira que ele. Mas ou eu não estava suficientemente forte para dar o salto apenas com um objeto, ou ele não o tinha tido durante muito tempo e a ligação era fraca. Fosse como fosse, precisava de ajuda. — Billy! Preciso de uma coisa chamada as Lágrimas de Apolo. — Muito bem, e onde estaria isso? Levantei os olhos para Mircea. — As Lágrimas! Como é que elas são e onde estão?
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— No sacrário interior, numa pequena garrafa de cristal com uma tampa azul. Mas, se entrarmos na câmara, Tomas ficará a saber o caminho. Estes quatro corredores são a última barreira. Três deles são falsos e conduzem apenas à morte. Só um vai dar a Consulesa. Assim que ela morra, a nossa causa está perdida. Billy tinha saído a flutuar enquanto falávamos. — Só há uma passagem verdadeira, Cass. As outras são apenas bons encantamentos. Eu já volto. — Cassie, não faças isso! — Tomas olhou ferozmente para Mircea. — Ele nunca te libertará! Se quiser realmente a liberdade, ajudame. — Abanei a cabeça e o rosto dele tornou-se desesperado. — Por favor, Cassie, não podes recusar! Não percebes — o Alejandro é um monstro! Eu implorei ao Louis-César que me libertasse. Contei-lhe as atrocidades que o Alejandro tinha feito, aquilo que ele continuará a fazer até que alguém o detenha, e mesmo assim ele recusa. — Não posso crer que ele não te ajude. Eu podia tentar... — Cassie! Se eu não consegui dissuadi-lo durante um século de súplica, porque é que achas que ele te dará ouvidos? O Alejandro tem uma espécie de domínio sobre ele. Possui algo que o Louis-César quer e prometeu dar lhe se ele me mantiver sob controlo. Pensei nisto durante anos e não há outra solução. O Alejandro tem de morrer, e, conseqüentemente, o seu campeão também. Olhei para a luz fervente nos olhos de Tomas e percebi que todas as palavras que dizia eram a sério. Ele podia querer ser Cônsul, mas também queria este tal de Alejandro morto. Pela minha parte, talvez o
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tipo merecesse aquilo que Tomas obviamente lhe queria dispensar. Mas não me cabia a eu decidir. — Não trocarei a vida de uma pessoa pela de outra, Tomas. Não posso deixar-te assassinar o Louis-César. Não sou Deus, e tu também não. Tomas gesticulou violentamente em direção a Mircea. — Porque é que não consegues perceber que ele só te quer usar? Se não tivesses os teus poderes, não significarias nada para ele! — E que significaria eu para ti, se não pudesse ajudar-te a ganhar o consulado? Tomas sorriu, o que lhe transformou o rosto, fazendo-o parecer novamente arrapazado e adorável. Como o meu Tomas. — Sabes o que sinto por ti, Cassie. Vou dar-te segurança e paz. O que é que ele pode oferecer? Eu estava prestes a realçar que ele não tinha respondido à pergunta quando Billy regressou a fluir, com uma mão insubstancial a agarrar com força uma garrafinha. — Espero que não precises de mais nada, Cass, porque estou sem energia. — Deixou cair as Lágrimas na palma da minha mão e eu senti a pequena garrafa surpreendentemente pesada. Retirei a tampa no preciso momento em que Tomas arremeteu, não contra mim, como eu quase estava à espera, mas contra Rafe. Pritkin disparou, mas a rajada de metralhadora foi detida pelas poderosas sentinelas da câmara e desviou-se novamente na sua direção. Os escudos dele agüentaram, mas a arma acabou numa massa disforme
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de metal fumegante e ele foi atirado com força de costas contra a parede. — Me dê as Lágrimas, Cassie. — Tomas estendeu uma mão; a outra estava a fazer uma gravata a Rafe. — O Mircea não pode proteger todos ao mesmo tempo, mas ninguém tem de se magoar. Ajuda-me e eu o solto. Eu não tive de me preocupar em encontrar uma resposta. Mais uma vez, Tomas subestimara o mago. Suponho que ele pensasse que, com as sentinelas a inutilizarem as armas mágicas e as armas de fogo, Pritkin não constituiria grande ameaça. Percebeu que não era assim quando o mago deu um salto, tirou um cordel do bolso e o enrolou em volta da garganta de Tomas. Um garrote pode ser uma coisa grosseira, mas funciona. Tomas largou Rafe e Mircea não perdeu tempo a empurrá-lo para a porta de onde Billy tinha saído. Rafe mal a tinha passado quando as sentinelas da câmara falharam e uma enorme multidão de pessoas entrou de rompante. Pritkin gritou qualquer coisa e soltou Tomas, empurrando-o na direção deles. Mircea agarrou-me com força e, num abrir e fechar de olhos, estávamos no interior de outro corredor, a correr a toda a brida. Senti as sentinelas da passagem a fechar-se com estrondo atrás de nós e tive um vislumbre da cena na câmara exterior sobre o ombro de Mircea. Tomas estava estatelado no chão, agarrado à garganta, a sufocar. Atrás dele estavam alguns humanos com armas suficientes para me revelarem tão claramente como se o tivessem tatuado na testa que eram magos de guerra. Tive um vislumbre de Pritkin, com o rosto contorcido num esgar enquanto os encarava; depois dobramos uma esquina e entramos no sacrário interior.
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Capítulo 14 Era uma sala pequena, com cerca de três metros por três e meio, com paredes, chão e teto de pedra despida. A única luz provinha de um par de archotes, um em cada lado de um armário metálico de aspecto bastante mundano. Parecia extremamente deslocado, uma coisa que deveria estar num edifício de escritórios moderno, não colocado na câmara subterrânea de uma fortaleza mágica. A Consulesa estava parada à frente dele, imóvel como uma estátua, à exceção do seu traje animado, com uma pequena bola de prata na mão. A porta do armário estava aberta, exibindo filas de prateleiras cheias de caixas pretas. Não perdi tempo a dizer olá e derramei o conteúdo da garrafa sobre mim e Mircea. Assim que o líquido me atingiu a pele, foi como se um véu tivesse sido levantado. Conseguia "Ver" tudo, cada imagem e sensação daquela outra época, tão claramente como se estivesse a folhear as páginas de um livro. Mircea pousou-me e eu agarrei-me a ele quando os meus pés tocaram no chão. As imagens que me atravessaram a cabeça provocavam-me visão dupla e eu tive medo de cair. — Temos cinco minutos. — Disse a Consulesa com ligeireza, como se estivesse a falar do clima. — Eu sei. — Mircea baixou o olhar para mim. — Consegues fazêlo? Assenti com a cabeça. Tinha o cenário que queria. Era perfeito. Duas pessoas sozinhas sem ninguém pra olhar se elas subitamente começassem a agir de maneira estranha. O facto de uma delas ser Louis-
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César era um bônus. Calculei que ele fosse muito mais difícil de matar se Mircea estivesse presente. — Vou tentar fazer-nos saltar para dentro de dois corpos, pois assim ganharemos mais tempo. Podemos alimentar-nos deles como Billy faz comigo. Mas não sei se vai resultar. Nunca o fiz deliberadamente. — Olhei para Billy Joe, que pairava ansiosamente. — Anda lá. — Cassie, escuta, eu... — Não há tempo, Billy. — Estava a olhar para o espírito a quem ia confiar o meu corpo, possivelmente de forma permanente, e, por um segundo, vi o homem que ele poderia ter sido se tivesse sobrevivido. — Se eu não conseguir regressar, dá o teu melhor para matar o Tony e libertar o meu pai. Promete. — Eu não sabia se ele o poderia fazer, mas Billy era espantosamente engenhoso quando queria. Olhou-me fixamente, depois assentiu lentamente com a cabeça. Dissolveu-se numa nuvem de energia faiscante e flutuou pela minha pele como um cobertor velho que me era familiar. Acolhi-o alegremente, ignorei o vislumbre do seu último jogo de cartas, que ele deveria ter jogado para perder, e senti-o a instalar-se. Só faltava deixarme levar. Concentrei-me na cena que selecionara, vi novamente aquele quarto difuso e à luz das velas, senti a brisa fresca da janela e cheirei os aromas a lenha, rosas e sexo. Depois a terra cedeu e nós começamos a cair. O solavanco do impacto fez-me sentir como se tivesse aterrado no chão depois de me lançar de uma janela do segundo andar. Mas mal dei por isso, tendo em conta as outras sensações que fluíam pelo corpo que eu pedira emprestado. Levantei os olhos e, por um instante, vi
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Louis-César aureolado à luz das velas, precisamente antes de se precipitar para mim. Gritei de surpresa, mas não de dor. Não doeu, como Mircea tinha advertido; foi maravilhoso. Vi-o a esticar-se para fora e tentei dizer qualquer coisa, mas depois ele embateu novamente contra mim e tudo o que eu quis foi que ele o fizesse mais depressa, com mais força. As minhas unhas arranhavam-lhe as costas, mas ele não parecia importar-se. Olhei para os olhos dele e vi que se tinham transformado num belo âmbar líquido, uma cor que Louis-César nunca tivera nem em vida nem na morte. Custava-me pensar, pois os meus pensamentos confundiam-se com os da mulher a quem pedira o corpo emprestado. Tentei concentrar-me, mas toda a atenção dela estava fixa nas finas contas de suor que escorriam do rosto e do corpo dele e ela sobrepôs-se-me. Estiquei-me para cima e passei a mão pelos húmidos caracóis arruivados dele até ao pescoço, puxando-o para mim. O seu ritmo não se alterou, mas o ângulo mudou ligeiramente e ambos gememos em resposta. Passei a língua sobre ele, saboreando-o, e o seu rosto ficou flácido de anseio. Enrolei as pernas à volta da sua cintura e puxei, chamando-o para dentro de mim ainda com mais força. Os músculos das minhas partes baixas contraíram-se, provocando-lhe um arquejo tenso. Agarrei em mãos-cheias do seu cabelo, puxando-lhe a boca para a minha, quase o dobrando ao meio. Ele gritou e, por fim, perdeu o ritmo. Ri-me dentro da boca dele quando arremeteu contra mim em rajadas irregulares, como se não conseguisse obter o suficiente, não conseguisse acelerar ou ter a força suficiente para satisfazer uma necessidade avassaladora. Eu compreendi, pois também eu estava a sentir duas vagas crescentes de desejo, a minha e a da mulher cujo corpo eu invadira. Ela não parecia importar-se; naquele momento, tudo o que ela queria era ser satisfeita, e nisso estávamos de acordo.
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Deslizei de debaixo dele, fazendo-o agarrar-se convulsivamente a mim para manter os nossos corpos unidos, e virei o ao contrário. Sorri de satisfação. Ele estava glorioso, ali espojado no meio dos lençóis macios e pálidos, com o cabelo a brilhar intensamente à luz das velas. Deveria ter parecido errado ver o corpo de Louis-César com os olhos cúmplices de Mircea, mas não pareceu. — Quero ficar por cima. Ele não contrapôs. As mãos dele subiram pelo meu corpo para me envolverem os seios e ambos suspiramos quando eu me acomodei lentamente sobre ele. Eu gostava mais deste ângulo: gostava de o ver debaixo de mim, embora ainda tivesse de me digladiar para não ter aquela estranha visão dupla. Era o rosto de Louis-César que fitava o meu, repleto de desejo, mas era o sorriso triunfal de Mircea quando começou a mexer-se novamente. — Já te disse antes, Cassie. — Murmurou ele. — Tudo o que quiseres. — Então, as vagas de prazer apanharam-nos aos dois, roubando-nos a fala, e eu não me importei. Passado um minuto, o mundo explodiu num perfeito prazer líquido e eu gritei o nome dele, mas a voz não era a minha e o nome não era o do corpo que tinha debaixo de mim. Quando o mundo voltou a coalescer, eu estava embrulhada em braços quentes e cobertores macios, com a cabeça deitada num peito que ainda se erguia e baixava com ligeiros tremores. Uma mão percorria-me o cabelo, acalmando-me, e apercebi-me de que estava a chorar. As palavras dele eram uma mistura estranha de francês e romeno, nenhum dos quais eu compreendia, mas mesmo assim conseguiram consolar-me.
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— Cassie. — Um murmúrio ao meu ouvido levou-me pelo resto do caminho e eu deixei a mulher a desfrutar sozinha daquela maravilhosa sensação indistinta. — Tu consegues mesmo fazer isto. — Ele olhou em volta, com espanto. — Também consegues escolher a época do nosso regresso? Consegues fazê-lo antes do ataque, para nos dar tempo de nos prepararmos? As palavras dele ajudaram-me finalmente a construir uma barreira entre a mulher, que se deleitava no brilho dourado da satisfação sexual, e eu mesma. Olhei para a porta em pânico, mas esta permanecia fechada, sem sinais da mulher mais velha, dos guardas ou de um psicopata russo enlouquecido. De momento, parecíamos estar seguros, mas provavelmente haveria gente a caminho para o matar no momento em que estávamos ali deitados a recuperar. — Mircea, temos de sair! Eles virão aqui primeiro! — Cassie, acalma-te. Não há pressa. A sibila e os seus ajudantes sabem onde irá estar este francês. Tal como disseste, eles não demorarão a chegar, na esperança de que ele esteja agradavelmente ocupado e incauto. Mas nós é que vamos estar à espera deles. — Saiu da cama e encaminhou-se para o espelho. Tocou suavemente na maçã do rosto de Louis-César. — Que maravilha! — Examinou o seu corpo emprestado com perplexidade. Virou-se na minha direção enquanto olhava por cima do ombro para analisar a vista de trás e a minha boca ficou seca. LouisCésar era simplesmente assombroso; não havia outra palavra para o descrever. Iluminado contra a lareira, com o cabelo a desenhar uma
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auréola arruivada à volta do rosto, ele poderia ser um anjo renascentista que ganhou vida. — Esta é a famosa máscara, não é? — Mircea apanhou um retalho de veludo que fora arremessado pelo espelho e ergueu-o ao nível dos olhos. — É um verdadeiro pedaço de história. — Vais dizer-me agora quem ele era? impaciência — ou tenho de adivinhar?
— Perguntei, com
Mircea riu-se e atirou a máscara para o lado. — De maneira nenhuma. — Comentou ele, empoleirando-se com naturalidade na beira de uma cômoda baixa perto do espelho. Tomara que ele tivesse vestido alguma coisa. A atual situação não ajudava em nada as minhas capacidades mentais. — Te contarei a história de bom grado, se isso te diverte. O pai dele era George Villiers, que deves conhecer melhor como o duque inglês de Buckingham. Ele seduziu Ana de Áustria, a rainha de Luís XIII, durante uma visita de estado à França. Mas Luís preferia os homens, facto que há muito deixava a sua rainha frustrada e sem filhos. — Pareceu pensativo por um momento. — Portanto, talvez tenha sido ela a seduzir Buckingham, na esperança de ter um herdeiro. Seja como for, foi bem sucedida. No entanto, parece que Luís não ficou agradado com a idéia de ter um bastardo no trono, principalmente um bastardo semiinglês. Ana já dera o nome do rei ao filho, suponho que numa tentativa de o convencer de que um herdeiro bastardo era melhor do que nada, sobretudo quando ninguém sabia da substituição. O argumento falhou e o seu primogênito foi escondido.
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Eu começava a estabelecer uma ligação, talvez alguma aula de História há muito esquecida, mas não conseguia perceber bem qual era. Mircea não esperou que eu encontrasse a resposta. — A rainha acabou por ter outro filho, que a maioria diz ter sido fruto do seu conselheiro, o cardeal Mazarin. Talvez desta vez ela tenha mantido o silêncio em relação à trapaça, ou talvez o rei começasse a temer não deixar herdeiros, porque o rapaz subiu ao trono como Luís XIV. Não lhe agradava a idéia de ter um meio-irmão extremamente parecido com o duque de Buckingham. Isso poderia pôr em causa a virtude da sua mãe e levantar dúvidas acerca da sua própria progenitura, e, assim, do seu direito ao trono. — O Homem da Máscara de Ferro! - finalmente estabeleci a ligação. — Li esse livro em criança. Mas não foi assim que se passou. Mircea encolheu os ombros. — Dumas era um escritor de ficção. Podia dizer o que quisesse, e na altura havia a circular muitos boatos por onde escolher. Mas, para abreviar, o rei Luís pôs o Louis-César na prisão para o resto da vida, fazendo pender sobre ele a ameaça de molestar os seus amigos para o manter dócil. Para ser ainda mais claro, mandou-o dar um passeio pela mais infame casa dos horrores de França, o principal castelo da caça às bruxas medieval, Carcassonne. O rei Luís usou-o como cárcere para todos os que discordassem dele, mas os torturadores e as tropas que os apoiavam foram todos encontrados mortos numa certa manhã de 1661, levando ao abandono da mais grandiosa fortaleza da Idade Média. Ficou em ruínas e só foi restaurada duzentos anos depois. — Mas o Louis-César não disse que estava aqui nesse ano, em 1661? —Olhei nervosamente em volta. Era só o que me faltava, que um
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maluco homicida ou um bando de aldeões já fartos entrassem de rompante com forquilhas, prontos para chacinar toda a gente. Mircea não parecia preocupado por aí além. — Sim, ele foi transportado para muitas prisões no decorrer dos anos, tendo permanecido em cativeiro até pouco antes da morte do seu irmão, quando faleceu o último dos amigos que ele estava a proteger. Depois arrancou para sempre a máscara de veludo que o tinham obrigado a usar para que ninguém reparasse na sua forte parecença com um certo duque inglês narcisista, que deixara retratos de si próprio espalhados por toda a Europa. Uma vez ele disse-me que os seus carcereiros só o obrigaram a usar a máscara de ferro depois de ele ser transformado, e mesmo então apenas quando era transportado de uma prisão para outra. — Sorriu para mim. Sabes, era uma precaução, para que ele não comesse ninguém pelo caminho. Lancei-lhe um olhar obsceno. — Não era altura para humor. — E atirei lhe o robe que usara na minha anterior visita. — Se Vista. Temos de sair daqui. Ele apanhou o robe no ar. Nada na possessão parecia estar a perturbar-lhe os reflexos, mas eu já tinha percebido isso. — Já te disse, Cassie; estás a entrar em pânico sem razão nenhuma. Eles virão até nós e, depois de nos livrarmos da sibila, iremos salvar o meu irmão. Pestanejei. Esperava não ter ouvido bem.
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— Como assim, livrarmo-nos dela? Ela foi raptada, Mircea! Pode não lhe agradar mais do que a eu fazer parte disto. Ele encolheu os ombros, e aquela indiferença casual deixou-me fria. — Ela ajudou os nossos inimigos e é indiretamente responsável pela morte de pelo menos quatro membros do Senado. — Ele viu a minha expressão e o seu rosto suavizou-se. — Foste criada como uma de nós, mas eu esqueço-me sempre que não é vampira. — Fez o sotaque romeno. Assim soava melhor, mas o que as suas palavras implicavam atingiu-me como uma marreta. — Ela é a chave de tudo isto. Quando ela desaparecer, deixará de haver maneira de alguém viajar no tempo e, portanto, deixará de existir ameaça. Comecei a debater-me dentro da roupa da mulher, que estava espalhada por toda à parte, e tentei encontrar uma resposta que fizesse sentido a Mircea. Pensei nos quatro guardas do Senado que tinham sido mortos. Pelo ar deles, já estavam com a Consulesa há centenas de anos e deviam tê-la servido lealmente, senão não lhes teria sido confiada à proteção da câmara do Senado. Eles podem não ter decidido traí-la: a sibila interferira na transição deles e Rasputine era um mestre poderoso que pode ter conseguido obrigá-los à desobediência. Parecia improvável que eles tivessem optado por essencialmente cometer suicídio ao atacarem-me diante de uma tal audiência se tivessem tido escolha. Mas esse facto não os salvara. A lei dos vampiros era muito simples, embora um pouco medieval, e a intenção não tinha a mesma importância de que gozava nos tribunais humanos. Ninguém queria saber por que motivo se fazia alguma coisa. Se alguém causasse problemas, era culpado, e o culpado tinha de pagar. Se alguém entrasse em querela com outro mestre, o seu
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próprio mestre poderia intervir para o salvar, se ele fosse suficientemente útil para o merecer, quer por meio de um duelo ou através da oferta de compensações, mas ninguém podia fazer nada em relação a uma ameaça contra o Senado. Não havia um poder mais elevado a quem se recorrer. Passado apenas um minuto, desisti de tentar perceber como funcionava aquele vestido inacreditavelmente complicado e resolvi enfiar a leve combinação. Era demasiado fina, mas pelo menos me tapava. Rastejei por debaixo da cama e fui buscar os sapatos da mulher, depois me sentei a olhar para eles com irritação. Pelos vistos, os saltos altos não eram uma invenção moderna. Não podia crer que as mulheres andavam a aturar estes mecanismos de tortura há séculos. — Queres ajuda, dulceata? — Mircea tinha na mão um vestido cor de pavão que presumi a mulher tivesse usado anteriormente. — Já há algum tempo que não faço de criada, mas creio recordar como se faz. Semi cerrei lhe os olhos. Aposto que sim. Passados quinhentos anos, Mircea provavelmente não conseguia lembrar-se de todos os quartos de senhora em que estivera. — Esqueceu. — Disse-lhe eu, enquanto ele me ajudava a vestir o pesado vestido. — Que continuará a haver uma entrada para o tempo, mesmo que a sibila morra. Senti as mãos dele quentes nos meus ombros quando me compôs o vestido. Ajustou o decote baixo e a sua mão demorou-se na carne exposta. — A Pítia está velha e doente, Cassie. Não durará muito mais tempo. — Ergui o olhar para o rosto dele e encontrei lá ternura, mas
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também implacabilidade. Mircea estava disposto a convencer-me do seu ponto de vista, mas não a ouvir de facto o meu. Já decidira como ia lidar com isto — encontrar a sibila, matá-la, ir para casa. Era extremamente pragmático, embora absolutamente insensível. — Mas eu durarei. — Recordei-lhe eu. — Ou também planejavas matar me depois de salvares o Radu? Mircea arregalou aqueles olhos azuis emprestados, mas neles não havia nenhuma da inocência de Louis-César. As suas mãos deram-me a volta para que conseguisse chegar aos atilhos na parte de trás do vestido. — Já te disse, dulceata; tu és minha. Já o eras quando tinhas onze anos. Será para sempre. E ninguém faz mal ao que é meu. Tens a minha palavra. Soava assustadoramente ao discurso de Tomas. É claro que eu sabia que era assim que ele me via. Era a forma como qualquer mestre veria um servo humano, como uma posse. No meu caso, eu era uma posse útil e, portanto, altamente valorizada, mas não passava disso. Mas mesmo assim custava ouvir essa afirmação tão categórica. — E se eu não quiser ter dono? E se quiser ser eu a decidir o que fazer? Mircea beijou-me o cocuruto da cabeça de forma tolerante. — Não posso manter-te em segurança se não souber onde estás. — Virou-me ao contrário, já com os laços feitos, e levou a minha mão aos seus lábios. Os seus olhos tinham uma chama mais brilhante do que as velas do quarto. — Percebes isso, não percebes?
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Eu percebia bem. Via uma vida de servidão dedicada a um dos círculos, ao Senado ou ao próprio Mircea. Independentemente do que ele pudesse dizer acerca do respeito e da influência que o meu poder traria, a verdade é que eu seria sempre vista como um peão para ser jogado. Se eu me tornasse Pítia, nunca mais seria livre. Bolas. Tomara que o sexo metafísico não contasse. — Sim, claro que sim. — Sentei-me na cama enquanto ele me pegou no pé e me calçou uma das compridas meias brancas da mulher. Deixei que ele acabasse de me vestir e tentei pensar numa maneira de salvar a sibila, uma vez que discutir não iria obviamente resultar. Tinha de o afastar do caminho até conseguir encontrá-la, para descobrir se ela estava metida nisto de modo voluntário ou não. Caso contrário, o vampiro muito pragmático com quem eu estava iria simplesmente matála. Embora isso resolvesse o problema, não me parecia que fosse uma solução com a qual eu pudesse viver. Ocorreu-me algo no momento em que ele ajustou a última liga. — Mircea, disseste-me que foi o teu irmão que criou o Louis-César. Por isso é que o que eu e o Tomas fizemos não mudou nada. Em vez de estar amaldiçoado de vampirismo pela família da Françoise, ele foi transformado pelo método habitual pelo Radu, certo? — Sim, parece que o nosso francês tinha um destino que não lhe seria negado. — Nesse caso, o Rasputine não tem de ir atrás do Louis-César diretamente, não é? Se ele destruir o Radu, ninguém morde o LouisCésar e ele morre no final de uma vida normal, em vez de sobreviver para se tornar um mestre. O Radu deve estar refreado de alguma forma, senão eles não conseguiriam mantê-lo aqui. E matar alguém amarrado e
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indefeso seria muito mais fácil para um espírito do que atacar um homem forte e livre, não achas? Mircea ficara pálido. — Sou mil vezes tolo, Cassie! Anda, depressa! Eles podem já cá estar! Resisti quando ele tentou arrastar-me para me levantar. — Vai andando. Caso esteja enganada, é melhor ficar aqui para os apanhar se eles vierem. — O Rasputine é um vampiro mestre! O que poderias fazer contra ele? — É um mestre na nossa era, mas aqui é apenas um espírito. Eu tenho um corpo, portanto serei a mais forte. Além do mais, acho que o Radu é um alvo bastante mais provável, não achas? Mircea queria discutir, mas a preocupação com o irmão sobrepôs-se à sua habitual prudência e ele acabou por partir. Esperei trinta segundos e depois me esgueirei atrás dele. Fui até ao corredor onde tinha encontrado o grupo de fantasmas e, com esforço, consegui senti-los, mesmo no interior de carne emprestada. Não os conseguia ver como tinha acontecido sob a forma de espírito, o que era irritante, mas eles sabiam decididamente que eu estava ali. Fiquei parada no meio daquele corredor frio de pedra e senti-os a aglomerarem-se em meu redor como um nevoeiro arrepiante. Passado um segundo, a porta da câmara de tortura começou a abrir-se e eu avancei para as sombras que forravam as paredes. — Escondam-me. — Sussurrei. — E eu os ajudarei.
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As sombras enrolaram-se à minha volta como um manto invisível, escudando-me dos olhos estupefados da mulher mutilada que parecia estar a pairar a entrada. Ela estava suspensa a quase um metro do chão, mas, embora eu não conseguisse ver, sabia quem a carregava. Esperei que o corpo dela flutuasse pelas escadas abaixo, levada pelos braços invisíveis de Tomas, depois comecei, quando uma voz intrigada sussurrou uma pergunta ao meu ouvido. — Em inglês, por favor. — Disse-lhe com impaciência. No corpo desta mulher conseguia compreender francês se me concentrasse, mas isso requeria esforço, e eu precisava da minha força para outras coisas. Lentamente, Pierre apareceu diante de mim. Não estava, nem de perto nem de longe, tão vívido como antes, mas não me apetecia queixar-me. — Como é que consegue pressentir-nos, madame? Percebi-me de que ele via a mulher que eu estava a possuir, não a mim. — É uma longa história, e não temos tempo para isso. O ponto essencial é que ambos queremos vingança e acho que sei de uma maneira de fazer com que isso aconteça. Passados alguns minutos, eu e o meu exército fantasmagórico descemos para as masmorras inferiores. Pensava que já tinha visto o pior que Carcassonne tinha para oferecer, mas estava enganada. Estas câmaras faziam com que, em comparação, os pisos superiores parecessem quase atrativos, pelo menos para mim. Para a maioria das pessoas, provavelmente teriam parecido desertos, salas de pedras húmidas e simplesmente gastas, tão abaixo do nível das águas que nem sequer serviam para depósito. Mas, para mim, as paredes musgosas e os pisos escorregadios pululavam de vestígios fantasmagóricos,
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reminiscências de espíritos em tempos poderosos que assombraram o sítio durante mais séculos do que eu conseguia contar. Tentei fortalecer os meus escudos, mas não podia erguê-los ao máximo, senão não conseguiria contatar os meus aliados. Conseqüentemente, sensações atacaram-me por todos os lados, delicados fragmentos de vidas há muito perdidas e de torturas toleradas. Vi soldados romanos a chicotear um rapazinho com o número exato de chicotadas sentenciadas, apesar de ele já estar morto. Mesmo atrás deles, um caçador de bruxas medieval ameaçava uma jovem, que estava muito grávida e implorava pela vida do seu filho por nascer. Apertei um pouco mais as minhas defesas para manter afastado o pior dos decadentes horrores, mas aqui e ali ia-me aparecendo um ou outro. E, para onde quer que olhasse havia vestígios de fantasmas, em linhas compridas, cruzadas e reluzentes. Cobriam o chão e as paredes e teciam padrões tão espessos no ar que era como atravessar uma névoa doentiamente esverdeada. Iluminavam as masmorras inferiores de tal maneira que eu abandonei o archote que retirara de um castiçal lá de cima. Não precisava dele. O pior estava guardado para o fim. Segui os meus guias até uma minúscula sala interior. Já ouvia soluços de choro mesmo antes de abrir a porta. Estes cessaram abruptamente com a minha aproximação e o pesado ferrolho foi-me arrancado da mão. A porta escancarou-se e Louis-César olhou-me fixamente lá de dentro. Por um minuto, fiquei a pensar que algo tinha corrido horrivelmente mal. O robe abrira-se até ao seu umbigo, e ao lado do pesado brocado vermelho cereja brilhava uma cor mais escura. Ele sangrava abundantemente de mordeduras no pescoço e no peito e estava pálido. Quando me reconheceu, desequilibrou-se, e eu quase não o consegui apanhar antes que caísse no chão.
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Olhei para trás dele e vi uma figura ajoelhada numa poça de trevas que, passado um momento, identifiquei como sendo um manto com capuz. Lentamente, ergueu a cabeça e eu vi o que parecia ser um esqueleto com barba. Uma pele da cor de queijo suíço bolorento cobrialhe os finos ossos da cara, e só os ardentes olhos cor de âmbar o faziam parecer real. Deitei-me a adivinhar. —Radu? Uma mão ossuda empurrou o capuz para trás. Olhei para a coisa que em tempos tivera a alcunha de "o Belo" e senti-me nauseada. É verdade que o tinham mantido sob controlo, mas não tinham usado nada para o prender. Não tinha sido preciso, depois de quase o terem matado à fome. Nunca ouvira dizer que a privação de sangue pudesse matar um vampiro, mas a coisa que se comprimia à minha frente não parecia estar viva. Eu nunca tinha visto nada assim. — Estamos aqui para ajudar. O Mircea disse-te? — A criatura comprimida ao canto não respondeu. Eu esperava que Mircea tivesse razão em relação à coisa da sanidade, embora começasse a ter dúvidas. — Nós, hã, era melhor irmos andando. Consegues andar? — Ele não consegue andar, dulceata. — Disse Mircea, com uma voz entorpecida e inexpressiva. Estava sentado no chão ao lado da porta e com a cabeça descaída contra a parede, como se já não tivesse forças para a segurar. — Dei-lhe todo o sangue que pude sem arriscar a vida deste corpo, mas não é suficiente. Há anos que não se alimenta, mantém-se consciente apenas por conseguir apanhar uma ratazana ou outra. Não tem visitas durante semanas seguidas e, quando as tem, servem apenas para lhe infligir tormento.
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Obriguei-me a olhar atentamente para a figura decrépita. Com o manto vestido, era difícil perceber, mas eu provavelmente seria capaz de levá-lo, se fosse necessário. O corpo que eu habitava era franzino, mas ele pouco mais era do que pele e ossos. Mas eu preferia realmente uma alternativa que não me obrigasse a tocar-lhe. A idéia daquelas mãos pontiagudas, nem que fosse no meu corpo emprestado, era suficiente para me arrepiar toda, para não dizer que não me agradava a idéia de me transformar em sobremesa. Radu poderia não conseguir alimentarse à distância no estado em que estava, mas, se aproximasse o suficiente, isso deixaria de ser um problema. Eu não sabia bem se a pele lhe tinha recuado dos dentes por o seu rosto estar tão emaciado ou se ele ainda estava com fome, mas as suas presas estavam completamente expandidas e eu não gostava disso. — E agora? Mircea pendeu a cabeça, respirando com grandes arquejos, como se não conseguisse fazer chegar ar suficiente aos pulmões. — Dá me uns instantes para recuperar, dulceata, e depois, juntos, vamos tirá-lo deste sítio. Eu estava prestes a concordar quando se tornou óbvio que não tínhamos uns minutos. No corredor atrás de nós desaguavam uma dúzia de humanos e um vento composto por demasiados espíritos para contar. Soube quem eles eram mesmo antes de se juntarem. Nenhum mero fantasma, por mais recentemente que tenha morrido, tem tanto poder. Uma jovem, talvez no final da adolescência, apareceu primeiro e avançou à frente da multidão. Tinha na mão um punhal fantasmagórico algo semelhante àqueles que saíam da minha pulseira. Os seus olhos fixaram-se em mim por um momento e eu não gostei da expressão
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deles, mas depois se fixaram em Radu com um olhar quase faminto. Uma sombra atrás dela empurrou-a para frente. — Aquele ali! O do manto! Matem-no depressa! Fiquei ali parada, ofegando por um segundo enquanto olhava para eles. Era desconcertante descobrir que a minha diversão acertou no alvo. Coloquei-me entre Radu e a rapariga, mas ela limitou-se a passar através de mim. Eu não estava habituada a que um fantasma fosse capaz de fazer aquilo sem a minha permissão. Inconscientemente, eu tinha levantado uma mão para me proteger dela e a minha pulseira decidiu que estava na hora do espetáculo. Rodopiei sobre mim mesma e, passado um segundo, ela gritava devido a dois buracos abertos que lhe apareciam no contorno indistinto do corpo. Não deitou sangue, claro está, mas estava obviamente com dores. Ótimo. Eu tinha acabado por ferir a pessoa que estava a tentar ajudar. A presença das trevas que a seguia recuou atrás de uma parede de humanos, que se insurgiram contra mim como uma entidade una. Os meus punhais voltaram ao trabalho, mas eles eram muitos. Três deles foram atirados ao chão por aquelas facas cintilantes, mas a maioria conseguiu passar. O primeiro a alcançar-me agarrou-me no ombro e a minha sentinela chamejou, atirando-o para o outro lado da sala para ir embater contra a pedra dura. Fitei-o com espanto. Se eu não estava dentro do meu corpo, como é que a minha sentinela me acompanhara? O mago não podia explicar-me, já que escorregou pelo chão e permanecia ali deitado e quieto. Um outro mago proferiu algo que pareceu a palavra usada por Pritkin contra o metamorfo no Dante's, e uma cortina de chamas ergueu-se à minha volta. Retraí-me antes de me aperceber que esta não estava a tocar-me; o fogo parou a cerca de meio metro, por detrás do tracejado dourado de um pentagrama no chão. A minha sentinela tinha de estar a usar uma enorme quantidade de
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energia para conseguir deter uma palavra de poder, mas eu não me sentia esgotada. Fosse o que fosse que a estava a acionar, não era eu. Através das chamas vi uma figura alta e sombria que começava a contornar a parede. Tentava chegar atrás de mim, e isso não seria bom. De momento, Mircea não estava em condições de combater sequer uma criança de dois anos, quanto mais o espírito de um vampiro mestre. Olhei de relance para o exército atrás de mim e fiz-lhe sinal com a cabeça. — É todo vosso. Uma tempestade de sombras desceu sobre o fantasma como um enxame de abelhas e ele desapareceu de nossa vista com um grito engasgado. Eles podiam não conseguir fazer nada aos humanos, mas os espíritos eram um alvo fácil. Passados alguns segundos, voltaram à formação nas minhas costas e o espectro inimigo deixou de ser visível. — Comeram-no. — Expliquei à figura alta que se mantinha atrás dos magos, rodeada pelos seus companheiros espíritos. Nada de heroísmos para Rasputine. Inteligente, se não verdadeiramente corajoso. — Vai-te embora, senão lanço-lhes outra maldição. — Eles não podem alimentar-se de humanos, sibila. — Disse ele, dando eco aos meus pensamentos. Mexeu-se ligeiramente e eu tive o vislumbre de um rosto pálido emoldurado por um cabelo negro e gorduroso. Não havia nada de atraente nele, mas havia uma qualidade estranha e hipnótica nos seus olhos. — Nem mesmo tu consegues vencer uma dúzia de magos do Círculo Negro. Deixa-nos ficar com o vampiro. Não desejamos mal a ti. — A voz profunda era pesada e acentuada, mas estranhamente calmante. Os seus poderes de vampiro estavam enfraquecidos por ele já não estar no seu corpo, mas
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obviamente não tinham desaparecido. Estava a tentar influenciar-me, e estava a dar resultado. De repente, consegui perceber o seu ponto de vista. Porquê morrer aqui, a centenas de anos e a quilômetros de distância de qualquer coisa que me fosse familiar? Porquê dar a minha vida por alguém que eu nem conhecia e que, fosse como fosse, seria melhor morrer depressa do que viver para enfrentar séculos de tormento? Quase parecia uma amabilidade deixá-los passar, deixar Radu morrer. Rasputine seria rápido e depois eu poderia... Dei literalmente uma estalada em mim própria. Doeu, mas a dor clareou-me as idéias. Droga! Mesmo sob a forma de espírito, ele quase me enganara. — Doze magos? — Olhei para o corpo do mago ao lado da parede, que ainda não tinha mexido um músculo; tinha o pescoço a pender num ângulo que revelava que, provavelmente, não voltaria a mexê-lo. Outros três tinham sido abatidos pelas minhas facas, que regressaram para pairar ao meu lado, uma de cada lado da minha cabeça. Dos três que estavam no chão, nenhum parecia estar morto, e os companheiros deles deviam ter a mesma opinião, pois estavam a puxá-los em direção às escadas, em vez de os deixarem onde tinham caído. Mas também não estavam com aspecto de quem ia regressar ao combate. — Só conto oito ainda ativos, Rasputine. Pergunta aos teus amigos qual deles quer morrer a seguir. Ele não se incomodou. Talvez não gostasse das probabilidades, ou se calhar os seus amigos não eram assim tão amistosos quando se tratava de desistir das suas vidas por causa dele. Fosse como fosse, os seus cadáveres espíritas lançaram-se a mim numa luz reluzente e conseguiram chegar à beira da minha sentinela quando o meu grupo atacou. — Não façam mal à garota! — Gritei, quando milhares de espíritos passaram de rompante por mim numa onda tremeluz ente de
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cor e sombra. Faíscas brancas esverdeadas choveram por toda à parte quando os espíritos de Carcassonne começaram a canibalizar os seus inimigos, drenando-lhes cada centelha de vida. Tinha a sensação de que haveria muitos corpos de vampiros que não mais se ergueriam depois desta noite. Enquanto a pirotecnia explodia sobre as nossas cabeças, dobreime para ajudar a figura aturdida da sibila perdida. Estava com um ar pálido e assustado, mas pelo menos estava viva. Uns grandes olhos cinzentos espreitavam-me a partir de um pequeno rosto oval, emoldurado por um flácido cabelo louro. — Não te preocupes. — Disse-lhe eu, embora isso soasse bastante estranho dado às circunstâncias. — Não vou deixar que ele te faça mal. Temos de ir... Não cheguei a terminar a frase porque, de repente, tudo ficou imóvel. Olhei receosamente em redor, indagando-me sobre qual seria a nova ameaça que teria de enfrentar, e reparei que a faca ainda estava na mão da sibila. E a cerca de um milímetro do meu peito. Fitei-a com incredulidade. Aquela cadela tinha estado prestes a esfaquear-me! E, a julgar pelo ângulo, teria sido um golpe no coração. É verdade que o corpo não era meu, mas eu achava que seria boa educação devolvê-lo sem grandes buracos. Além do mais, eu não sabia o que me aconteceria se a mulher morresse. Nem Billy sabia. Talvez sobrevivesse, talvez não, mas a verdade verdadinha é que não seria grande ajuda nem para Radu nem para Louis-César. Para não falar que iria ter de suportar mais uma morte na minha consciência. — Vejo que recebeste a minha mensagem. — Uma voz flutuava pela sala, tão límpida como um espanta-espíritos.
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Ergui o olhar e vi uma garota esguia e baixa com um longo cabelo escuro que lhe ondulava pelas costas quase até aos joelhos. Passava pelos fantasmas suspensos entrelaçando-se neles, alguns dos quais tinham ficado imóveis, de maxilares escancarados, engolindo atarefadamente outros fantasmas. Ninguém se mexia, ninguém respirava. Era como se eu tivesse entrado numa fotografia, só que nós as duas continuávamos ativas. — O quê? — Afastei-me devagar da sibila e da sua faca, o que também me permitiu recuar da recém-chegada, fosse ela quem fosse. — A mensagem no teu computador. — Continuou a mulher. — No teu escritório. Foi inteligente, não achas? — Espreitou para LouisCésar, mas não fez nenhum movimento em direção a ele. Os seus grandes olhos azuis regressaram a mim e o seu rosto pequenino e doce assumiu um ar algo aborrecido. — Então? Não mereço pelo menos um agradecimento por te ter salvado a vida? O obituário era verdadeiro, sabes? Se não tivesses saído do escritório quando saíste, os homens do Rasputine teriam te encontrado. Terias conseguido fugir deles, mas umas ruas acima iria encontrar os vampiros enviados por aquele tal de Antonio e levarias um tiro. Eu adiantei o óbito para te avisar. Foi inteligente, não foi? — Quem é você? — Percebi a verdade no mesmo momento em que fiz a pergunta, mas queria ouvi-la a dizê-lo. Ela sorriu, com umas covinhas quase tão grandes como as de Louis-César. — Chamo-me Agnes, embora já ninguém me trate assim. Às vezes acho que já nem se lembram.
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— É a Pítia. — Acertaste. — Mas... parece mais nova do que eu. Disseram-me que estava no seu leito de morte, que era muito velha. Ela encolheu levemente os ombros. Isso me fez reparar no que ela trajava — um vestido comprido de gola subida, muito semelhante aos que Eugenie costumava mandar fazer para mim. Parecia algo saído de uma festa de chá da década de 1880. — Receio que tenhas acertado novamente. Na verdade, é bastante possível que esta pequena viagem acabe comigo. Há uns tempos que o meu poder se vem esbatendo, e quatrocentos anos é muita coisa. — Ela não parecia especialmente transtornada com a sua morte eminente. — Enfim, passado algum tempo há de aprender a manipular o teu espírito para desviares o olhar para onde quiseres. Eu prefiro lembrar-me de mim como era. Na verdade, nos últimos anos passei mais tempo fora daquele velho casco enrugado do que dentro dele. — Flexionou os dedos. — Artrite, sabes? Olhei-a fixamente. Por algum motivo, eu esperava que a Pítia fosse mais, como dizer, majestosa. — O que faz aqui? Agnes riu-se. — Vim resolver um problema, o que havia de ser? — Dobrou-se para olhar o rosto desfigurado da mulher prestes a espetar-me um punhal. Eu tinha-me mexido, mas a sibila não; o rosto ainda estava fixo num esgar e a faca a meio caminho do seu arco. — Passei vinte anos a treinar esta garota. Não dirias isso ao olhar para ela, certo? Vinte anos e
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olha o que tenho para apresentar. — Abanou a cabeça. — Estou aqui porque esta confusão é, em parte, culpa minha. Eu escolhi a tua mãe como minha aprendiza. Treinei-a durante quase uma década. Amava-a como a uma filha. E, quando ela partiu com o teu pai, eu proibi-a, convencendo-me a mim mesma de que estava a fazer-lhe um favor. Ele era membro da máfia dos vampiros, por amor de Deus! Dificilmente seria uma combinação adequada para a minha bela criação. — Não entendo. — Eu podia tê-la encontrado! — Lágrimas cristalinas reluziam nos grandes olhos azuis de Agnes. — Disse a mim mesma que, se ela não se importava nada com o seu chamamento, se conseguia descartar tudo com tanta facilidade, eu não precisava dela. Poderia começar do zero, poderia escolher outra aprendiza, criar outra estrela cadente... Só que, obviamente, não podia. Eu era demasiado orgulhosa para admitir que não tinha sido a minha tutela a fazer da Lizzy o que ela era, mas sim o seu talento inato. Não fui atrás dela e aquele vampiro patrão do teu pai mandou matá-la para te apanhar. — Tampou o rosto e chorou. Eu limitei-me a ficar ali parada. Ela esperaria realmente que eu me condoesse? Não me apetecia chutá-la enquanto estava no chão, sobretudo se ela estivesse realmente moribunda, mas também não me sentia muito consoladora. Decidi por cruzar simplesmente os braços e aguardar. — Não és do tipo compassivo, certo? — Perguntou, passado um minuto, olhando para mim pelo meio dos dedos. Baixou as mãos e observou-me com curiosidade. Encolhi os ombros; tendo em conta o lugar onde cresci, de que raio é que ela estava à espera? Ela suspirou e desistiu de fingir. — Muito bem, eu estava errada. Azar o meu. Mas agora temos de remediar as coisas. Não posso treinar-te
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convenientemente porque não tenho tempo, mas é bastante óbvio que não posso permitir que o poder passe para a Myra. Ou ela está metida nisto de forma voluntária ou foi coagida. No caso da primeira hipótese, ela é maléfica; no caso da segunda, é fraca. Seja como for, está fora da corrida. Olhei para a faca comprida e afiada na mão da sibila e para a expressão nos seus olhos. Apostava no voluntário. Ela parecia um bocadinho zangada por estar sob alguma espécie de controle mental. Eu começava a sentir uma certa simpatia pelo ponto de vista de Mircea. — Certo, tudo bem. Ela é uma sibila má. Quer levá-la consigo e dar-lhe um sermão? Está à vontade. — Não é essa a idéia. Eu não estava com disposição para um jogo de perguntas. — Tem alguma coisa a dizer? É que eu estou aqui um bocadinho atarefada. Ela lançou as mãos ao ar. — Claro, por favor, perdoa-me por estar para aqui a falar. Mas esta é uma ocasião especial, sabes? Só estou tentando dar lhe um toque de cerimônia. De repente, tive um mau pressentimento. — Que ocasião especial? Ela lançou-me um olhar que não tinha nada do anterior tom de brincadeira.
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— O poder selecionou-te. É você, é a Pítia. Fez uma careta.— parabéns e tudo o mais. Conclui que a mulher tinha uns parafusos a menos. — Não pode simplesmente largar essa bomba assim em cima de mim! E se eu não quiser? Ela fez um leve encolher de ombros. — E qual seria o motivo? Olhei-a fixamente. O seu rancor era inacreditável. — Esqueça, minha senhora. Escolha outra vidente. Agnes pôs os punhos pequenos nas suas ancas estreitas e olhoume furiosamente. — Quanto mais falo contigo, mais me convenço de que irás ser ou a melhor de nós ou a pior de todas. Se eu tivesse alternativa, acredite que a escolheria. Mas não tenho. O poder quer passar para ti. Aceita um conselho e faz com que seja uma transição fácil. Quanto mais a combateres, mais trabalho te dará. — Uma merda. —Graças a Deus que eu tinha um trunfo na manga. — O seu poder não pode passar para uma virgem. E, tecnicamente, eu continuo pura e incólume. Ela olhou para mim por um segundo, aparentemente sem palavras. Depois desatou a rir à gargalhada. Por fim, recuperou o fôlego e conseguiu dizer, arquejando:
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— Quem é que disse? Não me digas que tens dado ouvidos aos magos! Por favor! — Espere aí. Os vampiros também acreditam nisso. Toda a gente acredita. Agnes abanou a cabeça e tentou abafar um sorriso. Como não resultou, ela acabou por ceder. — Meu Deus, que ingênua que você é. Quem é que acha que lhes disse isso? Uma das Pítias antigas fartou-se do código que estipulava que uma sacerdotisa tinha de ser “pura e incólume”, para usar a sua expressão. Por isso disse aos sacerdotes de Delfos que tinha tido uma visão. O poder seria muito mais forte se passasse para uma mulher experimentada. Eles acreditaram e ela teve direito ao seu amante. Mas não faz diferença nenhuma. Bem, pelo menos na obtenção do poder. — O que é que isso quer dizer? Ela riu-se novamente e rodopiou um pouco pela sala, passando por um par de magos pelo caminho. Eles estremeceram ligeiramente, mas não acordaram. — Quer dizer que sugiro que completes o ritual o mais depressa possível, se esperas controlar o dom em vez de ele controlar você. — Sorriu. — E eu não estou propriamente equipada para te ajudar com isso. — Ela observou os meus braços cruzados e a minha expressão obstinada e fez uma pausa. Pela pequena prega que lhe apareceu na testa, fiquei com a impressão de que não estava habituada a ser contrariada. — Tudo bem, faz como quiser, mas, se deixar o ritual a meio, não só ficarás com um controle imperfeito, como os magos irão considerar-te apenas como a herdeira. A Pítia não pode ser deposta,
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mas a herdeira pode, certamente. Até terminares isto, a tua posição é vulnerável. — Olhou-me de cima a baixo e depois levantou uma delicada sobrancelha. — Custa-me a acreditar que precisamos ter esta conversa. Eu estava bastante irritada, sobretudo quando ela recomeçou a dançar. — Ouça, quantas maneiras tenho eu para dizer isto? Não, obrigada. Não quero o trabalho. — Perfeito. Nesse caso, eu sigo em frente sabendo que não é louca. — Ela parou a sua pequena imitação de bailarina de forma tão abrupta que as saias lhe rodopiaram nas pernas. — Eu também não o queria, sabes? Entre as sibilas da minha geração, eu era a única que teria ficado muito contente por não ter sido escolhida. É uma grande honra, mas é também um fardo pesado. Além do mais, tens de aturar o Círculo de Prata, e acredita que essa não é a idéia de diversão de ninguém. A expressão dela tornou-se subitamente sombria. — Se te serve de consolo, Cassie, lamento. Desde a primeira Pítia que não havia nenhuma que tivesse de assumir o cargo completamente destreinada. Mas afinal, com as tuas capacidades, é provável que reescrevas o livro de regras. Por exemplo, sabias que neste momento habita a mesma época em duplicado? O teu espírito está a debater-se, juntamente com aquela garota que salvaste, para atravessar as ruas lá fora, enquanto tu estás aqui dentro a falar comigo. Eu não consigo fazer isso. Além disso, a maioria dos nossos adeptos demora anos a aprender aquilo que conseguiste ensinar a ti própria em poucos dias apenas. Com franqueza, levar contigo outro espírito! É impressionante. Apetecia-me gritar.
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— Pode parar de falar e ouvir me? Eu. Não. Sou. A. Pítia. Ela se aproximou de mim rapidamente e beijou-me a face. — Agora já é. — Disse ela, desaparecendo depois. Nesse mesmo segundo, fui atingida por algo que me fez sentir como se tivesse sido passada a ferro por um caminhão. Não há maneira de o descrever adequadamente, por isso nem sequer vou tentar. A coisa mais parecida que alguma vez senti foi quando estava no corpo de Tomas e os seus sentidos tão acentuados se revelaram uma grande distração. Só que os sentidos que agora estavam aguçados não eram os do olfato nem da visão, mas sim aquela percepção de outros mundos, diferentes, mas que interferiam com os nossos, que eu sempre sentia um pouco quando falava com fantasmas. Agora eu tinha muito disso, e as imagens e sons à minha volta distraíam-me tanto que eu nem sequer reparei que o tempo recomeçara a correr. Só quando alguém me deu uma facada no pé. Baixei o olhar e vi que a sibila falsa tinha acabado por conseguir apanhar me, embora não da maneira que planejara. Mesmo assim, doeu muito e o sangue começou a trespassar o cetim do meu chinelo de salto alto, dando ao material um tom roxo escuro. Ergui o olhar para as forças de batalha sobre a minha cabeça. — Muito bem. Mudei de idéia. Comam-na. Um grupo de fantasmas irrompeu da nuvem principal e mergulhou na direção dela, mas Rasputine deslocou-se com uma celeridade vampiresca e chegou lá primeiro. Agarrou-a pela cintura e desapareceram, juntamente com os poucos vampiros dele que tinham escapado ao ataque dos fantasmas. Os magos viram o seu aliado a fugir e seguiram-no de imediato. As minhas pequenas facas ficaram extremamente agitadas e perseguiram-nos porta fora e pelas escadas
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acima, e eu deixei-as ir. Matar mais alguns magos das trevas poderia alterar a linha temporal, mas naquele momento eu estava demasiado cansada e farta para me importar com isso. Sentei-me e apertei o chinelo. Droga! A cadela maluca quase me amputara um dedo do pé. Mircea entregou-me um lenço que tirou do bolso do seu robe e eu atei a ferida o melhor que pude. Não achei que fosse perder o dedo, a não ser que a ferida infectasse. Mas, tendo em conta o estado da masmorra, isso parecia no mínimo possível. Ótimo. Levantei os olhos e vi o meu exército de fantasmas ali a pairar, com uma exigência tácita nos olhos. Sabia o que eles queriam, e não valia a pena tentar dissuadi-los. A energia que tinham roubado aos vampiros de Rasputine poderia sustentá-los durante anos, mas quem é que queria uma existência num lugar destes? Eles tinham apenas um interesse, e eu tinha prometido, mas haveria algumas condições. — Nada de aldeões e nada de inocentes. — Disse eu, recebendo em troca um assentimento de cabeça arrepiante e coletivo. Suspirei. — Muito bem, então, o resto é vosso. De imediato se ergueu uma espiral rodopiante de espíritos, como uma nevoa multi colorida à volta da minha cabeça. Era tão espessa que desapareceu da sala por um instante, e tão cheia de raiva reprimida que os seus lamentos coletivos soaram como um comboio de carga. Depois, num abrir e fechar de olhos, foram-se embora. Não tentei segui-los com os meus sentidos; aquela era uma festa a que eu preferia não assistir. Tirei as mãos dos ouvidos e descobri Mircea a observar me, com um olhar de cautela nos olhos. Suspirei. Não queria ter esta conversa, na verdade ainda a queria ter menos do que voltar a enfrentar Rasputine. Mas não havia escapatória.
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— Acho que conseguimos. — Disse-lhe eu. — Explicaste as coisas ao Radu? Ele assentiu lentamente com a cabeça. — Sim. Ele concordou em trazer Louis-César e em deixá-lo desenvolver-se sozinho, tal como aconteceu anteriormente. O Radu irá fugir, mas evitará o contacto com quem quer que seja durante um século, até à altura em que eu o salvei da Bastilha. E mesmo a partir daí, irá manter um comportamento discreto, como tu dirias. Achas bem? Pensei nisso por um minuto. Não era perfeito, mas, à exceção de o trancar num quarto durante três séculos e meio, não via alternativa. E algo me dizia que Mircea não concordaria com isso. — Sim, acho que sim, desde que ele não crie nenhum vampiro até à nossa época. De alguma forma, o Rasputine já está a criar vampiros não registrados, e não precisamos de duas pessoas a fazê-lo. Ah, e fala ao Radu da Françoise. Tenho a sensação de que alguns dos magos poderão tentar compensar parte dos seus prejuízos através dela esta noite. A prova de que Mircea estava uma pilha de nervos foi o fato de não perguntar o que eu queria dizer. — Como quiseres. Gesticulei. — Quanto é que conseguiste ver?
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— Muito pouco. Mas, pelo fato de estarmos vivos, tive a impressão de que vencemos. — Não propriamente. — Expliquei resumidamente a situação, incluindo a minha promoção. Quando ele regressasse e descobrisse que Agnes estava morta, acabaria por perceber. — Vais ter de dizer ao Senado que o Rasputine fugiu e que a sibila foi com ele. Não sei se ela agora irá manter o poder que lhe foi emprestado, mas é possível que sim. — Tendo em conta que Myra se tinha manifestado logo após a minha conversa com a Pítia, parecia ser um bom palite. Talvez isso se esbatesse com o tempo, mas não havia maneira de saber com toda a certeza. O que me deixava com um problema importante. Quando ela recuperasse do meu pequeno ataque com facas, poderia fazer-me o que andava a tentar fazer ao Louis-César. As possibilidades eram infinitas e incluíam matar-me em criança ou atacar os meus pais antes mesmo de eu ser concebida, assegurando-se que eu nem sequer nascia. A minha única vantagem era o fato de, durante a maior parte da minha vida, ou eu estar na fortaleza a que Tony chamava casa, protegida com o equivalente vampiresco de Fort Knox, ou estar escondida. Portanto não seria um alvo fácil. Mas algo me dizia que Rasputine gostava de um desafio. Mircea ficou calado durante um longo momento. Quando finalmente falou, parecia tão cansado como eu. — Pode dizer lhes você mesma. Sorri. — Não, não me parece que possa. — Ele começou a dizer qualquer coisa, mas eu coloquei-lhe um dedo sobre os lábios. Pelo menos acerca de uma coisa eu estava certa. — Não vou voltar àquilo,
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Mircea. Já era mau o suficiente antes, mas agora há de andar toda a gente a lutar por minha causa — o Senado, os dois círculos, talvez o Tomas... Não. Que tipo de vida seria essa? Ele pegou na minha mão e beijou-me cuidadosamente os dedos. Os seus olhos estavam cansados, mas continuavam bonitos quando cruzaram os meus. O reluzente âmbar cor de canela subjugava completamente o azul de Louis-César. Tive a sensação de que nunca mais voltaria a ver outro par de olhos tão assombrosos, nem tão tristes. — Não podes fugir para sempre, Cassie. — Já me escondi antes. Posso fazê-lo de novo. — Já foi encontrada antes. — Agarrou-me na mão com o máximo de força que tinha e, durante aquele momento, deixei que o fizesse. Poderia demorar muito tempo até eu conhecer o toque de outra pessoa, mais ainda de alguém de quem gostasse. — Só por ti e pelo Marlowe. — Disse-lhe meigamente. — Diz-lhe que tire umas férias. Ele vai precisar de férias para se recuperar do ataque. Tire você também. Mircea abanou a cabeça, como eu sabia que ele iria fazer. Ele não me mentiria naquele momento. Para vampiro, era um partido dos diabos. Estiquei-me e passei-lhe a mão pelo cabelo, desejando que fossem as suas próprias madeixas lisas e escuras debaixo dos meus dedos, em vez dos caracóis de bronze do francês. Custava-me um pouco imaginar nunca mais voltar a tocar-lhe, nunca mais voltar a abraçá-lo. Mas o preço a pagar era demasiado elevado. Haviam demasiadas implicações.
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— Irei encontrar te, Cassie. Só rezo para que seja antes dos círculos. Ambos irão atrás de ti, podes estar certa disso. Não os subestimes. — Não o farei. — Comecei a erguer-me, mas ele segurou-me na mão. — Cassie, fica comigo! Eu manterei você em segurança, juro! Fiz-lhe a mesma pergunta que fizera a Tomas. Desta vez obtive uma resposta. — Irias querer-me, mesmo que eu não fosse a Pítia? Ele levou-me a mão à boca. Tinha os lábios frios. — Começo a pensar que até preferia. Olhei em volta para o corpo do mago caído, para as paredes lodosas e para a sala repleta de desespero. Apertei-lhe a mão. — Eu tenho a certeza de que preferia. — Disse-lhe eu, e parti.
Fim... Continua em Cassandra Palmer 02 : Claimed by Shadow
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