Revista Prática Jurídica Digital / Consulex. nº 172. Ano XV, 2016

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VENDA PROIBIDA

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Ano XV – Nº 172 – 31 de julho de 2016

ESPECIAL A LUTA PELO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL

DIREITO AMBIENTAL

ENFOQUE

DIREITO E FICÇÃO

MARCELO KOKKE

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

MARA REGINA DE OLIVEIRA

AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL E SANÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAS

DROGAS: PORQUE NÃO LEGALIZAR?

TEMPOS MODERNOS E O PODER (IN) DISCIPLINAR

VADE MECUM FORENSE CONSEQUÊNCIAS DA NÃO APLICAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA STRICTO SENSU COMO ULTIMA RATIO

PRÁTICA DE PROCESSO: O DEFENSOR, O JUIZ, O PROMOTOR DO JÚRI E O CIDADÃO: QUEM SÃO E COMO SÃO?



SUMÁRIO DIVULGAÇÃO

6 ESPECIAL

A luta pelo direito à liberdade religiosa no Brasil

Para os autores Mauro da Cunha Savino Filó, Mestre em Direito pela UNIPAC/JF, professor da FDCL, e Agenor Alexsander Carvalho Costa, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete (MG), o tema abordado nesta edição visa manter a memória viva do Estado laico, ao destacarem a luta por sua conquista e a importante contribuição para a diversidade encontrada em um Brasil contemporâneo. Os autores destacam que a liberdade religiosa deriva da liberdade de pensamento, conforme ensina o professor de ensino religioso Elias Dutra, ao afirmar que “quando é exteriorizada torna-se uma forma de manifestação do pensamento”.

SEÇÕES 5 Primeira Página

19 Destaque

DIVULGAÇÃO

Veículos elétricos: em busca de um novo paradigma de sustentabilidade para o trânsito viário terrestre O trabalho escrito por Eduardo Luiz Santos Cabette, Regina Elaine Santos Cabette, Pâmely Tieme Taneguchi e Waléria Cristina Alves dos Santos registra os aspectos interdisciplinares que apontam para a necessidade urgente de dedicação, de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia no setor de transporte viário terrestre, especialmente com relação aos veículos elétricos, de modo a satisfazer necessidades de redução de danos ambientais que estão em consonância com as ordens jurídicas constitucional interna e internacional.

DIVULGAÇÃO

Jogadores do bom combate (parte I)

38 Know how

Do tribuno da plebe romano à dfensoria pública: breves palavras sobre o amicus e custus plebis

41 Gestão de Negócios

Novo CPC dificulta gestão de carteiras jurídicas

42 Expressões Latinas Actio revocatoria [pauliana]

44 Saiba Mais

Tempos modernos e o poder [in] disciplinar

A Mestra e Doutora em Filosofia do Direito Mara Regina de Oliveira propõe, na seção Direito e Ficção, fazer uma aproximação crítica da ideia zetética de poder disciplinar, exposta por Michel Foucault, com a primeira parte do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Para a autora, “Nesta perspectiva, partimos do pressuposto de que o cinema apresenta inúmeros conceitos-imagens que podem ser relacionados aos conceitos teóricos da filosofia escrita, que vão além do mero exemplo, ao possibilitarem uma expansão do próprio raciocínio crítico sobre os temas estudados”. Confira!

Drogas: por que não legalizar?

36 Casos Práticos

47 DIREITO E FICÇÃO

Código comercial, construção democrática

20 Enfoque

23 PAINEL UNIVERSITÁRIO

Lei Maria da Penha: a mudança

Cobranças indevidas de imposto sobre doações realizadas (ITCMD) com fundamento em informações de doações obtidas das declarações do Imposto de Renda

54 Questões de Direitos

Não incide ITBI sobre imóvel pendente de regularização

62 Direito Ambiental

DIVULGAÇÃO

57 VADE MECUM FORENSE Consequências da não aplicação da prisão preventiva stricto sensu como ultima ratio O artigo assinado por Diego Wasiljew busca trazer a importância da aplicação da prisão preventiva stricto sensu como ultima ratio no Direito Penal. A abordagem está pautada nas consequências da aplicação errônea da mencionada prisão cautelar, seja violando sua estrutura principiológica, seja violando seus aspectos procedimentais, trazendo à tona os problemas da superlotação dos presídios, do contato do preso cautelar com os presos definitivos, da retaliação contra o preso preventivo e, por último, do possível envolvimento com a criminalidade.

Autocontenção judicial e sanções administrativas ambientais

66 Espaço Aberto

Bloqueio do WhatsApp, a liberdade de expressão e a soberania nacional

PRÁTICA DE PROCESSO 64 O defensor, o juiz, o promotor do júri e o cidadão: quem são e como são?

ARTIGOS PARA PUBLICAÇÃO – As matérias encaminhadas para apreciação do Conselho Editorial desta Revista deverão ser inéditas, exclusivas e conter, no máximo, 6 laudas com 35 linhas cada.


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FUNDADOR Luiz Fernando Zakarewicz (1946-2008)

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Áreas Assuntos Internacionais: Edmundo Oliveira e Johannes Gerrit Cornelis van Aggelen Civil e Processo Civil: Airton Rocha Nóbrega Constitucional: Palhares Moreira Reis Penal e Processo Penal: Sérgio Habib Trabalhista e Previdenciária: Otavio Brito Lopes Tributária: Kiyoshi Harada

ED UC A EN ÇÃO R CO D EN NT EV AT RE E S O O ER JAN SE PL IN U UR E PR A R ÓP L P IB RI AR EIR O A O CA Q M UE IN O HO A LU NO

Jornalismo Adriana Zakarewicz ANO XX - Nº 468 15 DE JULHO DE 2016

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A

Redação Celso Bubeneck

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0468

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ATROCIDADES E CONFLITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS CONJUNTURA

TENDÊNCIAS

CLÁUDIO LOPES CARDOSO JÚNIOR

AMADEU GARRIDO

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

DECISÃO SOBRE PRECATÓRIO GERA INSEGURANÇA JURÍDICA

CRISE ECONÔMICA, DESEMPREGO E AJUSTE FISCAL

A CONDUÇÃO DE UM PAÍS EM CRISE

IN VOGA

Ada Pellegrini Grinover, Adilson Abreu Dallari, Alice Monteiro de Barros, Álvaro Lazzarini, André Luís Alves Melo, Antônio Souza Prudente, Arion Sayão Romita, Arnoldo Wald, Avenir Passo de Oliveira, Benedito Calheiros Bomfim, Benjamim Zymler, Cândido Dinamarco, Cândido Furtado Maia Neto, Carlos Alberto Silveira Lenzi, Carlos Mário da Silva Velloso, Carlos Pinto Coelho Motta, Celso A. Bandeira de Mello, Cid Heráclito de Queiroz, Cid Scartezini, Celso de Melo Filho, Dalmo de Abreu Dallari, Damásio Evangelista de Jesus, Diaulas Costa Ribeiro, Diógenes Gasparini, Edson de Arruda Camara, Estêvão Mallet, Ettore Dalboni da Cunha, Fábio Konder Comparato, Fátima Nancy Andrighi, Fernando da Costa Tourinho Neto, Fernando Tourinho Filho, Georgenor de Souza Franco Filho, Gilmar Ferreira Mendes, Habib Tamer Badião, Hugo de Brito Machado, Humberto Gomes de Barros, Humberto Theodoro Júnior, Inocêncio Mártires Coelho, Ivan Barbosa Rigolin, Ives Gandra da Silva Martins, Ivete Senize Ferreira, Ivo Dantas, Jacilene Ribeiro Oliveira, José Alberto Couto Maciel, José Augusto Delgado, José Carlos da Silva Arouca, José Cretella Jr., José Eduardo Carreira Alvim, José Janguiê Bezerra Diniz, José M. de Arruda Alvim, José Tavares Guerreiro, Lincoln Magalhães da Rocha, Luiz Flávio Borges D’Urso, Luiz Flávio Gomes, Luiz Otavio Amaral, Marco Aurélio Mello, Marco Aurélio Greco, Maria Cristina Peduzzi, Maria Helena Diniz, Mário Delgado, Mário Frota, Marli Aparecida da Silva Siqueira, Miguel Reale Júnior, Paulo Roberto Colombo Arnoldi, Renata Malta Vilas-Bôas, Ricardo Luiz Alves, Sacha Calmon Navarro Coelho, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Toshio Mukai, Vicente Greco Filho, Vívian Sandoval Barbosa, Waldemar Zveiter, Wálteno Marques da Silva, Walter Douglas Stuber, William Douglas

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JOÃO PAULO OLIVEIRA DIAS DE CARVALHO

DIVULGAÇÃO

PRIMEIRA PÁGINA

LEI MARIA DA PENHA: A MUDANÇA á 10 anos foi sancionada e publicada a Lei nº 11.340/2006, intitulada Lei Maria da Penha. O referido diploma legal consiste em um conjunto de regras que constitui, por si só, um microssistema jurídico formado por normas relacionadas a outros ramos do Direito, tais como Penal, Processual, Administrativo, Financeiro, Constitucional, do Trabalho etc. Essa mescla de direitos tem uma razão de ser. Ela impõe uma verdadeira mudança do paradigma axiológico da sociedade brasileira no que se refere à subjugação do gênero feminino pelo masculino. A metamorfose de valores sociais imposta pela Lei Maria da Penha vai para além da punição daqueles que cometem atos de violência doméstica, pois traz substrato concentrado para uma verdadeira reabilitação psicológica de vítimas e agressores. Neste sentido é que a Lei Maria da Penha enuncia nos incisos I e V de seu art. 35, como políticas públicas a serem implementadas pelos entes federativos, a criação e a promoção dos centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, além de centros de educação e de reabilitação para os agressores. A Lei nº 11.340/2006, portanto, tem imenso impacto social, pois, com seu perfil pedagógico, visando educar as gerações que estão se desenvolvendo sob a sua égide de maneira a alertá-las para o fato de que a sociedade

moderna é formada pelos trabalhos de homens e mulheres, que devem exercê-los em igualdade de condições, respeitadas suas diferenças fisiológicas. Destarte, a Lei nº 11.340/2006 apresenta-se, por si mesma, no cenário nacional como política pública, materializada pelo Congresso Nacional, que visa à proteção de diversos direitos fundamentais constitucionais, tais como a vida, as integridades física e psicológica, a saúde, a liberdade, o trabalho etc. Por isso, a Lei Maria da Penha constitui conglomerado normativo que vai ao encontro do princípio da dignidade humana, espírito da regra do art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, e, assim, ostenta a condição de espelho legal de fundamento constitucional, devendo qualquer interpretação do mencionado diploma legal que não leve em consideração o texto constitucional ser afastada com todo rigor pela autoridade competente, por sua exegese e aplicação. A sociedade brasileira, portanto, está a caminhar no sentido de prevenir e remediar mais uma enfermidade social da qual vem padecendo há muitos anos, que é a violência doméstica como forma de subjugação de um gênero por outro. Desta maneira, mais um nível positivo está sendo atingido na escala da dignidade humana, a qual é fundamento de nossa Constituição Republicana de 1988. E que venham mais 10 e tantos outros anos de Lei Maria da Penha.

REFERÊNCIAS BIACHINI, Alice. Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/2006 – aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2014. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica – Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. DIAS DE CARVALHO, João Paulo Oliveira. Lei Maria da Penha: um novo paradigma, Revista Jurídica Consulex, Brasília, v. 17, n. 404, p. 42-44, 2. quinz./nov., 2013. JESUS, Damásio de. Violência contra a mulher. São Paulo: Saraiva, 2010.

JOÃO PAULO OLIVEIRA DIAS DE CARVALHO é Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (AESP-CE), Defensor Público do Estado do Ceará, ex-Defensor Público do Estado do Pará, ex-Advogado (concursado) do Banco do Nordeste do Brasil S/A, autor das obras Manual de Prática Forense Penal (2. ed., JH Mizuno) e Da Inaplicabilidade da Justificação Judicial como Processo Cautelar (1. ed., DIN-CE) e de artigos jurídicos publicados em revistas especializadas e periódicos de grande circulação.

PRÁTICA JURÍDICA – ANO XV – Nº 170 – MAIO/2016

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DIVULGAÇÃO

ESPECIAL

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA e MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ

A LUTA PELO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL

“A Constituição de 1988, apesar de seguir os moldes da Constituição de 1891, além de ter deixando brechas a interpretações equivocadas de que o Estado brasileiro ainda tenha a religião católica como religião oficial, sofreu mudanças, seja através de emendas ou novas promulgações, com seu desenvolvimento através dos anos. Obtivemos garantias no tocante a igualdade e a liberdade de culto, porém não é um diploma efetivo, já que no cotidiano de nossa sociedade acompanhamos atos dos mais inconstitucionais já imaginados, em constante afronta não só à democracia como à sociedade brasileira. Um desequilíbrio que se faz não apenas no conflito entre os grupos religiosos em análise, mas da sociedade como um todo, visto que o devido respeito à diversidade religiosa é fundamental para a construção do país.”

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PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016


DIVULGAÇÃO

presente trabalho tem por escopo analisar a evolução constitucional e o dever de neutralidade estatal face à liberdade religiosa brasileira, garantida em nossa lei maior. Para uma melhor compreensão do assunto abordado apresentaremos um estudo sobre a conquista da liberdade religiosa no mundo, anterior ao pensamento do legislador brasileiro. Será feita uma explanação antropológica dos pensamentos jusnaturalistas clássico, medieval e moderno, assim como da necessidade de uma separação entre Igreja e Estado. Serão analisadas as garantias fundamentais consagradas em nossa Constituição Federal, a saber, as liberdades de consciência, de crença e de culto.

hereditário à coroa, símbolo real do estado império, um direito divino e imutável. Observamos também o direito divino dos monarcas em pleno confronto com novas ideias, e até mesmo uma nova forma de pensar o jusnaturalismo, que iriam traçar novos rumos para o pensamento estatal e para as liberdades individuais. Ao citar Falconi, Guido Fassò (2008) bem demonstra esta influência política ao relembrar a figura de Antígona, na Grécia antiga: [...] Antígona, Édipo rei e Medeia traziam como vetor principal a ideia do direito natural; na tragédia grega, Antígona recusa-se a obedecer às ordens do rei, julgando que as leis políticas não podem se sobrepor às eternas, às dos Deuses (2002, p. 657-658). A afir-

AS IDEOLOGIAS DO LAICISMO FACE AO JUSNATURALISMO – No Brasil, o grande marco para a laicidade estatal se deu com a Constituição Federal de 1891. A fim de acompanhar como se deu a ruptura entre Estrado e Igreja e qual a sua importância dentro da formação de nossas sociedades contemporâneas pelo mundo, assim como a conquista por direitos e garantias individuais faremos uso dos textos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em “O Contrato Social” (1762), e Thomas Hobbes (1588-1679) em “O Leviatã” (1651). O princípio de toda a obra de Rousseau é que “o homem é bom por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade.” Já para Hobbes (1651), as leis que regem o comportamento humano são de origem divina. O homem em estado natural é antissocial por natureza e só se move por desejo ou medo, “Homo homini lúpus” O homem é lobo do homem; “Bellum omnium contra omnes” em guerra de todos contra todos. Ambos os autores concordam no tocante ao “bem comum” e à necessidade de se estabelecer um “contrato social”, transferindo os direitos que o homem possui naturalmente em favor de um soberano dono de direitos ilimitados, visando, com isso, que cada indivíduo renuncie a uma parte de seus desejos e chegue a um acordo mútuo de não aniquilação. Segundo Rousseau: Esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que, por esse mes-

mação da existência do “justo por natureza”, que se contrapõe ao “justo por lei”. (FASSÒ apud FALCONI, 2008, p. 19-20)

Este é o primeiro relato que temos em nossa literatura sobre o jusnaturalismo clássico. Estudando o pensamento grego através de Jorge Aguedo Filho (2013) é afirmado que: “nota-se que a vontade humana se funde com a vontade divina”. O mesmo autor expõe ainda que: [...] diferentemente do que ocorre na época clássica, em que o direito natural não era considerado superior ao direito positivo, na Idade Média a relação entre as espécies de direito se inverte, e a fundamentação divina do direito natural sustenta a figura do soberano (FILHO, J., 2013) .

Hobbes denuncia o pensamento jusnaturalista medieval e demonstra como era imposto o seu conceito em meio à sociedade: Todo poder legítimo é imediatamente divino no supremo governante, e mediatamente nos que têm autoridade abaixo dele. Assim, ou se reconhece que todo funcionário do Estado tem seu cargo pelo direito de Deus, ou é impossível afirmar que assim o tem qualquer bispo além do próprio Papa. (HOBBES. 2003, p. 185)

Jean-Jacques Rousseau se opõe ao jusnaturalismo medieval quando justifica que todo poder emana do povo, o qual ele denominava em sua obra “soberano”.

mo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública que se forma, desse modo, pela união de todas

[...] a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral,

as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de re-

jamais pode alienar-se e, [...], o soberano, que nada é senão um

pública ou de corpo político [...] Quanto aos associados, recebem

ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. (ROUSSEAU,

eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular,

2011).

cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado. (ROUSSEAU, 2011, p. 39).

Ao analisarmos um pouco mais atentamente, notamos a presença remota de um fundamentalismo predominante já naquela época, sendo estas as justificativas do imperialismo e do direito

Assim também o fez Thomas Hobbes, conforme esclarece Arcanjo (2013): A justificação de Hobbes para o poder absoluto é estritamente racional e friamente utilitária, completamente livre de qualquer tipo

PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016

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ESPECIAL

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA e MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ

de religiosidade e sentimentalismo, negando implicitamente a ori-

Note-se que a expressão jusnaturalismo pode gerar equívocos,

gem divina do poder [...] Hobbes se aproxima de Maquiavel e do seu

tendo em vista seu significado político ou filosófico. Na história da

empirismo radical, ao partir de um método de pensar rigorosamente

filosofia jurídico-política, têm-se ao menos três versões funda-

dedutivo. A humanidade no estado puro ou natural era uma selva. A

mentais: a de uma lei estabelecida pela vontade da divindade e por

humanidade no estado social, constituído por sociedades civis ou polí-

esta revelada aos homens; a de uma lei ‘natural’ em sentido estrito,

ticas distintas, por estados soberanos, não tinha que recear um regres-

fisicamente conatural a todos os seres animados à guisa do instinto

so à selva no relacionamento entre indivíduos, a partir do momento

e a de uma lei ditada pela razão específica, portanto do homem que

em que os benefícios consentidos do poder absoluto, em princípio

a encontra autonomamente dentro de si.” (FASSÒ apud FALCONI,

ilimitado, permitiam ao homem deixar de ser um lobo para os outros

2008, p. 18 – grifo nosso)

homens. Aperfeiçoando a tese de Maquiavel, Hobbes defende que o poder não é um simples fenômeno de força, mas uma força institucionalizada canalizada para o direito (positivo), construindo assim a primeira teoria moderna do Estado. (ARCANJO, 2013)

Despontou com isso uma nova forma de repensar o conceito de jusnaturalismo, mais racional e livre da visão divina, mas que ainda assim o trata como um direito natural do homem, inerente à sociedade. Nisso se centrava o novo conceito denominado jusnaturalismo moderno, conforme esclarece Pistone, ao citar Bobbio:

Bertrand Russel, na obra “A filosofia entre a religião e a ciência”, apesar de lançada já posteriormente à promulgação de nossa Constituição Federal de 1891, que nos ajuda a ter uma melhor compreensão dos motivos que levaram ao descontentamento pela aliança jusnaturalista medieval: Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdição

No que se refere ao contexto específico do pensamento político,

eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália, França, Espanha, Grã-

a atitude jusnaturalista, contra a qual reage a tendência historicista,

-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A princípio,

está na doutrina dos direitos do homem, resultante da versão mo-

fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle sobre

derna, racionalista, do jusnaturalismo e afirmada pelas Revoluções

bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII (fins do século

Americana e, sobretudo, Francesa, onde se acha implícita a convic-

XI), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa

ção de que a forma de Estado liberal constitui um modelo de valor

Ocidental, formou uma única organização, dirigida por Roma, que

absoluto e universal, enquanto fundado nas exigências eternas e,

procurava o poder inteligente e incansavelmente e, em geral, vitorio-

portanto, idênticas, em todo o tempo e lugar, da razão humana.

samente, até depois do ano 1300, em seus conflitos com os gover-

Contra tal pretensão, a tendência historicista apresenta geralmente

nantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não foi apenas

a afirmação do caráter historicamente relativo das formas de orga-

um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da

nização política e social e, portanto, mais globalmente, dos valores

luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade

políticos. (PISTONE apud BOBBIO. 1983, p. 581)

da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior

Adalberto Fernandes Falconi aponta que, para uma melhor compreensão da doutrina jusnaturalista, se faz importante a definição exposta por Guido Fassò: O jusnaturalismo é uma doutrina segundo o qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva, diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade per si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antiética à do ‘positivismo jurídico’, segundo

parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. (RUSSEL, 1977, p. 3)

O jusnaturalismo medieval, portanto, justificou a união entre Igreja e Estado, atribuindo aos “soberanos” monarcas de um Estado Império não só um importante papel político, mas também justificando a sua posição social, como alguém indicado para governar pelo próprio Deus criador. Aponta-nos Bertrand Russel os motivos determinantes para sua descrença ao longo do tempo, entre outros descontentamentos, os abusos cometidos pelo Vaticano, as altas taxas tributárias impostas à Inglaterra e Alemanha:

a qual só há um direito, o estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. (FASSÒ apud FALCONI, 2008, p. 18)

Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela Reforma. A Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se deve a numerosas causas. De um modo

Embora seja clara a definição de jusnaturalismo, a expressão pode acarretar equívocos em razão de sua origem, como afirma Guido Fassò. Em síntese, temos três principais versões, a saber, clássica, medieval, e moderna:

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PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016

geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas


estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência

religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país,

alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as

ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivos de

almas do purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo

crenças, ou opiniões filosóficas, ou religiosas”.

e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e moti-

O art. 2º preconizava a ampla liberdade de culto, enquanto os

vos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma.

arts. 3º e 5º previam a liberdade de organização religiosa sem a in-

(RUSSEL, 1977, p. 5)

tervenção do poder público. Conforme leciona Aldir Guedes Soriano, “a constitucionalização

No Brasil, o modelo colonizador estampado na Constituição Imperial era um modelo ditatorial, não laico, mas que, ao revés, atribuía aos monarcas portugueses poderes divinos e instituía o catolicismo como religião oficial.

do novo regime republicano consolidou, através da Constituição de 1891, a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil um estado laico”. Segundo Fábio Dantas de Oliveira, “a Constituição Federal de 1891 representou um marco no que tange à laicidade do Estado,

CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRAZIL

pois todas as Constituições que lhe sucederam mantiveram a neu-

(25 de Março de 1824)

tralidade inerente a um Estado Laico, ainda que teoricamente” (RA-

Art. 5º A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser

CHEL, 2012. Brasil: a laicidade e a liberdade religiosa .... online).

a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo.

Todavia, nas palavras de Gilberto Freyre: [...] a formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’ do que em termos econômicos, de experiência de cultura

Para percebermos como era procrusta1 a ideia de um Estado não laico, bastaria uma breve leitura dos arts. 402, 403, 404 do Código Penal de 1890, de vigência anterior à promulgação da Constituição de 1891, para logo percebemos como foi danosa aquela legislação para todas as demais culturas em desenvolvimento. Nele se criminalizava a cultura afro-brasileira, pois comprometia o modelo civilizador idealizado pelos colonizadores.

e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora. (FREYRE, 2006. p.34)

Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890)

Posto isso, passemos a um breve estudo acerca da evolução da laicidade em nossa Magna Carta tendo por base a Constituição Imperial de 1824, a qual foi outorgada em nome da “Santíssima Trindade” e trazia a religião católica romana como religião oficial. De acordo com Celso Ribeiro Bastos, havia, no Brasil Império, liberdade de crença sem liberdade de culto.

Capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena – de prisão celular por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96.

[...] na época só se reconhecia como livre o culto católico. Outras

Parágrafo único. É considerada circunstância agravante perten-

religiões deveriam contentar-se em celebrar um culto doméstico, ve-

cer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se

dada qualquer forma exterior de templo. (BASTOS apud SANTOS,

imporá a pena em dôbro.

2006. p. 6)

Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art. 400.

Andrea Russar Rachel (2012), advogada e professora da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG), explora, em síntese, os principais artigos do diploma de 1891 e sua importância para a efetiva separação entre Estado e Igreja, assim como o surgimento do Estado laico brasileiro:

Parágrafo único. Se fôr estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas

Após a proclamação da República, que se deu em 15 de no-

cominadas para tais crimes.

vembro de 1889, Ruy Barbosa redigiu o Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, separando definitivamente o Estado e a Igreja Católica Romana no Brasil. Em seu art. 1º, referido Decreto determinava que “é proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma

Apesar das grandes conquistas desde a Magna Carta de 1891, ainda houve muitas perseguições a terreiros de candomblé e lutas em prol da liberdade, pois como afirmava o nobre jurista Rui Barbosa (apud Soriano, 2002, p. 73), “[...] Não há realmente Liberdade de Consciência sem Liberdade

PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016

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ESPECIAL

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA e MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ

de Culto. [...]”. O professor e antropólogo, Raul Geovanni da Motta Lody (2010), cita Maia e Moreira ao descrever a situação típica de forte repressão aos terreiros ainda no período de 1985, conforme relatos do noticiário da época:

1925, ano em que entra em vigor o Código Sanitário do Estado da Bahia (um amplo aparato governamental que regulamentava desde a construção de prédios até o exercício da medicina), se encerrando em 1939, momento em que analisaremos o único processo-crime encontrado em Salvador, nas primeiras décadas do século XX, classificado

Segundo os autores, houve um quebra-quebra em Maceió, durante o qual a polícia cometeu atos de violência contra casas reli-

textualmente como crime de feitiçaria e uso ilegal da medicina, previsto no art. 157 do Código Penal de 1890 (JESUS, 2011).

giosas da cidade e contra seus dirigentes. Tia Marcelina, africana e fundadora da primeira casa de culto da cidade, na rua Aroeira, foi gravemente ferida na cabeça por um golpe de sabre; objetos litúrgicos do terreiro de Chico Foguinho foram queimados em uma fogueira acesa diante da própria casa. O resultado foi a fuga dos

A seguir, analisaremos o caso real de Nelson José, acusado da prática de feitiçaria nos moldes do Código Penal vigente à época que contempla o período desta pesquisa, ocorrido em Campo Formoso, interior do Estado da Bahia.

babalorixás, que saíram do estado, enquanto outros levaram seus terreiros para locais escondidos. Dizem os autores que os templos só puderam voltar a funcionar abertamente em Maceió na década de 1950, com a mudança de postura da polícia (MAIA; MOREIRA apud LODY, 2010, p. 48).

Essa perseguição não era característica exclusiva de Maceió (AL):

O CASO DE NELSON JOSÉ DO NASCIMENTO – A história que se segue durou mais de dois anos, seu processo ocupou 82 páginas, incluindo fotos dos objetos apreendidos e foi narrada em síntese por Gilson Souza de Jesus, em “Ao som dos Atabaques”. Começamos pelo preenchimento irregular do sumário de culpa, conforme Gilson Souza de Jesus:

Também nas cidades de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outras,

O caso de Nelson José do Nascimento começa no dia três de

durante o Estado Novo, foram registrados abusos de autoridade po-

outubro de 1939, através do preenchimento do sumário de culpa

licial, resultando em invasões de terreiros e apreensão de objetos,

do acusado. Após esse contato inicial, veio a portaria expedida pelo

levados, então, para delegacias e hospitais psiquiátricos, e poste-

delegado da 3ª Circunscrição Policial, A. de Andrade Teixeira. No

riormente utilizados como documentos de marginalidade e loucura,

documento, o delegado solicita a emissão do mandado de busca e

resultantes da “danosa mistura de raças” (LODY, 2010. p. 49).

apreensão dos bens de Nelson que tivessem alguma ligação com o Candomblé.

Como podemos observar, a invasão aos terreiros de candomblé foi brutal nas primeiras décadas do século XX. Mesmo com a Constituição de 1891 garantindo um Estado laico, o racismo institucional se estendia a tudo que tivesse um formato africano ou que sugerisse procedência africana, como a capoeira, o samba e outras manifestações, mas, principalmente, a sua religião ganhando a denominação de macumba, feitiçaria etc. Porém, não somente os negros candomblecistas e capoeiristas sofreram com a imposição de uma religião oficial, os evangélicos também eram discriminados, como afirma Leandro Berguoci:

Depois disso, segue a formulação da queixa pelo promotor público. O texto da promotoria transcreve, com pequenas alterações, o art. 157 do Código Penal de 1890, ainda vigente no ano em que este processo se desenrolava. Não há nesta queixa, nenhuma informação de caráter pessoal em relação ao delito cometido por Nelson. Provavelmente, utilizar o texto oficial da Lei neste momento dos autos, ao invés de descrever o delito de maneira mais detalhada, daria maior possibilidade de êxito na formulação da queixa pelo promotor. No mesmo dia o auto de busca e apreensão é apresentado. (JESUS, 2011)

A descrição imprecisa do material apreendido: Na descrição do material apreendido, nota-se uma livre associa-

Eles foram minoria política e religiosa por décadas. Os evangéli-

ção entre o Candomblé e o Catolicismo, quando orixás como Oba-

cos sofreram um enorme preconceito num país majoritariamente ca-

luaê são ligados ao santo católico São Lázaro, Iansã a Santa Bárbara,

tólico. Vários cemitérios administrados por católicos não permitiam

Oxum a Nossa Senhora das Candeias etc. O que nos parece difícil

que pastores fossem enterrados ali (BEGUOCI, 2015).

acreditar é que o pai-de-santo tenha feito esta associação, inclusive a do orixá Exú com o Diabo, como normalmente

Sem mencionar os julgamentos e a aplicação de penas tendenciosas e inconstitucionais que mais se assemelham ao período das antigas Cruzadas e da Santa Inquisição, Gilson Souza de Jesus nos acrescenta que:

pensam as pessoas que não pertencem ou não possuem uma compreensão mais apurada acerca do Candomblé. Contudo, como já foi abordado, a visão das religiões de matrizes africanas tem sua própria cosmogonia, que não passa pela dualidade Deus X Diabo, como na religião cristã, e já não era mais necessário

[...] as principais leis consolidadas a partir de 1890, com o primeiro Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, passando por

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PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016

este subterfúgio, pois do ponto de vista legal, nenhuma religião seria considerada criminosa. (JESUS, 2011 – grifos nossos)


DIVULGAÇÃO

“Conforme leciona Celso Lafer (2009), “laico significa tanto o que é independente de qualquer confissão religiosa quanto o relativo ao mundo da vida civil”, porém, asseveramos que este sentido laico tem sido interpretado por vezes como subterfúgio para omissão estatal.”

A seguir, temos o interrogatório do réu:

As perguntas foram basicamente as mesmas feitas às outras duas testemunhas e, como não poderia deixar de ser, as respostas

O interrogatório segue e pelo que se pode compreender a partir

variavam muito pouco. As únicas coisas diferentes que tinham no

das respostas dadas por Nelson, ele realmente acreditava estar

depoimento da terceira testemunha são as perguntas sobre as visitas

prestando um serviço de utilidade pública, cuidando do bem-

que Nelson recebia e sua periodicidade. Agrário Bacelar afirma que o

-estar de seus clientes, bem como desempenhando uma ativi-

pai de santo recebia visitas diariamente. Além disso, lhe foi pergun-

dade profissional que lhe renderia lucros complementares ao

tado se o acusado praticava atos de Candomblé ou “magia negra”,

seu emprego de auxiliar de comércio. Demonstra ser ético na

“feitiçaria”, entre outros “sinônimos” atribuídos pela polícia à reli-

realização dos seus trabalhos ao dizer que não fazia mal a pessoa

gião em sua residência e o depoente afirmou que não ouvia bater o

alguma. Entretanto, apesar de suas “boas intenções”, para a Justiça,

Candomblé, mas que ouvia rezas quase todas as noites.

ele havia cometido a infração prevista pelo Código Penal, não só

Esta foi a última testemunha interrogada sobre este caso antes

pelo art. 157, como também pelo art. 158, que condenava o ato de

que o caso seguisse os trâmites para a formalização da culpa do in-

ministrar ou prescrever para meio curativo qualquer substância, fa-

diciado. No relatório assinado pelo delegado A. de Andrade Teixeira

zendo ou exercendo o ofício denominado curandeiro. (JESUS, 2011

no dia 26 de outubro de 1939, consta um resumo do que as três

– grifos nossos)

testemunhas disseram na frente do acusado, que não manifestou nenhum protesto durante todo o processo de interrogatório. Como

Na etapa seguinte, o tendencioso processo de interrogatório das testemunhas:

Nelson do Nascimento estava cooperando com a polícia, ao reconhecer todos os objetos apreendidos como seus, foi desnecessária a realização de uma perícia mais apurada. No relatório, o delegado

Algumas questões chamam a atenção ao analisarmos os interrogatórios realizados, como no caso do primeiro depoimento, onde

ainda sugere mais testemunhas, caso seja útil para reforçar a acusação. (JESUS, 2011 – grifos nossos)

as perguntas feitas ao depoente estão descritas de maneira indireta. Desta forma, não se pode precisar se a associação feita

Por fim, a sentença de Nelson José do Nascimento:

entre o Candomblé e a chamada “magia negra” ou “seita africana vulgarmente denominada candomblé”, foi feita pelo depoente ou

A partir daí, segue-se uma avalanche de ofícios, intimações,

se foi uma pergunta induzida da polícia, como ficaria mais explí-

despachos e outros depoimentos, que percorreriam todo o ano de

cito no depoimento das outras testemunhas.

1940 e adentrariam no ano de 1941, culminando com a expedição

Além disso, o depoente não acrescentou nenhuma informa-

do mandado de prisão para Nelson José do Nascimento. Primeiro

ção que já não tenha sido expressa pelos autos ou confessada

através de uma notificação, em seguida, o mandado de prisão, ‘ex-

pelo réu. E ainda, convém lembrar que em nenhum momento o

pedido para ser cumprido na forma e sob as penas da lei’.

indiciado contestou as informações prestadas.

De forma surpreendente, já que houve colaboração do acusa-

A segunda testemunha a ser interrogada também não apre-

do durante todo o longo e desgastante período em que o processo

senta elementos novos ao que já foi apresentado e o tom do inter-

ocorreu, a polícia não conseguiu efetuar a prisão de Nelson, devido

rogatório segue esta linha, com o intuito de conseguir provas mais

ao fato de o mesmo “estar foragido em lugar ignorado”, conforme

contundentes que atestem o delito do acusado.

a certidão expedida no dia seguinte ao mandado de prisão. Nelson

A terceira testemunha intimada foi José Martins do Rego. Como

desapareceu sem deixar rastros e nem um edital expedido em 19 de

ele não foi localizado, o delegado sugeriu a intimação de Agrário

maio de 1941, notificando-o e exigindo sua reapresentação à Justiça

Ramos Bacelar.

no prazo máximo de 10 dias pareceu intimidá-lo.

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ESPECIAL

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA e MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ

A fuga de Nelson no último momento do processo, quando a sua inocência parecia ser definitivamente impossível de ser comprovada, representa o fim de sua crença em uma justiça terrena, na qual uma vida honesta de trabalho e prestação de servi-

de prescrever, ministrar ou aplicar, habitualmente, qualquer substância, bem como usar gestos, palavras ou qualquer outro meio não inserido na prática médica, para curar ou fazer diagnósticos sem ter habilitação médica” (PATERRA, 2009):

ços à comunidade, sem nenhum objetivo de prejudicar a ninguém, é punida com a prisão, simplesmente por não pertencer à religião he-

DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

gemônica de um Estado que se declarara laico na sua Constituição.

CAPÍTULO III

(JESUS, 2011 – grifos nossos)

DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA

Muitas das acusações são desproporcionais à realidade, como podemos observar, além do que, durante a realização dos interrogatórios não podemos precisar se algumas associações foram feitas pelo depoente ou se foi uma pergunta induzida pela polícia, numa clara demonstração não apenas de um erro judicial, mas de um coronelismo típico da época. Podemos concluir com a história de Nelson que a forma com a qual o delegado de polícia aplicava a lei à época era totalmente contraditória ao princípio da imparcialidade dos julgamentos, já que: “Seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro” (BATISTA, 2007, p. 26) [...] o direito penal era apresentado de forma igualitária, mas sua atuação era seletiva, atingindo pessoas pertencentes a determinados grupos sociais. [...] Trata-se da seletividade penal. E isso nada mais é do que perseguir e exterminar o inimigo eleito pela sociocultura brasileira (BATISTA apud LIMA, B. 2011).

O QUE MUDOU EM NOSSO CÓDIGO PENAL? – Malgrado o curandeirismo ainda ser previsto como crime no vigente Código Penal Brasileiro de 1940, culminando nas penalidades previstas no art. 284 do referido diploma, também era pejorado como se fazia no Código Penal de 1890. Da mesma forma que à época de Nelson José do Nascimento, em constante afronta às garantias de liberdades religiosa e cultural postas em nossa Magna Carta. Todavia, conforme leciona Edison Miguel da Silva Júnior (2011), “no Estado Democrático de Direito brasileiro, não existe nenhum direito absoluto”. Segundo Marcos Paterra:

Curandeirismo Art. 284 – Exercer o curandeirismo: I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III – fazendo diagnósticos: Pena – detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único: Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Contudo, “existem momentos em que há conflitos de direitos e neste caso é necessário um minucioso estudo para descobrir em qual lado a balança deve pender. Mas acima de tudo, não se deve negar o direito a crença, e sim adaptá-lo.” (CATANA, Thiago Oliveira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. 2006). Desta maneira, até pouco tempo esses segmentos da população que foram desprezados e tratados com descrédito despertaram o interesse dos acadêmicos de história em todo o Brasil e, hoje, têm sido temas recorrentes em teses de pós-graduação, conforme é possível observar no trecho de Nikelen Acosta Witter: Em fins da década de 1990, as práticas de cura passaram a figurar como um tema bastante recorrente entre as teses de mestrado e doutorado, defendidas nos programas de pós-graduação em história em todo o Brasil. Alguns destes trabalhos dedicaram-se diretamente aos curadores populares, suas práticas e seu papel junto à população, outros os encontraram em temas convergentes, como o corpo, o nascimento, a morte, etc. Trata-se, certamente, de uma listagem incompleta, mas podemos citar aqui alguns autores que

No Brasil, por volta de 1780, a prática médica da época estava

mais diretamente se debruçaram sobre o assunto: Tânia Pimenta,

a cargo das Santas Casas de Misericórdias, hospitais militares e os

cujas teses de mestrado e doutorado se voltaram para o estudo

denominados físicos, os cirurgiões-barbeiros, barbeiros sangradores,

das modificações do status dos curadores perante a legislação bra-

boticários curandeiros e parteiras. No fim da década de 1820 e início

sileira, na passagem da Colônia para o Império, das resistências

dos anos 1830, houve uma série de mudanças no processo de insti-

dos que caíam na ilegalidade e da percepção do povo quanto às

tucionalização da medicina, como a criação da Sociedade de Medi-

alterações legais; Vera Marques, que investigou os medicamentos

cina do Rio de Janeiro, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

no Brasil Colônia; Betânia Figueiredo, Marcio Soares, Nikelen Wit-

e de vários periódicos especializados Os curandeiros e sangradores

ter, Nauk Maria de Jesus e Regina Xavier, que se voltaram para o

foram desautorizados, excluídos do conjunto de atividades legais.

estudo da diversidade de saberes, práticas e agentes da cura que

As parteiras foram desqualificadas para uma posição subalterna e

grassavam pelo Brasil Imperial. Já Liane Bertucci e Ariosvaldo Diniz

suas atividades foram apropriadas, o que serviu à expansão do mer-

estudaram as práticas de cura nos períodos das epidemias de gripe

cado para os médicos. No início de 1940, mudou-se no Brasil a lei

espanhola, em São Paulo, e de cólera, no Recife, respectivamente.

e passou a ser ilegal, fazer diagnósticos sem ter habilitação médica

(WITTER, 2005)

(PATERRA, 2009, Medicina Espiritual ou Curandeirismo ... online).

Marcos Paterra (2009) explica ainda que, segundo previsto no Código Penal brasileiro, curandeirismo seria “a prática

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Destacamos ainda, neste segmento, a luta e a trajetória da escritora moçambicana Paulina Chiziane (2013), que ao questionar a desvalorização dos curandeiros faz a seguinte indagação


Se Deus é o único que criou a todos de maneira igual, deu a Moisés o poder da magia, também deu aos curandeiros, o mesmo poder. Por

o diálogo e a troca entre práticas e saberes populares com os técnico­científicos, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

que é que hoje, os curandeiros são condenados e Moisés é louvado? A articulação Nacional de Educação Popular em Saúde (Aneps)

Essa autora e o curandeiro Rasta Samuel Pita (2013) discorrem sobre a vida espiritual e os curandeiros em seu livro “Por Quem Vibram os Tambores do Além?”, obra que leva o leitor a refletir sobre as práticas e tradições africanas, por exemplo, o curandeirismo e a ancestralidade. Mais recentemente, Paulina Chiziane voltou a abordar o tema em seu novo livro “Ngoma Yethu: O curandeiro e o novo testamento”, lançado em 2015. O site “Verdade” dedicou algumas linhas para a apresentação do livro, como se vê a seguir: Baseando-se nas peripécias de um passado colonial, Paulina Chiziane considera que quando o continente africano possuía líderes intelectuais e pensadores, o Ocidente explorou-a escravizando-os. Em resultado disso, ainda que a escravatura tenha sido abolida os sus impactos ainda se refletem: “é que a escravidão levou consigo a nossa riqueza e os nossos heróis. Então porque é que dizem África não tem história? Eles deceparam-na a partir da raiz?” Na verdade o que inquieta a romancista é aquilo que ela chama de desvalorização do cidadão africano, muito em particular quando o assunto tem a ver com a espiritualidade, a filosofia e a ciência – cujo domínio, muitas vezes, diz-se que é exclusivo do brancos. Para Paulina, se a acrítica ocidental em relação ao africano só tem a missão de desvalorizá-lo, então, ela deve ser desvalorizada porque foi a partir do continente africano – considerado mísero – que nasceu Moisés – o escolhido de Deus. “Se mesmo Moisés era africano, como dizem que em África não temos santos e consideram as religiões e costumes africanos diabólicos?” (VERDADE, 2013)

Na mesma época, por conta da Lei nº 12.842, ou lei do Ato Médico, aprovada no Congresso Nacional em 2013, as mulheres quilombolas, que faziam xarope e garrafadas foram afetadas, explica a pesquisadora Suely Corrêa (2015) de Oliveira, do Projeto de extensão “Saberes e práticas do cuidado: sujeitos e diálogos” da Universidade de Mato Grosso: Elas continuam a fazer do jeito delas, clandestino, porque só quem pode prescrever, seja fitoterapia, seja homeopatia, acupuntura, é o médico”, explica. “Elas não podem colocar que é

surgiu em detrimento dessa política de proibições na saúde, pelo fato das pessoas não poderem ter autonomia sobre o seu corpo, sua vida, sua saúde. Para a pesquisadora, não adianta a proibição, pois as pessoas continuam a fazer. Então, a Aneps veio para dialogar e juntar essas pessoas que ficaram à margem do processo para se articular e levar o diálogo para dentro do SUS (PRÓSPERO, 2015 – grifos nossos).

Para Heródoto (484-424 a.C.), “se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes.” Ou seja, não obstante nosso Código Penal de 1940 ainda se demonstrar arcaico aos anseios e necessidades culturais do povo, para se alcançar uma autêntica sociedade democrática tanto os esforços do governo como a militância afro-cultural vêm se mostrando cada vez mais relevantes para o reconhecimento e a pesquisa dos saberes africanos, com garantia à manutenção da cultura e a troca entre práticas e saberes populares com os conhecimentos técnico­científicos. Não se trata de favorecer determinada religião, mas sim o reconhecimento dos saberes de seu próprio povo, pois, como foi dito pela Makota Celinha Gonçalves (2015) em sua palestra realizada no Solar do Barão Suaçuí, em Conselheiro Lafaiete (MG), “um povo que já praticava e pratica o curandeirismo e há séculos recorre a medicina alternativa fazendo uso de ervas e raízes, porém, sempre tiveram sua cultura e religião negados”. Isso indica uma necessária reforma em nossa legislação penal, de forma a se adaptar às realidades antes não alcançadas nos diplomas anteriores. A LIBERDADE RELIGIOSA EM NOSSA ATUAL CONSTITUIÇÃO FEDERAL – Como já citado, todas as constituições que sucederam a Constituição Federal de 1891 mantiveram a neutralidade inerente a um Estado laico, ainda que teoricamente, e com a nossa atual Constituição Federal de 1988 não poderia ser diferente. Salvo alguns pontos controversos, como o seu preâmbulo:

remédio. É aí que entra no campo da cultura. Elas não estão autorizadas a fazer xarope, mas podem fazer ‘lambedor’, que é um

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

xarope antigo. Elas não podem fazer pílulas, mas fazem ‘ovinhos’

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia

de plantas. Mudam o nome, mas é a mesma coisa”, revela Suely,

Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado

acrescentando que a orientação sobre a finalidade do produto é

a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,

dada na hora pela pessoa que produz e vende o “remédio”. “Mui-

a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça

tas vezes não vem escrito, porque algumas não sabem escrever

como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

para fazer os rótulos, e precisam de ajuda de netos e filhos (PRÓS-

preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem

PERO, 2015).

interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte [...] (grifos nossos)

Contudo, desde 2013 também se encontra em vigor a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (Pneps), instituída pelo Ministério da Saúde com o intuito de promover

A teoria da insignificância implícita no preâmbulo subjetivamente vai contra os anseios de um Estado laico, abrindo

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ESPECIAL

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brechas a uma interpretação errônea quanto à neutralidade estatal vigente. Inclusive, é citada por alguns ativistas cristãos, em uma interpretação equivocada da Magna Carta. O Brasil é um país predominantemente cristão, historicamente foi esta a crença aqui “imposta” com a chegada do colonizador português, mas jamais poderíamos deixar de reconhecer a importância e a contribuição da cultura dos negros que para cá vieram, cultura esta formadora da atual cultura nacional. Conforme afirmou Marcello Scarrone (2015), “se nos orgulhamos de falar “cantano”, devemos agradecer ao gosto das línguas bantu pelas vogais. Vem da mesma fonte africana o costume de abolir os plurais, como em ‘as criança’ e ‘os menino’”. A religião cristã não foi adotada por livre escolha do povo negro ou indígena. Com o passar do tempo, os usos e costumes do povo brasileiro acabaram por abraçar esta crença de uma forma sincrética, de modo a cultuar seus ancestrais livres da perseguição do Estado e da Igreja Católica.

O motivo da forte influência maçônica na conquista da Liberdade religiosa, se deve ao fato de que a Maçonaria foi fundada sobre o princípio da “Tolerância Religiosa”. Porém, mesmo com o apoio da Maçonaria, e com o som de incontáveis vozes uníssonas clamando pela Liberdade religiosa (e, diga-se de passagem, uma das vozes influentes era a de Rui Barbosa), o Brasil Imperial ignorou a reivindicação, posto que a Religião do Império continuava sendo a Igreja Católica Apostólica Romana. Apesar das perseguições e represálias promovidas pelos líderes católicos, crescia o número de seguidores de diversas religiões no Império, havendo a necessidade de passar a vigorar um Ordenamento Jurídico que desse garantia não somente aos Católicos, mas à todos os religiosos que aqui habitassem, e isto incomodava a Igreja Romana que dependia de sua hegemonia para continuar no Poder, sendo forte aliada do Império brasileiro, tendo adquirido este status por herança da Coroa Portuguesa desde o período colonial. Destarte, só com a entrada em vigor da primeira Constituição da República Federativa do Brasil (1.891), após o fim do Imperialismo e

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LAICIDADE – Conforme leciona Celso Lafer (2009), “laico significa tanto o que é independente de qualquer confissão religiosa quanto o relativo ao mundo da vida civil”, porém, asseveramos que este sentido laico tem sido interpretado por vezes como subterfúgio para omissão estatal. No dizer de Celso Lafer: Uma primeira dimensão da laicidade é de ordem filosófico-metodológica, com suas implicações para a convivência coletiva. Nesta dimensão, o espírito laico, que caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate, e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico

a instituição da primeira. República, é que houve, finalmente, a separação entre Igreja e Estado, garantindo-se liberdade de crença e de culto (elementos indispensáveis à Liberdade Religiosa), tão almejadas pela Sociedade brasileira (SANTOS, 2006)

Porém, com a Constituição de 1934 foi novamente adotado o termo sob a proteção de Deus, mas a Magna Carta também reconhecia a liberdade de culto, desde que não contrariasse a ordem pública e os bons costumes. Mas o que seria considerado “bons costumes” em um país “predominantemente” católico? A resposta a esta pergunta talvez encontremos em nossa sociedade atual, na qual ainda hoje temos juristas que pejoram outras tradições que não a Igreja Católica em sua doutrina, um erro de prejuízos incalculáveis à cultura afro-brasileira:

está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento.

Convém destacar, ademais, que o culto ou cerimônia religiosa

O modo de pensar laico teve o seu desdobramento nas concepções

protegidos pela lei não podem atentar contra a moral e os bons

do Estado. O Estado laico é diferente do Estado teocrático e do Estado

costumes, como magia negra, macumba etc. (BITENCOURT, 2013

confessional. No Estado teocrático, o poder religioso e o poder político

– grifos nossos).

se fundem (exemplo: Irã), enquanto no Estado confessional existem vínculos jurídicos entre o Poder Político e uma Religião (exemplo: Brasil-Império, cuja religião oficial era a católica). O Estado laico, por sua vez, “é o que estabelece a mais completa separação entre a Igreja e o Estado, vedando qualquer tipo de aliança entre ambos. (LAFER, 2009)

UM HISTÓRICO DA LAICIDADE BRASILEIRA – Anotamos, de início, que na Constituição de 1891 foi retirada qualquer menção à proteção de Deus no seu preâmbulo, sendo um modelo legislativo de imparcialidade a seguirmos, um modelo que idealizou nosso conhecido Estado laico. “Não podemos ignorar a participação da Maçonaria na luta pela Liberdade Religiosa”, como lembra Mário Martins dos Santos: Assim como os Maçons foram decisivos para a conquista da Independência do Brasil, a Maçonaria no período Imperial foi de suma importância na reivindicação pela Liberdade Religiosa.

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Posteriormente, com a Constituição de 1937, foi novamente retirada qualquer menção que visasse a favorecer uma ou outra crença, só que retornaram a menção à proteção de Deus no preâmbulo apenas nove anos depois, com a Constituição de 1946. Porém, nesta última a proibição de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabelecerem, subvencionarem ou embaraçarem cultos religiosos ficou proibida. Ao contrário da Constituição anterior, não há previsão expressa de o Estado manter “relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou Igreja”. Foi também com a Constituição de 1946 que as organizações religiosas adquiriram personalidade jurídica dos termos da lei civil e a previsão de imunidade tributária a templos de qualquer culto. A liberdade de culto também foi mantida na Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, com algumas modificações em relação à Constituição de 1946.


encontrada no art. 5º, VI, que dispõe ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Concluímos, então, que a Constituição de 1988, apesar de seguir os moldes da Constituição de 1891, além de ter deixando brechas a interpretações equivocadas de que

DIVULGAÇÃO

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi fundada em 1977, e deve muito a esta liberdade religiosa consagrada na Constituição Federal de 1891 e a sua evolução histórica. Foi com a Constituição de 1946 que os templos de qualquer culto ganharam imunidade tributária, favorecendo a abertura de novas igrejas pentecostais no país. A referida expansão não atinge o candomblé de igual forma, haja vista o medo mantido

“A Constituição de 1988 não consagrou a expressão “liberdade religiosa”. Porém, em passagens de seu texto, a Constituição faz referência a “culto”, “religião” e “crença”. Sendo a primeira referência encontrada no artigo 5º, VI, que dispõe ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. durante séculos de perseguição que sempre o manteve, em sua maioria, na clandestinidade, funcionando sem alvará de registro e, por falta da documentação necessária e o devido acesso à informação, até hoje assim acontece nas periferias das grandes e pequenas cidades, muitas lideranças omitem seus ilês2. Thiago Massao Cortizo Teraoka (2010) ministra que na mesma linha das constituições anteriores, a Constituição de 1988 não consagrou a expressão “liberdade religiosa”. Porém, em passagens de seu texto, a Constituição faz referência a “culto”, “religião” e “crença”. Sendo a primeira referência

o Estado brasileiro ainda tenha a religião católica como religião oficial, sofreu mudanças, seja através de emendas ou novas promulgações, com seu desenvolvimento através dos anos. Obtivemos garantias no tocante a igualdade e a liberdade de culto, porém não é um diploma efetivo, já que no cotidiano de nossa sociedade acompanhamos atos dos mais inconstitucionais já imaginados, em constante afronta não só à democracia como à sociedade brasileira. Um desequilíbrio que se faz não apenas no conflito entre os grupos religiosos em análise, mas da sociedade como um todo, visto que o

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ESPECIAL

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devido respeito à diversidade religiosa é fundamental para a construção de um país verdadeiramente democrático.

Quando as temáticas são institucionais, relacionadas a isenção fiscal, alvará de funcionamentos das Igrejas, doações de terrenos, distribuição de concessão de rádios e TV, a transformação de even-

A ATUAÇÃO DA BANCADA EVANGÉLICA EM AFRONTA À LAICIDADE ESTATAL – Apresentamos uma breve síntese desde o começo do envolvimento da Igreja Evangélica com a política e suas crescentes tentativas de impor uma teocracia em contradição ao nosso sistema democrático de Direito:

tos evangélicos em eventos culturais pra receber financiamento da Lei Rouanet, questões relacionadas à lei do silêncio. Aí eles atuam de forma articulada, como um bloco, convergem em nome desses interesses, como em relação a questões morais. Com algumas diferenças, mas muitas aproximações. Alguns cargos dos gabinetes têm que ficar à disposição da Igreja, que indica quem vai ocupar. É uma

A Igreja pentecostal começou a se envolver na política brasileira na década de 1960 através da Brasil para Cristo, que elegeu um

Igreja pragmática, tem muito mais interesses institucionais do que morais (DIP, apud SURUAGY, 2015).

deputado federal em 1961 e um estadual em 1966. Depois disso, porém, a Igreja só voltaria a eleger candidatos na década de 1980, como explica Paul Freston: “A maior participação vem em 1986, no fim do regime militar, com a Assembleia Constituinte. A Assembleia de Deus é o motor disso inicialmente, e se organiza desde a cúpula para ter um candidato oficial em cada estado, um deputado. Eles se organizam e tentam apresentar esse candidato nas Igrejas, falar pras pessoas votarem nele. É o que dá origem à bancada evangélica, é a primeira vez que se fala nisso. E a grande novidade é que a maioria é pentecostal. (BRACCO, 2015)

Em resposta ao posicionamento da parte da Igreja Evangélica, a jornalista Andrea Dip (2015) questiona “Como as Igrejas evangélicas escolhem seus políticos? Qual o segredo da força da bancada para barrar os avanços sociais e garantir privilégios?”: Homens de terno e mulheres de saia com a Bíblia na mão vão enchendo o auditório. Alguém regula o som do violão e dos microfones. A música que celebra “júbilo ao Senhor” estoura nos alto-falantes, e a audiência canta junto. Em um púlpito no palco, os pastores abrem o culto com uma oração fervorosamente acompanhada pelos fiéis. Uma descrição comum de um culto evangélico não fossem os pastores, deputados, falando de um o púlpito improvisado no Plenário Nereu Ramos da Câmara dos Deputados de um país laico chamado Brasil. E se o (até então) presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), anunciado do púlpito ao entrar no recinto pelos pastores João Campos (PSDB/GO) e Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), não tivesse deixado de lado a agenda oficial para participar da celebração e tirar selfies com pessoas que se amontoavam ao seu redor. (DIP, 2015)

A bancada evangélica vem demonstrando-se cada vez mais sinônimo de corrupção e total desrespeito à Magna Carta, assim como outras normas infraconstitucionais, por exemplo, a ofensa aos princípios da igualdade e da isonomia tributária da Lei nº 101/2000, com a aprovação do aumento de isenção tributária para as igrejas: O benefício pode garantir a anulação de autuações fiscais de Igrejas que extrapolam R$ 300 milhões. Segundo a Folha apurou, foi incorporado por intermédio do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que é evangélico. O artigo foi incluído na MP 668, que tratava originalmente do aumento de impostos sobre produtos importados. Para vigorar, precisa ainda passar pela sanção de Dilma. Esse “jabuti” – nome dado a temas estranhos inseridos em MPs – aumenta a isenção fiscal de profissionais da fé, ao livrar da cobrança de impostos as chamadas “comissões” que líderes religiosos ganham por arrebanhar fieis ou recolher mais dízimos (CRUZ, 2015).

Demonstrando claramente, em seus atos, a intenção de se colocar acima do Estado, e até mesmo ignorando os benefícios que a igreja obteve com a laicidade estatal, conduzem cultos evangélicos dentro da Câmara dos Deputados. A Igreja Evangélica está se colocando acima da lei novamente, e nos moldes do antigo jusnaturalismo medieval. Isso se mostra nítido, visto que a bancada evangélica vem tentando dar às suas igrejas poderes de questionar o Supremo: A bancada religiosa prepara uma nova ofensiva na Câmara para,

Andrea Dip ainda entrevista a professora de psicologia Bruna Suruagy (2015), que vem acompanhando o movimento dos políticos evangélicos e o crescimento da bancada no Congresso:

desta vez, aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que

Ainda há a ideia de que alguns são indicados por Deus porque

(PMDB-RJ), formou uma comissão especial composta em sua esma-

inclui as Igrejas na lista de instituições capazes de propor ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para analisar a proposta, o presidente da Casa, Eduardo Cunha

mobilizam grandes multidões. Funciona assim: A cúpula da Igreja, formada por um conselho de bispos da confiança de Edir Macedo, indica candidatos em um

gadora maioria, por parlamentares a favor da medida. A comissão se reunirá por mais 40 sessões e o objetivo dos evangélicos é aprovar o projeto até o final do ano. (LIMA, 2015)

procedimento absolutamente verticalizado, sem a participação da comunidade. Os critérios para a escolha desses candidatos geralmente têm base em um certo recenseamento que se faz do número de eleitores em cada Igreja ou em cada distrito.

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Kiko Nogueira (2015), lembra sobre Leonel Brizola ter previsto sobre o aparelhamento do Estado pelos evangélicos, com a ascensão ao poder de Eduardo Cunha:


Brizola estava incomodado com a Cehab, comandada por Cunha, dona de um dos maiores orçamentos do governo fluminense. Organizou um abaixo assinado pedindo o afastamento de Eduardo Cunha “devido à má-gestão e também aos seus antecedentes”, de acordo com outra reportagem da Folha de S.Paulo. Seu descontentamento incluía o subsecretário do Gabinete Civil, uma figura chamada Everaldo Dias Ferreira – que viria a se transformar no Pastor Everaldo, aquele que formou com Aécio Neves uma das duplas mais desprezíveis das corridas eleitorais em todos os tempos. Everaldo era ligado à vice-governadora Benedita da Silva, do PT, também evangélica. “Qual a legitimidade de tantos pastores no governo? Quem são esses pastores da Benedita?”, dizia Brizola. “Vivem posição ambígua, se queixam de tudo, começam a fazer denúncias, mas não deixam os cargos que ocupam. Ora, se o caminhão tá ruim, é só pedir para desembarcar.” Cunha deixou o cargo naquele ano, após denúncias de irregularidades em licitações. Os processos abertos no Tribunal de Contas do Estado foram arquivados em 2004 e reabertos em 2012. Brizola enxergou a ocupação evangélica e os monstros que se criavam. O capeta quis que Cunha se tornasse, 15 anos depois, o messias do fundamentalismo religioso no Brasil. (NOGUEIRA, 2015)

mente, constituem alianças inesperadas, realizam lobby, organizam

Para finalizar, Humberto Ramos de Oliveira JR. (2015) discorre quanto ao “domínio evangélico” e “como os fundamentalistas subiram às ‘cabeças’ do Congresso brasileiro.”:

Com o crescimento evangélico, graças à constitucional isenção fiscal e o consequente crescimento indiscriminado de igrejas, sem falar na omissão estatal para com casos diversos envolvendo evangélicos, charlatanismo, estelionato etc., Humberto Ramos de Oliveira Jr. deixa-nos a seguinte indagação: “eles já conseguem se contrapor a relevantes pautas progressistas, provocam polêmicos debates e conseguem exercer significativa influência nos rumos políticos do país, o que se poderá esperar futuramente?”

Em termos de agrupamento segmental, ela se constitui como uma das mais importantes articulações da esfera política institucional. Se fosse um partido, apareceria como a terceira maior força dentro do parlamento. Não bastasse o potencial numérico, hoje se vê que esse grupo também ostenta poderosa habilidade para articular politica-

setores da sociedade em favor de suas pautas. (OLIVEIRA JR., 2015)

A Teologia do Domínio: Decorrente dos meios em que floresceu a Teologia da Prosperidade nos Estados Unidos, os ensinamentos oriundos desse pensamento teológico fomentam o pensamento de que os crentes devem assumir importantes funções na sociedade em geral, especialmente na política, a fim de que possam retomar para Deus todas as dimensões da vida. As razões para essa ofensiva são fundamentadas especialmente na urgência de conter a depravação da sociedade. Assim sendo, natural que os parlamentares ligados à bancada evangélica exerçam sua principal atuação nas pautas ligadas à sexualidade, casamento homoafetivo, direitos reprodutivos, drogas, eutanásia, dentre outros assuntos passíveis de questionamento moral. No Brasil, a Teologia do Domínio não recebeu trato mais elaborado nem sistematização teórica. No geral, muitas das crenças teológicas entre evangélicos neopentecostais carecem de sistematização, sendo transmitidas de modo oral, havendo variações específicas de Igreja para Igreja. (OLIVEIRA JR., 2015)

NOTAS 1 Procrusto representa a intolerância do homem em relação ao seu semelhante. O mito já foi usado como metáfora para criticar tentativas de imposição de um padrão em várias áreas do conhecimento, como na economia, na política, na educação, na história, na metodologia científica, na medicina e na administração. 2 Do Yorubá: “Ilê” significa casa, “Ilê Axé” é o nome dado às casas religiosas de raiz yorubana. REFERÊNCIAS ARCANJO, Lucas de. “Hobbes: A passagem ao abstrado. Do abstrato ao sistemático.” Disponível em: http://www.recantodasletras.com. br/textosjuridicos/4413480 Acesso em: 9 nov. 2015. BASTOS, Celso Ribeiro. In: SANTOS, Mário Martins dos. “Liberdade Religiosa no Brasil e sua Fundamentação Constitucional”. 2006. 10 f. Dissertação (Graduação em Direito) - Direito da Associação Educacional Toledo - Presidente Prudente / SP, 2006. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BATISTA, Nilo. In: LIMA, Bruna Andrino de. “Era só mais um Silva.” Disponível em: http://justificando.com/2015/10/07/era-so-mais-um-silva/ Acesso em: 11 out. 2015 BEGUOCI, Leandro. Extremismo Evangélico, In: Revista Super Interessante, ed. 351, Setembro de 2015. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, v. 3: Dos Crimes contra o Patrimônio, Sentimento Religioso e aos Mortos, São Paulo: Saraiva, 2012. BRACCO, Bruno Amábile. “Evangélicos tratam Congresso como extensão de suas Igrejas” Disponível em: http://www.paulopes.com. br/2015/10/evangelicos-tratam-congresso-como-extensao-de-suas-Igrejas.html#ixzz3pPtf7f7W Acesso em: 15 out. 2015. _______. “Jung e sua contribuição com o Direito: a Sombra”, in: Justificando. Disponível em: http://justificando.com/2015/10/16/jung-e-sua-contribuicao-com-o-direito-a-sombra-/ Acesso em: 16 out. 2015. CATANA, Thiago Oliveira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. “Liberdade religiosa é um direito absoluto que deve ser mantido”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2006-out-21/liberdade_religiosa_mantida_todo_custo Acesso em: 9 nov. 2015.

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ESPECIAL

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA e MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ

REFERÊNCIAS DIP, Andrea. “Os pastores do Congresso”. In: PÚBLUCA - AGÊNCIA DE REPORTAGEM E JORNALISMO INVESTIGATIVO. Disponível em: http://apublica.org/2015/10/os-pastores-do-congresso/ Acesso em: 1 nov. 2015. ________________. “Afinal, o que os evangélicos querem da política?”. In: PÚBLUCA - AGÊNCIA DE REPORTAGEM E JORNALISMO INVESTIGATIVO. Disponível em: http://apublica.org/2015/10/afinal-o-que-os-evangelicos-querem-da-politica/ Acesso em: 1 nov. 2015. DUTRA, Elias. “PODEMOS VIVER SEM NORMAS?” Disponível em: http://blogdoprofessorelias.blogspot.com.br/2015/08/podemos-sem-normas-sao-grandes-as.html Acesso em: 4 nov. 2015. FASSÒ, Guido. In: FALCONI, Adalberto Fernandes. “Os Direitos Humanos e o Debate sobre sua Fundamentação perante os ideais Universalista e Relativista”. 2008. 100 f. Dissertação (Pós-Graduação, apresentado como requisito parcial, para obtenção do título de Mestre em Direito) - Centro de Ciências Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo / RS, 2008. FILHO, Jorge Aguedo De Jesus Peres De Oliveira. “Jusnaturalismo, delineamento sobre a evolução histórica” Disponível em: http:// www.webartigos.com/artigos/jusnaturalismo-delineamento-sobre-a-evolucao-historica/110989/#ixzz3qFCAbu6P Acesso em: 31 out. 2015. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed., São Paulo: Global Editora, 2006. HOBBES, Thomas. O Leviatã (1651), São Paulo: Martins Fontes, 2003. JESUS, Gilson Souza de. Ao som dos Atabaques: Costumes negros e as leis republicanas em Salvador (1890-1939). 2011. 186 f. Dissertação (Pós-Graduação em História Regional e Local) - Departamento de Ciências Humanas (DCH) Campus V, Universidade do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus - BA, 2011. JR, Humberto Ramos de Oliveira. O “domínio” evangélico. Disponível em: http://www.gemrip.com.ar/?p=1671. Acesso em: 1 nov. 2015. JÚNIOR, Edison Miguel da Silva. No Estado Democrático, não existe nenhum direito absoluto. Disponível em: http://www.conjur.com. br/2007-mar-27/estado_democratico_nao_existe_nenhum_direito_absoluto. Acesso em: 9 nov. 2015. LIMA, Luciana. “Bancada evangélica tenta dar às Igrejas poder de questionar Supremo” Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/ politica/2015-07-15/bancada-evangelica-tenta-dar-as-Igrejas-poder-de-questionar-supremo.html. Acesso em: 18 jul. 2015. LODY, Raul. Xangô – o senhor da casa de fogo, Rio de Janeiro: Editora Pallas. 2010. MAIA & MOREIRA. In: Lody, Raul. Xangô – o senhor da casa de fogo, Rio de Janeiro: Editora Pallas. 2010. NOGUEIRA, Kiko. “A profecia de Brizola sobre o aparelhamento do estado pelos evangélicos”, in: Pragmatismo Político. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/06/a-profecia-de-brizola-sobre-o-aparelhamento-do-estado-pelos-evangelicos.html. Acesso em: 20 mai. 2015. PATERRA, Marcos. “Medicina Espiritual ou Curandeirismo?” Disponível em: http://www.redeamigoespirita.com.br/m/blogpost?id=29 20723%3ABlogPost%3A17632. Acesso em: 9 nov. 2015. PISTONE, Sérgio. Historicismo In: BOBBIO, Norberto. et al (Org). “Dicionário de Política.” 11. ed., Brasília: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 1983, p. 581. PRÓSPERO, Valérya. “Projeto da UFMT coloca raizeiros, benzedeiros, curandeiros dentro do SUS”, in: Fapemat Ciência. Disponível em: http://www.revistafapematciencia.org/noticias/noticia.asp?id=822 Acesso em: 5 out. 2015. RACHEL, Andrea Russar. “Brasil: a laicidade e a liberdade religiosa desde a Constituição da República Federativa de 1988”, in: Jus Navigandi – JusBrasil. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/22219/brasil-a-laicidade-e-a-liberdade-religiosa-desde-a-constituicao-da-republica-federativa-de-1988/1. Acesso em: 05 out. 2015. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, São Paulo: Martin Claret, 2011. RUSSEL, Bertrand. “A filosofia entre a religião e a ciência”, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional. 1977. SANTIAGO, Emerson. “Discurso de ódio”, in: InfoEscola. Disponível em: http://www.infoescola.com/direito/discurso-de-odio. Acessado em: 20 out. 2014. SANTOS, Mário Martins dos. “Liberdade Religiosa no Brasil e sua Fundamentação Constitucional”. 2006. 10 f. Dissertação (Graduação em Direito) - Direito da Associação Educacional Toledo - Presidente Prudente / SP, 2006. SCARRONE, Marcello. “A língua portuguesa que falamos é culturalmente negra” Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/ secao/entrevista/yeda-pessoa-de-castro. Acesso em: 11 nov. 2015. SORIANO, Aldir Guedes. “Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional”. São Paulo: J. de Oliveira, 2002. VERDADE. “Por Quem Vibram os Tambores do Além?” Disponível em http://www.verdade.co.mz/cultura/41737-por-quem-vibram-os-tambores-do-alem. Acesso em: 20 out. 2013. WITTER, Nikelen Acosta. “Curar como Arte e Ofício: contribuições para um debate historiográfico sobre saúde, doença e cura” Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n19/v10n19a02. Acesso em: 20 out. 2014.

AGENOR ALEXSANDER CARVALHO COSTA é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete. MAURO DA CUNHA SAVINO FILÓ é Mestre em Direito (UNIPAC/JF) Professor da FDCL. Advogado.

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DESTAQUE

FÁBIO ULHÔA COELHO e VICENTE CÂNDIDO

CÓDIGO COMERCIAL, CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA projeto de Código Comercial é iniciativa do deputado federal Vicente Cândido, que tomou por base o trabalho acadêmico “O Futuro do Direito Comercial”, do professor Fábio Ulhoa Coelho. Em vista dessa singularidade, desde o início ficou claro aos envolvidos que o projeto era, na verdade, um código a ser construído. Optou-se por esse caminho novo como um meio de se ganhar tempo. Se o código é, e deve ser, sempre o resultado de um democrático e transparente processo de construção do consenso, tomar como ponto de partida um texto já apresentado como projeto legislativo só poderia contribuir para um debate mais focado, célere e objetivo. A inovação não foi bem compreendida por todos, por fugir inteiramente do modelo clássico de elaboração de projetos de código. No entanto, passados cinco anos pode-se constatar o acerto da solução original de se construir o consenso em torno do texto de lei, depois de já iniciado regularmente o processo legislativo. Andando em paralelo o material e o formal, ganha-se um tempo valioso, sem açodamento. As linhas mestras do novo Código Comercial são quatro: modernização e racionalização da legislação empresarial; melhora do ambiente de negócios; aumento da segurança jurídica e da previsibilidade das decisões judiciais; e simplificação das exigências burocráticas relativas às sociedades e aos empresários. Em cinco anos, essas linhas foram preservadas, mas os ajustes vieram a partir de eventos promovidos pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) em cada uma das capitas (à exceção de quatro), nos anos de 2012 e 2013, e, inclusive, da realização de um seminário internacional realizado em Brasília. Nesses anos, a Comissão Especial dos deputados, encarregada de examinar o projeto, realizou cerca de duas dezenas de audiências públicas, em Brasília e em todas as regiões do país, colhendo propostas e discutindo as

melhores soluções para o direito empresarial brasileiro. Também teve muita importância para o processo de construção do consenso a constituição –pelo presidente do Senado Federal, Renan Calheiros – da Comissão de Juristas para a elaboração de um anteprojeto de Código Comercial. Sob a presidência do ministro João Otavio de Noronha, atual corregedor da Justiça, a comissão tomou como ponto de partida o projeto da Câmara e as quase 200 emendas feitas até então. Em 2014, a discussão e o aperfeiçoamento do código concentraram-se em trabalhos acadêmicos, eventos em diversas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades. No ano seguinte, assumiu a presidência da Comissão Especial o deputado Laercio de Oliveira. Sob sua liderança, foram apresentados e discutidos os relatórios parciais que, aproveitando os avanços do anteprojeto da Comissão de Juristas do Senado, acrescentaram-lhe melhorias resultantes das discussões ocorridas dentro e fora do Parlamento. No início de 2016, o deputado Paes Landim, relator geral, apresentou o seu substitutivo, que tem sido objeto de discussão e aprimoramento. Documento de grande qualidade técnica, consolidou todo o debate a partir de uma orientação sua, inteiramente compatível com as quatro linhas básicas do projeto: um código para o mercado, que ampare a empresa em benefício da economia brasileira. Deram suas contribuições a Confederação Nacional da Indústria (CNI), as federações de indústria de vários Estados, associações empresariais, a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e tantos quantos tiveram interesse em participar, desde que preservado o espírito do projeto. Claro que ainda há opositores. E isso também é mostra do caráter democrático do processo em desenvolvimento. Afinal, a construção do consenso, nas democracias, não visa suprimir ou sufocar a resistência ou a oposição. Visa identificar a solução que atenda aos interesses gerais da sociedade.

FABIO ULHOA COELHO é professor titular de direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e presidente da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para o Código Comercial. VICENTE CÂNDIDO é deputado federal (PT-SP) e vice-líder da bancada do PT na Câmara.

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DIVULGAÇÃO

ENFOQUE RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

DROGAS: POR QUE NÃO LEGALIZAR? “O proibicionismo só atrai ainda mais as pessoas (principalmente as mais jovens) para o consumo que, por sua vez, sendo ilegal, leva os usuários a uma situação de marginalização e de estigmatização, inserindo-as no sistema penitenciário que, como é notório, longe de ressocializar, criminaliza e violenta ainda mais. É um verdadeiro círculo vicioso. A questão das drogas não pode ser resolvida pelo sistema de Justiça Criminal: Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário. Outros atores devem ser chamados: assistentes sociais, pedagogos, médicos, psicólogos, família, igrejas, escolas, etc. A legalização teria este outro efeito positivo: a descarcerização.”

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este pequeno e despretensioso trabalho não tratarei da questão relativa à descriminalização das drogas, matéria, inclusive, já judicializada por meio do Recurso Extraordinário nº 635659, pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal. Procuro agora um caminho mais além, um avanço, ao menos para que o debate fuja um pouco do lugar-comum, ainda mais que, ao que parece, a posição da Suprema Corte, ainda que contramajoritariamente, será pela descriminalização do porte da maconha para consumo próprio (o que, convenhamos, é muito pouco!). Creio ser preciso levar o debate adiante, no sentido da legalização das drogas, de toda e qualquer droga, e não somente do porte e do consumo, mas da produção e do comércio. Algumas razões levaram-me, após longa reflexão e alguns erros de avaliação, a concluir por essa opção e pela insuficiência da mera descriminalização. Sinteticamente, procurarei expor o que penso a respeito. Em primeiro lugar, parto da premissa de que a partir do instante em que a produção e o comércio de drogas passem a ser regulamentados, controlados e fiscalizados pelo Estado, a tendência será a eliminação gradativa do mercado ilegal do tráfico (seja a produção, seja o comércio). Transferindo-se este rendoso mercado de bilhões de dólares para o Estado e retirando-o das mãos do crime organizado, ficará este órfão, forçando-o a deixar este tipo de ilícito, extremamente violento. O Estado passaria, então, a regular o mercado, controlando as vendas, a produção, a propaganda, os locais de consumo, etc. Com a eliminação, ainda que a longo prazo, do tráfico ilícito haveria induvidosamente uma diminuição vertiginosa da prática de outros delitos conexos, pois muitos usuários ou dependentes (é preciso fazer esta distinção) furtam, roubam e até matam para conseguirem a droga ilícita, vendida a preços mais caros no mercado clandestino. Ademais, sendo enorme a procura por drogas ilícitas e o mercado sem nenhuma regulação estatal, a tendência é que o valor da droga (nem sempre de boa qualidade) seja alto, o que leva o consumidor a praticar crimes para conseguir dinheiro, a fim de sustentar o seu vício (no caso dos dependentes químicos). É possível que a regulamentação do comércio, além de garantir produtos sem impurezas e, portanto, menos nocivos à saúde, estabelecesse preços mais baixos para as drogas em geral. É o que ocorre, por exemplo, com o cigarro (tabaco) e o álcool, cujos usuários não precisam recorrer ao furto ou ao roubo para os consumirem. Ao assumir esta responsabilidade, o Estado passaria, consequentemente, a se comprometer em prestar todos os esclarecimentos à população acerca dos efeitos do uso de drogas, como hoje é feito com o cigarro e o álcool. Ao contrário, com a atual política proibicionista, dificulta-se enormemente que adolescentes e jovens tenham acesso a informações corretas

e científicas sobre o assunto (e não se confundam com mitos e tabus). Ignorantes, o risco para estas pessoas é muito maior. O sofrimento dos amigos e da família, devastador. Nesta questão, a informação séria (sem moralismo e sem infantilismo) e a boa educação são fundamentais. O respeitado neurocientista da Universidade Columbia, Carl Hart, crítico veemente da política antidrogas de seu País (EUA), adverte que “nossas políticas para drogas baseiam-se, em grande parte, em ficção e desconhecimento. A farmacologia – ou, em outras palavras, os reais efeitos das drogas – já não desempenha papel tão relevante quando se estabelecem essas políticas.”1 Também não se pode negar, pelo menos na minha visão, que o proibicionismo leva à marginalização e à estigmatização do usuário ou dependente, dificultando (e até impedindo) que o sistema público de saúde chegue até ele, facilitando a proliferação de doenças, especialmente entre os usuários de drogas injetáveis. Aqui, muito mais eficaz, é uma política realmente séria de redução de danos. A propósito, [...] los llamados Programas de Reducción de Riesgos son, y han sido, el marco de los diversos planteamientos y programas de atuación que en estas últimas décadas han pretendido dar una respuesta a las diferentes problemáticas asociables a las formas de uso de ciertas drogas, a las patologías concomitantes y a las conductas de riesgo. La reducción de daños se há convertido en la alternativa a los enfoques basados en la abstinencia y centrados en un modelo punitivo, sea por el paternalismo médico sea por la aplicación de la ley.2

É preciso também refletir exatamente a quem interessa efetivamente a proibição das drogas. Como disse anteriormente, o mercado de drogas ilegais envolve bilhões e bilhões de dólares por ano. Será que esta política de combate às drogas não serve para que alguns países continuem a estabelecer uma relação de domínio absoluto sobre outros Estados, especialmente aqueles periféricos, produtores da droga? Parece-me que, com a legalização, o dinheiro que hoje vai para estes países (que, por exemplo, vendem armas e tecnologia bélica e de inteligência a propósito de combater o narcotráfico) ficaria naquele próprio país, a partir da cobrança de impostos, por exemplo. A atual política criminal de drogas, liderada estrategicamente pelos Estados Unidos, comprova o seu próprio fracasso, com a superpopulação carcerária e um processo crescente de criminalização da pobreza. Aquele país, sem dúvidas, foi o “generador y promotor del movimiento antidroga y del discurso respectivo, y porque se há colocado siempre a la vanguardia de ´la lucha contra los demonios del tráfico internacional de drogas`”3 Um outro aspecto relevante sobre o tema é o jurídico. Definitivamente, quem consome drogas não afeta a saúde de outrem, mas a sua própria (quando afeta ...). Ora, em um Estado Democrático de Direito não é possível punir uma

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ENFOQUE RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA conduta que não atinja terceiros, razão pela qual, por exemplo, não se pune a autolesão ou a tentativa de suicídio, estando tais condutas inseridas dentro da esfera de privacidade do sujeito, sendo ilegítima a intervenção do Direito (seja para criminalizar, seja para tornar ilegal a produção, o consumo e o comércio das drogas). Nós que atuamos no Sistema Jurídico precisamos enxergar para além do Direito. O homem, ao longo da vida, depara-se com graves questões existenciais e adversidades próprias da existência humana, levando-o a tentar suprir a sua incapacidade de enfrentar tais questões com o uso de drogas, que um dos meios para se chegar à felicidade plena, sem dúvidas. Ora, como pode o Estado punir esta busca, ainda que possa ser uma procura vã? É preciso que se respeite a opção individual e as escolhas de cada um, desde que tais opções e escolhas não venham a atingir outrem. Como escreveu Freud: [...] existem muitos caminhos que podem levar à felicidade, tal como é acessível ao ser humano, mas nenhum que a ela conduza seguramente. Um deles é a droga: mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio

Seca), o aumento da criminalidade urbana foi assustador, especialmente com o surgimento das grandes organizações criminosas. É preciso ficarmos atentos para os chamados “empresarios de la moral”, uma espécie de “mediador entre los sentimientos públicos y la creación de la ley”, e, principalmente, para os “empresarios de la represión, ejemplificados en los cuerpos de seguridad que se ocupan de implementar la política criminal.”5 O proibicionismo só atrai ainda mais as pessoas (principalmente as mais jovens) para o consumo que, por sua vez, sendo ilegal, leva os usuários a uma situação de marginalização e de estigmatização, inserindo-as no sistema penitenciário que, como é notório, longe de ressocializar, criminaliza e violenta ainda mais. É um verdadeiro círculo vicioso. A questão das drogas não pode ser resolvida pelo sistema de Justiça Criminal: Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário. Outros atores devem ser chamados: assistentes sociais, pedagogos, médicos, psicólogos, família, igrejas, escolas, etc. A legalização teria este outro efeito positivo: a descarcerização. Acho muito pertinente esta consideração de Maria Lúcia Karam, ao afirmar que:

organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida em que o sentimos, e nós o sentimos em virtude de certos

Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil

arranjos de nosso organismo. O método mais cru, mas também mais

e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um

eficaz de exercer tal influência é o químico, a intoxicação. Não creio

menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente

que alguém penetre inteiramente no seu mecanismo, mas é fato que

induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos fa-

há substâncias de fora do corpo que, uma vez presentes no sangue

miliares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como,

e nos tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer, e

certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropria-

também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade,

ção do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosa-

que nos sentimos incapazes de acolher impulsos desprazerosos. Os

mente salvadora intervenção do sistema penal.6

dois efeitos não só acontecem ao mesmo tempo, como parecem intimamente ligados.4

Aqui, uma pergunta: por que não se proíbe o uso de bebida alcoólica ou do tabaco, drogas supostamente danosas para a saúde? Aliás, quando os Estados Unidos proibiram o consumo do álcool (período conhecido como o da Lei

Para concluir, pergunto: a proibição tem surtido algum efeito positivo, sob algum aspecto? E tem gerado efeitos negativos? Vamos, então, refletir sobre tais consequências e avaliar se não é chegada a hora de procurarmos uma política alternativa, uma terceira via, ao menos mais democrática, mais racional, mais humana e mais eficaz.

ARQUIVO PESSOAL

NOTAS 1 HART, Carl, Um preço muito alto, Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 310. 2 MARKEZ, Iñaki, PÓO, Mónica e ETXEGOIEN, Rebeca. “Nuevos tiempos, nuevas políticas, nuevos modelos de intervención: disminución de riesgos”, capítulo do livro Drogas: cambios sociales y legales ante el tercer milenio, Madrid: Dykinson, 2000, p. 273. 3 OLMO, Rosa del. “Las drogas e sus discursos”, Direito Criminal, v. 5, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 121. 4 FREUD, Sigmund. Obras Completas, v. 18, O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise e Outros Textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 32 - 42. 5 OLMO, Rosa del, “Las drogas e sus discursos”, Direito Criminal, v. 05, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 121. 6 Maria Lúcia Karam, De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 67.

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RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

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VEÍCULOS ELÉTRICOS: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA DE SUSTENTABILIDADE PARA O TRÂNSITO VIÁRIO TERRESTRE rata este trabalho dos aspectos interdisciplinares que apontam para a necessidade urgente de dedicação de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia no setor de transporte viário terrestre, especialmente com relação aos veículos elétricos, de modo a satisfazer necessidades de redução de danos ambientais que estão em consonância com a ordem jurídica constitucional interna e internacional. Inobstante algumas dissidências (LOMBORG, 2002, passim), emerge no mundo científico e acadêmico a percepção de que os limitados recursos ambientais terrestres sofrem uma degradação intensa e rumam para o esgotamento catastrófico, tendo em vista a exploração incontida oriunda do modelo econômico que se foca no chamado desenvolvimento ou crescimento, sem a devida preocupação com a sustentabilidade em longo prazo. Dentre as várias vertentes que estão a demonstrar essa degradação ambiental e suas consequências para a vida humana e demais formas de vida do planeta, destaca-se o problema das poluições atmosférica e sonora provocadas pelos veículos movidos a propulsão com o uso de combustíveis fósseis, com grande prevalência dos derivados do petróleo. A questão ambiental, em meio a tantas outras no mundo contemporâneo, é certamente uma das que mais torna evidente a inarredável ligação entre o “local e global”. Não é possível tratar dos problemas ambientais deixando à parte a imprescindibilidade de inserção das soluções e decisões locais num contexto muito mais amplo. Trata-se, realmente, de um “desafio intelectual”, já que “a sustentabilidade do desenvolvimento nacional é um problema de enfrentamento do paradoxo global/local que anima o mundo contemporâneo” (MORIN; TERENA, 2001, p. 10). Nesse quadro, o Brasil não tem a opção do isolamento na formulação de escolhas políticas e tecnológicas. Por isso, precisa, urgentemente, mobilizar-se para a devida

adequação aos novos paradigmas alternativos, especialmente com relação aos recursos energéticos em matéria de trânsito viário terrestre. Daí a importância do estudo a ser empreendido neste trabalho, acerca da pesquisa e implemento dos veículos elétricos como uma das maiores opções para a redução dos danos ambientais, especialmente no que tange aos seus aspectos atmosféricos e sonoros. Sob o prisma jurídico, mister se faz uma inicial abordagem sobre o meio ambiente em sua condição de bem jurídico constitucional na ordem jurídica brasileira, aliás, em consonância com diversas convenções internacionais de que o Brasil é signatário. É necessária também uma apresentação do conceito de “desenvolvimento sustentável” de forma crítica, demonstrando que uma proposta séria de alteração paradigmática eficaz somente é viável com inovações radicais, capazes de afastar modelos de exploração que já se demonstraram destrutivos. Finalmente, será exposto um estudo sobre a interação entre o desenvolvimento e a utilização de veículos elétricos, além das benesses ao meio ambiente equilibrado. Neste ponto, serão apontadas algumas normas e regulamentos, bem como necessários incentivos para a adoção desse modelo tecnológico inovador. Em arremate, serão expostas as principais ideias desenvolvidas ao longo do presente trabalho e as conclusões obtidas com o estudo. O MEIO AMBIENTE COMO BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL E CONVENCIONAL – Em seu Título VIII – Da ordem Social, a Constituição Brasileira de 1988 trata, no Capítulo VI, do meio ambiente, erigindo-o, sem qualquer sombra de dúvida, a um importante bem jurídico constitucional que se perfaz como direito difuso de todo cidadão brasileiro, inclusive transcendendo o presente e atingindo as futuras gerações (veja, em especial, o artigo 225, CF).

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A importância dada ao “meio ambiente” como bem jurídico pela Constituição Federal de 1988 se reflete inclusive na disponibilização da tutela de “ultima ratio” para sua proteção, qual seja, a tutela penal. Isso é também reflexo de discussões internacionais acerca do tema, sendo de se lembrar que no XII Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Varsóvia, em 1975, aprovou-se resolução no sentido de tratar os delitos contra o meio ambiente como crimes contra a humanidade. Nesse caminho segue a Constituição Brasileira, sujeitando os infratores ambientais a punições não somente civis e administrativas, mas também erigindo um mandado constitucional de criminalização, inclusive das condutas referidas às pessoas jurídicas (inteligência do artigo 225, § 3º, CF, materializado pelo artigo 3º da Lei nº 9.605/1998), segundo a lição de Luiz Flávio Gomes e Sílvio Maciel (2015, p. 2). Releva salientar que o meio ambiente não é apresentado na ordem constitucional pátria como um bem jurídico de valor intrínseco, mas sob um prisma instrumental, visando à satisfação do bem-estar e da preservação da humanidade graças à promoção de seu equilíbrio. Há quem disso discorde, apontando para um paradigma “biocêntrico” em contraposição a um modelo “antropocêntrico – patrimonialista”. Neste sentido, se manifesta José Robson Silva (2002, p. 7):

do meio ambiente de forma específica e global. Nelas sequer uma vez foi empregada a expressão ‘meio ambiente’, a revelar total despreocupação com o próprio espaço em que vivemos”.

Na verdade, a Constituição brasileira está em consonância com as normas do Direito Internacional atinentes à matéria. Assim se manifesta a Declaração sobre o Ambiente Humano da Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, Suécia, em junho de 1972: O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade eao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem – estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.

Não destoa a interpretação dada pelo STF a respeito do tema, ao asseverar que o meio ambiente equilibrado é [...] prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social (STF, Pleno, MS n. 22164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17.11. 1995,

A Constituição Federal de 1988 e outras normas ambientais as-

p. 39.206).

simila o paradigma biocêntrico no qual plantas e animais possuem direitos. Direitos que se articulam não apenas em relação aos humanos, mas fundamentalmente em consideração ao valor em si que estes seres possuem.

O que se constata nesse pensamento é uma suposta absorção pela ordem constitucional brasileira de uma orientação típica daquilo que se tem denominado “ecologia profunda”, corrente segundo a qual as naturezas humana e não humana são dotadas de valor intrínseco e não relativo ou instrumental.1 Porém, a literalidade da norma constitucional brasileira apresenta o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um “direito”, um “bem de uso comum do povo”. A teleologia da norma se expressa cristalinamente como sendo a “sadia qualidade de vida” (obviamente humana), de modo que a preservação do meio ambiente se refere às “presentes e futuras gerações” humanas (inteligência do artigo 225, “caput”, CF). Seria realmente um salto um tanto quanto inusitado no histórico das Constituições do Brasil a eventual passagem de um completo descaso e omissão para a adoção do biocentrismo ou de uma filosofia marcada pela “Ecologia Profunda”. Como bem descreve Milaré (1991, p.3), o tratamento dado à questão ambiental pela Constituição Federal de 1988 é um: [...] marco histórico de inegável valor, dado que as Constituições que precederam a de 1988 jamais se preocuparam com a proteção

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A teleologia ínsita ao bem jurídico “meio ambiente” é captada com agudeza de espírito por José Afonso da Silva (2000, p. 822), o qual assinala que sua “preservação, recuperação e revitalização” se tornam um imperativo para o Poder Público e inclusive para os indivíduos (pessoas físicas e jurídicas) com o explícito fim de “assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento”. Mais amplamente, para assegurar o seu “direito à vida” (do homem). Esse direito à vida é “matriz” e pressuposto de todos os demais “direitos fundamentais do homem”, razão pela qual “deve orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente”. Não por outro motivo “a tutela da qualidade do meio ambiente” é “instrumental” (grifo nosso) pois “através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana” (grifos no original). A definição legal de “meio ambiente” pode ser encontrada no artigo 3º, I, da Lei nº 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), nos seguintes termos: Art. 3º. Para os fins previsto nesta Lei entende-se por: I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

Com acerto considera Fiorillo (2004, p. 19-20) que essa definição legal foi “recepcionada” pela Constituição Federal


DIVULGAÇÃO

“Parece que os primeiros passos vão sendo dados, mas ainda há um longo caminho a percorrer com destaque para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica pública e privada sobre o tema dos veículos elétricos, bem como o estabelecimento de cooperação tecnológica internacional. Somente por esse caminho é possível que o Brasil, ainda que com certo atraso, venha a se inserir no contexto inovador dessa alternativa energética que tende a ganhar terreno e desbancar a hegemonia do petróleo e de outras fontes poluentes.”

de 1988, tendo em vista se tratar de norma abrangente e totalmente adaptável ao sistema de dupla tutela adotado pela Lei Maior, qual seja, a proteção primária do “meio ambiente”, tendo por escopo a tutela da vida humana digna e saudável. Dessa maneira, procede a conclusão de Rui Carvalho Piva (2000, p. 152-153) quanto a ser o “bem ambiental” um “valor difuso e imaterial, que serve de objeto mediato a relações jurídicas de natureza ambiental”. A admissão de sua imaterialidade conduz necessariamente à sua distinção do conceito de “meio ambiente” e do conceito de “recursos ambientais”. O bem jurídico tutelado pela Constituição não se reifica em matéria como o “meio ambiente” ou os “recursos naturais ambientais”, mas se constitui em um “direito à qualidade do meio ambiente como bem ambiental”. Novamente resta claro que o “meio ambiente” e os seus “recursos” em si são instrumentais, visam proporcionar a digna qualidade de vida ao ser humano.

Nesse passo, conforme afirma Paulo de Bessa Antunes (2002, p. 181), o dano ambiental se verificará sempre que alguma conduta cause “alterações adversas no ambiente”, de forma a prejudicar consideravelmente a qualidade de vida humana. A poluição é, indubitavelmente, em certos graus consideráveis, provocadora de “impacto ambiental” e degradadora da qualidade do meio ambiente, ocasionando alterações adversas de suas características, conforme aduz Maria Cuervo Silva Vaz Cerquinho (2011, p. 295). Isso torna impossível ignorar as urgentes necessidades de pesquisa e implantação de meios alternativos para o transporte e o trânsito viário terrestre de veículos automotores, que são responsáveis por grande parcela da poluição sonora e atmosférica degradante do meio ambiente em geral e, especialmente, do urbano. É nesse contexto que os veículos elétricos exsurgem como uma opção viável para minimizar os danos ambientais, em plena consonância com a vontade constituinte.

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Ademais, o Brasil deve se adequar às normas internacionais que regulam a matéria ambiental, entre as quais se destaca a “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” com seus vários princípios. Em íntima relação com as alternativas energéticas limpas, tais como a adoção dos veículos e motores elétricos, pode-se mencionar os seguintes princípios:

talmente seguros relativos à mudança do clima, em particular para os países em desenvolvimento, incluindo a formulação de políticas e programas para a transferência efetiva de tecnologias ambientalmente seguras que sejam de propriedade pública ou de domínio público e a criação, no setor privado, de um ambiente propício para promover e melhorar a transferência de tecnologias ambientalmente seguras e o acesso a elas.

Princípio 9 – Os Estados devem cooperar no fortalecimento da capacitação endógena para o desenvolvimento sustentável, mediante o aprimoramento da compreensão científica por meio do intercâmbio de conhecimentos científicos e tecnológicos, e mediante a intensificação do desenvolvimento, da adaptação, da difusão e da transferência de tecnologias, incluindo as tecnologias novas e inovadoras. Princípio 21 – A criatividade, os ideais e a coragem dos jovens do mundo devem ser mobilizados para criar uma parceria global com vistas a alcançar o desenvolvimento sustentável e assegurar um futuro melhor para todos.

No mesmo diapasão, são redigidos diversos dispositivos da “Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre Mudança do Clima”, apontando claramente para a necessidade de fomento e de identificação de novas tecnologias e conhecimentos técnicos inovadores, eficientes e mais avançados, de modo a reduzir a emissão de gases provocadores do “efeito estufa”, inclusive criando mecanismos aptos à promoção e à transferência desburocratizada dessas tecnologias. Não destoa o artigo 2º, IV, do “Protocolo de Quioto” que determina: A pesquisa, a promoção, o desenvolvimento e o aumento do uso

Não resta dúvida de que, após o reconhecimento dos chamados direitos humanos de primeira geração (direitos e garantias individuais) e de segunda geração (direitos sociais), emergem os direitos de terceira geração, em meio aos quais assume especial relevo a reivindicação dos “movimentos ecológicos” pelo “direito de viver num ambiente não poluído”.2 Importa salientar que Canotilho (2003, p. 386-387), ao referir-se ao “direito a um ambiente saudável” dentre aqueles de “terceira geração”, recorda o escólio de E. Riedel a chamar a atenção para o fato de que essa classificação de direitos em gerações sobrepostas é imprópria, propondo a referência a três ou mesmo quatro “dimensões” e não “gerações” de direitos humanos. É perceptível que os desideratos de obter e de manter um meio ambiente de qualidade, com o fim da promoção de uma vida digna para as presentes e futuras gerações, constitui um bem jurídico com assentos constitucional e convencional. É fato também que a busca de alternativas energéticas limpas, inclusive para o trânsito e transporte viário terrestre, de que é exemplo a opção existente dos veículos e motores elétricos, se erige em um dos meios mais adequados para a materialização desse programa constitucional e convencional, de modo a merecer a devida atenção nos âmbitos público e privado.

de formas novas e renováveis de energia, de tecnologias de sequestro de dióxido de carbono e de tecnologias ambientalmente seguras, que sejam avançadas e inovadoras.

O “Protocolo de Quioto” ainda recomenda a criação de incentivos fiscais, isenções tributárias e tarifárias, bem como a criação de subsídios a fim de se obter os resultados de diminuição de emissão de gases ocasionadores do “efeito estufa” (artigo 2º, V). Observar-se-á, no decorrer deste trabalho, o quanto esses incentivos são importantes para o desenvolvimento de pesquisa e da implantação de uma gradual mudança, que permita a hegemonia dos veículos elétricos no trânsito viário terrestre com considerável redução das poluições atmosférica e sonora, ocasionadas por essa atividade humana. E novamente, no artigo 10, alínea “c”, o “Protocolo de Quioto” também estabelece a cooperação e promoção do uso de energias limpas: Cooperar na promoção de modalidades efetivas para o desenvolvimento, a aplicação e a difusão, e tomar todas as medidas possíveis para promover, facilitar e financiar, conforme o caso, a transferência ou o acesso a tecnologias, know- how, práticas e processos ambien-

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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: NOVO PARADIGMA OU CORTINA DE FUMAÇA? – Em diversos momentos, seja na redação deste trabalho, seja na referência a outros autores ou a textos legislativos internos e internacionais, foi mencionada a expressão “desenvolvimento sustentável” como algo almejável. É preciso, contudo, analisar criticamente essa expressão e formular uma proposta realista para um sentido capaz de dar-lhe concreção e superar o mero jogo de palavras. Inicia-se, então, com uma indagação: É realmente sustentável a tese de um desenvolvimento sustentável? Não poderia ser diferente esse ponto de partida, pois o que se pretende é suscitar o debate, possibilitando uma revisão crítica de certos conceitos que se tornaram praticamente indiscutíveis, sendo repetidos sem maiores meditações acerca de seu real alcance e conteúdo. Responder à questão sob o prisma técnico seria realmente missão hercúlea, implicando a necessidade do conhecimento das mais diversas áreas da cultura e da ciência. Para esse objetivo, nem o estreito espaço reservado a este breve item, e muito menos o rol de conhecimentos (bastante limitado) dos autores seriam suficientes.


Ainda que se pretendesse apresentar uma resposta mais geral, versando somente sobre a viabilidade da apresentação de um projeto amplo de desenvolvimento, baseado no conceito de sustentabilidade, parece que tal empreitada não seria tão simples e, mais importante que isso, precisaria passar por uma prévia avaliação da validade ou legitimidade, sob o ponto de vista ecológico, da ideia de “desenvolvimento sustentável”. Antes de pensar em como aplicar a ideia em discussão nas diversas áreas da atividade humana, empreendendo os necessários estudos técnicos especializados, é imprescindível questionar se a concepção de um chamado “desenvolvimento sustentável” – expressão tão corrente nestes dias – corresponde realmente a uma nova alternativa, a uma verdadeira e profunda mudança paradigmática, que vá reverter o quadro de crise ecológica; ou se é apenas mais uma expressão vazia que só maquia, troca nomes, mas corresponde à continuidade de um modelo antiecológico. Pretende-se, portanto, simplesmente lançar a questão, propondo o debate mediante a necessária revisão crítica do tema, a fim de que não prolifere a repetição automática de um jargão, sem a imprescindível reflexão de seu significado e implicações. Afinal, embora seja ecologicamente correta a luta em defesa das aves em extinção, nem por isso devem os ecologistas permitir serem transformados em papagaios que repetem e não refletem.

o destino da própria humanidade está ameaçado em virtude dessa prática irresponsável. Inobstante, verifica-se, sem muita dificuldade, que o conceito e o sentido dado ao chamado “desenvolvimento sustentável” não alteram o paradigma antropocêntrico e utilitário que tem marcado tradicionalmente a relação entre a humanidade e a natureza. Esta continua sendo enfocada sob um ponto de vista meramente instrumental, servindo sempre e somente para a satisfação das necessidades e dos interesses humanos. Sem pretender levar a reflexão somente para o campo dos significados das palavras, mas considerando também relevante esse aspecto, é interessante notar que a própria insistência no termo “desenvolvimento” já indica uma tendência à perpetuação do modelo antiecológico dualista que promove uma ruptura entre o homem e o restante da natureza. Como alerta Carlos Walter Porto Gonçalves (2002, p. 259), pagamos um preço por: não analisar o significado do que seja desenvolvimento que, antes de qualquer outra coisa, é des (+) envolver, isto é, quebrar o envolvimento dos homens e mulheres entre si e com a terra, com a água, com as plantas, com os animais, com o sol, com a lua (...). Assim, des (+) envolver é separar aqueles homens e aquelas mulheres da natureza; é torná-los livres dela. A natureza, assim, também separada desses homens e mulheres, deve estar livre para ser transacionada e apropriada por alguém que, como é da lógica desse processo, não

MUDANÇA OU CONTINUÍSMO? – É um lugar comum nos discursos sobre o enfrentamento da crise ecológica a alusão à emergência da adoção de um modelo inovador de “desenvolvimento sustentável”. O uso dessa terminologia teve sua raiz na Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo. Daí em diante o termo tem sido repetido continuamente, sendo fato que na ECO-92 foi empregado em “onze de seus vinte e sete princípios”, segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo (Op. cit., p. 24). Em resumo, ainda segundo referido autor, a ideia do “desenvolvimento sustentável” consiste no reconhecimento de que os “recursos naturais” não são inesgotáveis, de modo que as atividades econômicas e industriais não podem se desenvolver ignorando ou desprezando esse importante dado. De acordo com Fiorillo (Op. cit., p. 25): [...] o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição.

Não deixa de ser um progresso a tomada de consciência, embora tardia, quanto à necessidade de preservação ambiental. É positiva a iniciativa de por freios ao desenvolvimento depredador da natureza, destacando o fato concreto de que

é mais aquele que dela antes já dispunha sem precisar comprá-la.

A solução para a crise ecológica não pode ser satisfeita com essa espécie de concepção. Ao contrário do dualismo, da separação ou ruptura, exige-se uma nova visão, moldada sob uma ótica integradora do homem junto à natureza. Portanto, é preciso ter em mente, segundo a lição de MORIN e TERENA (Op. cit., p. 9) que “ [...] a expressão ‘sustentabilidade do desenvolvimento’, não significa um ajustamento complementar à racionalidade do desenvolvimento moderno (...). A sustentabilidade do desenvolvimento é um problema complexo, porque a sua essência está imbricada em um tecido de problemas inseparáveis, exigindo uma reforma epistemológica da própria noção de desenvolvimento.

Quando se fala em “desenvolvimento sustentável” deve-se ter clara essa noção de que uma verdadeira mudança de paradigma se impõe, inclusive superando o próprio significado literal e usual das palavras. Sem essa guinada radical, a expressão enfocada passa a fazer parte de um palavrório estéril que nada de revolucionário comporta e não pode contribuir efetivamente para a conformação de um novo modelo socioeconômico voltado para princípios ecológicos de respeito à natureza. No máximo, o que pode representar o chamado “desenvolvimento sustentável”, desprovido dessa ótica inovadora, é

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um retardamento dos processos de exploração e deterioração ambientais, mas não uma efetiva mudança de rumos. Michel Serres (1994, p. 54) exemplifica esse fenômeno com a metáfora de um navio que avança em alta velocidade na direção de uma rocha com a qual se chocará. Devido a isso, o capitão determina que simplesmente se reduza a velocidade, esquecendo o essencial, que seria a alteração da rota. Sem perscrutar um sentido mais profundo de caráter revolucionário e inovador, Leonardo Boff (2004, p. 97) afirma que “a expressão ‘desenvolvimento sustentável’ confunde e não simboliza uma nova forma de se pensar o mundo”. O desenvolvimento atrelado ao velho modelo espoliador e dominador “apresenta-se apenas como material e unidimensional, portanto, como mero crescimento” e “a sustentabilidade é apenas retórica e ilusória”. Como bem expõe Eduardo Gudynas (1992, p. 68- 69): [...] as atuais posturas de desenvolvimento sustentável exigem um enfoque crítico cauteloso. Nelas não se renuncia ao velho paradigma do desenvolvimento pelo crescimento econômico; pelo contrário, ele é ajustado a uma dimensão ecológica. Assim, a disseminação de uma nova política neoliberal, que enfatiza o mercado como cenário privilegiado das relações sociais, também está gerando sua

Como esclarecido inicialmente, o objetivo deste item não foi a apresentação de soluções para o problema ecológico em face do desenvolvimento, mas sim o levantamento de um questionamento imprescindível como prévio requisito para qualquer abordagem séria do tema. Ficam, portanto, ao final, as perguntas: É sustentável a tese do desenvolvimento sustentável? Quais são as verdadeiras alternativas para a crise ecológica contemporânea? Qual seria um novo modelo socioeconômico que superasse o antropocentrismo e respeitasse os princípios ecológicos? Qual o papel de cada um e das instituições (em especial da universidade) na construção de um novo paradigma ecologicamente correto? Ora, uma das respostas possíveis é a busca de alterações mais radicais, por exemplo, no campo das energias, adotando opções renováveis, limpas e não poluentes, tais como os veículos elétricos no que tange ao trânsito viário terrestre e seus atuais alarmantes índices de emissões de gases. Não obstante, para isso, é necessário sim abandonar o modelo de “desenvolvimento” em seu sentido corrente, voltando-se para uma fase, ao menos inicial, de prática de incentivos e investimento em pesquisas, tudo a fim de viabilizar um novo modelo capaz de uma inovação radical e não de mera maquiagem ou ornamentação dos discursos “ecologicamente corretos”.

própria política ambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – No decorrer deste item levou-se a efeito uma revisão crítica do conceito disseminado de “desenvolvimento sustentável”, apontando-se para seu uso indiscriminado e acrítico, num contexto de reprodução e continuidade de um modelo antropocêntrico e antiecológico de domínio e exploração do mundo natural. Repensar os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade é um projeto emergencial que impõe uma mudança muito mais profunda do que simples paliativos ou processos de retardamento de um inevitável esgotamento das fontes de “recursos naturais”3, sob pena de, ao invés de promover verdadeiras mudanças do modelo socioeconômico no aspecto ecológico, simplesmente travestir o velho paradigma com uma nova roupagem, o que em nada contribui para a solução da crise ecológica, mas somente conduz à sua ocultação ou dissimulação, fato este que tem o potencial de torná-la ainda mais perigosa, pois quando descoberto o equívoco, talvez já seja tarde demais. A própria pretensão de manter uma coexistência equilibrada entre a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico, “de modo que aquela não acarrete a anulação deste”, como alerta Fiorillo (Op. cit., p. 26), tendo como objetivo o crescimento ilimitado dentro do modelo econômico consumista do capitalismo, é algo que merece uma restrição severa quando de uma análise crítica séria de sua viabilidade. Em muitas situações, ditos objetivos são mutuamente excludentes, de modo que a mudança paradigmática deve ser bem mais radical do que uma pretensa postura eclética que pretende teoricamente conciliar o inconciliável.

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VEÍCULOS ELÉTRICOS E A QUESTÃO AMBIENTAL: INOVAÇÕES RADICAIS, LEGISLAÇÃO, REGULAMENTOS E INCENTIVOS NECESSÁRIOS BREVE HISTÓRICO DOS VEÍCULOS ELÉTRICOS – Quando se afirma a característica inovadora dos veículos dotados de motores elétricos, isso não significa que a ideia e a sua própria criação sejam recentes na história da tecnologia e da ciência. A novidade diz respeito tão somente à sua implantação como uma alternativa energética para o trânsito viário terrestre, o qual é dominado quase que totalmente pelos combustíveis fósseis. Portanto, os veículos elétricos são uma novidade em relação aos modelos de automóveis corriqueiros na atualidade, mas segundo Larminie e Lowry, citados por Pupo (2012, p. 06), constituem uma invenção que data de 1830 (primeira metade do século XIX). Sua primeira versão foi com o uso de baterias não recarregáveis e chegou a se tornar comercial no fim do século XIX, ao mesmo tempo em que surgiam em escala industrial as baterias recarregáveis. Porém, apesar de certas vantagens sobre os veículos movidos a vapor ou dotados de motor de combustão interna, os veículos elétricos foram perdendo terreno a partir de 1910. Acontece que a autonomia das baterias era pífia, os combustíveis fósseis ficaram baratos e os motores de combustão interna experimentaram um desenvolvimento que retirou a atratividade dos veículos elétricos. Ademais, os componentes a eletricidade passaram a ser coadjuvantes para os veículos de motor a combustão, servindo tão somente para sua partida inicial (motor de arranque ou motor de partida). Posteriormente, mais precisamente nas


décadas de 1970 e 1980, houve novas tentativas de ingresso dos motores elétricos no mercado, considerando a crise do petróleo e questões ambientais. Contudo, nem a indústria nem a população da época receberam bem essas tentativas que acabaram frustradas. Atualmente, ressurgem os veículos elétricos como alternativa para a escassez dos combustíveis fósseis e ao agravamento do problema ambiental, especialmente no que se refere à poluição atmosférica pela emissão de gases. Hoje, segundo Pupo (Op. cit., p. 7), há quatro espécies de veículos elétricos: os puros (somente elétricos); os elétricos híbridos (aqueles que envolvem energia elétrica e outras fontes, inclusive combustíveis fósseis); os veículos elétricos híbridos recarregáveis pela rede elétrica e os veículos a célula de combustível (aqueles que usam hidrogênio como fonte de energia para movimentar o veículo). Ainda segundo o mesmo autor (Op. cit., p. 8), verdade é que, em termos ambientais, não corresponde a afirmação de que os veículos elétricos proporcionam emissão zero de poluentes, pois que há “emissões indiretas nos processos de geração de eletricidade”. Contudo, diretamente, esses veículos emitem muito pouco ou nenhum poluente, de forma a torná-los extremamente atrativos sob o ponto de vista ecológico. Efetivamente, no que se refere ao motor, a transformação tecnológica é muito grande, pois além de silencioso, ele transforma em passado toda a poluente tecnologia de combustão. Lessa (2011, p. 8) chama a atenção para o fato de que isso terá “enorme impacto junto aos fornecedores e à cadeia de manutenção tal qual conhecemos hoje. O modelo totalmente elétrico passa a não queimar mais combustível fóssil”. INOVAÇÕES RADICAIS – Como já visto, o conceito de “desenvolvimento sustentável” só tem adequação quando são apontadas alternativas realmente capazes de quebrar o ciclo econômico tradicional. Opções que apenas procuram ajustar esse ciclo de exploração e esgotamento a um modelo que, de alguma forma, somente prolongue ou atrase seus efeitos catastróficos não significam absolutamente nada além de discursos cuja eloquência somente é superada pelo engodo. Jared Diamond (2005, p. 527-586) expõe que estamos envolvidos em um processo de extração de recursos naturais em que nossa energia provém basicamente do “petróleo, gás e carvão mineral”. E mais: As maiores fontes de energia do mundo, especialmente para as sociedades industriais, são os combustíveis fósseis: petróleo, gás natural e carvão mineral. Embora haja muita discussão sobre quantos grandes campos de petróleo e gás restam para serem descobertos, e embora as reservas de carvão sejam aparentemente grandes, a visão que prevalece é que as reservas conhecidas, prováveis e acessíveis de petróleo e gás natural durarão apenas mais algumas décadas. Isso não quer dizer que todo o petróleo e gás natural da Terra terá sido usado então. Mas que as reservas disponíveis estarão mais fundo no subsolo, e sua extração será mais suja, dispendiosa ou envolverá maior custo ambiental.

Eis a razão para a insistência neste trabalho quanto à necessidade de quebra do paradigma extrativista de recursos energéticos esgotáveis e sua gradativa substituição por fontes de energias renovável e limpa, de que é exemplo a alternativa dos carros elétricos para a solução do grande problema relativo à poluição produzida pelo trânsito viário terrestre. Vale a pena dar ouvidos à advertência de Diamond (Op. cit., p. 596): Portanto por estarmos rapidamente avançando neste curso de não – sustentabilidade, os problemas ambientais do mundo serão resolvidos de um modo ou de outro, no tempo de vida das crianças e jovens adultos de agora. A única pergunta é se serão resolvidos de modos agradáveis de nossa escolha, ou de modos desagradáveis que não sejam de nossa escolha, como guerras, genocídio, fome, doenças epidêmicas e colapso das sociedades. Embora todos esses fenômenos sombrios tenham sido endêmicos para a humanidade através de nossa história, sua frequência aumenta com a degradação ambiental, pressão populacional e pobreza e instabilidade política resultantes.

O mesmo autor (Op. cit., p. 605) menciona as alternativas dos carros a hidrogênio e deposita maior esperança nos “carros elétricos” como opção que retorna de um passado frustrante, mas que pode significar uma boa via na atualidade. Entretanto, alerta para o fato de que o desenvolvimento tecnológico incontido não somente se dedica à fabricação dos carros elétricos, com substancial redução de queima de combustíveis, mas também aumenta exponencialmente a produção de “veículos utilitários esportivos” que consomem muito mais, de forma que nem sequer se consegue um equilíbrio e vêm sendo constatados aumentos nos gastos de combustíveis fósseis mesmo com o ressurgimento dos veículos elétricos. O problema, segundo Diamond, é que ninguém ainda foi capaz de descobrir uma maneira de fazer com que a ciência e a tecnologia se concentrem somente em “efeitos e produtos ambientalmente favoráveis” (v.g. carros elétricos e híbridos). Sempre há que surgir paralelamente “efeitos ambientais e produtos negativos” (v.g. carros esportivos de grande consumo). Isso não deve, porém, ser motivo para a estagnação e o conformismo. É sabido que a ilusão da ciência e da tecnologia como vias que iriam solucionar todos os problemas e criar um “mundo melhor”, não passa de mais uma das utopias enganadoras da humanidade. Como bem constatou Hans Jonas (1995, p. 264-270), é imperioso rechaçar esse sonho juvenil e despertar a consciência para o fato de que todo progresso científico – tecnológico tem também seu custo, o qual inclusive pode se refletir em perdas de vidas humanas, animais e vegetais. Na verdade, quanto maior o conhecimento e domínio humano da natureza, maior é a possibilidade de sua destruição pelo homem, o que implica, obviamente, a autodestruição da humanidade. A grande questão está em

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conseguir manter a virtude da mediania aristotélica. Conforme Aristóteles (1985, p. 71):

quais a sociedade vem passando parecem indicar uma mudança no

[...] econômicas, tecnológicas, socioculturais e ambientais pela

Em conclusão, a virtude é certa medianidade, como a que ao

papel dos veículos. De instrumentos com funções de diferenciação

meio dirige a sua mira. [...] Logo, é a virtude um hábito de propor-se

social, eles aparentam estar se transformando em ferramentas cuja

o que consiste na medianidade para nós, determinada com a razão

função é transportar pessoas ou cargas causando os menores impac-

e como o homem sábio a determinaria. E é uma mediania entre dois

tos possíveis em termos econômicos e socioambientais.

vícios, um por excesso e outro por falta: porque, enquanto dos vícios alguns faltam e outros excedem da medida conveniente, quer nos

Nessa conjuntura, o mesmo autor (Op. cit., p. 03) afirma que:

afetos, quer nas ações, a virtude, ao invés, acha e escolhe o meio. Inseridos nesse panorama de transformações que ocorrem em

Aqui, a estagnação, o fatalismo e o conformismo podem se dar em dois extremos específicos, quais sejam, o otimismo e o pessimismo. Ora, como bem afirma Morin (Op. cit., p. 62), na linha de uma mediania aristotélica, se o “otimismo é totalmente estúpido” também “o pessimismo nada significa”. Não é preciso aderir a uma utopia científico- tecnológica, mesmo porque isso certamente seria desastroso. Como afirma Scruton (2011, p. 65), o pensamento utópico não se constitui um mero erro de raciocínio, mas “um molde mental, e um molde mental que de algum modo misterioso é indiferente à verdade”. O autor lembra o filósofo húngaro Aurel Kolnai, que descreveu a “mente utópica” como “uma mente moldada por uma moral particular e uma necessidade metafísica que leva à aceitação de absurdos não a despeito da sua absurdidade mas por causa dela”. Agora, reiterar e investir na alternativa dos veículos elétricos, tendo em vista uma efetiva proposta de inovação radical no campo da indústria automotora com a superação do paradigma energético tradicional não constitui utopia, mas algo plausível, uma saída ante um futuro catastrófico que se desenha. Nesse caso, a ciência e a tecnologia, desde que orientadas corretamente, podem sim ser um dos caminhos redentores. O medo de que os desenvolvimentos tecnológicos para obtenção de alternativas energéticas limpas venham acompanhados de outros aspectos negativos não pode paralisar a humanidade. Deve, sim, servir de alerta para que os esforços sejam direcionados corretamente. Trata-se da luta pela manutenção da vida humana e não humana no planeta – e a vida é sempre prenhe de riscos, especialmente na atual formação da sociedade moderna. Não sem razão, a denominou Ulrich Beck (2002, passim), de uma “sociedade de risco”. Riscos estes que não devem ser somente temidos, mas também e principalmente, enfrentados com atitudes ousadas e quebras de velhos paradigmas. Quebras reais, concretas desses velhos paradigmas e não somente a adoção daquilo que se tem chamado de “desenvolvimento sustentável” de forma meramente cosmética, a fazer valer aquilo que pretendia o clássico personagem literário de Lampedusa (2002, p. 42), ou seja, “mudar tudo, para que tudo fique como está”. Essas transformações benéficas já podem ser sentidas e incentivadas porque, conforme expõe Pupo (Op. cit., p. 3), as mudanças:

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um mercado de tamanho e potencial consideráveis, os veículos elétricos têm papel muito importante e, apesar de historicamente não serem algo novo, podem ser classificados como uma evolução dos atuais modelos com motores de combustão interna, uma vez que, [...], são energeticamente mais eficientes, tecnologicamente mais avançados, menos nocivos ao meio ambiente, mais econômicos em termos de utilização e manutenção, mais integráveis aos sistemas urbanos sob diversos aspectos e, [...], apresentam uma eficiência energética 150% maior”.

Corroborando essa maior eficiência e economia dos carros elétricos, Lessa (Op. cit., p. 10) informa que: De acordo com estudo do Ministério da Fazenda, em 2010 o custo de rodagem por quilômetro era de R$ 0,23 no carro movido com motor a combustão, enquanto o carro elétrico tinha custo de R$ 0,06.

Além disso, continua Lessa a afirmar que: Os especialistas defendem que o carro elétrico poderia reduzir as emissões de gases do petróleo a uma fração do que se emite hoje. Isto porque, enquanto a eficiência do motor a gasolina é inferior a 40%, os motores elétricos a imã permanente (que são usados nos carros elétricos) têm eficiência de 96%. Mesmo considerando as perdas na distribuição de energia e na armazenagem na bateria, queimar petróleo para produzir a eletricidade para mover o carro elétrico ainda emitirá bem menos carbono do que produzem os motores a combustão comum. Além disso, os carros elétricos acumulam energia nas freadas, reduções e nas descidas. O motor elétrico pode, ainda, usar em grande escala energia gerada de fontes de baixa emissão, como hidráulica, eólica, nuclear etc. No entanto, mesmo a energia gerada em térmicas a gás natural, que é combustível fóssil, emite metade do carbono que o petróleo, configurando também uma alternativa mais eficiente.4

Retomando a perplexidade de Diamond, acima descrita, quanto ao desenvolvimento incontrolável da ciência e da tecnologia com seus bons e maus frutos, é destacável o fato de que a tecnologia dos veículos elétricos já tem conseguido a produção de carros esportivos e utilitários de grande desempenho, nada devendo aos tradicionais com motor de combustão interna. Grande exemplo disso e, assim sendo, da ampla possibilidade de alteração do paradigma energético sem


nenhuma perda de benefícios em termos de qualidade e luxo veicular, é o modelo “Tesla S” da “Tesla Motors” dos EUA. Ora, com o avanço da tecnologia elétrica e seus benefícios em termos ambientais, qual seria o motivo para insistir nos modelos tradicionais mais dispendiosos e ecologicamente prejudiciais? É claro que os carros elétricos não são a panaceia para todos os males ambientais e econômicos, como, aliás, nada é. Conforme Pupo (Op. cit., p. 3-4), há ingentes desafios que não são exclusivos do Brasil e que criam um gargalo para a evolução mais rápida dos veículos elétricos. Dentre eles estão o preço alto, a baixa autonomia das baterias e a falta de toda uma infraestrutura especial “para a comercialização, operação e manutenção dos veículos e das baterias”. Não se pode olvidar, porém, que o Brasil foi pioneiro nas pesquisas, desenvolvimento e implantação dos veículos a etanol. Há, no que tange aos carros elétricos, um enorme atraso em nosso país, mesmo considerando as ingentes vantagens ambientais do veículo elétrico em termos de poluição atmosférica e inclusive sonora, segundo João Paulo dos Reis Velloso (Op. cit., p. 7-8). Essa barreira precisa ser urgentemente superada e o sucesso pioneiro do etanol pode certamente servir de inspiração. Neste sentido afirmam Duarte e outros (2009, p. 49) que: [...] a questão do desenvolvimento sustentável, além da incerteza sobre o fornecimento futuro de petróleo, traz como oportunidade o desenvolvimento de tecnologias de propulsão inovadoras. [...]. O Brasil, com sua competência já consolidada em etanol e biodiesel, pode ampliar seu leque de opções. Desenvolvendo soluções em motorização elétrica e a hidrogênio, por exemplo.

Mas, nada disso, segundo Pupo (Op. cit., p. 4), alude ao fato de que: [...] as projeções do relatório World Energy Outlook (Internacional Energy Agency) estimam que a eletricidade deva ser a forma final de energia como o crescimento mais sólido do mundo até 2035 e que sua geração está sofrendo transformações causadas pelos avanços tecnológicos, pelo aumento dos preços dos combustíveis fósseis e pela ação dos governos que direcionam políticas de incentivo para o desenvolvimento de soluções energéticas mais seguras e de menor impacto ambiental. O relatório também menciona as preocupações com a redução do passivo ambiental gerado nos últimos séculos, afirmando que seria necessária uma transformação profunda do sistema de geração e distribuição de energia para que ele contribuísse para o atingimento de uma meta de redução de 2ºC nas estimativas de aumento da temperatura global.

O mesmo “World Energy Outlook” divulgou, em 2009, um estudo da Agência Internacional de Energia, também anteriormente citada, expondo “as perspectivas energéticas mundiais até 2030”. Esse estudo aponta para uma tendência de enorme evolução das tecnologias voltadas para veículos e motores elétricos em substituição aos de combustão interna,

pois que o setor de transportes aparece como “o maior consumidor de energia”.5 Mas, tendo em vista exatamente o fato de a migração para a eletricidade como fonte energética para veículos do trânsito viário ser uma inovação radical que importa em efetiva quebra de um paradigma tradicional do desenvolvimento econômico, tem-se que sem adequadas políticas de incentivos e investimentos especialmente dirigidos, não se logrará jamais a implantação de uma real mudança. Por isso, no próximo item, trataremos desses necessários mecanismos, bem como das correlatas medidas legais e administrativas capazes de concretizar esses objetivos, algumas delas já em vigor no nosso país e em escala internacional. INCENTIVOS, INVESTIMENTOS E POLÍTICA ECONÔMICO – AMBIENTAL – Tendo em vista a característica de inovação radical que marca a adoção de uma nova matriz energética (elétrica ou ao menos híbrida) para os veículos do trânsito viário, torna-se imprescindível certo grau de intervencionismo, a fim de viabilizar a difusão do novo modelo e a alteração da visão dos consumidores acerca do produto. Note-se que novamente é preciso compreender que se busca a virtude da mediania. Não se trata de defender um intervencionismo econômico de matriz socialista radical no seio do qual a liberdade de mercado e de iniciativa são suprimidas e o Estado se transforma num gigante paternalista e totalitário incompetente. A derrocada dos “dramáticos experimentos totalitários” que levaram a sério esse modelo já é mais do que suficiente para demonstrar sua inépcia, conforme leciona Thomas Piketty (2014, p. 17). Também não se deve caminhar para o outro extremo, que constitui o modelo capitalista libertarianista, apregoando o “livre mercado” como outra panaceia tão utópica quanto a economia (se é que se pode falar assim) socialista/comunista. No seio desta última concepção, qualquer intervenção é considerada vedada, independente das circunstâncias, o que também constitui uma crença quase religiosa em uma espécie de deidade chamada “mercado”, a qual é capaz de ajustar-se e resolver quaisquer entraves por si mesma e por meio de mecanismos internos. Todo estudioso que não se deixa iludir por reducionismos na economia tem a percepção de que o mercado não é regido somente por interesses financeiros, mas também por interesses ideais. Mises (1995, p. 233) utiliza o termo “cataláxia” para estudar as reações do mercado com sustento em uma base informativa ampla. O mesmo autor afirma que: O objeto de estudo da cataláxia são todos os fenômenos de mercado com todas as suas raízes, ramificações e consequências. É um fato o de que as pessoas, ao transacionarem no mercado, não são motivadas apenas pelo desejo de obter alimento, abrigo e satisfação sexual, mas também por inúmeros desejos de natureza ‘ideal’. O agente homem nem sempre está interessado apenas em coisas ‘ma-

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teriais’, mas também em coisas ‘ideais’. Escolhe entre várias alternati-

[...] os ganhos em eficiência energética e qualidade ambiental

vas, sem considerar se elas são classificadas como materiais ou ideais.

com os carros elétricos são inegáveis e podem significar uma es-

Nas escalas de valor efetivas, as coisas materiais e espirituais estão

perança renovada de ganhos ambientais e econômicos para novos

entrelaçadas. Mesmo se fosse possível traçar uma separação nítida

investidores em energia no Brasil.

entre interesses ideais e materiais, é preciso considerar que toda ação concreta ou visa à realização de objetivos tanto materiais como ideais ou é o resultado de uma escolha entre algo ideal e algo material.

No seio dessa visão “cataláctica” os preços e intercâmbios do mercado normalmente se ajustam espontaneamente, sem necessidade de laços marcados por objetivos comuns e/ou planificados pelos atores. Mas, importa perceber que isso ocorre normalmente, o que significa que, especialmente porque não há ali uma visão reducionista-materialista ou meramente financeira do mercado, são admissíveis exceções, principalmente motivadas por fatores ideais. Certamente, uma dessas exceções pode ser a atualíssima questão ambiental que não poderia entrar nas equações de Mises e de outros autores da chamada “Escola Austríaca de Economia” (v.g. Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Henry Hazlitt, Israel Kirzner, Murray Rothbard e Friedrich Hayek), ao menos com a formatação e a intensidade da atualidade. Fato é que os problemas ambientais que podem ser objeto de enfrentamento parcial pelos incentivos aos veículos elétricos constitui um fator concomitantemente ideal ou espiritual e material. É ideal porque tem sua face ética quanto à defesa de um direito imaterial dos seres humanos, presentes e futuros, a um meio ambiente saudável, o que é, aliás, preceito constitucional no Brasil e convencional no Direito Internacional. Doutra banda, não deixa de ser um componente material, um substrato imprescindível à própria existência humana e, consequentemente, do mercado, que não funcionará nem livremente, nem mediante alguma intervenção se os recursos naturais se esgotarem e, especialmente se o ser humano desaparecer ou definhar num ambiente hostil. Portanto, não se trata de pugnar nem por um intervencionismo radical, nem por um libertarianismo anárquico, mas simplesmente pela necessidade trazida pelas especiais circunstâncias da situação ambiental do mundo real, de propor e incentivar o mercado e os consumidores a uma mudança de postura imprescindível para sua própria sobrevivência. Nesse panorama a economista Claudia Martins (Apud, LESSA, Op. cit., p. 9): [...] ressalta que a difusão do veículo elétrico, especialmente nos países em desenvolvimento, exigirá uma série de adaptações às circunstâncias do mercado local, à escala de negócios e à disponibilidade de insumos e materiais. ‘Além disso, será necessário disponibilizar financiamento e incentivos fiscais à inovação.

Muito mais que uma intervenção, ainda segundo a mesma economista (Op. cit., p. 9) trata-se de uma iniciativa benéfica do ponto de vista econômico, financeiro e ambiental, uma vez que:

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Mas será que é esse o panorama nacional de incentivo e investimento no mercado de veículos elétricos? Estariam o Governo, a iniciativa privada e os próprios consumidores já devidamente conscientes e, então, empenhados nessa empreitada comum? Lessa (Op. cit., p. 10) noticia que, no fim de 2009, o Ministério da Fazenda elaborou um relatório versando sobre veículos redutores de danos ambientais no seio do qual os carros elétricos tiveram grande destaque. Com base nesses estudos, o Governo brasileiro tem projetos de incentivo e investimento, mas por ora o que se vê é um “desincentivo”. A bateria, por exemplo, é mais tributada no que tange ao IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Criou-se uma linha de financiamento via BNDES, mas que tem o problema de ser operacionalizada pela rede bancária privada. Com isso, a situação não muda, pois estamos no meio de uma conformação tradicional inservível para dar partida a um mercado inovador como o dos veículos elétricos, os quais permanecem com custos maiores do que aqueles dotados de motor a propulsão interna. Há, porém notícia alvissareira de que o BNDES estaria lançando uma nova linha de financiamento para compra de ônibus, sem intermediação da rede bancária privada. Alguns Estados também já ofertam isenção de IPVA. Em agosto de 2011, o BNDES liberou R$ 7,5 milhões para estudo e desenvolvimento de motores elétricos, firmando contrato com a empresa WEG, em uma “linha” de “inovação tecnológica”. Essas espécies de iniciativas podem realmente alavancar o mercado de carros elétricos. O mesmo autor ainda informa que, no aspecto de manutenção, os motores a combustão têm trezentas a quatrocentas “partes móveis”. Por seu turno, os motores elétricos possuem somente três. Tudo isso está a demonstrar que a manutenção de impostos altos ou mesmo iguais para os carros elétricos é um erro colossal. O Brasil se comprometeu internacionalmente a reduzir as emissões de gases poluentes e necessita urgentemente de uma “política global”, como afirma Lessa (Op. cit., p. 10), bem como de considerar essa finalidade um verdadeiro “compromisso com a população”, uma vez que não somente é uma forma de cumprir regras convencionais internacionais, mas também normativa constitucional, como já visto neste trabalho. Certamente a legislação exercerá papel essencial para incentivar a produção, comercialização e adoção pelos consumidores dos carros elétricos. E a questão não se pode reduzir a normas relativas à emissão de poluentes. Os incentivos fiscais são imprescindíveis e não se pode admitir uma postura como a do então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, que vetou, na época, a redução do IPI para híbridos e elétricos, possivelmente por


pressão de grupos de interesses ligados aos fabricantes de carros a combustão.6 Felizmente no momento, embora a passos de tartaruga, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei para redução do IPI para carros elétricos e híbridos. Trata-se do PLS 174/2014, de autoria do Senador Eduardo Braga. O Projeto já foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente (CMA) e segue em seu andamento, de acordo com o processo legislativo. A senadora Vanessa Grazziotin ofertou parecer favorável, do qual se destaca a seguinte passagem:

O Brasil, [...], ainda não faz parte do mercado do carro elétrico. Sua introdução em escala comercial dependerá, em nosso entendimento, de algumas decisões de política pública, particularmente em relação à regulamentação ambiental e incentivos tecnológicos e fiscais.

Os mesmos autores (Op. cit., p. 73-74) prosseguem afirmando com exatidão: Dados os custos envolvidos, bem como a incerteza inerente ao desenvolvimento tecnológico, o governo possui, e continuará

Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 225, § 1º., in-

a possuir, papel fundamental para promover o desenvolvimento

ciso V, prevê que incumbe ao Poder Público controlar a produção, a

e a adoção de novas tecnologias na indústria automotiva. Este

comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que

papel consiste, basicamente, no estímulo à pesquisa e ao desen-

comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

volvimento, juntamente com a elaboração de incentivos para que

A importância do incentivo a veículos menos poluentes também se-

sejam adotados meios de transporte menos poluentes e mais efi-

gue os princípios estabelecidos pela Política Nacional Sobre Mudança

cientes, especialmente nos grandes centros urbanos. Tais políticas

do Clima, instituída pela Lei 12.187, de 29 de dezembro de 2009.

vêm sendo adotadas por outros países, como nos casos dos EUA,

Essa Política traz como uma de suas principais diretrizes a promoção e

Alemanha e França.

o desenvolvimento de pesquisas científico – tecnológicas, e a difusão de tecnologias, processos e práticas orientados a mitigar a mudança do clima por meio da redução de emissões antrópicas. Desse modo, o PLS n. 174, de 2014 é uma iniciativa louvável que busca promover a utilização de veículos elétricos e elétricos híbridos a álcool com a intenção de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, bem como de diminuir a poluição do ar. Portanto, é oportuno aprovar a matéria.

Velloso (Op. cit., p. 9) expõe com inigualável clareza as “linhas mestras” para o incentivo aos veículos elétricos no Brasil, destacando dentre as principais iniciativas: 1) redução do IPI, Imposto de Importação e PIS – COFINS; 2) incentivo ao desenvolvimento tecnológico e à importação de tecnologia com criatividade. Aponta ainda como atores cruciais desse processo o Ministério da Fazenda; Ministério da Ciência e Tecnologia (FINEP, CNPQ e SIBRATEC), bem como o BNDES como “provedor de crédito a longo prazo”. Não olvida os papéis relevantes que podem e devem desempenhar a Eletrobrás, a Petrobrás e as distribuidoras de energia. O Brasil nada mais tem a fazer do que simplesmente seguir a tendência mundial. Considerando que um dos maiores problemas para o deslanchar dos veículos elétricos é o alto custo de produção, são necessários, como já se repetiu à exaustão, incentivos. Como bem ilustram Rezende, Mota e Duarte (Op. cit., p. 21): Conscientes das dificuldades para a introdução da nova tecnologia envolvendo veículos mais ‘ambientalmente amigáveis’ e também da ameaça à sua indústria automobilística caso não estejam aptos a concorrer nesse novo mercado global, os países estão implementando diversas políticas de incentivos a veículos limpos e em especial aos veículos elétricos.

No entanto, como infelizmente constatam Barbosa, Oliveira e Souza (2010, p. 73):

Pode-se afirmar, ainda que timidamente, que o Brasil já vem há algum tempo ensaiando e adotando medidas referentes à adoção dos veículos elétricos como alternativa energética limpa. Já no antigo Código Nacional de Trânsito (CNT – Decreto nº 62.127/1968), na classificação dos veículos quanto à tração, figurava a previsão do carro elétrico (artigo 77, I, “b”). Hoje, com a revogação expressa do CNT pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB – Lei nº 9.503/1997) mantém-se a mesma classificação com menção aos veículos de tração elétrica no atual artigo 96, I, “b”. Mais proximamente o Contran editou as Resoluções nºs. 315/2009 e 375/2011, estabelecendo a equiparação dos veículos ciclo – elétricos aos ciclomotores. Além disso, a Resolução Contran nº 465/2013 equipara as bicicletas elétricas aos biciclos comuns. Segundo Fiorillo (Op. cit., p. 143), o reconhecimento dos veículos automotores como “a principal fonte e ruídos urbanos”, com responsabilidade de cerca de “80% das perturbações sonoras”, levou à expedição da Resolução Conama nº 08/1993 (que altera a Resolução Conama nº 01/1990), estabelecendo limites máximos de ruído. Também a Resolução Conama nº 237/1997 “proibiu a utilização de itens de ação indesejável” por sua capacidade de reduzir a “eficácia do controle da emissão de ruído e de poluentes atmosféricos”. Não se olvide que o CTB, em seu artigo 104, determina “o controle da emissão de ruídos”, estabelecendo “inspeção periódica”. Já no artigo 105, V do mesmo diploma é imposta a obrigação de uso de “dispositivo destinado ao controle de emissão de ruído”, de acordo com normas estabelecidas pelo Contran. O uso indevido de veículos automotores com produção de ruídos acima dos limites constitui infração administrativa de trânsito, conforme dispõe o artigo 229 do CTB, ensejando infração média, com multa

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EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE, REGINA ELAINE SANTOS CABETTE, PÂMELY TIEME TANEGUCHI e WALÉRIA CRISTINA ALVES DOS SANTOS

e perda de quatro pontos na CNH, afora a possibilidade de remoção do veículo. Também a Lei nº 10.203/2001 autorizou os governos estaduais e municipais a estabelecerem, em caráter concorrente, planos, normas e medidas para o controle de poluição atmosférica em relação a veículos automotores, ratificando a Lei nº 8.723/1993 “que dispõe sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores”. Nessa toada, o município de São Paulo dá um passo a frente com a edição da Lei Municipal nº 15.997, de 27 de maio de 2014, oriunda do Projeto de Lei nº 276/2012, de autoria do vereador Donato /PT. Essa legislação “estabelece a política municipal de incentivo ao uso de carros elétricos ou movidos a hidrogênio”, contribuindo assim para a redução dos índices de poluição atmosférica e sonora. O incentivo consiste concretamente na devolução ao contribuinte da cota- parte municipal do IPVA nos primeiros cinco anos de incidência tributária. Essa devolução abrange os veículos elétricos, a hidrogênio e os híbridos (veja os artigos 2º e 3º da Lei Municipal 15.997/2014). Além disso, determina que a Secretaria Municipal de Transportes edite regulamentação para exclusão desses veículos do rodízio municipal de circulação. Há um limite para as isenções, alcançando apenas os carros com valor igual ou inferior a cento e cinquenta mil reais (artigo 6º.). Trata-se, sem dúvida, de iniciativa governamental modelar a ser seguida por outros municípios. Recentemente, por meio de medida administrativa de inclusão na “Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum (Letec)”, os veículos elétricos, a hidrogênio e híbridos foram isentos da tarifa de importação de 35% que o Brasil impõe aos carros importados. Portanto, deixam de pagar Imposto de Importação, consistindo, conforme bem aduz Vaz (Imposto de Importação ... online), em relevante incentivo para [...] inserir o Brasil em novas rotas tecnológicas, disponibilizando ao consumidor veículos com alta eficiência energética, baixo consumo de combustíveis e reduzida emissão de poluentes. Tais medidas estão alinhadas à política de fomento para novas tecnologias de propulsão e atração de novos investimentos para produção nacional desses veículos.

Parece que os primeiros passos vão sendo dados, mas ainda há um longo caminho a percorrer com destaque para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica pública e privada sobre o tema dos veículos elétricos, bem como o estabelecimento de cooperação tecnológica internacional. Somente por esse caminho é possível que o Brasil, ainda que com certo atraso, venha a se inserir no contexto inovador dessa alternativa energética que tende a ganhar terreno e desbancar a hegemonia do petróleo e de outras fontes poluentes. CONCLUSÃO – No decorrer do pressente trabalho procedeu-se a um estudo dos veículos elétricos sob um prisma interdisciplinar, envolvendo ciência, tecnologia, ecologia, direito e economia. Considerando o potencial redutor de danos ecológicos de que são dotados os veículos elétricos, procurou-se demonstrar a importância da iniciativa de sua implantação no trânsito viário terrestre brasileiro, tendo em conta figurar o “meio ambiente” e, mais precisamente, o “meio ambiente equilibrado” visando ao bem-estar e à saúde humanos, como bem jurídico constitucionalmente e convencionalmente tutelado. Numa necessária digressão foi analisado criticamente o conceito de “desenvolvimento sustentável”, demonstrando-se que a inserção dessa expressão vocabular de forma meramente cosmética ou coadjuvante no modelo extrativista energético, com metas de crescimento ilimitadas, de nada adianta. Faz-se necessário dar à expressão sobredita um conteúdo e um significado condizentes com a efetiva quebra de paradigma, sendo fato que a adoção da alternativa elétrica em detrimento dos combustíveis fósseis constitui um bom exemplo de inovação radical exigível. Contudo, para que essa inovação radical seja viável tornam-se imprescindíveis investimentos e incentivos, mobilizando as iniciativas pública e privada em, pelo menos, duas frentes essenciais, quais sejam, isenções e/ou reduções tributárias para os veículos elétricos e fomento da pesquisa na área com prioridade. Afinal, é de comezinho conhecimento o fato de não existirem inovação e desenvolvimento científico-tecnológico sem a contrapartida de um maciço investimento público e privado.

NOTAS 1 FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica. Trad. Luís de Barros. Lisboa: ASA, 1993, p. 103. Sobre o tema, para aprofundamento, é clássica a obra de Aldo Leopold, intitulada “A ética da Terra”. Original: LEOPOLD, Aldo. A Land Ethic. San Francisco: Mercury House, 1991, “passim”. 2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 06. Observe-se que atualmente já se fala dos chamados “direitos de quarta geração relativos aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica” a permitir manipulações genéticas dos indivíduos. Op. cit., p. 6. 3 Eis outra expressão de forte conteúdo antropocêntrico e antiecológico em cuja análise crítica não se adentrará neste trabalho, mas bem pode ser um excelente tema para reflexões futuras. 4 Op. cit., p. 10. Também corrobora essa visão João Paulo dos Reis Velloso, deixando claro que os veículos elétricos são capazes de promover uma revolução radical nos transportes com custos de manutenção e quilômetros rodados bem menores. (VELLOSO, João Paulo dos Reis. Introdução – Estratégia de Implantação do carro elétrico no Brasil. In: Idem (coord.). Estratégia de Implantação do Carro Elétrico no Brasil. Rio de Janeiro: INAE, 2010, p. 8).

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NOTAS 5 REZENDE, Sérgio, MOTA, Ronaldo; DUARTE, Adriano. Os veículos elétricos e as ações do Ministério da Ciência e Tecnologia. In: VELLOSO, João Paulo dos Reis. Estratégia de Implantação do Carro Elétrico no Brasil. Rio de Janeiro: INAE, 2010, p. 14-16. Nesse mesmo relatório, o Brasil é apontado como exemplo pioneiro de quebra da dependência praticamente exclusiva do petróleo, como o Projeto Etanol. Op. cit., p. 19. 6 Op. Cit., p. 11. Lessa cita o depoimento quanto à atitude do ex-presidente Lula e à necessidade de atenção aos incentivos fiscais, dado por Roberto Marx, coordenador do Laboratório de Estratégias Integradas da Indústria da Mobilidade (MobiLAB), da Escola Politécnica da USP e engenheiro da Fundação Vanzolini.MILARÉ, Édis, MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Doutrinas Essenciais Direito Ambiental. v. V. São Paulo: RT, 2011.

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985. ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Buenos Aires: Paidós, 2002. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. COIMBRA, José de Ávila Aguiar (org.). Fronteiras da Ética. São Paulo: Senac, 2002. DIAMOND, Jared. Colapso. Trad. Alexandre Raposo. Rio de Janeiro: Record, 2005. DUARTE, Adriano, et al. Estudo prospectivo setorial automotivo. Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – Agência Brasileira do Desenvolvimento Industrial (ABDI), 2009. FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica. Trad. Luís de Barros. Lisboa: ASA, 1993. LEOPOLD, Aldo. A Land Ethic. San Francisco: Mercury House, 1991. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. GOMES, Luiz Flávio, MACIEL, Silvio. Lei de Crimes Ambientais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. GUDYNAS, Eduardo. Ética, ambiente e ecologia: uma crise entrelaçada. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, n. 52, fasc. 205, mar., p. 64-74, 1992. JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernandez Retenaga. Barcelona: Herder, 1995. LAMPEDUSA [Giuseppe Tomasi]. Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002. LESSA, Rogério. Carro Elétrico Revolução Silenciosa. Revista Rumos. n. 1, jul./ago., p. 08-11, 2011. LOMBORG, Bjorn. O Ambientalista Cético. Trad. Ivo Korytowski e Ana Beatriz Rodrigues. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002. MILARÉ, Édis, MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Doutrinas Essenciais Direito Ambiental. v. V. São Paulo: RT, 2011. MILARÉ, Édis. Legislação Ambiental do Brasil. São Paulo: APMB, 1991. MISES, Ludwig Von. Ação Humana um tratado de economia. Trad. Donald Stwart Jr., 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995. MORIN, Edgar, TERENA, Marcos. Saberes Globais e Saberes Locais. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000. PUPO, Alexandre Silveira. Análise de possibilidades para a introdução de veículos elétricos no tráfego urbano da cidade de São Paulo: uma abordagem por meio da análise morfológica. Future Studies Research Journal. n. 2, jul./dez., p. 01-20, 2012. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo. Trad. José António Freitas e Silva. Lisboa: Quetzal, 2011. SERRES, Michel. O Contrato Natural. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. SILVA, José Robson. Paradigma Biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. VAZ, Camila. Imposto de Importação. Disponível em www.jusbrasil.com.br. Acesso em: 28 out. 2015. VELLOSO, João Paulo dos Reis. Estratégia de Implantação do Carro Elétrico no Brasil. Rio de Janeiro: INAE, 2010.

EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE é Mestre em Direito Social, Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-Graduação do Unisal. Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal. REGINA ELAINE SANTOS CABETTE é Doutora em Engenharia e Tecnologia Aeroespacial, Mestre em Física na área de Dinâmica Orbital e Planetologia, Licenciada em Física e Professora de Cálculo do Curso de Engenharia do Unisal e Coordenadora do Projeto Unisal Celeritas. Membro do Grupo de Pesquisa DAMA do Unisal e Pesquisadora Colaboradora da Pós-Graduação em Física da Unesp. PÂMELY TIEME TANEGUCHI é Graduanda do 6º semestre de Direito do Unisal de Lorena /SP e Membro do Projeto Unisal Celeritas. WALÉRIA CRISTINA ALVES DOS SANTOS é Graduanda do 6º semestre de Direito do Unisal de Lorena/SP, Estagiária de Advocacia e Membro do Projeto Unisal Celeritas.

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CASOS PRÁTICOS GABRIEL BULHÕES

JOGADORES DO BOM COMBATE (PARTE I) ando continuidade aos relatos, pensei em relatar algum dos primeiros episódios marcantes de que participei. Refiro-me ao “combate” corpo a corpo dos tão indesejáveis, mas, por vezes, indesviáveis acirramentos de ânimos que ocorrem em audiências ou outros atos decorrentes do exercício do múnus do advogado criminal. crack) encontrada em poder desse terceiro réu, que tinha sido transferido – não antes de prestar depoimento perante a autoridade policial, detalhando com riqueza seu planejamento e conduta criminosa, isentando os outros dois acusados de tudo, afirmando que ambos estavam por acaso no cenário e que nunca havia visto nem falado com eles. Para ilustrar a dinâmica dos fatos, o terceiro réu estava estacionado em um veículo tipo “caminhonete” com

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Nada melhor, pois, após muito refletir, que relatar minha primeira audiência. Trata-se de uma audiência de instrução e julgamento (AIJ) em que estava sendo apreciado um caso de tráfico de drogas, com múltiplos réus (três), sendo que um deles tinha sido transferido para outra comarca (justamente o que tinha sido encontrado com a droga apreendida). Tratava-se de quantidade significativa de um entorpecente com alto poder degradante (mais de 5 Kg de

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um isopor na caçamba que continha todo o material ilícito apreendido. O veículo em que meu cliente estava – de carona, pois o motorista é o segundo acusado – estava a uma distância média de 20 metros, estacionado para verificar a situação do pneu que estava secando, pois o pneu do carro do motorista (2º acusado) desde o início do dia já havia “baixado” duas vezes. A Delegacia Especializada em Narcóticos havia recebido um “informe” (anônimo e sem registro formal/oficial algum, para variar: o que ofende frontalmente a ampla defesa, tema que será abordado em outro momento, mais oportuno) e havia deslocado duas equipes de policiais para o local (que supostamente seria a entrega da droga, segundo a denúncia). À paisana, as duas equipes policiais foram distribuídas dos dois lados da rua (frise-se: das mais movimentadas da cidade, ao lado da maior igreja evangélica do estado). Ao identificarem o veículo suspeito, abordaram-no e ... bingo! Enquadraram como compradores da droga os ocupantes do automóvel mais próximo. Feita essa breve digressão, voltamos ao nosso momento, na AIJ. Sob o protesto desta defesa, após constatar a ausência de escolta para trazer o terceiro acusado, o juiz decidiu pelo desmembramento processual. Não preciso dizer que houve forte resistência, com protesto e colocação em ata da situação, e que é objeto recursal no presente momento. Não é desnecessário lembrar que, em caso de desmembramento do processo de corréu, se houver risco de a prova ainda não produzida possuir aptidão para influir no julgamento dos outros corréus haverá prejuízo comprovado para a defesa. Sendo este o presente caso, pois a prova produzida em interrogatório do corréu (notadamente sendo o réu confesso dos crimes imputados) que teve seu processo desmembrado, assume especial relevância. Não merece acolhida a justificativa de que a causa do desmembramento decorreria da impossibilidade de comparecimento em audiência em virtude da falta de escolta, prejudicando os outros dois réus pela falta de estrutura e de responsabilidade do Estado. Conforme o art. 80 do CPP, vê-se que as infrações imputadas aos acusados haviam sido cometidas nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar (inciso I), e que não há excessivo número de acusados (inciso II). Contudo, o julgador, em sua sentença, não explicitou o relevante valor do seu convencimento, em consonância com a ausência de prejuízo para os demais acusados. Como se não bastasse, durante a oitiva dos policiais civis, na AIJ, houve injustificável tolhida nas perguntas desta defesa,

a qual pretendia expor a seguinte estratégia: os policiais civis ouvidos foram uníssonos em poucos pontos, dentre os quais o fato de que a suposta conversa realizada entre o 2º acusado (motorista do veículo no qual estava o meu cliente) e o 1º acusado teria sido extremamente rápida. Portanto, pelo que dos autos constava, um contato rápido não caracteriza a ocorrência de tráfico de drogas. Seriam feitas as seguintes perguntas: i) “O senhor se considera uma pessoa educada?”; e ii) “O senhor cumprimenta as pessoas ao passar por elas?”. Ademais, tem-se que uma condenação baseada exclusivamente em depoimentos policiais é por demais temerária. Aqui, não se quer minar a credibilidade das nossas forças policiais. Contudo, não considerar que há um interesse intrínseco do agente policial que realizou a diligência que culminou em um flagrante e desembocou em um processo penal em comprovar a legitimidade da sua conduta é agir com inocência (para dizer o mínimo). Beccaria já nos dizia1 que uma prova imperfeita, como é uma prova testemunhal, por si só, não pode ser apta a afastar a presunção de não culpabilidade e firmar o robusto convencimento que exige uma condenação criminal. Que dirá uma testemunha interessada, como é o policial (condutor) da ocorrência, em demonstrar que agiu sob o manto da legalidade (mesmo que não o tivesse feito). Noutro giro, pergunta-se qual a razão da prática das nossas polícias em arrolar única e exclusivamente seus agentes como testemunhas nas ocorrências. O que há de mais comum, Brasil afora, é encontrar imputações que dependem única e exclusivamente de provas testemunhais e ... bingo de novo! São todos policiais que participaram das diligências iniciais, no mais das vezes ... Qual a razão, nessa perspectiva, para não ter sido arrolada como testemunha no presente processo qualquer pessoa que por ali passava? A prisão ocorreu pouco antes das 18h, e havia um culto marcado para essa hora. Ninguém ali passava? Ninguém apto a corroborar a versão policial? Ora, se com legitimidade agisse, por que não ter testemunhas (realmente desinteressadas e imparciais) para dar segurança a sua atuação? Poderíamos continuar com nossas ilações, conjecturas, assim como foi a ratio decidendi desse desfecho processual. Mas eu prefiro guardar um pouco dessa história, que está saindo um pouco mais longa do que o esperado, para a próxima oportunidade. Até breve!

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NOTA 1 § VII (Indícios do Delito e da Forma dos Julgamentos) da sua obra “Dos Delitos e Das Penas”.

GABRIEL BULHÕES é Professor na UNI-RN Centro Universitário do Rio Grande do Norte

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KNOW HOW AMÉLIA SOARES DA ROCHA

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MAURILIO CASAS MAIA

DO TRIBUNO DA PLEBE ROMANO À DEFENSORIA PÚBLICA: BREVES PALAVRAS SOBRE O AMICUS E CUSTUS PLEBIS Tribuno da Plebe é figura político-jurídica surgida em 494 a.C. na República romana (GIORDANI, 2003, p. 137) – havendo divergência quanto à data de criação: “A maior conquista da plebe é a criação dos tribuni plebis [...]. Criados em 494, eram magistrados1 plebeus, invioláveis, sagrados (sacrosancti)” (CRETELLA JR., 2001, p. 31). Inicialmente em número de dois, já em 457 a.C. seu número foi elevado para 10 (GIORDANI, 2003, p. 137). Mário Curtis Giordani (2003, p. 137) leciona que a missão originária do Tribuno da Plebe era “proteger os plebeus face à prepotência dos cônsules”, possuindo poderes negativos de intercessio – vetando atos de outros magistrados, incluindo tribunos –, e poderes positivos – para garantia de sua inviolabilidade e do exercício da intercessio. Assim, a conquista plebeia do Tribuno da Plebe veio para garantir que parcela vulnerável e excluída da cidadania romana pudesse ter voz político-jurídica. Os plebeus eram comumente humilhados pelos integrantes da sociedade romana – patrícios e clientes. A plebe era marginalizada dos pontos de vista econômico e político, clamando pela representação de seus interesses. Nesse contexto de pressões e revoltas, surge figura do Tribunato da Plebe, garantindo expressão mais democrática dentro da República romana, ainda que o plebeu não fosse o ser humano de maior vulnerabilidade àquela época, uma vez que a escravidão ainda era lá admitida. Ao ouvir relatos dos mais variados de atuação defensorial Brasil afora é impossível não rememorar lutas dos mais conhecidos tribunos da plebe – os irmãos Caio Graco e Tibério Graco –, pela (re)distribuição de terras (reforma agrária) na República romana aos plebeus: a reivindicação findou com êxito parcial, mas culminou no assassinato dos retrocitados Tribunos das Plebe (embora tal morte os

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tenha colocado como personagens da história mundial). Certamente, assim ocorreu porque os Tribunos da Plebe eram agentes políticos e jurídicos “cujo atuar incomodava as elites da época, mas tudo no afã de garantir inclusão social aos plebeus” (MAIA, 2015). Se hoje não se usa predominantemente a técnica de assassinar os defensores da “plebe”, é possível afirmar que a Defensoria Pública é alvo de outras formas de tentativa de silenciamento: pequenos orçamentos, decretos judiciais ou doutrinários equivocados sobre sua (i)legitimidade, ADI questionando a Defensoria Pública como instrumento de expressão democrática, remuneração sem equivalência à magistratura e ao Ministério Público com as quais, pós Emenda Constitucional nº 80/2014, tem expressa equivalência constitucional, Tratando sobre a intervenção defensorial nos processos, Camilo Zufelato apresenta, com fulcro em estudos da Defensoria Pública de São Paulo, o Estado Defensor na qualidade de amicus e custos plebis, ao afirmar que: “[...] a intervenção da Defensoria Pública quando não é parte da demanda se dá visando auxiliar agrupamento vulnerável, ad coadjuvandum”. O estudo e a aplicação prática do atuar do defensor público como amicus e custus plebis carecem de maior efetivação, mormente quando a “plebe” de hoje é a população com dificuldade de representação de seus interesses, a qual é numericamente relevante, mas ainda politicamente praticamente muda, já que muitas vezes sequer tem consciência de seus próprios direitos (e deveres). A referida função ainda é bastante desconhecida de muitos juristas cuja visão tradicional de processos individuais desconhecem, ou desvalorizam as inúmeras possibilidades de repercussão coletiva de processos individuais e as consequentes variadas maneiras do atuar processual em busca do justo.


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“Do Tribuno da Plebe ao Estado defensor, a expressão de um regime republicano e mais democrático repousa agora, como função estatal, na figura estatal do defensor público – que se abram as passagens e não se fechem os ouvidos. Que se permita uma realidade mais justa e feliz!”

Entretanto, a tendência é de mudança do citado quadro, com uma conscientização cada vez maior sobre a extensão da missão constitucional da Defensoria Pública brasileira como sendo opção constitucional de dar efetiva voz à realidade, aos sentimentos, aos desafios, às dificuldades e superações das pessoas em condição de vulnerabilidade. Com efeito, a judicialização da política e a politização do direito exigiram do Estado defensor a retomada da concepção de Tribunato da Plebe, reforçando seu papel de agente político de transformação social – conforme a lição de Paulo Galliez (2010, p. 95-97) e de Gustavo Corgosinho (2014, p. 176) –, principalmente no que se refere ao seu atuar extrajudicial

frente à população – no que se inclui a educação em direitos, ou mesmo como ponte de diálogo com o poder público ou econômico. Ora, se “quem está no poder de representação não pode ser igual a todos” (SANTANA; GERHARD; MAIA; 2015) – pois múltiplos são os interesses a serem representados em uma democracia, sendo por vezes até incompatíveis – então é certo que a Constituição de 1988, republicana e democrática, necessitava de um instrumento de poder que pudesse permanentemente ser portador da voz dos interesses desprezados ou diminuídos por outras funções e poderes do Estado brasileiro. O instrumento estatal de inclusão democrático-discursiva

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KNOW HOW AMÉLIA SOARES DA ROCHA

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(GERHARD; MAIA, 2015) dos excluídos de representação e voz nos cenários (judiciários ou não) debatedores do poder foi exatamente a figura da Defensoria Pública. Até porque nenhum particular poderia ser compelido a tanto, pois se trata de função do poder público a ser desenvolvida nas democracias efetivas e nem poderia sê-lo pelo Ministério Público, já que, muitas vezes, justamente por estar investido da sua função pública de Estado-acusação não tem como adequadamente enxergá-la e, se a enxergasse, não poderia lutar sem comprometer sua necessária parcialidade em favor da sociedade abstratamente considerada. Do Tribuno da Plebe ao Estado defensor, tem-se a reiteração de um contrapoder dentro do poder – como bem registrou Amilton Bueno de Carvalho (com lastro em Daniel Lozoya):

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verdade absoluta (Bauman), que o poder necessariamente é mentiroso (Heidegger). Ao contrário, a Defensoria deve ser contrapoder (Daniel Lozoya), limitadora do abuso do poder, parceira do débil! (CARVALHO, 2015, g.n.).

Por fim, é preciso estruturar o Estado defensor na qualidade de instância de contrapoder e porta-voz das minorias excluídas e esquecidas, além de respeitá-la como função político-jurídica geralmente contramajoritária no cenário constitucional brasileiro, com o escopo maior de preservar direitos fundamentais dos indivíduos e coletividades socialmente excluídas – mormente os princípios do contraditório e da ampla defesa. Sem isso, a literal função de expressão do regime democrático (art. 134, CF) estará condenada ao fracasso ou à insuficiência constitucional. Do Tribuno da Plebe ao Estado defensor, a expressão de um regime republicano e mais democrático repousa agora, como função estatal, na figura estatal do defensor público – que se abram as passagens e não se fechem os ouvidos. Que se permita uma realidade mais justa e feliz!

Aliás, a Defensoria que sonho não quer ser poder, não quer estar ao lado do poder, não quer chegar próximo do poder, não pode ser poder, ela tem claro que todo o poder tende insuportavelmente ao abuso, que o poder “imbeciliza” (Nietzsche), que o poder não suporta a alteridade, que o poder necessita, em consequência, de

NOTA 1 O leitor não deve estranhar o uso do termo “magistrado” para um não julgador. Apesar de a tradição brasileira não transmitir com intensidade a referida informação, o termo “magistratura” foi usado na história ocidental para designar cargos destacados de função político-social e jurídica. Mais recentemente, pode-se citar o Ministério Público como magistratura em pé (Portugal) e magistrature debout (França), revelando a potencialidade do uso da expressão para identificar carreiras com elevado grau de autonomia e feições político-sociais. Prefere-se as expressões “magistratura postulante” e “magistratura judicante” aos termos mais clássicos, como “magistratura em pé” e “magistratura sentada”, respectivamente, porquanto mais adaptado à realidade do sistema de justiça brasileira.

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AMÉLIA SOARES DA ROCHA é Defensora Pública Estadual (CE) e Professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, bacharel em direito pela Universidade Federal do Ceará, especialista em direito privado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e mestre em políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Membro eleita do Egrégio Conselho Superior da Defensoria Pública do Ceará (mandato 2014-2016).

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REFERÊNCIAS CARVALHO, Amilton Bueno. Defensoria Pública: entre o velho e o novo. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-entre-o-velho-e-o-novo-por-amilton/>. Acesso em: 15 jun. 2015. CRETELLA JR., J. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2001. GALLIEZ, Paulo. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. GERHARD, Daniel. MAIA, Maurilio Casas. O defensor-hermes e amicus communitas: O 4 de junho e a representação democrática dos necessitados de inclusão discursiva. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-defensor-hermes-e-amicus-communitas-o-4-de-junho-e-a-representacao-democratica-dos-necessitados-de-inclusao-discursiva-por-daniel-gerhard-e-maurilio-casas-maia/>. Acesso em: 15 jun. 2015. CORGOSINHO, Gustavo. Defensoria Pública: princípios institucionais e regime jurídico. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2014. GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. MAIA, Maurilio Casas. Um grito amazonês pelo fim do apartheid linguístico. Disponível em: <http://www.adepam.org.br/um-grito-amazones-pelo-fim-do-apartheid-linguistico,artigo18.html>. Acesso em: 15 jun. 2015. PINHEIRO, Ralph Lopes. História resumida do direito. Rio de Janeiro: Thex Editora, 2001. ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013. SANTANA, Edilson. GERHARD, Daniel. MAIA, Maurilio Casas. Direito para quem? Disponível em: <http://justificando.com/2015/06/11/ defensoria-paratodos-direito-para-quem/>. Acesso em: 15 jun. 2015.

MAURILIO CASAS MAIA é Defensor Público Estadual (AM) e professor (FD/UFAM), Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Doutorando (UNIFOR). Pós-Graduado lato sensu em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” e em “Direitos Civil e Processual Civil”. Colunista no Site Empório do Direito.


GESTÃO DE NEGÓCIOS PAULO VINÍCIUS DE CARVALHO SOARES

NOVO CPC DIFICULTA GESTÃO DE CARTEIRAS JURÍDICAS novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) traz um novo desafio para a advocacia empresarial e para os gestores de carteiras jurídicas das corporações à medida que este novo diploma legal autoriza o magistrado da causa a prolatar sentenças parciais durante o curso de um processo (arts. 355 e 356). É sabido que os departamentos jurídicos das empresas, bem como os administradores de negócios que não possuem departamento jurídico interno, cada dia mais, se preocupam com a precisão dos relatórios de contingência enviados pelos escritórios parceiros, a fim de ajustarem a sua provisão tanto pela análise de risco como também em razão da previsibilidade de desembolso. A maioria das empresas utiliza o método de análise de cada processo, sem a segregação da avaliação do risco pelos pedidos contidos na ação, confiando na análise global de cada processo pelos escritórios de advocacia de acordo com, por exemplo: (I) critérios de experiência (média de condenações em determinado estado da Federação, posicionamento de órgãos acerca do tema debatido, etc.); ou (II) a fase processual da ação em análise. Com tais dados passa-se a aplicar os critérios de contingência, determinando-se se o risco da empresa com determinada ação é provável, possível ou remota (FASB – Financial Accounting Standards Board), dentre outros critérios adotados. Todavia, um novo cenário se apresentou à advocacia empresarial e aos gestores de carteiras jurídicas com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que colocou uma importante questão quanto à metodologia de análise da contingência dos processos. De acordo com os arts. 355 e 356, o novo código permite ao magistrado da causa a prolação de sentenças parciais durante o curso do processo. Ou seja, alguns pedidos feitos pelo autor da ação podem ser julgados antes de outros, uma vez que o juiz pode entender que são mais simples de serem julgados em comparação àqueles

que demandam a produção de provas, por exemplo (art. 355, inciso II do CPC). Temos uma alteração relevante quanto ao conceito de sentença estabelecido entre o CPC de 1973 e o CPC de 2015. No antigo Código Civil, a sentença consistia no último ato processual, estabelecendo um fim ao processo, podendo o juiz se manifestar, ou não, sobre o mérito da causa. Já pelo novo Código, o conceito de sentença se modifica e se amplia. Temos decisão final de mérito ou interlocutória de mérito, uma vez que a coisa julgada passa a ter formação progressiva, passa a ser fatiada. De acordo com art. 203 do NCPC, “sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”; definindo Decisão interlocutória como sendo “todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no § 1o”. Neste sentido, a adoção da prática de análise da contingência de um processo de forma global, sem a análise do risco por pedidos, tende a prejudicar a análise do risco do processo, já que um pedido que venha a ser objeto de uma sentença parcial possa vir a ser executado antes dos demais (art. 356, § 2º do Novo Código de Processo Civil), levando a um desembolso por parte das empresas em descompasso com os demais pedidos, os quais podem nem ter sido julgados até o momento da execução. Diante deste cenário, a adoção de uma metodologia de análise de risco segregada por pedidos passa a ser a forma mais precisa para se garantir a provisão de valores com expectativa real de desembolso para a empresa, impedindo-se: (I) a imobilização de capital desnecessária, se avaliado o processo na totalidade, tomando-se como base o risco de acordo com o estágio processual do pedido que estiver sendo debatido de forma mais avançada no processo; bem como (II) eventuais surpresas com execuções de pedidos que tenham sido objeto de sentença parcial.

PAULO VINÍCIUS DE CARVALHO SOARES é advogado e Diretor do Contencioso da Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA).

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EXPRESSÕES LATINAS

VICENTE DE PAULO SARAIVA

ACTIO REVOCATORIA [PAULIANA] ção revocatória (revogatória) [pauliana]. Isto é: Ação para defender-se da fraude contra credores. (Cumpre esclarecer que revocatória é um adjetivo derivado do verbo revocare, deste mantendo os dois sentidos, entre si conexos: o de “revogar/anular” [o ato fraudulento] e, por isso, o de “trazer de volta/recuperar” [o bem alienado ou gravado fraudulentamente]; e que [pauliana] é vocábulo derivado do substantivo Paulus (Paulo), nome do pretor romano a quem se atribui a criação desta ação revocatória, denominação esta [pauliana] encontrada uma única vez nas fontes, nomeadamente no D. 22, 1, 38, 4.) Em defesa dos atos praticados em fraude contra os credores (in fraudem creditorum, no direito clássico romano o pretor concedia os seguintes meios (embora controverso seu alcance, ao que parece): uma restitutio in integrum (restituição por inteiro/integral = restabelecimento ao estado anterior) [Instas. 4, 6, 6] – pela qual se anulava o ato lesivo aos credores; e um interdictum fraudatorium [D. 42, 8, 1, par.] (interdito para reprimir a fraude) – pelo qual o beneficiário tinha de restituir o bem recebido. Justiniano fundiu os dois meios na presente actio revocatoria (expressamente desenvolvida no D. 42, 8) – que tinha, como pressupostos: 1º) a presença de dano (eventus damni) em desfavor dos credores, pelo gravame dos bens ou sua transferência a terceiro(s); 2º) o conluio fraudulento/o ajuste da fraude (consilium fraudis), mediante a intenção ou pelo menos a consciência do alienante de estar prejudicando seus credores; e 3º) o conhecimento da fraude (scientia fraudis), pelo terceiro beneficiário, de que o transmitente se encontrava em estado de insolvabilidade. A legitimação ativa da actio revocatoria era do curator bonorum, isto é, do administrador provisório dos bens do executado (D. 42, 8, 1, par.), para que este não os malbaratasse; e, na omissão daquele, provavelmente dos credores prejudicados, também. Legitimados passivos, o autor da fraude (id., ib.) e seus beneficiários (D. 42, 8, 10, par.). A ação devia ser exercitada dentro de um ano, a partir do delito (D. 42, 8, 1, par. e 10, par.). Nossa ação revocatória se pauta sobre os mesmos pressupostos e fins dos previstos no direito romano: a revogação do ato pernicioso e a reversão dos bens ou proveitos em favor do acervo, quer objeto da transmissão

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gratuita do bem ou do perdão da dívida, quer da alienação onerosa ou garantia indevida, que resultaram em mero prejuízo não intencional para os credores ou em vítimas de um planejado conluio fraudulento. O Código Civil brasileiro atual, em seus arts. 158/165, considera fraude contra credores primeiramente aqueles atos de transmissão gratuita de bens (como a doação) ou de remissão de dívida (como o perdão), quando o devedor já se encontrar em estado de insolvência, ou quando em tal se tornará em decorrência desses mesmos atos (CC, art. 158). Prescinde-se, então, de qualquer outra prova senão a da insolvência, isto é, de que o devedor praticou os atos em estado de insolvência ou a esta conducentes, não se exigindo que o devedor tenha tido o animus nocendi (a intenção de prejudicar), propriamente, nem que os beneficiários tenham conhecimento daquela. Esse estado de insolvência acha-se definido como aquele em que os débitos forem de valor superior ao dos bens do devedor (CPC, art. 748). Legitimados ativos serão apenas os credores que já o eram ao tempo dos atos prejudiciais, nomeadamente os credores quirografários prejudicados e os com garantia real insuficiente (CC, art. 158 e §§ 1º e 2º). Por sua vez, “Serão anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante” (CC, art. 159). É que nos negócios onerosos, se o devedor cede algo de seu patrimônio, recebe valor equivalente da outra parte, evidenciando um conluio malicioso. Por isso, “Se o adquirente dos bens do devedor ainda não tiver pago o preço, e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo com a citação de todos os interessados. [...] Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real” (CC, art. 160 e par. único). Para ambos os casos, portanto, só as respectivas consignações ressalvarão aos adquirentes a opção por manterem os bens. A ação, nas três hipóteses acima, tem, como legitimados passivos, tanto o devedor insolvente, como o participante da estipulação fraudulenta ou terceiros subadquirentes de má-fé (CC, art. 161), mas não indiferentemente de qualquer deles, devendo o feito ser especificamente distribuído contra todos os enumerados acima, havendo jurisprudência entendendo ser o caso de litisconsórcio necessário (RT 106/214; 447/147).


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Uma quarta hipótese de fraude contra credores é o da antecipação de pagamento em favor de credor quirografário, que deverá repor, em proveito do acervo, o que recebeu (CC, art. 162), devendo todos esses credores ser pagos na mesma oportunidade, a fim de não ocorrer detrimento para seus companheiros. Numa quinta hipótese, as garantias reais (CC, art. 1.419) – penhor, anticrese ou hipoteca – concedidas preferencialmente a algum dos credores, são consideradas fraudatórias aos direitos dos demais (CC, art. 163), numa presunção absoluta (juris et de jure), segundo alguns civilistas. Entretanto, legítimos se presumem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção do estabelecimento mercantil, rural ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família (CC, art. 164). Como a legitimidade de tais negócios constitui uma presunção juris tantum (relativa), pode não ser acatada pelo juiz, ante o caráter apenas enunciativo de sua enumeração. A fraude e a má-fé devem ser provadas – quando exigidas dentro das hipóteses enumeradas acima –, podendo sê-lo inclusive por indícios veementes –, não se dispensando ação para tal fim, eis que “é anulável o negócio jurídico por ... fraude contra credores” (CC, art. 171, II). Em suma: visto como a finalidade da ação revocatória é anular os negócios fraudulentos, ante o princípio de que os bens do devedor garantem seus débitos (CC, art. 942) – o que se acha expresso em direitos alienígenas, como no Código Civil francês (art. 2.093) e no italiano (art. 2.740) –, “a vantagem

resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores”, invalidade essa que atingirá apenas os direitos ou garantias preferenciais, se for o caso (CC, art. 165 e par. único). Cumpre advertir serem distintas a fraude contra credores (in fraudem creditorum) – objeto da presente ação pauliana – e a fraude de execução (in fraudem executionis), cujas hipóteses se encontram fundamentalmente previstas no art. 792, I/III do Código de Processo Civil. Esta é instituto de direito processual, qualificada e punida como crime (CP, art. 179); ademais, prescinde da prova de má-fé e de ação para anular o ato fraudulento, que se presume sê-lo pelo simples fato de ocorrer a alienação ou a oneração dos bens em pleno curso de uma ação, seja de conhecimento, seja executória, em ocorrendo aquelas hipóteses aludidas nos incisos I/III do nomeado art. 792 do Código Adjetivo, incluindo assim os “demais casos expressos em lei”, quais sejam.: o art. 856, § 3º do mesmo Código; o art. 185 do Código Tributário Nacional; o art. 261 do ant. Código Comercial; ou os arts. 216 e 240 da Lei nº 6.015, de 31/12/73 (Lei dos Registros Públicos). Por isso, na fraude de execução os referidos atos não são nem nulos nem anuláveis: são simplesmente ineficazes face a face com o credor preterido. Aliás, a fraude de execução é instituto desconhecido dos códigos processuais civis estrangeiros, remontando no Brasil ao Regulamento 737, de 25/11/1850, em seus arts. 492, § 6º e 494.

VICENTE DE PAULO SARAIVA é Subprocurador-Geral da República (aposentado) e autor da obra Expressões Latinas Jurídicas e Forenses (Saraiva, 1999, pp. 856).

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SAIBA MAIS LEONARDO DIAS DA CUNHA

COBRANÇAS INDEVIDAS DE IMPOSTO SOBRE DOAÇÕES REALIZADAS (ITCMD) COM FUNDAMENTO EM INFORMAÇÕES DE DOAÇÕES OBTIDAS DAS DECLARAÇÕES DO IMPOSTO DE RENDA ANÇAMENTO DE CRÉDITO DECAÍDO – COBRANÇA INDEVIDA – Atualmente, diante da crise financeira que assola o país tem-se verificado um aumento de cobranças tributárias indevidas pelas Fazendas Públicas da União, dos estados e dos municípios, inclusive com cobranças que não poderiam ser feitas por já ter ocorrido a decadência ou a prescrição.

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Tanto a decadência quanto a prescrição são causas de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156, inciso V, do Código Tributário Nacional (CTN). Para quem não é da área jurídica, registra-se que decadência no direito tributário, para o caso em questão, é a perda do direito de o Fisco estadual fazer a constituição do crédito tributário pela passagem do prazo de cinco anos, contados da data que teria como início para fazer o


“O crédito tributário do Fisco é extinto pela decadência ou pela prescrição. Uma vez extinto o débito tributário, o pagamento realizado é considerado indevido, sendo que os contribuintes que efetuarem o pagamento indevido do imposto têm o direito de receber de volta o que foi pago.”

lançamento de tal crédito. Já a prescrição é a perda do direito que o Fisco tem de promover a execução fiscal do crédito tributário devidamente lançado. A prática que tem se tornado comum pelos Fiscos estaduais é a de se fazer o lançamento de ofício do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações ITCMD1 (para alguns denominado ITCD), nos casos em que se tomou conhecimento de doação realizada tão somente por meio de informações descritas na declaração de Imposto de Renda (IR) dos contribuintes. Com base no art. 199 do CTN, as Fazendas Públicas dos estados têm celebrado convênios com a Fazenda Pública da União objetivando a prestação de mútua assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e para a permuta de informações. Dessa forma, os Fiscos estaduais têm acessado às declarações de Imposto de Renda dos contribuintes, com a finalidade de tentar identificar a ocorrência de algum fato gerador tributário que, eventualmente, não tenha sido devidamente informado.2 Embora o lançamento do crédito tributário de ITCMD seja feito por declaração do próprio contribuinte, quando não houver tal declaração o lançamento será realizado de ofício pelo Fisco estadual, conforme previsão no art. 149, II do CTN. Nesse passo, com embasamento nas informações conhecidas e a fim de tentar legitimar a cobrança de crédito tributário extinto pela decadência os Fiscos estaduais alegam que apenas tiveram conhecimento do fato gerador tributário do ITCMD a partir da data das informações obtidas pelo convênio firmado.

E, assim, antes do convênio com a Fazenda Pública da União não haveria a possibilidade de o Fisco estadual ter tomado conhecimento do fato gerador. Portanto, a data a partir da qual poderia ter sido realizado o lançamento é justamente a data em que o Fisco estadual tomou conhecimento do fato gerador. Contudo, olvida-se, propositadamente, que tal lançamento de ofício tem um prazo determinado em que poderá ser feito de forma válida. E, considerando-se que não tenha havido informação ao fisco, o art. 173, inciso I, do Código Tributário Nacional é categórico ao determinar que “O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”. Soma-se a isso, que as normas tributárias atinentes à decadência e à prescrição são normas gerais, de matéria que somente poderá ser tratada por meio de Lei Complementar Federal, como determina a Constituição Federal de 1998, em seu art. 46, inciso III, alínea b. Assim, não cabe aos Estados alterar as definições sobre decadência e prescrição de modo a favorecê-los. Ao se analisar sistematicamente a legislação tributária, verifica-se à impropriedade na interpretação dos Fiscos estaduais, que visando à arrecadação, mormente em tempos de crise, tentam de toda forma carrear verbas aos cofres públicos, mesmo com cobranças indevidas. Se prevalecer o entendimento indevido dos Fiscos estaduais, os contribuintes ficarão absurdamente à mercê da celebração de convênios, sendo indeterminado o prazo em que cada Fisco estadual poderá – ou não – ter acesso às informações de eventual ocorrência do fato gerador do ITCMD. A interpretação objetivada pelos Fiscos estaduais não tem respaldo em qualquer previsão normativa, uma vez que, ao contrário, descreve claramente o início da contagem do prazo decadencial. Frise-se que a celebração de convênio ou a sua falta não tem o condão de obstaculizar o início da contagem do prazo decadencial do Fisco. Dessa forma, a cobrança de ITCMD que estiver afetada pela decadência do lançamento ou a pela prescrição da cobrança será indevida. Ainda, no caso de cobrança indevida, importa mencionar dois pontos de extrema relevância: a possibilidade de protesto do débito tributário e a devolução do valor pago indevidamente.

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SAIBA MAIS LEONARDO DIAS DA CUNHA O PROTESTO 3 DO DÉBITO TRIBUTÁRIO INDEVIDO – MEDIDA PREVENTIVA A SER TOMADA PELOS CONTRIBUINTES – As cobranças indevidas pelos fiscos estaduais poderão causar inúmeros problemas para os contribuintes, pois, dependendo dos valores envolvidos, os débitos poderão ser protestados, o que certamente implicará graves prejuízos na utilização de créditos financeiros. Assim, mesmo que o contribuinte não tenha que pagar o débito cobrado, ao receber uma notificação para realizar o pagamento de crédito tributário acaba pagando o valor indevidamente cobrado, já que receia sofrer os graves transtornos que o protesto do débito cobrado poderá lhe causar, como restrição de crédito para o exercício de sua liberdade financeira, em vários casos envolvendo a própria atividade econômica realizada em nome de pessoa física, como nas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRELI). Assim, no caso de o contribuinte receber uma notificação de débito de ITCMD que entender ser indevido, recomenda-se que procure um advogado especialista para avaliar o débito cobrado e avalidade de sua constituição, pois se for indevido poderá ser interessante atuar preventivamente, antes que ocorra alguma cobrança por meio de execução fiscal ou por protesto, o que neste último caso poderá ser ainda mais prejudicial. PAGAMENTO INDEVIDO – REPETIÇÃO DO INDÉBITO TRIBUTÁRIO – Como já mencionado, o crédito tributário do Fisco é extinto pela decadência ou pela prescrição. Uma vez extinto o débito tributário, o pagamento realizado é considerado indevido, sendo que os contribuintes que efetuarem o

pagamento indevido do imposto têm o direito de receber de volta o que foi pago. Assim, havendo negativa do Fisco estadual em devolver o valor pago indevidamente, o contribuinte poderá se valer judicialmente dos meios processuais apropriados para fazer valer seu direito de restituição. CONCLUSÃO – De acordo com o exposto acima, é indevida a cobrança de crédito tributário de ITCMD já fulminado pela decadência ou pela prescrição, causas da extinção do crédito tributário. Como para determinados valores de débitos tributários os Estados poderão enviar a cobrança para protesto, faz-se necessário que tão logo o contribuinte seja notificado ou tome conhecimento da constituição de débitos indevidos atue preventivamente. Para tanto, recomenda-se a consulta a um profissional especializado para avaliar a validade da constituição do débito tributário exigido. De maneira preventiva, os contribuintes poderão fazer uso de medidas processuais judiciais, para evitar que haja prosseguimento de cobranças indevidas que poderão lhes causar graves prejuízos e impedimento de obtenção crédito para exercício de sua liberdade financeira, envolvendo, em vários casos, a própria atividade econômica realizada em nome de pessoa física, como nas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRELI). Por fim, se houver pagamento de créditos tributários já extintos pela decadência ou prescrição o contribuinte poderá buscar a devolução do valor pago indevidamente.

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NOTAS 1 À título de informação, via de regra, as legislações estaduais, no caso de doação determinam que o contribuinte do ITCMD será o beneficiário da doação realizada. Em Minas Gerais, atualmente é Lei nº 14.941/2003 que trata do ITCMD. E, conforme previsto em seu artigo 12, o contribuinte do imposto é o donatário, aquele que adquiriu a propriedade do bem pela doação e, a alíquota do imposto é de 5% (cinco por cento) do valor da doação realizada. 2 No caso de Minas Gerais, há o Convênio de Cooperação Técnica de 14 de outubro de 1998, conforme Ofício nº 446/2011/SRRF/ Gabin/Semac de 17 de agosto de 2011 que respaldaria o acesso pelo Estado de Minas Gerais às informações contidas na declaração de imposto de renda. 3 Em Minas Gerais há autorização legal (Lei nº 19.971/2011 e pelo Decreto Estadual nº 4.598/2012) para que Advocacia Geral do Estado (AGE) não ajuíze ações de cobrança judicial de crédito do Estado e de suas autarquias e fundações em determinados valores, observados os critérios de eficiência administrativa e de custos de administração e cobrança previstos em regulamento. O art. 2º do (Decreto Estadual nº 4.598/2012) descreve que o AGE está autorizada a não ingressar com o débito referente ao ITCMD inferiores à 5.5500 (cinco mil e quinhentas) Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais (UFEMG). Conforme a Resolução nº 4.841/2015 do Secretário de Estado de Fazenda de Minas Gerais, o valor de cada Unidade Fiscal do Estado de Minas Gerais (UFEMG), para o exercício de 2016 será de R$ 3,0109 (três reais, cento e nove décimos de milésimos). Assim, para débitos de ITCMD poderá haver o envio indevido do débito para protesto. Dessa forma, ao tratar das novas formas de cobrança dos créditos do estado e de suas autarquias e fundações, o regulamento possibilitou que os créditos tributáriospudessem ser remetidos para protesto, de acordo com o tipo de tributo e seu valor.

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LEONARDO DIAS DA CUNHA é Advogado Coordenador do Consultivo e Contencioso Tributário do Escritório Visão Empresarial Advogados e Consultores; Mestrando em Direito Tributário pela PUCMINAS, Especialista em Direito Ambiental, Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas.

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DIREITO E FICÇÃO MARA REGINA DE OLIVEIRA

TEMPOS MODERNOS E O PODER (IN)DISCIPLINAR vocábulo “interdisciplinaridade” surge de um neologismo que se refere a colaboração entre várias disciplinas conduzindo a interações, isto é, a uma certa reciprocidade de intercâmbios, de tal forma que, no final do processo interativo, cada disciplina saia enriquecida, podendo gerar a criação de uma disciplina interdisciplinar. Ela não é uma associação quantitativa, pois deve conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, fazendo a integração e a convergência depois de serem comparados e julgados. Neste sentido, conforme ensina Hilton Japiasu (1976, p. 32 e 33), vai além de um estudo multidisciplinar e ainda de uma pesquisa multidisciplinar, que agrupam disciplinas sem fazer as devidas relações ou sem realizar uma integração nova.1 O estudo interdisciplinar, que viabiliza o diálogo entre direito e arte, está presente no campo do enfoque teórico zetético jurídico, como forma eficaz da expansão da pesquisa jurídica. Ao contrário dos estudos teóricos dogmáticos, esta forma de reflexão não se ocupa das questões práticas de decidibilidade de conflitos. Em caráter distinto, está vinculado com a ampliação crítica dos conhecimentos em torno do fenômeno jurídico, focando questões sociais, políticas, filosóficas e também estéticas. No entanto, como afirma Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 2), estes enfoques acabam por se relacionar, já que não é possível desenvolver uma hermenêutica dogmática prática, sem que haja uma visão do conhecimento de toda a complexidade que cerca o fenômeno jurídico. Daí a necessidade de valorizarmos um estudo interdisciplinar no seu campo temático.2 A proposta deste artigo é fazer uma aproximação crítica da ideia zetética de poder disciplinar, exposta por Michel Foucault, com a primeira parte do filme Tempos Modernos, de Charles Spencer Chaplin (1889-1977), mais conhecido por Charlie Chaplin. Nesta perspectiva, partimos do pressuposto de que o cinema apresenta inúmeros conceitos-imagens que podem ser relacionados aos conceitos teóricos da filosofia escrita, que vão além do mero exemplo, ao possibilitarem uma expansão do próprio raciocínio crítico sobre os temas estudados. É o que veremos a seguir.

CINEMA E PENSAMENTO FILOSÓFICO: UM DIÁLOGO POSSÍVEL – A palavra zetético (zetein, em grego) está de certa forma afastada do senso comum, mas significa investigar, perquirir. Já a palavra dogmática (dokein, em grego) liga-se ao doutrinar e está muito mais presente no senso comum teórico do jurista, embora boa parte dos textos não se dedique a uma explicitação rigorosa do seu significado, que é, de forma equivocada, assumido como um sinônimo de teoria jurídica, em seu sentido amplo. Mais uma vez, torna-se indispensável à leitura crítica do texto de Ferraz Jr., a fim de que se evitem mal entendidos. Segundo o referido autor (Op. cit., p. 40), em um sentido genérico, apesar de existir uma importante conexão entre os dois enfoques – toda análise, apesar de acentuar um, tem, de fato, os dois enfoques –, afirmamos que eles têm finalidades imediatas distintas, que se acentuam no estudo do Direito.3 O enfoque teórico zetético investiga um problema tendo em vista preocupações cognitiva e especulativa infinitas, visando a ampliação dos conhecimentos humanos. Por isso, do ponto de vista metodológico, acentua o aspecto pergunta, problematizando, de uma forma aberta, todos os conceitos analisados, considerando a questão da verdade ou daquilo que as coisas são (Ser). Para tanto, parte de premissas, evidências que podem ser seguras (leis) ou relativas (hipóteses), mas que devem ser verificados e comprovados como verdadeiras ao longo do mutável processo histórico. Como as premissas, apesar de funcionarem como ponto de partida, também participam do processo investigativo, elas podem ser substituídas ao longo da pesquisa, caso se mostrem equivocadas ou inapropriadas.4 Embora toda pergunta almeje encontrar a sua resposta efetiva, se houver impossibilidade cognitiva para o feito, questões podem ficar sem resposta com toda a naturalidade, já que as premissas é que devem estar adequadas ao problema analisado, com abertura crítica total. Por esta sucinta caracterização, vemos que este enfoque tem um alcance bastante amplo, historicamente, surgindo com o evoluir do pensamento filosófico, que embasou a racionalidade científica ocidental. Hoje, formas de raciocínio zetético compõem todas as ciências em geral

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DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO

DIREITO E FICÇÃO MARA REGINA DE OLIVEIRA

“O exercício deste poder disciplinar não pode ser ilimitado e abusivo, sob pena de anular justamente aquilo que visa obter: o aumento de sujeição às relações de poder no trabalho e à obediência jurídica, já que potencializa as capacidades laboral e intelectual. Neste sentido, a análise dos conceitos-imagens do filme não foi apenas um exemplo da teoria de Foucault, possibilitando o seu próprio desenvolvimento interdisciplinar em uma reflexão que ultrapassa o que tínhamos no começo.” (humanas, exatas e biológicas) e o próprio raciocínio filosófico, que, desde a Antiguidade greco-romana vem constituindo um pensamento especulativo questionador do senso comum imposto, sem compromissos diretos com a ação.5 Mais recentemente, aproximam-se teorias críticas do Direito com obras artísticas, com o teatro, a literatura e o cinema. Morin (2000, p. 49) considera que é no romance, no teatro, no filme que percebemos que o racional homo sapiens é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, o emotivo homo demens, a existência revela a sua miséria e sua grandeza trágica, com os riscos do fracasso, do erro e da loucura. No romance ou no espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme nos leva a compreender o que não compreendemos na vida comum, onde percebemos os outros de forma exterior, ao passo que na tela e nas páginas do livro eles surgem com todas as dimensões, subjetivas e objetivas.6

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No pensamento de Morin, a compreensão humana nos alcança quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos que têm tristezas e alegrias. Quando reconhecemos no outro os mecanismos egocêntricos de autojustificação que estão em nós mesmos. É a partir dela que se pode lutar contra o ódio e a exclusão. Toda a percepção é uma tradução reconstrutora realizada pelo cérebro, a partir de terminais sensoriais. Nenhum conhecimento pode dispensar interpretação. Cada um pode produzir a mentira para si mesmo, através de um egocentrismo justificador e da transformação do outro em bode expiatório de nossas frustações.7 Na visão do filósofo Júlio Cabrera (2006, p. 17), em consonância com Morin, para que possamos compreender um problema filosófico não basta entendê-lo, racionalmente, como conceito teórico/semântico. Temos de vivê-lo, senti-lo, ser afetados por ele, como uma experiência emocional,


não empírica, que aguce a nossa sensibilidade cognitiva, próxima de uma dimensão que poderíamos chamar de pragmática-impactante, a qual deve produzir algum tipo de transformação cognitiva. Embora a forma literária tenha preponderado na história do pensamento filosófico, nada impediria que se viabilizasse uma problematização filosófica através da análise de conceitos-imagens do cinema, da fotografia ou da dança.8 Mais adiante, ele levanta a polêmica hipótese de que o cinema seria uma linguagem mais apropriada do que a própria escrita nesta forma de pensar dos filósofos, que ele chama de logopáticos. Segundo Jean-Claude Bernadet (2006, p. 18), algumas questões humanas não podem apenas ser ditas e articuladas logicamente, devem ser apresentadas, sensivelmente, por meio de uma compreensão logopática, racional e afetiva, que longe de ser uma mera impressão psicológica, tem pretensão de verdade universal. Como forma de pensamento, ele é tão aberto como a filosofia dita literária, não existe uma definição que o alcance de forma absoluta.9 Nesta linha de raciocínio, percebemos como a temática do poder relacionada ao direito pode ser melhor compreendida a partir da perspectiva logopática do cinema. Faremos uma aproximação do pensamento de Michel Foucault com a parte inicial do clássico filme de Charlie Chaplin – Tempos Modernos. A NOÇÃO DE PODER DISCIPLINAR EM MICHEL FOUCAULT – A noção de poder é fundamental no pensamento de Foucault. Em sua genealogia, procurou desvendar a relação dos saberes constitutivos das ciências humanas, sua existência ou transformação com as relações de poder. Todavia, é preciso esclarecer que ele não elaborou, por assim dizer, uma teoria geral do poder, que o analisasse como sendo uma realidade autônoma, que pode ser estudada em termos universais. Para ele, não existe algo unitário e global chamado poder, mas sim formas díspares heterogêneas e em constante mutação. Ele não é uma coisa, mas uma prática social constituída historicamente, que não está presente unicamente no Estado. Sua análise ultrapassa, portanto, a concepção jurídica-liberal do poder político e as concepções marxistas. Neste sentido, ainda segundo Jean-Claude Bernadet (Op. cit., p. 181), as teorias jurídicas ocidentais tratam do poder soberano de duas formas: para mostrar que o soberano encarnava o corpo vivo da soberania e seu poder absoluto, visto como um direito fundamental, ou para demonstrar que este mesmo poder deveria se submeter a certos limites, ou seja, regras de Direito, que garantiriam a sua legitimidade. De um modo ou de outro, a partir da Idade Média, a teoria do Direito passa a ter por função legitimar o poder soberano de forma absoluta ou limitada.10 Todavia, no momento em que as teorias jurídicas, através de seu discurso, identificam a soberania como a principal questão política nas sociedades ocidentais, elas visam, basicamente, camuflar as relações de dominação (modelo Reich), garantindo os direitos legítimos

do soberano que “manda” e, portanto, a obrigação legal da “obediência” por parte dos súditos. O estudo de Foucault (1981, p. 191) percorreu o caminho inverso, pois privilegiou a análise da dominação, apontando como o Direito, visto em seu sentido global, ou seja, não apenas as leis positivadas pelo Estado, mas também os aparelhos e as instituições que o regulam e o aplicam, que o veiculam e põem em prática relações que não são de “opressão” (soberania), mas sim de “dominação” (controle). Esta não se refere a uma dominação global de uns sobre os outros, ou de um grupo sobre outro, mas às múltiplas formas de dominação difusa que se podem exercer na sociedade. Neste sentido, o poder não está localizado somente nas mãos do “soberano”, mas também presente nas relações entre os “súditos”, que estabelecem entre si relações de sujeição e controle, no interior do corpo social. O surgimento histórico das disciplinas acompanha o nascimento de uma arte do corpo humano que visa, não unicamente o aumento das suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torne mais obediente na medida em que o torna mais útil. Forma-se, então, o que o autor chama de “uma política das coerções”, que consiste num minucioso trabalho sobre o corpo, numa manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe, constituindo uma anatomia política, que é também uma mecânica de poder, pois ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que se façam o que se quer, mas para que se operem, como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina.11 Elas surgiram para ajustar a multiplicidade de homens a multiplicação dos aparelhos de produção, não só econômicos, mas, também, que produzem saber e aptidões escolares, bem como a produção de saúde dos hospitais e a produção destrutiva do exército. Para tanto, ela deveria reduzir a falta de utilidade dos fenômenos de massa: reduzir aquilo que, numa multiplicidade, faz com que esta seja muito menos manejável que uma unidade; diminuir tudo o que se opõe à utilização de cada um de seus elementos e de sua soma; reduzir tudo o que nela possa anular as vantagens do número; é por isso que a disciplina fixa; ela imobiliza ou regulamenta os movimentos; resolve as confusões, as aglomerações compactas sobre as circulações incertas, as repartições calculadas. Ela deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição e de uma multiplicidade organizada; deve neutralizar os efeitos do contra poder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-las: agitações, revoltas, organizações espontâneas conluios – tudo o que pode se originar das conjunções horizontais. A disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, os chamados “corpos dóceis”. Ela desempenha um papel ambíguo, pois, ao mesmo tempo, aumenta as forças do corpo (em termos

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DIREITO E FICÇÃO MARA REGINA DE OLIVEIRA econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Ela dissocia o poder, do próprio corpo, aumentando as suas aptidões, por um lado, e, por outro lado, invertendo a sua energia, a potência que poderia resultar disso em termos de aumento de poder, transformando-a numa relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, Foucault (Op. cit., p. 127) afirma que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada, através de um controle minucioso das suas operações.12 Para poder ajustar a multiplicidade de homens à multiplicidade dos aparelhos de produção, elas utilizam processos de separação e de verticalidade. Devem fazer crescer a multiplicidade como instrumento desse crescimento: extrair dos corpos o máximo de forças, no menor tempo gasto. Têm de fazer funcionar as relações de poder, não acima, mas na própria rede de multiplicidade, de maneira bastante sutil. Por isso, manipulam instrumentos de poder anônimos que pertencem à multiplicidade regimental. Os dois processos de acumulação, de homens e de capital, não podem ser separados. A vigilância hierárquica deve obrigar e induzir os efeitos de poder pelo jogo do olhar. Tem como modelo quase ideal o acampamento militar, onde todo o poder seria exercido somente pelo jogo de uma vigilância exata e cada olhar seria uma peça fundamental no seu funcionamento global. Durante muito tempo, este diagrama de poder serviu de modelo para a construção das cidades operárias, dos hospitais, das prisões e das casas de educação. Neste sentido, a arquitetura não existe mais para ser vista (palácios), nem para vigiar o espaço exterior (fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado. Ela deve tornar visível os que nela se encontram, a fim de que os indivíduos possam ser transformados em seres dóceis e úteis. De maneira similar, ainda segundo Focault (Op. cit., p. 157), nas fábricas e oficinas, também se organizou um tipo novo de vigilância, que passou a não se efetuar só sobre a produção, mas ao longo de todo o processo do trabalho, levando em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, sua rapidez, e seu zelo. A medida em que aumentaram o número de operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controle tornaram-se mais necessárias e mais difíceis. Não era mais suficiente o controle do mestre ao lado do aprendiz. O ato de vigiar passa a ser uma função definida, que deve fazer parte integrante do processo de produção. Assim tornou-se necessária a presença de um pessoal especializado, distinto dos operários, constantemente presente.13 O detalhado alcance da vigilância hierarquizada, contínua e funcional, deve sua importância às novas mecânicas de poder que traz consigo. O poder disciplinar, graças a ela, torna-se “integrado” à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se, assim, como um poder múltiplo, automático e anônimo, pois a vigilância se dirige aos indivíduos, de uma forma que seu funcionamento é de uma rede de relações

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de alto a baixo, mas também é um certo ponto de baixo para cima e para os lados; essa rede “sustenta” o conjunto e perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: Os fiscais também estarão perpetuamente fiscalizados. O poder, na vigilância hierarquizada das disciplinas, não se detém como uma coisa, e, portanto, não pode ser transferido como uma propriedade. Ele funciona como uma “máquina”, onde, embora sua organização piramidal lhe dê um chefe, é o aparelho inteiro que “produz” poder e distribui os indivíduos neste campo permanente e contínuo. Em princípio, não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos indivíduos que estão encarregados de controlar; e a absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se autosustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às técnicas da vigilância, a “física do poder”, o domínio sobre o corpo se efetua segundo as leis da ótica e da mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à violência. Segundo Foucault, o Panóptico de Bentham14 é a figura arquitetural ideal do exercício do poder disciplinar, em seu sentido amplo. Na periferia haveria uma construção na forma de um anel, e, no centro desta, uma torre, que teria grandes janelas que se abririam sobre a face interna do anel. A construção periférica seria dividida em celas que atravessariam toda a espessura da construção. Elas teriam duas janelas, uma para o interior, correspondendo à janela da torre, e outra para o exterior que permitiria que a luz pudesse atravessar a cela inteiramente. Se colocarmos um vigia na torre central, podemos, hipoteticamente, “trancar um louco”, um “doente mental”, “um operário” ou “um escolar”. As divisões do anel em elos separados resultam na invisibilidade lateral. Essa é a garantia da ordem. Se os indivíduos são condenados, não há perigo de um complô, de uma tentativa de evasão coletiva. O efeito mais importante do panóptico é induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que o expõe e que assegura o funcionamento automático do poder. Ele faz com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontínua em sua ação. Assim, quanto mais inútil for a atualidade de seu exercício, mais perfeita torna-se a relação de poder, pois o essencial não é que o preso seja de fato vigiado sem cessar, mas que ele se sinta vigiado. O poder deve ser visível, mas, ao mesmo tempo, inverificável. Todo o tempo, o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central, de onde é espionado. Por outro lado, ele nunca deve saber se de fato está sendo observado, mas apenas ter a certeza de que sempre pode sê-lo.15 Existe uma espécie de maquinaria que automatiza o poder e que tem, em seu princípio, uma certa distribuição espacial de corpos, das superfícies das luzes, dos olhares, numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual


se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais as marcas pelas quais se manifesta no soberano são inúteis. Há uma maquinaria que assegura a dessimetria, o desequilíbrio, a diferença. Não importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos suas visitas e seus criados.16 Neste sentido, o autor afirma que quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder, fazendo-as funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis: torna-se princípio de sua própria sujeição. Em consequência disso, mesmo o poder externo, por seu lado, pode se aliviar de seus fardos físicos e tender ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados – uma vitória perpétua que evita qualquer afrontamento físico e está sempre decidida por antecipação.17 Qualquer membro da sociedade terá direito de constatar, com seus olhos, como funcionam as escolas, os hospitais as fábricas e as prisões. Não há risco do crescimento do poder devido à máquina panóptica degenerar em tirania, pois o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado. Com o poder aumentando as suas forças, ele poderá fazer crescer o da sociedade em vez de confiscá-lo ou refreá-lo. A majoração produtiva do poder só pode ser assegurada se, por um lado, ele tem possibilidade de se exercer de maneira contínua nos alicerces da sociedade, até seu mais fino grau. E também se ele funcionar fora daquelas formas violentas, súbitas, descontínuas que estão ligadas ao exercício da soberania. Ela organiza o poder de modo a tornar mais vigorosas as forças sociais, aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, e elevar o nível da moral pública.18 Estas disciplinas, que a era clássica elaborou em locais precisos e relativamente fechados, como casernas, colégios e que poderiam ser imaginadas na escala limitada de uma cidade em estado de peste, foram transformadas, por Bentham, numa rede de dispositivos que estariam em toda a parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem nenhuma lacuna ou interrupção. Temos, de fato, uma extensão progressiva dos mecanismos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, através do corpo social. A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder que se exerce, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia do poder”, uma tecnologia. E pode ficar a cargo de instituições especializadas, (como as penitenciárias ou as casas de correção do século XIX), de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado (as casas de educação e os hospitais), ou de instâncias preexistentes que nela encontram maneira

de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder. As próprias relações familiares, essencialmente na célula pais-filhos, se “disciplinaram”, absorvendo, desde a era clássica, esquemas externos escolares militares. Depois também médicos, psiquiátricos, psicológicos, que fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal. Pode-se falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar, nesse movimento que vai das disciplinas fechadas até o mecanismo, indefinidamente generalizável, do panoptismo, que se espalha por todo o meio social.19 A (IN)DISCIPLINA DE CARLITOS NO FILME TEMPOS MODERNOS – Tempos Modernos é um clássico do cinema silencioso, escrito e dirigido pelo gênio Charlie Chaplin, em 1936, que também aparece na pele do famoso “vagabundo Carlitos”, neste caso, figurando como operário numa grande indústria capitalista chamada de Electro Steel Corp. Embora seja uma obra muito anterior ao livro Vigiar e Punir, verificamos que a obra fílmica, através de uma narrativa cômica, antecipa vários elementos que caracterizam conceitos-imagens sobre a ideia de poder disciplinar no trabalho dos operários, que garante o funcionamento da instituição empresarial, da maneira pensada por Michel Foucault. Logo na abertura, com a simbólica imagem do relógio ao fundo, aparece a irônica mensagem: Tempos modernos. A história da indústria individual. A cruzada da humanidade em busca da felicidade. A imagem do relógio remete ao estrito controle disciplinar do tempo, que vai figurar como eixo central da narrativa. A seguir, um rebanho de ovelhas, em movimento conjunto, é associado à massa de pessoas que saem, com rapidez, do metrô e se dirigem com agilidade e obediência assertiva à empresa. São os chamados “corpos dóceis dos operários. Dentro da empresa, o cenário ficcional construído por Chaplin não é realista para a época, pois, além do maquinário empresarial sofisticado, antecipa toda a vigilância feita através de câmeras discretas que dominam, hoje, as sociedades capitalistas. Rapidamente, somos apresentados ao presidente da empresa, que parece desempenhar uma única função panóptica: observar a todos, sem ser visto, através de câmeras de vigilância, que alcançam os diversos ambientes de produção da empresa, garantindo um amplo espaço de visibilidade e sujeição dos empregados. Nos intervalos entre uma observação e outra, a fina ironia de Chaplin destaca o caráter lúdico e não laboral das tarefas do presidente, que, calmamente, monta um quebra-cabeça ao mesmo tempo em que lê um gibi. Sua realidade tranquila contrasta com a penúria vivida pelos operários em sua rotina de trabalho, na constante corrida de produzir mais e de forma eficiente, no menor tempo possível. A tela panóptica do presidente não é uma tela de observação passiva, mas disciplinar, uma vez que garante o que chamamos de ajuste de multiplicidade de homens à multiplicidade dos aparelhos de produção, extraindo dos corpos o máximo de

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DIVULGAÇÃO

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"Ao sair das engrenagens, o operário Carlitos não é mais o mesmo, seu homo demens vem à tona. O gesto repetido de apertar o botão está presente, mas aparece de forma totalmente desconectada e desconforme ao interesse da produção capitalista. A compulsão de apertar o botão é indisciplinada, é lúdica e dispersa, voltada para objetos que se assemelham ao industrial, mas que dele não fazem parte, como o botão presente em roupas femininas, por exemplo." forças, no menor tempo gasto. Não é por acaso que o presidente ordena um primeiro aumento de velocidade na produção. Na fábrica, percebemos o enorme esforço e a agonia do personagem Carlitos, no ato mecânico e repetido de apertar parafusos em série numa esteira em movimento cada vez mais rápido. performance seu desempenho e o de seu colega são claramente inspecionados por um funcionário específico (inspetor). Depois que o presidente ordena um segundo aumento na velocidade das máquinas, uma cena emblemática ocorre no momento em que Carlitos faz uma pequena pausa em suas tarefas. Percebemos sinais claros de que houve uma disfunção no ajuste de suas mãos a maquinaria da esteira, ou mesmo no regular disciplinar de seus gestos: ele perdeu o domínio sobre seus movimentos e não consegue parar de repetir o ato de apertar o parafuso com as mãos, mesmo depois de acessar o seu trabalho. Bate o ponto para formalizar o seu intervalo e vai fumar no banheiro, para descansar, onde pensa ter privacidade, mas é surpreendido com o aparecer de uma grande tela na parede, onde o presidente ordena: volte ao trabalho! Não há qualquer espaço para a privacidade dentro do jogo óptico do olhar, que parece ilimitado, do ponto de vista da visibilidade do sujeito. Quando ele volta ao seu posto de trabalho, por alguns instantes, assume a posição de fiscal do colega que o substituiu, mostrando, claramente, a manifestação do poder disciplinar em rede automática que é incorporado por todos de forma indistinta. Na próxima cena, vemos o conceito-imagem do emergir de uma sofisticada criação ficcional de Chaplin: uma empresa apresenta ao presidente uma moderna máquina de alimentação, que possibilitaria ganhar tempo e diminuir os custos ao eliminar o horário do almoço, numa espécie de super disciplina tecnológica.

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Carlitos, que demonstra ter mais descontrole sobre seus movimentos, na hora almoço não consegue parar de repetir o movimento de apertar o parafuso, seguindo, compulsivamente, até os botões de roupa das funcionárias, é escolhido para testar o equipamento. Ele é preso a uma mesa giratória que é programada para controlar, automaticamente, a velocidade e a sequência com que os pratos de uma refeição completa são servidos, diretamente, na boca do cliente. No começo, a máquina de almoço parece ir bem, mas logo apresenta uma grave pane elétrica e se transforma numa espécie de máquina de tortura descontrolada, que chega a obrigar Carlitos a comer parafuso e a agredi-lo em sua face, depois de despejar nele toda comida de forma desordenada, Mais uma grande metáfora do potencial abusivo dos mecanismos disciplinares. O presidente diz que a máquina não funciona e desiste de comprá-la. No final da tarde do mesmo dia, chegamos a visualização de um conceito-imagem relativo a uma situação-limite dos pontos de vista moral e físico para o operário Carlitos. O presidente ordena, pela terceira vez, mais um aumento de velocidade na esteira de trabalho. Carlitos entra em um ritmo frenético de movimentos para alcançar a velocidade e, do ponto de vista metafórico, acaba perdendo o controle e deitando na sua esteira de trabalho e deslizando para dentro do maquinário. Neste espaço simbólico, temos a clara percepção de que o poder disciplinar foi tão abusivo, a velocidade tão aumentada acima do suportável, que ocorreu mais do que um ajuste de seu corpo às máquinas: o seu corpo praticamente se fundiu com as engrenagens. Isto resultará em destacadas mudanças no comportamento do operário. Ao sair das engrenagens, o operário Carlitos não é mais o mesmo, seu homo demens vem à tona. O gesto repetido


de apertar o botão está presente, mas aparece de forma totalmente desconectada e desconforme ao interesse da produção capitalista. A compulsão de apertar o botão é indisciplinada, é lúdica e dispersa, voltada para objetos que se assemelham ao industrial, mas que dele não fazem parte, como o botão presente em roupas femininas, por exemplo. A seguir, pela indisciplina subversiva que o acomete, ele desafia a competência técnica disciplinar e mexe de forma não adequada os botões do maquinário industrial, de maneira livre, anárquica e lúdica, chegando a sujar o rosto do presidente com óleo, que vai até o local da produção industrial para controlar o caos que se instaura. Ao final, é levado ao encarceramento em um hospital psiquiátrico. Qual a reflexão máxima proposta por Chaplin? Do nosso ponto de vista, está clara a intenção de mostrar que o exercício deste poder disciplinar não pode ser ilimitado e

abusivo, sob pena de anular justamente aquilo que visa obter: o aumento de sujeição às relações de poder no trabalho e à obediência jurídica, já que potencializa as capacidades laboral e intelectual. Neste sentido, a análise dos conceitos-imagens do filme não foi apenas um exemplo da teoria de Foucault, possibilitando o seu próprio desenvolvimento interdisciplinar em uma reflexão que ultrapassa o que tínhamos no começo. O poder disciplinar abusivo disseminado pelo presidente nos quesitos velocidade, impossibilidade de fazer intervalo e de ir ao toalete e da tortura do almoço pela máquina em pane elétrica criaram o operário (in)disciplinado. No entanto, a sua individualização final como “louco” acaba por inseri-lo num outro mecanismo disciplinar do hospital psiquiátrico., como uma tentativa reconstrutora de sua sujeição não apenas laboral, mas também política. Neste ponto, acaba a primeira parte da película e a nossa análise proposta.

NOTAS 1 JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 32 e 33. 2 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 2. 3 FERRAZ JR, Op. cit, p. 40. 4 FERRAZ JR, Idem, p. 40. 5 FERRAZ JR, Ibidem, p. 41. 6 MORIN, Edgard. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento, Cap. 4 Aprender a viver, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 49. 7 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 53. 8 CABRERA, Júlio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes, Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 17. 9 BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Editora Brasiliense, 2006, p. 18. 10 BERNADET, Op. cit., p. 181. 11 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 191. 12 FOUCAULT, Op. cit., p. 127. 13 FOUCAULT, Op. cit., p. 157. 14 Panóptico é um tipo de arquitetura carcerária idealizada para uma penitenciária ideal, que foi concebida pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, em 1785. 15 FOUCAULT, Idem, p. 178. 16 FOUCAULT, Ibidem, p.178. 17 FOUCAULT, Ibidem, p. 179. 18 FOUCAULT, Ibidem, p. 183. 19 FOUCAULT, Ibidem, p. 189.

ARQUIVO PESSOAL

REFERÊNCIAS BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Editora brasiliense, 2006. CABRERA, Júlio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, técnica, decisão, dominação, São Paulo, Atlas, 2004. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1981. JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 32 e 33. MORIN, Edgard. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. OLIVEIRA, Mara Regina de., O Desafio à autoridade da lei: a relação existente entre poder, obediência e subversão, Rio de Janeiro: Corifeu, 2006. TEMPOS MODERNOS. Direção: Charlie Chaplin. Costa do Castelo, 1936, 1 DVD, 83 minutos.

MARA REGINA DE OLIVEIRA é Mestre e Doutora em Filosofia do Direito, Professora da Disciplina Filosofia do Direito e da Disciplina Cinema e Filosofia do Direito. Professora Doutora, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo

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QUESTÕES DE DIREITO

JACKSON DI DOMENICO e RAYANI CARVALHO

NÃO INCIDE ITBI SOBRE IMÓVEL PENDENTE DE REGULARIZAÇÃO onforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, não há incidência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sobre imóvel sem registro no cartório de imóveis, pois “o fato gerador do ITBI só se aperfeiçoa com o registro da transmissão do bem imóvel”. Dessa forma, o tributo só incidirá após a regularização do imóvel, bem como com o registro no cartório de imóveis.

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DIVULGAÇÃO

Em muitos casos, o possuidor tem apenas a cessão de direitos do imóvel, garantido por um contrato de promessa de compra e venda. Isso ocorre geralmente quando o imóvel se encontra pendente de regularização ou de cumprimento de outras formalidades, sem as quais pode não ocorrer a transferência do bem. Seguindo esta mesma linha, entende-se que não incidirá ITBI sobre imóvel arrematado em leilão e que ainda não se encontre em condições de registro no cartório competente. Ocorre que alguns magistrados têm condicionado o pagamento do tributo para a expedição da carta de arrematação – documento que o habilita a usufruir totalmente do imóvel. No entanto, nesses casos, como não ocorreu ainda o fato gerador do tributo, não incide o ITBI. O STJ, em diversas oportunidades já se manifestou pela não incidência do imposto:

3. Recurso Especial não provido. (Resp 1.504.055/PB. Rel. MINISTRO HERMAN BENJAMIN. SEGUNDA TURMA. DJe de 06.04.2015). AGRAVO REGIMENTAL. TRIBUTÁRIO. ITBI. FATO GERADOR. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. RESILIÇÃO CONTRATUAL. NÃO INCIDÊNCIA. 1. A jurisprudência do STJ assentou o entendimento de que o fato gerador do ITBI é o registro imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. Somente após o registro, incide a exação. 2. Não incide o ITBI sobre o registro imobiliário de escritura de resilição de promessa de compra e venda, contrato preliminar que poderá ou não se concretizar em contrato definitivo. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 448.245/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJ de 09.12.2002, p. 309). TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – FATO GERADOR – REGISTRO IMOBILIÁRIO – (C. CIVIL, ART.530). A propriedade imobiliária apenas se transfere com o registro respectivo título (C. Civil, art. 530). O registro imobiliário é o fato gerador do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis. Assim, a pretensão

TRIBUTÁRIO. ITBI. FATO GERADOR. OCORRÊNCIA. REGISTRO DE TRANSMISSÃO DO BEM IMÓVEL. 1. O Tribunal a quo foi claro ao dispor que o fato

de cobrar o ITBI antes do registro imobiliário contraria o Ordenamento Jurídico (REsp. 12.546/HUMBERTO). (Resp 253.364/DF, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 16.04.2001, p. 104).

gerador do ITBI é o registro imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. A partir daí, portanto, é que incide o tributo em comento. 2. O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN) é a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente.

Quanto ao momento de ocorrência do fato gerador, o professor e doutrinador Luciano Amaro (2010, p. 299) pontifica, in verbis: O ato ou negócio jurídico que corresponda à descrição legal do fato gerador pode ter sua eficácia subordinada a evento futuro e incerto. Assim, ao ato (ou negócio) jurídico condicional pode ou não desde logo corresponder um fato gerador. [...] Se a condição é suspensiva, não há efeito na esfera tributária, enquanto não se realiza o evento de cuja implementação depende justamente a produção dos efeitos do ato ou negócio jurídico.

No mesmo norte, os doutrinadores Lenadro Paulsen e José Eduardo Soares de Melo (2012, p. 325-326) asseveram, in verbis: Argumenta-se que a materialidade da transmissão do ITBI encontra-se consubstanciada na situação jurídica que engloba a escritura pública lavrada no Tabelião de notas, e o seu posterior registro, no Registro de Imóveis. [...] Contudo, a jurisprudência opõe-se a esse procedimento, ao entender que “o fato gerador do imposto de transmissão de bens imóveis ocorre com a transferência efetiva da propriedade ou do domínio útil, na conformidade da lei civil, com o registro no cartório imobiliário; e que a cobrança do ITBI, sem obediência dessa formalidade, ofende o ordenamento jurídico

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QUESTÕES DE DIREITO

JACKSON DI DOMENICO e RAYANI CARVALHO

em vigor” (ROMS 10.650 – 2ª T – REL. MIN. PEÇANHA MARTINS, j.

mediante registro do negócio jurídico no ofício competente. Prece-

16.06.2000, DJU 1-E, de 04.09.2000, p. 13.)

dentes do STJ.

Não colhe a assertiva de legitimar-se a cobrança antecipada por

3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 215.273/

se tratar de fato gerador presumido (art. 150, § 7º, CF, acrescentado

SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe

por força da EC nº 3/93).

15/10/2012).

Com mais forte razão, o STJ também repeliu a exigibilidade do imposto em “promessa de compra e venda, contrato preliminar que

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ITCMD. DOAÇÃO. REPETI-

poderá ou não se concretizar em contrato definitivo, este sim ense-

ÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. DECISÃO JUDI-

jador da cobrança do aludido tributo” (Resp 57.641 – PE – 2ª T – Rel.

CIAL ANULATÓRIA DO ACORDO JUDICIAL QUE ENSEJOU O RECO-

MIN. ELIANA CALMON – j. 04.04.2000, DJU 1- E, de 22.05.2000,

LHIMENTO. ART. 165, II, DO CTN.

p. 91).

[...]

[...] Também decidiu que “a promessa de cessão de direitos à

2. O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN)

aquisição de imóvel não é fato gerador de ITBI”, “na concepção

é a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera

jurídica da Egrégia Primeira Seção, deste STJ, cujo fato gerador é o

mediante o registro do negócio jurídico junto ao ofício competente.

registro do respectivo título”. (AgRg no Resp 327.188-DF – 1ª T –

Nesse sentido, acerca do ITBI, já decidiu o STJ: REsp 771.781/SP,

Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS – j. 07.05.02, DJU 1, de

Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 29/06/07; AgRg no

24.06.02, p. 203).

AgRg no REsp 764.808/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 12/04/07.

Alguns municípios possuem leis específicas que dispõem sobre o ITBI. No caso do Distrito Federal, o Decreto nº 27.576/2006 trata apenas de imóveis regularizados e não disciplina sobre imóveis pendentes de regularização ou de registro em cartório, sendo este mais um motivo para o tributo não ser devido. Nesse sentido, no julgamento do REsp 1.504.055/PB, o Rel. Ministro Herman Benjamin pontificou:

[...] 6. Recurso especial não provido. (REsp 1236816 / DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Dje 22.3.2012). PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – ITBI – RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELA ALÍNEA B DO ART. 105, III, DA CF/88, APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA EC 45/2004 – ART. 148 DO CTN – SÚMULA Nº 211/STJ – ITBI – FATO GERADOR.

[...] O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN)

[...]

é a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera

3. O fato gerador do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis

mediante o registro do negócio jurídico no ofício competente. Nesse

ocorre com o registro da transferência da propriedade no cartório

sentido, acerca do ITBI, já decidiu o STJ:

imobiliário, em conformidade com a lei civil. Precedentes.

TRIBUTÁRIO. ITBI. FATO GERADOR. OCORRÊNCIA. REGISTRO DE TRANSMISSÃO DO BEM IMÓVEL. 1. Rechaço a alegada violação do art. 458 do CPC, pois o Tribunal a quo foi claro ao dispor que o fato gerador do ITBI é o registro

4. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido. (REsp 771781 / SP, Rel. Ministro Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 29.6.2007)”. (Resp 1.504.055/PB. Rel MINISTRO HERMAN BENJAMIN. SEGUNDA TURMA. DJe de 06.04.2015).

imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. A partir daí, portanto, é que incide o tributo em comento. 2. O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN) é a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera

Portanto, de acordo com o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, não incide ITBI de imóvel pendente de registro no cartório de imóveis ou em fase de regularização.

NOTAS 1 Código Tribunal Nacional – “Art. 35 – O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador: I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil”. 2 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. 3 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. 7 ed. rev. e atual., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

JACKSON DI DOMENICO é Advogado CEO da Domenico Advogados Associados; Conselheiro, Presidente da Coordenação das Comissões e da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB/DF. Diretor de Comunicação do Instituto dos Advogados do Distrito Federal – IADF. Especialista em Direito Público e Eleitoral. RAYANI CARVALHO é Advogada do escritório Domenico Advogados Associados. Membro da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB/DF. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

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CONSEQUÊNCIAS DA NÃO APLICAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA STRICTO SENSU COMO ULTIMA RATIO QUESTÃO DA SUPERLOTAÇÃO. ALTA PORCENTAGEM DE PRESOS CAUTELARES – Quanto aos dados da população carcerária, o último relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen)1, relativo a dezembro de 2014, revelou que a população penitenciária brasileira chegou a 622.202 pessoas em dezembro de 2014, Com isso, o Brasil tem a quarta maior população penitenciária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (2.217.000), China (1.657.812) e Rússia (644.237). Já no que diz respeito ao número de pessoas presas por grupo de 100 mil habitantes, o Brasil está na sexta colocação mundial, com uma taxa de 306,2 detentos por 100 mil habitantes, ultrapassada apenas por Ruanda, Rússia, Tailândia, Cuba e Estados Unidos. Além do mais, se considerado o número de pessoas que entraram e saíram do sistema penitenciário brasileiro ao longo de 2014, pelo menos um milhão de brasileiros vivenciaram a experiência do encarceramento, no período de um ano. Considerável parte da população carcerária é composta por presos provisórios, que perfazem 249.668 pessoas, contingente quase igual ao déficit de vagas no sistema, que é da ordem de 250.318 vagas. Através do estudo da questão principiológica no início do trabalho, percebe-se que a justificativa para o grande número de presos provisórios, principalmente os preventivos, estaria pautada na violação dos princípios da medida, fundantes do instituto jurídico. Dá-se ênfase à violação dos princípios da provisoriedade e da excepcionalidade. A verdade é que há um contrassenso, pois falta provisoriedade na prisão provisória na modalidade prisão preventiva stricto sensu. Afinal, o indivíduo fica cerceado de sua liberdade sem a previsão de quando será julgado e, possivelmente, solto pelo Judiciário, que não em poucos casos é moroso na análise da medida devido à falta de magistrados e ao grande volume de trabalho. Um problema

a ser resolvido é a ausência de prazo para a duração da segregação cautelar. Para exemplificar o exposto, digna de citação é a decisão do Relator Carlos Alberto Etcheverry, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO QUALIFICADO. EXCESSO DE PRAZO. PRISÃO PREVENTIVA REVOGADA. No caso dos autos, o paciente encontra-se segregado há mais de sete meses, aguardando a citação do corréu solto, sem qualquer ato de início da instrução. Em se tratando de réu preso, o processo deve ter tramitação prioritária e cisão imediata em caso de atraso na citação de outro acusado. A falta de magistrados e a carga invencível de trabalho não pode ser resolvida em desfavor do paciente, com o aguardo do desfecho processual segregado, pois cabe ao Estado propiciar meios de trabalho compatíveis com a celeridade processual que deve ocorrer em se tratando de réus presos. Ademais, o fato não é dotado de gravidade e o paciente é primário, com o que fica autorizada a revogação da segregação cautelar. ORDEM CONCEDIDA.2

Não obstante, a população carcerária do país também é justificada pela violação à excepcionalidade da medida cautelar. A prisão deve ser a ultima ratio, devendo ser dada maior ênfase na aplicação das medidas cautelares substitutivas à prisão, previstas na Lei nº 12.403/2011. Inclusive, foi esse o relatório do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária (GTDA) da Organização das Nações Unidas (ONU), que visitou o Brasil em março de 2013, atestando que o uso excessivo da prisão é uma das principais causas da superpopulação carcerária do país.3 Não observada a base principiológica, estruturante do instituto jurídico, consequentemente a sua aplicação será dotada de mácula e reflexos negativos serão trazidos para a ordem jurídica, que já são vistos: quarta maior população carcerária do mundo e, além do mais, com

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DIVULGAÇÃO

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“A solução do problema não está, verbi gratia, no aumento do número de vagas do sistema penitenciário, uma vez que a medida aplicada de forma errônea ensejará cada vez mais o aumento da população carcerária, trazendo as consequências negativas da superlotação, do contato entre presos definitivos e cautelares, da retaliação contra estes e do possível envolvimento com a criminalidade, formando “doutores do crime”.” um déficit de vagas para os encarcerados. Segundo dados do Ministério da Justiça, observe o gráfico comparativo do número de indivíduos no sistema prisional, o número de vagas e o número de presos provisórios, que foi elaborado pelo Depen e consta no relatório (p. 22).

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O CONTATO COM OS PRESOS DEFINITIVOS – O art. 300 do CPP estabelece que “as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal”. O dispositivo repete o art. 84 da Lei nº 7.210/1984, todavia, este ainda vai mais além, mencionando em seu § 1º que “o preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes” e em seu parágrafo único que “o militar preso em flagrante delito, após a lavratura dos procedimentos legais, será recolhido a quartel da instituição a que pertencer, onde ficará preso à disposição das autoridades competentes”. A redação anterior do art. 300 do CPP estabelecia que “sempre que possível, as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas”. Atualmente, segundo Guilherme de Souza Nucci (2013. p. 640), com a alteração trazida pela Lei nº 12.403/2011, percebe-se que a separação deles deixou de


ser uma opção, passando a ser um dever do Estado, uma garantia ao segregado cautelarmente para distanciá-lo da promiscuidade nefasta dos presídios e amenizar o trauma do indivíduo que, além de estar sofrendo a acusação de um processo crime, possa sofrer agressões e abusos no contato com aqueles já condenados definitivamente.4 Todavia, conforme a lição de Norberto Cláudio Pâncaro Avena (2014. p. 918), o dever do Estado na separação entre presos provisórios e definitivos não é cumprido. Não são poucos os casos em que, devido à ausência de vagas, os presos definitivos são levados aos centros de detenção provisória para ali cumprirem a pena. E é sabido que tal violação ao art. 300 do CPP implica constrangimento ilegal, podendo ensejar a adoção da prisão domiciliar para o preso preventivo.5 Acontece que problemas maiores são apresentados e o respeito ao art. 300 do CPP diante da realidade brasileira não se torna possível. A verdade é que não há como separar presos provisórios de presos definitivos se faltam vagas nos presídios, e não são poucas. No estado de Pernambuco, verbi gratia, a superlotação atinge a marca de 183,8%. O número de presos é de aproximadamente 31.242, sendo que o número de vagas é de 11.010. Quanto à quantidade de presos provisórios, a marca é de 60% dos condenados, ou seja, mais da metade. A quantidade de presos definitivos é estimada em 12.497, e a de presos provisórios é por volta de 18.745.6 Portanto, fica perceptível o uso excessivo das prisões cautelares, sendo que diante da situação caótica do sistema penitenciário o esperado seria que o seu uso fosse ainda mais restringido, e não realizado o caminho inverso. Como citado, em Pernambuco há mais de 6.200 presos provisórios do que definitivos, ou seja, não haveria a proporção atual de detentos se o instituto cautelar fosse aplicado conforme a lei determina e se a sua base principiológica fosse respeitada. RETALIAÇÃO CONTRA O PRESO PREVENTIVO – O cárcere é insalubre e indigno, uma vez que os seres humanos são amontoados como animais. Apesar de tudo, dispõe o art. 88 da Lei nº 7.210/1984:

e orientar o retorno à convivência em sociedade, bem como é dever do Estado garantir as assistências material, à saúde, jurídica, educacional e religiosa. Todavia, é nítido que a realidade difere bastante da lei, esta uma verdadeira utopia, posto que, além do desrespeito total aos dispositivos mencionados, o preso é vítima de agressões morais, físicas e, inclusive, sexuais. A verdade é que o tempo de pena cumprido pelo indivíduo não é somente o estipulado na sentença pelo juiz ou o tempo que ficou preso provisoriamente, isso porque o cárcere traz consigo “manchas” – sociais, físicas e psicológicas – que dificilmente sairão da vida do egresso. Exemplifica-se com a hipótese do sujeito que, para a “garantia da ordem pública”, é preso preventivamente sob a prática do crime do art. 217-A, do CP (estupro de vulnerável). Apesar de garantida na lei a separação dos demais presos definitivos, a realidade é outra, e o acusado é posto junto dos presos definitivos. Diante de uma situação como a apresentada, certamente o Código de Hamurabi é lembrado, pois a lei efetivamente aplicada ao preso preventivo é a de Talião, com a conhecida expressão “olho por olho, dente por dente”, pois o castigo é dado na mesma proporção do dano causado: o indivíduo é abusado sexualmente. Melhor dizendo, mesmo que futuramente o indivíduo tenha sido apenado com oito anos de reclusão (pena mínima em abstrato para o delito em tela), a pena efetivamente por ele cumprida será a soma desse período aos abusos físicos e sexuais sofridos no cárcere, ou seja, “manchas” levadas pelo resto de sua vida. O problema na utilização da prisão preventiva stricto sensu, cautelar como é, está na sua imposição para um indivíduo que, ao fim do processo, seja considerado inocente. Basta imaginar se o sujeito supramencionado não fosse condenado, mas absolvido. Inclusive, Concepción Arenal (2014. p. 918), citado por Odone Sanguiné, afirma que: [...] impor a um homem uma grave pena, como é a privação da liberdade; uma mancha em sua honra, como é a de haver estado no cárcere, e isto sem ter provado que é culpado e com a probabilidade de que seja inocente, é coisa que dista muito da Justiça.7

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Não obstante, dispõem os arts. 10 e 11 da Lei nº 7.210/1984 que a assistência ao preso e ao internado (e também ao egresso) é dever do Estado, com o objetivo de prevenir o crime

Portanto, além da difícil ressocialização do preso preventivo, pois para os leigos prisão preventiva stricto sensu e prisão definitiva são a mesma coisa (“preso” é “preso”, sem distinções), a imposição da cautelar para o indivíduo presumidamente inocente enseje consequências, muitas das vezes, irreversíveis em sua vida. É notório que o Judiciário desrespeita os direitos daquele cerceado de sua liberdade, dando mínimas condições para que seja possível a reabilitação e a reintegração na sociedade, assim ensejando a reincidência na prática de crimes pelo egresso.

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VADE MECUM FORENSE DIEGO WASILJEW O POSSÍVEL ENVOLVIMENTO COM A CRIMINALIDADE. “DOUTORES DO CRIME” – Um dos maiores problemas relacionados com a decretação da prisão preventiva stricto sensu está no possível envolvimento do preso cautelar com a criminalidade. Quando cerceado da liberdade pela medida cautelar, o indivíduo é colocado à mercê do tráfico de drogas e dos assassinatos, extorsões, abusos, entre outros crimes praticados dentro das penitenciárias e dos centros de detenção provisória. É notória a ausência do caráter corretivo da prisão, acontecendo o caminho inverso, qual seja, o de “faculdade do crime”. Como se não bastassem as consequências negativas trazidas pela medida, como a superlotação dos cárceres, há também o problema da existência interna de organizações criminosas que influenciam na vida do preso cautelar. O sujeito pode ter ingressado no sistema penitenciário como um trabalhador que, no deslize da vida, tenha praticado um crime. Todavia, permanecendo ali durante algum tempo, o mesmo trabalhador pode se tornar um integrante de facção criminosa, dada a difícil oportunidade de emprego que teria ao retornar à sociedade e devido ao fácil envolvimento com a criminalidade dentro dos presídios. Na mesma linha de pensamento pontifica Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 661):

hoje, que a prisão reforça os valores negativos do condenado. O

organização criminosa que, dentro de presídios, comandava um esquema internacional de tráfico de armas e drogas. Presos ligados à facção criminosa “Comando Vermelho” determinavam todos os passos de seus comparsas em liberdade e até negociavam propinas oferecidas a policiais paraguaios das celas nos presídios, assim ficando demonstrado o nível dos crimes praticados nos presídios brasileiros.9 A verdade é que o atual sistema prisional forma “doutores do crime”, e o contato do preso preventivo com tais especialistas das atividades criminosas o corrompe de vez. Quando egresso, as condições para conseguir um emprego são mínimas, restando a oportunidade para a reincidência na atividade delitiva, sendo esta presente desde quando o sujeito tem privada a sua liberdade. Portanto, um indivíduo pode ter a prisão preventiva stricto sensu decretada por comercializar drogas no bairro em que mora, com preenchimento dos requisitos do art. 312 do CPP. Ao ser preso cautelarmente, os contatos para a prática delitiva crescem e o sujeito adquire mais experiência para o comércio ilícito, havendo a possibilidade de praticar crimes mais graves e especializados do que aquele anteriormente praticado, como o tráfico internacional de drogas. Diante de hipóteses como a acima apresentada, resta claro que há a possibilidade de a prisão cautelar aperfeiçoar o indivíduo para o ato criminógeno. Tais situações são corriqueiras diante da realidade do sistema penitenciário brasileiro, explicitando mais um dos motivos para a importância da utilização da prisão preventiva stricto sensu como ultima ratio. Por fim, conclui-se com a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 664):

réu tem um código de valores distinto daquele da sociedade. Daí

A prisão, em vez de conter a delinquência, tem-lhe servido de

a advertência de Claus Roxin de “não ser exagero dizer que a

estímulo, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda

pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir

espécie de desumanidades. Não traz nenhum benefício ao apenado;

delitos, promove-os” (grifamos).8

ao contrário, possibilita toda a sorte de vícios e degradações. A li-

Como se percebe, há um grande questionamento em torno da pena privativa de liberdade, e se tem dito reiteradamente que o problema da prisão é a própria prisão. Aqui, como em outros países, avilta, desmoraliza, denigre e embrutece o apenado. Por isso, o centro de gravidade das reformas situa-se nas sanções, na reação penal; luta-se contra as penas de curta duração. Sabe-se,

teratura especializada é rica em exemplos dos efeitos criminógenos

Pode ser usada como exemplo de pena privativa de liberdade de curta duração esta citada pelo autor acima, a prisão preventiva stricto sensu. Quando o sujeito é preso cautelarmente, devido ao desrespeito ao disposto no art. 300 do CPP, o círculo de contatos para o crime cresce, conhecendo criminosos de todas as espécies. O leque de oportunidades que é aberto ao preso é grande, sendo possível até o envolvimento com o tráfico internacional de armas e drogas. A exemplo se tem a Operação Patente, deflagrada pela Polícia Federal, cujo objetivo era a desarticulação de uma

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da prisão. Enfim, a maioria dos fatores que domina a vida carcerária imprime a esta um caráter criminógeno, de sorte que, em qualquer prisão clássica, as condições materiais e humanas podem exercer efeitos nefastos na personalidade dos reclusos.10

CONSIDERAÇÕES FINAIS – A importância da utilização da prisão preventiva stricto sensu é observada pela análise da estrutura principiológica, uma vez que a medida deve ser utilizada excepcionalmente e as condições devem ser concretamente fundamentadas para a sua decretação, e não aplicada como regra para trazer a noção “falsa” de eficiência do Poder Judiciário e


motivada abstratamente. Prender para demonstrar ao povo que a Justiça é eficaz traz prejuízos ao apenado e ao próprio Estado que, inclusive, terá mais gastos com a medida. Igualmente, a medida deve ser revestida dos demais princípios que a fundam, particularmente pela provisoriedade: a ausência de prazo para persistir a cautelar enseja, não em poucos casos, o constrangimento ilegal, pois há situações em que o apenado fica preso cautelarmente durante meses sem haver qualquer diligência processual. Acredita-se que a Lei nº 12.403/2011 deveria ter trazido tal prazo e alguma sanção quando o tempo de segregação é extrapolado. Todavia, enquanto a questão não é resolvida a solução fica no bom senso e no devido respeito ao princípio estudado pelos magistrados. Estudadas as consequências da má utilização do mencionado instituto, é perceptível que o Brasil chegou a um determinado ponto em que a prisão se torna uma medida cada vez mais odiosa. O cerceamento da liberdade do indivíduo pelo Estado, que justifica a sua utilização para a garantia de uma das hipóteses do art. 312 do CPP, degrada a vida do indivíduo a ponto de o colocar sob as condições de um ambiente insalubre, onde seres humanos vivem amontoados como animais e, além do mais, facções criminosas comandam, se tornando a verdadeira faculdade do crime. Portanto, os números mostram que é necessário maior respeito ao instituto jurídico estudado, valorizando seus

princípios e seus aspectos procedimentais, para que os reflexos negativos não sejam maiores do que os já existentes. Como demonstrado, nota-se que a solução do problema não está, verbi gratia, no aumento do número de vagas do sistema penitenciário, uma vez que a medida aplicada de forma errônea ensejará cada vez mais o aumento da população carcerária, trazendo as consequências negativas da superlotação, do contato entre presos definitivos e cautelares, da retaliação contra estes e do possível envolvimento com a criminalidade, formando “doutores do crime”. Imperativo é encerrar com o ensinamento de Odone Sanguiné (2014, p. 27): O elemento decisivo para uma correta aplicação do instituto da prisão preventiva será a atitude de magistrados independentes na aplicação correta da lei, porém sem retirar a eficácia dos direitos fundamentais, enquanto juízes desatentos, insensíveis poderão semear um grande mal. O papel do magistrado em uma sociedade democrática somente terá legitimação constitucional se o juiz criminal observar as regras do Estado Democrático de Direito. Assim, a legitimação do Poder Judiciário se dará na mesma medida em que demonstre aptidão à tutela dos direitos fundamentais do homem, pois é função primordial do magistrado a observância das normas, princípios e garantias constitucionais.11

NOTAS 1 Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@download/file. Acesso em: 20 ago. 2016. 2 BRASIL. TJ – RS. HC Nº 70062908561 RS, Sétima Câmara Criminal, Relator: Carlos Alberto Etcheverry, Julgado em 29/01/2015. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/>. 3 NÚMERO de presos aumentou 29% nos últimos 5 anos. Revista Consultor Jurídico. 14/01/2014. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-jan-14/numero-presos-brasil-aumentou-29-ultimos-cinco-anos>. Acesso em: 22 jun. 2015. 4 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 12. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 640. 5 AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal Esquematizado. 6. ed., São Paulo: Método, 2014. p. 918. 6 VELASCO, Clara; D’AGOSTINO, Rosanne; REIS, Thiago. Número de presos dobra em 10 anos e passa dos 600 mil. Globo - G1. São Paulo, 23/06/2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/numero-de-presos-dobra-em-10-anos-e-passa-dos-600-mil-no-pais.html>. Acesso em: 23 jun. 2015. 7 ARENAL, Concepción apud SANGUINÉ, Odone. Prisão Cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 918. 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 661. 9 SUPERINTENDÊNCIA DA POLÍCIA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Dezessete investigados na Operação Patente são condenados. Rio de Janeiro, 14/02/2012. Disponível em: <http://www.dpf.gov.br/agencia/noticias/2012/fevereiro/dezessete-investigados-na-operacao-patente-sao-condenados>. Acesso em: 29 jun. 2015. 10 BITENCOURT. Op. cit., p. 664. 11 SANGUINÉ, Odone. Prisão Cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 27. ensinamento de Odone Sanguiné (2014, p. 27):

DIEGO WASILJEW CANDIDO DA SILVA é Servidor Público da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Estudante do último semestre (10º) do curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Aprovado no XIX Exame da OAB.

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DIREITO AMBIENTAL MARCELO KOKKE

AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL E SANÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS “O controle jurisdicional em relação ao objeto e sua extensão está sujeito à autocontenção. Em uma sociedade de risco, a decisão judicial não é somente para o caso concreto, mas ela resulta em efeitos nas conjunturas ambientais sistêmicas que afetam a capacidade ecológica dos recursos hídricos e dos bens ambientais. Ter em conta as dimensões de especialização e de avaliação sistêmica dos efeitos ambientais é imprescindível no exercício jurisdicional em causas ambientais.”

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PRÁTICA JURÍDICA - ANO XV - Nº 172 - JULHO/2016

valorizar o que doutrinariamente se afirma como princípio da conformidade funcional. O que se argumenta é pela necessária autocontenção judicial diante de avaliações técnicas e estudos ambientais desenvolvidos e fixados pelos órgãos e agências ambientais estatais especializadas dentro de sua esfera de exercício funcional regular. Em tomada específica, argumenta-se, aqui, pela necessária autocontenção do Poder Judiciário diante de sanções administrativas ambientais que configurem reprimenda a infrações ambientais. Suponha-se o caso de avaliação ecológica que tenha resultado no embargo de atividades empresariais em razão de violação dos indicadores limites da pegada hídrica cinzenta. A pegada hídrica cinzenta, a água cinzenta, possui um sentido técnico-ecológico próprio. Ela diz respeito ao indicador de aferição de graus de poluição de água doce, considerando o volume de água que é necessário para assimilar determinada carga de poluentes com base em padrões de segurança e qualidade ambiental da água. A determinação desses padrões inclui a avaliação dos

DIVULGAÇÃO

autocontenção judicial na apreciação dos atos de outros Poderes geralmente se apoia no princípio da separação dos poderes ou funções, alicerçando o necessário equilíbrio entre as funções do Estado de modo a não haver um superpoder ou uma ascendência ilegítima do Judiciário sobre o Legislativo ou o Executivo. Entretanto, neste trabalho pretendo tematizar a questão da autocontenção judicial em outro alicerce. Não que este outro alicerce esteja alheio à separação de funções ou poderes, pelo contrário. O que se tem a argumentar é a existência de um limite institucional e de capacidade estrutural do Poder Judiciário em face da atividade dos órgãos ambientais na efetiva tutela dos bens ambientais. A autocontenção do Poder Judiciário há de se apoiar igualmente na prevalência funcional de órgãos especializados na tutela ambiental, conformados constitucional e legalmente para fins de alcançar a proteção ecológica. O Poder Judiciário está limitado, portanto, pela prevalência funcional de órgãos estatais especializados. Trata-se de


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materiais residuais lançados na água e da potencialidade de afetação da fonte hídrica receptora. Com isto, por exemplo, os indicativos de água cinzenta possibilitam avaliar o grau de produtos químicos que o corpo hídrico suporta, sem que isto determine níveis de degradação ambiental não toleráveis. Empreendimentos que violem a pegada hídrica cinzenta em seus limites normativos incidem em infrações ambientais, podendo ser sujeitos a sanções administrativas, como o embargo de atividades que determinem o excedente lançado. O problema surge quando há a judicialização da questão, sustentando que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional permitiria, em graus de inferência argumentativa, a própria incursão judicial nos critérios e na abordagem ambiental administrativa. O problema primário que emerge da situação de judicialização é a diferença de percepção do caso, geralmente existente, entre o órgão jurisdicional e os órgãos ambientais. O Direito Ambiental guia-se pela percepção sistêmica das atividades ambientais, por uma linha de reflexão holística, na qual todas as atividades, não só do infrator, são consideradas em seus efeitos negativos ambientais. Já o órgão jurisdicional, sob influência de um privatismo processual e mesmo epistêmico, ainda está, comumente, a imaginar que julga apenas o caso concreto. Em outras palavras, enquanto o órgão judicial tem em si a perspectiva de estar a julgar o caso da empresa X em face de uma infração ambiental por violação do marco regulatório da pegada hídrica cinzenta, o órgão ambiental considera fatores ambientais amplos que incluem todo o impacto ambiental hídrico em dados corpos de água. Assim, o órgão judicial tende a ignorar fatores relevantes do ponto de vista ecológico, como as capacidades de resistência, de suporte e de resiliência. O caráter cumulativo da apreciação da lesão ambiental fica prejudicado quando o órgão judicial acredita que está a julgar um determinado caso concreto e não um caso que se insere em um conjunto de ações ambientais a atingir o ecossistema. A capacidade de resistência é relativa aos limites de estresse que podem ser absorvidos por dada conjuntura do sistema hídrico, mantendo sua estabilidade diante de influências e efeitos de atividades antrópicas ou derivações ambientais provocadas ou naturais. A capacidade de resistência demonstra o nível de possibilidade de absorção de impactos pelo ambiente hídrico, sem que haja desnaturações ou desequilíbrios a comprometer o estágio das relações biológicas coligadas ao ciclo hídrico. Em termos holísticos, as análises ambientais devem aferir qual o potencial de resistência do sistema hídrico contextualizado diante dos empreendimentos que utilizem ou possam, efetiva ou potencialmente, poluir ou degradar a qualidade hídrica. A capacidade ecológica de suporte está relacionada ao número de pessoas ou atividades que dado ambiente

contextualizado pode suportar em termos de sustentabilidade, considerando pontos de equilíbrio na manutenção das relações ambientais em termos de elasticidade, distribuição de riscos e efeitos negativos ambientais. A perspectiva holística demanda estudos e avaliações ambientais que venham a aferir a potencialidade hídrica de atendimento às necessidades naturais ou socialmente construídas, sem que se gere uma degeneração do próprio ambiente em verdadeira asfixia dos bens ambientais, com comprometimento da vida humana e não humana. Já a capacidade de resiliência diz respeito à capacidade de regeneração do ambiente em face de afetações ou efeitos negativos sofridos. Em termos hídricos, a capacidade de regeneração, além de ser complexa, revela níveis de perda e comprometimento do ciclo de águas que, por vezes, alcançam o caráter definitivo. Aqui emerge em relevância a prevenção e avaliação de riscos ambientais no comprometimento de recursos hídricos por parte de empreendimentos que utilizem água ou afetem o suporte hídrico em termos de poluição e degradação. A perspectiva de afetação da resiliência não está restrita aos efeitos insulares ou circunscritos a dado empreendedor. A cadeia produtiva e os efeitos cumulativos e sinérgicos devem ser considerados, exaltando em relevância a necessária tomada holística que guia a Política Nacional de Recursos Hídricos. Em consequência, suponha-se a existência de dez processos judiciais diversos que visem desconstituir sanções administrativas pela superação de excedente de emissão pelo empreendedor em 5% de seu limite X. Enquanto o órgão judicial tende a enxergar o caso concreto de forma insular, tende a reduzir a exposição hídrica apenas aos 5% do empreendedor parte na ação, os órgãos ambientais consideram o total de infrações e lançamentos que afetaram os recursos hídricos, consideram a dimensão sistêmica que representa a infração ambiental. O caráter cumulativo e a quebra da capacidade de suporte dos níveis de resistência e da potencialidade de resilição não são questões insertas na livre convicção judicial. Pelo contrário, o órgão judicial há de partir dos marcos técnicos e ecológicos estabelecidos, pois sua decisão não impacta somente o caso concreto, mas tem uma consequência cumulativa que não pode ser desconsiderada em uma sociedade de riscos e de produção de efeitos em massa. O controle jurisdicional em relação ao objeto e sua extensão está sujeito à autocontenção. Em uma sociedade de risco, a decisão judicial não é somente para o caso concreto, mas ela resulta em efeitos nas conjunturas ambientais sistêmicas que afetam a capacidade ecológica dos recursos hídricos e dos bens ambientais. Ter em conta as dimensões de especialização e de avaliação sistêmica dos efeitos ambientais é imprescindível no exercício jurisdicional em causas ambientais.

MARCELO KOKKE é Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Núcleo Especializado em Ambiental e Indígena da Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais. Professor de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor de Pós-graduação da PUC-MG. Professor colaborador da Escola da Advocacia-Geral da União. Professor do IDDE – MG

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DIVULGAÇÃO

PRÁTICA DE PROCESSO EMILIA CORREA

O DEFENSOR, O JUIZ, O PROMOTOR DO JÚRI E O CIDADÃO: QUEM SÃO E COMO SÃO? Tribunal Popular, o Júri, requer do profissional que atua no dia a dia um preparo especial que não se resume apenas ao conhecimento jurídico.

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É indispensável para o profissional atuante no Tribunal da Cidadania a busca incessante pelos equilíbrios psicológico, físico, emocional e espiritual, além de raciocínio rápido para as eventualidades fáticas e


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jurídicas que ocorrem no andamento de um julgamento. Sem isso, compromete-se o bom desempenho das atribuições funcionais. O magistrado, o promotor e o defensor devem estar imbuídos de um espírito constitucional maduro, afastando, assim, qualquer tipo de conduta inadequada que possa advir da vaidade humana e consequentemente flexibilizar a força institucional do júri. Na instituição do Júri, deve-se trabalhar concretamente com os dois maiores bens jurídicos, a vida e a liberdade. Portanto, é preciso primar pelo fiel cumprimento dos princípios. Para isso, os profissionais envolvidos dependem do desprendimento das instituições no tocante à disputa de poder. Cada função tem sua força institucional e constitucional já previstas, sem precisar da utilização de outros artifícios.

Há 18 anos, atuo no desempenho da função de Defensora Pública do Tribunal do Júri e penso já ter testemunhado quase tudo. Situações fáticas e de direito que honraram a instituição do Júri nas funções do juiz, do promotor e do defensor, como situações contrárias causadas pelos mesmos representantes dessas funções, que horrorizaram a vida, a liberdade, o direito, a justiça e com isso promoveram injustiça e algumas vezes vingança! Simples e lamentavelmente porque não zelaram pelos requisitos que devem ser preenchidos pelos profissionais que devem ocupar os Tribunais dos Juris. Somos apenas defensor, juiz ou promotor, meros instrumentos legais, nada mais. O que realmente importa é a vida, a liberdade, a justiça, a dignidade. Para isso, dependemos de instrumentos afinados à função. As instituições jurídicas devem observar isso. O cidadão é o juiz. Efetivamente, compõe o Conselho de Sentença que julgará o acusado. Cabe a este representante da sociedade esforçar-se por uma decisão conforme o conjunto da prova apresentada em plenário, somente assim se produz justiça. Cabe ainda ao jurado afastar-se da influência da violência externa ou até mesmo da violência de que fora vítima, isso evita erros judiciários. As defesas no Tribunal do Júri não são fáceis em nada. A presunção de inocência, princípio constitucional, é invertido, vale a “presunção de culpa”. A maioria da sociedade não nos vê com bons olhos ao defender alguém que supostamente ameaça a integridade física ou a vida da população, que se encontra em total insegurança pública. A sociedade, algumas vezes, se esquece de que desempenhamos a função de defensor da Constituição Federal, quanto à aplicabilidade dos princípios da ampla defesa e do contraditório, que se bem defendidos contribuem como protagonistas da elucidação da verdade, da liberdade e da justiça. Muitos foram os réus que tive a oportunidade de ver reintegrados a sociedade através das teses defendidas em plenário. Alguns com a absolvição, outros com penas mais justas decorrentes de outras teses. As famílias dos réus assistidos pela Defensoria nos enchem de alegria, quando em pronunciamentos de gratidão dizem que foram fortalecidas e retomaram suas vidas em face da esperança gerada ao constatar o embate aguerrido numa tribuna do júri. Esse é o direito de defesa exercido e usufruído por eles. Isso traz esperança! Testemunhei fatos assim! Não importa quem seja o acusado nem o que fez. Não defendemos o criminoso, e muito menos o crime, nem a violência ou a impunidade. Jamais! Defendo, sim, e sempre defenderei o direito à defesa, à ampla defesa, à plenitude de defesa. Defendo a Constituição Federal. Esse é o dever e o direito de qualquer cidadão.

EMILIA CORREA é Defensora Publica do 2° Tribunal do Júri da Comarca de Aracaju/Se.

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ESPAÇO ABERTO RENATO FALCHET GUARACHO

BLOQUEIO DO WHATSAPP, A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A SOBERANIA NACIONAL s usuários do WhatsApp enfrentaram recentemente o bloqueio do serviço em todo o Brasil, após a ordem da juíza de fiscalização da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro Daniela Barbosa Assunção de Souza. A magistrada cobrou da empresa que as mensagens trocadas por pessoas investigadas fossem desviadas em tempo real antes de ser implementada a criptografia que impossibilitaria o acesso ao conteúdo. Poucas horas depois, a medida foi derrubada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski. Em que pese a comoção pública e eventual decisão revogando o bloqueio do WhatsApp, a decisão da juíza do Rio de Janeiro foi legal. Isso porque o art. 15 do Marco Civil da Internet determina que o provedor de aplicações – nomenclatura jurídica dada aos aplicativos do tipo – armazene os registros de acesso a aplicações de internet por, no mínimo, seis meses. Apenas por este dispositivo legal já se observa a ilegalidade das empresas do grupo Facebook, visto que não armazenam as informações. A juíza alegou ter requisitado por três vezes ao Facebook (empresa detentora do WhatsApp) que fizesse a interceptação de mensagens relativas a investigação em andamento. Todavia, a empresa americana respondeu, em inglês, que não arquiva nem copia as mensagens enviadas pelo aplicativo. Foi a terceira vez que um juiz brasileiro determinou o bloqueio do aplicativo no país. O bloqueio judicial de aplicativos, em geral, é medida legal. Apesar da comoção nacional em torno da liberdade de expressão e de eventuais prejuízos com o aplicativo fora do ar, a Justiça brasileira poderá bloquear este e outros aplicativos até que as empresas responsáveis se adequem à legislação brasileira. Evitando, assim, a facilitação para o cometimento de diversos crimes, como pedofilia, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, terrorismo, etc.

A decisão da magistrada carioca baseia-se, prioritariamente, no art. 12, III e IV, do Marco Civil da Internet, afirmando “que permite a suspensão temporária das atividades ou a proibição de suas atividades. Assim, o bloqueio judicial do WhatsApp encontra respaldo total no Marco Civil da Internet, razão pela qual não pode ser considerado ilegal”. O ministro da Justiça Alexandre de Moraes também já se posicionou favoravelmente a regulamentação sobre o fornecimento de informações à Justiça por parte de empresas de telefonia e de comunicação. ERrealmente, é fundamental que se deixe ainda mais claro, pois o Marco Civil da Internet já regula o tema, para evitar que as empresas não forneçam informações absolutamente necessárias para investigações criminais ou cíveis e também para evitar esses bloqueios judiciais, que faz com que milhões de pessoas se sintam prejudicadas. A empresa que atua no Brasil deve se adequar às regras e leis do nosso país. Além disso, a fama dos aplicativos do Facebook que, com raras exceções à Justiça dos Estados Unidos, é de desprezar decisões judiciais proferidas ao redor do mundo, inclusive com declarações do seu presidente Mark Zuckemberg, alegando que a empresa sempre irá prezar pela privacidade de seus usuários, independente de qualquer punição que possa ser aplicada. Tal afirmação do dirigente do Facebook contraria o art. 1º, I, da Constituição Federal, que garante a soberania nacional como fundamento da República Federativa do Brasil. Essa será uma discussão que deve ganhar novos capítulos nos próximos dias e meses, pois a decisão do STF ainda não é definitiva e deverá ser julgada em Plenário. Até a decisão final dos ministros da Corte Superior e de uma nova regulamentação que, ao lado do Marco Civil da Internet, encontre uma saída, novos bloqueios e batalhas jurídicas podem acontecer.

RENATO FALCHET GUARACHO é advogado especialista em Direito Eletrônico do escritório Aith Advocacia.

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