Júlia Billiart 2ª Edição Porto Alegre/RS 2019
Título original: Vie de Julie Billiart par sa première compagne Françoise Blin de Bourdon ou les Mémoires de Mère Saint-Joseph. Copyright – 1978 Tradução: Língua Portuguesa Impressão edição original: Gráfica da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) – São Leopoldo – RS / Julho de 1984 Equipe atual: Coordenação editorial: XXxxXXxx Revisão de texto: XXxxXXxx Editoração: Algo Mais Editora Coordenação de Marketing: Michelle Perreira
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Pinheiro, Márcio Ayrton Patineti dos Anjos : lembranças, sons e delírios de um produtor musical / Márcio Pinheiro e Roger Lerina. – Porto Alegre: Plus Editora, 2018. 224 p . ; 15,6 x 22,8 cm. ISBN 978-85-62837-32-6 1. Literatura brasileira – memórias. 2. Ayrton dos Anjos – memórias. 3. Patineti – memórias. 4. Música – Rio Grande do Sul – Brasil. I. Lerina, Roger. II. Título. CDU 821.134.3(816.5)-94 Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229
Direitos de publicação: Copyright by Notre Dame. 2ª edição – junho de 2019 Tiragem: 1.500 exemplares Todos os direitos desta edição reservados à Irmãs de Nossa Senhora.
SUMÁRIO PRÓLOGO............................................................................... 5 PREFÁCIO................................................................................ 9
À EDIÇÃO FRANCESA.......................................................................................9
INTRODUÇÃO...................................................................... 11 A AUTORA DAS MEMÓRIAS............................................... 19 VIDA DA REVERENDA MADRE......................................... 27
Júlia Billiart............................................................................................27 Fundadora das Irmãs de Nossa Senhora ................................................27 As quais começaram a se congregar na França, no auge da Revolução Francesa....................................................................................................27
CAPÍTULO 1.......................................................................... 29 CAPÍTULO 2.......................................................................... 49 CAPÍTULO 3.......................................................................... 71 CAPÍTULO 4.......................................................................... 91 CAPÍTULO 5........................................................................ 117 CAPÍTULO 6........................................................................ 143 CAPÍTULO 7........................................................................ 177 CAPÍTULO 8........................................................................ 203 CAPÍTULO 9........................................................................ 231 CAPÍTULO 10...................................................................... 259 DOCUMENTOS.................................................................. 279
JESUS, MARIA, JOSÉ.................................................................................... 279 Carta de Sua Excelência, o bispo de Namur.......................................... 281 Carta do Padre Varin............................................................................. 282 (Paris) 8 de maio de 1816....................................................................... 282 Minha querida Madre em N. S................................................................ 282
TESTEMUNHOS................................................................. 287
CRONOLOGIAS.................................................................. 297 BIOGRAFIA......................................................................... 309 APÊNDICE........................................................................... 395 CONCLUSÃO....................................................................... 423 BIBLIOGRAFIA................................................................... 427
Prólogo Dificilmente saberá para onde vai, aquele que não sabe de onde veio. Quem se propõe uma caminhada, se não quiser frustrar seu plano, procurará estabelecer o contato entre o ponto de partida e o alvo proposto como meta final. Ademais, prover-se-á da bagagem energética indispensável para o percurso. Ora, sabemos que todos os caminhos são desgastantes e espoliadores, mais ainda para aquele, cujo projeto de viagem quer constituir-se num modelo de vivência plena do preceito divino: Amais-vos uns aos outros. Um Instituto religioso representa a caminhada de pessoas que, inspiradas e fortalecidas numa mesma origem, perseguem ideais comuns, enquanto vivenciam, com características que as identificam como grupo, a Lei maior do Evangelho. Tais membros devem sempre e sempre, reavivar, em sua comunidade, os princípios primordiais, para que seu apostolado esteja nutrido do mesmo espírito do fundador, adquirindo, assim, persistência e coragem na continuidade da caminhada comum. O Concílio Vaticano II solicita, dos religiosos, esta volta às fontes, não como um retrocesso histórico, mas como um processo indispensável à reavaliação da fidelidade ao carisma fundacional. Memórias, de Madre São José (Francisca Blin de Bourdon) é, para a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, uma oportunidade de avaliação e retomada, a partir da seiva que nutre a raiz originária. Traduzidas, agora, do francês, as Memórias, escritas por Madre São José, a companheira e amiga inseparável de Santa Júlia, aquela a quem a própria Júlia chama de minha boa e terna amiga, são um rico manancial de reflexão sobre o espírito motivador primeiro, que oportunizou o surgimento da Congregação. Os vinte e dois anos de convivência com a Fundadora, possibilitaram, a Madre São José a descrição simples, mas profunda de sua vida, de seu caráter, de sua espiritualidade e de seu apostolado. A ternura e a importância que são dadas às pequenas coisas ratificam a grande amizade que 5
existia entre estas duas mulheres, dispostas a enfrentar qualquer dificuldade por causa do Reino, na certeza de que o bom Deus está sempre à frente de todos os caminhos. Indispensáveis se tornam, também, as informações biográficas das pessoas com as quais Santa Júlia se relacionava. Madre São José conhecia profundamente Santa Júlia. Este conhecimento solidificava a amizade entre ambas. O amor que sustentou tamanha amizade extrapola de tal forma, que a própria Madre São José sente-se impulsionada à partilha. Por esse motivo, traz-nos à viva lembrança sua melhor amiga: Santa Júlia. Através dos seus escritos, podemos sentir o espírito que animava a Congregação nascente. A biografia de Júlia Billiart, fundadora das Irmãs de Nossa Senhora, aqui esboçada, é toda tecida de pequenas coisas, na aparência, mas capaz de grandes gestos, de atitudes intrépidas, de decisões fermentadas no sofrimento, de persistente coragem, de afeição humana, de abertura aos apelos de Deus e de fidelidade à Igreja e ao homem do seu tempo. Por aqui se conclui, de maneira concreta e irrefutável, de que não são necessárias grandes coisas, para que surjam os grandes santos, mas que basta, isso sim, uma grande alma que saiba dar um sentido profundo a cada pequeno detalhe do dia-a-dia. A leitura atenta das Memórias nos fará perceber que Júlia permanece viva, hoje, no carisma que delegou às Irmãs de Nossa Senhora, de cuja continuidade somos responsáveis. Se, pelo testemunho da vida e da palavra, reavivarmos a proclamação da bondade de Deus, estaremos voltando, sempre de novo, à nascente da própria Congregação; proclamação, esta, feita sem alarde e sem violência, a qual se impõe de maneira irresistível, porque, se ninguém se fecha ao amor, tanto mais se abrirá ao amor que vem de Deus. O que era uma aspiração, para cada Irmã de Nossa Senhora, torna-se uma realidade, graças a todas as pessoas que contribuíram para o nascimento desta obra. A elas, o nosso agradecimento, e a nós, resta-nos traduzir, pela vida, o carisma desta a quem chamamos SANTA JÚLIA BILLIART, a Mensageira da Bondade. A todas as Irmãs de Nossa Senhora que tomarem conhecimento do conteúdo de Memórias mediante sua tradução em língua portuguesa, dedicamos o êxito de nossos esforços, porque, estamos certas, todas e cada 6
uma em particular, saberá avaliar a conquista ora consumada, à qual todas fazem jus. Com nossos protestos de terna afeição em Deus, formulamos votos de que a vida de cada uma de nós se aproxime, mais e mais, do Modelo inicial; e, à medida que soubermos nos entregar, confiadamente, à amorosa Providência Divina, possamos assimilar à nossa ação de graças, como Madre Júlia, o estribilho constante: Quanto é bom o bom Deus! Canoas, julho de 1984. Irmã Renete Maria Cocco, SND Superiora Provincial Província Nossa Senhora Aparecida
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Prefácio À EDIÇÃO FRANCESA A publicação, em 1976, da edição francesa de Cartas de Santa Júlia Billiart, representou, para muitas Irmãs de Nossa Senhora, a primeira oportunidade para um encontro com sua fundadora, tal qual ela se revela em seus escritos: cordial, espontânea, sagaz, uma mulher de Deus e de seu tempo. Contudo, sua personalidade autêntica nos é revelada, realmente, quando conseguimos inserir a autora das cartas no contexto de sua própria história. Os acontecimentos que Júlia preferiu relegar ao silêncio, ou aqueles que ela aborda, mas com certo constrangimento, ou, ainda, aqueles dos quais nem sequer fala, por estarem muito próximos, todos esses, de uma maneira ou de outra acrescentam elementos à sua história, bem como enriquecem nosso conhecimento a respeito de sua pessoa. Fazem-se necessárias, para que se possa completar seu retrato, tanto as Cartas, quanto a verdade histórica de uma biografia. Felizmente, existe esta biografia indispensável, escrita por aquela que foi a mais próxima testemunha de Santa Júlia: Madre São José Blin de Bourdon, a amiga e colaboradora fiel, a co-fundadora de nossa congregação. No seu relato da época, Madre São José haure seu conhecimento imediato de Júlia, nos anos de visões, de alegrias e sofrimentos comuns, na sua própria reflexão penetrante e modelar de oração, e, acima de tudo, na sua profunda compreensão pelo coração que lhe valeu o dom de uma autêntica amizade em Cristo. Ela fez Júlia reviver, tal qual a conheceu e amou, e ela nos legou, a nós e às gerações futuras - a inesquecível impressão deixada por uma mulher vibrante de esperança e de alegria, que vivenciava, realmente, o seu Deus. Ela nos revela uma mulher de oração, que entrou profundamente, no mistério da morte e da ressurreição de Cristo; uma mulher resoluta, corajosa, de uma simplicidade contagiante, vivida, tanto nas circunstâncias mais banais, quanto nas mais cruciais. Uma mulher de Igreja, uma mulher que nos sentimos felizes de chamar nossa Mãe, esta Júlia das Cartas, conhecida tão intimamente por aquela que, tendo-a amado 9
com ternura, nos possibilita uma penetração maior em sua vida e em sua santidade: a nossa Fundadora. É, pois, com grande alegria que introduzo esta edição das Memórias de Madre São José: pela primeira vez chega a nós o texto francês integral, vindo diretamente dos manuscritos de Madre São José e de outros manuscritos, conservados nos arquivos da casa-mãe, em Namur. A edição foi preparada com grande cuidado e com filial afeição pela Irmã Madalena da Cruz e Irmã Maria Chantal Schweitzer, da província Bélgica-Sul. Uma edição paralela, em inglês, da autoria de Irmã Teresa B.S. Sullivan e suas assistentes da Província de Maryland, surgiu em 1975. A todas aquelas que colaboraram neste importante trabalho, quero exprimir os agradecimentos de todas as Irmãs de Nossa Senhora. Oxalá seus denodados esforços contribuam para que melhor se conheça e mais se aprecie Santa Júlia, como uma santa para os dias de hoje e para todos os tempos. Roma, 3 de dezembro de 1977. Irmã Maria Linscott, SND – Superiora Geral.
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Introdução As Memórias são o testemunho de Francisca Blin de Bourdon, primeira companheira de Santa Júlia e conhecida, na congregação, com o nome de Madre Blin, inicialmente, e Madre São José, após. Ela fala da vida, do caráter, da atividade da amiga, de cuja existência ela participou durante vinte e dois anos. Madre São José, que labutou ao lado de Júlia e a observou de perto, transmite-nos, em termos simples, precisos e penetrantes, os resultados de sua própria descoberta. A leitura meditada das Memórias possibilita, às Irmãs de Nossa Senhora, o encontro com a personalidade autêntica da fundadora. Já em 1883, Madre Aloísia, sexta Superiora geral da congregação, havia chamado a atenção para a importância deste escrito de Madre São José, como o atesta o documento em anexo. 1 O manuscrito de Madre São José, que ela intitula Vida da Reverenda Madre Júlia Billiart, serviu de base a cada uma das biografias publicadas posteriormente. É tempo de se publicar o próprio manuscrito. Duas observações iniciais tornarão mais clara a leitura do texto: a) habitualmente, Madre São José fala de si mesma, em terceira pessoa, com intercalações, às vezes, do pronome nós, e mesmo do pronome eu, principalmente quando há o relato de fatos emocionantes; b) Madre São José fala, indistintamente, de Memórias ou de Biografia: esses dois termos significam a mesma coisa. A língua e o estilo das Memórias, que foram redigidas no final do século XIX, são respeitadas nesta edição. Apenas a pontuação e a divisão em parágrafos sofreram, por vezes, modificações exigidas pela clareza. Quanto aos nomes próprios, vêm ortografados conforme o texto da biografia com1. Ver o Atestado de Autenticidade, p.
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posta pelo Padre Clair, S.J., na edição de 1906, e isso, para que seja evitada qualquer confusão. Insistimos, também, sobre o fato de que o Manuscrito de Madre São José foi, prioritariamente, destinado às Irmãs de Nossa Senhora, às atuais e às futuras. Daí o cuidado meticuloso, no sentido de dar realce às minúcias do quotidiano, sem interesse para os leigos, mas preciosas e fecundas para as filhas de Santa Júlia Billiart. Possam, as religiosas e todos os admiradores de Santa Júlia, transformar a leitura desta biografia, num estudo, numa quase oração: então, Santa Júlia e Madre São José tornar-se-lhes-ão, realmente, muito próximas, a exemplo de todos os santos, testemunhas de hoje e de amanhã, num povo de Deus em marcha. A verdadeira renovação só pode advir do retorno às fontes. Se as Memórias são um testemunho, elas são, ao mesmo tempo, uma homenagem: homenagem de uma fundadora a outra. Duas mulheres em que tudo parecia conspirar, no sentido de separá-Ias - nascimento, fortuna, educação, caráter - encontram- se, ao final de uma tormenta revolucionária, numa França arruinada, desorganizada: as igrejas, destruídas, nada mais são do que os vestígios de uma fé desaparecida: os cidadãos perambulam pelas campanhas; as cidades, ignaras estão entregues a si mesmas. Júlia - a pobre enferma, cujo coração é possuído da necessidade devoradora de a todos falar da bondade de Deus - e Francisca Blin de Bourdon - a aristocrata apaixonada pelas realidades divinas, que aguarda, até que o Senhor lhe aponte um acesso à vida contemplativa - percebem, ambas, as necessidades que as envolvem e consideram a catequese como um dever primordial de caridade cristã. A obra comum, as circunstâncias diárias, as diretivas dos Padres da Fé e também a adjunção de jovens companheiras, são elementos que oportunizam, progressivamente, o delineamento do plano divino: a fundação de uma congregação religiosa voltada à educação da juventude, particularmente das crianças pobres. O Instituto é, por vias de fato, fundado a 2 de fevereiro de 1804, dia em que as fundadoras e suas primeiras companheiras fazem sua consagração religiosa e adotam uma regra provisória, que integra oração e trabalho. Sua eficaz colaboração nas diferentes missões empreendidas pelos Padres da Fé traz, às novas Irmãs de Nossa Senhora, um meio de subsistir através de seu trabalho. 12
O gênero de vida que agora levam, exige, numa época em que as congregações femininas são regidas apenas pelas regras monásticas, a elaboração, simultaneamente, arriscada e sábia, de constituições adaptadas. A 2 de julho de 1805, um primeiro esboço de constituições é dado às Irmãs de Nossa Senhora, o qual prevê a simultaneidade da vida ativa e da vida contemplativa e cria um espírito que respeita os valores do passado, que acolhe os sinais dos tempos e que se volta para o futuro. Se, em alguma circunstância, o rigor da clausura tiver que ser, talvez, mais frouxo, a consciência pessoal, esclarecida pela regra, deve saber encontrar o seu lugar de refúgio: A verdadeira modéstia nasce no fundo do coração e do temor de Deus: ela regula as palavras, os olhares, as ações, o porte, a continência e, geralmente, tudo o que nos surge de fora: ela é a defesa da castidade. Estas duas virtudes se sustêm mutuamente, e se alguém negligencia uma delas, não poderá guardar a outra. (Constituições 1844: capítulo V, artigo 1º). Estas constituições confirmam o objetivo primeiro do Instituto - a educação religiosa dos jovens, particularmente dos mais carentes -, consagram a vida em comunidade e eliminam a distinção entre religiosas de coro e Irmãs conversas. Pela supressão do voto de estabilidade, as possibilidades apostólicas se estendem a todos os países, a todas as nações e, mesmo, a todos os continentes. Uma Superiora geral colocada à testa da congregação, coordena o relacionamento, entre si, das Irmãs espalhadas pelas casas filiais. Tal superiora deve possuir dons excepcionais de animadora, a fim de que se viva um presente que respeite o passado e que se preocupe com o futuro, uma sólida coragem para enfrentar as críticas dos que são nostálgicos do passado, uma sabedoria serena e equilibrada para atravessar, tranquilamente, incertezas e contradições. Os cinco primeiros capítulos das Memórias relatam o longo e doloroso esforço de nossas fundadoras, para manter e resguardar o espírito primitivo, sempre exposto às investidas de oposições. Mas Júlia Billiart, formada na dura escola da vida, nutre-se, na consagração religiosa, de re13
dobrada fé, de esperança e de amor, desfazendo-se, portanto, toda preocupação para consigo mesma. Madre Blin explica, no capítulo II (p. 77): É inacreditável como as frequentes mudanças de fisionomias e de maneiras de agir, que ela observou tantas vezes nas pessoas, lhe tenham sido úteis, no sentido de desprendê-la de tudo e ensinando-lhe, experimentalmente, que só Deus é imutável. Não era de esperar, de sua parte, outra reação, uma vez que seu natural sensível e reconhecido poderia tê-la feito apegar-se a pessoas respeitáveis, que tinham atenções para com ela. Mas o bom Deus permitiu que ela encontrasse o remédio bem próximo ao mal, o que contribui para desapegá-la de tudo quanto é humano, fazendo com que ela se apoiasse unicamente em seu Deus, em quem ela encontrou, sempre um guia e um sustentáculo fiel. É em virtude do reconhecimento de sua pequenez, que Júlia Billiart adquire a atitude interior de dar ações de graças e louvor a Deus, continuamente. Ela vive na contemplação interior de seu Deus, mesmo em meio a períodos de atividade estafante. A união da contemplação e da ação representa, para ela, urna condição fundamental da vida de sua congregação. Enquanto confia à Madre Blin a preparação das professoras, ela se reserva, pessoalmente, o cuidado de formar as Irmãs para a vida interior. Seu entusiasmo espiritual é seu cuidado constante, e ela aproveita as mínimas oportunidades, no sentido de estimular os corações a que se abram à graça. Os Temas - resumos das conferências da fundadora às primeiras Irmãs - documenta isso: Nosso Instituto é, de todos os Institutos, o mais exigente, pois que deve unir a vida interior às ocupações externas; ora, se este espírito interior vier a se perder, o Instituto não se manterá; ou, se se mantiver ainda, por algum tempo, os membros secularizar-se-ão de tal maneira, que não haverá mais forma de vida religiosa; o espírito primitivo se manterá, talvez, ainda algum tempo na casa-mãe. Se houver, por infelicidade, superioras que amem seus caprichos e suas comodidades, não restará, em breve, 14
do Instituto, mais que o nome e o hábito; a gente pode vestir-se com pouco, como se queira, mas na aparência apenas. É isso que nos causa temor, à Irmã São José e a mim; nós dizíamos, ainda há pouco: se nossas Irmãs não aprenderem esse espírito interior, que faça com que elas, ao mesmo tempo que se ocupam com seus afazeres, saibam conservar-se em união com Nosso Senhor, elas jamais farão grandes coisas que representem algum valor. Não é de se admirar, por vezes, se alguns alunos são rebeldes e teimosos e fazem pouco progresso: muitas vezes, a falta é de suas mestras, porque não são suficientemente unidas a Deus, pois será sempre verdadeiro o dito: não se pode dar o que não se tem. (Extrato da 18ª Conferência sobre a vida interior, de 11 de maio de 1814). Mas como teria germinado a ideia de consignar, por escrito, este testemunho de vida? Na Vida de Madre Júlia Billiart, de V. Baesten, S.J. (Casterman 1881, p.355-6), lemos que o Padre Varin escreveu, a 2 de março de 1881, à Madre São José, que se tornou segunda Superiora geral, após a morte de Madre Júlia, uma carta, na qual dizia, notadamente, isto: É preciso, minha boa Madre, que eu vos comunique um pensamento que me ocorre seguidamente. Não tendes, acaso, recolhido os traços da vida de nossa boa Madre Júlia? Eu a havia obrigado, nos primeiros anos de vossa Sociedade, a escrever algumas memórias de sua vida; ela havia iniciado, apesar de alguma relutância; mas terá, ela, continuado, ou conservado o que havia escrito? Eu duvido muito. Seja como for, parece-me oportuno que se faça um apanhado do que houve de notável em sua vida, mais propriamente, que se possa admirar as misericórdias do Senhor para com esta santa alma. Poder-se-ia, recorrendo às pessoas que a conheceram em sua vida particular, recolher valiosas informações; e ninguém é mais indicado do que vós e o R.P. Thomas, para nos dar tão preciosos relatos. Dar-me-íeis imenso prazer em dizer-me qual o vosso parecer; creio que, pela glória de Deus e a edificação de vossa Sociedade, convém conservar a memória desta boa Madre. Embora eu não seja conhecido pela maior parte dos membros 15
de vossa família, eles não me são menos caros; informai, pois, vossas caras filhas, do meu sincero devotamento, e contai sempre com a sincera e respeitosa amizade de (...) (Ass.) J. Varin Conhecendo a humilde e fiel submissão da Santa, não parece presunçoso afirmar que, a despeito de sua relutância, ela terá obedecido a ordem de sua Superiora, manifestação da vontade divina, mas que, em seguida, o tempo lhe sendo escasso para continuar a cumprir a tarefa, ela tenha suplicado à Madre São José para que a liberasse. Poderia, ela, encontrar testemunho mais fiel do que àquela a quem estava unida por uma profunda amizade e com quem dividia, ao longo dos dias, seus cuidados, suas alegrias, seus sofrimentos? Dotada de muito tato e de um agudo tino de observação, Madre São José havia, desde muito, penetrado no coração e no espírito daquela a quem ela amava tanto quanto admirava. Mas eis que o pedido do Padre Varin a encontrou disposta! Nós já havíamos transposto para o papel tudo o que sabíamos de nossa Madre. (Prefácio de Madre Blin, que acompanhou um maço de papéis-documentos, destinados à publicação da bibliografia.) Observada com o coração, captada em toda a sua vivacidade e sua amável espontaneidade, Madre Júlia como que se narra, sob a pena de sua fiel companheira, que deixa, inconscientemente, filtrar sua própria emoção, indignada com as injustiças e os maus tratos infligidos à Madre Júlia, repleta de admiração pela serenidade tranquila da santa perseguida e crivada de humilhações. Urna fina ponta de humor impregna o relato de um charme alegre. Destaquemos alguns exemplos: Seja como for, esta boa pessoa quis, seguramente, desembaraçar-se da casa, da sobrinha, da multidão e também das dívidas, e pr tudo sobre os ombros de Madre Júlia, diz ela belamente, contando experiências de jogadas vivaldinas de que a fundadora teria sido vítima.
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Que sabedoria pitoresca e em estado de alerta, no relato do retorno de Madre Júlia, cercada por dois militares, tão complacentes que, quando disso se davam conta, eles compassavam seus passos pelos dela. Ou, ainda, falando de um colono corpulento, com o qual ela viajou até Amiens, numa charrete muito incômoda: ...E como não tinha o espírito mais desligado que o corpo, ele a entreteve, ininterruptamente, até Amiens, acerca de suas terras, de seus projetos e de seus apetites terrestres. O relato das aventuras nas quais um pesado cesto contendo urna carga entregue por M. Sambucy - desempenha o papel principal, apresenta-nos uma Francisca Blin de Bourdon espirituosa e gentilmente gozadora. Estilo brincalhão, o da Madre São José, mas modelado pela bondade e peIa delicada caridade de um coração firmado no Deus do amor: quando a preocupação pela verdade exige urna censura, a indulgência converte em favorável o mau juízo antecipadamente feito, apontando para a intenção que motivou tal comportamento. A união das Irmãs, umas com as outras, representa um tal valor para a Irmã São José, que ela não hesita em cancelar, de seus relatos, passagens que poderiam reabrir antigas feridas e provocar reações amargas. O véu do silêncio recobre a lembrança de inúmeras horas de dor vividas pelas duas fundadoras, por parte de membros da congregação. O espírito de Santa Júlia vibra, no texto das Memórias, porque a autora, ela mesma, vive deste espírito: transparente e alegre simplicidade, fruto da confiança e do abandono absoluto, ancorados na certeza da bondade de um Deus de amor. Mas aquilo que, na fundadora, é fluxo de ardente espontaneidade: Ah! como é bom o bom Deus! é assimilado pela personalidade delicada e cultivada da co-fundadora, e correspondido, em doçura não menos ardente, cheia de reserva, atenta às pequenas coisas. Diferentes e, contudo, fundamentalmente semelhantes, tais se nos apresentam Júlia Billiart e Francisca Blin de Bourdon. Um amigo dedicado da congregação o atesta e explica ao mesmo tempo: 17
M. Minsart, juiz competente no assunto, dizia que a prova manifesta e a mais incontestável da virtude das duas Madres era que, com caracteres tão diferentes, não tivesse havido jamais, entre elas, a menor sombra de contestação ou expressão de desentendimento. Esta união, acrescentava, era o preço de uma perfeita humildade. (Nicolau José Minsart, Dom Jerônimo, fundador das Irmãs de Santa Maria de Namur, 1769-1837, Edição Lambert 1931, p. 52.) Tal união durou vinte e dois anos, e a morte de Madre Júlia nada mais fez, do que firmar ainda mais Madre São José na fidelidade à herança espiritual que lhe foi transmitida. Santa e excepcional amizade, nascida e selada na generosa abertura à partilha mútua de seus dons, a acolhida incondicional à vivência do enleio divino, a renúncia e o esquecimento de si. Sob a tutela de uma, a outra aprende a esvaziar-se de si e descobre que a pobreza de Cristo é sua herança, desejando viver de tal modo, que ela possa tornar-se a mãe dos pobres. Opção inquebrantável, apesar do esforço – bem-intencionado - do Padre Varin, feito no sentido de dirigi-la num direcionamento, para o qual ela parecia melhor preparada, em virtude de sua origem nobre. Numa carta, escrita ao vigário-geral do bispo de Amiens, Francisca Blin define, claramente, qual ela julga que deva ser seu papel, na fundação da congregação das Irmãs de Nossa Senhora: Esta boa Madre, nada possuindo além de virtudes, tem necessidade de alguém que possa garantir-lhe a subsistência. O Senhor dignou-se dar-me a boa vontade, e eu creio dever segui-la sempre, desta maneira. (Memórias, capítulo V, p.134.) Tornando-se a segunda Superiora geral da congregação das Irmãs de Nossa Senhora, após a morte da fundadora, ela julgou ter apenas um papel secundário, com referência àquela, e manteve-se firme para que isso, realmente, fosse assim. A única glória que ela ambicionou foi a de, em publicando suas memórias, testemunhar a heroica santidade da primeira e muito humilde Superiora das Irmãs de Nossa Senhora. 18
A autora das Memórias A 8 de março de 1756, nascia, no castelo de Gézaincourt, na Picardia, Maria Luísa Francisca Blin de Bourdon, filha do visconde Pedro Luís de Bourdon Bouin e outras denominações, e de Maria Luísa Claudina de Fouquesolles (ata do batismo). Um irmão, Luís Maria César e uma irmã, Maria Luísa Aimê, haviam-na precedido. Tendo nascido no castelo do barão de Fouquesolles, decidiu-se que Francisca seria confiada aos cuidados de seus avós maternos, uma vez que Madame de Fouquesolles não se conformaria em vê-Ia partir. A terra de Gézaincourt, aliás, lhe seria dada em herança e ela herdaria também o nome. Excetuando algumas curtas estadias em Bourdon, Francisca viverá em Gézaincourt, até a idade de oito anos. Ela entrará, em seguida, como pensionista, na escola das Damas Beneditinas, em Doullens. Em 1768, ela irá a Amiens, a fim de completar, aí, sua educação com as Ursulinas. É aqui que ela encontra sua amiga de infância, Jane de Croquoison, que se tornará, mais tarde, Madame de Franssu. No verão de 1775, após as férias, nas quais toda a família se havia reunido em Gézaincourt, Francisca tornou o caminho de Bourdon, em companhia de seus pais. O visconde e a viscondessa acreditavam ter chegado o momento de ela se entregar à vida mundana, uma vez que já contava dezenove anos. As relações que o visconde mantinha com os mais altos dignitários do reino oportunizaram, a Francisca, o convívio com a ilustre sociedade da época, bem como a participação nos esplendores de Versalhes. Ela recordará, mais tarde, o que a encantou em Madame Elisabeth, irmã de Luís XVI.
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Em junho, o irmão e confidente de Francisca casa-se com Elisabete Pingré de Fieffes, e em dezembro do mesmo ano, sua irmã desposa Gaspar Félix. As duas novas famílias se estabelecem em Amiens. Em fevereiro de 1784, ela perde seu avô, em Gézaincourt, e em abril do mesmo ano, sua mãe, em Bourdon. A morte fulminante do barão de Fouquesolles tornou insuportável a solidão da baronesa, e Francisca retorna para junto da avó, a qual suplicava que lhe devolvessem a “sua pequena”, enquanto que Madame Félix veio estabelecer-se em Bourdon, junto do pai. Em Gézaincourt, Francisca teve que administrar a propriedade e suas vastas dependências. Ela fez mais que isso, tornando-se o anjo do castelo, como a chamavam os habitantes da região. Ela foi sua sábia conselheira e uma atenciosa irmã de caridade para todos os sofredores. Muito piedosa, afirma o vigário da paróquia, todos os dias ela assistia à santa missa e, diversas vezes zes por semana, ela também comungava...; após a santa missa, ela ficava longas horas em oração, ao pé do tabernáculo. (Testemunho de M., o abade de Bray, cura de Gézaincourt). Em fevereiro de 1794, a investida revolucionária se abateu sobre o vilarejo, que até então havia sido poupado; Francisca foi violentamente sequestrada por um bando de patriotas. A baronesa de Fouquesolles não resistiu ao choque dessa brusca separação, vindo a falecer, a 18 de março, chamando continuamente e implorando por sua neta. Desde a juventude, Francisca pensava no carmelo; no tempo em que foi pensionista, ela compartilhara este sonho com Jane de Croquoison. Se ela adiou a execução desse projeto, foi unicamente para dedicar-se àquela que fora tão bondosa para com ela, nessa fase, e que reclamava sua presença: sua querida avó, que ficara na solidão. No seu diário, ela anotou, em 1786: Resolução irreversível, de descartar tudo o que possa afastar-me do meu objetivo. Em suas Memórias, ela escreve: É gratificante saber, para o triunfo da graça, que, a quem viveu, até a idade de trinta anos, segundo o espírito mundano, Deus, que tudo pode, ajudará a que tome outro rumo. Durante a Revolução, um mal-entendido surge e dá início à série de desgraças da família Blin. No final de 1793, o visconde foi incluído, erroneamente, na lista dos emigrados; como consequência, foram leiloados, 20
publicamente, todos os bens que possuía. Seu filho encaminhou, inutilmente, uma petição, no sentido de conseguir um certificado de presença do visconde, que contava, na época, 88 anos de idade. A resposta a essa corajosa petição foi o aprisionamento do pai e do filho em Amiens, a 17 de dezembro de 1793, logo seguindo-se a prisão de Madame Blin e de seu filho, que tinha apenas doze anos. A morte de Robespierre provocou a reação de 27 de julho de 1794. O velho visconde Blin de Bourdon e seu neto foram os primeiros a serem libertados; a 4 de agosto, Francisca foi ter com os seus. Ela foi residir com seu irmão, no Hotel dos Agostinhos, em Amiens, a fim de se preparar para seu ingresso no Carmelo. É nesta oportunidade, que a condessa de Baudoin, cujo pai e cujo marido haviam sido guilhotinados, vem solicitar um repouso em casa do visconde Blin, acompanhada de suas três filhas. Em seguida, ela foi procurar sua consoladora, Júlia Billiart, em Compiègne, onde se havia refugiado. Francisca foi visitar Júlia, enferma, e, pouco a pouco, o projeto da futura obra foi tomando vulto, em torno do leito da paralítica, com a ajuda do Padre Thomas, que também era hóspede do Hotel Blin. Pouco depois, Francisca precisou voltar a Gézaincourt, em julho de 1795, para assumir a gerência dos negócios e providenciar com o inventário da baronesa de Fouquesolles. Ela renunciou ao título de Senhorita de Gézaincourt, cedeu a seu irmão todos os direitos sobre sua propriedade e ofereceu bens equivalentes à sua irmã. Em fins de 1795, ela foi ter com seu pai doente, em Bourdon. Por ocasião da Páscoa, o visconde, sentindo-se melhor, enviou sua filha a Amiens, para que se distraísse e descansasse. Francisca aproveitou esse período para fazer um retiro de trinta dias, o qual, no entanto, foi interrompido, devido a uma recaída de seu pai. Este, voltairiano renitente até então, pouco a pouco foi retornando à sua religião da infância, graças à influência de sua dedicada filha. A 1º de fevereiro de 1797, ele veio a falecer, completamente reconciliado com Deus. Durante esses dois anos de separação, Júlia escreveu trinta e três cartas àquela que já se lhe tornara amiga e filha espiritual. Durante o retiro que ela fez, de retorno a Amiens, Francisca vislumbrou o caminho novo para onde a chamava uma voz interior e, concluído o retiro, decidiu partilhar dos desígnios de Júlia, que ela escolheu como sua condutora, no caminho de Deus. 21
Foi em Bettencourt, aonde o Padre Thomas, sempre perseguido pelos revolucionários, se havia refugiado com Júlia e Francisca, que o Senhor lhe desvendou o caminho. O infatigável batalhador por uma restauração cristã, que foi o Padre Varin, superior dos Padres da Fé, encantou-se com essas cristãs valiosas e pertencentes à elite, que sugeriu a Júlia a fundação imediata de uma escola para a instrução religiosa das crianças do povo. Quanto a Francisca, solicitou-lhe que se ocupasse com as meninas da aristocracia, no convento das Damas do Sagrado Coração, ao que ela declarou que a pobreza de Cristo era seu quinhão e que ela queria viver pobre, a fim de merecer tornar-se a serva e a mãe dos pobres. Desde então, a vida e a obra de Santa Júlia serão a vida e a obra de Francisca. E quando a morte vier arrebatar a fundadora em meio à sua tarefa, será Francisca, a co-fundadora, que há de dar, ao Instituto, uma regra toda impregnada do espírito de Júlia. Em Amiens, testemunha da cura miraculosa de Santa Júlia, Francisca, com uma total abnegação, estará sempre ao lado da amiga, na organização da obra, e irmanar-se-á a seus sofrimentos e humilhações, no conflito criado pelo abade de Sambucy, como vem contado nas Memórias. Nomeada superiora da casa de Namur, é ela que a transforma, progressivamente, em casa-mãe, nela implantando o espírito do Instituto, enquanto a Madre Júlia o difundia às demais casas, em cujo desenvolvimento ela se esmerava. Até a morte da fundadora, a 8 de abril de 1816, tendo vivido sempre eclipsada, ela teve o mérito de instaurar, por sua palavra e por seu exemplo, o profundo respeito à autoridade que caracteriza o Instituto. A 2 de junho de 1816, as Irmãs que tinham direito a voto elegeram, unanimemente, a Madre São José como segunda Superiora geral da congregação: ela já tinha mais de sessenta anos de idade. Guiada pelo Espírito Santo, ela continuou a obra de Santa Júlia, firmando seu governo na caridade e na concórdia, que excluem o rigor e o temor servil. Como Madre Júlia, ela teve que enfrentar numerosos obstáculos: a perseguição religiosa feita pelo rei dos Países Baixos, Guilherme I; uma dissidência, em 1835, com as próprias filhas, as quais, abusando de sua avançada idade, quiseram impor-lhe uma reforma, que teria transtornado completamente o espírito primitivo instaurado pela fundadora. Com uma determinação viril, Madre São José soube contornar a situação. Trata-se de 22
um complô feito mais de ilusão, que de malícia, escrevia ela, mais tarde. No dia 25 de junho, no mesmo dia em que Irmã Bórgia, a instigadora e o cerne da rebelião deixava o Instituto com mais duas companheiras, neste dia, Madre São José, com o coração partido, falou à comunidade e advogou a causa das outras culpadas que Irmã Bórgia havia subjugado, e isso tudo ela o fez com acentos de infinita ternura. Vossas Irmãs vão retornar para junto de vós. Recebei-as com amor e bondade. Elas já sofreram, já fizeram reparação... Demonstrai aquela delicadeza e suave bondade que suaviza qualquer pena e que ama mais porque sofreu mais... Dizeis que quereis consolar-me? Se sois sinceras, amai-vos umas às outras, como vossa idosa Madre vos ama a todas. Esquecei o fato passado e sede, a partir de agora, um só coração e uma só alma. (Carta à Irmã Juliana) No ano seguinte, expirava seu segundo mandato de dez anos como Superiora Geral: ela foi reeleita por unanimidade. Monsenhor Dehesselle, presidente do capítulo geral, constatando que, pelos votos espontâneos da congregação, um governo vitalício substituía um governo temporário, pôs em votação a questão: o generalato será vitalício, daqui por diante? A adesão foi unânime e instituiu-se o generalato vitalício para o Instituto, válido para o momento presente, bem como para o futuro. Monsenhor Dehesselle conhecia o Instituto desde longa data: jovem vigário em Liège e atendendo a paróquia de São Nicolau, aí encontrou Madre Júlia, pouco antes de sua morte, tornando-se, por longo tempo, amigo devotado das primeiras Irmãs de Nossa Senhora, nesta cidade. A última visita de Madre São José foi para Hainaut. Ao deixar a casa de Thuin, ela repetiu, como último adeus à comunidade, a recomendação de São João: Meus filhos, amai-vos uns aos outros. No dia 11 de maio de 1836, ela sofreu o golpe da perda de M. Minsart, que a havia recebido em Namur, ajudando-a com tanto devotamento e que ficara ligado às Irmãs de Nossa Senhora por estreita amizade. Pouco a pouco, a velhice imprimia suas marcas e a venerável fundadora enfraquecia a olhos vistos. Em meados de janeiro de 1838, ela caiu enferma e a 2 de fevereiro, Monsenhor Dehesselle veio pessoalmente administrar-lhe a extrema unção, sacramento que ela recebeu em pleno estado de lucidez. A 9 de fevereiro, após dias de intenso sofrimento, Madre São 23
José deixou, tranquilamente, esta terra; ela tinha oitenta e dois anos. Monsenhor Dehesselle foi o primeiro a vir rezar junto à defunta e reconfortar as Irmãs. Inteligente e enérgica, Madre São José era também dotada de uma estranha e rara sensibilidade, que a inclinou sempre para os fracos e os pobres, ao mesmo tempo que um senso de justiça a impeliu para a verdade, o bem e o belo. Todas as potencialidades de sua alma eram unificadas no amor sem limites a Deus. O Padre Thomas lhe havia dado, como conselho, no início de sua vida religiosa: É preciso que deis, como presente a Deus, uma alma que não teme, que tudo espera do amor, uma alma que quer fazer sua vida no amor. Toda a sua vida foi um hino ininterrupto de amor; e se quiséssemos exprimir o seu pensamento-chave num curto slogan, bastaria um grito, aquele de São Francisco Xavier: Ó Deus, eu te amo! As suas cartas são perpassadas dessa afirmação, em que uma só coisa conta: amar a Deus e amar os outros, sobretudo os pobres e os infelizes, De uma extraordinária humildade, ela pôs um tal cuidado em se eclipsar, em toda a parte, no espírito vivo de Madre Júlia, que as Irmãs belgas, ingressadas após a expulsão de Amiens, ignoravam sua identidade e o papel que ela havia desempenhado antes. Após a morte da fundadora, ela soube tão bem conduzir a sua obra, que seu generalato imprimiu ao Instituto sua orientação definitiva. Vindo após a Madre Júlia, em quem o vigor havia se destacado com muita ênfase, Madre São José pareceu sobrepujá-la em condescendência. Contudo, ela se preservou de modificar sua maneira de agir; conservando a imagem original impressa pela forte personalidade da fundadora, ela teve o cuidado de suavizar-lhe os contornos, aliando, a isso, firmeza e bondade. Co-fundadora de um Instituto dedicado à educação da juventude, ela se esmerou sempre, com muita sagacidade, na formação das mestras e pode-se, mesmo, dizer que o renome que o Instituto conquistou foi obra de Madre São José. Madre Júlia acendeu o zelo, mas foram-lhe deixados poucos anos para que ela pudesse ativar a chama, enquanto que Madre São José, dispondo de maiores recursos, alargou a fornalha desse zelo e lhe deu maior brilho.
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A 12 de fevereiro de 1838, foi celebrado um solene ato litúrgico, na igreja paroquial de São José. Uma extraordinária afluência de pessoas, de todas as condições, se comprimiu no pequeno recinto. Os jornais traçaram, em suas colunas, as grandes linhas da carreira de Madre São José. Em toda a parte, em Namur como alhures, a impressão era a mesma: é uma Santa que acaba de morrer. Monsenhor Dehesselle, em sua mensagem às Irmãs, disse-lhes: Não esqueçais jamais a parte que ela teve na fundação de vosso Instituto. Sem ela, vossa Congregação não teria podido existir; ela foi a digna cooperadora de Madre Júlia. Lembrando-vos de uma, não podeis esquecer a outra, pois que elas jamais se separaram... Elas estão unidas pela eternidade. (Apud História da venerável Madre São José, por Irmã Inácia, Clara Tomme, Téchy-Tomme, 1920). Eu, abaixo assinada, Irmã Aloísia Mainy, Superiora Geral do Instituto das Irmãs de Nossa Senhora de Namur, afirmo que a vida manuscrita (em quatro cadernos) de nossa Reverenda Madre e Fundadora Júlia Billiart, foi redigida pela Reverenda Madre São José Blin de Bourdon, co-fundadora e segunda Superiora geral do Instituto, a qual viveu, durante vinte e dois anos (1794-1816), intimamente unida a Madre Júlia. Eu conheci pessoalmente nossa venerável Madre São José. Era uma pessoa grave, calma, circunspecta, dotada de eminente sabedoria; estou convencida de que suas menores palavras foram avaliadas a preço de ouro, quando escreveu essa vida que deveria ser legada à posteridade, na qual o Instituto deveria buscar, continuamente, o espírito da Fundadora, como sua fonte mais pura e verdadeira. Namur, 5 de maio de 1883 Irmã Aloísia Mainy, Superiora geral das Irmãs de Nossa Senhora Atestado de autenticidade que figura no cabeçalho do primeiro Caderno dos manuscritos, assinado pelo próprio punho de Madre Aloísia, sexta Superiora geral da Congregação (18751888).
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Vida da reverenda Madre Júlia Billiart Fundadora das Irmãs de Nossa Senhora As quais começaram a se congregar na França, no auge da Revolução Francesa.
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Capítulo 1 DO AGRUPAMENTO DAS SEIS PRIMEIRAS JOVENS SOB A ORIENTAÇÃO DE MADRE JÚLIA, EM 1794, E DA ORIGEM DAS IRMÃS DE NOSSA SE-NHORA, NO SEGUNDO AGRUPAMENTO, EM 1804. Júlia Billiart nasceu em Cuvilly, pequeno vilarejo da Picardia, situado a três léguas de Compiègne e mais três de Montdidier. Seus pais eram cristãos fervorosos; dedicavam-se ao comércio de roupas, rendas e mercearia e disso viviam comodamente. Júlia, além dos cuidados do pai e da mãe, que queriam formá-Ia na virtude, contou com a ajuda de um venerável pastor, cura da paróquia a que pertencia, M. Dangicourt. Reconhecendo a disponibilidade daquela alma, este sacerdote lhe deu todas as atenções que seu zelo lhe ditava. Júlia amou Deus desde os seus mais tenros anos, e Deus não tardou em lhe dar provas de um singular amor. Primeiramente, Ele visitou os pais da pequena, enviando-lhes sofrimentos atrozes, permitindo que os invejosos, os caluniadores, os ladrões e reveses em seu pequeno comércio os reduzissem ao infortúnio. Cheia de amor para com seus pais, que ela quereria ver poupados, e gozando de ótima saúde, Júlia se entregou sem reserva, e mesmo com excesso, a trabalhos rudes do campo. Ademais, eram viagens contínuas a cavalo, a pé, de dia e de noite, não importando o tempo que fizesse; quase não dormia, alimentava-se sobriamente, sofria os rigores do frio e do calor: tais foram os seus primeiros exercícios de penitência. Deus queria conduzi-la mais longe ainda ... Estando, uma noite, tranquilamente sentada em sua casa, uma grande pedra foi lançada com força, através da janela, vindo cair junto dela, ao mesmo tempo que se fez ouvir um estampido de fuzil. Ela imaginou que inimigos quisessem matar seu pai, e esse susto lhe causou um grande abalo. Ao que tudo indica, foi essa a origem de seus achaques nervosos de 29
que ela passou a sofrer, daí por diante. Júlia tinha, na época, por volta de vinte anos; seu sofrimento se prolongou até os trinta anos. Depois, sobreveio a Cuvilly, uma enfermidade epidêmica, da qual se morria, se não se fizessem sangrias no pé. Em meio a contratempos, o médico foi chamado para atender Júlia, cujos males, no entanto, eram indefiníveis e desconhecidos da arte médica. Enganou-se o médico, ao prescrever-lhe o tratamento adequado à epidemia do momento e, em consequência das muitas sangrias que lhe fez nos pés, Júlia foi reduzida à impossibilidade de andar, a não ser com muletas, ao mesmo tempo que se lhe aumentaram os achaques. Aproximadamente, seis meses mais tarde, ela caiu de cama, permanecendo presa ao leito durante vinte e dois anos. Perdeu completamente o uso das pernas; era impossível manter-se de pé e não podia dar um passo sequer. Era preciso tomá-Ia ao colo e sentá-Ia sobre uma cadeira, o que lhe era muito doloroso, durante o tempo em que se lhe compunha a cama. Perdeu, também, o uso da fala distinta - não lembro a época – e uma forte contração dos nervos do queixo a obrigavam a emitir uma linguagem que quase ninguém entendia. Havia, no entanto, momentos em que, impelida pela necessidade, ela conseguia se expressar. Tais momentâneos êxitos ela os conseguia graças à sua fé e ao desejo de obedecer a determinadas pessoas; no entanto, eram raros. Se permanecia em silêncio durante um quarto de hora, o problema retornava. Júlia fazia crer, a todo mundo, que ela só era capaz de proferir aquela sua linguagem ininteligível, no intuito, certamente, de afastar os importunos e para que se a deixasse mais só com Deus, que era seu único entretenimento, sua consolação e sua força, no leito de dor. Só uma fé viva era capaz de conservar-lhe a paciência e proporcionar-lhe íntimos colóquios com Deus, na oração; tais enlevos espirituais, se amenizavam as dores, fortificavam seu amor e a dispunham aos desígnios da Providência. É quase inacreditável como, durante tantos anos, ela tenha comido tão pouco, como tenha sofrido tão grandes dores do coração, males nervosos de toda espécie, a tal ponto de não se saber definir os efeitos. Júlia tinha convulsões horríveis: as pessoas mais reforçadas não conseguiam segurá-la, de modo que se acreditava, em Cuvilly, que ela era possessa. Esteve em transes de morte e recebeu a extrema unção cinco vezes. Tinha um irmão de saúde fraca, acentuadamente coxo, e uma irmã quase cega, que 30
em nada podiam ser úteis aos pais; estes tiveram, em Júlia, que havia sido seu braço direito, motivo de grande aflição. O cura da paróquia vinha vê-la com frequência e a consolava. Uma senhora de Paris, Madame Baudoin, filha de M. de Arlincourt, arrendatário geral, 1 - o qual foi guilhotinado por ocasião da crise dos arrendatários gerais, - tinha uma pequena casa de campo em Cuvilly. Ela aqui vinha veranear, com suas três filhas. Madame de Pont-l’Abbé, jovem virtuosa, tinha seu castelo nas proximidades; ela costumava visitar a vizinhança. O pároco havia falado a essas damas, de maneira elogiosa, da paciência e da virtude de Júlia. Visitaram-na, conheceram-na e de tal modo a ela se prenderam, que só penalizadas é que se afastavam do leito da enferma. O bom M. d’Arlincourt, de oitenta anos, estimou-a a ponto de deixar-lhe, em testamento, uma renda vitalícia de seiscentos francos. Estoura a Revolução. O bom pastor fugiu para Paris, monte Valérian, onde veio a falecer, pouco depois. Um intruso foi colocado em seu lugar. Os maliciosos se envenenaram contra a pobre enferma, porque ela não quis aceitar o intruso. Madame de Pont-l’ Abbé, de quem Júlia era muito afeiçoada, a fim de subtraí-la à perseguição, veio buscá-la, levando-a em seu carro, juntamente com Felicidade, sobrinha de Júlia. Com Madame, ela não esteve segura por muito tempo, pois que ela própria foi perseguida e obrigada a fugir ao exterior, onde veio a falecer. Deixou Júlia e a sobrinha aos cuidados do seu zelador e da mulher. Felicidade só tinha dezesseis anos; ela havia sido educada por uma tia, desde os sete anos Ambas permaneceram um ano nesse castelo; porém os revolucionários se atiçaram novamente: eles insistiam em acusar Júlia de estar escondendo sacerdotes e ameaçavam de incendiar-lhe a casa. Uma multidão se amotinou, a fim de arrancar a pobre enferma de seu leito e fazê-Ia dançar sobre o cobertor.2 Mas Deus, que é a divina bondade, não permitiu tal excesso e amainou a tempestade mediante o zelador do castelo, o qual soube dirigir-se de maneira tão adequada aos insensatos, que os fez recuar, desta vez, de seus intentos. Temendo novos ataques, com possíveis prejuízos 1. Antes da Revolução de 1789, o arrendatário geral era encarregado da arrecadação dos impostos indiretos. Ele representava a alta finança no Antigo Regime e seus benefícios eram consideráveis. A 2 de dezembro de 1790, este cargo foi extinto; em 1793, os arrendatários gerais foram feitos prisioneiros e seus bens sequestrados. Quase todos foram guilhotinados. (Dicionário de História Universal I, de Michel Mourre, Editions Universitaires, 1968) 2. Quer dizer “mantear”, no sentido antigo. Fazer subir a manteação: troça que consiste em fazer alguém saltar ao ar sobre um cobertor, que é seguro por várias pessoas. (Robert).
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para a casa, Júlia decidiu partir, sem sequer saber para onde. O zelador e Felicidade colocaram-na, mais morta do que viva, em uma charrete, que atravessou multidões de revolucionários, os quais procuravam por ela, sua presa, que assim lhes escapava sem que o percebessem, porque o que Deus guarda, está bem guardado. Levaram-na a Compiègne. Ali, dentro da charrete, Júlia passou uma noite intensamente fria, sem saber o que lhe poderia acontecer. Enregelada, a sobrinha a salvou da morte, introduzindo-lhe uma colher de vinho por entre os dentes cerrados. Ao final, senhoras caridosas a recolheram; porém, pouco tempo depois, elas mesmas ficaram receosas de tê-la consigo, por causa da sua reputação de devota, e a sobrinha viu-se obrigada a procurar-lhe outro abrigo. Creio que, nos três anos e meio que ela viveu em Compiègne, ela mudou de residência cinco vezes. Madame Baudoin, da qual já falei, fugiu de Paris durante a Revolução e veio refugiar-se em Amiens com suas três filhas. Ignoro onde ela tenha ido abrigar-se, então, mas em 1794 refugiou-se em casa de Madame Blin, na rua dos Agostinhos. O marido possuía um apartamento, o qual, durante uns poucos meses havia sido ocupado por Madame Baudoin. A família fazia gosto em hospedar Júlia, razão por que o Sr. Blin destinou um dos quartos da casa a Júlia e sua sobrinha, local otimamente disposto pela Providência, para abrigar a enferma. Madame Blin elogiou o marido pela iniciativa e escreveu diversas cartas a Júlia, que se encontrava em Compiègne, pedindo-lhe que viesse a Amiens. A ideia foi recebida com relutância, por parte da enferma, a qual se encontrava em tal estado de sofrimento, que só um milagre parecia poder deslocá-la. No entanto, após superar uma série de resistências interiores, Júlia pareceu vislumbrar algum desígnio divino, ao consentir na sua transferência para Amiens. Enviaram-lhe uma boa carruagem, onde a puseram, e ela partiu com a sobrinha, em outubro de 1794. A mãe de Júlia veio vê-la pela derradeira vez, quando a carruagem passou em Cuvilly. Chegando em Amiens, a sobrinha tomou-a nos braços e carregou-a até o leito que lhe haviam preparado, pois durante vinte e dois anos, ininterruptamente, ela esteve totalmente privada do uso das pernas. Passados alguns dias, Madame Baudoin convidou a senhorita Blin a conhecer Júlia. A convidada, que não tinha muito que fazer, aceitou o convite; mas tais visitas não deveriam ter atrativo nenhum, uma vez que 32
não entendia sequer a linguagem da doente. Ela, no entanto, encantada, tornou frequentes essas visitas. Ia fazer leitura junto à enferma, a qual, com frequência, permanecia dias inteiros sozinha, uma vez que a sobrinha precisava afastar-se, a fim de atender os afazeres da casa. A visitante dava os remédios à enferma e tentava fazer com que ela comesse um pouco. A senhorita Blin, contra toda expetativa e contra toda lógica, afeiçoou-se deveras à doente, como se verá a seguir. Madame Baudoin havia conhecido, em Paris, um excelente sacerdote, o Padre Thomas, que, no momento, encontrava-se em Amiens, onde se havia refugiado, a fim de fugir aos furores da Revolução. Em Amiens, a situação sempre fora um pouco mais calma do que em outras cidades. Contudo, convinha agir com muita precaução, uma vez que esse sacerdote ocultava seu nome, sua condição de padre e, por vezes, até mesmo sua pessoa. Madame Baudoin apresentou o Padre Thomas a Júlia, vindo a tornar-se seu confessor, seu apoio, seu consolador. Ele vinha, diariamente, trazer-lhe a santa comunhão, com uma caridade infatigável. Senhoritas da Bretanha, em cujas propriedades o sacerdote se abrigara, deixaram Amiens, a fim de retornarem a seus países. Ele passou a alojar-se, daí por diante, num pequeno recinto, no mesmo quarteirão de Júlia. Assim que pôde contar com um sacerdote, diariamente, em sua casa, não tardou que a doente tivesse um altar em seu quarto, o qual era desmontado logo após a santa missa. Monsenhor Thomas conseguiu fazer com que Júlia, sempre que necessário, falasse distintamente, o que tornou sua companhia útil e agradável. A filha mais moça de Madame Baudoin chamava-se Lise; ela tinha dezessete anos e uma aparência muito amável. Ela era extremamente sensível, inclinada ao prazer e à dissipação, mas sentia-se, também, iresistivelmente atraída para Deus. Ela sentia, por Júlia, uma grande atração e alguma afinidade de caráter; Júlia, qual mãe espiritual, envidou esforços, no sentido de fixá-Ia na piedade, razão por que fazia questão de vê-Ia com frequência. Esta jovem tinha quatro amigas, beirando os vinte anos de idade, duas da família Doria e duas da família Méry. Lisa conduziu-as, as quatro, para junto de Júlia. As cinco, mais uma sexta, a senhorita Blin, que era a mais idosa, reuniam-se frequentemente, em grupo, em torno do leito de Júlia, a qual não poupou esforços, no sentido de inspirar-lhes uma sólida piedade. 33
Nesse meio tempo, Madame Baudoin veio a falecer e todas essas jovens vêm alojar-se em sua casa. Por ora, tratava-se de uma pequena comunidade, a qual viria a edificar o mundo. Observavam, todas, uma pequena regra, rezavam, em conjunto, o ofício de Nossa Senhora, viviam como numa irmandade e todas chamavam Júlia de “minha Mãe”. (É a denominação que se lhe dará, doravante, nestes escritos). Enfim, era um esboço daquilo que esta Madre iria fazer em sequência. Mas algumas dessas primeiras plantas não lançaram raízes, devido a um certo gosto mundano mal sufocado, outras, pelo amor excessivo e demasiado apego aos familiares. Todas se deixaram influenciar, e o pequeno agrupamento foi dissolvido. Uma das jovens Doria, no entanto, ingressou na congregação das Damas da Visitação, em Paris, as quais haviam-na educado e a quem ela estava intimamente vinculada. Doria escrevia continuamente a Júlia e não a esqueceu jamais. Sua irmã, seguindo vocação própria, casou-se e veio a falecer alguns anos após. A senhorita Lise também casou, mas não me atrevo a dizer, seguindo sua vocação... A caçula das Méry, que havia sido chamada por Deus, após ter passado alguns anos com uma irmã, a quem estava muito afeiçoada e que era uma senhora mundana, degenerou de seus primeiros sentimentos e teve uma morte deplorável, sem sacramentos, esvaindo-se em gritos, dizendo que estava a ver monstros... Lise também foi afastada da companhia de Júlia, caindo nas emboscadas do inimigo da salvação, o qual valeu-se da amizade que ela tinha por sua irmã mais velha, que faleceu quase imediatamente após o regresso da irmã. Significa que não restou, ao final de quatro ou cinco anos, à boa Júlia, senão a senhorita Blin, a quem Deus concedeu a graça de resistir à amizade que a prendia a um irmão e a uma cunhada, os quais tudo fizeram para conservá-Ia consigo; mais, considerando que, dona de uma pequena fortuna, ela não lhe seria sobrecarga; ao contrário, todos viviam bem e em harmonia. Mas não era isso que a Providência dispusera para ela. Fatigados da cidade e dos sobressaltos que as frequentes buscas aos padres ocasionavam, Monsenhor Thomas, nossa Madre Júlia e a senhorita Blin decidiram partir para o interior, ao lugarejo chamado Bettencourt, 34
que distava seis léguas de Amiens, no castelo que pertencia à senhorita Doria, a qual lhe fez a gentileza de lho emprestar. Partiram a 6 de junho de 1799, às nove horas da noite, para não serem reconhecidos. Permaneceram em Bettencourt aproximadamente quatro anos, período que lhes foi muito agradável. Ocupavam-se com a instrução dos moradores da vila, à catequese, à alfabetização. Os três se dedicavam a essas tarefas e aprouve a Deus conceder-lhes muito êxito. O ar da campanha não devolveu à nossa Madre o uso das pernas nem contribuiu positivamente para o seu estado de saúde; pelo contrário, fê-la contrair uma grave enfermidade. Mas concedeu-lhe, pelo menos, mais força, de tal modo que ela conseguia manter-se sentada em uma poltrona, ou mesmo recostada em um sofá; ela já não permanecia habitualmente no leito, como antes. Ela foi adquirindo, lentamente, o uso da fala, que se tornou mais fácil e mais inteligível. Todas as manhãs Monsenhor Thomas fazia-lhe várias perguntas, às quais ela devia responder, por ordem sua. O esforço que ela fazia por obedecer, eram ótimos exercícios de fala; e, embora, por vezes, ela ainda guardasse o silêncio, já não recaía naquela impotência costumeira, sobretudo ao entardecer. Pelo final de sua estadia em Bettencourt, Monsenhor Thomas fez uma viagem à Normandia e, durante sua ausência, Deus permitiu que nossa boa Madre recuperasse totalmente o uso da fala, da qual ela precisava agora, mais do que nunca, a fim de instruir. Em várias oportunidades, vieram sacerdotes de Amiens, visitar Monsenhor Thomas. Um deles, sobretudo, convém mencionar, uma vez que ele foi a causa e o suporte de nossa organização, em sua origem. Conhecendo mais profundamente nossa Madre Júlia, ele reconheceu, contra toda aparência, que ela estava predestinada a trabalhar pela glória de Deus de maneira mais ampla e abrangente, e expunha-lhe seus pontos de vista. Mas como se poderá fazer isso? perguntava ela. E, com efeito, sem perspectiva nenhuma. Este primeiro instrumento de que a Providência se serviu, para que se tornasse possível o surgimento da congregação, foi Monsenhor Varin, superior dos Padres da Fé, radicado, no momento, em Amiens; tal ordem observava regras que seguiam o espírito dos jesuítas. Quando o terror da Revolução passou, em fins de fevereiro de 1803, os três retornaram a Amiens. A residência da família Blin estava alugada. 35
Encontraram tão somente uma pequena casa, à rua Puits-à-Brandil, sem jardim, muito desconfortável, em todo sentido. Nossa Madre sofreu muito nesta casa. No entanto, ela prosseguiu ensinando catecismo às crianças, como de costume – era seu alimento, ela não poderia passar sem ele. Onde quer que estivesse, em torno do leito ou da poltrona, ela reunia crianças. Foi durante a permanência nesta casa, que a sobrinha a deixou, casando-se com um professor de campanha, que residia próximo a Bettencourt. Monsenhor Thomas mandou vir, da Normandia, Constança BIondel, sua prima, a fim de substituir Felicidade nas lides da casa. Permaneceram apenas seis meses nesta casa demasiado pequena. A divina Bondade não tardou em fazer com que encontrassem uma maior e mais confortável, na rua Nova, casa, esta, que deve ser preservada como o berço da nossa Sociedade. Durante a estadia em Bettencourt, as igrejas foram reabertas e fechadas as capelas particulares, o que, aliás, não impediu que nossa boa Madre tivesse a felicidade de continuar tendo missa em casa, diariamente, pois que o bispo de Amiens, então Monsenhor de Villaret, vindo ministrar a confirmação em Bettencourt e arredores, hospedou-se no pequeno castelo em que Júlia habitava. Comovido pelo seu estado de enfermidade, ele permitiu, sem dificuldade, que Monsenhor Thomas continuasse a rezar a santa missa, diariamente, em seu quarto. Essa permissão estendeu-se à rua Puits-à-Brandil e também à rua Nova, após o retorno a Amiens, de maneira que a capela surgiu antes mesmo do surgimento da comunidade e nós usufruímos sempre desta grande felicidade. Não é supérfluo dar, aqui, uma breve notícia da primeira benfeitora temporal de nosso Instituto. Senhorita Blin nasceu de pais muito ricos, os quais levavam uma vida repleta de espírito mundano. A filha foi educada nos mesmos princípios. Não se pretende, aqui, dar informações detalhadas sobre a vida e atitudes de Francisca Blin: não haveria, aliás, nada de edificante nem de útil. É suficiente saber, para o triunfo da graça, que, tendo vivido até a idade de trinta anos, seguindo as normas do espírito mundano, Deus, a quem tudo é possível, fê-Ia enveredar por outro rumo. Ela aplicou, sem reservas, por sua própria vontade, movida a isso exclusivamente por Deus, tudo quanto possuía, para o bem do Instituto. A fiel correspondência que ela encontrou da parte de Deus, que quer salvar todas as almas e que usou deste meio para a salvação dela própria e lhe perdoou todas as 36
dívidas, foi extremamente útil à nossa obra. Ela impôs como obrigação, a todos os membros do Instituto - principalmente conhecendo as grandes necessidades de uma alma que vem ao mundo para este fim - de rezarem muito por ela, tanto em vida, como após sua morte, uma vez que ela é um instrumento de que o Senhor se serviu em favor do Instituto. Madre Júlia, por sua humildade e movida pela prudência cristã, que não permite que alguém se apoie unicamente em si mesmo, consultava-a constantemente, em todos os assuntos. Considerava-a sua cooperadora e amiga, - tanto quanto isso é possível existir em religião -; e elas eram muito unidas, no coração e no espírito. Foi a 5 de agosto de 1803, que Júlia Billiart e Francisca Blin vieram residir na rua Nova, numa casa que não era tão espaçosa, mas agradável e cômoda e que foi o pequeno berço do Instituto. Monsenhor Thomas ainda estava com elas. Vamos reencontrá-lo, o mesmo respeitável sacerdote, em Amiens, o qual, desde Bettencourt, tinha planos de expandir a glória de Deus através de Júlia Billiart. Ele persistia nesse propósito, que melhor convém chamar de inspiração. O estado de enfermidade e de impotência em que Júlia se encontrava, em nada abalou sua confiança. Ele lhe disse, então, embora ela ainda não caminhasse, que era preciso que se dedicasse a lançar os fundamentos da obra, reunindo um grupo de jovens com espírito disposto e animadas de boa vontade. A primeira que veio reunir-se a Júlia e a Francisca Blin foi Catarina Duchâtel, da cidade de Reims. Ela saíra da casa do Oratório,1 onde se congregavam também algumas senhoras que se destinavam à educação de jovens. Catarina Duchâtel, que se sentia mais inclinada para os pobres do que para as jovens ricas, deixou as Damas do Oratório e veio ter conosco. Ela aqui não permanece mais do que um ano, pois que se encontrava mal, desde sua chegada e sua saúde acabou arruinando-se de todo. Foram feitas tentativas, no sentido de reconduzi-la ao Oratório, onde veio a falecer, seis meses após ter retornado. Deixou, para nossa casa, seus pertences pessoais e algum mobiliário. Era uma moça extremamente virtuosa e modelar, muito 1. Esta casa foi construída pelo Cardeal de Bérulle – de onde lhe vem nome – posteriormente ocupada pelo colégio fundado por Monsenhor Sellier, o qual o devolveu ao Padre Varin, superior dos Padres da Fé. Madre Júlia e Francisca Blin tinham planos com relação a esta casa, próxima ao hotel Blin de Bourdon, mas o Padre Varin, que a destinara às Damas do Sagrado Coração, escreveu à Madre Barat: ‘Ide ver, em meu nome, esta boa Júlia; dizei-lhe que a obra à qual Nosso Senhor a chama, merece ser adquirida com alguns sacrifícios”. Não foi preciso, para que se desistisse, maiores explicações, e alugou-se outra casa, na rua Nova. (Clair, S. J., Beata Madre Júlia Billiart p. 60; J. de Charry, “Santa Madalena Sofia”, p. 33)
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afeiçoada a nós. Creio que podemos considerá-la como uma intercessora junto a Deus. A 20 de fevereiro de 1804, ingressaram Vitória Leleu e Justina Garson. Neste mesmo mês, Firmine Queste, de 12 anos, veio ter conosco, a fim de fazer sua primeira comunhão e acabou ficando. Em março do mesmo ano, ingressou Genoveva Gosselin, de Bettencourt. Ainda neste ano de 1804, a 2 de fevereiro, as primeiras jovens, numa cerimônia religiosa, consagraram-se a esta obra piedosa. Júlia Billiart, Francisca Blin e Catarina Duchâtel, diante do Santíssimo Sacramento, proferiram o voto de castidade, prometendo a Deus de se dedicar à educação das órfãs e, sobretudo, à formação de professoras que atendessem, primordialmente, as escolas do interior. Mas como essas promessas não eram votos, foi alterado, algum tempo depois, o artigo referente às órfãs. O objetivo principal permaneceu sendo: o de formar educadoras, que se deslocassem para localidades onde fossem solicitadas – nunca menos de duas - a fim de darem instrução gratuita às crianças pobres. Neste mesmo dia da Purificação, elas receberam uma pequena regra, e a 2 de julho de 1805, dia da Visitação, elas receberam outra, mais extensa, mas ainda a título de experiência. Neste mesmo dia, nós nos consagramos, também, ao Coração de Jesus, sob a proteção do Coração de Maria. No mesmo ano, realizou-se, em Amiens, uma missão, que nós frequentamos com assiduidade; nossa Madre também lá esteve, diversas vezes, em sua cadeira ambulante. Ela conhecia os missionários, que eram os Padres da Fé, os quais lhe enviaram muitas pessoas que não estavam habilitadas a receberem os sacramentos, por não terem a devida instrução. Um desses senhores,1 muito zeloso e cheio de fé, teve a inspiração de fazer uma novena ao Coração de Jesus, a fim de obter a cura de nossa Madre. Ele lhe comunicou, a princípio, que fazia uma novena para alguém, e que ela se unisse a ele; Júlia atendeu o pedido, sem maiores indagações. A 8 de junho, sexta-feira da festa do Coração de Jesus, a novena estando no quinto dia, ele veio a casa, à noitinha, após o jantar, quando o dia ainda estava claro; nossa Madre estava só, no jardim, espairecendo, sentada em sua cadeira. Ele dirigiu-se a ela e lhe disse: - Se tendes fé, dai um passo, em honra do Coração de Jesus! 1. O Padre Enfantin.
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Ela se levantou e avançou um pé depois do outro, coisa que não fazia havia vinte e dois anos. - Mais um, ordenou o sacerdote. Ela obedeceu. Mais outro. A ordem foi seguida do ato. - Está bem, continuou o bom padre, sentai-vos! Ela sentou-se, dizendo-lhe, no entanto, que poderia ter dado mais passos. Ele se retirou. 1 Pouco depois, Júlia retornou à casa, que ficava no mesmo plano do jardim, sempre sentada em sua cadeira. Nós já nos havíamos retirado para o repouso. O leito de nossa Madre ficava embaixo; ela também foi deitar-se. Neste dia, nada mais de novo aconteceu. No dia seguinte, Madre Júlia subiu a escada para ir à capela, como o fazia há muito tempo, de costas, sentando-se em cada degrau e apoiando-se nas mãos. No alto da escada, encontrou uma cadeira bastante baixa, que sempre era deixada lá propositalmente, a fim de que, sentando-se nela, Júlia pudesse, utilizando-a, entrar na capela; desta vez, porém, ela tomou a cadeira nas mãos e entrou assim no recinto. No momento da santa comunhão, em vez de se arrastar sobre os joelhos, como de costume, dirigiu-se à mesa sagrada caminhando. Após a santa missa, nós todas já havíamos descido, quando ela se dirigiu a um quarto fronteiriço à capela e pediu que o Padre Thomas aí viesse, uma vez que se sentia demasiadamente obrigada para com ele, a ponto de não poder esconder-lhe por tanto tempo esta graça de Deus. Ela obteve a permissão solicitada, uma vez que a demora em nô-Io participar veio da que Deus havia se servido para operar o milagre. Aliás, ela havia recebido proibição expressa de comunicar algo a alguém, enquanto ele não a autorizasse a isso. Monsenhor Thomas compareceu; ela caminhou diante dele; ele, por sua vez, encheu-se de admiração e espanto e pôs-se a chorar convulsivamente. 1. Nota acrescentada à vida enviada a Roma, por ocasião do processo informativo para fins de beatificação. “A cura se deu a 1º de junho, e não a 8. A novena iniciou dia 28 de maio. Cura completa a 1º de junho, que era a primeira sexta-feira do mês, dia em que o Sagrado Coração é particularmente comemorado no Instituto. A 5 de junho, a cura foi divulgada. À noite mesmo, Madre Júlia iniciou seu retiro de dez dias. No dia 14 de junho, à noite, ela partiu para a missão de St-Válery”.
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Na parte restante deste dia e durante todo o dia seguinte, Júlia agiu como uma enferma, sempre que era vista e caminhava às vezes, quando se encontrava só. No domingo da oitava de Corpus Christi, ela veio conosco, em sua cadeira, até a porta de entrada, no momento em que a procissão passava. Nossa Madre teria podido, seguramente, acompanhar a procissão, mas foi desaconselhada a fazê-Io. Isto ocorreu apenas terça-feira, isto é, quatro dias depois que ela nos revelou a graça alcançada. Nós duvidávamos, ainda, de algo: várias pessoas haviam-na observado caminhando, quando se dirigia à santa comunhão, mas não se sabia se se tratava de cura completa, ou de uma graça momentânea. Respeitávamos o seu silêncio e não a interrogávamos. Toda a segunda-feira passou-se assim. Num dos dias que se seguiram, como ela se encontrasse no quarto de Monsenhor Thomas, que residia no térreo, este - seja que duvidasse ou não – pôs-se a fazer o papel do incrédulo. Disse-lhe: - Madre Júlia, não sei bem o que isso signifique... Eu não vos vejo andar. As obras de Deus são perfeitas. Se Ele, realmente, vos curou, vós deveríeis continuar andando. - Meu Padre, asseguro-vos que, quando vos ouço falar, algo, em mim, se afirma mais e mais. Quereis que suba a escada em vossa presença? - Sim, disse ele. Ela subiu a escada, com muita facilidade. Finalmente, na terça-feira, após nossa ação de graças, nós descíamos, como de costume, para o café da manhã, ao refeitório. Estávamos todas em silêncio, quando duas crianças, que estavam à porta, exclamaram: “Vejam nossa Madre que desce!” Nós nem sequer nos movemos para ir-lhe ao encontro. Um espanto indescritível se apossou de nós. Nossa boa Madre entrou com passo firme; nós todas caímos de joelhos, dando louvores a Deus. Retornamos imediatamente à capeIa, a fim de entoarmos o “Te Deum” de ação de graças. Não pudemos usufruir por muito tempo do prazer de vê-Ia, após a cura, pois que, imediatamente ela iniciou um retiro de dez dias, o qual foi, simultaneamente, uma ação de graças e uma preparação para as novas tarefas.
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Os missionários, após a missão de Amiens, tiveram um curto período de repouso, dirigindo-se, depois, a St-Valéry-sur-Somme e a Abbville, para novas missões. Eles manifestaram insistente desejo de que Júlia os acompanhasse, auxiliando-os na catequese dos ignorantes que a eles se dirigissem, tal qual fizera em Amiens, com muito sucesso. Ela concordou e levou consigo a Irmã Vitória Leleu. Ambas realizaram todas as tarefas possíveis, abrangendo um grande número de pessoas; também os homens foram instruídos por elas. Tais pessoas, ou se dirigiam espontaneamente, ou eram encaminhadas, preferencialmente, a Júlia, e não à Irmã Vitória, que era muito jovem. Por ocasião desta sua atividade em St-Valéry, aconteceu-lhes que, um dia, estando na rua, um carroceiro, a pouca distância das duas, chicoteou, súbita e fortemente, seus cavalos, o que os impeliu a uma disparada; ambas tiveram que disparar igualmente, deixando livre a rua. Esse episódio provocou uma entorse ou distensão no pé de Madre Júlia, o qual inchou a tal ponto, que, não fosse sua grande coragem e a situação de necessidade, não teria podido caminhar, mas ela foi se arrastando lentamente, com grandes dores. Os missionários, vendo-a, novamente, com dificuldades no andar e não sabendo a que atribuir o fato, começaram a duvidar da solidez da cura. Isso durou por vários dias, quando, por fim, Madre Júlia, aflita, arrastou-se até a igreja, onde permaneceu horas a fio, diante do altar, até que o Senhor dela se compadeceu. Ela saiu da igreja completamente refeita do acidente. Eu vim a sabê-Io através de uma testemunha visual, que estava no local do ocorrido – Monsenhor Varin - e ele próprio o confirmou, muito tempo depois. Madre Júlia retornou a Amiens alguns dias antes da festa da Assunção, após quase dois meses de ausência; ela havia partido logo que concluíra seu retiro. É de se perguntar se nossa alegria foi grande, com essa volta. Era sua primeira ausência, e nós a sentimos intensamente. Celebramos, pela primeira vez em nossa capela, a festa do Coração de Maria, a 18 de agosto de 1805, domingo da oitava da Assunção. O pároco da catedral celebrou a santa missa e fez uma alocução cheia de unção e muito oportuna, no sentido de nos fazer apreciarmos a graça de nossa vocação. Monsenhor Thomas deixou-nos, a 10 de setembro deste mesmo 41
ano, para ir pregar missões, juntamente com outros missionários; foram, primeiramente, à diocese de Bordéus, onde permaneceram longo tempo. Josefina Evrard, Angélica Bicheron, Elisabeth Michel, Catarina Doullée, Teresa Boutrainghan e várias outras jovens ingressaram na comunidade, neste ano. Também em 1805, Júlia Billiart e Francisca Blin, Vitória Leleu e Justina Garson pronunciaram seus votos, a 15 de outubro, dia de Santa Teresa, na capela da pequena casa da rua Nova, em Amiens. Josefina Evrard, Genoveva Gosselin, Catarina Daullée e Teresa Boutrainghan, por sua vez, os emitiram no dia 27 de março de 1806, ocasião em que as quatro primeiras renovaram os seus. A 19 de agosto de 1805, nossa casa recebeu uma pequena órfã, de doze a treze anos, que acabava de sair do hospital; parecia fraca dos pulmões. Ela era muito ignorante e tinha algumas falhas de educação, mas era simples e inocente. Algo de marcante, nela, era o prazer de ouvir falar da religião. Muito atenta nas aulas de catecismo, ela fazia perguntas contínuas a uma das Irmãs que fora incumbida de instruí-Ia. Sua saúde enfraquecia cada dia mais. Foi quando nosso antigo conhecido, Padre Varin, que estivera ausente, retornou a Amiens. Viu-a, falou com ela diversas vezes e quis que a preparássemos, o mais rapidamente possível, à primeira comunhão. Era como se isso lhe trouxesse uma abundância de graças. Sua inteligência desenvolveu-se, em poucos dias, para as coisas do espírito e seus sentimentos a todas edificavam. Com a permissão dos superiores eclesiásticos, foi-lhe possível fazer a primeira comunhão em nossa capela. A menina ainda teve a ventura de comungar mais três vezes em nossa capela, antes de sua morte. A última vez, ela sofreu tanto durante a santa missa, que só chorou e soluçou o tempo todo. O bom Padre Varin não quis que ela fosse levada para fora. Sua caridade foi recompensada, pois, no instante da comunhão, nós a vimos sorrir; cessaram seus prantos e soluços e sua ação de graças foi tranquila. A seguir, ela foi piorando mais e mais. Finalmente, soou a hora da morte; ela não a temia, antes, desejava-a. Havia um quarto de hora que ela estava em silêncio e disse, subitamente: Senhor, eu te peço! Alguns minutos depois, fez sinal, pedindo seu crucifixo; beijou-o várias vezes. Finalmente, pediu água; mas, ao primeiro gole, rendeu sua 42
alma. Nós ficamos muito gratificadas com esta morte e passamos a ter a certeza de contarmos com mais uma protetora junto a Deus. Ela morreu no dia 19 de fevereiro de 1806. Padre Leblanc, que havia recebido do Padre Varin jurisdição sobre nós, residira em Flandre e era particularmente conhecido do bispo de Gand, então Monsenhor de Beaumont. Precisando fazer uma viagem a esse país, ele convidou nossa Madre a acompanhá-lo, a fim de apresentá-Ia ao bispo de Gand, prevendo que isso resultaria em algo de positivo. A ideia da viagem encontrou oposições por parte de Monsenhor de Sambucy, nosso confessor, o que não tinha razão de ser, mas aconteceu por insinuações do inimigo da salvação. Nossos viajantes partiram no mês de junho de 1806. Nossa Madre foi muito bem recebida pelo bispo de Gand, o qual manifestou interesse em ter, na sua diocese, uma casa da congregação. O objetivo de nossa Madre era trazer consigo algumas flamengas que falassem um pouco de francês, a fim de que elas, aprimorando-se em nossa língua e imbuindo-se do espírito do Instituto pudessem, mais tarde, propagá-lo em seu país de origem e aí abrir novas casas, onde se ministrasse instrução a meninas pobres e também se formassem professoras para escolas, sobretudo para o interior, como é próprio do espírito do Instituto. As atenções de Monsenhor de Beaumont e as promessas de providenciar com todo tipo de assistência que ele fazia à nossa Madre, enquanto esses planos vinham sendo elaborados, deram-lhe grande satisfação e ela nutria vivas esperanças de, também em Flandre, trabalhar para a glória de Deus. Da primeira viagem, trouxe consigo Teresa Lauwers, que não falava uma palavra sequer em francês; viera a 29 de junho. Haviam-lhe prometido, em Flandre, que seriam procuradas mais jovens vocacionadas; com efeito, ela retornou à sua terra no dia 28 de agosto do mesmo ano, voltando a 18 de setembro, trazendo consigo cinco flamengas, das quais, duas não sabiam absolutamente nada de francês, e uma, muito pouco. No espaço de tempo entre as duas viagens a Flandre, nós deixamos a pequena casa da rua Nova, que já não podia abrigar o número crescente de moradoras, e nos mudamos para Faubourg-Noyon, numa casa maior, embora ainda não fosse como nós desejávamos. Nossa Madre só nos acom43
panhou por obediência, pois esta casa não lhe convinha, uma vez que o aluguel era demasiadamente alto para nós. Quando deixamos a rua Nova, éramos, já, dezoito Irmãs e quatro crianças. Uma senhora piedosa e muito afeiçoada à nossa comunidade desejava, desde muito, morar conosco; a Divina Providência conduziu-a a Faubourg Noyon. Esta senhora, chamada Madame de Franssu, veio ter conosco no intuito de ser-nos útil, do que, aliás, não tardou que nos desse provas reiteradas. A nova casa pertencia ao bispo; havia-lhe sido doada, em benefício do seminário. Nós pagávamos mil francos de aluguel e tínhamos uma despesa de mais de quatro mil francos, em necessidades de subsistência. O Sr. bispo nos aliviou o aluguel para 600 francos e firmou contrato conosco para nove anos consecutivos; foram, não resta dúvida, gentilezas da parte dele. Nesta nova casa, nosso número foi aumentando rapidamente; em menos de um ano éramos trinta, sem contar as que enviáramos a Saint-Nicolas, cinco, e duas a Montdidier, como o relatarei logo a seguir. É de notar que Nosso Senhor, neste início de obra, só chamava pessoas pobres de bens materiais; apenas a Madre Blin fazia exceção. Certamente, foi obra da misericórdia divina, o fato de querê-la entre suas servas e aceitar suas oferendas. Tivemos uma noviça que, após estar quinze meses entre nós, recebeu uma pequena herança que lhe rendeu 1.500 francos, o que representava para nós, no momento, algo de considerável. Nossa Madre tinha, então, algumas suspeitas com respeito à vocação dessa jovem, mas, não encontrando fundamentação para tal, não quis manifestá-Ias. A Divina Providência permitiu que, após ela ter tocado numa parte da herança, a qual veio depositar nas mãos de Madre Júlia, surgiu uma circunstância que evidenciou, nitidamente, que essa pessoa não era vocacionada. Ainda em tempo nossa Madre lhe devolveu o dinheiro e pediu-lhe que deixasse a casa. Ela deixou 150 francos, como pagamento da pensão por todo esse tempo que estivera conosco. Preferimos de nos contentar, antes que contestar. Uma senhorita, que tinha de 3 a 4.000 libras de renda e que desejava muito entrar para a congregação, não foi aceita, porque nossa Madre intuiu que havia algo de errado e que não convinha à nossa casa, embora ela 44
fosse muito piedosa, habilidosa para várias tarefas, enfim, excelente em seu gênero. Nós fizemos a experiência de que o espírito desinteressado e a fidelidade às regras garantem, às comunidades, os recursos necessários, com maior segurança do que a posse de todos os tesouros do mundo os poderia garantir, visto que a Divina Providência é que se incumbe de prover a tais necessidades. Procurai, em primeiro lugar, o reino de Deus, e tudo o mais vos será dado de acréscimo. Nós tínhamos também, na época, oito pensionistas. O interesse pela preparação de suas almas era a nossa primeira preocupação ao aceitá-Ias, uma vez que quatro delas aí estavam gratuitamente, cabendo a nós prover, inclusive, as roupas que vestiam; três, contribuíam com pouca coisa e apenas uma entrava com 350 francos. O espírito de pobreza, de mortificação, substituiu a abundância; e quando a ordem e o cuidado a isso se juntam, pode-se muito com pouco. A renda de Madre Blin não ultrapassava os 4.500 francos; pode-se deduzir daí que se fazia necessária uma administração deveras sábia para, com essa importância, alimentar, vestir, abrigar e aquecer, aproximadamente, 30 pessoas, fazer viagens, mobiliar casas. A boa senhora de Franssu, durante todo o tempo em que estivemos em Faubourg-Noyon, deu 150 francos por mês; Deus concedeu à Madre Júlia um excelente espírito administrativo, de tal maneira que não fizemos dívidas, coisa que as casas religiosas devem cuidar muito bem, por motivos de consciência e por causa dos grandes inconvenientes que possam advir. Ademais, é de se louvar a Deus pelo bom andamento de tudo. Quando Madre Júlia retornava de suas viagens, empenhava-se, com muito zelo, na instrução de suas filhas, no sentido de formá-Ias sempre mais, ao mesmo tempo que buscava entusiasmá-las para tudo. Como suas ausências, até então, eram breves, as coisas se mantinham normalmente, sob a vigilância de Madre Blin, que disso se incumbia. O caráter de Madre Blin era diferente do de Madre Júlia; mas como ambas eram muito unidas, não transparecia nenhuma divergência de opinião, dependendo, a Madre Blin, perfeitamente de Madre Júlia, transcorrendo, tudo, na mais completa harmonia.
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As pessoas chamadas a essa vocação eram boas e simples, mas eram terrenos incultos, que era preciso desbravar a todo custo; todas as que entravam não permaneciam. Realmente, o bom Deus nos concedeu uma grande graça, ao não permitir que determinados elementos nocivos permanecessem entre nós, vindo a se retirar, após quatro ou cinco anos. Nossa Madre recebeu uma carta do Monsenhor, o bispo de Gand, comunicando-lhe que, numa viagem que fizera a St-Nicolas, pequena cidade de sua diocese, a oito léguas de Gand, ele havia encontrado governantes da cidade que lhe manifestaram o desejo de ter, em seus domínios, Irmãs de escola, bem como criar uma casa para a instrução de meninas pobres. Ele achou que conseguiria realizar seus planos. Sugeriu-lhe que fosse tratar in loco com os interessados. Madre Júlia foi, realmente, a 13 de novembro, levando consigo, até Flandre, Teresa Lauwers, a quem nós não convínhamos e quem, para nós, também não era conveniente. Nossa Madre retornou a Amiens, no final do mesmo mês. Tudo estava arranjado, não sem algumas dificuldades, sofrimentos e embaraços, que seria longo relatar aqui. É suficiente dar-se conta de que, tais contratempos, são os tesouros preciosos de que a Divina Providência se serve para operar suas maravilhas. Ficou estabelecido que nossa Madre retornaria a St-Nicolas, com suas filhas, dez ou doze dias após seu regresso a Amiens. Passou-se este tempo preparando aquelas irmãs que haviam sido escolhidas por nossa Madre para esta nova empresa. Fizeram-se, para elas, roupas de lã preta de um tecido bastante comum, grandes sobretudos longos que iam até os calcanhares e uma espécie de enfeite, como um chapéu preto, também de lã, tal como nossa Madre havia trazido de modelo, de Flandre, e escapulários1 de tecido branco. No dia subsequente ao da festa da Imaculada Conceição, a 9 de dezembro, portanto, Madre Júlia partiu, acompanhada de Justina Garson e Josefina Evrard - francesas - e Maria Steenhaut - flamenga. Mais tarde, seguiram Margarida Van Elderen, também flamenga, e no dia 16 de fevereiro, para lá foi enviada Rosa Hannequart, também flamenga. Nossa Madre permaneceu, durante dois meses, com suas filhas, no intuito de ajudá-Ias na primeira arrancada e apontar-Ihes o caminho a seguir. Também 1. No original “guimpe”: pedaço de tecido branco, com o qual as religiosas cobriam os ombros e o peito (Littré).
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esta nova comunidade encontrou entraves e dificuldades, que, aliás, foram acolhidas por nossa Madre com ações de graças e como coisas preciosas e necessárias. Deus difundiu sua bênção também aqui e sobre as primeiras pessoas que, com dedicação, iniciaram os trabalhos, sobretudo a Irmã Justina, primeira superiora, que passou a se chamar de Irmã St-Jean. Alunas externas acorreram, em abundância e, em pouco tempo, houve também pensionistas. Durante a ausência de Madre Júlia, um padre veio a Amiens, querendo saber se não seria possível conseguir Irmãs que fundassem uma comunidade em Montdidier, a oito léguas de Amiens. Trataram-se as condições em que isso se faria, para que pudessem ser apresentadas à Madre Júlia, por ocasião do seu retorno, o qual aconteceu no dia 4 de fevereiro de 1807. Ao ser informada, ela partiu logo para Montdidier, no dia 21 deste mês; acompanharam-na as Irmãs Catarina Daullée e Angélica Bicheron. Ela se demorou lá, aproximadamente, doze dias, a fim de organizar as tarefas e iniciar a escola. Essas Irmãs de Montdidier foram muito estimadas pela população e Deus abençoou as suas atividades, de que vinham se desincumbindo a contento de todos. Enquanto nossa Madre se demorava em St-Nicolas, o bispo de Namur procurava por ela, para onde se dirigiu de St-Nicolas mesmo, pois que esta cidade dista de Namur apenas vinte léguas. Era pleno inverno. Nossa Madre chegou em Namur já noite fechada, com neve e chuva, após ter atravessado a cidade a pé, toda enlameada. Chegando à casa do Monsenhor de Namur, em tão deplorável estado, molhada e a tiritar de frio, para cúmulo de felicidade, ela encontrou um empregado muito mal-humorado, que a recebeu muito mal, dirigiu-lhe palavras injuriosas e mandou-a procurar hospedagem na cidade, onde, aliás, ela não conhecia ninguém. Disse-lhe mais: que Monsenhor estava amolado e que ele não queria importuná-Io. A boa Madre fez menção de se retirar, sem saber para onde ir; mas tudo indica que o bom anjo deste desajeitado caseiro deve ter-se recordado que ela, em meio à conversa, havia dito que aí viera ter a chamado do Monsenhor, pois, antes mesmo que ela se afastasse, chamou-a de volta, avisou seu patrão e lha apresentou. Monsenhor desdobrou-se em genti47
lezas, deu-lhe hospedagem e reteve-a em sua casa durante três dias. Tudo ficou combinado e estabeleceu-se que, no verão, ela retornaria com algumas Irmãs. Monsenhor não demorou em alugar uma casa, mobiliando-a e provendo-a de todo o necessário. Nossa Madre foi obrigada a empreender uma quinta viagem a Flandre, com o intuito, desta vez, de levar de volta uma de nossas flamengas, a respeito da qual se temia que enlouquecesse, à força de escrúpulos. Nossa Madre, percebendo que não havia solução para o caso, partiu com ela, a 5 de março de 1807. Como esta viagem era conduzida pela Providência, para que certas realizações pudessem se concretizar, não deixou de ser motivo, concomitantemente, para que o inferno se pusesse em movimento. As próprias superioras, embora cheias de entusiasmo e boa vontade, e prevenidas para o que desse e viesse, foram amotinadas e, no retorno de Madre Júlia, fizeram-na sentir o despeito que as dominava, bem como por ocasião de sua primeira viagem a Flandre. Ela as tolerou, sem se justificar. E como Deus queria sair glorificado de tudo isso, permitiu que ela cometesse algumas falhas em termos de formalidades, as quais, aos olhos das exaltadas, pareceram coisas graves. No dia 30 de junho, Madre Júlia partiu para Namur; levava consigo, desta vez, Madre Blin, a qual passou a se chamar, desde este momento, em Namur, Irmã São José. Irmã Genoveva Gosselin partiu também. Nossa Madre solicitou à Irmã Josefina Evrard, ao passar por St-Nicolas, que tomasse o nome de Xavier, e aí deixou Genoveva Gosselin. De Namur, Madre Júlia encaminhar-se-ia a Bordéus. Aí estava sendo aguardada, desejada e solicitada havia muito, por pessoas bem-intencionadas, as quais se haviam congregado e desejavam unir-se a nós, assim que tiveram notícias a nosso respeito, através dos missionários que, de Amiens haviam-se dirigido a Bordéus. Madre Júlia partiu, assim, a 25 de julho, rumo à grande cidade, onde o grupo já formado desejava mais intensamente unir-se a nós, uma vez que fôramos provisoriamente aprovadas, havia muito pouco tempo, pelo governo francês. Era tudo quanto nos faltava, para que pudéssemos livremente pôr em execução a boa vontade de nossas Irmãs, na instrução da juventude.
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Capítulo 2 ... QUE CONTÉM A VIAGEM QUE MADRE JÚLIA FEZ NO DIA 30 DE JUNHO DE 1807, ACOMPANHANDO MADRE BLIN A NAMUR, A FIM DE INICIAR A FUNDAÇÃO, ATÉ AQUELA QUE CONDUZIU ALGUMAS DE NOSSAS IRMÃS PARA INICIAREM AS OBRAS EM JUMET. Madre São José, embora intimamente vinculada à Madre Júlia, suportou a separação da amiga sem maiores dificuldades. Alguns dias antes, em vista1 da separação iminente, ela andou aflita, mas, na véspera da partida, contemplando um quadro que representava a vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos, ela se sentiu possuída de forte sentimento de alegria e de confiança. Esta partida teve, para ela, o significado de uma viagem comum, à qual se seguiria o retorno imediato. Sem pretensões de atribuir grande importância às suas palavras, disse à Madre Júlia, no momento da partida: Adeus, minha Madre, vós haveis de vir morrer em Namur. Padre Leblanc chegou a Namur no dia 23 de julho, como havia estabelecido com Júlia, que ainda lá se encontrava, encontro marcado em vista de um projeto que deveria servir à glória de Deus, o qual, no entanto, não se realizou. Mas retornemos ao que se passou em Amiens. Este bom Padre, que havia estado em nossa casa, por ocasião da ausência de nossa Madre, que observara as mudanças aí operadas, disse-lhe, num tom de piedade, no momento da partida: Minha cara Madre, vós não tereis, atualmente, maior influência em vossa casa, do que eu. A boa Madre sentia muito mais o valor dessas palavras, do que Monsenhor de Sambucy, o qual, conduzindo-a à distância de cinquenta passos da moradia lhe disse, como despedida: Madre Júlia, vós já cumpristes, aqui, vossa missão, ides, agora, fazer o mesmo em outro lugar. Tais palavras sensibi1. No original “prévoyance” – termo arcaico, no sentido de “previsão”.
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lizaram seu coração de mãe, mas isso tudo era apenas o prelúdio daquilo que ainda deveria sofrer no gênero. Imediatamente após a partida, ele reuniu todas as Irmãs e lhes deu, por superiora, a Irmã Teresa Boutrainghan, dizendo-lhes que ela, havia três meses, fora nomeada por Monsenhor, Padre Varin e Madre Júlia. Realmente, havia sido motivo de debate entre ela, Padre Varin, Madre Júlia e Monsenhor de Sambucy, o fato de sua nomeação, bem como o caráter de nossa congregação: fundar muitas casas, o que implicaria, necessariamente, em formar muitas superioras; e tinha-se planos a respeito dela: era preciso num primeiro momento, fazê-Ia mestra de noviças, a fim de observar como ela se sairia no desempenho da função. Ela foi feita mestra de noviças e, após esta experiência, quando nossa Madre estava por partir, ela disse ao padre de Sambucy que, tendo refletido muito, ela achava perigoso nomear a Irmã Teresa superiora da casa; que seria mais oportuno associá-Ia à Irmã Vitória Leleu e que, sem qualquer preferência, ambas se auxiliassem, para, em conjunto, administrar a casa. Essa precaução era muito sábia, mas não agradou ao padre de Sambucy, o qual, havia poucas semanas, fora nomeado superior pelo padre Varin e, desde longa data, era o confessor da comunidade. Era possuído de um desejo secreto, talvez desconhecido dele próprio, de ter autoridade plena sobre a casa, a fim de conduzi-Ia a seu belprazer. Este bom Padre tivera muito sucesso no Oratório, chamado Instituição cristã;1 ele era inteligente e zeloso. Seu zelo, neste momento, vinha-lhe de Deus ou do homem?... Não me permito de julgar, mas o que posso dizer, após tê-Io observado em diversas ocasiões, principalmente naquelas em que os resultados têm sido os mais vantajosos para a glória de Deus, como em certas viagens, sobretudo a primeira a Flandre, e em certos empreendimentos de nossa Madre, nos quais este Padre encontrava sempre alguns inconvenientes ou alguma omissão em formalidades, é que ele não tinha compreensão; do contrário, punha-se excitado e descontente, extravasando tais sentimentos por palavras e por cartas, insinuando o mesmo ao Padre Varin, indispon1. Instituição cristã: é assim que Madre São José denomina a congregação das Damas do Sagrado Coração, fundada por Madre Barat. Na verdade, dizia-se por essa época da Revolução, “as Damas da Instituição Cristã”. Na vida de Santa MadalenaSofia (Barat) está escrito: “Tal era o nome oficial que se dava às religiosas, porque o de Sagrado Coração havia-se tornado suspeitopela resistência. (Santa Madalena Sofia, J. de Charry, 1965, p. 32-3)
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do-o contra nossa boa Madre, a qual tinha que ouvir repreensões severas e palavras duras. Na verdade, tal disposição de ânimo não persistia no padre Varin, que sabia compreender e observar as coisas por si próprio. Ele concluía sempre dizendo que não valia a pena perder tempo com tais minúcias, pois quem só entende uma parte, não entende nada. Nossa Madre foi por nós aconselhada, muitas vezes, de escrever ao padre Varin, dando-lhe as explicações que poderia ter dado ao padre de Sambucy, o que ela não admitiu nunca. Como teria, ela, podido deixar de imitar o querido Mestre, que se incumbiria de sua defesa? Com muita frequência, Padre Varin dizia à nossa Madre: Madre, o bom Deus, que vos deu essa incumbência, vos dá a graça para agir. Não vos sujeiteis a buscar tantas pequenas permissões ao Padre de Sambucy; que ele seja somente vosso conselheiro, consultai-o como amigo. De outro lado, ele recomendava ao Padre de Sambucy: Vigiai as principais andanças da Madre e prestai-me contas. De tudo isso, só poderiam resultar muitos mal-entendidos... Daí provieram muitos contratempos e desgostos que Deus, como bom pai, preparava para Júlia, como ele sempre fez, aliás, para os que ama. É preciso que se diga ainda, que o padre de Sambucy, imbuído do espírito e do modo de ser mundanos, tinha tudo o que se poderia desejar, para a condução de uma casa de damas e senhoritas; mas o espírito e a conduta de nossa comunidade, cujo objetivo era bem outro, exigia outra coisa. Os homens não são universais. Madre Júlia, visivelmente escolhida por Deus para esta obra, dizia frequentemente: O padre de Sambucy pode ter grandes méritos, mas ele não é a pessoa indicada; ele não é a pessoa de quem nós precisamos. Padre Varin do mesmo parecer. Dizia à Madre Júlia: Bem, eu sei que ele não é exatamente o que vós precisais, mas que quereis, se não tenho outro para vos dar? É preciso que vos adapteis... Enquanto o padre de Sambucy, na ausência de Madre Júlia, fazia, na casa de Amiens, todas as mudanças que achasse por bem, Padre Varin escreveu à Madre Júlia o seguinte: 51
Eu creio, como vós, que, logo que tiveres organizado a nova família de maneira adequada, retorneis imediatamente à antiga; pois, embora eu tenha confiança no padre de Sambucy não é com ele que eu conto, no sentido de dar às vossas filhas o espírito que as deve animar para que se cumpram os desígnios de Deus; e, se não é ele o indicado para dar-lhes tal espírito, menos o será para o aperfeiçoar. É a boa Madre que Nosso Senhor encarregou de tal tarefa. Vou escrever ao caro padre de Sambucy, para avisá-lo, amigavelmente, sobre o que penso de sua conduta, a fim de pô-lo de sobreaviso com relação ao espírito de mudança, mesmo sob pretexto de melhoria... E numa outra carta, ele diz: Em outras cartas ao padre de Sambucy, eu lhe dei vários alertas relativamente à sua conduta para com vossas filhas, alertas que não tinham nada de lisonjeiro para ele, mas que visavam garantir os direitos da Madre sobre suas filhas. Não obstante tudo isso, quando ela retornou de Bordéus e que se entrevistou com padre Varin, ao passar por Paris, em meio a uma quantidade de ofensas e repreensões que ele lhe fez - pois que tudo se acumulara sobre ela, em sua ausência -, concluiu dizendo: Julgais, acaso, que eu não vejo muito bem quais sejam as pretensões do padre de Sambucy? Não, ele não será mais o vosso superior. Na verdade, ele permaneceu só mais alguns meses. Eis o que fez o padre de Sambucy, logo que as Madres Júlia e Blin haviam partido, uma para Bordéus, a outra para ser superiora na fundação de Namur. Ele pensou, primeiramente - não sei em que isso se fundamentava -, que a viagem de Madre Júlia duraria anos. Falou sobre isso com as Irmãs, como se se tratasse de uma coisa que, por assim dizer, não teria mais fim. Quanto à Madre Blin, ele já acreditava ter-se desembaraçado dela definitivamente. Digo desembaraçado porque, com efeito, ela o importunava, no sentido de que era um só coração com Madre Júlia e um mesmo espírito; tinha sido difícil destruir o que aquela havia instaurado na casa, pelo menos 52
enquanto a sua autoridade aí se fizesse sentir. E não seria fácil subtrair-lhe totalmente a autoridade, porque as boas Irmãs seguindo os sentimentos de seus corações reconhecidos, bem como o respeito e a admiração que lhe devotavam, não admitiriam qualquer outro assumindo o governo da casa, enquanto ela lá estivesse. Embora ela, pessoalmente, jamais tivesse oposto resistência, quando via que as coisas eram legítimas e para o melhor, pôde ver, contudo, que, se convinha formar superioras jovens, jamais seria legítimo descartar Madre Júlia para sempre. O padre de Sambucy não encontrava nela energia suficiente para receber o impulso que ele se propunha imprimir. Dizia que, enquanto ela se encontrasse na casa, ele nada poderia fazer. De um lado, tinha razão e fazia previsões justas. Resta saber, no entanto, se a reforma e a melhoria pretendidas, traziam marcas da vontade de Deus, mais do que a escolha que fora feita, desde o início, pelas duas Madres, para que cada uma, à sua maneira e conforme os diversos dons da Providência, contribuísse para o crescimento da obra. O divino Operário, que sabe servir-se dos instrumentos, até os mais impróprios, se compraz, muitas vezes, em sabotar a sabedoria humana; e é isso que se tem observado nessas duas primeiras pedras do edifício, nesta ocasião, as quais podem afirmar terem sido rejeitadas por aqueles que construíam e que, reunidas - as duas eram uma só - tornaram-se a pedra angular, aquela que sustenta todo o edifício. Foi, portanto, a Irmã Teresa que o padre de Sambucy designou como superiora da casa. Na alteração que fez, dos nomes de quase todas as Irmãs, ela se chamou de Madre Vitória. Tinha vinte e três anos e fazia apenas dezenove meses que ela havia ingressado. Antes do ingresso, havia sido cozinheira e babá. Tinha temperamento bem marcado, um certo vigor de alma, do que se poderia tirar proveito, uma vez que se burilasse um pouco sua demasiada vivacidade e os frequentes momentos de exagerada expansividade: em uma palavra, ela possuía todas as marcas da juventude. Tinha bom coração, muita memória, não lhe faltava bom gosto nem disposição para o bem; mas sua humildade era fraca e ela não era exercitada nas práticas que constituem a virtude. Como teria, ela, podido, sem prejuízo, suportar os elogios e as admirações que sobre ela caíam como chuva? Não lhe faltava o critério e ela pôde muito bem entrever o perigo a que se expunha; 53
de sua parte, teria preferido subtrair-se à ordem que lhe foi dada, de aceitar a incumbência de superiora, chegou mesmo a adoecer, mas teve que ceder. Não sei que espírito soprou então: superioras, até muitas pessoas da cidade e quase todas as da casa, admiraram-na e louvaram-na em profusão. Padre de Sambucy consultava-a e enviava-lhe pessoas para que ela as orientasse. Várias Irmãs jovens, que encontravam nela correspondência àquele instinto da natureza que busca afeiçoar-se, apegaram-se a ela com toda a força do sentimento de sua idade. Algumas cortaram fios de seus cabelos, para guardá-los como relíquias, outras beijavam suas vestes, e quase todas, nos momentos de recreação, que haviam se tornado bastante ruidosos, cercavam-na e comprimiam-na. Cada qual se considerava infeliz, quando não podia tocá-Ia. Eram-lhe atribuídos os nomes de santa e de penitente; numa palavra: exalta-vam-na à porfia. Ela quase não comia mais, talvez por mortificação, mas também por capricho da natureza, como fazem, muitas vezes, as pessoas atacadas de doenças nervosas, mal de que ela, realmente, se ressentia. As Irmãs jovens, que observavam sua superiora não mais comendo, julgavam que era conveniente satisfazer apenas metade do apetite, que nisto consistia a perfeição. E se esta mania tivesse perdurado por mais tempo, pode-se crer que elas teriam arruinado toda a sua personalidade, enquanto que o estado a que tinham sido chamadas exige que seja robustecida. O que, sobretudo, danificou extremamente a Madre Vitória, tanto na alma, quanto no corpo, foi o fato de o padre de Sambucy tê-Ia obrigado a fazer três ou quatro horas de oração por dia, não a deixando mais realizar tarefas manuais, as quais lhe teriam podido propiciar o exercício de que seu temperamento necessitava e que nossa Madre sempre tivera tanto cuidado em lhe proporcionar. Nisso tudo, o padre acreditava estar fazendo o melhor, como é verdade que é preciso experiência em tudo. Mas, como ainda era jovem, não é de se admirar que ele se tenha enganado em muitas coisas. Eis outro assunto a respeito do qual ele estava em contradição com nossa Madre: fazia pouco caso da direção que as superioras podem dar. Soube-se disso através de suas palavras e suas ações, e foi, sem dúvida, em vista de tal opinião que ele acusou Madre Júlia de intrometer-se demasiadamente na parte espiritual, ao dirigir as Irmãs, o que, dizia ele, não 54
convinha às mulheres. Certamente que não convinha exigir a confissão dos pecados; contudo, se se considerarem certos desabafos íntimos, haverá algo de mais gratificante, do que terem, religiosas, uma Mãe superiora capaz de conduzi-las, no caminho da virtude, apontando-lhes rumos e ajudando-as a evitarem tropeços? E quem pode fazer isso melhor do que aquela que, com um coração maternal, tem os olhos sempre voltados para as filhas que o Senhor lhe confiou, que segue seus passos, ouve seus propósitos, vê suas ações e seus gestos? Uma superiora chega a conhecer, desse modo, melhor suas Irmãs, do que, muitas vezes, os confessores, através das acusações que elas lhes segredam. Além do que ela vê por si mesma, quando ela sabe inspirar confiança, que facilidade em se lhe abrir o coração, sem risco nenhum, a qualquer hora e sempre que se tiver necessidade; ao passo que perigos e dificuldades envolvem os diretores espirituais, principalmente os intimoratos e afoitos. Madre Júlia sabia muito que as pessoas, até que sejam bem instruídas e bem formadas, que o amor de Deus seja proeminente em seu coração e sua mente esclarecida, têm necessidade de ser vigiadas, cultivadas e seguidas de perto. Ora, quando se faz necessário que seja um diretor masculino a desempenhar esta tarefa junto a jovens irmãs e noviças, pode-se dizer que é uma penosa necessidade, principalmente se esse diretor ainda for jovem. A boa Madre tinha experiência neste ponto. Outras superioras que se encontram nessa situação podem tê-la também e, se suas filhas ainda conservam alguma abertura para com elas, sabem como surgem, na alma dessas jovens, tentações amargas, emoções incômodas que, qual nuvem, as envolvem; como a natureza decaída se porta com violência em relação a esse assunto e como ela sabe ocultar a si mesma a própria motivação. Os atos de mortificação, de humildade, a mais penosa obediência, nada custa, tudo é suave, quando aquilo tudo advém daquele que absorve - quase sem que se desconfie - todas as forças da alma ou, ao menos, que delas roube uma grande parte a Deus..., e a gente chama a isso de progresso na virtude! Felizes, muito felizes as casas religiosas que têm superioras capazes de formar e de conduzir suas filhas - não digo com exclusividade. Mas Madre Júlia acreditava, com Santa Teresa, que, em casas religiosas de muito zelo e seguidoras das regras, o demônio não encontra outras portas de entrada, a não ser que se tomem grandes precauções. Pouca ou nenhuma comunica55
ção fora do confessionário; confissão curta e oração longa lhe parecia o desejável. As Irmãs de Nossa Senhora agiriam de maneira estranha ao espírito de sua primeira Madre, se enveredassem por outro caminho. Ela não negligenciava, sempre que possível, de proporcionar às suas filhas palestras edificantes e instruções familiares na capela, quando alguns bons padres se dispusessem a fazê-lo; ela ficava sumamente reconhecida com isso. Lá, dizia ela, tudo é proveitoso, sem qualquer perigo. Ela mesma lhes ministrava aulas de religião, diariamente, servindo-se, para o dogma, de algum bom autor; depois abandonava o livro, para debater e atender as necessidades particulares de suas filhas, que era preciso formar em todos os pontos. Quantas palavras esta boa Mãe lhes dizia! Esta semente parecia não produzir grandes frutos na casa: no entanto, quando estas boas Irmãs recebiam sua designação, recolhiam, como recompensa da aplicação dos princípios assimilados, a graça de desempenharem sua atividade com edificação. Enquanto pessoas jovens governavam, à maneira jovem, a casa de Amiens, Madre Júlia, que estava em Bordéus, sentia-se bastante inquieta, por não receber notícias de suas caras filhas. Padre de Sambucy, com aparente razão, havia interceptado as cartas, e isso já a alguns meses. Madre Júlia sofreu deveras com esse silêncio e foi mais intensamente penalizada por um secreto pressentimento que a chamava de volta a Amiens e lhe causava, em Bordéus, um grande mal-estar.1 Entretanto, todas as Irmãs haviam-na recebido com alegria e se afeiçoaram a ela, como era seu desejo. Monsenhor, o arcebispo de Bordéus, conhecido de todo mundo por seu mérito e sua santidade, teve estima e deferência para com ela; recebeu-a com o tratamento de Madre geral. Este bom e santo bispo, Cartos Francisco Davi d’Aviau du Bois de Sanzay, deu o véu e o hábito a dezoito de nossas novas Irmãs de Bordéus, a 8 de setembro de 1807. Antes da partida de nossa Madre foi aberta uma segunda casa, à distância de uma légua da primeira, num bairro da cidade chamado o Chartron, cujo nome a casa recebeu. Essa fundação é devida ao vigário da paróquia. Seis Irmãs iniciaram as atividades, nesta nova casa. Ao partir, Madre Júlia deixava, nas escolas das duas casas, setecentas crianças. Em Bordéus, ela recebeu uma carta do bispo de Amiens, o qual lhe pedia, 1. No original: “mal-être” – palavra empregada, no século XVIII, neste sentido: estado em que se tem algum sofrimento secreto.
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muito paternalmente, que retornasse; recebeu também a do padre Varin, já mencionada anteriormente. Partiu, finalmente, de Bordéus para Amiens, no dia 12 de novembro. Esta boa Madre se deteve em Poitiers, com Madame Barat, Superiora Geral das Damas da Instrução Cristã que aí tinham uma casa. Encontrou-se, também, com o padre Lambert, que viera pregar retiro. Ele insistiu com Madre Júlia para que permanecesse, a fim de passar uma temporada em repouso espiritual e corporal, que lhe era tão necessário. Ela iniciou o retiro, mas sentia-se de tal modo preocupada, que reconheceu não dever continuá-lo, pois que alguma coisa a chamava a outra parte. Ela se aconselhou com o padre Lambert, que foi da mesma opinião. Pensou, assim, em despedir-se de Madame Barat. Esta dama, com quem se dava tão bem, mostrara-lhe, nesta viagem, certa frieza; tal acontecia, porque uma grande borrasca se armara em Amiens, e já havia emitido seus estrondos a toda região conhecida. Esta boa Madre não encontraria, em sua jornada, mais do que saraivas e tempestades. Chegou a Paris no dia 20 de novembro de 1807; hospedou-se com Madame Leclercq, senhora respeitável, que conhecia desde muito. De lá, dirigiu- se à grande casa das Irmãs da Caridade, que lhe haviam dado excelente acolhida em sua ida para Bordéus; ela conhecia a Superiora geral, que havíamos hospedado em nossa casa, em Amiens, e que era dotada de capacidade e de mérito. Ela a interroga, crê apresentar-se com sua costumeira simplicidade, mas não encontra ressonância: o tom, o ar, a maneira, tudo está mudado. Qual será a causa de tudo isso, numa pessoa tão respeitável? A impressão foi pesada e desagradável; a angústia deveria aumentar. Isso era apenas uma preparação para o que viria. A Madre geral tira uma carta de seu bolso; era do bispo de Amiens, que proibia a Madre Júlia de pôr os pés em nossa casa de Faubourg, até mesmo na diocese de Amiens. Que fazer, aonde ir? Isso não é tudo. Madre Júlia ignorava absolutamente a ordem de prisão, dada no dia da festa de Todos os Santos, contra os Padres da Fé; 1 a Madre geral lhe comunicou esta nova. Madre Júlia, não obstante, foi ver 1. Ordem de prisão contra os Padres da Fé, a 1º de novembro de 1807,à instigação do ministro Fouché, Napoleão, que estava no auge do poder, em presença de seus ministros e dos embaixadores de príncipes estrangeiros, condena os Padres da Fé como perigosos conspiradores e ordena que, em poucos dias, sejam dispersados, retidos em suas respectivas dioceses, sob risco de serem enviados à Guiana, como prisioneiros e desterrados. (Vida de José Varin, por A. Guidée, 1860, p. 179,-80).
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o padre Varin; será possível consolarem-se mutuamente? Não. Este bom Padre está indisposto contra ela, e a desgraça de sua Companhia o abatia ainda mais, acrescentando-se, a tudo isso, o estado nervoso em que se encontrava, e que, embora tenha envidado, de sua parte, esforços por resignar-se, não foi possível refazer-se de semelhantes contratempos, num quarto de hora de oração como Santo lnácio... Em meio a esses reveses, Padre Varin havia sido informado, pelo Padre de Sambucy, das acusações que recaíam sobre Madre Júlia. Tudo leva a crer que este Padre pretendia, então, expulsar esta boa Madre da casa de Amiens e que considerava sua consecução como um grande bem. Ele mesmo, o Padre de Sambucy, fora a Paris, nesse meio tempo, e quando o Padre Varin lhe disse que a Madre Júlia retornava de Bordéus, que ela estava em Paris, não pôde conter-se e exclamou, em tom de contrariedade: Então conseguiu dar seu golpe! Isso foi relatado a Madre Júlia pelo próprio Padre Varin, embora não pareça assunto capaz de incriminar corações. Pode-se, no entanto, dizer que Padre Varin conhecia bem o fundo do coração de Madre Júlia, para saber que ela era incapaz de qualquer rancor. Padre de Sambucy não foi o único instrumento de que a Divina Providência se serviu para provocar a desgraça de Madre Júlia junto ao bispo de Amiens. Um padre da Companhia desses senhores também se prestou para isso, e com muita eficácia. Era escrupuloso e tinha pouco talento; razão por que o Padre Varin nô-lo quis pôr à disposição, para ser nosso capelão. Ele trabalhou conosco durante mais ou menos um ano. Madre Júlia teve, para com ele, todas as atenções e todos os cuidados que ela achava necessário dispensar-lhe; mas pode-se dizer que eram coisas de gênero estranho, que poderiam não compreendidas; numa palavra, o bom senhor, viu Madre Júlia com olhos maliciosos. Desde muito, ela havia conhecido o senhor Demandolx, bispo de Amiens. Ele ia, de vez em quando, almoçar no bispado, ocasião em que era interrogado a respeito de Madre Júlia; ele a coloria da maneira, como a via. Enfim, incutiu, no bispo de Amiens, muitas informações falsas, o que fez com que Madre Júlia não estivesse mais nas boas graças desse magistrado da Igreja. Ele levava também, suas queixas ao Padre de Sambucy, que re58
colhia tudo e as passava ao Padre Varin o qual, um dia, leu a Madre Júlia a lista de acusações. Ela me disse que lá havia vários chefes, embora só tenha citado dois. Era acusada, entre outras coisas, de recusar paramentos a esse ministro, bem como impedia-o de pregar na capela. A respeito dos paramentos, o que aconteceu foi o seguinte. Nós tínhamos, em casa, uma belíssima veste litúrgica, lavrada a mão, pertencente ao Padre Thomas. Ele nô-la havia emprestado, com a condição de que a usássemos muito. Em consequência, nossa Madre, sem prever que este sacerdote pudesse solicitá-la, dissera à sacristã que não lha desse, - isto é, que não lha oferecesse. - Justamente, ele a solicitou, no momento de se paramentar para a santa missa, e a sacristã teve a infelicidade de dizer-lhe que nossa Madre havia proibido de lhe dar o paramento solicitado. Ela não lhe havia dito que lho recusasse, se fosse pedido. Coisas deste gênero parecem monstruosas, quando se está de mau humor. O mesmo acontecia com outra acusação; uma interpretação benevolente teria mudado tudo. Retornemos ao que se passa em Paris, onde Madame Leclercq, sensibilizada com o sofrimento de nossa Madre, escreveu ao Monsenhor Duminy, pároco da catedral de Amiens, rogando-lhe que se interessasse junto ao Monsenhor, no sentido de comovê-Io às boas graças para com Madre Júlia e que se lhe permitisse de ir a St-Just, entrevistar-se com o respeitável e conceituado Monsenhor de Lamarche. Não se examinou o porquê da sentença; ela se submetia, simplesmente, e Madre Júlia recebeu como favor a autorização de ir a St-Just, diocese de Amiens, a tal ponto estava exausta de tanto aguardar, durante onze dias, essa resposta. Enfim ela partiu de Paris, mas não chegou a falar com Monsenhor de Lamarche; encontrava-se ausente. Após maduro exame, sofrendo muito, nossa Madre decidiu tomar o caminho de Amiens, onde procuraria Madame de Rumigny, a 1º de dezembro. Esta senhora, que conhecia desde muito, recebeu-a com amabilidade. Passou dois dias em sua companhia, em andanças à procura do Monsenhor, no sentido de chegar a saber qual seria a causa do problema e que partido deveria tomar.
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Não posso deixar passar despercebida uma circunstância que envolveu a sua estada com Madame de Rumigny. Ela provará como, todos aqueles que estavam vinculados ao padre de Sambucy, tinham sua maneira de ver, atingindo a nossa Madre Júlia. Irmão Leonardo, na derrota dos Padres da Fé, associara-se ao padre de Sambucy, que ficara em Amiens; ele aí tinha suas incumbências. Aconteceu de vir ter com Madame de Rumigny, exatamente quando Madre Júlia lá se encontrava; Padre Bicheron, pessoa respeitável, que se hospedara nesta mesma casa, encontrou-se com Madame de Rumigny, Padre Cottu e o pároco da catedral. Nossa Madre disse-me, depois, que era impossível fazer-se um retrato do Irmão Leonardo, logo que este a viu. Disse-lhe apenas, num tom de voz estranho: - Fizestes muito mal em vir. - Eu não vim sem ter sido aconselhada, disse ela. Ele respondeu pouca coisa; não eram tanto as palavras, mas a fisionomia, era algo de assustador! Padre Bicheron, homem forte e robusto, que não estava totalmente incomodado, lançou apenas um olhar sobre Leonardo e, momentos após, sem motivo ou causa aparente, sentiu-se mal, muito mal mesmo; chamou-se o médico. Deitaram-no na cama de Madame de Rumigny, uma vez que lhe era impossível chegar até o seu quarto, pois estava hospedado na mesma casa. Assim que melhorou um pouco, Madre Júlia lhe disse: - Mas o que vos aconteceu? Do que pode ter sido isso? Foi a figura de Leonardo, respondeu. Não vistes a cara dele? Em todas as circunstâncias incômodas em que Madre Júlia se encontrou, ela sentia os golpes e com eles prestava homenagem a Deus, e não pensava mais no ocorrido, porque tinha a alma em paz e não acreditava ter dado motivo aos dissabores e desgraças de que se viu crivada, por parte dos homens. Aliás, confiando na misericórdia do Senhor, ela desejava, esperava e queria fazer sua vontade. Que motivos teria ela para se entristecer? Sua calma e sua alegria eram notáveis. Jamais se pôde, contudo, fazer semelhantes afirmações acerca da parte contrária, e este seja, talvez, um dos mais fortes argumentos; pois as pes60
soas de sangue frio e desinteressadas não podem esquecer que tudo o que vem do Espírito Santo vem impregnado de sua força; e que uma figura mal composta, de músculos tensos, olhos flamejantes, palavras duras, injuriosas ou precipitadas, são reflexo da alma. Não se pretende, com isso, julgar ninguém pela aparência, mas pode-se admitir que pessoas respeitáveis e dotadas de boas qualidades têm condições em tais circunstâncias, de servir aos desígnios de Deus, que conduz todas as coisas a seus objetivos, da maneira como lhe aprouver. Madre Júlia escreveu a Monsenhor, pedindo-lhe compreensão, misericórdia e perdão pelo que, talvez, fizera sem saber; depois disso, foi prostrar-se a seus pés. O resultado foi de ele pretender apressar sua partida a Namur, o que não foi possível, em vista de a saúde não o permitir. Pediu para poder ir recuperar-se na casa de Faubourg, o que, finalmente, lhe foi concedido. Ela lá chegou no dia 3 de dezembro, dia de São Francisco Xavier. Passou em casa de Madame de Franssu, viu-a por um momento, depois subiu, ocultamente, como uma criminosa, por uma pequena escada, até o seu quarto. Deitou-se em seguida, pois estava, com efeito, doente, menos pela fadiga da longa e penosa viagem, que pelas agressões reiteradas, golpe após golpe, de tantos acontecimentos dolorosos que, embora sua alma estivesse em paz, não deixavam de atingir seus nervos sensíveis. Sofreu muito, durante um mês. As boas Irmãs não tardaram em darse conta de que ela estava na casa, uma cochichou a novidade no ouvido da outra, e iam visitá-la, aos poucos. Nesse meio tempo e mesmo um pouco antes do retorno de Madre Júlia, o bom Deus permitiu que Monsenhor abrisse os olhos a respeito da incompetência de Madre Vitória em dar instrução às Irmãs, o que era um ponto da maior importância. Diversos sacerdotes também lhe fizeram ver isso, que, tendo ingressado recentemente em Amiens, ela não saberia dar grande impulso à casa. Tais coisas o espantaram, mas ele não compreendeu que Madre Júlia era pessoa eleita por Deus e quis colocar como superiora, em nossa casa, uma irmã Ursulina. Isso desagradou as Irmãs e alarmou Madre Vitória. O padre de Sambucy até não achou boa a ideia, e vendo Madre Vitória 61
posta de lado, disse que vetava, no caso, os direitos de Madre Júlia junto ao Monsenhor. Madre Vitória correu, como primeira, a jogar-se nos braços de Madre Júlia, devolveu-lhe as chaves da casa e, de acordo com seu temperamento, lhe deu grandes demonstrações de afeto. Pode-se supor que esse sentimento tenha sido sincero e pode-se pensar, também, que o temor de ter uma Ursulina como superiora a tenha impressionado; mas, apesar de tudo isso, ela dizia a umas: Eu sou superiora sempre, e a outras: Se tiverem qualquer dificuldade, procurem-me. Chegou a espalhar que o Padre de Sambucy lhe havia recomendado que, quando Madre Júlia retornasse, ela lhe entregasse as chaves por respeito, mas que a superiora seria ela. Seu nome, como superiora por três anos, tinha sido enviado ao governo. Padre de Sambucy, por seu turno, afirmara que Madre Júlia poderia retornar, mas que ela não seria mais a superiora de nossa casa. As circunstâncias fazem mudar a fisionomia das coisas e é preciso rever às vezes, determinações tomadas às pressas. Monsenhor, não querendo mais que Madre Vitória ocupasse o cargo de superiora, foi preciso ceder e fazê-lo da melhor maneira possível e com a melhor boa vontade. Entretanto, esta Irmã Vitória conservou algo de categórico e voluntarioso, e sua alma não era mais transparente para Madre Júlia. Enfim, ela experimentou tantas penas e contrariedades, seu coração esteve à mercê de sentimentos tão flutuantes, que caiu enferma e ficou presa ao leito por algumas semanas, justamente quando a Madre Júlia se recuperava. O senhor Cottu disse, então, a Madre Júlia, que o Monsenhor não queria mais que ela partisse para Namur e que a nomeava superiora. Ele próprio, Monsenhor Cottu, havia sido nomeado superior de nossa casa, pouco antes do retorno de Madre Júlia. Assim que o Padre de Sambucy desempenhou o cargo alguns meses apenas. Parecia que tudo, novamente, corria bem, enquanto Monsenhor tratava Madre Júlia com bondade; falava-lhe paternalmente; duraram pouco, no entanto, esses favores. O que durou foram certos preconceitos desfavoráveis que o padre de Sambucy nutria, o tempo todo, contra Madre Júlia, endossados, por Monsenhor, e dos quais a Providência quis servir-se para seus intentos. 62
Eis que se aproxima o momento em que a perseguição se acalora contra Madre Júlia. Nós veremos bispos e padres, respeitáveis pelo cargo e pela virtude, formularem, a respeito dela, o mais negativo conceito e cumulá-Ia de injúrias; ou, com outras palavras, apresentarem-lhe o cálice de amarguras que Deus, desde toda a eternidade, lhe havia preparado. A dignidade e o mérito das pessoas das quais vou falar, devem, naturalmente, inspirar respeito e fazer-nos suspender qualquer julgamento apressado sobre o caso, até o desenrolar final da história, o qual chega muito tardiamente. É justamente por não poder suportar que essa incerteza paire por um momento sequer no coração das filhas de nossa digna Mãe, que eu me apresso em preveni-las que o mesmo bispo que a acusa de ser ciumenta como um tigre, de só querer humilhar, de ser sem caridade, sem humildade e sem obediência e mais, repreendendo-a com tom firme e forte, acabando por expulsá-Ia de sua diocese, veremos como, disse, este mesmo bispo, mais tarde, escreverá a Monsenhor de Namur: Não poderei me eximir de confessar que muito devo me penitenciar, por ter seguido o mau conselho que me foi dado, ao me persuadir de afastar de minha diocese a boa Madre Júlia. Mais adiante, diz: Seu retorno encheu-me de alegria. Comecei por reconhecê-la como Superiora Geral das casas, sem esquecer seu mérito de fundadora. Ele mesmo escreveu a Madre JúIia, dizendo-lhe que não temia confessar de haver-se enganado a seu respeito. E senhor Fournier, seu vigário geral, que veremos, mais adiante, escrever coisas tão injuriosas a respeito de nossa Mãe, que é preciso ler para crer, exclamou subitamente: Nós estávamos enganados! Credes que ela queira voltar atrás? E diz em outra parte: Esse chamado da consciência será um meio de reparar o erro em que caímos, em se tratando desta santa filha... Eu a verei de tal modo satisfeita, que todos os nossos colegas irão compartilhar. Disse ainda, escrevendo a ela mesma: Monsenhor se refere à vossa prudência e à vossa caridade, bem conhecidas. É o mesmo padre que a havia comparado, anteriormente, às bestas cruéis e chamou-a de visionária, de desobediente, etc. Enquanto o padre de Sambucy se aborrecia com pequenos deslizes de formalidades e inadvertências que escapavam, às vezes, a Madre Júlia, 63
interpretava sempre favoravelmente tudo o que vinha de Madre Vitória até seus sonhos, pois que, com muita frequência, ela sonhava alto. Tudo, nela, era digno de admiração. Quem, além do Padre de Sambucy, teria podido incutir um tão alto conceito ao Monsenhor? Falava dela como de um anjo, embora não a conhecesse. Finalmente, passou a agredir Madre Júlia, por diversas vezes, por escrito e a viva voz, acusando-a de ser ciumenta como um tigre, de, em tudo, procurar ocasião para humilhar Madre Vitória, de fazê-Ia verdadeira mártir. Quanto mais vosso orgulho procura humilhar os outros, dizia-lhe, mais sua virtude triunfará; vós não tendes nem humildade, nem caridade, nem obediência, etc. Madre Vitória havia sido nomeada assistente, pelo Monsenhor, logo que ele nomeara Júlia como superiora. Era ele, como se vê, que fazia tudo. Esta Irmã humilhava-se muito com palavras e ela andava, realmente, amuada, fosse por alguma indiferença de Madre Júlia, ou por alguma pequena falta de atenção de alguma Irmã; falava nisso para se pôr a chorar, ou para deplorar as suas fraquezas, a Monsenhor Cottu e a de Sambucy. Aquele era, então, seu confessor extraordinário e estava sempre com um pé dentro de casa; não era preciso explicar mais nada, porque tudo estava explicado. Pode-se dizer que o coração de Madre Júlia esteve sempre aberto à Madre Vitória, falava-lhe com confiança, tratava-a com amizade, deferência e circunspeção, mas não lhe dedicava confiança absoluta, porque não a julgava capaz de formar as Irmãs, era-lhes modelo por sua dissipação e sua pouca experiência. Padre de Sambucy residia com Monsenhor Cottu, e, embora não fosse mais o nosso superior, Monsenhor Cottu, que o era, informava-o de tudo e não decidia nada, sem o consentimento dele. Dizia continuamente a Madre Júlia: Decidiu-se tal coisa, que não é do agrado do padre Sambucy. Era preciso suportar mais isso; Madre Júlia não era ouvida. Ela era menos uma superiora, do que uma pessoa designada a ensinar o catecismo. Não apenas não se lhe deixava nenhuma liberdade, de espécie alguma, coisa que o Padre Varin havia compreendido que era preciso deixar, para que o Espírito Santo pudesse realizar nela sua obra, mas não se lhe permitia nem mesmo o exercício estrito dos direitos que pertencem ao cargo. Ela foi submissa e dependente em tudo quanto fosse preciso; embora 64
ela tenha sido acusada, com frequência, de desobediência, ninguém jamais pôde provar um ato sequer de desobediência real. Pode-se afirmar com segurança, que ela amou mais o descalabro de tudo quanto empreendia, pela glória de Deus, do que ir em busca do sucesso por um ato contrário à obediência. Monsenhor Cottu era um sacerdote muito respeitável e que queria o bem, intensamente, embora se deixasse conquistar pela maneira de ver as coisas de Padre de Sambucy; ele não era pessoa indicada para conduzir espíritos, sequer para gerir assuntos delicados referentes ao espiritual. Era de uma vivacidade natural, que a menor contrariedade que se lhe apresentasse no tocante a isso, fazia-o explodir. Foi visto, em Faubourg, exaltar-se muitas vezes contra Madre Júlia, de maneira a ter-se de lamentar a fraqueza humana. Essa pobre Madre havia-se intimidado com ele e não ousou mais explicar-se. As Irmãs temiam algum disparate dele contra sua Madre, quando o viam chegar. Ele levou, um dia, sua audácia tão longe, que sentiu, alguns dias mais tarde, que sua atitude exigia dele uma reparação junto às Irmãs que haviam presenciado a cena em que investira contra sua Madre, e ele o fez, porque era um homem religioso. Madre Júlia constrangia-se muito com a confissão; teria gostado de consultar-se com algum confessor, abrir-se, pedir conselho, mas entre Monsenhor Cottu e Padre de Sambucy, a opção não lhe era fácil. Foi repreendida por confessar-se escassamente; era uma das faltas de que Monsenhor a acusava. Entretanto, quantas vezes, em sua vida, já dera provas de que sabia acomodar-se à situação e às circunstâncias. Somos levadas a crer, pois que não há nenhuma prova em contrário, de que a intenção do padre de Sambucy tenha sido boa, e que ele tenha julgado estar fazendo algo de agradável a Deus, ao perseguir Madre Júlia em todas as instâncias. Mas eis um ponto a respeito do qual jamais lhe poderá ter ocorrido nenhum pensamento repreensível. Diz respeito aos instrumentos de penitência, da disciplina.1 Testemunho de todas as Irmãs prova que sua Madre poupava extremamente suas filhas neste particular, porque, sendo jovens e destinadas a exercícios penosos de caridade, a prudência e os conselhos de pessoas esclarecidas lhe haviam sugerido urna moderação 1. Pequeno chicote, feito de cordinhas, utilizado para se flagelar.
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talvez excessiva. Entretanto, aconteceu que uma Irmã, por circunstâncias particulares, obteve autorização para usar - mas com limitação - a disciplina. Como ela estava ausente da casa, ordenou à Irmã que lhe comunicasse por escrito, se a necessidade perdurasse. Madre Júlia ignorava a modalidade como esta Irmã fazia uso da disciplina. Padre de Sambucy teve oportunidade de ver a Irmã; tomou conhecimento de tudo. Quando descobriu que ela usava a disciplina até sangrar, atribuiu toda a responsabilidade à Madre. Com um pouco de reflexão, teria chegado a saber que nossa Madre jamais era favorável a esses excessos, que tudo não passava de um fato isolado perfeitamente justificável, que uma superiora tem direitos e que se deveria, antes de mais nada, buscar explicações junto dela. Não, nada foi levado em consideração; redigiu um documento e, não se sabe como, obteve a assinatura da Irmã. Tal escrito foi enviado ao bispo, e o fato foi citado mais tarde, juntamente com tantas outras acusações, ao bispo de Namur, como comprovante da maneira descabida com que Madre Júlia tratava suas filhas. Enquanto as coisas andavam neste pé em Amies, Madre São José estava em Namur tranquilamente, com cinco ou seis Irmãs e outras tantas pensionistas. Ela ficara, após a partida de Madre Júlia, alguns dias com uma Irmã apenas, a Irmã Xavier; em seguida veio uma postulante de Namur - Irmã Ana - que morreu na casa, ao final de seis meses de sofrimento. Chegou a fazer seus votos, alguns dias antes de morrer. Vieram, ainda, de Amiens, a Irmã Elisabeth Michel, que passou a se chamar de Gonzaga, e se tornou mestra das pensionistas; duas de Namur, uma para a cozinha e outra para auxiliar a Irmã Xavier na assistência aos pobres; havia mais de oitenta crianças pobres para instruir. Essa boa Irmã Xavier tinha toda a aparência de santidade, mas sucumbiu, devido a vários fatores que se conjugaram, dentre eles, seu infatigável zelo pelas crianças, bem como uma quaresma em que jejuou excessivamente, exaurindo-se em cansaço, enquanto assegurava à superiora que não sentia nada de preocupante. Uma estufa perto dela, na aula, a prejudicou bastante. Percebeu-se que definhava a olhos vistos, imediatamente após a quaresma. Atacou-se do peito, de maneira irremediável; faleceu em menos de dois anos de estadia em Namur. 66
Monsenhor tratava as Irmãs com muita bondade; o convento ficava defronte ao seu palácio, permitindo-lhe, assim, de vir informar-se com frequência sobre o andamento da casa, se nada lhes faltava. Escreveu-se a ele, em janeiro, de Jumet, comunicando que Irmãs que aí se encontravam deixariam a congregação; pedia-se-lhe, que, se pudesse, mandasse vir filhas da Madre Júlia para as substituir, que haveria, nisso, tal e tal vantagem. Tal arranjo não era já de sua jurisdição, mas cabia à autoridade de Tournai. Ele fez vir a Irmã São José, transmitiu-lhe todas as recomendações que lhe haviam sido dadas e incumbiu-a de repassá-Ias à Madre Júlia, em Amiens, a qual as comunicou ao bispo de Amiens, o qual, por sua vez, escreveu ao de Tournai. Tudo isso demorou aproximadamente um mês, e tudo se normalizou. Desde que se tratou desse assunto, Monsenhor, o bispo de Amiens perguntou à Madre Júlia se ela via algum inconveniente na nova fundação; se havia alguma Irmã indicada para lá ir; ela respondeu, simplesmente, que Madre Vitória era a indicada. Madre Júlia propôs Madre Vitória, não que ela acreditasse que seria o melhor, mas porque esperava que, numa casa pequena, ela pudesse ter mais calma e mais facilidade para formar-se, e que a mudança de ares lhe seria proveitosa. Aliás, ela não tinha muita escolha, pois de forma alguma jamais pensou em enviar sua mestra de noviças.1 Esta sugestão, que, de início, parecia não chocar muito a Monsenhor, foi enfocada sob outro ângulo, com malícia: viu-se, na Madre Júlia, o desejo de expulsar Madre Vitória de Amiens. Daí provêm as acusações de ciúmes; e as ridículas cenas que se sucederam depois, parecem ter-se derivado desse episódio, avolumando-se cada vez mais. Madre Júlia devia deslocar-se de uma casa a outra, a fim de assegurar-se do andamento das coisas. Esta precaução é sempre útil, principalmente ao se organizar uma nova fundação, e desde logo se percebeu o aspecto vantajoso disso; mas Monsenhor alterou o plano. Não quis admitir semelhante maneira de ver e de pensar, e por mais motivos que alegasse, referentes a situações e circunstâncias, bem como o desenvolvimento das instituições, não tinha mais permissão para viajar. Houve todo um plano montado para retê-Ia em Amiens; alegou-se que as viagens eram dispendiosas, etc. Mas é provável que se temesse que a Madre Júlia e a Irmã São 1. Irmã Anastácia Leleu
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José - que certamente não pensavam nisso - estivessem de comum acordo de se reunir em Namur e aí estabelecer a casa-mãe, o que, segundo perspectivas humanas, teria, sem dúvida, feito desmoronar a casa de Amiens. Madre Júlia não estava de acordo com esses senhores, sob todos os pontos de vista, mas não se podia impedir de ver que as coisas transcorressem bem e que não houvesse ninguém para substituí-la. Madre São José, que fora enviada a Namur, sem ter levado consigo um dinheiro sequer para a pensão, havia deixado na casa de Amiens 4.000 francos de renda, quando a aluguel da casa era de 1.000 francos, pagos mediante uma soma de 23.000 francos, metade da qual provinha de um fundo formado pela venda de bens, e outra parte provinha da boa dama de Franssu. Esta senhora conhecia Madre São José desde a infância; elas sempre foram vizinhas e amigas, e a Providência as unia ainda, a fim de proporcionarem a esse estabelecimento nascente, as fontes de subsistência. Madame de Franssu, que destinara 11.400 francos a uma obra beneficente, houve por bem aplicá-Ia em nossa casa, que se destinava à instrução da juventude, a mesma obra dos Padres da Fé, por quem, desde que os conheceu, madame sempre teve uma admiração, uma veneração e um afeiçoamento jamais desmentidos, e que os reveses não puderam jamais destruir. Ela depositou, pois, a soma nas mãos de Madre Júlia, que já recebera outra semelhante de Madre Blin. A quantia foi destinada à compra de uma casa, que começou a ser procurada imediatamente. É oportuno relatar aqui, ainda que brevemente, para que se possam admirar os detalhes profundos da Providência Divina para com os que não se cansam de procurar, que muito se vinha desejando uma casa em Amiens, que se fizeram caminhadas e mais caminhadas, durante muito tempo, acreditando-se, por vezes, ter-se encontrado o que se pretendia, mas tudo ia por águas abaixo, quando se pensava finalmente concluir. Entre outros, um terreno soberbo, com enorme jardim, várias construções, restos de uma comunidade - exatamente o que desejávamos -, totalizava a importância de 20.000 francos, e nós tínhamos 23.000 em mãos. Após ter observado tudo, fomos até o cartório; um senhor, que também visitara o local para seus interesses, mais rápida e prontamente consegue fechar o negócio antes de nós, talvez com a diferença de um quarto de hora apenas. Padre Varin e Madre Blin, que lhe seguiam a pista, ficaram estupefatos, 68
mas acreditando que nada acontece sem a permissão de Deus, cujo olhar é bem mais profundo do que o nosso, em pouco tempo se consolaram. Em várias ocasiões, negócios bem convenientes, na aparência, não puderam ser concluídos. As importâncias em dinheiro de Madame de Franssu e de Madre Blin permaneceram no cofre. Para as Damas da Instrução Cristã, a ocasião se apresentou, de adquirirem a sua casa; faltava-lhes apenas o dinheiro. Padre de Sambucy sabia onde ir buscá-lo e o solicitou a Madame Blin, a qual lho forneceu, sem maiores dificuldades nem interesse; passaram, ambos, no cartório, a fim de assinarem o recibo de garantia, referente à soma de 23.000 francos que Padre de Sambucy devia a Madre Blin. Madame de Franssu não concordou em ceder a sua parte, e ela deve ter tido razões suficientes para tanto. Madame de Franssu dissera, repetidas vezes, a Madre Júlia, que o dinheiro fora dado à sua obra, que já não lhe pertencia mais. Estendo-me sobre o assunto, porque creio que também este episódio nos permite admirar cada vez mais a Providência. As Damas da Instrução Cristã compraram, pois, sua casa com esse dinheiro, desembaraçando-se, assim, do pesado aluguel, enquanto que as pobres Irmãs de Nossa Senhora continuavam arcando com o aluguel de 1.000 francos. Como não tinham outros recursos, do que o dos juros de Madre Blin e alguns donativos de Madame de Franssu, elas estavam muito preocupadas. Madame de Franssu falou a esse respeito com o padre Varin, dizendo-lhe que as Damas tinham uma grande quantidade de pensionistas, a 600 francos cada uma, e que as Irmãs contavam apenas com um pequeno pensionato que não rendia nada; que era um tanto indevido elas pagarem a casa destas Damas e o aluguel da sua própria. Padre Varin percebeu a injustiça e solicitou às Damas que pagassem o aluguel das Irmãs; elas o fizeram prontamente, desde 1807, até a grande catástrofe de nossa saída de Amiens, em 1809. Retomo a questão da resolução estabelecida, de não mais deixar que Madre Júlia viajasse. Logo que se começou a tratar de enviar Irmãs a Jumet, 69
persuadiu-se Monsenhor de deixar partir a Irmã Anastácia Leleu, mestra de noviças. Tal escolha afligiu Madre Júlia, não tanto por ter sido determinado por outros e não por ela, mas antes, porque esta Irmã se desincumbia muito bem de seu cargo e porque, tinha certeza, essa perda representava um prejuízo às noviças, que vinham aproveitando tanto da conduta exemplar da mestra. Essa Irmã lhe era um arrimo e uma consolação em meio às angústias; mas Deus e os homens pareciam querer roubar-lhe tudo. Foi preciso que Irmã Anastácia partisse com outra Irmã. Chegando, elas encontraram três lençóis, quatro ou cinco toalhas, algumas tijelas de barro, e pouca coisa mais; nada havia sido previsto nem preparado. Elas estavam desprovidas de tudo e na maior penúria. Não se trata de uma desgraça, certamente; elas se alegraram com isso e souberam tirar até proveito da situação. Aliás, pode-se dizer que Deus é um pai tão amoroso, que sofre em provar longamente aqueles que ama. Não tardou, pois, em lhes fornecer alguns rápidos recursos, através da caridade do pároco e de algumas pessoas obsequiosas. O que elas sentiram mais demoradamente foi, não apenas a ausência das coisas materiais, mas também a necessidade de outro tipo de assistência, percebendo como é importante que a pessoa tenha experiência e venha a realizar as primeiras caminhadas sabendo pôr em ordem o que é bom e saiba suportar as incertezas, tal como Madre Júlia havia feito, em tantas jornadas, ao fundar as casas; essas vivências foram tanto mais valiosas, quando se pensa que as Irmãs eram jovens e recém-formadas. Acreditava-se, contudo, em Amiens, que era suficiente enviar Irmãs; os inconvenientes que daí poderiam advir não eram levados em conta. Certo espírito destruidor soprava de todos os lados. Madre Júlia ressentia-se, com todos esses fatos, de inquietudes que tinham por alvo a felicidade e o êxito de nossos fracos inícios.
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Capítulo 3 DESDE A VIAGEM DE JUMET E NAMUR, NA QUAL MADRE JÚLIA TROUXE DE VOLTA A AMIENS A IRMÃ SÃO JOSÉ, ATÉ O MOMENTO EM QUE, PRETENDENDO IR A BORDÉUS, ELA FOI RECONDUZIDA DE PARIS A AMIENS. O bom Deus permitiu que se escrevesse ao bispo de Amiens, informando-o de que a pequena casa de Jumet estava em dificuldades e que as coisas, lá, não andavam bem. Ele chamou Madre Júlia e, falando-lhe bondosamente, perguntou-Ihe se estava satisfeita com a fundação de Jumet. - Não muito, Monsenhor, respondeu ela. - Nem eu tão pouco, disse ele. Tendes que ir lá. A boa Madre não esperou segunda ordem. Admirada com essa mudança tão súbita, crendo ver, no fato, a presença do dedo de Deus e temendo que ele voltasse atrás, providenciou imediatamente passagem para o dia seguinte. Ocorreu de encontrar, na rua, exatamente o escrivão a quem Madre São José havia confiado a gerência de seus bens, por ocasião de sua partida para Namur. Após ter feito uma procuração geral ao Padre de Sambucy, ela havia solicitado ao escrivão que, em questão de venda de alguma coisa, ele a prevenisse. Apresentou-se, agora, uma ocasião favorável de se vender uma propriedade no valor de 28.000 liras1, cujo arrendatário pagava muito mal. O escrivão tinha certeza de que Madre São José concordaria em vendê-Ia e o Padre de Sambucy, em virtude da procuração que possuía, vendeu-a. O negócio estava fechado, o papel passado, mas nada de dinheiro. O escrivão, que Madre Júlia tão oportunamente encontrara, informou-a do que se passava, a fim de que ela pudesse prevenir Madre São José, mas disse-o 1. Moeda antiga que correspondia, na origem, ao peso de uma libra de prata e menos de cinco gramas, por ocasião do estabelecimento do sistema métrico, em 1801.
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em segredo, porque o Padre de Sambucy lhe havia proibido de falar qualquer coisa a alguém, antes da data que ele havia fixado. Esse ar de mistério perturbou Madre Júlia, que ficou com as ideias confusas. Ela estava longe de imaginar que o Padre de Sambucy pudesse ter segundas intenções, mas afinal, por que tanto mistério? A sutileza de tudo veio a se desvendar mais tarde. Tudo leva a crer que tenha sido para ganhar tempo e tranquilidade no emprego dessa importância, aproximadamente 3.000 libras, no pagamento aos operários contratados por Madre Julia, para providenciarem, em Faubourg, sobre as coisas indispensáveis que faltavam na casa, gastos também empreendidos pelo Padre Varin; este, aliás, julgou nada ter feito demais, visto ele ter sido prevenido pelo Padre de Sambucy, a respeito de tudo o que convinha saber sobre o assunto. Padre de Sambucy estava convicto de que as dívidas deveriam ser pagas, e não se lhe podem atribuir outros motivos ao ocultamento da venda que fez à Madre Júlia, segredo que poderia parecer suspeito a quem não lhe conhecesse a delicadeza de consciência. Por esse motivo, não se pode formular nenhum juízo malévolo, mas pode-se dizer que o Padre de Sambucy atingia seus objetivos, com frequência, através de muitos meandros capciosos, com maneiras ocultas de agir; suas palavras não eram claras, ao contrário, expressava-se por enigmas repletos de sutilezas. Em resumo, tal maneira de agir, de falar e de ser era totalmente oposta à franqueza transparente de Madre Júlia, o que nos leva admitir que ela não simpatizava absolutamente com ele. Ela se esforçava por se adaptar a ele, mas jamais encontrou essa correspondência que Deus deposita nas almas que destina a trabalhar para sua glória. Era verdadeira a recíproca, com relação ao Padre de Sambucy; tudo isso, creio, era desse modo disposto pela Providência. Há razões que nos levam a crer que, nesta época, o Padre de Sambucy tinha esperança de conseguir outros recursos financeiros, que lhe teriam possibilitado tomar certas providências a respeito da casa, sem os bens de Madre Blin, e que, por isso mesmo, Madre Júlia teria podido afastar-se sem qualquer inconveniente, exceto as dívidas, que ele previa, deveriam ser pagas com esse dinheiro, para não ficar sobrecarregado. Eis que Madre Júlia chega, finalmente, a Jumet, para contento de todas as suas filhas, as quais a aguardavam longamente. Ela as consolou, 72
procurou dar suprimento, tanto quanto possível, às suas necessidades, colocou ordem e deu impulso a tudo. Sabia que a Madre São José andava indisposta; Irmã Anastácia informara-a disso e de que lhe havia escrito, sem obter resposta. Aquela, no entanto, respondera, mas a carta extraviara-se. Deus, talvez, tivesse permitido isso, porque Madre Júlia, no momento, era mais necessária em Namur. Encontrou-se em Namur como que por causalidade, pois que, quando se lhe permitiu de ir a Jumet, não estava incluído Namur. Monsenhor lhe havia dito, sorrindo: Dou-vos oito dias. – Oh! Nove, Monsenhor, respondeu ela. Ele sorriu novamente. Sabia perfeitamente que era impossível não se demorar mais tempo. De qualquer maneira, ela prevenira Monsenhor Cottu, ao partir para Namur, dizendo-lhe: Se ficar sabendo que a Irmã São José continua enferma, não deixarei de ir a Namur. Ele não tinha nada a ver com isso. Madre Júlia também não recebera nenhuma ordem em contrário e julgou seu dever ir visitar as filhas em Namur. Encontrou a Irmã São José, Irmã Xavier e Irmã Gonzaga muito doentes, definhando até, sobretudo a Irmã Xavier. Quando Madre Júlia estava a conversar com a Irmã São José, sobre as dificuldades havidas em Amiens, no tocante à sua propriedade vendida, aconteceu de entrar o Padre Minsart, o diretor espiritual e o superior que Monsenhor lhes dera. Madre Júlia julgou conveniente pô-Io a par de tudo e abrir inteiramente seu coração ao sacerdote, acerca de tudo. Até então, ignorava-se totalmente, em Namur, que a Irmã São José possuísse tão grande fortuna. Aliás, Madre Júlia mesma havia proibido suas filhas de darem conhecimento do fato a quem quer que fosse; elas foram fiéis em cumprir a ordem, que não tinha outro objetivo, que o da perfeição e o progresso espiritual de Irmã São José, em vista da fraqueza humana, que está sempre pronta a se prevalecer e a atribuir grande importância a coisas que pouco valem. Deus, que queria o retorno de Irmã São José a Amiens, para que se cumprissem os seus desígnios, permitiu que, sem que se ouse preconceituar maliciosamente a probidade do Padre de Sambucy, tornasse urgente a ida de Irmã São José a Amiens. Competia-lhe ir em busca do dinheiro da venda, reaver honestamente sua procuração e pôr em ordem seus negócios. Monsenhor lhe autorizou, pois, uma ausência de quinze dias. Ela partiu 73
com sua Madre, deixando à Irmã Xavier, de vinte e três anos, os cuidados da casa. Ela jamais teria imaginado que só retornaria dez meses após, no exato momento de receber o último suspiro da Irmã Xavier. Nossas viajantes passaram em St-Nicolas, para visitar suas Irmãs. A Irmã St-Jean era superiora da casa e, embora não contasse mais do que vinte e seis anos de idade, possuía muita maturidade e conduzia muito bem a pequena família; mas ela estava atingida por um mal, havia alguns meses, que lhe fazia doer todos os membros, roubava-lhe o repouso e o apetite a havia reduzido a uma extrema magreza. Madre Júlia tinha conhecimento do estado de saúde da Irmã, mas quando a viu em tal estado, sentiu o coração oprimido e prometeu-lhe que, assim que retornasse a Amiens, enviaria a Irmã Catarina Daullée de Montdidier, a fim de substituí-Ia, para que ela pudesse retornar à casa mãe, para repousar e se recuperar. Tudo transcorreu conforme o planejado, menos a cura da Irmã. A principal causa de sua doença foi a excessiva umidade da casa que elas habitavam. A Irmã Xavier, que aí passara o inverno, antes de vir a Namur, já havia se queixado e várias outras Irmãs haviam sofrido incômodos por isso. Madre Júlia constrangeu-se com o fato e seu coração maternal não pôde permitir esse estado de coisas por mais tempo; dois dias após, tão bem conduziu a situação, que pôde alugar outra casa, por um ano. Havia cerca de um ano que os administradores tinham solicitado ao ministro outra casa, mas o pedido permanecera na repartição; Madre Júlia não tinha, portanto, culpa alguma. Ela, que nada poupava quando se tratava da glória de Deus, incumbiu-se, se necessário fosse, de ir a Paris, para tratar pessoalmente do assunto. Foi, com efeito, pouco tempo depois, mas nada conseguiu, além de promessas de um e outro, que nada fizeram. Tudo o que ela recolheu de tal viagem foram frutos de paciência e de humildade que lhe proporcionariam uma das mais sofridas cenas já preparadas pelo padre Varin, novamente devido a acusações que vinham continuamente de Amiens, feitas pelo Padre de Sambucy. É inacreditável como as frequentes mudanças de fisionomia e de maneiras de agir, que ela percebia tão comumente em pessoas virtuosas, lhe foram úteis em desprendê-la de tudo e fazendo-a sentir, experimentalmente, que só Deus é imutável. Não era para menos, pois que seu natural 74
sensível e reconhecido poderia tê-Ia apegado a pessoas respeitáveis que lhe concediam atenções. Mas o bom Deus permitiu que ela encontrasse o remédio bem próximo ao mal, que a desiludiu de tudo quanto é humano, e fez com que se apoiasse, com sempre maior intensidade, em seu Deus, em quem ela encontrou sempre um guia e um sustentáculo fiel. Ela ainda fez, no curto espaço de tempo de sua viagem, uma experiência de quão infundamentadas são as disposições humanas. Quando partiu para Jumet, o bispo de Amiens, com a fronte serena, disse-lhe, paternalmente: Ides a Jumet; se vossa Irmãs não estiverem bem, enviai-as a mim, bem como as de St-Nicolas. Eu não quero que elas morram; pecastes mortalmente, colocando-as numa casa úmida. Tudo parecia, ademais, transcorrer em grande calma, quando recebeu, em St-Nicolas, uma carta de Amiens, na qual o bispo, que a havia autorizado, até mandado a Jumet, exigiu que retornasse imediatamente. Ela já não se surpreendeu, como era de se esperar. Monsenhor Demandolx tinha o coração bom, cheio de zelo, de piedade e de inteligência; mas era de um natural, muito vivo e, ademais, atacado de um mal de nervos que, pode-se crer, não lhe permitia que dominasse seus primeiros movimentos e lhe dava uma espécie de mobilidade que o tornava suscetível de mudar abruptamente em sua maneira de ser. Deus se serve de tudo para atingir seus fins. O que motivou a carta acima referida, foi o fato de que as Irmãs, não tendo confiança em Madre Vitória, haviam perguntado a Madre Júlia como procederiam se, em sua ausência, lhes sobreviesse algum problema de consciência ou alguma perturbação espiritual. Madre Júlia, que sabia ser, a Madre Vitória, incompetente para ser útil em tais ocasiões, respondera-lhes, sem pensar em possíveis consequências: Podeis dirigir-vos à Madre Jane, mestra de noviças. Seria apenas para esses casos de consciência, e nossa Madre havia, mesmo, recomendado às Irmãs que, de resto, conservassem submissão à Madre Vitória. Eis a carta do bispo de Amiens à Madre Júlia: Já estou convencido, minha querida filha, que nada poderá vos reconduzir a esse espírito de simplicidade e de obediência que 75
tanto vos recomendei, e que, apesar de meus conselhos e de vossas promessas, em ocasiões em que pensais que não vos vigio, vós agis sempre conforme vossos particulares intentos e vossos pequenos caprichos; eu desmascaro completamente, apesar de vossos protestos e de vossas dissimulações, vossa falsa humildade. Tenho nova prova da maneira ousada e rebelde com que vos portastes – partindo para Jumet – ao violardes um dos artigos fundamentais de vosso regulamento. O referido artigo estabelece que, na ausência da primeira Superiora, a Madre assistente a substituirá e as Irmãs lhe obedecerão. Entretanto, vós deixastes, para vos substituir Madre Vitória e, em vossa autoridade particular ordenastes às Irmãs que se dirigissem, em qualquer dificuldade, à mestra de noviças. De onde poderia ter vindo tal recomendação, senão de um secreto ciúme que vós conservais em vosso coração, por alguém que vos faz sombra, porque vale mais do que vós, e que o bom Deus se alegrará em cumular de graças, à proporção que vós a humilhais. Em consequência, eu vos previno que recoloquei as coisas no lugar em que vós deveríeis tê-las deixado, ordenando à comunidade que obedecesse a Irmã Vitória e incumbindo Monsenhor Cottu de fazer com que a ordem se cumpra. Ainda não é tudo; como pressuponho, deve fazer parte de vosso plano trazer a Irmã Anastácia para Amiens; proíbo-vos tal coisa, sob qualquer pretexto. Talvez julgueis que minha carta seja um pouco dura, mas dela não retiro uma palavra sequer, porque estou convencido de que deveis retornar aos sentimentos de verdadeira humildade, sem a qual não sabereis produzir nenhum bem nas almas, e que por isso, estou a prestar-vos um maior serviço, do que se, a exemplo dos que vos conduziram até aqui, eu vos bajulasse. (Ass.) Francisco, bispo.
Madre Júlia e Irmã São José chegaram a Amiens no dia 5 de maio de 1808. A alegria de todas as Irmãs foi tanto maior porque elas não aguardavam o retorno de Madre Blin, que elas supunham perdida para sempre. 76
Após os primeiros desabafos, ela lhes disse que se tratava de uma visita de quinze dias a três semanas apenas, porque não tinha autorização para mais. Ela assim o imaginara, mas de mês em mês sucederam-se tantos contratempos, temores e embaraços, que Madre Júlia pensou dever conservá-la, para ser seu consolo, sua conselheira e seu amparo. Naturalmente, Madre Blin deveria ter tido influência nos reveses que se apresentavam, de modo que, se Madre Júlia era fundadora do espiritual, ela o era do temporal. No dia de sua chegada, ela fez apresentar seus respeitos ao Monsenhor. Ele partiria dois dias mais tarde, para uma viagem de dois meses; mandou-lhe dizer que a veria em seu retorno. Monsenhor Cottu, sendo superior e confessor, vinha frequentemente à casa, e Madre Júlia achou por bem que Madre Blin mantivesse com ele algum entendimento, no que diz respeito às regras e constituições que Monsenhor queria estabelecer. Haviam-se apresentado os estatutos ao governo, e os senhores Padres da Fé, - principalmente Padre Varin -, havia lançado algumas ideias sobre o papel que seria apresentado aos bispos, estabelecendo Irmãs em suas casas; mas sabia-se que nada estava concluído nem definitivo. As Madres desejavam a mesma coisa que o bispo, mas pressentiam que o momento não era favorável, tanto em vista dos projetos atuais do governo, os quais poderiam subverter tudo, quanto em virtude de saberem que Monsenhor não assimilava o nosso espirito primitivo. Seu plano foi, inicialmente, anunciado; nele se percebia que não queria Madre geral, ao mesmo tempo que entendia dever restringir-se, a congregação, à sua diocese. Desde já, era preciso, pois, que Madre Júlia abandonasse suas filhas que estavam localizadas em outras dioceses. Esses artigos foram claramente explicados através de Monsenhor Cottu. Quanto às viagens de Madre Júlia, só serviam para dispender dinheiro; e várias outras colocações, que não enquadravam, de forma alguma, nos objetivos iniciais de nossas primeiras fundadoras, antes que nos tivéssemos submetido à orientação e jurisdição dos bispos. Madre Júlia e Madre Blin não ocultaram sua maneira de ver ao Monsenhor Cottu e ele solicitou a Madre Blin que escrevesse tudo quanto 77
pensava; Madre Júlia lhe pediu o mesmo. Elas confabulavam e rascunhavam muito; mas na hora de entregar os textos a Monsenhor Cottu, uma secreta impressão fez Madre Júlia reconhecer que se dissera demais, e que tudo o que haviam escrito poderia contribuir para aborrecer e revoltar ainda mais espíritos fortemente prevenidos em sentido contrário; julgou ser mais conveniente deixar que o bom Deus agisse e nele depositou toda sua confiança. Com efeito, Ele conduziu tudo como um bom Pai, assim que não foi preciso que nada mais se dissesse. Madre Blin havia falado várias vezes a Monsenhor Cottu sobre a estranha prevenção do Padre de Sambucy com relação a Madre Júlia, e dos múltiplos efeitos negativos dessa prevenção; sobretudo um dia, quando, através de uma carta da Irmã Xavier, ela percebeu que o Padre de Sambucy escrevera ao bispo de Namur, fazendo referência desvantajosa a Madre Júlia, ela não pôde se deter e foi apresentar suas queixas a Monsenhor Cottu. O bispo de Namur nutria estima por Madre Júlia, ele estava satisfeito com a Irmã São José: tudo estava bem. Parecia-lhe duro e ousado, o fato de alguém insinuar coisas que pudessem perturbar esta paz. Monsenhor Cottu escutava tudo tranquilamente; ele não negava nada do que lhe dizia Madre Blin, mas esta se apercebeu, no final, de que ele estava fortemente influenciado pelas ideias do Padre de Sambucy contra Madre Júlia, não que não lhe fizesse justiça em determinadas ocasiões. Ele admitia que Madre Júlia fizera muito bem, mas acreditava vê-Ia em contradição e em falta, em algumas coisas que se revestiam com a aparência de bem; às vezes, agia contrariamente ao que pensava; outras, alguma inadvertência que era cuidadosamente apontada e tomada por outra coisa. Pode-se dizer que a pessoa que o bom Deus quer humilhar, ou seja por que motivo for, condenar à desgraça dos homens, em Deus querendo, ela há de cair. Tudo o que disso advém, traz a marca do desfavor, de que é impossível fugir; e se Deus quer que outra seja estimada, ela pouco tem a fazer, para conquistar as boas graças. Irmã São José fez experiência disso. Gozando de tanta estima e de bondades em Namur, encontrou de desdém em Amiens, pois constituía, com a Madre Júlia, um só coração e uma só alma, eram como duas cabeças 78
sob um mesmo boné - como disse o bispo de Amiens a Madre Júlia - e participava do cálice da ignomínia que fora preparado para esta Madre. Quando Monsenhor retornou de viagem, Madre Blin foi prestar-lhe, pessoalmente, seus cumprimentos. Ele a recebeu discretamente. Ela conversou a sós com ele, longamente, em seu gabinete; interrogou-a sobre várias coisas, às quais ela respondia com franqueza. Não ocultava que o Padre de Sambucy, geralmente, tinha maneiras de ver diferentes das de Madre Júlia, que raramente ele achava bom o que ela fazia e que ela julgava que, para o bem de todos, convinha que o Padre de Sambucy não mais se intrometesse em assuntos da casa, que ela desejaria que ele não fosse mais confessor extraordinário. Ela fez questão de dizer tais coisas, para ver qual a reação do Monsenhor, que, sabia, estimava o Padre de Sambucy. Ele percebeu que as coisas vacilavam; poderia, aliás, ter tomado este partido, mas deu-se o oposto. Alguns dias mais tarde, Padre de Sambucy veio dizer à comunidade que Monsenhor quis fazê-Io nosso superior, mas que ele não havia aceitado. Como quer que seja, isso ocorreu somente no momento da grande dissolução, após a partida de Madre Júlia, porque Monsenhor Cottu parecia manter seu lugar e porque não se queria mortificá-Io. Quanto a Madre Júlia, ela teria preferido Monsenhor Cottu, mas havia encontrado muitas dificuldades em falar com ele, por causa de seu gênio expansivo, que se tornou indiferente que fosse um ou outro. Padre de Sambucy tinha isto de bom: podia-se-Ihe dizer tudo o que se quisesse; ele escutava tudo. Mas havia coisas que ele punha de reserva e mais tarde fazia sentir a ferida, sem ter visto a flecha disparar. Uma das primeiras coisas de que Madre Júlia se ocupara, em seu retorno de Jumet, foi falar a Monsenhor Cottu, no sentido de fazê-Io perceber a necessidade de fazer retornar a Irmã St-Jean, e que seria preciso, para isso, retirar a Irmã Catarina Daullée de Montdidier, onde estava como superiora, pois que não havia outra indicada para enviar a St-Nicolas. Monsenhor Cottu decidiu o assunto: escolheu a Irmã Carolina Cardon, que chamou de Irmã Maria, para enviá-Ia a ocupar o lugar da Irmã Catarina. Madre Júlia partiu em sua companhia para Montdidier. Sentiu a dificuldade de retirar a Irmã Catarina, que era muito estimada; mas enfim conseguiu-o e fez a Irmã St-Jean retornar a Amiens. 79
Lá a Irmã foi entregue às mãos do médico, que a aliviou primeiramente, prometendo-lhe cura, mas o mal se espalhou pelo peito e ela adoeceu mais ainda. Tinha um grande desejo de retornar à sua terra, - não para nos deixar, mas pensando que o ar de seu país lhe seria favorável. Nossa Madre via isso como uma tentação e se opôs tenazmente, durante vários meses; mas a enferma insistia e nossa Madre falou sobre o assunto com Monsenhor Cottu, que autorizou a viagem. Não querendo, em absoluto, opor-se a algum desígnio secreto da Providência. Consultou o médico a respeito, o qual aconselhou-a que a deixasse partir. Ela, então, não mais se opôs. Acompanhou-a, ela mesma, de retorno à casa de seus pais, a doze léguas de Amiens. Foi uma graça que Deus concedeu a esta boa Irmã; ela já havia sofrido bastante nos últimos meses de sua vida para ser testemunha de tudo o que aconteceu, bem como da maneira como suas Madres foram tratadas e expulsas. Ela foi poupada, por misericórdia divina, de assistir a essa dissolução da casa, o que teria sido demasiado duro para seu coração sensível. Ela era de um temperamento alegre e amável, muito humilde e prudente, e eu mesma pude dar, oportunamente, um bom julgamento a respeito. Nos primeiros dias de seu retorno a Amiens, ela dissera a Madre Júlia ter visto Monsenhor de Gand1 - é dele que eu falo - não de Monsenhor de Beaumont, que havia recebido nossas Irmãs e prometido à nossa Madre que não deixaria por muito tempo suas filhas na casa de Berkenboom2, onde a Irmã St-Jean contraiu sua doença; mas pouco tempo depois ele foi transferido e é Monsenhor de Broglie, seu sucessor, que chamou a Irmã St-Jean a Gand para a interrogar, e que a viu em St-Nicolas. Quando as nuvens se dissiparam e Monsenhor de Broglie reconheceu a verdade a respeito de Madre Júlia, ele a tratou, bem como às suas filhas, com toda bondade. Ele lhe disse repetidas vezes, a respeito de Irmã St-Jean, que já havia falecido: Vós perdestes uma filha encantadora!... Oh! que perda tivestes! O secretário de Monsenhor também afirmou que ela sempre demonstrara muita prudência no falar. Monsenhor de Gand fizera seus estudos no mesmo colégio que o Padre de Sambucy, e, a crer nisso, ambos eram íntimos; pode ser, mas não vem ao caso. Quem quer que seja, Padre de Sambucy não perdera a oportunidade de prevenir Monsenhor de Broglie com referência à Madre Júlia. 1. Monsenhor de Broglie. 2. Nome dado à casa de St-Nicolas
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Certamente que jamais a teria pintado com belas cores, pois, conforme o relato da Irmã St-Jean, Monsenhor lhe disse, em presença do decano e outras personalidades ilustres, coisas extremamente fortes contra Madre Júlia, até concluir: Vossa Madre é uma lacaia; sua casa vai perecer e se vós vos não livrais dela, perecereis juntamente, etc. etc. Por fim, acrescentou: Eu só sei o que me contaram. A Irmã St-Jean não relatou tudo o que ela respondeu, mas Monsenhor de Gand ficou tão satisfeito com ela e com suas respostas, que ele testemunhou a respeito dela, elogiando sua bondade; ao que ela respondeu: Se a Madre é perversa, como serão boas suas filhas? Esta cara Irmã morreu no dia 27 de janeiro de 1809, doze dias após a partida de Madre Júlia para Namur. Ela não teria suportado partir juntamente, devido ao seu estado de saúde; admiramos como o Senhor faz com que tudo aconteça para vantagem dos seus. Pensamos que ela e a Irmã Xavier, bem como a Irmã Ana, são holocaustos de agradável odor que Deus escolheu, a fim de espalhar, em consideração a elas, suas bênçãos abundantes sobre nossas fundações. Pouco tempo depois que Irmã São José estava de volta a Namur, Madre Júlia quis que se escrevesse ao padre Minsart pedindo-lhe que procurasse uma casa ampla, onde houvesse um jardim, - aquela em que estavam não o possuía, e a casa era demasiadamente pequena, haja vista as pensionistas que aguardavam para poderem ingressar. Este bom padre, que era, então, vigário na paróquia de São João Evangelista, tinha sido religioso. Ele apreciava muito esse estado e desvelava-se, em todo sentido, para o desenvolvimento da casa das Irmãs. Prestou-Ihes muitos serviços; foi-Ihes extremamente devotado e muito prestativo, em oportunidades diversas, nos inícios da congregação. Empenhou-se, pois, com todo esmero, em procurar uma casa e encontrou-a, bastante confortável e adequada e a alugou.1 Ignorava-se o fato em Amiens e ele não se preocupou em dar notícias. No final de alguns meses, as coisas mudaram; Madre Júlia pensava não ser possível que Madre Blin já pudesse retornar a Namur, deixando-a em circunstâncias tão críticas; comprometer-se com um aluguel tão caro, significava abrir um rombo nas economias, tão necessárias em Amiens, de 1. No original “arrêter”: sentido antigo, que significa “fixar por escolha”.
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sorte que estava em dúvida se devia avançar ou recuar. Nesse ínterim, Irmã São José escreveu uma carta ao padre Minsart, em linguagem equívoca, no intuito de fazê-lo entender que ela já não se preocupava com casa. O bom padre ficou muito contristado, mas, felizmente, ele nada havia pago pela casa que pretendia e que teria sido tão necessária às Irmãs. Um dia, Monsenhor de Amiens perguntou à Madre Júlia por que a Madre Blin não partia para Namur, pois sua permanência em Amiens não lhe agradava embora alguma consideração por ela o impedisse de ordenar-lhe que partisse, Madre Júlia respondeu-lhe que Madre Blin amava muito a casa de Namur, mas que estava, também, extremamente afeiçoada à de Amiens; que, não havendo verba suficiente para sustentar as duas casas, ela não partia, fazendo ver que lá onde ela estivesse, era natural que o dinheiro a acompanhasse. Monsenhor não respondeu, mas percebeu-se que ficou impressionado e levado a fazer reflexões, em seu íntimo, que surtiram ótimos resultados. Monsenhor não pediu que emitissem os votos, devido aos decretos em que o governo vinha se empenhando relativamente às ordens religiosas,1 e elas se preservavam de o solicitar devido às circunstâncias. Foi esta conjuntura que tornou sua saída de Amiens tão fácil; ademais, nada de regras nem de constituições impostas por decreto. Madre Júlia obteve mais do que permissão para partir; e Madre Blin fora enviada para Namur, ela estava em Amiens apenas como visita. Madre Júlia recebia frequentemente cartas da superiora de Bordéus, expondo-lhe as dificuldades em que se encontrava. Ela obtivera uma casa do Imperador, quando este passara por Bordéus, porém, antes de lá entrar, seriam necessários muitos reparos, o que a deixava muito preocupada. Geralmente ela estava sem dinheiro para pagar os operários; todas as boas Irmãs eram pobres; reaplicava-se as rendas, para se poder viver. A dificuldade, talvez, mais difícil de solucionar era a de se conseguir uma superiora para a segunda casa, chamada o Chartron, pois a Irmã que lá estava encontrava-se permanentemente doente. Necessitava-se, também, de uma mestra de noviças, a que ocupava o cargo não era bastante competente para a função. Madre Vicente pedia, em todas as suas cartas a Madre Júlia, uma superiora e uma mestra de noviças. 1. Napoleão havia concebido o plano de fundir todas as associações em dois ‘regimentos’: os hospitalares e os educativos.
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Madre Júlia teria desejado ardentemente satisfazê-la; parecia-lhe que isso teria sido um elo entre as casas. Ela destinara, como superiora, a Irmã St-Jean, mas Deus não a quis; pois que a doença a levou. Havia, ainda, a Irmã Jane Godelle, que teria sido ótima para Bordéus, mas era mestra de noviças e estava a fazer um contrapeso, no sentido de manter as noviças prevenidas contra a dissipação de Madre Vitória. Madre Júlia percebia que poderia prejudicar grandemente a comunidade de Amiens, se de lá retirasse esta Irmã; não pôde decidir-se a tal, embora o desejo íntimo fosse atender prontamente a casa de Bordéus. Pensou que, deslocando-se pessoalmente para lá, talvez encontrasse em Bordéus mesmo a solução. Madre Vicente pressionou-a a vir a Bordeús por outro motivo mais: tanto ela, quanto as suas Irmãs, desejavam muito ter uma regra completa e decretada, e ela convidava Madre Júlia, insistindo que se poderia elaborar as regras em Bordéus, que era indispensável que ela viesse e acrescentava que os Padres Lambert e Floriot lá estavam, cheios de boa vontade para ajudar. O assunto deu, a Madre Júlia, motivo para muitas reflexões. Ela pressentia que as regras que Monsenhor de Amiens pretendia fazer só provocariam na comunidade, ventos e tempestades, uma vez que nós nos mantínhamos fiéis ao espírito primitivo, ponto em que suas ideias eram opostas às nossas. Será preciso submeter-se em tudo, perguntava-se Madre Júlia, ou Deus não estará me pedindo que eu sustenha esse estabelecimento no mesmo espírito em que o iniciamos? Que fazer, em circunstâncias tão dolorosas? Eis que parece abrir-se, em Bordéus, uma porta que nos tirará do embaraço. Os Padres Lambert e Gloriot lá estão, conhecem perfeitamente nosso espírito, que é o deles, eles se incubem de redigir as regras; é preciso ir, elas podem vir tanto de Bordéus, quanto de Amiens. O bom Deus me conduzirá, pois não procuro senão a sua vontade e a sua glória. Tomou, finalmente, a resolução de viajar para Bordéus, prevendo que seria impossível de contar com a aprovação do bispo de Amiens; mas como necessitaria da aprovação de uma autoridade eclesiástica, escreveu ao arcebispo de Bordéus, expondo-lhe a difícil situação em que se encontrava, e rogou-lhe de se empenhar junto ao Monsenhor para obter seu consentimento. 83
O senhor arcebispo, que estimava Madre Júlia, que a recebera na qualidade de Madre geral, que estava um pouco a par de tudo, através de alguns padres da Fé que haviam permanecido em sua diocese, conhecedor do quanto valia Madre Júlia e das trapaças de que fora alvo - que, aliás, como se sabe, era iluminada por Deus para discernir sobre as coisas -, escreveu uma carta reconhecida, enviando outra ao bispo de Amiens, pedindo-lhe que a deixasse vir, para atender às necessidades da casa de Bordéus. Monsenhor de Amiens chamou Madre Júlia e disse-lhe que não poderia recusar-se a obedecer ao senhor arcebispo de Bordéus, fixando-lhe a data da partida para alguns dias mais tarde. No dia seguinte, porém, recebeu um bilhete, no qual havia a ordem de não partir, porque não recebera autorização. O fato perturbou um pouco Madre Blin, que esperava muito dessa viagem; quanto a Madre Júlia, permanecia imperturbável em tais variações. Interveio imediatamente junto a Monsenhor Cottu, para que fosse suspensa a proibição. Não se sabe por que a proibição foi dada e por que foi suspensa, mas em breve foi, realmente, suspensa. Ela partiu a 1º de agosto. Era preciso deter-se em Paris; ia carregada de um pacote de cartas para o Padre Varin, enviadas pelo Padre de Sambucy. De qualquer maneira, teria sido estranho se ela por lá passasse sem visitar o Padre Varin, bem como o Padre Montaigne, superior do seminário e amigo íntimo do Padre Varin, a quem escrevia algumas vezes, tanto para pô-lo a par das principais ocorrências a nosso respeito, quanto visando a que ele informasse disso o Padre Varin, pois, por prudência, não queria escrever a ele pessoalmente, mas estava, muito embora, persuadida de que ele jamais cessaria de ter interesse tanto pelas nossas desgraças, quanto pelos nossos sucessos, da mesma maneira que nós não poderíamos deixar de ter, por ele, consideração, estima e reconhecimento. Quando ela se apresentou ao Padre Varin e após ele ter lido as cartas de que era portadora, aterrorizou-a a maneira como ele lhe falou. Foi com tal firmeza, um tom, uma veemência tal, que lhe causaram forte impressão e a fizeram sentir-se mal. Concluiu seu sermão dizendo que só havia o Padre de Sambucy que poderia dar-lhe regras, que era em Amiens que elas deveriam ser elaboradas; que era preciso retornar e que não se alvoroçasse mais; que Madre Blin e ela eram duas loucas, que todos os bispos estavam 84
contra elas; que em breve não saberiam onde pisar; que o bispo de Namur também era contra elas, etc., etc. Saindo de junto do Padre Varin, dirigiu-se à igreja da Visitação, onde passou algumas horas em oração, em companhia do verdadeiro Consolador. Lá encontrou um bom padre que lhe haviam indicado e que a ouviu em confissão. Esse padre disse-lhe palavras repletas de Deus. Saiu da igreja com a alma fortalecida, o mesmo acontecendo com o corpo, que se dispôs a retomar o caminho de volta a Amiens. Escreveu algumas palavras a Madre Blin, para informá-la de que não se sentia bem e que retornaria a Amiens. A saúde não foi a causa principal de seu regresso, mas ela mesma afirmou que o abalo que havia sofrido na entrevista com o Padre Varin fora tal, que seria imprudência empreender uma tão longa viagem como era a de Bordéus. Não obstante, Deus tinha outros desígnios e foi preciso que acontecesse tal coisa, para fazê-la retroceder. Este fato é tanto mais admirável, se se considera que, desde a dissolução dos Padres da Fé, os elos de autoridade e de dependência se romperam. Padre Varin mesmo queria assim. Mas Deus permitiu que, nesta ocasião, ele se deixasse levar por um sentimento suscitado pela malevolência do Padre de Sambucy, Enfim, tudo serve ao cumprimento dos desígnios de Deus. Embora a ausência de Madre Júlia tenha sido de apenas alguns dias, a paz, na casa, chegou a ser perturbada. Convém saber que, quando Madre Blin veio de Namur a Amiens, Madre Vitória, por um sentimento de respeito e de reconhecimento, pediu-lhe que ocupasse o seu lugar na capela. Madre Blin se esquivou e, quer por prudência, quer por outro motivo, ela fez bastante resistência; mas Madre Vitória chorou e insistiu de tal maneira, que, como esta prova de deferência não estava fora de conveniência, Madre Júlia aconselhou a Madre Blin que a aceitasse, também no refeitório. Quando Madre Júlia não estava, Madre Vitória pedia a Madre Blin, com insistência, que rezasse o Benedicite, e embora esta nada usurpasse do que pertencia a outra, Madre Vitória sentia-se pouco à vontade quando Madre Blin estava presente. Não podia perder para ela, razão porque com mais empenho se dedicava a preencher suas funções. Ela era bastante resoluta, mas faltava-lhe a simplicidade e o seu natural se afetava; se bem que as Madres Júlia e Blin tivessem dispendido esforços no sentido de pô-la à 85
vontade, jamais o conseguiram; e, com efeito, ela se sentia deslocada. Esta nomeação feita às ocultas e sem o consentimento de Madre Júlia nem de nenhuma de nós, não trouxe benefício algum. Com a proximidade da viagem de Madre Júlia, Madre Blin perguntou-lhe como convinha conduzir-se durante sua ausência; nossa Madre, por diversas razões, aconselhou-lhe de não assumir nenhuma das funções de Madre Vitória, ainda que pudesse dizer-lhe, exceto as do catecismo; que o fizesse só se fosse solicitada, conquanto tal tarefa não fosse atribuição de Madre Vitória; aliás, segundo as informações que chegaram até Madre Júlia, ela não se desincumbia de seus encargos com proveito para as Irmãs. Isso havia sido manifestado por diversas vezes dentre elas. Era, acaso, de se admirar, em sua idade e sem experiência? Era preciso, antes, formá-la. Madre Júlia teria desejado mais, por razões diversas, formá-la com as crianças, do que com as Irmãs; e foi isso que o Monsenhor não entendeu nunca. A escolha de quem ministraria o ensino do catecismo cabia, sem dúvida, à superiora, mas o bispo, que exigia informações detalhadas do Padre Cottu, tinha conhecimento das mínimas circunstâncias e restringia, em muito, os direitos de Madre Júlia, emitindo ordens, ele mesmo, em diversos assuntos. Em tais casos, só nos é dado levar nossas queixas a Deus; foi o partido que Madre Júlia tomou. Ela desejara, portanto, que fosse Madre Blin a ministrar aulas de catecismo. Monsenhor não se explicara ainda, razão porque, aos rogos de Madre Vitória, Madre Blin aceitou a incumbência, o que foi julgado como péssimo, pelo Monsenhor, que não concordava em conceder relevância alguma a Madre Blin. Ela tivera, como já mencionei, uma conversa com ele, por ocasião de sua chegada a Amiens, ocasião em que ela lhe expôs seus planos, dos quais nem sequer tomou conhecimento; mas, pelo menos, ele a recebera com certa benevolência. Voltou a conversar com ele em seguida, acompanhada de Madre Júlia; agora, ele as abordou com um ar de descontentamento, dizendo, em tom de imponência: Que quereis, minhas senhoras? Entretanto, tornou-se algo mais suave, mas acabou por dizer, de maneira categórica e sem lhes dar oportunidade de contestarem: Não haverá Madre Geral, e esta casa será a casa mãe. Não havia mais nada a dizer e elas se retiraram. 86
Madre Júlia recebera a proibição de se apresentar ao bispo, sem ser para isso convidada; mas, por ocasião do ano novo, Padre Cottu lhe dissera de lá ir, e ela foi acompanhada das Madres Blin e Vitória. Encontraram o camareiro que lhes disse tê-las visto aproximarem-se, o Monsenhor, do alto da janela, o qual, por sua vez, mandava dizer que não poderia recebê-las. Outro dia, quando Madre Júlia foi chamada ao bispado, Madre Blin acompanhou-a até a porta e entrou numa casa vizinha, aguardando-a na saída; esta precaução não foi inútil. A boa Madre necessitava de consolo, pois ela vertia lágrimas, coisa que não acontecia em outras crises; por isso ela afirmava que estas ultrapassavam todas as outras que já tivera. O fundo de sua alma não estava abalado, mas os acentos de voz, os gestos, os termos, tudo foi tão violento, que ela teve uma comoção nervosa, da qual se ressentiu durante vários dias. Julgava estar sempre ouvindo esta voz imperiosa retinir em seus ouvidos. Tratava-se, ainda, da questão de Madre Vitória, quanto ela a fazia infeliz, que ela era um anjo, que ela era ciumenta como um tigre, etc, etc. Tudo isto durante muito tempo, com muita veemência e batendo o pé, Madre Julia tinha sentimentos de religião tão profundos, que lhe parecia inadmissível, que um bispo exaltado não fosse redutível. As duas Madres, antes de voltarem a entrar em casa, foram passear ao acaso; entreviam, confusamente, alguns desígnios ocultos da Providência. Madre Júlia adivinhava, neste conjunto de atitudes de Monsenhor, algo de Deus, pois era natural haver tão pouca benevolência para com aquelas que eram as fundadoras, espiritual e temporal, as quais se doavam totalmente, corpo e alma para realizarem esta boa obra em Amiens. Deus a havia começado em Amiens e elas lá permaneceram enquanto acharam conveniente. Alguns dias antes de Madre Júlia receber sua despedida, ela ainda dissera a Monsenhor Cottu: - Eu jamais me afastarei daqui meu Padre, a não ser que Monsenhor me casse. - Oh! Ele não vos cassará, disse-lhe ele. E, no entanto, poucos dias mais tarde, ele lhe trouxe a ordem por escrito.
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Pareceu estranho a muitas pessoas, que se tenha enviado Madre Blin a Namur, sem que houvesse nenhuma necessidade para isso; qualquer outra poderia lá ter ido. Madre Júlia o consentiu tão somente por obediência. Irmã Anastácia também fora enviada para aqueles lados, por ordem de Monsenhor, bem contra a vontade de Madre Júlia, que necessitava dela em Amiens. Dizia-se que o bom Deus as chamava a todas para o lado de Flandre.1 Era como que uma deserção da França que se preparava para toda a corporação. Apesar da tristeza que Madre Júlia experimentou ao ver partir Irmã Anastácia, ainda era acusada de ter fundado esse estabelecimento pela sua própria cabeça, sem o consentimento de Monsenhor, de tal modo as coisas eram interpretadas de maneira errônea. Após tão longa digressão, retomemos nosso relato. Durante a pretensa viagem a Bordéus que acabou em Paris, aconteceu que um dia, no refeitório, diversas Irmãs, - das novas -, desataram a rir, (Chamam-se novas, aquelas que ainda não fizeram os votos, e antigas, aquelas que os faziam anuais, embora já tivessem caído.) Madre Vitória, que não havia recebido educação, dissera algumas palavras estranhas, e ela acreditou que estivessem rindo dela. Sentiu-se ferida e, num movimento impulsivo, retirou-se bruscamente da mesa e mesmo da casa, indo relatar suas desgraças aos Padres Cottu e de Sambucy. Madre Blin repreendeu as Irmãs, mas suavemente. Madre Vitória esteve ausente durante longo tempo; retornando, subiu para o quarto e deitou-se; à hora do jantar, cada uma rezou o Benedicite em voz baixa. Madre Blin, encontrando-se com todas as Irmãs, sem a Madre Vitória, achou oportuno dar-hes um pequeno resumo do que estava acontecendo; após o jantar, elarompeu o silêncio para dizer-hes mais ou menos isto: Percebestes, certamente, que algo paira no ar e que ronca uma tempestade em torno de nós. Nós nos reunimos, como sabeis, para seguirmos o espírito primitivo, que nos foi dado. Monsenhor, o bispo, não se adapta ao nosso ponto de vista. Ele não quer Madre geral, as viagens o importunam, e várias outras coisas, que é excusado vô-las dizer agora, que não encontram acerto entre ele e nós. Sabemos, minha Madre e eu, quem quererá nos receber, se não pudermos ficar aqui; nós iremos para lá. Quem nos ama, seguir-nos-á. Então todas as 1. Madre São José emprega mal esta expressão, para designar os Países Baixos do Sul (futura Bélgica). Namur e Jumet estão situados na parte franca da Bélgica. Tal erro foi cometido muitas vezes, nesta época, por causa do papel histórico e artístico importante de Flandre, durante a Idade Média, até o século XVIII. Designa-se o todo pela parte.
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Irmãs bateram palmas e cada uma, sem exceção, exclamou: Eu... eu... eu... Em seguida as Irmãs se manifestaram com poucas palavras; houve efervescência, mas num tom moderado. Madre Júlia partira dia 1º de agosto; ao retornar, após cinco ou seis dias de ausência, tudo voltou à calma. Mas tudo foi severamente julgado e interpretado como algo de criminoso. Foram consideradas como pequenas faltas praticadas contra Madre Vitória, como revoltas e desobediências contra as vontades de Monsenhor. Algumas foram privadas da santa comunhão, apelou-se para as consciências, falou-se em pecado mortal e em inferno. Enfim, tratou-se pequenas faltas como grandes crimes. As Irmãs estavam alarmadas. Madre Júlia respeitou esta severidade, mas ela não se furtou de dizer à Madre Blin, que aquilo tudo havia sido levado muito longe, pois que houvera apenas algumas pequenas faltas, em pessoas jovens. Ela assegurou – com relação ao que se passara no refeitório -, que não fora por causa de Madre Vitória que haviam rido. Mas foi suficiente para desabar o temporal: a corda era muito frágil. O que ficou certo, nisso tudo, foi que, com tal severidade, jamais se atingiria os corações. Pode-se dizer que, de uma maneira ou de outra, o fato serviu para pôr à descoberta o que se passava no íntimo de cada coração. Pois, após a conversa que cada uma teve em particular com Monsenhor Cottu, este já não pôs em dúvida a afeição sincera pelas duas Madres. Isto vinha desfazer as acusações de severidade e dureza que eram feitas à Madre Júlia.
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Capítulo 4 DESDE QUANDO NOSSA MADRE FOI DESPEDIDA DE PARIS, ATÉ SER DESPEDIDA DE AMIENS. Madre Júlia estava muito fatigada e um pouco doente, retornando de Paris, mas Deus sustentou-a sempre, em todas as circunstâncias em que era preciso agir. No mesmo dia da chegada, foi procurar o Padre de Sambucy; tinha cartas dos Padres Montaigne e Varin para lhe entregar e convites a lhe fazer. Era preciso solicitar-lhe, após o que se havia falado, que se dignasse de elaborar nossas regras. Madre Júlia, vendo, nisto a vontade de Deus, executou tudo de boa mente e com generosidade; pôs-se em atitude de abertura interior e tratou várias vezes com ele, sem desconfianças, até mesmo com bastante franqueza. Padre de Sambucy recebeu-a bem e aceitou com prazer a proposta de elaborar as regras; certamente, ele havia sido prevenido quanto ao assunto. Disse a Madre Júlia que aí viria ter mais frequentemente, que conversaria com ela e com Madre Blin, que elas teriam oportunidade de manifestar quais os seus pontos de vista com relação às regras e que elas o poriam por escrito. Veio, realmente, três ou quatro vezes; falou-se muito, sem avançar em nada. As duas Madres não usaram de dissimulação: falaram-lhe de diversos assuntos sem constrangimentos, jamais imaginando que pudesse haver um retorno tão duro e tão bizarro como o que se viu acontecer. Eis uma carta que a Irmã São José recebeu do bispo de Namur, em resposta a uma que ela lhe enviara, pedindo prorrogação de sua ausência. Ela alegou, como principal motivo, o fato de estar aguardando o bispo de Amiens, e que queria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance, no intuito de obter uma e outra concessão, objetivando a consolidação do pequeno agrupamento, conforme o espírito primitivo. Ela explicava seus pedidos. 91
Namur, 7 de junho de 1808. Recebi, minha querida filha em Jesus Cristo, hoje apenas, e à noite, vossa carta datada do dia 3 de maio; quisestes, sem dúvida, escrever 3 de junho. Eu percebo toda a justiça dos motivos que vos levam a prolongardes vossa estadia em Amiens. Não deveis, pois, duvidar de que eu não concorde com vosso pedido. Somos acostumadas aos sacrifícios; submetemo-nos também àquele de nos vermos privado, algum tempo ainda, de vossa pessoa, do exemplo de vossas virtudes e dos frutos de vossos trabalhos caritativos. Nada de mais sábio, mais razoável, do que vossas proposições que pretendeis apresentar ao Monsenhor de Amiens; e não duvideis de que esse digno prelado, verdadeiro pai para suas ovelhas, não acolha, com igual bondade e justiça, vossos diversos pedidos. Eu o faço pensar como eu, neste particular e eu não colocaria nenhuma oposição. Eu me felicito, de resto, de que o clima de nossa cidade, o tom religioso que aí reina e do qual vós fostes a testemunha, as marcas de devotamento pastoral e afeição que tenho me esforçado por vos demonstrar, vos conduzirão de retorno, junto de vossas filhas de Namur, que suspiram pela vossa volta. Elas se conduzem maravilhosamente; o número de pensionistas aumenta, mas a casa não pode aumentar, coisa que me deixa indisposto. Burilai vossa santidade; vinde reunir-vos a nós o mais breve possível; trazei, se possível, vossa boa Mãe comum, a quem eu saúdo e estimo no Senhor. São os mesmos sentimentos que vos tenho dedicado, minha querida filha em Jesus Cristo, e com os quais deixo-vos a seus pés transpassados, assim como seu coração, para nós. CHARLES-FRANÇOIS, bispo de Namur.
Madre Júlia e Madre São José escreveram novamente ao Monsenhor. A Madre São José dizia-lhe que suas felizes esperanças se desvaneciam e 92
cediam lugar a tempestades que poderiam advir, funestas; que talvez fosse possível que solicitasse suas bondades, não somente para ela, mas também para sua Madre e as Irmãs. Monsenhor estava um pouco a par do que isso tudo queria dizer, através do Padre Minsart, a quem ela dava mais detalhes. Eis o que ele respondeu à Madre Júlia e à Irmã São José: Namur, 19 de julho de 1808. Sobrecarregado de afazeres, minha querida Irmã em Jesus Cristo, respondo, um pouco tarde, à vossa carta de 6 de julho. Ela me cumulou de alegria, quando me deu a entender que permaneceis na intenção de retornar a Namur para aí dirigir a obra da educação das meninas pobres, tão gloriosamente iniciada sob a vossa orientação. Confesso que tive temores com referência à mudança de vossa disposição, conforme a carta da Irmã Júlia, que me escrevia com um tom embrulhado;1 mas eis-me plenamente seguro e me ressinto de um verdadeiro consolo. Ficarei preocupado, se vosso estabelecimento de Amiens não for conservado, porque deve haver a casa mãe. Vosso digno bispo render-se-á às boas razões de vossa Superiora geral, espero-o. Quanto à minha diocese, ela se felicitará em vos possuir, vós e a Irmã Júlia, e todas as suas companheiras que vos acompanharem. Quereria apenas um local mais amplo; Deus no-lo concederá, se for esta a sua vontade, à qual nos devemos sempre conformar. Conservai vossa santidade, minha querida filha; retornai o mais breve possível, e contai sempre com minha afeição paternal em Jesus Cristo, e meu devotamento mais completo. CHARLES-FRANÇOIS-JOSEPH, Bispo de Namur.
Mostrou-se a carta a Monsenhor e ao Padre de Sambucy, para fazê-los entender que não se permaneceria em Amiens, salvo se não houvesse para onde ir, mais por temor de fugir ao cumprimento da vontade de 1. Enveloppé – no sentido de ‘velar o que se diz’, dizer de maneira obscura.
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Deus, uma vez que se saísse sem uma indicação certa. Realmente não se aguardava outra coisa, pois Madre Júlia percebia, dia a dia mais intensamente, como seria impossível de prosseguir a obra dentro do espírito de nossos primeiros fundadores, realizando o bem que se havia proposto e para o qual recebera a graça da vocação. Porém, vendo-se entravada interna e externamente, encontrava-se em situação penosíssima, temerosa de faltar para com a obra de Deus. Era neste sentido que pretendia tentar uma saída para o lado de Bordéus. Namur parecia apresentar ainda uma opção, mas a vontade de Deus não era tão manifesta. Madre Júlia orava com firme confiança e dizia frequentemente à Madre Blin, em seu estilo simples, que o bom Deus jogaria todas as cartas do jogo, que nós ainda haveríamos de nos espantar, que tudo se iluminaria e que elas veriam o caminho abrir-se diante de si; que o bom Deus faria tudo, que não convinha inquietar-se, que bastaria um gesto de sua mão, o qual ela já considerava como feito. Disse-lhe também estar convicta de que seria para Namur que o bom Deus haveria de conduzi-las, Havia-lhe segredado também, desde muito, que desde que estivera em Namur pela primeira vez, ela percebera algo de extraordinário com relação a esta cidade. Madre Júlia, tratando familiarmente com o Padre de Sambucy, disse–lhe que ele sabia, certamente, a partir de experiência própria, como era difícil entender-se com Monsenhor Demandolx. Vede tudo o que se exige aqui; em Namur, Monsenhor nos disse que tudo o que de nós exigiria, seria o de verificar nossos registros e apontamentos, todos os anos; dizia-lhe isto justamente para chamar-lhe a atenção sobre a discrepância de situações. Padre de Sambucy quis imediatamente comunicar ao Monsenhor de Namur este desabafo, o qual fora feito em confiança, tomando-o por um desejo de independência de Madre Júlia, o que não correspondia à verdade. Mas esse padre o entendia assim e deu-se à tarefa de recolher tudo quanto as duas Madres lhe disseram, neste curto período de troca de ideias, porque, segundo ele, Monsenhor de Namur devia manter-se bem informado. Também não esqueceu de transmitir-lhe a informação de que as duas Madres lhe haviam mostrado suas cartas e uma série de outras notícias, que mais convinha calar, se não por outro motivo, ao menos para conservar sua reputação de imparcialidade. 94
Não era chegado, ainda, o tempo de se fazerem as regras e, mau grado os projetos dos homens, Padre de Sambucy não falava em outra coisa. Não sei se chegou a esboçar algo; sobrevieram-lhe outros compromissos e ele as largou de mão. Mas o Monsenhor Cottu, alertado pelo bispo, julgou-se no dever de redigir as regras. Preveniu Madre Júlia de que nelas trabalhava e que as mostraria a ambas, antes de apresentá-las ao bispo, a fim de colher suas objeções. As duas Madres tranquilizaram-se com relação ao assunto. Ambas se admiravam de sua calma, mas pressentiam que tais regras jamais lhes seriam úteis. Enquanto isso tudo transcorria em Amiens, a Irmã Xavier, em Namur, estava continuamente presa ao leito, e o senhor Minsart solicitava mais uma Irmã e o retorno da Irmã São José, o mais breve possível, uma vez que a casa se encontrava muito necessitada sem superiora. Havia o pedido de mais uma Irmã também de Jumet, havendo razões que justificavam uma viagem a uma e outra dessas duas casas vizinhas. Madre Júlia fez com que Monsenhor Cottu percebesse tais razões. Pois, embora em Amiens não se quisesse admitir o princípio da necessidade de uma Superiora geral para nossa modalidade de estabelecimentos e que, ao contrário, dizia-se ser suficiente enviar superioras e que, desde que estivessem em outra diocese, não convinha mais intrometer-se, de outro lado, não é menos verdadeiro que, excetuando-se os seis primeiros meses após o retorno de Bordéus, quando este princípio se manteve categórico, na prática, são irrefutáveis as necessidades constantes que surgiram e que vinham provando, à saciedade, a premente necessidade das viagens de Madre Júlia. Ela obteve, pois, mais uma vez, permissão para realizar a viagem; levou consigo a Irmã Eulália de Laporte para Namur e a Irmã Firmine Queste para a cidade de Jumet. Neste mesmo dia 15 de outubro, partiu também uma jovem Irmã Escolástica Pelletier, sobrinha de Padre Bicheron, de saúde muito frágil. Ela foi enviada a Rubempré, a três léguas de Amiens. Eis que novamente Madre Júlia partiu, deixando Madre Blin com Madre Vitória, mas, desta vez, bem prevenida com conselhos e decisões, assim como as Irmãs, - a fim de tudo transcorrer em santa paz durante esta viagem, que deveria se prolongar por algumas semanas; com efeito, tudo 95
transcorreu a contento. Penitenciaram-se muito, da outra vez, por não lhes ter ocorrido de tomarem tais precauções. Grassava, então, uma febre epidêmica que atingiu toda a casa; quase todas as Irmãs foram atacadas, mais ou menos intensamente. Quatro delas permaneceram enfermas durante dois a três meses, chegando a perder o uso da razão por período bastante longo. Madre Vitória mostrou-se enfermeira dedicada; dinâmica e caridosa, estava quase que continuamente ocupada com as doentes. Era-lhe absolutamente impossível de preparar as instruções religiosas, motivo de solicitar à Madre Blin que o fizesse; após muito insistir, Madre Blin cedeu. Mas quando Monsenhor tomou conhecimento do fato - através de uma francesa, Irmã Luísa, que ele mandou vir à sua casa, a fim de interrogá-la sobre o que se passava -, veio, em resposta, uma ordem de Monsenhor Cottu, declarando que, quando Madre Vitória estivesse impedida de ministrar as instruções, ninguém o faria. Isso representou, para Madre Blin, uma espécie de humilhação, que pode ter-lhe sido muito proveitosa, se ela soube tirar proveito. Em todo caso, ela não mais deu instrução, o que contristou sumamente a Madre Júlia. Retomemos o assunto da viagem de nossa boa Madre. Lá chegando, encontrou muitas coisas a fazer, a regularizar, a reparar. Ela levou, de Namur Irmãs a Jumet; e vice-versa, de Jumet a Namur. Despediu a Irmã Rosália de Namur; a Irmã Luísa, também de Namur, que levara a Jumet, retornou pouco depois, mas não à casa das Irmãs. Quanto à Irmã Xavier, encontrou-a muito doente, sempre presa ao leito e, em consequência, incapacitada de gerenciar a casa. Embora Deus a tenha feito crescer espiritualmente, não possuía, ainda, a experiência necessária. Ela queria que as Irmãs progredissem em ritmo demasiadamente rápido. Falava-lhes com autoridade algo excessiva e não conseguia atingir os corações. As Irmãs tinham receio de falar-lhe com franqueza, de puro constrangimento; fazia-se pouco progresso na virtude, quando não se recuava. Neste pé, as coisas não poderiam ir longe; Madre Júlia percebeu-o muito bem, mas não era assim tão visível o remédio. Entregou tudo, como era seu costume, nas mãos de Jesus e de Maria, persuadida de que eles indicariam o momento e a maneira de agir. 96
O que ainda ocupou o tempo de Madre Júlia, em Namur, foi a casa que Padre Minsart tinha em vista para as Irmãs; foi vê-la e achou-a conveniente. O negócio ainda não estava concluído e é de se crer que jamais o teria sido, sem a vinda de Madre Júlia. Monsenhor de Namur opunha-se tenazmente a que as Irmãs deixassem a casa em que estavam. Ele percebia uma porção de obstáculos e apontava muitas razões que deveriam ser consideradas; ele tentou fazer-se entender, durante muito tempo e em várias sessões. Padre Minsart, que percebia as coisas sob outro ângulo, nada dizia e tudo escutava tranquilamente. Madre Júlia depositava tudo nas mãos da divina Providência; proferia algumas palavras de explicação e aguardava a manifestação da vontade divina através da decisão de Monsenhor. Somente a ela competia pôr fim ao litígio, dizendo que não queria, mas algo a detinha. Ela estava como que possuída por duas forças, não querendo, de um lado, e de outro, temia contrariar os desígnios de Deus. Este último sentimento predominou. Deu, afinal, seu consentimento, mas quase forçada a isso. É de se crer que o demônio não quisesse esta casa, que lhes seria tão útil. Madre Júlia, em seu retorno, passou por St-Nicolas, a fim de visitar a superiora, Irmã Catarina e todas as Irmãs que, havia muito, estavam ansiosas por vê-la. Esta boa Madre sempre encontrava algo em que pudesse intervir; desta vez, foi com relação à Irmã Genoveva Gosselin, a terceira a ingressar conosco, que lhe deu o que fazer. Enquanto estivera em Amiens, fora obediente à Madre Júlia; mas, com seu espírito limitado, não havia, aparentemente, compreendido bem que deveria obedecer, também as outras superioras. A Irmã St-Jean e a Irmã Catarina já haviam se queixado a respeito, várias vezes, e Madre Júlia a ameaçara de despedi-la. Ela possuía uma forte inclinação natural às pensionistas (no que havia muito de amor próprio). Ela só se sentia bem quando estava com elas, em função delas. Tudo o mais a repugnava e à menor advertência que as superioras lhe fizessem, ela ameaçava de cair fora. Madre Júlia, falando com ela, disse-lhe tudo o que a caridade lhe pôde inspirar e, como tivesse muita força e autoridade sobre seu espírito, conseguiu como que converter e modificar a Irmã Genoveva, ao menos por algum tempo. Esta fez, à Madre Júlia, muitas promessas, que não cumpriu. Não podia admitir que a Irmã Catarina tivesse autoridade sobre ela e sua 97
natural inclinação para com as internas aumentava cada vez mais. Como não tivesse competência nenhuma de instruí-las, é evidente que esta sua inclinação não passava de negligência e subterfúgio. Irmã Genoveva acabou por fazer com que o decano de St-Nicolas, seu pai espiritual, se interessasse por ela e lhe encontrasse um lugar na cidade, uma vez que não queria mais permanecer na casa das Irmãs; ela saiu, realmente. Foi assim que perdeu sua vocação, se é que a tivera algum dia. Madre Júlia tomou providências, também, com relação a uma petição que havia sido enviada a Paris, no intuito de obter uma casa para as Irmãs; como a que ocupavam fosse demasiadamente pequena, alugou outro local para dar aula às meninas pobres. Tornou a passar por Gand, onde se entrevistou com o Padre Le Surre, vigário geral de Monsenhor, com quem falou abertamente sobre o sucedido em Amiens; visitou, depois, também o Monsenhor. Retornou à casa de Amiens, em inícios de novembro; encontrou algumas Irmãs ainda doentes. É provável que a divina Providência tenha enviado essas enfermidades para propiciar ocasião de, no momento preciso, eliminar diversos elementos cuja vocação era por demais equívoca. Duas Irmãs, após vários meses de doença, foram afetadas da cabeça. Uma das duas quis, insistentemente, regressar a casa; Madre Júlia em pessoa a levou, a doze léguas de distância, com muita fadiga e pitorescas aventuras de viagem. A outra foi persuadida a também voltar e, como era da cidade, sua mãe veio buscá-la. Uma terceira, recém-chegada, a respeito da qual se sabia que viera apenas para usufruir de mais recursos do que aqueles que possuía, caindo enferma, o médico achou-a tão mal, que sugeriu fosse enviada de volta à sua casa. Uma outra ainda, após ter sido longamente observada por nossa Madre, a qual descobriu nela muitos caprichos que não condiziam com nosso espírito, foi igualmente despedida. A parisiense seguiu idêntico caminho imediatamente após o retorno de nossa Madre. Numa palavra, pode-se dizer que o bom Deus joeirava seu trigo; tudo o que não nos convinha e que poderia causar-nos embaraço, foi varrido mais ou menos ao mesmo tempo. Não havia, aliás, tempo a perder. Ó Bondade do meu Deus, como sois grande para com aqueles que se abandonam a vós! 98
Permaneceu ainda, é verdade, uma jovem postulante que não tinha vocação, mas Deus a reservou para nos ser útil em outra circunstância. Madre Júlia aceitara-a por piedade e em consideração a um bom padre que havia solicitado que a recebêssemos a título de experiência, uma vez que ela estava a correr grandes perigos. Este padre chama-se Dalainville. Tinha imenso prazer em fazer sermões em nossa capela, sempre que podia; fazia-o com muito zelo e instruía-nos como se estivesse nos recreando. Tinha um modo de ser original, próprio para pregar missões no interior, o que, aliás, fazia muito. Nossa Madre, após ter permitido que essa jovem permanecesse conosco durante algum tempo, percebeu, sem pena e com muita evidência, que não convinha à nossa congregação. Estava, por isso, resolvida a reenviá-la para junto do Padre Delainville. Um dia, quando este veio a casa, ela pretendia dizer-lho; mas ele retornava de uma missão, tão entusiasmado com os frutos abundantes de extraordinárias conversões que fizera. Ele relatou suas conquistas à Madre Júlia de maneira tão interessante, que chegou a comovê-la até as lágrimas, e, em meio a esse clima de intimidade, ela falou-lhe, com relação à sua protegida, que, embora não nutrisse nenhuma esperança, conservá-la-ia ainda por algum tempo, contando com as orações e boas obras que ele, certamente, estaria fazendo por ela. O ar de alívio que se respirou, desde então, por toda a casa, foi impressionante. Foi por essa época que a boa Irmã St-Jean quis voltar para casa, em virtude de seu precário estado de saúde. Monsenhor Cottu veio pregar retiro às Irmãs, na semana de Natal, Madre Júlia dele não participou; ela se ocupou, durante esses dias, em servir suas filhas e preparar-lhes as refeições, substituindo a Irmã cozinheira, que fazia seu retiro. Madre Blin participou apenas esporadicamente, pois que devia, às vezes, ausentar-se e tratar com Madre Júlia sobre as lidas da casa. As regras que Monsenhor Cottu redigira, estavam concluídas; entregou os originais a Madre Júlia, exatamente nestes dias de retiro, e as duas Madres fizeram a leitura conjuntamente. Estas regras haviam sido copiadas, em parte, das regras das antigas Irmãs de Nossa Senhora de Bordéus, as quais, por sua vez, eram extraídas das dos Jesuítas e haviam sido redigidas e postas à disposição das Irmãs 99
de Nossa Senhora por um deles. Estas Irmãs de Nossa Senhora também haviam sido associadas por eles, duzentos e mais anos antes da última Revolução, que as havia destruído. Sua casa mãe sempre fora em Bordéus. Era dessas mesmas regras que Madre Vicente desejava que fossem extraídas as nossas, fazendo os cortes e acréscimos indispensáveis; mas tais cortes e tais acréscimos jamais foram realizados por Monsenhor Cottu. Aliás, os seus postulados eram: nada de Madre geral, nada de visitas às casas, restringir-se a uma única diocese, quando nós já tínhamos - antes de estarmos sob a jurisdição total do bispo de Amiens - casas espalhadas por outras dioceses, o que é próprio do espírito do Instituto. Vendo, pois, que o edifício pecava pelos fundamentos, não nos demos ao trabalho de fazer exame aprofundado dos detalhes e não nos ocupamos mais do assunto e, para não perdermos tempo, esquivávamo-nos aos encontros e às perguntas de Monsenhor Cottu, pois Madre Júlia pressentia que poderíamos nos embaraçar. Mas como não foi possível esquivar-nos e fugir à questão por mais tempo, ela estabeleceu com Madre Biin de não contrariar, nem chocar, por nada neste mundo, a Monsenhor Cottu relativamente às suas regras – embora não servissem para nada -; que lhes diriam, simplesmente, haver alguns artigos que estavam a merecer reparos; que regras não se definem assim tão depressa; que o momento atual não era oportuno para estabelecê-las; que tudo isso requeria tempo e que seria preciso, talvez, um ano e mais, para saber como se desenrolariam as coisas na política do governo. Com efeito, não tardou que a oportunidade se oferecesse, em que Monsenhor Cottu solicitou que elas se manifestassem, o que aconteceu conforme relatamos acima. O padre se irritou, dizendo que, quando se pede tempo, é porque não se quer fazer nada, que o bispo não entendia assim; que ele desejava que as regras fossem concluídas e aceitas imediatamente, já, e que os votos fossem emitidos no dia da Anunciação; que era tempo de se restabelecer a ordem na casa. Elas permaneceram caladas. Madre Blin chegou a dizer a Monsenhor Cottu, em outra oportunidade, quando ele estava mais calmo: Meu pai, se as coisas continuarem indo de mal a pior, sem perspectiva de conciliação, asseguro-vos que levarei para Namur a Madre Júlia e toda a ninhada. Estas palavras, bem como 100
uma resposta que Madre Júlia havia dado ao Monsenhor, quando este lhe perguntara por que Madre Blin não retornava a Namur, fizeram-no temer de que a Irmã Blin, partindo, algum dia, levasse consigo sua fortuna. Se o que acabei de afirmar foi a causa do que, realmente, sucedeu, foi apenas a causa segunda. Quanto à primeira, ei-la. Numa dessas circunstâncias em que tudo pareciam espinhos e trevas, Madre Júlia fez e mandou que outros também fizessem, uma novena ao Menino Jesus. Iniciaram-na no dia 5 de janeiro: consistia na reza da ladainha da Santa Infância e em outras orações, bem como em visitas à igreja. Dela participaram tão somente as Irmãs antigas, em número de seis. O objetivo era obter a graça de que se cumprisse a vontade divina em todos os transes e acontecimentos do momento. No quinto dia da novena, Madre Júlia disse: Já não tenho a menor sombra de inquietação; sinto-me calma, profundamente calma. O Divino Infante tomou tudo sob sua proteção, ele nos há de amparar. No sétimo dia, Monsenhor Cottu chegou, pela manhã, ao quarto de Madre Júlia e enfrentou-a, dizendo: É preciso decidir, de uma vez por todas. Monsenhor diz que não pode fundar uma casa sobre o nada; que ele pode proibir a Madre Blin de levar sua fortuna consigo e deixá-la para as Irmãs; que ele já não tem meios de sustentá-las, que não pretende associar-se a vós, absolutamente; ele vos tirará vosso padre e não aprovará regra alguma se, antes, Madre Blin não fizer doação de seus bens à casa de Amiens. Madre Júlia, que viu Monsenhor Cottu tão agitado, disse tranquilamente: Meu Padre, por nada quero me meter na questão. Vou chamar minha Irmã Blin. Podereis repetir-lhe, se quiserdes, tudo quanto acabais de me dizer. Foi, depois, ao quarto de Madre Blin, cuja porta estava entreaberta. Encontrando dificuldade de se explicar, ela levantou o dedo acima da cabeça, para fazê-la compreender que as coisas haviam subido o mais alto possível, dizendo: Vinde falar com Monsenhor Cottu. Monsenhor repetiu, agora mais calmamente, à Madre Blin, tudo quanto acabara de dizer à Madre Júlia. Ela pressentiu, nesta revelação, sua próxima partida de Amiens, que lhe causou um sentimento mais de alegria do que de pena, pois ela permanecia em Amiens por dever, sentindo-se continuamente atraída para Namur. De qualquer maneira, as duas Madres ficaram admiradas e estupefatas com esta proposta, que não teriam espe101
rado; não deram, no momento, nenhuma resposta positiva, pois queriam aconselhar-se e pensar no assunto. Falaram, depois, com diversas pessoas prudentes e esclarecidas, as quais acharam as situações críticas demais, para que nelas se pudesse pensar. Dentre outros, falaram ao Padre Duminy, cura da catedral, que lhes demonstrara sempre muita estima e que lhes disse que Monsenhor, como pai espiritual, não podia dar-lhes este tipo de conselho. Havia algum tempo já, que ele ouvira Monsenhor dizer: Se a senhora Blin quer permanecer em Amiens, é preciso que ela penhore seus bens. O padre de Sambucy, com quem elas falaram também, não as animou a tanto, mas pediu à Madre Blin uma parte de sua renda, para sustentar algumas Irmãs na casa de Amiens. No primeiro instante, ela parecia não rejeitar de todo a ideia, mas Madre Júlia, com maior presença de espírito, decidiu com firmeza, dizendo: Tudo ou nada, meu Padre! Ele teve dificuldade em digerir este tudo ou nada de Madre Júlia. Padre Chevalier, pároco de Rubempré, lhes deu incentivo no sentido de recusarem a proposta, assegurando-lhes mais: que elas não eram, de forma alguma, obrigadas a aceitarem regras que não lhes conviessem. Todas as pessoas que elas puderam consultar foram da mesma opinião. Quanto à Madre Júlia, parecia-lhe que, se suas regras e constituições tivessem sido feitas e aprovadas, e que, embora sem votos no momento, elas não poderiam sentir-se livres, porque a delicadeza de sua consciência não podia dissimular que não tinham votos, neste momento, por circunstâncias momentâneas da política governamental; o que não mudava nada, aliás, do único desejo de seu coração, que era de pertencer totalmente a Deus e não usurpar-lhe nada na lei do amor, que tende sempre ao mais perfeito e longe está de pretender romper esses laços. Mas a amável Providência, que vela sempre, jamais teria permitido que o Padre Varin, mau grado seu desejo de dar regras às suas filhas, tivesse podido fazê-lo. Mais de uma vez chegou a dizer à Madre Júlia: Não sei o que é que me detém. Eu quero elaborar regras para vós, mais de uma vez tentei fazê-lo, mas senti uma espécie de impossibilidade. Nada se consegue. A verdade é que, apesar de sua boa vontade, ele nada pôde fazer, e o que, a princípio, nos havia contrariado muito, parecia-nos, agora, um afago da Providência. A renda de Madre Blin consistia em 3.000 francos; mais 11.500 francos, que, somados à importância que provinha de Madame de Franssu, 102
haviam sido emprestados às Damas da Fé, sob compromisso do Padre de Sambucy, para a compra da casa do Oratório para essas Irmãs, em reconhecimento do que elas pagavam o aluguel das Irmãs. Ela tinha, ainda, os 28.000 francos de sua propriedade próxima aos Soissons, vendida por Padre de Sambucy durante sua ausência, cujo pagamento havia sido estabelecido, por contrato, em três demoradas prestações, mas que, por um cuidado especial da Providência, acabava de ser feito todo de vez. Ela tinha, pois, o suficiente para pagar todas as despesas de uma mudança. Se se deixasse toda a fortuna em Amiens, seria preciso cortar toda a ajuda a outras pequenas casas, em suas mais urgentes necessidades, Madre Júlia não via as coisas assim; pelo contrário, ela acreditava reconhecer, em tudo, um concurso e uma confluência de circunstâncias que lhe indicavam que Deus só lhe havia conservado a liberdade, para que ela conservasse o reservatório do espírito primitivo e o preservasse do naufrágio, para o qual tudo, em Amiens, parecia concorrer. Esta era, também, a maneira de ver de Madre Blin, a quem Madre Júlia, por seu espírito de humildade e prudência cristã, consultava sempre. Ela falou a Madame de Franssu acerca da proposta de Monsenhor, a qual fico admirada e aflita ao mesmo tempo, porque, no reverso da medalha, ela entreviu a que conduziria tudo isso: a partida das duas Madres, às quais estava sinceramente afeiçoada. Desde longa data, vinham cartas de Narmur, dizendo que tudo andava às avessas na casa: a Irmã Xavier aproximava-se do fim; três jovens Irmãs, quase continuamente em sala de aula, viam-se obrigadas a dar conta de tudo, o que era impossível. A que cuidava da cozinha, sentia-se perseguida por tentações que lhe roubavam a tranquilidade, dela própria e das outras, transformando-se, assim, em mais uma doente para cuidar. Desde o dia 6 de dezembro, elas se encontravam na casa nova. O número de pensionistas aumentava; era preciso atender e providenciar com tudo, ainda que sem experiência e capacidade suficientes. Sentiam-se, todas, tão intensamente esgotadas que, ao sentarem-se à mesa, entreolhavam-se e punham-se a chorar.
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Escrevera-se já à Madre Júlia, relatando algo de tudo isso, e ela soube deduzir o resto. Havia muito que ela se sentia interiormente pressionada a socorrer a casa de Namur, que ameaçava perecer, mas ela não descobria os meios. Fazia já algumas semanas que ela solicitava permissão para fazer esta viagem. Monsenhor mesmo lhe escrevera que não a queria em Namur, que o que ela poderia fazer era permitir que a Irmã Blin para lá retornasse. Madre Júlia percebera, no entanto, que, em partindo Madre Blin, adviriam consequências desastrosas para o momento. Não entrevendo nenhuma saída plausível, ela entregou tudo nas mãos de Deus, com a firme convicção de que Ele viria em socorro. Em todas essas tão diversas circunstâncias, um respeitável sacerdote, Padre Chevalier, aconselhou-a a que partisse para Namur e que de lá escrevesse uma carta, com todo o respeito devido, ao bispo de Amiens, comunicando-lhe ter achado mais conveniente fixar-se em Namur. Em seguida, segui-la-ia Madre Blin e todas as Irmãs que o desejassem. Madre Júlia reconheceu ter chegado o momento do desenlace, mas não tinha certeza, ainda, de ser esta a melhor maneira. Entretanto, como estava habituada a fazer valer a vontade dos outros e não a sua, disse que gostaria de saber o que pensavam as Madres Blin e Vitória; uma vez que se elas também pensassem como o Padre Chevalier, ela partiria. Madre Vitória disse que não; Madre Blin ponderou que não era preciso precipitar as coisas, que esta solução não era do seu agrado. Madre Júlia viu, assim, ratificada sua opinião de que não era essa a melhor porta de saída, e não se pensou mais no assunto. É de admirar que Madre Vitória tenha sido consultada de maneira tão aberta e pessoal. Madre Júlia não lhe ocultou nada e tratou-a sempre com a maior franqueza e deu-lhe, em várias oportunidades, testemunhos de confiança. Madre Vitória amava-a, admirava-a, mas como fosse jovem, era volúvel e repleta de sentimentos que ela mesma não saberia definir e, ainda por cima, completamente subjugada pelo Padre de Sambucy. Fortemente pressionada pela proposta de ceder a fortuna de Madre Blin e de aceitar as regras às pressas, bem como o desejo de ir a Namur para socorrer as necessidades da casa, Madre Júlia fez uma exposição ampla de tudo a Monsenhor Cottu. Ele viu, melhor que qualquer um, que seria 104
difícil a permanência em Amiens; ele lhe disse que, dadas as estranhas circunstâncias que se somavam, não seria desobediência se partissem sem a permissão de Monsenhor. Mas que, se ela quisesse seguir seu conselho, que deixasse partir, primeiramente, Madre Blin; que essa lhe escreveria de Namur e que depois, não conseguindo convencer o bispo de Amiens a deixá-la partir, ela iria de qualquer maneira, onde seria bem recebida. Tal foi a sugestão de Monsenhor Cottu, mas Madre Júlia achou-a pouco prudente. Devo dizer, aqui, que, desde muito, Madre Júlia dissera à Madre Blin que, desde quando pressentira a catástrofe, ela pressentira, igualmente; que seria ela a primeira a levantar o pé e que as outras a seguiriam. Ela vira, desde sua estadia em Compiègne, haver uma fundação uma perseguição, e foi vencendo uma grande resistência íntima que se decidiu a vir a Amiens. Não conheço maiores detalhes a propósito de sua grande reserva. O que posso afirmar com certeza é que ela não se apoiava sobre coisas extraordinárias, ao tomar suas decisões, e pode-se perceber isso pela sequência dos fatos e pela feliz solução a que Deus a conduziu. Nossa casa era alugada por contrato, em nome de Irmã Blin, em seu próprio e no de Irmã Anastácia. O mobiliário pertencia à Madre Blin, uma vez que ela o trouxera ou comprara com seu dinheiro. Todas as Irmãs eram muito dedicadas às suas Madres; em vista disso, poder-se-ia, sem dúvida, permanecer nesta casa, sem que ninguém tivesse podido nos expulsar. Mas então, deveríamos aí permanecer como leigas, porque Monsenhor Cottu dissera-nos que o bispo não se preocuparia conosco e que nos tiraria o padre que vinha, diariamente, rezar a missa em nossa casa; isso não poderia acontecer. Madre Blin já se pronunciara. Ela era da opinião de que não havia motivo de ela ter que deixar sua fortuna exclusivamente para a casa de Amiens e que não sabia, mesmo, como é que esse estabelecimento nascente poderia continuar se desenvolvendo; caso ficasse comprovado de que realmente tal coisa haveria de acontecer, ela achava mais conveniente, para a glória de Deus, doar a sua fortuna a algum seminário. Monsenhor Cottu entendeu que ela tinha razão. Ela falava dessa maneira, não sem razão. Madre Júlia encontrava-se em um desses momentos em que prevalece a incerteza e onde se caminha tateando. 105
A queda dos Padres da Fé, os violentos abalos de que fomos vítimas, não nos conduziam a nada, a não ser a algo que já não era o nosso espírito primitivo. Se Madre Júlia não pôde conservar o tesouro que lhe havia sido confiado e não pudesse reavê-lo em outras circunstâncias, estava decidida a desistir, bem como a Madre Blin, a qual distribuiria sua fortuna a qualquer outra obra de caridade. Mas na convicção de terem sido escolhidas exatamente para aquele objetivo primordialmente traçado, não quiseram, por si mesmas, fazer opção para outra coisa. O que ainda conservava, nelas, alguma dúvida a respeito da vontade de Deus, era aquilo que dizia respeito à comunidade, vista como conjunto: as Irmãs não tinham formação; tinham, isso sim, boa vontade, mas que desandava, algumas vezes, nos mais diversos assuntos. Poder-se-ia atribuir isso à fraqueza ou ao descuido de Madre Júlia? Não, certamente. Ela cuidava de tudo, nada fazia sem razão, repreendia sempre que achasse oportuno, como diz São Paulo, com força e doçura. Atribuía tudo isso aos seus pecados; mas eu penso, contrariamente que, em grande parte, convinha atribuir-se tudo à terrível cólera dos demônios contra o novo Instituto. Pode-se crer que tenha havido um grande número deles que, continuamente, rondavam nossa casa, a ver se devoravam alguma presa. As jovens Irmãs que, com tanta generosidade, haviam-se unido a nós para atacá-los, não poderiam, de maneira completa, esquivar-se de suas ciladas, e assim elas se fatigaram sobremaneira, principalmente nos últimos tempos da casa de Amiens; não houve uma única que não se ressentisse de seus malévolos golpes. Ademais, no retiro pregado por Monsenhor Cottu, apesar de sua boa vontade, elas se sentiram, cada uma a sua maneira, perturbadas, dissipadas, aborrecidas, atormentadas pelas mais diversas tentações; e a surpresa geral foi grande, ao perceberem, todas, que, após o retiro, estavam mais angustiadas do que antes. Enfim, o momento do desfecho chegou, no dia 12 de janeiro, pela manhã. Monsenhor Cottu veio até o quarto de Madre Júlia, entregando-lhe um bilhete assinado pelo bispo e por ele ditado, mas escrito pelo Monsenhor Cottu, seu vigário geral. Eis as ideias principais.
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O prelado dizia à Madre Júlia que, tendo-lhe alugado a casa que nós ocupávamos, para aí fundar um instituto de Irmãs de Nossa Senhora, mas vendo que ela conduzia suas filhas num espírito completamente diverso, agora, ela poderia retirar-se para a diocese que quisesse; que, quanto a ele, queria a devolução da casa, pois aí iria formar verdadeiras Irmãs de Nossa Senhora. Pode-se pensar que Madre Júlia tenha recebido este golpe da Providência, que ela aguardava havia tanto tempo, com muita segurança e paz. Sabia, sim, que jamais poderia realizar a obra que Deus lhe pedia, em Amiens, e agradeceu ao Senhor, por não ter tomado esta decisão por si mesma, mas que Ele lhe traçou um roteiro tão claro e tão seguro. Monsenhor acrescentou, verbalmente, que ela deveria levar consigo todas as suas filhas. Madre Júlia chamou Madre Blin, estando Monsenhor Cottu ainda no quarto, a fim de que ela pudesse ouvir-lhe da própria boca esta última notícia. Ela a recebeu tranquilamente e sem nenhuma manifestação de revolta; ao contrário, insistiu, até, com Madre Júlia, para que não retardasse a partida, temendo, dizia ela, uma reconsideração engosa,1 a qual não fugiria de uma armadilha do demônio para impedi-las de aproveitar ocasião tão favorável. Mas Madre Júlia, completamente indiferente, no sentido de querer determinar ou fazer o que fosse do agrado de Deus, quis protelar a partida, pelo menos de alguns dias, para que não houvesse ninguém, nessa diligência, que se sentisse pressionado e, ao mesmo tempo, para permitir que a Providência confirmasse ou desfizesse o que fora determinado, embora, interiormente, ela estivesse persuadida de que o bispo não mudaria de opinião - o conjunto das circunstâncias lhe indicavam isso -, e ela não temeu de faltar aos desígnios de Deus, ao tentar fazer com que fosse modificada a sentença. Uma vez conhecida a determinação superior, ela se contentou em protelar sua execução por três ou quatro dias; partiu no dia 15. Ela teria preferido partir mais tarde ainda, mas o transportador marcou esse dia. Ademais, o dia da partida caiu em um domingo, após o meio-dia. Levou consigo cinco Irmãs e um sobrinho de 11 anos, que estava sob seus cuidados havia alguns anos, a respeito do qual ela nutria desejos de transformá-lo em bom cristão. Inicialmente ele estivera hospedado com os Padres, 1. No original: “pallier” - dissimular, apresentando uma aparência de verdade.
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depois passou a residir com o Padre Bicheron, até a partida; nossa Madre, até ali, só precisara fornecer-lhe a roupa. Tratava-se de um pequeno reconhecimento para com seu irmão enfermo, a quem ela devia obrigações. Mas retornemos ao nosso principal assunto. Eu havia deixado Monsenhor Cottu no quarto de Madre Júlia, a quem, na saída, fez a pergunta: - Quem levareis convosco primeiramente? Bem, disse ela, levarei tal, tal, tal, etc. E quando mencionou o nome da Irmã Cisca Steenhaut, uma jovem flamenga, de Gand, que contava dezessete anos de idade e sabia muito bem o francês, a que Padre de Sambucy tecia muitos elogios e teria gostado de conservar em casa, disse: - Não, disse Monsenhor Cottu, esta fica. - Mas, meu padre, não tínheis dito que deveria levá-las a todas? - Disse-vos que esta fica; não se sabe se o bispo não quererá que algumas fiquem. - Meu padre, ela não quererá ficar, tenho certeza disso. - De qualquer maneira, ela fica. - Digo-vos - insistiu Madre Júlia, - que ela não concordará. - Sois assim, sempre em atitude de oposição; é isso que, em vós, desagrada tanto ao senhor bispo. disse:
Madre Blin, vendo que Monsenhor Cottu já estava se indispondo, - Meu padre, em consideração a vós, ela fica.
- Sim, acrescentou Madre Júlia, vou deixá-la. Tem mais, prometovos de deixá-las todas muito livres na opção. - Muito bem! disse Monsenhor Cottu, deixai-as todas livres; convém que ninguém seja constrangido. Neste mesmo dia transmitiu-se à Irmã Cisca a ordem de Monsenhor Cottu que ela deveria ficar em Amiens. Madre Júlia falou assim: 108
- Minha filha, aconselhai-vos muito bem com Monsenhor Cottu. - Ah! Minha mãe, respondeu a jovem Irmã, eu vos garanto que já me decidi; nada me poderá fazer mudar de ideia. Estarei convosco a vida toda. Podem me dizer ou fazer o que quiserem. Ide, voltou a dizer Madre Júlia, tenho confiança de que Deus estará convosco. Falai pouco. Levaram-na a Monsenhor Cottu; ele a fez sentar-se e conversou longamente com ela. Começou assim: - Vós sabeis, certamente, que vossa Madre vai partir. Que pensais a respeito disso? - Meu padre, eu vou com ela. - Mas, minha filha, ireis vos perder; estais em mau caminho. Vossa Madre está na ilusão. - Eu pertenço à minha Madre e segui-la-ei. - Sabeis que poderei negar-vos a comunhão; estais desobedecendo. O senhor bispo não deseja a vossa partida. - Eu hei de seguir minha Madre. Enfim, após ter esgotado toda a sua retórica, sem poder demovê-la, conduziu-a ao apartamento do Padre de Sambucy, que morava com ele, e a deixou só, enquanto que Leonardo correu à procura do Padre de Sambucy, que havia saído e que, certamente, antes de entrar no quarto, entrevistou-se com Monsenhor Cottu, para saber qual a disposição da jovem Irmã. Iniciou a conversa falando à Irmã acerca dos juízos de Deus, dizendo-lhe que, à hora da morte, ela estaria em grandes temores e angústias, se desobedecesse, e que, se ela seguisse sua Madre a Namur, poderia estar certa de que não permaneceria, pois que o bispo de Gand a mandaria de volta. A tudo isso, a Irmã respondeu que sempre se sentiu muito presa às Madres Júlia e Blin e que não quereria separar-se delas. - É a natureza, minha filha, mas deveis obedecer. Madre Júlia está na ilusão. Eu tenho graças para a vossa alma, tenho luzes para vos conduzir. Tivestes sempre tanta confiança em mim e eu em vós. Se estivéssemos no confessionário, teria outras coisas a vos dizer. 109
Repetiu diversas vezes essas últimas palavras, sem que, no entanto, ela pedisse para se confessar. A única conclusão que deprendeu de toda a conversa foi que ela era filha de sua Madre e que a seguiria por toda parte. - Mas espere, pelo menos, quatro dias, acrescentou ele, depois vós a seguireis. - Não, porque se eu ficar, dar-me-ão outra Madre. Monsenhor Cottu entrou, e ele e o Padre de Sambucy trocaram algumas palavras em latim. Em seguida, Monsenhor Cottu saiu com ela, a fim de conduzi-la à presença do bispo. Estava havendo, na conquista desta jovem, tanto interesse, como se se tratasse de um assunto de capital importância para a diocese. Enquanto iam, Monsenhor Cottu parou, por diversas vezes, para falar-lhe, com firmeza e veemência, a ver se conseguia persuadi-la ou intimidá-la. O interessante é que nenhum desses resultados se verificou; ela respondia, sempre com muita firmeza, que o bom Deus a mantinha em grande paz interior, que não estava perturbada nem vacilante; tal atitude é notável, numa jovem de dezessete anos. Chegando diante do bispo, ela pediu-lhe a bênção e ele lha deu; teve a bondade de fazê-la sentar-se. Monsenhor Cottu começou dizendo: - A Irmã Cisca está um tanto duvidosa em seguir sua Madre. A jovem Irmã resmungava, entre dentes, que não tinha dúvida alguma; e quando lhe perguntaram o que iria fazer, respondeu: - Eu pertenço à minha Madre e não a deixarei jamais. - Vós sois uma ignorante, disse o prelado, nem sequer sabeis vosso catecismo. Citou-lhe, então, o artigo do catecismo que prescreve submissão aos superiores eclesiásticos. Após outras explicações, Monsenhor Cottu disse: ças.
- Vós sereis mandadas ao pensionato; lá havereis de instruir as crian- Meu padre, não sei nada. Não farei grande coisa.
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O bispo estampou, em sua fisionomia, toda a sua indignação; disse que era demais. Ela pediu-lhe a bênção, em despedida; ele lha negou e despediua com palavras ofensivas. Neste mesmo dia, Madre Júlia recebeu uma carta do Padre de Sambucy, na qual procurava intimidá-la, dizendo que, se ela levasse consigo a Irmã Cisca, indispor-se-ia com o bispo de Gand, que ele se veria comprometido e certamente faria com que sua diocesana retornasse a Amiens. Padre de Sambucy, prevalecendo-se da antiga amizade do bispo de Gand, pensou poder dar esta jogada a seu belprazer, mas não pôde. O bispo abriu os olhos à evidência e aberração dos fatos, o que, aliás, foi-lhe fácil, em vista da manifesta contradição por parte do Padre de Sambucy. Eis como sucedeu: quando Madre Júlia, querendo ir a Bordéus, recebeu ordem de ir a Amiens, através do Padre Varin, e retornando, de qualquer maneira, à jurisdição do Padre de Sambucy, este também recebeu, do Padre Varin, uma espécie de reprimenda, na qual dizia que, mesmo que o mundo todo estivesse contra a Madre Júlia, ele deveria tomar a sua defesa. Sabia que ele a descrevera, negativamente, junto aos bispos. Sua intenção poderia ter sido boa, mas as consequências não o foram. Padre de Sambucy percebeu que, para que as coisas saíssem a contento, convinha readquirir o crédito junto a eles. Talvez, também, tenha tido algum remorso de consciência. Seja como for, foi então que se deu conta do real prejuízo que causara à reputação de Madre Júlia. Escreveu ao Monsenhor Praire, vigário-geral do arcebispo de Bordéus. Escreveu também aos bispos de Gand e de Tournai, para apagar as más impressões causadas a respeito de Madre Júlia, e depois assegurou a esta boa Madre que tudo sairia bem. O sim e o não com que se expressava, levam-nos a crer que, nesta última circunstância, já não teve as boas graças do bispo de Gand para manipular as coisas como bem entendesse. Da mesma forma, quando foi nomeado superior novamente, e agora livre da influência de Madre Júlia, todo seu empenho foi no sentido de fazer subsistir a casa de Amiens como casa mãe, que fosse reconhecida como tal e que as Irmãs fossem tiradas de lá. Mas já não gozava mais de crédito, por parte dos bispos, os quais reconheceram que ele fora muito longe e que falara demais. Eles viram, na modéstia de Madre Júlia, que jamais havia 111
usado de represálias, a prova evidente de que ela estava com Deus e Deus com ela. Foi preciso, no entanto, passar ainda por cruéis angústias, para usufruir dos frutos da paciência. Mas não antecipemos os fatos; estamos ainda em Amiens. Neste mesmo dia, em que Monsenhor Cottu havia mandado o bilhete do bispo a Madre Júlia e em que a Irmã Cisca havia comparecido perante os três tribunais, nossa Madre achou conveniente não ocultar às Irmãs o que estava se passando. Após o jantar, comunicou-lhes, em poucas palavras, que o bispo exigia que a fortuna de Madre Blin se tornasse de uso exclusivo da casa de Amiens; que elas haviam consultado várias pessoas, todas discordantes dessa proposta que, aliás, o bispo queria impor-lhes regras e constituições nas quais fosse eliminada a figura da Madre geral, etc., e que seria preciso que ela abandonasse suas filhas, após tê-las congregado a todas; que, finalmente, acreditando, ela, não dever, de maneira nenhuma, aceitar tais propostas, o bispo a expulsava de sua diocese, bem como a Madre Blin. Concluiu dizendo: Quem nos ama, seguir-nos-á. Mas previno-vos, acrescentou ela, que eu não comprometo ninguém. Deixo-vos completamente livres. Não rejeitarei nenhuma das que quiserem vir e não quererei levar nenhuma das que preferem ficar. Houve um tumulto geral. Não houve nenhuma que dissesse não querer partir. Madre Vitória foi a que mais entusiasticamente se expressou: Ficarei, só se me puserem na cadeia. Hei de seguir minha Madre. Esta disposição de ânimo perdurou nela durante várias semanas; mas os ataques reiterados que se lhe fizeram, sua grande confiança nos conselhos do Padre de Sambucy, sua fraqueza e sua inconstância, venceram-na imediatamente. Madre Blin deveria permanecer na casa até que tivessem partido todas aquelas Irmãs que perseverassem na sua primeira resolução, e até que tivesse providenciado uma grande transportadora, que levasse para tão longe tudo aquilo que valesse a pena, como, por exemplo, o que dizia respeito à capela, as roupas, objetos de cama, etc. Tanto quanto possível, venderia o restante. Não havia, até o momento, nenhuma previsão de que alguém pudesse ficar; entretanto, Madre Júlia pressentia que Madre Vitória não viria. No caso de que permaneça Irmãs, disse ela a Madre Blin, não serão das nossas. Vejo a relutância que existe a meu respeito. Assim, além de tratá-las, as 112
demais Irmãs, com toda a caridade que convém a cristãos, vós as servis dando-lhes preferência em vender os objetos que lhes pertencem, mas não convém exceder-se nisto, fazendo-lhes de sobejo. Aliás, somos responsáveis por toda a comunidade que vamos transportar para Namur. E estejais persuadidas de que, as que permanecerem em Amiens, nada terão de comum com as de Namur; se, muito embora, houver uma que permaneça, que Deus a abençoe. Devemos desejar que o bem se faça em toda parte. Madre Júlia empregou os últimos dias que passou em Amiens, a pôr em ordem e a preparar sua partida, bem como a instruir Madre Blin sobre a maneira como deveria agir. Madre Júlia era naturalmente ativa, mas pode-se dizer que agia sempre sem precipitação, sabia parar, aguardar, ir em busca, dar o devido tempo a cada coisa, realizando tudo e não deixando escapar nada de necessário. Era isso que causava admiração à boa senhora de Franssu, que dizia, com frequência: Quanta coisa faz Madre Júlia, e, no entanto, como sabe dar muito tempo a cada coisa. Transportou consigo o que foi possível transportar, numa carruagem já lotada com sete pessoas. Mas, como que prevendo possíveis discussões que se preparavam, começou por empacotar os ornamentos e roupas da capela, deixando, no entanto, o necessário para o uso das próximas semanas. Havia, entre as coisas que levava, um paramento que nos havia sido dado por Madame de Franssu. Monsenhor Cottu disse, ou mandou dizer, que o senhor bispo ficaria com três Irmãs. Havia dito os nomes: eram as Irmãs Vitória, Cisca e Clotilde. Madre Júlia não fez nenhuma oposição; repetiu, tão somente, que quem quisesse permanecer, era livre para isso. Mas, vendo que a jovem Irmã Cisca perseverava em querer segui-la, não achou certo que devesse ficar, contra a vontade, sob risco de perder sua vocação. Sábado pela manhã, Monsenhor Cottu veio novamente ao quarto de Madre Júlia; Madre Blin e Irmã Cisca lá estavam também, ajudando nos pacotes. Ele se sentou e ficou olhando, longamente, enquanto elas trabalhavam. Perguntou à jovem Irmã se ela sempre partiria, ao que ela respondeu: Sim, meu Padre. Nunca mais se tocou no assunto. Viu que todas as coisas se arrumavam com grande tranquilidade e só proferia uma ou outra palavra vaga. 113
Padre de Sambucy também veio, noutro momento; trazia no bolso uma carta do senhor bispo. Tirou-a com certo embaraço; não tinha endereço e não estava envelopada. Ainda que fosse dirigida à Madre Júlia, era uma carta tão veemente, que não ousou entregar-lha em mãos. Preferiu lê-la para a Madre, depois tornou a guardá-la no bolso. Ultrapassava o estilo comum. A essência e o resumo de tal carta era: que o bispo queria a devolução do pensionato tal qual, sem nada tocar, até mesmo a capela, e que Madre Júlia ordenasse que as três Irmãs citadas desistissem de partir. Madre Júlia respondeu ao Padre de Sambucy que quase tudo o que havia e se usava na capela fora comprado com dinheiro de Madre Blin e que, portanto, não pertencia ao bispo; ademais, que elas teriam necessidade desses objetos em Namur. - Não sei, acrescentou ela, quem se esmerou tanto em nos prejudicar junto ao senhor bispo; mas não é de admirar que ele tenha tantas prevenções contra Madre Blin? - Oh! disse o Padre de Sambucy, num tom e maneira de alguém que está um tanto embaraçado, é que a Madre Blin pensa que só vós sois capaz de ser a Madre geral. Enfim, vós quereis, insistentemente, ser Madre geral... - Bem, meu padre, replicou Madre Júlia, que o bispo me ponha no galinheiro, e verá, por minha submissão, se nutro a ambição de ser Madre geral. Era proverbial dizer-se que Madre Júlia tinha a pretensão de ser Madre geral; nisto, não a entenderam bem. O que ela sempre defendeu, como a Madre Blin, não era que ela tivesse o título de Madre geral, se não fosse oportuno tê-lo, por causa das circunstâncias: e sim, a liberdade para realizar as viagens necessárias e a autoridade suficiente para, de comum acordo com os bispos, prover e prevenir tudo quanto fosse necessário, nos estabelecimentos. Havia, em nossa capela de Amiens, um tabernáculo artístico, de muito e apurado bom gosto, que custara 600 francos à Madame de Franssu, que o ofertara a Deus na pessoa das Irmãs de Nossa Senhora, sem impor nenhuma condição, nem prevendo futuros acontecimentos. Madre Júlia, certamente, teria decidido levá-lo para Namur, sem ferir sua consciência; 114
mas, prevendo que encontraria oposição, por parte do bispo, e pelo respeito que lhe devia, resolveu deixá-lo, assim como um santo cibório. Ela disse, a esse respeito, a Madre Blin, que entrara em seu quarto, no sábado de manhã: O primeiro pensamento que tive, hoje pela manhã, ao acordar, foi que nos arrebatavam o tabernáculo, assim como, outrora, os filisteus levaram a arca da aliança. Madre Júlia teve o cuidado de mandar avisar, no dia 14, ao senhor bispo de Namur, através de Madre Blin, a fim de pô-lo a par do que se passava e dizer-lhe que Madre Júlia chegaria a Namur com várias Irmãs, e para solicitar-lhe os préstimos que ele oferecera, em qualquer eventualidade. No sábado à noite, nossa Madre nomeou seis Irmãs para partirem na primeira carruagem que Madre Blin enviaria logo que possível. Tínhamos conosco, havia algum tempo, uma jovem de quatorze anos; seus pais eram muito pobres. Madame Baudemont, superiora das Damas da Instrução Cristã, achara-a muito cordial e tomara-a sob seus cuidados; mas, reconhecendo nela uma boa dose de amor próprio e uma certa loquacidade ingênua, isso fez com que temesse que sua casa, um pensionato ocupado por jovens senhoritas de bom tom, deixasse a pequena um tanto deslocada de seu ambiente. Por isso que Padre de Sambucy a trouxera para nossa casa, onde tudo era mais simples; e, embora tivesse mudado em algo, deixou entrever que seu natural, com alguns vícios já arraigados, dificilmente se aprimoraria. É possível, ademais, que a Providência nos tenha favorecido, permitindo que as coisas tomassem o rumo que tomaram. Aliás, a pequena fora útil, em parte, para a instrução; chamava-se Miguela. Madre Júlia, vendo que ela estava muito inclinada a segui-la, ordenou-lhe que solicitasse o consentimento de seu pai. Este não deu resposta, mas uma hora antes do embarque, compareceu a casa. Quando Miguela percebeu que seu pai vinha para buscá-la, pôs-se em prantos e soluços. O pai disse-lhe, afinal, que vinha buscá-la para irem, ambos, conversar com uma pessoa que queria vê-la. Madre Júlia interpôs-se, dizendo que, não obstante suas insistências, ele não levaria a filha. A jovem falou, então, a seu pai, uma porção de coisas ditadas pela dor; os soluços a sufocavam. Finalmente, disparou a correr, para ir, disse ela, falar com o bispo. Não sei dizer se a porta estava aberta ou se foi ela que a abriu, mas eis que sai 115
da casa a correr pelas ruas, seu pai em sua perseguição; ninguém da casa os seguiu. Imediatamente, o lugar de Miguela foi ocupado pela Irmã Adele, sobrinha do Padre Bicheron, que contava dezesseis anos de idade. Ela entrou no refeitório onde nós estávamos, e Madre Júlia, antes mesmo de verificar quem é que entrava, disse: Esta que está entrando é que vai tomar o lugar de Miguela. Certamente o bom Deus estava conosco, pois se ela não tivesse partido com nossa Madre, na primeira viagem, o bispo teria ordenado ao Padre Bicheron, seu tio, que a retivesse, como aconteceu com a que estava em Rubempré. O jantar mal havia terminado, quando chegou o condutor, com a carruagem puxada a cavalos, e nossa Madre partiu finalmente, com cinco de suas filhas e seu sobrinho, no dia 15 de janeiro de 1809.
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Capítulo 5 DESDE O MOMENTO EM QUE MADRE JÚLIA PARTE DEFIN ITIVAMENTE DE AMIENS ATÉ O RETORNO DE IRMÃ SÃO JOSÉ A NAMUR. A boa senhora de Franssu sofreu muito com a partida de Júlia, a tal ponto, que nem pôde estar presente no momento do embarque. Sentia-se, em parte, consolada com a permanência da Irmã São José, sua antiga amiga; mas quando pensava que em breve ela também deixaria a casa e que a obra iria se dissolver, para ela, estava em grande desolação. Esperava viver e morrer em companhia de pessoas que lhe eram caras e numa casa onde se sentia completamente à vontade. Comprazia-se em ornamentar nossa capela, onde se encontrava, permanentemente, o Santíssimo Sacramento, que constituía toda a sua felicidade. Tinha cinquenta e oito anos, sofria dos nervos e era muito difícil satisfazê-la, dispondo tudo a seu gosto. Jamais pensando que, um dia, pudéssemos partir, embora a tenhamos alertado, algumas vezes, como algo possível, ela encontrou-se, de repente, como que atingida por um acidente inesperado. No mesmo dia da partida de Madre Júlia, Leonardo veio, às seis horas da tarde, trazendo um bilhete em que Monsenhor Cottu pedia à Madre Blin que viesse imediatamente a sua casa dizendo ter algo a lhe comunicar e que ela trouxesse consigo a Mestra de noviças, que Leonardo as acompanharia. Elas atenderam ao chamado, sem demora, e foram à casa de Monsenhor Cottu, que as recebeu com cordialidade, fê-las sentar e pôs-se a conversar sobre coisas sem muita importância. A coisa importante que tinha a nos comunicar, ao que parece, foi o fato de a jovem Miguela, não vir, talvez, pousar em nossa casa, mas que não nos preocupássemos, porque estava segura. Tal notícia poderia ter-nos sido comunicada por terceiros e, aliás, não estávamos inquietas por causa da jovem, que estava, seguramente, com seu pai. Supunha-se que a pessoa 117
que queria vê-la tenha sido o Padre de Sambucy e que não mais a deixaria retornar. As Madres Blin e Jane voltaram da casa do Monsenhor Cottu, após terem lá permanecido o tempo que aprouve ao Padre de Sambucy. Ao regressarem, encontraram as Irmãs emocionadas, que se comprimiram ao redor delas; umas choravam, outras se desabafavam e as duas não podiam compreender o que se passara. O Padre de Sambucy, assim que as duas Madres viraram as costas, entrou em casa, fez tocar a sineta para reunir todas as Irmãs e falou-lhes durante muito tempo, ora com vigor, ora com suavidade, querendo conquistá-las ou atemorizá-las. Disse-lhes que vinha da parte do senhor bispo; fê-las preverem qual não seria o seu remorso, à hora da morte, se persistissem em desobedecer ao seu bispo. Dizia-lhes: Vós morrereis com o remorso de terdes desobedecido a vosso bispo. (Parecia que a sistemática havia mudado e que se procurava dizer em excesso o que não se havia dito antes). Quereis seguir a Madre Júlia que está na ilusão? Ela acaba de partir e levou consigo utensílios que pertenciam à Madame de Franssu. Tal conduta merece, acaso, aprovação? Que esperais, seguindo a Madre Júlia? Vistes muito bem o que sucedeu à Irmã St-Jean: assim que adoeceu, foi mandada para casa. O bispo de Namur está velho, ele não viverá sempre; não é possível nem sequer imaginá-lo. Mas sobretudo, eu vos asseguro que não permanecereis em Namur. O bispo vos mandará de volta; voltareis, pedindo misericórdia. Quanto ao que diz respeito à Irmã Cisca, o bispo de Gand há de se irritar muito e vós a vereis retornar, certamente. Para as Irmãs de Montdidier, será preciso convocar o corpo da guarda.1 (Não pôde dizer isso sem rir). Muitas outras coisas foram ditas ainda, que não será necessário relatar aqui. Madre Vitória quis tomar a defesa de Madre Júlia. Ela mal pôde dizer: - Mas, meu padre, onde está a caridade? - Calai-vos, Vitória, foi a resposta. Vamos! As que querem ficar, que o digam, acrescentou. 1. “Maréchaussée: antigo corpo de cavaleiros, sob ordens de um marechal, incumbidos da função da guarda atual(Robert)
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Estavam todas estarrecidas; a maioria chorava; outras se exclamavam: Eu quero seguir minha Madre! Havia apenas uma holandesa, sem vocação, que Madre Júlia não pretendia conservar, que disse: Eu quero obedecer ao senhor bispo. Padre de Sambucy não se satisfez com esta conquista; não se interessava por ela e não a reteve. Ao ver que nada mais podia conseguir, disse: Monsenhor Cottu deverá vir confessar, amanhã. Cada uma lhe dirá qual a decisão que tomou. Ele anotará tudo. No dia seguinte, todas foram, realmente, confessar-se e pode-se dizer que travaram verdadeira batalha com Monsenhor Cottu: nenhuma se portou conforme sua expectativa. Ele era o grande penitenciário,1 que devia conhecer a variedade de casos possíveis. Entretanto, como ministro do Senhor, não poderia eximir-se de as absolver. Culpava-se de não ter agido com suficiente rigor para conosco, e o Padre de Sambucy foi nomeado, pelo senhor bispo, nosso confessor e superior. Diz-se que Monsenhor Cottu se teria demitido do cargo; com efeito, não teve nenhum aborrecimento com a troca, tivera uma incumbência desagradável, à qual não se prestara de boa mente, nem tinha sequer o espírito de reflexão, tão necessário em tais oportunidades. Este bom senhor, alguns dias mais tarde, adoeceu; as contendas da casa, as censuras que teve que suportar, provavelmente foram a causa disso. De qualquer maneira, o Padre de Sambucy veio à nossa casa com um ar alegre e satisfeito; disse às Irmãs: Minhas filhas, Monsenhor Cottu pediu demissão. Fui nomeado pelo bispo, para ser vosso confessor e vosso superior. Preparai-vos, saberei vos escutar. Vou confessar-vos. Madre Blin achou oportuno apresentar-se e dizer-lhe, primeiramente, que se não estivesse disposto a absolver as que estavam decididas a partir, era inútil que se confessassem. Com efeito, disse ele, prefiro que não vos confesseis. Ela se retirou e comunicou às outras, que lhes sucederia o mesmo. Apenas a Irmã Vitória e a Irmã Clotilde é que foram confessar-se, mais as sete ou oito jovens do pensionato. Quanto a elas, não deveria haver maiores dificuldades, e o melhor que Madre Júlia pôde fazer, foi deixá-las todas em Amiens. Se Madre 1. Padre que recebe do bispo o poder de absolver certos casos reservados.
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Blin autorizou a partida de mais duas, foi certamente, por um cuidado da Providência. Uma, chamada Flore Mesnard, de catorze anos, entrara havia pouco, através da mediação do Padre de Sambucy. Intenso era seu desejo de seguir a Madre Júlia, a qual a havia recebido gratuitamente, por toda a vida, conquanto ela retribuísse à graça que Deus lhe dera, pela fidelidade à sua vocação, que Madre Júlia ser-lhe-ia Mãe verdadeira. Esta jovem partiu na primeira oportunidade que Madre Blin providenciou, na quarta-feira, isto é, três dias após a partida de Madre Júlia. Esta carruagem tomou outro caminho e tinha um cocheiro melhor que o da condução em que viajava nossa Madre, o qual chegou a Namur no sábado à noite, após muitos incidentes, enquanto que aquela que havia saído três dias antes, chegou doze horas mais tarde. A Irmã Jane havia sido incumbida de ser a guarda desta carruagem em que viajavam as Irmãs doentes, as quais haviam sido embarcadas por ordem de Madre Júlia, pois dizia que queria começar com os membros sofredores de Nosso Senhor. Eram: a Irmã Augusta Granchet, de saúde muito frágil; a Irmã Maria-Jane, chamada, depois, Emanuela, convalescente, ainda, da febre epidêmica que afligira, durante seis meses, a nossa casa; depois a pequena Elisabeth Savary, trazida pelo padre Dalaiville; elas jamais teriam conseguido partir posteriormente, se não tivessem embarcado nesta primeira oportunidade. Com relação a esta última, que não nos convinha, nossa boa Madre lamentou tê-la mandado tão cedo. No entanto, ela teve sua utilidade. Via-se, em quase tudo, por assim dizer, uma predestinação da Providência, cujas marcas nossa boa Madre em si trazia; Deus a conduziu, muitas vezes, de maneira miraculosa, fazendo-nos reconhecer a presença de sua mão divina. A índole de nossa Madre não era de examinar longamente, nem de refletir em demasia, coisas, às vezes, mais cansativas que eficazes; mas ela rezava e, quase sempre, no tempo e no momento da necessidade, elevando seu espírito e seu coração a Deus, - decidia-se prontamente, auxiliada por uma luz, um sentimento ou uma circunstância que se lhe apresentasse e lhe indicasse exatamente o que ela procurava e pedia. Ela tinha, também, o espírito sempre desvinculado e livre de toda preocupação. Não tenho pensamentos preocupantes, dizia ela frequentemente, ocupada apenas com a coisa do momento: era uma de suas máximas - a de se ocupar de uma só coisa de cada vez. Com outras palavras, ela dispensava 120
o tempo necessário a cada coisa e, tendo muitas e diversas ocupações, ela passava de uma a outra, sem perturbação nem embaraço. Nada ocorreu tão tranquilamente, quanto a sua partida; dir-se-ia tratar-se de uma de suas viagens ordinárias. Na véspera, ela ainda deu a cruz e pequenas recompensas às crianças, como fazia todos os meses. E pôs nisso o tempo e as atitudes costumeiras, de modo que os alunos de nada desconfiaram. No momento do embarque, o cocheiro fez estardalhaço, porque achou que a carruagem estava sobrecarregada, Madre Júlia lhe disse, tranquilamente: Se as minhas trochas não partem, eu fico. Levai de volta vossa carruagem. Depois, foi passear no jardim com as Irmãs, até que ele se decidisse. Ela não suportava que alguém se exaltasse pelo que quer que fosse. Era uma das coisas que ela mais se empenhou em destruir em suas filhas: esta timidez que vê dificuldades em toda parte. Quanto a ela, não as encontrava em parte alguma, desde que se tratasse da glória de Deus. Realizar viagens frequentes e longas, sozinha, no verão, no inverno, fizesse qual fosse o tempo, numa diligência, numa charrete, a pé, a cavalo, hospedando-se em albergues, em casas de pobres, junto aos ricos, falar com bispos, com párocos, com prefeitos, com delegados; tudo lhe era a mesma coisa. Não que ela tivesse confiança absoluta em si mesma e que encontrasse em si mesma todos os recursos, não se tratava disso; mas ela confiava em Deus, que a assistia fielmente. Durante muito tempo, fora tímida; a graça a ajudara a perder este tolo embaraço que provém do amor-próprio. Resumindo tudo numa palavra: ela era livre, sem obstinação, porque jamais temeu o insulto e nunca desejou o aplauso. Voltemos à sua viagem. Nos primeiros dias, fez um frio terrível, que a fez sofrer mais por causa do sofrimento de suas filhas, do que pelo seu próprio. Entretanto, as Irmãs demonstravam muita paz e muita alegria em Deus. Elas enfrentaram um frio tão intenso, que até os cavalos se congelavam, tendo dificuldade de prosseguir; paravam a todo instante. Foi preciso andar cinco a seis léguas a pé, no gelo e na neve. Mas isso não foi o pior. O cocheiro, que, por sinal, estava sempre de mau humor, levara-as, um dia, a uma pousada, uma casa clandestina, que tinha mais a aparência de uma jogatina, do que de um albergue. Aí entrando, toparam com o dono, cujo 121
exterior era pouco atraente, em companhia de vários rapazes de má índole. Aproximando-se a noite, esses rapazes se retiraram, dizendo ao dono que voltariam. Nossa Madre afastou-se alguns passos da casa. Um jovem, enviado pela Providência, achegou-se a ela, dizendo-lhe, baixinho: Ah! Como estais mal aqui! Tratai de ir mais adiante. Não fiqueis aqui. Madre Júlia queria perguntar-lhe por quê, mas, explicando-se apenas por meias palavras, ele a deixou mais em dúvida ainda. Ela temia por suas filhas. O projetado retorno dos rapazes a alarmava. Que fazer? A condução estava longe, no pátio; o cavalo, no estábulo; o cocheiro, ausente; aliás, ele andava mal-humorado. Era tarde, e convinha que os cavalos descansassem. Como convencê-lo a retomar a viagem, por motivos que, certamente, não iria entender nunca? Concentrada em suas reflexões, Madre Júlia tornou a entrar e, apesar da circunstância, portou-se com formalidade para com o dono do albergue, da mesma forma que para com suas Irmãs, a quem não queria alarmar. Uma Irmã saiu também, e a divina Providência, sempre vigilante, fez com que surgisse uma mulher que lhe disse palavras idênticas às que haviam sido ditas à Madre Júlia. A Irmã transmitiu-as à nossa Madre, fazendo com que aumentassem suas preocupações. Não encontrando saída para o mau momento, Madre Júlia se entregou plenamente nas mãos de Deus e tinha a firme convicção de que Ele não as abandonaria; depois, acalmou-se. Foi servida uma sopa de leite; perguntou-se onde estava o quarto para descansar. Souberam que não havia outro, do que aquele em que estavam, no qual havia, como únicos móveis, dois miseráveis catres. As pessoas da casa iriam dormir no celeiro. Madre Júlia viu aproximar-se, enfim, o cocheiro; dirigiu-se a ele, fazendo-lhe ver os perigos, e suplicou-lhe que fossem mais adiante. O bom Deus dispôs a vontade deste homem que consentiu em atrelar novamente os cavalos. Retornando a casa, Madre Júlia, no intuito de que o estalajadeiro não suspeitasse de sua desconfiança, usou o pretexto do seu cocheiro, dizendo que era preciso pôr-se novamente a caminho, pois que ele queria percorrer mais duas léguas nesta noite. Enfim, elas partiram. Felicitaram-se todas, certas como estavam de terem corrido grandes riscos, que aquela casa era de má fama, etc. Louvaram e agradeceram a Providência, que protege sempre todos aqueles que a invocam e nela confiam. 122
Enquanto Deus protegia nossas viajantes das ciladas do demônio e as levava sossegadamente a Namur, em Amiens voltava-se à carga, no sentido de fazer com Madre Blin se persuadisse de que Madre Júlia vivia na ilusão, que ela não teria êxito algum em seus empreendimentos e que, brevemente, vê-la-íamos retornar, pedindo misericórdia. No dia imediato ao do embarque desta boa Madre, Padre Fournier, vigário geral do senhor bispo, acompanhado do superior do seminário, veio à casa de Faubourg. Entrou, primeiramente, em casa de Madame de Franssu, a quem disse uma série de coisas relacionadas à Madre Júlia, e que causaram confusão nas ideias desta boa senhora, deixando-a aflita. Saindo de sua casa, para dirigir-se à das Irmãs, viu que estava sendo carregada a condução que partiria, no dia seguinte, com a Irmã Jane Godelle e suas companheiras. Madre Vitória estava em cima da carruagem, arrumando as coisas. - Partireis vós também? Perguntou-lhe Padre Fournier. - Não, ainda não desta vez, respondeu ela. Depois, entrou no refeitório e mandou chamar Madre Blin. Começou a falar com veemência, para provar que Madre Júlia estava em contradição com os princípios do Evangelho, em que Nosso Senhor diz aos apóstolos: Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza. Disse uma porção de bonitas e empolgantes palavras, às quais faltava apenas uma aplicação mais justa para o fundo e um tom mais calmo para a forma. Os seus músculos faciais, bem como os maxilares, estavam tensos e revelavam um sofrimento interior agudo. Sem dúvida, tratava-se de mais uma obra do inimigo do gênero humano. O Senhor bispo, disse ainda o padre, enviou carta explicativa a Namur. Não penseis que o bispo de Namur receba as Irmãs em sua diocese. Os bispos se apoiam uns aos outros. Madre Blin respondeu-lhe, sem perder a linha: sabe-lo-emos em seguida. Dentro em breve receberei notícias. Contavam-se os dias. Seguidamente retomava-se o assunto de Madre Júlia, dizendo que o prelado de Amiens tinha razões sobejas de estar indignado com ela, que seu caráter intransigente, voluntarioso, impunham a suas filhas, um jugo de ferro. 123
- Mas, senhor, por que quererão, todas, segui-la? - O espírito humano tem seus erros... - Pelo menos, não se trata de crime... Ele não pôde eximir-se de concordar, depois, reforçou o fato de sua desobediência. - Mas em que, senhor, houve desobediência? - No sentido de pôr ordem na casa, que o bispo não conseguiu. - Senhor, vejo a saída de Madre Júlia de Amiens, como um lance da Providência. - Sim, antes, como um lance de sua cabeça. - O senhor prelado tem sido rigoroso além dos limites, para com ela. - Ele tem sido, também, muito bondoso quando, retornando de Paris, ela se jogou a seus pés. O senhor bispo tem comiseração com tudo isso. Ela só não veio pedir-lhe a bênção antes de partir. - Faltou-lhe coragem para tanto. - Acho que teria custado demais ao seu amor próprio. - Estou apreensiva, por ver que o senhor bispo se ressinta do fato. Se Deus nos abençoa, nossas Irmãs estarão sempre a seu serviço. - Oh! exclamou ele, estejais certas de que jamais delas precisará. O senhor bispo queria vir, esta manhã, reunir as Irmãs e dizer-lhes que deveriam escolher entre seu bispo e a Irmã Júlia. Ele tem não somente muita compreensão e piedade, mas também muita inteligência. Ele fala bem. A autoridade, a presença do bispo, certamente teriam surtido efeito. Eu o dissuadi a respeito, porque não convém a um bispo que se comprometa. Em seguida, Padre Fournier falou com o padre que o acompanhava. Teceu elogios ao bispo de Namur, dizendo: Ele tem espírito de penetração. Ele escutará os dois sinos tocarem, dando a entender que ele não se deixaria levar nem por um, nem por outro partido, que saberia examinar um após o outro.
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Estas palavras trouxeram grande lenitivo a Madre Blin, pois, em semelhantes conjunturas, já não se podia estar sem temores de ser espezinhada e arrasada pela autoridade do bispo de Amiens, o qual não perdera tempo em se justificar e enviar um amplo relatório de todos os seus preconceitos a respeito de Madre Júlia. O despacho chegou antes dela, mas ela o seguiu de perto. O bispo de Namur, com base nas informações vindas de Amiens, colheu impressões desfavoráveis a seu respeito e recebeu Madre Júlia, inicialmente, com frieza, dizendo-lhe: - Eu não vos chamei. Vós deslocais uma comunidade inteira em pleno inverno... Tomai cuidado, minha Irmã! Pessoas privilegiadas se danaram, devido à sua desobediência. Vós chegais sem me prevenir. - Perdoai-me, Excelência. A Irmã São José vos escreveu. - Ela me escreveu antes que isso tudo acontecesse. - Excelência, verificai a data, eu vos peço. Felizmente, foi encontrada a carta, na qual ele era prevenido a respeito da vinda de Madre Júlia. Mas ele estava, com razão, numa espécie de impasse, provocado pelo temor, no caso de autorizar a permanência das Irmãs em sua diocese, pois se indisporia com o bispo de Amiens. Ademais, tudo isso que uma tão respeitável autoridade lhe escrevia, tumultuava-o e obscurecia a essência dos fatos. Entretanto, quando Madre Júlia, no final desta longa reunião que durou duas horas - após ter assimilado tudo quanto sua Excelência houvera por bem lhe dizer – lhe mostrou sua carta de expulsão, percebeu que ela estava com a razão e começou a tratá-la com mais suavidade. Convidou-a, mesmo, a jantar em sua companhia. Durante vários meses ainda, este foi assediado pelas cartas de Amiens. O Padre de Sambucy escrevia-lhe com tanta frequência, que se prejudicou a si mesmo. O prelado disse, enfim: Há, nisso tudo, algo que cheira a fanatismo. Embora tendo reconhecido isso, tantas coisas desfavoráveis, ditas por pessoas respeitáveis, o mantinham, a nosso respeito, e sobretudo com relação à Madre Júlia, como em alerta, fazendo testes e provas. O Padre Minsart mesmo, quando Madre Júlia chegou, encontrando-se com as Ir125
mãs, à hora do desembarque, ajudou a Madre a descer da carruagem, com um gesto de certa frieza. Eis tudo quanto esta boa Madre encontrou, para desagravá-la dos ultrajes de sua partida e os contratempos da viagem. Para cúmulo dos infortúnios, sobreveio-lhe outro contratempo, que seria inútil relatar aqui, que a obrigou a passar uma noite penosíssima. Mas não devo me perder neste tipo de circunstâncias; a repetição será exagerada. Basta saber que, além desses disparatados encontros, seu físico sensível e um resquício de sua doença nervosa, faziam-na sentir, com frequência, dores incômodas durante a noite e não a deixavam dormir; disso, no entanto ninguém se apercebia durante o dia. Era isto que me causava admiração após noites tão penosas, em que ela me dizia, constantemente, que se sentia como se estivesse sendo esfolada. Madre Júlia, percebendo que deixara Madre Blin numa situação desagradável e difícil, escrevia-lhe com frequência, para dar-lhe força e consolá-la. Dava-lhe conta de tudo o que se passava em Namur, mas ocultou-lhe a recepção que teve, ao chegar, temerosa de que a deixaria inquieta e, talvez, pudesse enfraquecê-la, em tudo quanto teria que suportar ainda, em Amiens. No mesmo dia em que Padre Fournier veio à nossa casa, enviou à Madre Blin, por um empregado do bispo, uma carta, da qual o portador esperou a resposta. Ela lhe disse que não poderia responder imediatamente, que o faria mais tarde, que o incumbia de transmitir seus respeitos ao Padre Fournier. Ela escreveu, realmente, uma carta em resposta, que mostrou a um padre respeitável, que a aprovou. No entanto, jamais se animou de enviá-la. No mesmo dia de sua partida, tendo-a em mãos, para dá-la a uma pessoa que se encarregara de remetê-la, Não sei, disse ela, porque sinto repugnância em vô-la dar. Era o Padre Borromeu Lefèvre, pessoa de confiança, que vinha rezar missa na casa das Irmãs e lhes prestara ótimos serviços, em diversas oportunidades, particularmente à Madre Blin, auxiliando-a nos embaraços da partida. Ele sabia de que se tratava. Tendes razão, disse-lhe ele. A gente costuma fazer este tipo de justificação, quando se espera alguma punição, mas vós não tendes nenhuma a esperar. Esta carta para nada mais serviria, do que para dizer mais algumas palavras desagradáveis. 126
Madre Blin recolocou a carta no bolso e levou-a para Namur. Eis o seu conteúdo, primeiramente da do Padre Fournier, depois a da resposta de Madre Blin.
Senhora, É-me impossível, calar quando vejo a autoridade episcopal desprezada, pisoteada por pessoas que fazem profissão religiosa. E julgo-me obrigado de vos esclarecer, a fim de que possais reconhecer a falsa caminhada na qual vos engaja uma filha que é vítima de sua ilusão. Vós imaginais, senhora, o dizeis a todo mundo e o dissestes a mim também, que é em obediência às ordens do bispo que a Irmã Júlia resolveu deixar Amiens e levar consigo as Irmãs de Nossa Senhora. Tenho prazer em pensar que estais realmente, convencida disso, porque não sois capazes de enganar. Mas se vós não vos enganais, necessariamente estais sendo cruelmente enganada pela Irmã Júlia. Pois, se a Irmã Júlia tivesse mostrado a carta que recebeu do bispo, se ela tivesse repetido exatamente as palavras que o Monsenhor Cottu lhe transmitiu, da parte do senhor bispo, palavras que ele pusera por escrito, para que não fossem mal-entendidas ou deturpadas, ter-se-ia percebido que nosso prelado não ordenava à Irmã Júlia a se retirar, a não ser que ela obstinasse em se subtrair à sua autoridade, que ela recusava de reconhecer como seu superior. Não duvideis, senhora, do direito que tinha o senhor bispo de assim se expressar, a respeito de uma filha que lhe devia submissão pelas leis da religião e pelas leis do Estado. Eis, Madame, o porquê da intimação de Júlia. Eis a ordem a que ela obedeceu. Esta obediência nada mais é, do que a prova cabal de sua desobediência, uma vez que foi motivada porque ela estava persuadida a seguir sua própria vontade e a não se sujeitar àquela do senhor bispo. Não convém, pois, orgulhar-se de um tal ato de obediência, que foi ditado exclusivamente pela vontade absoluta de não obedecer. O que ainda confirma esta verdade, é que o senhor bispo havia proibido à Madre Júlia de levar consigo a Irmã Cisca, que a acompanhou apesar da proibição. 127
Se a Irmã Júlia não vos pôs a par das ordens do senhor bispo, se ela vos ocultar o motivo pelo qual ele a expulsou, ela prova, com isso, sua má fé e, em consequência, ela não tem simplicidade cristã, virtude essencial que Cristo recomenda com tanto empenho, dizendo-nos que devemos ser simples como as pombas, acrescentando que, se não formos semelhantes às crianças, não teremos parte no Reino dos Céus. A Irmã Júlia julga-se enviada do céu para formar uma associação e governá-la a seu bel-prazer. Mas onde estão os sinais e as marcas desta missão? Desde quando Deus terá dito a uma filha: “Vós fundareis tal ordem, vós a governareis como vos aprouver; não ouvireis nem bispo, nem confessor, a menos que eles sejam tão razoáveis que entrem em vossos planos. Eu vos dou o poder absoluto sobre as jovens que militarem sob vosso estandarte e tudo quanto fizerdes será muito bem feito”. De acordo com a conduta que mantém a Irmã Júlia, é preciso que Deus lhe tenha falado nesses termos. Pois os superiores houveram por bem lhe fazer ver a inconsequência de suas iniciativas, esta inflexibilidade que só se encontra em tiranos, este apego às ideias próprias, nada se ganha com isso; ela permanece impávida como um rochedo. O que ela pensa e o que ela quer é sempre o melhor, é sempre o que prefere. Mas que a Irmã Júlia não se engane, Madame. Deus estabeleceu os bispos para serem os mediadores de sua vontade, em assuntos espirituais; ordenou aos fiéis que os obedeçam. Disse aos bispos: “Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza”. Disse ainda que, quem quer que seja, que não escute a Igreja deveria ser considerado como pagão. A Irmã Júlia poderá falar de suas revelações, mas essas supostas revelações não passam de ilusões que o demônio usa para seduzir as almas. Quando não se tem nem humildade, nem simplicidade, quando se está obcecado pela paixão de mandar, mau grado os superiores, não se podem esperar verdadeiras revelações, que ainda devem ser submetidas ao julgamento dos bispos e dos confessores, antes de se saber se são verdadeiras. Assim, Madame, se consultardes vossos verdadeiros interesses, não vos fieis na Irmã Júlia. Ela fantasia ilusões e, consequen128
temente, ela vos engana e vos desencaminha. Não estareis arriscando nada, se escutardes o vosso bispo, a quem Cristo ordenou que obedecêsseis, mas correis o maior dos perigos, deixando-vos dominar por uma mulher a quem Deus não confiou a salvação e o cuidado pela vossa alma. Tereis que escolher entre vosso bispo e a Irmã Júlia. Esta escolha compete somente a vós. A religião, a razão, a felicidade, vossa consciência, tudo vos diz o que devereis fazer. Decidi, pois, e dessa escolha dependerá vossa eternidade, feliz ou infeliz. Permiti, Madame, que vos assegure meu respeito (ass.) FOURNIER, vigário geral. Li, diversas vezes, a carta de despedida que o senhor bispo de Amiens enviou à Madre Júlia e já sintetizei o seu conteúdo, em outra passagem. Se não a transcrevi literalmente, foi porque Monsenhor a guardou, após tê-la mostrado e lido a Madre Júlia. Não esqueçamos que, aquele que fala nesta carta, em linguagem tão exaltada, é o mesmo que, em poucos anos, tomará as primeiras providências para reconduzir a Amiens Madre Júlia, que ele passará a chamar de a santa filha. Senhor, O respeito que é devido à vossa condição de ministro, bem como o interesse que tivestes em querer me esclarecer, me colocam numa obrigação, antes de deixar este país, que é a de responder à carta que tivestes a bondade de me remeter. Ignorante e destituída de autoridade como sou, pretendo expor-vos apenas fatos. Tenho a dizer-vos, pois, que há quatorze anos que vivo com Madre Júlia, e em todo esse tempo, observei nela uma virtude, que nunca foi desmentida. Quanto às revelações, das quais se diz que ela se prevalece, se as tem, ela jamais me falou a respeito, nem jamais me fez supor tal coisa, e tenha-a visto conduzir-se sempre pelos caminhos da obediência. Tendo permanecido, durante mais de vinte anos, privada do uso das pernas, presa de intensas dores, retida sobre um leito, onde tudo indica que Deus a tenha forçado a um noviciado que 129
a preparasse para a obra à qual ele a destinava; mal seu estado e condição de sofredora se suavizou, que ela já pôs mãos à obra, no sentido de dar cumprimento àquilo para que fora chamada. A princípio, o fez com relutância. Mais tarde, vendo-se já rodeada de nove ou dez filhas e não podendo andar, ela suplicava continuamente ao Céu, para que lhe devolvesse o uso das pernas ou então, que esse primeiro agrupamento de jovens se dispersasse, uma vez que não seria possível prosseguir nesse estado. Sabemos como suas preces foram ouvidas tão súbita e perfeitamente. Se não me engano, deve haver, no bispado, um documento que atesta esse fato miraculoso. Esta boa Madre, que só possuía virtudes, necessitava de alguém que lhe provesse a subsistência. O Senhor dignou-se dar-me disposição para isso, e sinto-me na instância de segui-la sempre, em seus empreendimentos. Fomos, aos poucos, concebendo, neste princípio da obra, os ideais, os pontos de vista, os desejos de um bem maior e do cultivo de novas plantas que, por sua vez, seriam replantadas cá e lá e que, auscultando suas próprias íntimas aspirações, firmar-se-iam nessa mesma esperança. A tal ponto isso é verdadeiro, que hoje, nenhuma das que ingressaram, deixará de sentir-se desolada, ao só pensar na possibilidade de perder este lenitivo espiritual. Falo-vos com conhecimento de causa; já é hora de se acalmar e suavizar a amargura dos corações. Que vos direi, Monsenhor? Confesso-vos que, desde que passamos à jurisdição dos bispos, nós desejamos, esperamos encontrar quem tenha admitido restringir um pouco os limites de seu poder, a fim de permitir que viva e aja, em nosso Instituto, o espírito primitivo que Deus imprime em cada Ordem. Tal bispo representaria, para nós, o anjo da guarda de uma preciosa herança. Ele teria impedido abusos, por sua vigilância, opor-se-ia às desordens e, se houvessem, puni-las-ia. Enfim, as coisas antigas, tão caras a Deus, subsistiriam sob sua autoridade, e qualquer mudança de diretor espiritual em nada modificaria as coisas. Podem-me dizer que, nos primeiros escritos das fundadoras, nada se encontra que indique seus objetivos, nem sequer nos 130
estatutos apresentados ao governo e por eles ditados. Eu respondo a tudo isso, que se conhece bem o espírito da Ordem e que Madre Júlia, que assistiu a várias reuniões que tratavam do assunto, sabia como o temor entravava tudo e como se reservava tais coisas para serem postas à luz em tempos mais propícios. Este tempo não veio ainda para eles; mas o que impede os bispos, que terão tido boas intenções em elaborar os estatutos, de fazer, tanto quanto o permitam as circunstâncias, o que outros não puderam fazer por si mesmos? O senhor bispo de Amiens não quis enveredar por esses caminhos de condescendência. Afinal, ele é o mestre, respeitamos a sua autoridade. Ele via com maus olhos as viagens de Madre Júlia; pareciam-lhe por demais dispendiosas. Mas faltou, acaso, alguma coisa ao estabelecimento? Verdade que lhe falta muito, quando ele está a sentir a sua ausência, como superiora; e é nesse sentido que, logo que as casas se multipliquem, é necessário que haja uma pessoa com essa incumbência. É evidente que, quando uma fundação inicia, tal tarefa seja exercida pela fundadora, a primeira escolhida pelo Alto e que conta com a assistência do Espírito Santo. Este é, pelo menos, o meu modo de ver as coisas. O senhor Bispo nos apresentou regras que haviam sido extraídas, em grande parte, das regras das antigas Irmãs de Nossa Senhora de Bordéus – coisa fácil de nos fazer aceitar, com algumas alterações apenas. No entanto, assim o percebemos, elas deixavam coisas essenciais de fora. Mas não ousamos dizê-lo; e mesmo, parecia-nos inúltil fazê-lo, porque nos haviam dado a entender, da parte do senhor bispo, que não mais se interessaria por nós se, antes de tudo, eu não fizesse a doação de meus bens à casa de Amiens; que ele me podia proibir de continuar em Amiens, que teria de deixar-lhes as Irmãs, de cuja subsistência ele não poderia se encarregar. Eu percebi a razão de tal raciocínio e não me senti chocada com isso. Vi, nessa atitude, todo o cuidado de um bom pai, que nada quer deixar faltar às suas filhas. Entristeci-me tão somente pelo fato de não terem confiança em minha boa vontade. As circunstâncias difíceis que atravessamos, não me permitiram que 131
aceitasse a proposta. Que fazer, em tal embaraço? Tomamos o partido de pedir tempo, na esperança de que as coisas pudessem ser afinal conciliadas. Mas, por uma permissão toda particular de Deus, nossa indecisão foi interpretada como desobediência, o que provocou aquela carta do senhor bispo, à qual foi acrescentado, verbalmente, que ela deveria levar consigo todas as suas filhas. No entanto, poucos instantes após, já se disse que sua Excelência poderia querer ficar com algumas, e alguns dias mais tarde, designou três até pelos nomes, obrigando-as a ficar. Nossa Madre sentiu-se na obrigação de deixar-lhes liberdade, para partirem ou para ficarem. Ela levou em consideração o fato de, em toda casa, não haver uma única que estivesse ligada por votos, que, podendo situá-las todas na categoria de noviças, autoridade alguma poderia impedi-las de voltarem para casa e seguirem outro chamado. Madre Júlia não hesitou nenhum instante em levar consigo a Irmã Cisca que, como as outras, teria ficado em profunda desolação, se não tivesse partido. Não posso deixar de frisar, neste momento, que teria sido muito estranho encontrar tais sentimentos em todas as Irmãs, se elas estivessem sendo dirigidas por um jugo tão pesado, absolutista e tirânico de uma superiora, como se dizia. Não, Monsenhor, cometeu-se, realmente, um erro. Pode-se chamar até mesmo a Irmã Vitória para depor, se preciso. Há poucas mulheres que são capazes de exercer um poder ao mesmo tempo vigoroso e suave, como o de Madre Júlia. O que mais lhe sensuram? De predicar na igreja. É verdade que, várias vezes, por ocasião da recepção das noviças, ela tenha dito, na capela, algumas palavras que podem ter chocado alguns presentes, mas assim que se deu conta, não mais o fez. Poder-se-á, talvez, imputar-lhe outras pequenas faltas de ignorância, que ela soube reparar tão bem pela docilidade? Não quero isentá-la totalmente de culpa. Ela cometeu pequenas inadvertências que, no entanto, foram taxadas, por alguns, como criminosas. No que concerne à confissão, reprovaram-na por ela ter ensinado às Irmãs que, quando tivessem algum pequeno escrúpulo, 132
não o dissessem imediatamente ao confessor. Não posso deixar de condenar como calúnia a interpretação que tem sido dada a esses conselhos de Madre Júlia, e as jovens Irmãs que os escutaram, igualmente perceberam a malícia na interpretação. Esse e outros pormenores muito contribuíram na decisão que todas tomaram de seguir sua Madre. Devo acrescentar, ainda, que parece não se ter dado atenção à diferença que existe entre uma Ordem já estabelecida e um Instituto que procura se organizar, mas que ainda não está consolidado, nem vinculado por regras, nem por nenhum outro compromisso. Os Fundadores e as Fundadoras, então, não são livres de estabelecerem as regras que acharem convenientes? Tenho a honra de ser, com todo respeito que mereceis, Vossa mui humilde e obediente serva, FRANCISCA BLIN, S. de N.D. Dia 28 de fevereiro de 1809. Madre Blin nao havia passado ainda por todas as provações. Havia uma ainda, que não teria esperado; o instrumento usado pela Providência devia ser o Padre Delainville. O senhor Delaiville, de porte esbelto, tão decidido nos gestos e na voz e tão zeloso pela glória de Deus, não seria instrumento de mão leve. No retorno de uma missão, foi ao bispado; lá, foi posto a par da derrocada de nossa casa, com todas as circunstâncias capazes de inflamar seu zelo. Sem dar tempo a que as ideias esfriassem, veio imediatamente à nossa casa, e falou-nos com toda a força de que era capaz o seu zelo, dando-se o tempo de citar todos os episódios e passagens que comprometiam à obediência, somando razões e mais razões, com muita veemência, afirmando que Madre Júlia estava numa malograda ilusão, que nós todas estávamos em mau caminho, não teríamos a bênção de Deus, nem sucesso, etc. Não há mais a menor dúvida a esse respeito, dizia ele, a não ser sobre nossa própria existência. Eis que Deus pode matar-me agora, se estou a vos impor mentiras! Ele não se controlou muito em suas palavras, como se vê; mas não é de se escandalizar quanto a esta forma de juramento. Não se tratava, para 133
ele, de juízo falso, porque ele estava convencido da verdade, que lhe parecia a maior consequência, o fechamento da casa. A pobre Madre Blin estava sob pressão, como se fossem os bagaços no lagar. Em meio a tanta volubilidade de sentimentos e emoções, ela mal conseguia decifrar uma que outra palavra. Finalmente, levantou-se, dizendo-lhe, de maneira respeitosa, como convinha: - Senhor, se vos conhecesse apenas através dessas palavras que proferis, jamais teria confiança em vós. Rogo-vos que oreis por mim a Deus. - Eu vô-lo prometo, disse ele, e sem rancor. Quanto mais desgarrada se encontrar uma alma, tanto mais ela necessita de orações. Perguntou-lhe se ela queria que ele predicasse na capela, como fizera em várias ocasiões. Ela aduziu alguns obstáculos que o impossibilitavam. A verdade é que ela já não confiava nele. Estava demasiadamente exaltado; poderia subverter o espírito das pobres Irmãs, ou, pelo menos, suscitar nelas certas inquietações e temores. Não podendo fazer sermão às Irmãs, ele foi falar com Madame de Franssu. Obrigou-a, em consciência, a não dar a menor demonstração de aprovação às insurretas, suas boas amigas; disse-lhe que estava obrigada a condená-las, em qualquer circunstância, porque seu comportamento beirava a heresia. Depois, pediu-lhe que mandasse vir a Irmã Vitória, o que ela atendeu prontamente. Este bom padre falou à Madre Vitória com toda a veemência de que foi capaz, para fazer com que reconhecesse, segundo ele, os erros, a ilusão e o precipício em que estávamos, todas, nos jogando. Teria sido difícil à Madame de Franssu, ouvindo tantas coisas de pessoas tão respeitáveis pelo caráter e pela autoridade, de não se perturbar, a contragosto, sentindo uma grande confusão interior. Tudo o que pôde fazer foi de, simplesmente, suspender todo e qualquer julgamento, não condenando, nem aprovando, e evitava de falar sobre o assunto. Deus, que é todo bondade e que sempre tem piedade de suas criaturas, acorreu-lhe em auxílio, através de uma carta que recebeu, no auge de seu sofrimento e que jamais teria esperado. Era do Padre Enfantin, um dos Padres da Fé, que havia pregado a última missão em Amiens, aquele, justamente, que havia cooperado na cura de nossa Madre Júlia. 134
Madame de Franssu nele depositava plena confiança. Fora ele que a aconselhara a vir morar conosco; mas afastado havia tanto tempo, ela já não esperava uma carta, com notícias escritas por aquele que considerara seu anjo da guarda - era assim que ela o chamava. Com efeito, sua carta lhe trouxe, novamente, aquela paz que só sabem proporcionar os anjos do céu. Tinha, agora, esperanças de poder contar com seus conselhos, neste transe tão difícil que atravessava; não precisava de mais nada para se tranquilizar. Comunicou o fato à Madre Blin e ambas admiraram e louvaram, conjuntamente, a bondade de Deus. Madre Vitória declarou-se, enfim, abertamente, favorável à permanência em Amiens. O Padre de Sambucy anunciava, com clamor, a todos, a futura casa de Amiens, que ele acreditava construir, sobre um suporte melhor que o antigo. Sua grande esperança na obtenção de recursos pecuniários era Madame de Franssu. Procurou persuadi-la de que as verdadeiras Irmãs de Nossa Senhora seriam aquelas de Amiens, embora existissem, por enquanto, apenas duas, e desde alguns dias apenas; pois elas perseveravam, até aqui, na resolução de vir conosco; mas os muitos expedientes que foram usados contra elas, fizeram-nas mudar de opinião. Prova disso está no fato de Madre Vitória dizer à Madre Blin, entre lágrimas: O que me faz sofrer é a aniquilação interior que sinto. Vejo que as razões de nossa Madre são boas. Eles me arrasam. Chegou a ser ameaçada com a busca por policiais, caso ela persistisse na ideia de partir; que se ela não ficasse, tornar-se-ia a causa de os bispos, se tornarem irreconciliáveis com nossa Madre; do contrário, permanecendo, ela poderia oportunizar uma reconciliação. Madre Vitória deixou-se convencer pelo Padre de Sambucy, mas não tardou em se arrepender, quando se viu cercada de pessoas estranhas à nossa casa. Pouco depois da chegada de Madre Blin a Namur, escreveu uma carta a Madre Júlia em que lho dizia claramente; e mais tarde, solicitou seu reingresso conosco. Mas retornemos a Madame de Franssu. Foi-lhe dito que as verdadeiras Irmãs de Nossa Senhora seriam as de Amiens; que as de Namur não o eram. Tudo isso a perturbava e embaraçava. Ela manifestou desejo de que os 11.400 francos que, outrora, havia dado a Madre Júlia, para beneficiar nosso estabelecimento, - não tendo feito, na época, nenhuma restrição, 135
tendo, mesmo, diversas vezes, dito à nossa Madre: Este dinheiro já não me pertence; pertence ao bom Deus e a vós -, desejou, como ia dizendo, e pediu que fosse depositado em um banco, a fim de aguardar que tivesse mais esclarecimento sobre a vontade de Deus. Pois ela já não via claro ao seu redor; perdera o roteiro. O Padre de Sambucy, por seu turno, queria restituir a parte de Madre Blin; quanto à de Madame de Franssu, esperava que dela fizesse doação à casa de Amiens. Mas como o recibo dos 22.900 francos estava sob o nome de Madre Blin apenas, por razões já esclarecidas, seria preciso que ela mandasse de volta o documento, e em Namur lho proibiam. Isso implicaria em obrigar a Madame de Franssu de dispor deste dinheiro de maneira a se arrepender, futuramente. Nós, de nossa parte, estávamos seguras de permanecermos o que éramos, tendo conosco nossa Madre fundadora e Superiora geral; enquanto que se aguardava o que seriam as de Amiens. Nem sequer se sabia se, nos desígnios de Deus, elas subsistiriam. Madame de Franssu, cercada de pessoas interessadas em persuadi-la de que tinha em suas mãos os meios de fazer as Irmãs de Amiens subsistirem, estava em situação constrangedora; e nós não queríamos induzi-la a nada, antes de conhecermos a vontade de Deus. Interesses e vontades contrárias são a causa de sofrimentos, mesmo entre amigos; mas aqui, foi coisa de instantes. Madame de Franssu e Madre Blin haviam convencionado, em mútuo acordo, de não permitir que seus corações se alterassem por tão pouco. Não obstante, o Padre de Sambucy insistia em reembolsar Madre Blin daquilo que lhe tocava. Ela queria tudo ou nada, sob risco de não devolver o recibo, sob hipótese alguma. Ela foi pressionada e perseguida até o último instante de sua partida, pois o escrivão, com quem Padre de Sambucy havia depositado o dinheiro, foi procurá-la para, posteriormente, lhe remeter o recibo, mas ela permaneceu irredutível e o levou consigo. Madame de Franssu escreveu aos Padres Varin e Enfantin, pedindo-lhes conselho sobre o que convinha fazer com seu dinheiro. Madre Júlia consentiu que se sondasse a opinião desses dois sacerdotes, e durante muito tempo não se falou no assunto. Poucos dias depois do episódio em que o Padre de Sambucy fizera, sorrateiramente, Madre Blin sair de casa, para poder ir lá e falar às Irmãs, Madre Blin teve oportunidade de conversar com ele e lhe disse: Padre, 136
então, noutro dia, quisestes me escamotear. Ao que ele murmurou algumas palavras indistintas. Em seguida, vindo a falar na capela, disse à Madre Blin que lhe aconselhava a nem pensar em levar o tabernáculo, porque o senhor bispo não o admitiria, e que iria, se necessário, solicitar a intervenção do prefeito. Madre Blin estabeleceu comparação entre esta atitude e a que se costuma adotar, para amedrontar crianças; que o prefeito não tinha nada a ver com o caso. Respondeu que, em se tratando do senhor bispo, ela não pensava, absolutamente, em levá-lo, mas que, contudo, prevenia-o a ele, Padre de Sambucy, que a comunidade não renunciaria aos direitos que tinha, no caso. Com efeito, ela o deixou, já para não contradizer o prelado e para condescender com Madame de Franssu que, sabendo muito bem que lho dera sem restrição alguma e, aliás, estando muito aflita pelas Madres e Irmãs com quem havia feito uma espécie de aliança, dissera à Madre Blin: Eu vos peço, minha boa amiga, deixai o tabernáculo, por enquanto, pelo menos durante uns quatro meses, o tempo suficiente para que eu providencie com outro. Madame de Franssu disse-lhe, em outra oportunidade: Sinto-me feliz por saber que tendes muitas coisas minhas. No entanto, não cessavam de reclamar, classificando mesmo de ladroagem, um paramento e algumas bagatelas, dadas por Madame de Franssu e levadas por Madre Júlia. Mas é de se supor que esses roubos sejam dignos de perdão, pois que o próprio Padre de Sambucy pediu a Madame de Franssu, que convencesse Madre Blin a deixar um santo cibório, doação dela, Madame de Franssu. Madre Blin, após a partida de Madre Júlia, permaneceu em Amiens ainda sete semanas, a fim de pôr tudo em ordem. Ela fez partir mais seis Irmãs, no dia 31 de janeiro. Conservou consigo apenas a Irmã Angélica Sachy, para que a ajudasse a encaixotar tudo, fazer os pacotes e as caminhadas na cidade. Padre de Sambuy, por falta de pessoal, incumbiu uma pensionista da tarefa de cuidar da porta, com a ordem expressa de informar a Madre Vitória a respeito de todas as pessoas que aí viessem, perguntando pela Madre Blin. Madre Vitória, à mesa, não se sentava mais próximo a Madre Blin; ia a outra mesa, com as poucas pensionistas. Separadas permaneciam também na recreação. Havia a nova e a antiga comunidade. 137
Padre de Sambucy dizia continuamente à Irmã Angélica que seria sempre seu pai espiritual, quer em Amiens, quer em Namur. Teria gostado imensamente de conquistar mais esta Irmã; Madre Vitória também, em função da mesma ideia, dizia-lhe, às vezes, palavras adequadas a enfraquecer-lhe o entusiasmo de partir. Pobre Irmã, dizia-lhe, não sabeis o que vos aguarda, dando-lhe a entender que a casa de Namur não subsistiria, conquanto se reunisse àquela de Amiens, e que receberia as regras e normas daqui. Era, aliás, o projeto do Padre de Sambucy. O que não terá, ele, feito para o conseguir, até o momento em que, vendo que todas as insinuações junto ao bispo de Namur eram infrutíferas, ousou escrever-lhe que o governo queria falar-lhe a respeito. Seja como for, não obteve êxito de maneira alguma: o Senhor não o havia predestinado assim. Os que comandavam os destinos da casa de Amiens, tendo usado de excessivo rigor e prevenção contra o instrumento escolhido pela Providência, decidiram que esta casa perderia o título de casa mãe, nem sequer admitiam o de casa filial, aliás, recusaram-lhe até a existência. A casa de Namur, ao abrir suas portas a esta família rejeitada e recebendo-a em seu seio, veio ocupar o lugar da primeira. Madre Blin fez partir, alguns dias antes dela, a viatura com as bagagens; estava sobrecarregada e quebrou a dez léguas de Amiens. Felizmente, um outro condutor encontrava-se nas imediações, tornou a carregar tudo em sua carruagem e chegou a bom termo em Namur. Só o frete da viagem nos custou a soma de 1.655 libras. Madre Blin vendeu tudo o que não pôde levar. Um operário da casa fazia a avaliação de tudo; duas ou três pessoas arremataram, sozinhas, o que havia à venda. Tudo foi feito calmamente e sem tumulto, exceto quando vieram algumas mulheres dos arrabaldes, as quais, para venderem algumas louças e cerâmicas, entraram no pátio e gritavam e se exclamavam, como era de costume entre gente simples, o que desagradou a Madre Vitória e Madre Blin. E, como era de se esperar que as coisas, nestas circunstâncias, fossem mal vistas e mal interpretadas, tal episódio provocou queixas amargas. A venda de tudo somou um lucro de 1.795 libras. Feita a avaliação dos objetos, Madre Blin avisou o Padre de Sambucy e deixou-lhe a preferência, para que adquirisse o que lhe pudesse ser útil. 138
Como era ele que se arvorava em dirigente da casa e fazia questão de se fazer valer como tal, era a ele que convinha se dirigir. Mas ele rejeitou a oferta, dizendo que não compraria o que quer que fosse, que o bispo lho proibia. Afinal, era indiferente para Madre Blin, que fizera a oferta apenas a título de deferência, não importando quem fosse o comprador. Vendo um comprador apoderando-se de vários objetos, o bom padre retirou-lhe das mãos aquilo que lhe convinha. Pareceu, ao Padre de Sambucy, que se deveria ter deixado muita coisa à casa, sem ter tirado tudo com tanto rigor. Ele chegou a dizer à Madre Blin que acreditava que, se ela tivesse agido por iniciativa própria, nessa mudança, ela não teria usado de tanto rigor em tomar o que era seu. Ela respondeu que não estava agindo com rigor, mas com justiça; que, estando intimamente convencida de que a casa de Amiens já não significava mais nada para ela, estava agindo por convicção; que ela não era responsável pela casa de Amiens, que a expulsava, mas pela de Namur, que a recebia. E neste caso, elas estavam firmemente convictas, ela e Madre Júlia, de não estar descumprindo a vontade de Deus, se não fizessem partilha de nada. Padre de Sambucy formulou um juízo de valor sobre este procedimento de Madre Blin e dele fez relato ao bispo de Namur. Acrescentou ao fato, é óbvio, circunstâncias que jamais existiram. A Irmã Maria, membro das Damas da Instrução Cristã, foi nomeada superiora da casa de Faubourg, pelo senhor bispo, pouco tempo depois da partida de Madre Blin. Esta Madre Maria, mais tarde, foi a Montdidier, passar diversas semanas em nossa casa, na tentativa de conquistá-las. Disse-lhes, entre outras coisas, - no intuito de demovê-las de uma resolução em que só se via revolta e desobediência, - disse-lhes, então, como era seu modo de pensar, que as Irmãs que haviam ficado como últimas, haviam escandalizado tremendamente as pensionistas, que faziam questão de sua partida, que Madre Blin efetuara vendas em domingo, que o Padre de Sambucy, passando próximo ao local ouvira os gritos das vendedoras, e como tudo recaía sobre a Madre Júlia, que era o bode expiatório, ela foi considerada como a causa primeira dessas desordens, instruindo tão mal suas filhas. Quem teria podido inventar boatos tão falsos? Foi o que jamais se pôde saber, e são tais fatos que devem tornar bem circunspectas e preve139
nidas, as pessoas que pretendem, com espírito cristão, discutir algo umas com as outras, Sem uma prudência extrema as pessoas se suspeitam mutuamente, se acusam, se caluniam, sem querer, pois nem Madre Maria, nem o Padre de Sambucy, certamente, nada disseram e nada pensaram, que não tivessem julgado como se fora verdadeiro. Madre Blin não partiu de Amiens, sem escrever às suas boas Irmãs de Montdidier. Ela teria desejado muito vê-las, mas pensou que tal coisa não seria prudente. Ela temeu entrar em choque com o bispo, que já envidava esforços no sentido de fazê-las permanecer em sua diocese, O Padre de Sambucy também nisso se empenhou, com todas as forças, mas inutilmente. Palavras de benevolência, não mais que ameaças, não puderam fazê-las desistir de sua primeira decisão. Pode-se dizer que elas tiveram que sustentar um longo e penoso combate, sobretudo quando a nova superiora de Amiens esteve em sua casa, usando de todas as artimanhas, de carinho e bondade; mesmo quando a Irmã Maria Carolina, sua superiora - com vinte e dois anos de idade - foi requisitada para Amiens, onde, a contragosto, foi hospedada na casa de Faubourg, tendo permanecido retida lá, durante quatro ou cinco dias. Ela compareceu à presença do Padre de Sambucy, depois perante o bispo que, assim que lhe ouviu a declaração franca, irritou-se e deu-se por ofendido. Disse-lhe, no entanto, a respeito da separação, que não sabia como isso tudo acontecera, que ele só tivera boa vontade. Embora nossas Irmãs jamais tenham dado esperança de que permaneceriam na diocese de Amiens, pensava-se, esperançosamente, tal coisa, antes que elas o tivessem ratificado em contrário; pois o bispo de Amiens escreveu ao de Namur, que ao menos as casas de sua diocese lhe ficassem fiéis. E, em outra oportunidade, Padre de Sambucy lamentou que a Madre Júlia tivesse seduzido as Irmãs de Montdidier. O fato é que essas boas Irmãs enviavam carta sobre carta à Madre Júlia, a fim de protestar-lhe fidelidade a toda prova, que elas pediam e suplicavam que não as abandonasse. Madre Júlia não podia fechar seu coração de mãe a filhas que se atiravam em seus braços; mas deixou-lhes bem claro, corno a todas as outras, que elas estavam totalmente livres.
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O que se passou, em todos esses acontecimentos envolvendo a Madre Júlia, foi - pode-se dizer - um encadeamento de erros e maus tratos provenientes de todas as pessoas que, embora cheias de zelo e de piedade, tinham uma venda nos olhos. É nestes diversos contratempos que convém admirar os desígnios de Deus, sem julgar as pessoas. Aliás, os erros, inconsequências, leviandades, maus tratos, precipitações de que Deus se serve em tais ocasiões para atingir seus objetivos, são facilmente perdoáveis, quando se sabe que não provêm de um fundo mau, e, no nosso caso, sabíamos que não provinham. Tínhamos, ainda, em Rubempré, vilarejo distante três léguas de Amiens, a Irmã Escolástica, sobrinha do Padre Bicheron. Era muito jovem, lecionava muito bem, mas fraca de saúde e de caráter; estava muito agitada e magoada por não ter podido seguir-nos, e pelo fato de o Padre Chevalier, pároco de Rubempré, tê-la persuadido de que Madre Júlia não a queria, por causa de sua saúde frágil. Ela veio a Amiens para ver Madre Blin e saber a verdade. Teria desejado muito que Madre Blin a segurasse e a levasse consigo a Namur, o que, lamentavelmente, não foi possível; seria como quebrar vidraças. Madre Blin recebeu seus protestos de fidelidade e perseverança e, com muito afeto lhe disse que conservasse sua alma em paz e que estivesse segura de que, forte ou fraca, em saúde ou enferma, Madre Júlia não a abandonaria; que tivesse confiança, pois a divina Providência encontraria um meio de fazer com que se reunisse às suas Irmãs. Ela pareceu acalmar-se, mas sua frágil compleição não pôde suportar o golpe. Adoeceu, e Madre Maria Prévost, superiora da nova casa de Amiens, tendo estado em Rubempré, o pároco lhe pediu que levasse a Irmã Escolástica e que lhe conseguisse um lugar em sua enfermaria. Uma vez em Amiens, ela se deixou cativar e decidiu filiar-se à casa de Amiens e aí proferir seus votos, o que Madre Vitória não permitiu. Uma outra Irmã foi enviada a Rubempré, em lugar da Irmã Escolástica, a qual, no entanto, não foi aceita por Irmã Eufrosine que, tendo saído de nossa casa, estava, havia algum tempo, localizada em Rubempré, como diretora da escola, não tendo se filiado a nenhum grupo; pois, uma
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vez egressa, Madre Júlia não a quis mais agregar à nossa comunidade, nem a considerou mais como nossa. Padre Chevalier, para conseguir a Irmã Escolástica, havia prometido de enviar a Irmã Eufrosine em substituição, e que aceitaria Irmãs em sua paróquia e delas cuidaria. Alguns meses mais tarde, Madre Vitória, não se adaptando à nova superiora, também foi mandada para lá. Havia uma pensionista, na casa de Amiens, chamada Felicidade Chary, que fazia os mais insistentes apelos para que Madre Blin a levasse consigo a Namur. Padre de Sambucy, de sua parte, esforçava-se por detê-la, dizendo-lhe, como às Irmãs, que ela desobedecia ao senhor bispo, que queria que todas as pensionistas permanecessem. Numa palavra, ele opôs-lhe muitas dificuldades, fazendo-lhe, também, muitos apelos. Madre Blin, percebendo que, apesar de tudo, esta jovem permanecia firme em sua decisão e que seus pais não apenas consentiam, mas até desejavam e envidavam esforços para que ela fosse a Namur, a fim de desenvolver alguma aparência de vocação que nela existia, - e também porque eles estimavam profundamente a Madre Júlia -, prometeu-lhe de levá-la, e levou-a, juntamente com a Irmã Angélica, no dia 1º de março de 1809. Madre Vitória fez suas despedidas chorando e com um ar contrito e sofredor, e Madre Blin não pôde deixar de se comover; mas tristeza sobretudo intensa lhe causou o adeus à boa senhora de Franssu. No entanto, a alegria da libertação a dominou sobremodo, bem como o prazer de rever sua Madre e suas Irmãs. A viagem foi feliz. A Providência, que tem a medida de todas as coisas, não lhe enviou as mesmas aventuras e os mesmos sofrimentos que enviara à Madre Júlia. Elas chegaram no dia 5 de março e foram recebidas com as demonstrações de uma sincera caridade.
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Capítulo 6 DESDE O DIA EM QUE FOI REZADA A PRIMEIRA MISSA NA CASA DE NAMUR, ATÉ O DIA EM QUE ESTA CASA FOI COMPRADA. O bispo de Namur havia prometido que, assim que a Irmã São José retornasse, autorizaria o uso da capela. Julgou, no entanto, mais oportuno adiar essa data para o dia 21 de abril, quando ele mesmo viria rezar a primeira missa em nossa capela. Até então, as Irmãs iam nas paróquias, o que se tornava um tanto incômodo, porque havia poucos casacos e umas tinham que aguardar a volta das outras, para a permuta dos mesmos. O prelado ainda não permitiu a presença permanente, em nossa capela, do Santíssimo Sacramento. Em diversas oportunidades tivemos, mesmo, dúvidas se ele o permitiria, um dia. Talvez ele estivesse a nos experimentar, ou, quem sabe, Deus o estava permitindo para excitar, em suas servas, o desejo de o possuir. Elas estavam sentindo, realmente, os efeitos dessa privação. Madre Júlia estava persuadida de que eram seus pecados o obstáculo a essa grande felicidade. Seja qual for a causa, a data acima foi prorrogada até 21 de setembro. Logo chegando a Namur, Madre Júlia achou a nova casa das Irmãs de urna impropriedade extraordinária. Pátios, jardins, caves e celeiros, tudo estava numa desordem única; mas quando a Irmã São José chegou, tudo estava já modificado, graças aos cuidados e o trabalho assíduo de Madre Júlia e de suas filhas. Ali havia, ainda, desde muito, alguns operários que deveriam ajeitar urna porção de coisas, mas Madre Júlia providenciou apenas com o mais urgente. Em seguida ela partiu, no dia 22 de abril, para St-Nicolas, a fim de ver se encontraria outra moradia para as suas filhas. Aquela em que estavam era muito pequena e tinha a fama de estar infestada de percevejos, apesar de, na busca, terem encontrado apenas dois. Os pais vinham buscar seus filhos e só se falava em percevejos; era como se se 143
tratasse de uma cilada do demônio e uma permissão de Deus, para se trocar de casa. Já restavam apenas cinco pensionistas, duas das quais estavam também por sair. Nossa Madre desejava conversar com o bispo de Gand; ela não sabia ainda, exatamente, como é que ele encarara os acontecimentos em Amiens. Padre de Sambucy proclamava-se tão seu amigo, que era de se temer que ele o tivesse novamente influenciado. Nossa boa Madre partiu, tendo, como única defesa, sua grande confiança em Deus. Por sorte, encontrou-o, que retornava de uma viagem e partiria, no dia seguinte, para St-Nicolas. Ela se apresentou e não foi pequena sua surpresa, com acolhida favorável e cheia de satisfação, que recebeu de Sua Excelência. Fê-la sentar-se junto dele e disse-lhe rindo, que gostaria de ouvir o relato completo dos acontecimentos em Amiens. Esta boa Madre contou-lhe tudo o que pôde, sem ferir a caridade, e isso, somado ao que ele já sabia de outras fontes, foi suficiente para pô-lo a par dos fatos. Perguntou-lhe, depois, como era o seu relacionamento com o bispo de Tournai. Respondeu, na sua simplicidade: Excelência, foram feitas algumas fofocas a meu respeito, junto ao senhor bispo de Tournai; não sei se elas ainda subsistem. O bispo de Gand pôs-se a rir, dizendo: Sim, fofoqueia-se muito bem neste país. Disse-lhe ainda que não temesse, que não a expulsaria de sua diocese, que queria que suas Irmãs aí permanecessem, que poderia trazer quantas Irmãs quisesse, etc. A Providência arranjara as coisas de maneira tal que ele também deveria partir para St-Nicolas no dia seguinte, por conseguinte, lá se encontraria novamente com Madre Júlia e poderia dar-lhe apoio em sua autoridade. Nossa Madre devia ir a uma légua de St-Nicolas, ver a casa de St-Gilles, onde havia o problema da localização de um estabelecimento, e em seguida viria a St-Nicolas para encontrar-se com o senhor bispo. Ela foi e, retornando, ao ir em procura do bispo, disseram-lhe que já havia partido, a uma légua de distância, onde iria almoçar. Lá, disseram-lhe que não estava, e que fora a outro lugar, onde deveria jantar.
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Esta boa Madre, sozinha pelos vilarejos flamengos, sem poder fazer-se entender, estava um tanto embaraçada. A Providência fez com que encontrasse um pensionato das Irmãs de St-Nicolas; de lá foi conduzida ao local onde se encontrava o prelado. Após ter-se entrevistado e explicado todas as coisas necessárias, ele prometeu-lhe de retornar a St-Nicolas; voltou de fato. Teve, ainda, a gentileza de ir ver a casa de Berkenboom, da qual Madre Júlia havia tirado suas Irmãs devido à extrema umidade. O senhor bispo concordou, em que essa casa não convinha. Foi ver, então, àquela em que as Irmãs se encontravam agora, achando-a muito pequena; é impossível manter um pensionato em tais condições. Fez tudo quanto pôde junto aos administradores, mas, vendo que ninguém se preocupava com o fato, que todos estavam indiferentes, indispôs-se e disse, com voz alta, para que o decano e as principais autoridades ouvissem, que St-Nicolas não era digna de ter as Irmãs e que ele as reenviaria a outra cidade. Os administradores se alvoroçaram, mas nada fizeram de concreto. Eles nutriam uma certa desconfiança e descontentamento porque Madre Júlia havia retirado, sem o seu consentimento, as Irmãs de sua casa de Berkenboom, o que ignoravam que fora a causa da morte da Irmã St-Jean. Isso aconteceu quando nossa boa Madre, acompanhada da Irmã São José, estava de passagem por St-Nicolas, onde não poderia se demorar mais que dois dias, mas sabia da necessidade urgente de retirar as Irmãs dessa casa; não perguntara nada a ninguém, a t’espeito do aluguel, acreditando não serem necessárias formalidades que arrastariam as coisas por muito tempo e, talvez, nada se conseguisse. Deus, que sempre a conservara decidida e dinâmica, veio em seu socorro, ajudando-a a encontrar, neste mesmo dia, uma casa apropriada. O senhor decano estava ausente; ela lho comunicou à noite, na sua volta. A Irmã São José respondeu pelo aluguel da casa, e as boas Irmãs aí foram morar, alguns dias após. O senhor bispo acertou que as Irmãs viriam a Gand, assim que se houvesse encontrado moradia para elas, e retornou a Gand. Madre Júlia não tardou a passar por lá, em seu retorno a Namur; mas o bispo reteve-a e mandou-a de volta a St-Nicolas, para buscar as Irmãs. Ela voltou imediatamente a St-Nicolas, foi à procura de uma condução para transportar a mudança; ela e as Irmãs alugaram uma diligência e chegaram a Gand, onde a Providência as abrigou, durante algumas semanas, na casa das Irmãs 145
de Caridade. Pouco tempo depois lhes foi dada uma casa, na paróquia São Pedro em casa do barão Coppens; foi-lhe prometida moradia grátis, aí, por um ano. Nossa Madre permaneceu alguns dias com as Irmãs de Caridade; experimentaram, aí, ela e suas filhas, os incômodos da santa pobreza; depois nossa Madre retornou a Namur. Aqui em Namur, ela reencontrou a paz e, durante várias semanas, esteve ocupada com os operários e na instrução das Irmãs. A jovem Elisabeth Savary, protegida do padre Dalainvlle, já provara, mais do que o suficiente, que nunca teria condições de se tornar uma boa Irmã de Nossa Senhora. Madre Júlia teve escrúpulos em deixá-la, por mais tempo, comer o pão que era devido às outras. Aguardava, no entanto, que a Providência lhe desse um sinal para que devesse desembaraçar-se da jovem. Vendo, no entanto, que ela prejudicava a comunidade com sua leviandade, não podendo mandá-la a viajar sozinha e não havendo ninguém que pudesse acompanhá-la, decidiu, acreditando nos desígnios da ocultos da Providência, acompanhá-la ela mesma. Eis que nossa boa Madre se põe na estrada com Elisabeth, que chora, soluça, entra em crises de desespero, ora de ternura: ora abraça a roupa e tudo o que pode agarrar, de Madre Júlia, ora dá-lhe mordidas de raiva; outras vezes ameaça fugir. Foi providencial que Madre Júlia não a tivesse confiado a outra pessoa. Precisou usar de ameaças, de promessas, de carinho e de autoridade, para concluir esta viagem, que foi uma das mais penosas que já fez. Deteve-se um pouco em Jumet; finalmente chegou próximo a Amiens, onde procurou entrar com cautela; encontrou um condutor discreto, e a jovem estava já tranquila, que alugou a condução e dirigiu-se à casa do Padre Dalainville, que a recebeu tão mal, pior impossível. Se Madre Júlia tívesse ido só, em qualquer outra oportunidade, provavelmente não teria tido melhor recepção, por parte desse sacerdote. Ela havia, igualmente, pressentido, que não chegara, ainda, o tempo de se apresentar em Amiens, e ela tomara essa precaução, para que sua presença não fosse vista como desacato ou tentativa de sedução. Seu cocheiro veio buscá-la a uma légua de Montdidier, porque ela não quis mais entrar nesta cidade. Passou ao condutor um bilhete, para 146
que o entregasse à Irmã Maria Carolina; mas nossas três Irmãs haviam saído da cidade na ante-véspera. Estavam em Plessier, a três léguas dali, em casa da mãe da Irmã Maria Carolina. Outra Irmã Maria, superiora da casa de Amiens, estava, por ora, em Montdidier, com uma de suas Irmãs; ela quis saber, através do portador, o maior número de informações possível. Quando soube que a Madre Júlia andava ali por perto, não sei que sentimento a dominou, mas manifestou desejo de ir vê-la. Madre Júlia, que aguardava suas filhas, surpreendeu-se muito, ao verificar, ao longe, duas pessoas que não conhecia, vestindo trajes estranhos, a seu modo de ver. Em seguida, adivinhou de quem se tratava. Madre Maria não se mostrava, de modo algum, constrangida, nem em sua conduta, nem em suas palavras. Disse, entre outras coisas, que o Padre de Sambucy haveria de lastimar o que fizera. Enfim, ela abordou o assunto de aproximação, dizendo algumas coisas um tanto desconexas, sem ligação com o todo da conversa; a situação não se prestava para isso. Era bem possível que a casa de Faubourg e o Padre de Sambucy desejassem uma reunificação; é difícil não querer ver que sua edificação não era sólida, que ele estava em angústia, por falta de recursos materiais. Os 23.000 francos de dívida deixavam-no com pulga na orelha. Ele desejaria assumir as despesas, pelo menos em parte, da casa de Amiens, mas o bispo não era deste acordo e conservava opinião diferente. Madre Júlia, não percebendo, nisso tudo, o espírito de Deus, disse, com serenidade, à Madre Maria: Vós fareis o bem em Amiens, senhora, e nós em Namur, se Deus nos ajudar. Não que Madre Júlia se esquivasse de uma aproximação; não, voluntariamente se teria oferecido para isso, se soubesse que seria a vontade de Deus. Madre Júlia seguiu para Plessier, em busca de suas filhas. Chegou à casa de Padre Trouvelot, pároco do lugar; ela era muito conhecida aqui. Ele, no momento, estava ocupado com algo muito importante e, não podendo atendê-la imediatamente, teve que esperar longamente. Durante a espera, Madre Júlia refletia, considerando os caminhos de Deus; viera devolver Elisabeth ao tio, em Amiens, e entrevia, agora, uma possibilidade de reaver suas Irmãs, as quais haviam-se declarado abertamente ao bispo que não queriam continuar em Amiens, e ele dissera que as substituiria. 147
Certamente, nesta situação, Madre Júlia teria podido vir buscá-las, sem que precisasse temer qualquer inconveniente. Mas é verdade, também, que, por se encontrarem ainda na casa, isso poderia provocar revoltas; no entanto, tendo vindo visitá-las, foram encontradas fora de suas casas e já substituídas, que é que poderiam dizer? Era sobretudo em consideração ao bispo de Namur que ela se regozijava com o fato; pois, até aqui, pensara-se que a indignação e descontentamento do bispo de Amiens haviam sido motivados e exacerbados por alguma atitude impensada de sua parte. Como o Padre Trouvelot demorasse em chegar, Madre Júlia teve vontade de caminhar um pouco por perto de casa. Ao passar junto a uma curva de um muro, eis que avista nossas três Irmãs. A surpresa foi grande, não tanto por parte da Madre, quanto da parte das Irmãs, que jamais teriam pensado que se encontrasse no país. Quão grande foi sua alegria, principalmente após tantas contendas, tantos desejos de voltarem a se encontrar! É preciso ter experimentado esse tipo de encontros, para poder falar a respeito. O resto pode ser adivinhado. Madre Júlia, como de costume, não perdeu tempo. Foram postas, todas imediatamente, numa viatura, também uma Irmã que havia sido mandada para lá no momento da partida e que estava convalescente, mais outra jovem, da mesma região, que quis, insistentemente, nos acompanhar e pela qual Madre Júlia tivera que enfrentar muitas dificuldades da parte dos pais; sem nenhuma insistência, mas fazendo-lhes ver a expressão da vontade de Deus, na vocação da moça, eles, inicialmente tão relutantes, acabaram por ceder e deram o seu consentimento. Partiram, pois, todas as seis, para Gand e aí ficaram com nossas Irmãs, durante quinze dias, depois vieram a Namur, no dia 23 de junho. Madre Júlia não se demorou em Namur por muito tempo. Haviam solicitado ao senhor bispo, que, por favor, conseguisse Irmãs para St-Hubert, em Ardenne. Juntamente, havia a promessa de, aproximadamente, 500 francos, uma moradia e pediam-se duas Irmãs. O bispo transmitiu a proposta à Madre Júlia, aconselhando-a a que partisse o mais breve possível. Nossa boa Madre se pôs a caminho, no dia 18 de julho. Viu a casa, que ainda estava sofrendo alguns reparos; chegou em tempo de poder opi148
nar sobre algumas disposições que achou oportunas e que, caso contrário, poderiam ter sido feitas de maneira pouco prática e pouco cômoda. Falou com o prefeito, com os administradores, com o pároco, a uns e outros, como sempre costumava fazer: dificuldades de um lado, embaraços de outro, não poderia deixar de ser. O demônio, que prevê sempre, em tais estabelecimentos, motivos de perda, não poderia deixar de tentar impedi-los, enquanto pudesse. Finalmente, tudo chegou a bom termo, com a graça de Deus. Madre Júlia foi incumbida de fazer a compra de tudo quanto achasse necessário para a instalação: lençóis, camas, com tudo o que as acompanhava, toalhas de mesa, cortinas, etc. Foi um gasto de uns 462 francos. Havia o necessário para três; quanto ao supérfluo, graças a Deus, ele jamais entrou em nossos estabelecimentos. Geralmente não eram, no início, tão bem providos quanto este. Nossa Madre conseguiu, não sem dificuldade, uma terceita Irmã, para a lida da casa, uma vez que as duas outras estariam responsabilizadas pela escola. Foi uma providência necessária, porque, desde o primeiro momento, a matrícula de alunos foi grande. Madre Júlia retornou a Namur, onde aguardaria o aviso de quando a casa estivesse pronta para receber as lrmãs. Entre essas duas viagens, ela foi visitar as Irmãs de Jumet, pois que lá também havia coisas a providenciar. Ela só realizava a viagem que, de uma maneira ou de outra, se fizesse necessária. Esta viagem de Jumet, além das dificuldades internas da casa, proporcionou-lhe uma pequena aventura. Por pouco que não foi presa. Passando por uma pequena cidade, chamada Fleurus, viu-se, subitamente, cercada de crianças que se comprimiam ao seu redor, para vê-la, e às quais falava amigavelmente, sem se preocupar com a curiosidade provocada por sua longa veste preta, embora, nas viagens, ela moderasse um pouco sua indumentária. Ela estava sem a touca e sem o escapulário, usava um chapéu branco, plissado, que não era tão exorbitante, e um grande lenço branco . O século em que vivemos exige certa condescendência. Estando em meio a esta turma de crianças, um policial, semi-embriagado, atreveu-se a perguntar-lhe se trazia passaporte e, como ela nunca o trazia, disse, simplesmente, que não. 149
- Muito bem, Madame. Ireis para a cadeia. Como percebeu que ele não estava cordato, ela nada contestou e ficou escutando tudo o que ele tinha a dizer-lhe, de grosseiro e descortez. Concordou em ir para a cadeia. Levou-a à presença do prefeito, um jovem que não ousava falar em presença de policiais, embora visse que se tratava de algum engano. Na época, não se costumava criar dificuldades com mulheres, por causa de passaporte, a não ser que se tratasse de pessoas suspeitas. Urna empregada, movida de compaixão, foi procurar o pároco, na esperança de que ele pudesse intervir. O pároco examinou Madre Júlia com ar compassivo, mas ele não gozava de crédito suficiente para fazer alguma coisa. Foi o bom Deus que a livrou desse embaraço, incutindo-lhe a ideia de mexer no bolso, a ver se encontrava algo que pudesse torná-la merecedora de crédito e a libertasse. Felizmente, encontrou uma carta do bispo de Bordéus, que jamais teria pensado trazer consigo. Apresentou-lha, dizendo: Vereis, por esta carta, que não sou nenhuma aventureira. Realmente, a tempestade acalmou-se como por encanto. O policial pediu-lhe desculpas e ela seguiu seu caminho. Não foi, ainda, por muito tempo, que esteve em Namur. O repouso não era seu centro de equilíbrio. Precisou partir, no dia 13 de outubro, para St-Hubert. Levou para lá a Irmã Carolina, que, desde sua chegada de Montdidier a Namur, passou a se chamar Irmã St-Jean; seguiram também, mais tarde, a lrmã Agnes Fléchemer e a Irmã Angadréme, sendo que, esta última recebeu o nome de Perpétua, que tomou conta dos afazeres domésticos. Nossa Madre conviveu com elas durante oito dias, para dar encaminhamento a tudo e designar a respectiva função de cada uma. Nessas circunstâncias, ela agia e se doava à sua tarefa com todo esforço, de inteiro coração e com a veemência de suas energias, ordenando, organizando o que fosse preciso e fazendo as compras necessárias. Jamais teria podido manter-se em tal ritmo de trabalho, a não ser mediante uma particular assistência de Deus. Retornando a Namur, ainda não foi para repousar; e, embora ninguém a tivesse chamado, impulsionada apenas por uma força interior, viajou para Amiens. Ela cultivava o princípio de que Deus não nos pede ape150
nas o cuidado pela parte espiritual, mas quer também que, para honrar a maravilhosa ordem que se observa em todas as coisas e em reconhecimento aos seus dons, se cuide também do temporal. E pode-se dizer que Deus lhe deu a graça de saber atender também a esta parte, responsabilidade de que nunca se eximiu. Quantas vezes ela mesma foi ao mercado e às lojas fazer as provisões. Era ela, geralmente, que comprava o trigo, os tecidos, os vinhos, etc.; providenciava com tudo. Madre Júlia pensou, pois, nos 11.500 francos que o Padre de Sambucy devia à Irmã São José, e que estavam improdutivos, em Amiens, desde nossa saída, o que não servia, em nada, aos interesses da casa; julgou que o fato merecia uma viagem a Amiens. Havia, ainda, duas ou três notas a serem pagas, nesta cidade; entre outras, a do boticário, pelos remédios comprados por ocasião da epidemia de 1808. Pensou que, se fosse pagá-las ela mesma, lucraria mais do que os gastos com a viagem. A Irmã São José tinha um arrendamento que deveria ser renovado, junto a um dos seus arrendatários e, como Madre Júlia tinha a sua procuração geral, poderia encontrar esse senhor, ao passar por Arras, à distância de três léguas, ir com ele até Amiens, onde estavam os papéis da Irmã são José, em casa do tabelião. Ambos foram avisados por carta, e nossa boa Madre se pôs, mais uma vez, na diligência, visando à maior glória de Deus. Convém lembrar que era preciso muita coragem e ter a idade e a compleição de Madre Júlia, para fazer, sozinha, tantas viagens em lotações públicas, nas quais ouvia tantas blasfêmias, juramentos falsos, conversas impiedosas, galanteios sujos, e assistia, às vezes, a intimidades provocantes. Ela já ultrapassava os cinquenta anos de idade, quando iniciou tais viagens. Sua figura, embora rescendendo ao espiritual e cheia de expressão, era a de uma pessoa idosa; esse detalhe a punha ao abrigo de insultos. Via de regra, não era bajuladora, nem zombeteira, mas sabia calar e falar no momento oportuno, dando sempre uma resposta oportuna, sem ferir ninguém. Às vezes, mesmo, quando algum dos viajantes era dominado de bons sentimentos, ela atraía sua consideração. Madre Júlia chegou a Lille, onde deixou a diligência, porque senão deveria pagar até Arras, ultrapassando em muito o local onde pretendia saltar, a fim de procurar o senhor Lempence, o arrendatário da Irmã São José. A boa Madre não encontrou nenhuma condução que a transportasse, 151
na parte restante do caminho, que era, ainda, de sete léguas. Encetou a caminhada a pé e chegou, como é de se imaginar, extremamente fatigada à casa de Lempence. Tratou de seus afazeres com ele, repousou e disse ao arrendatário que arranjasse uma condução para, no dia seguinte, irem, ambos, a Amiens. Havia, ao todo, dezenove léguas a serem percorridas. A viatura que este bom homem encontrou, foi uma carreta de adubo, bastante pequena, na qual sentou-se ao lado de Madre Júlia, que quase amassava devido à sua corpulência. E como não tinha o espírito mais delicado que o corpo, ele a entreteve, sem parar, até Amiens, falando de suas terras, de seus projetos e de seus desejos terrestres. Ele desejava fazer uma troca de algumas medidas de terras com a Irmã São José, para construir uma casa. Encontrou tanta coisa para dizer a respeito, que nossa boa Madre, cujas ideias eram mais elevadas, confessou que nenhuma outra viagem lhe fora tão penosa, esquecendo, mesmo, os incômodos dá carroça, com chuva, vento e intempéries. Chegou, finalmente, a Amiens e foi hospedada no albergue onde Lempence, geralmente, se hospedava. Não perdeu tempo, indo logo ao tabelião, com quem mal pôde conversar. Tratou de seus assuntos e escreveu um bilhete a Madame de Franssu, pedindo-lhe que viesse vê-la no albergue achando prudente não aparecer na antiga casa, nem mesmo na cidade, a fim de evitar as más línguas e os maus juízos. Encarregou Lempence de entregar o bilhete; e ele, estando a desempenhar-se da incumbência, foi visto pela Madre Vitória, que o reconheceu e veio a ele, perguntando-lhe com curiosidade: - Tendes notícias de Madre Júlia? Onde ela está? - Tenho, disse ele. Ela está em Amiens. Madre Vitória, em transportes de alegria, eleva as mãos ao céu e diz a Lempence que foi Deus que a enviou. Insistiu em querer saber onde nossa Madre se hospedava e não tardou a aparecer no local. Jogou-se em seus braços, chorou, riu, pediu-lhe perdão, tudo a uma só vez. Depois, mais calma, explicou-se. Madre Júlia apreendeu, pelas palavras de Madre Vitória, que havia descontentamentos na casa de Faubourg. Madre Vitória fizera bem em não emitir os votos; a 152
jovem Irmã Escolástica os fizera por um ano e estava arrependida; isso foi confirmado por uma carta, muito comovedora, que ela escrevera a Madre Júlia, penitenciando-se a respeito de sua imprudência, pedindo-lhe mil vezes perdão, suplicando que a recebesse como uma ovelha desgarrada. Havia, ainda, uma Irmã das recém-chegadas, da qual Madre Vitória falou bastante bem e que desejaria muito que Madre Júlia a recebesse em Namur; a jovem Miguela, que se escapara no momento da partida, também fazia muito gosto em vir conosco, se lhe fosse possível. Numa palavra, esta boa Madre teria podido, se o quisesse, retornar com uma viatura cheia; mas não achou prudente fazê-lo. Madre Vitória falou também de certas esperanças que tinha, de um estabelecimento na diocese de Arras, através de uma rica filha de fazendeiro, sua amiga, que estava disposta a fazer doação de sua fortuna em benefício e criação da obra. Madre Vitória desejava que esse estabelecimento surgisse sob a orientação de nossa Madre. Quando essa conversa ia animada, ouviu-se que Madame de Franssu entrava. Madre Vitória sentiu-se constrangida de ter sido surpreendida, a ponto de querer esconder-se, mas não foi possível. Madame de Franssu, entrando, disse, com um certo ar de surpresa e pena ao mesmo tempo: - O que! Madre Vitória, já estais aqui? Para compreender esta situação, é preciso que se saiba que Madre Vitória, tal qual ela se mostrava, parecia, a Madame de Franssu, o mais sólido apoio da atual casa de Amiens. Temia que, se Madre Vitória abandonasse essa casa periclitante, tudo desabaria ainda mais depressa. E como Madame lá tinha seu bom Deus e suas comodidades, com seus sessenta anos e atacada de mal de nervos, preocupava-se, desde já, com a possibilidade de ter que enfrentar a dificuldade de procurar outra moradia. Madre Vitória não tardou a se retirar, e Madame de Franssu, após algumas demonstrações de amizade, perguntou à Madre Júlia, se havia recebido alguma resposta de Padre Varin - que havia sido escolhido como árbitro. - Não, disse ela, e não mais lhe escrevi. 153
Mas eu, disse Madame de Franssu, tenho uma resposta que vos é favorável. Crede que me sinto muito satisfeita por ele ter-se pronunciado a vosso favor. De momento, Padre de Sambucy quer que eu o consulte novamente. Mas não, só queria uma resposta dele; eu a tenho, a questão está terminada. Os 11.500 francos são vossos. Dai-me apenas algum tempo. - Eu vinha, disse Madre Júlia, a propósito dos 11.500 francos. É preciso que eu fale sobre isso com o Padre de Sambucy. - Escrevei-lhe um bilhete, disse Madame, eu o levarei, ao retornar. Madre Júlia comunicou ao Padre de Sambucy, que não ignorava que a decisão fora a nosso favor, mas que ela lhe dava tempo para que prestasse conta, o tempo que fosse necessário; que já não se tratava, agora, dos 11.500 francos, etc. A boa senhora saiu, após ter reafirmado sua profunda amizade a Madre Júlia, mas encontrava-se tão fraca, que a ideia de ter que sustentar qualquer resistência contra o Padre de Sambucy, como o fato de não querer recorrer, junto ao Padre Varin, fez com que se sentisse mal, no caminho, tendo sido obrigada a pedir um pouco de vinho, numa casa. No entanto, ela levou o bilhete, e Padre de Sambucy não tardou a chegar, o qual, esfregando as mãos, disse, com ar descontraído: - Boa Madre,1 estou encantado de vos ver novamente. Preciso conversar convosco. Pôs-se a falar sobre a casa de Namur, a fazer perguntas, enfim, a sondar o terreno a respeito de coisas vagas, que não levavam a nada. disse:
Quando Madre Júlia viu que a conversa se prolongava, inutilmente, - Mas, meu bom padre, eu vim buscar nosso dinheiro.
- Ah! bom, disse ele, não me lembrava mais disso. Eu vô-lo enviarei e vós me remetereis o recibo. - Não, disse ela, eu prefiro fazer uma quitação. Isso pôs fim à conversa. Padre de Sambucy retirou-se. 1. “Ela”, passa de Madame à Madre Júlia, talvez inadvertência nas anotações. (Nota da tradutora)
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A Madre viu entrar, na sala, Leonardo, carregando o dinheiro em um pequeno cesto sobre seu ombro. Ela lhe disse: - Leonardo, você me traz ameixas? - Sim, disse ele, e vós me dareis o recibo. - Oh! isso não, disse ela, não darei. - Pois bem, disse Leonardo, levo de volta o dinheiro. - Como você quiser, disse Madre Júlia, mas não largo o recibo. Leonardo pôs a mão sobre o peito e enfureceu-se, dizendo, num tom difícil de imitar: - Em consciência, podeis dizer que recebestes o dinheiro, e que dinheiro vos pertencia? - Leonardo, disse Madre Júlia, isso não diz respeito a você. Você não entende nada do assunto. O Padre de Sambucy chegou então, acompanhado do Padre Bicheron. A história do dinheiro e do recibo veio, incontinenti, à tona. O Padre de Sambucy queria, de qualquer maneira, ter a nota, ou não daria o dinheiro. Madre Júlia dizia: - Dai-me as 23.000 libras, se quereis ter o documento. A discussão foi exaltada, da parte do Padre de Sambucy. Padre Bicheron não estava entendendo nada daquilo; Madre Júlia, em poucas palavras, pô-lo a par do assunto. Os dois padres decidiram sair e dirigir-se à casa de Madame de Franssu. Tendo chegado o momento da Providência, esta boa senhora, que, por fraqueza, havia, até agora, dissimulado com relação ao Padre de Sambucy, superando-se a si mesma, disse-lhe que jamais havia pensado em dar o dinheiro a outra pessoa, que não a Madre Júlia. A respeito do que, eles não teriam nada mais a dizer. Era preciso que imediatamente se nos desse a quantia que nos tocava, e sem dificuldade. Quanto à outra, ainda se decidiria. Padre de Sambucy dirigiu-se à Madre Júlia e prometeu-lhe enviar os 11.500 francos; que, agora, ele sabia coisas que não tinha sabido antes. E 155
sem mais, entrou noutro assunto. Perguntou à Madre Júlia, se ela não estava pensando na necessidade de uma reunião, disse-lhe que todos os corações estavam abertos para ela, que houvera, na certa, algum mal-entendido em tudo o que acontecera, que ela viesse à casa de Faubourg, passar dois ou três meses, que ela poderia ir e vir, a bel prazer. - E o bispo, que não quer saber de mim? perguntou Madre Júlia. - Não quereis, então, humilhar-vos? replicou ele. É preciso, também, que haja intercessão. Dizei sim, boa Madre, dizei sim! Madre Júlia, inicialmente, defendeu-se gracejando; mas, vendo-se forçada, apoiou seu dedo sobre uma mesa e disse, seriamente: - Quando um rei manda um súdito ao exílio, é preciso que o rei o chame de volta, para que ele reapareça. Não mais porei os pés aqui, se não for novamente chamada pelo bispo. Madre Júlia não via nenhum indício que a impelisse a dar os primeiros passos, uma vez que o prelado continuava, por ora, nutrindo os mesmos sentimentos que outrora. O Padre de Sambucy, vendo que não conseguia persuadir a Madre Júlia, limitou-se a dizer: - Quereis que vos dê um regulamento para vossos educandos? - Nós já o temos, disse ela. - Não, não o tendes, eu sei. - Perdão, mas vai indo tudo muito bem. Se Madre Júlia lhe disse que não queria regulamentos, ele estendeu-lhe meia dúzia de livretos para meditação, que ele mesmo compusera. Madre Júlia só ficou três dias em Amiens. Concluídos os negócios, encetou a viagem de volta, na mesma viatura, com seu fazendeiro gordo e seu pequeno cesto, o qual não lhe foi menos incômodo que o corpulento fazendeiro. Pois, ter 11.500 francos para guardar, durante uma viagem, não carga pequena. Todas as aflições deste mundo passam. Ela chegou, finalmente, de volta, entre nós, após ter-se demorado alguns dias em Gand, em visita às 156
suas filhas. Vinha numa condução de aluguel, com dois senhores, que também vinham a Namur, e trouxe também uma postulante, Agnes Martin, que foi chamada, aqui, de Irmã Úrsula. Era o dia 28 de setembro de 1809. Sempre que retornava de alguma viagem, a casa transformava-se numa festa sempre renovada; e, num abrir e fechar de olhos, ela se informava a respeito de tudo e tomava providências com relação a tudo. Assim que esteve a par dos assuntos mais importantes, pensou em ir a St-Hubert para dar prosseguimento à sua atividade. Encontrou uma ocasião que lhe pareceu favorável; era a de uma viatura de um senhor de Namur, que levava duas crianças ao internato de St-Hubert, uma de onze, outra de nove anos. Pediram a Madre Júlia que tomasse cuidado delas, mas os únicos recursos de que dispunha eram: conselhos, preces e admoestações, coisas quase inúteis para duas crianças, ainda sem formação, as quais, mal sentindo-se em liberdade, puseram-se a subir e a descer; a dizer e a fazer mil impertinências, o que desagradava muito nossa Madre, que lhes pedia, continuamente, que ficassem quietas; previa o que lhes poderia acontecer, quando montavam nos cavalos, punham-se entre suas pernas e as rodas da charrete. Em vão suplicava ao condutor que as impedisse de fazer tais extravagâncias; mas ele, um homem ingênuo e simplório, talvez não mais ajuizado que elas, contentava-se em repetir, na sua linguagem de gíria: Não fazem por mal. Estabanaram-se tanto, que a roda passou por cima de uma delas. Felizmente, a carruagem era leve e o ferimento não inspirou maiores cuidados; mas nossa Madre, extremamente sensível, sentiu um pavor tão grande, como se ela tivesse morrido subitamente. Deixou-as com um de seus tios, a duas léguas de St-Hubert, e foi à cidade a pé. Quão grande foi a alegria das Irmãs! Sua Madre dela partilhava. É fácil de se imaginar, como pessoas jovens, vivendo em país estrangeiro, desorientadas e até confusas em tão adversas circunstâncias, anseiam pelas visitas de uma Mãe, e como essas visitas se tornam necessárias para o bom andamento dos estabelecimentos e a consolação das Irmãs. Este país dos Ardennes é de difícil acesso e raras vezes aparecem oportunidades para se ir e vir. Madre Júlia precisava retornar, após alguns dias passados com suas filhas, pois suas visitas tinham caráter de utilidade; 157
assim, após ter feito o que fosse preciso, não podia permanecer mais tempo em um mesmo lugar. É inútil tentar retê-la, pelo só prazer de sua presença; logo que se sentia chamada em outra parte, levantava o vôo, por assim dizer, e prosseguia. Não encontrando condução, montou sobre um cavalo que lhe emprestaram, e um rapaz a acompanhou, para depois trazer o animal de volta. Este jovem não era muito ajuizado; chicoteava demais o cavalo. Nossa Madre levou seu cavalo a beber, à beira de um córrego e, quando voltou a montar, o garoto travesso bateu no cavalo, pela dianteira. O animal pôsse a corcovear na sanga, ganhando a água mais funda, sem que a Madre pudesse segurá-lo; ela ignorava a profundidade da sanga e o que poderia acontecer, se o cavalo a derrubasse, o que parecia ser iminente. Sem se atemorizar, recomendou-se ao seu anjo da guarda, o lutador contra o anjo mau; este, por sua vez, trabalhava no sentido de provocar-lhe tais incidentes maléficos nas viagens. Seja como for, o cavalo arrancou para a frente, tirando-a da poça em que estava e que parecia profunda. Chegando em Namur, encontrou uma carta de Madame de Franssu, que parecia uma espécie de reparação para com o Padre de Sambucy. Inculpava-se de tudo o que pudesse ter parecido extremo a nossos olhos, na obstinação do Padre de Sambucy, em não querer que a soma de 11.400 libras, doada por Madame de Franssu, nos pertencesse. Atribuía tudo à sua extrema fraqueza, que a impedira de explicar-se claramente. Ela frisava, ainda, que, se recorresse ao senhor José (o Padre Varin), ele, certamente, continuaria sendo da mesma opinião: assim, a questão estava acabada. Madre Júlia não tardou em dispor-se a, novamente, procurar Lempence, a fim de concluir a troca do pedaço de terra de que ele tinha necessidade. Havia, também, uma parte que seria posta à venda e que deveria render uma dúzia de cem libras. Neste trajeto, havia uma parte do caminho que teve que ser percorrido a pé, estando, ela, carregada. Mas, enfim, tudo transcorreu bem e Madre Júlia retornou a Gand, que ficava em seu percurso. Aí teve que se deter, durante mais ou menos, oito dias, para os afazeres de que falarei em seguida. O retorno desta viagem foi terrível. Não sei como é que ela não ficou doente. Pôs-se na diligência, à tardinha, com cinco ou seis homens, um 158
dos quais, grande, gordo, bêbado e brutal, desceu, pela meia-noite, para as necessidades. Quando quis voltar a subir, mandou que o condutor parasse; este não ouviu e continuou andando. Então, o homem corpulento, acreditando ter sentido a ponta do chicote do cocheiro nele, disse que ele quis lhe bater; atira-se sobre ele, pega-o pela roupa e arranca-o do assento, fá-lo rolar em terra, põe-se sobre ele e bate-lhe, com braços alternados, praguejando como um miserável. A viatura afastava-se, enquanto isso; ouviu-se, entretanto, o gorducho rosnando como um animal, e retornava. Ninguém sabia o que se passava. Madre Júlia percebera muito bem o início da cena, mas a condução haviase afastado e ela os perdeu de vista. Os viajantes disseram: - Que é que você fez de nosso condutor? - Oh! disse ele, joguei-o numa valeta. - Como? Jogado numa valeta? E quem nos conduzirá? Desceram, para ver de perto, e Madre Júlia ficou só, com este homem desprezível, sentindo-se pouco à vontade, como se pode imaginar. Para cúmulo da desdita, os cavalos, prosseguindo sempre, sem condutor, iriam lançar-se numa valeta. A pobre Madre recomendou-se a Deus e a ele se abandonou. Finalmente, os cavalos pararam por si mesmos. Os senhores que haviam descido em socorro do condutor, encontraram-no em estado deplorável, as pernas banhadas em sangue e quebradas abaixo do joelho e as botas, igualmente, repletas de sangue. Felizmente, passou o carro do correio e o ferido foi transportado para um albergue, à beira da estrada principal. Foi uma dificuldade tirar-lhe as botas e, quando o deixamos, ainda não se sabia se sobreviveria. Tomaram cuidado dele, na hospedaria, mas soubemos que morreu, dois dias após. Um dos viajantes subiu na viatura e tomou a direção, da maneira como pôde. Quando dissemos ao gordo brutal, que aquele a quem ele havia maltratado, tinha as pernas quebradas, não quis acreditar e não pareceu impressionado. Mostrou-nos seu polegar, dizendo que estava inchado, mas nenhum de nós estava, agora, disposto a lamentá-lo. Ninguém mais falou nada, porque os viajantes eram jovens seus conhecidos, que o temiam. Chegando a N., foi preso, e nossa Madre prosseguiu viagem. 159
Chegou a Namur no dia seguinte, à tardinha. É fácil de se imaginar como estava necessitada de repouso e, sobretudo, de distração para sua imaginação, a fim de apagar a lembrança dos desagradáveis acontecimentos da viagem, bem como esquecer os zumbidos das injúrias ouvidas, que ainda soavam dentro dela; a infâmia desse homem a impressionara profundamente e a deixara angustiada. Testemunhar tantas e tão grandes ofensas a Deus, nessa viagem, foi-lhe sofrimento em demasia. Ademais, ela receava de ser chamada como testemunha. Supunha que ela demoraria algum tempo para se refazer; mas não, pois no dia seguinte já estava disposta, pelo menos exteriormente. Retomou todas as suas atividades de costume. Esta boa Madre disse-me, no entanto, que ela mesma não sabia como não havia morrido. Durante os próximos dias que passou conosco, Madre Júlia recebeu uma carta da baronesa de Coppens, que expressava seu intenso desejo de que ela viesse passar alguns dias em sua casa, na campanha, a fim de conversarem sobre um estabelecimento que se poderia abrir, em Binche, pequena cidade próxima ao lugar onde morava. Falou também da possibilidade de organizar um outro em seu vilarejo, num prédio que ficava junto ao seu castelo. Dizia que ela mesma já confiara a primeira educação de suas filhas às Irmãs. Tal coisa não era do agrado de Madre Júlia; colocar as Irmãs numa espécie de dependência e sujeição a uma dama benfeitora, seria admitir muitos entraves. Entretanto, como o marido desta senhora fora o que emprestara sua casa de Gand às nossas Irmãs, tinha um dever de gratidão de responder a essa dama, dizendo-lhe que providenciaria tudo para que, em breve, pudesse atender ao seu convite. Recebeu também uma carta de uma dama de Bréda, na baixa Holanda. Dizia, ter um estabelecimento já montado, dirigido por uma pessoa leiga. Ela desejava que fosse assumido pela Madre Júlia. Pedia-lhe, insistentemente, que viesse, acompanhada de duas Irmãs. Nossa Madre respondeu-lhe que iria visitá-la, a fim de ver o estabelecimento, assim que lhe fosse possível. Nossa Madre sabia que em Jumet seria necessária a sua presença. No entanto, protelou por vários dias essa viagem, sem poder-se determinar a ir. Finalmente, chegou-lhe uma carta da superiora de Jumet, que lhe suplicava a que viesse o mais urgente que pudesse, dizendo que a jovem 160
Irmã Firmine, de apenas dezoito anos de idade, tinha, sob seus cuidados, vinte e duas pensionistas, que já não dava mais conta e que, portanto, se fazia indispensável o envio de mais uma Irmã e, como a casa fosse pequena, talvez fosse preciso alugar uns quartos a mais. Madre Júlia recebeu esta carta no dia 11 de novembro, às onze horas da manhã; nem bem acabara de lê-la, vestiu sua capa e foi alugar uma charrete para pôr-se a caminho, não sem dizer, antes, a uma Irmã, que se vestisse como para viajar. Esta boa Irmã estava em aula e não sabia de nada; não disse palavra e foi aprontar-se. É, muitas vezes, assim, que as partidas acontecem, entre nós; é raro que alguém seja prevenido com tempo de antecedência. Devemos estar disponíveis a deixar a casa mãe, como para a morte: é preciso estar sempre preparadas. Madre Júlia e a Irmã Maria Ana Sertille fizeram um pequeno lanche e, ao meio dia, partiram. Vou transcrever, aqui, uma carta que Madre Júlia remeteu de Jumet, à Irmã São José. Ela dará um relato da viagem. J.M.J Viva nosso bom Jesus e sua santa Mãe. Jumet, 15 de novembro de 1809 Minha boa e cara amiga, Recebi vosso recado e a carta de nossa boa Irmã Catarina. Minha boa amiga, é preciso que vos diga algo sobre nossa viagem, de nós duas, a Irmã Maria Ana e eu. Chegadas em Jumet, nosso condutor nos deixou em lugar errado e nós nos perdemos. O bom Deus teve misericórdia e nos enviou um homem que nos indicou o caminho; sem isso, corríamos o risco de zanzar a noite toda, com nossos pacotes debaixo do braço. Como é bom o bom Deus! Chegamos, finalmente, às oito horas da noite, para grande consolo de toda casa; exclamações e gritos de alegria, pela nossa chegada. Enfim, minha boa amiga, sabeis como o bom Deus age sempre como um bom pai para mim. Ele deu-me a ideia de ir até próximo a Mons, na segunda-feira, a pé, porque me haviam 161
informado que as estradas, aí, eram intrafegáveis com um animal, menos ainda com uma viatura. Solicitei a um vizinho, bom conhecedor do caminho, a que me acompanhasse, e chegamos na segunda-feira, em boa hora. O bom Deus me tem feito caminhar como um homem; eu o segui sempre, sem nunca parar, até uma meia légua além. Tendo chegado, a baronesa não estava, nem mesmo o senhor Coppens; mas retornou na mesma tarde. Um arrendatário havia-lhe tomado todo tempo; não falei nada do meu assunto, neste dia. No dia seguinte, pela manhã, tínhamos muito a fazer; só que ainda não se falou no assunto. Pensei, então, dever antecipar-me discretamente, mas o que me aconteceu? Uma enfiada de tagarelices, de, mais ou menos, uma hora e meia, e não se havia tocado no assunto a que eu viera. Enfim, em meio a tudo isso, consigo dizer algo: que deveria viajar a uma hora. Houve protestos e reclamações, dizendo que eu não viajaria, não, absolutamente. Era apenas para ver se fazia a conversa progredir. Era meio-dia e nada que me interessasse havia sido dito. Pensei comigo mesma: desta vez, nada mais, mas paciência, se for a vontade de Deus! Eu tinha tanto a fazer, no arranjo dos quartos que já havia alugado para as Irmãs, que me era forçoso voltar. Depois de muito, disseram-me, finalmente, que queriam duas Irmãs para pôr no castelo. O bom Deus pôs-me, nos lábios, as palavras certas, poucas, para fazer com que desistissem da ideia. E em seguida decidi-me partir. Toda a casa queria seguir-me até a cidade de Binche e, como lhes havia feito entender que o primeiro objetivo de nosso Instituto era a educação de crianças pobres, isso fez com que acertasse em cheio. Quando chegamos à entrada de Binche, topamos com o prefeito da cidade, que madame conhecia bem. Ela lhe pediu que nos conduzisse à sua casa; ele anuiu, embora estivesse apressado. Seria muito longo o relato desta entrevista; o senhor prefeito quis ficar com meu endereço, porque tinha em vista incumbir-nos da direção das escolas para pobres, em sua cidade, na casa dos Récollets, que era muito ampla. Ele me avisaria, assim que tudo 162
estivesse ajeitado. Saí, às três e meia, com meu guia, para quatro mortais léguas de caminhada a pé, em locais como os Ardennes, difíceis e íngremes ao tráfego; chegamos, enfim, às nove horas da noite, com meu bravo companheiro. Estava cansadíssima, como podeis imaginar, mas as orações de minhas boas filhas me sustentam. Hoje, quarta-feira, dia 15, chegou uma carta de minha Irmã Catarina, para minha Irmã Anastácia, que lhe manda de me mostrar a carta, na qual diz devo partir para Gand, onde um tal de senhor de Abbaye-au-Bois vai deixar sua casa e nos pede para lá irmos, a fim de deliberarmos em conjunto. Parto amanhã, dia 16, para Gand, auxiliada pela graça de Deus, a fim de cumprir a sua santa vontade. Logo que tiver decidido algo, vô-lo comunicarei. Quanto ao meu retorno, não saberei dizer quando acontecerá. Creio que será preciso que volte em sguida a Bréda, conforme o que me diz a Irmã Catarina, em sua carta que vós me passastes. Tudo seja conforme o bom Deus quiser. - Minha Madre, eis tudo, até demais. Como transcorrerá isso? - O bom Deus o saberá. Tanto que será Ele que há de fazer tudo, não temo nada, não. Quanto à entrada de minha Irmã Úrsula no noviciado, que tenha confiança! Será quando o bom Deus julgar o momento. Adeus, minha cara e boa amiga; tende coragem em tudo o que o bom Deus exigir de nós, e uma grande confiança! Envio-vos saudações de todas as nossas boas Irmãs de Jumet. Saudações mil a todas as nossas queridas filhas, sobretudo que elas rezem muito ao bom Deus por mim. Fazei todas as vossas comunhões na intenção de nossa obra, para a maior glória de Deus. Adeus, minha boa amiga, saudações à minha boa Irmã Jane. Adeus minha boa e cara amiga em Deus. JÚLIA BILLIART, Irmã de Nossa Senhora muito indigna.
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Quando Júlia quis partir, de Jumet para Gand, mandou reservar um lugar na diligência para Charleroi; mas, ao tomar seu lugar, verificou que a viatura estava lotada; examinou-se a folha de inscrição e o seu nome foi encontrado como último, na lista; mesmo assim, deu-se um jeito, e ela viajou, mas de maneira pouco cômoda. Porém, após percorrerem uma meia légua a paciência dos passageiros se esgotou. Quando nossa Madre viu que as revoltas começavam, temeu palavras grosseiras e disse: - Meus senhores, já que vos incomodo, eu saio. Saiu, de fato, e foi sentar-se ao lado do condutor. Todos sabem o que significam os altos acentos de uma diligência, para uma mulher. No entanto, era preciso ir em frente, exposta a grandes flocos de neve que caíam constantemente e que o vento trazia contra sua face. Como único recurso, escondia-se um pouco, debaixo da capa do cocheiro. Antes de relatar como chegou a Gand, é preciso saber que, em sua última viagem, quando passou por Gand, após ter concluído seus negócios com o fazendeiro Lempence, ela fora retida durante mais de oito dias, devido a dificuldades e embaraços que mencionaremos. O senhor barão de Coppens chegou a Gand no mesmo dia que ela; vendo-o, ela agradeceu-lhe a bondade que havia demonstrado, querendo abrigar Irmãs em seu castelo. Este bom senhor expressou sua satisfação em poder prestar-lhe serviço e mostrou-se disposto de continuar a fazê-lo, conforme prometido. Madre Júlia foi ver o pároco de São Pedro, que desejava ter Irmãs em sua paróquia. Já havia localizado uma casa, que pretendia alugá-la ao Instituto. Ele se incumbiria também das necessidades das Irmãs, quanto à alimentação. Numa palavra, era como se o estabelecimento fosse seu. Já se havia tentado conseguir as licenças da prefeitura para o funcionamento das escolas, mas inutilmente. O senhor prefeito havia dito que possuía uma carta do ministro, dizendo-lhe que as Irmãs de Nossa Senhora não podiam mais fundar novos estabelecimentos, até que houvesse outra determinação. Esta notícia tornou-se tanto mais estranha, quanto ele havia dito que não escrevera ao ministro, a nosso respeito. Ocorreram-nos certas suposições, bem como ao bispo de Gand, de que pudesse tratar-se de mais uma do Padre de Sambucy.
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Esse estabelecimento de nossas Irmãs, de St-Nicolas, transferido para Gand, não era novo na diocese. Havia apenas trocado de lugar. Contudo, esta recusa do prefeito intimidava, e procurava-se alguma outra saída, para que nossas Irmãs não ficassem na localidade; aliás elas já se sentiam pouco à vontade, ali. Suas despesas corriam por conta das rendas da Irmã São José, as quais estavam destinadas a prover às necessidades de vestuário e alimentação e as coisas indispensáveis à casa, bem como às despesas de viagens. Nossa boa Madre, vendo que a permanência das Irmãs em Gand, em nada contribuía à glória de Deus, resolveu levá-las a Namur, onde elas estariam bem melhor aconchegadas, junto às outras. Mas o senhor cura de São Pedro imaginou e propôs à Madre Júlia, a instalação de um ateliê de rendas, para crianças e que, sob este pretexto, se as instruiria. Nossa Madre achou prudente falar com o bispo, o qual achou que não convinha arriscar. Seus argumentos, embora mostrassem que não queria se comprometer com o prefeito, eram bons. Mas disse à nossa Madre: Trazei-me vossos estatutos. Farei uma tentativa junto ao ministro. A Irmã Catarina entregara os estatutos na prefeitura; Madre Júlia foi buscá-los. Chegou num instante de tumulto popular, e só com dificuldade conseguiu atravessar a multidão, chegando, finalmente, ao escritório, disse que vinha buscar os estatutos das Irmãs de Nossa Senhora, pois o senhor bispo os solicitava. - Muito bem, disse o comissário, estava justamente me ocupando com vocês. Ia mesmo escrever ao bispo, a seu respeito. - Oh! Meu senhor, disse Madre Júlia, numa crise de zelo e batendo com o pé, não é, então, estranho, que, sem perguntar nada a ninguém, nos recusam a permissão de reunir crianças pobres para as ensinar? O primeiro comissário, que estava junto a uma janela, um tanto afastado, aproximou-se e disse: - Que deseja essa senhora? - Eu me queixo, disse Madre Júlia, que não permitem que demos instrução às crianças pobres.
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- Começai, disse ele. - Mas o senhor prefeito nô-lo proíbe, disse Madre Júlia. - Digo-vos que comeceis, disse ele ainda. - E se aparecem queixas e denúncias contra nós? - Fecharemos os olhos e os ouvidos, e o senhor prefeito também. Não temais. Começai sempre. Nossa Madre retirou-se com essas palavras, sem saber o que pensar. Foi procurar o Padre Van Schouwenberghe, secretário do bispo de Broglie. Quando ela lhe descreveu o comissário que lhe havia dito aquilo tudo, o prelado assegurou-lhe que podia começar sem temor, que este primeiro comissário mandava mais que o prefeito, nesses assuntos. Madre Júlia acorreu a dar a boa nova ao senhor pároco. Estava jantando com uma senhora piedosa; ela foi procurá-lo. Estavam à mesa, numa refeição de cerimônia; entretanto, a senhora deixou a mesa e veio ao encontro de Madre Júlia, que lhe comunicou, brevemente, seu assunto. O senhor pároco veio, como também o barão de Coppens, que era um dos convidados. Congratularam-se com Madre Júlia, pelas boas novas que ouviram. Pensava-se que a questão estivesse concluída, mas o demônio, que não dorme nunca, não podia suportar a conquista feita, sem tentar impedi-la. No dia seguinte, à tardinha, a irmã do senhor pároco de São Pedro veio procurar Madre Júlia e lhe disse: - Minha Madre, o diabo sacudiu o rabo! - Mas o que aconteceu, senhorita Teresa? ... Oh! disse ela, é que o senhor barão de Coppens passou metade do dia à procura de alguém que alugasse a sua casa. Madre Júlia replicou: - Não me aborreço com isso, senhorita Teresa. Teria sido vantajoso realmente, de morar, gratuitamente, durante um ano, nesta casa, mas havia um grande inconveniente: ela estava sujeita a receber hóspedes frequentes e
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estava construída de maneira tal, que os oficiais passavam, continuamente, entre as Irmãs, o que não nos convinha. O senhor pároco, Madre Júlia e um bom senhor, chamado Lemaire, que se preocupava muito conosco, eram de opinião de que se devia ir ver a casa, a respeito da qual deram notícia ao senhor cura, de que estava a sua disposição; mandaram buscar as chaves. Chegando a casa, não conseguiram abrir a porta, porque as chaves não serviam; estavam trocadas; eram as chaves de uma pequena casa ao lado. Senhor Lemaire arranjou uma escada e conseguiu abrir a porta por dentro. A casa era conveniente, razão por que procuraram imediatamente o dono. Quando se pensou tê-la garantido, o senhor encarregado de alugá-la, disse que chegavam tarde, porque já estava fechado o negócio com um funcionário seu. Foi um contratempo que abalou a confiança do senhor pároco, no que diz respeito a desejar saber se Deus queria ou não este estabelecimento. Quanto à Madre Júlia, ela não se alterou. Senhor Lemaire também ficou indiferente; disse à reverenda Madre que ela devia vir jantar em sua casa, juntamente com a Irmã Catarina, e que, logo após, iriam novamente à procura de casa. Madre Júlia não gostava de fazer refeições em casa de leigos. Fazia-o, e com sacrifício, só raramente. Ensinava às suas filhas que jamais o fizessem, mas sabia que para ela, como Superiora Geral, tornava-se, de vez em quando, indispensável, principalmente quando se tratava da organização de um novo estabelecimento. Ela foi, pois, com a Irmã Catarina, à casa do senhor Lemaire; era um homem viúvo, muito religioso. Lá já estava o senhor pároco de São Pedro; no entanto, teria preferido que ele lá não estivesse, para poder conversar livremente com o senhor Lemaire. O senhor pároco só tinha assunto para sua paróquia, e Madre Júlia era de horizontes mais amplos; onde ela percebesse o melhor, lá ela ia em sua busca. O senhor cura queria encarregar-se do estabelecimento, mas não tinha outro fundo, que não a caridade dos fiéis. Quando ele morresse, o estabelecimento também poderia ter fim. Ademais, Madre Júlia previa que, como o senhor pároco seria seu criador e seu conservador, poderia sobrevir a autoridade do governo, nocivo à liberdade que convinha garantir, de pôr e retirar Irmãs, bem como uniformizar o espírito reinante em todas as 167
casas. A índole do senhor pároco, bom e zeloso como era, deixava lugar a temores. No entanto, devendo-lhe obrigações, pois fora ele o primeiro que as havia acolhido e preocupara-se tanto por uma boa moradia, junto ao senhor barão, não convinha nada dispersar. Abandonou-se totalmente à Providência. Após o jantar, o senhor cura retirou-se e Madre Júlia, com o senhor Lemaire e a Irmã Catarina, foram andando pela cidade, à procura de uma casa. Após terem percorrido várias ruas, indicaram-lhe um antigo convento, chamado Abbaye-au-Bois, ou Nonnenbosch, uma parte do qual estava alugada a um dono de pensão; ele estava mais ou menos decidido a deixar seu negócio. Foram para lá. A casa era exatamente o que se procurava, até mais, porque tudo, nela, era grande e espaçoso. Uma bonita capela, quase inteiramente conservada, servia de oficina para os operários. Poder-se-ia, imediatamente, fazê-los desocupar o local e aí haveria uma espécie de oratório para o povo, tão numeroso neste recanto e também muito afastado das igrejas e, por esta razão, não as frequentavam. Uma multidão de pobres, nesses quarteirões, comovia à piedade. Todas essas imagens apresentaram-se, de relance, à nossa Madre, e ela falou ao dono da pensão, que só se expressou com meias palavras e pediu quinze dias para lhe dar uma resposta. O senhor cura, de sua parte, também continuava procurando e ele também, havia encontrado uma abadia em sua paróquia, mas, infelizmente, estava muito próxima a casernas; havia uma passagem que, necessariamente, seria comum a soldados e Irmãs. O senhor pároco tinha tanto interesse em ter Irmãs em sua paróquia, que não pensava nesses inconvenientes; nem sequer se preocupava a respeito da opinião de Madre Júlia. Quando lhe falou desta casa, ela se constrangeu muito e lhe manifestou, serenamente, a sua maneira de pensar, depois desligou-se de tudo, esperando que a Providência lhe apontasse a solução, já que seu costume era o de agir com muita discrição, sem precipitação. Ela lhe disse, em outra oportunidade, como para entabular assunto, que fora ver a Abbaye-sur-Bois e que a pessoa que a ocupava lhe daria uma resposta dentro de quinze dias. - Mas não fica em minha paróquia, disse, de início, o pároco.
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O que a boa Madre dissera, havia sido como uma bomba. Não havia, ainda, nada decidido, de nenhuma das partes; ela devia voltar a Namur. Entregou tudo nas mãos de Deus e partiu, não sabendo se Deus queria que ela estabelecesse suas Irmãs em Gand ou se as reconduziria a Namur, estando indiferente a uma e outra coisa. Poucos dias depois de ter chegado a Namur, recebeu uma carta da Irmã Catarina, que lhe falava do seu intenso desejo de iniciar as aulas; pedia-lhe seu conselho. Madre Júlia respondeu-lhe que consentia, e iniciaram-se, em seguida, as aulas para os pobres, em casa do senhor de Coppens. A casa, rua das Mulheres, que o pároco de São Pedro havia fixado, de início, e de que havia desistido posteriormente, quando o senhor prefeito interditara as escolas, - mas que em seguida havia requisitado novamente e que encontrara já alugada, - foi-lhe oferecida mais uma vez, na ausência de Madre Júlia, e ele assumiu imediatamente, alugando-a, sem comunicar a nossa Madre, embora soubesse que havia uma resposta que estava sendo aguardada a respeito da Abbaye-sur-Bois. Nesse meio tempo, estando, Madre Júlia, em Jumet, a Irmã Catatina escreveu-lhe, informando-a de que o senhor que ocupava a abadia iria deixá-la e que aguardava a sua presença, para entender-se com ela. Partiu de Jumet, como disse, chegou a Gand na sexta-feira à noitinha, sábado foi visitar o pároco e, ao fazê-lo conhecedor de que havia uma casa de aluguel à disposição, disse-lhe que iria imediatamente transferir as Irmãs para esta casa. E ela o fez, realmente, mas não desistiu da abadia. No sábado mesmo, foi ver o locatário desta casa, que ela achou muito apropriada para um estabelecimento amplo, para a glória de Deus. Este senhor, dono da pensão, informou-a de que ele tinha uns sócios que estavam querendo ficar com a casa e que ele, de sua parte, estava resolvido a entregar-lha. Madre Júlia, que só buscava a maior glória de Deus, não se impressionou com mais esta brusca alteração de sentimentos e de intenções. - Se é assim, disse ela, já não penso mais no negócio. Mas, em seguida o senhor, refletindo um pouco, lhe disse: - Amanhã ao meio-dia lhe darei minha última palavra. 169
Nossa Madre foi-se embora, prometendo aguardá-lo. Ele só apareceu às sete horas da noite, dizendo que lhe entregava a casa. Madre Júlia, por sua vez, pediu-lhe um prazo, porque, antes de concluir o negócio, ela precisava saber se o senhor bispo estava de acordo. Foi, imediatamente, ter com ele, explicou-lhe, detalhadamente, qual o seu plano, fazendo-lhe ver que o estabelecimento do senhor pároco era muito precário; ademais, este último, estava muito próximo das Apostolinas, e, no seu entender, não convinha dois estabelecimentos tão próximos; um fazia sombra ao outro, e essas religiosas penalizavam-se de nos ver tão próximas a si. Por outro lado, o governo estava preocupado em regulamentar os grupos e estabelecimentos de religiosos, e este fato poderia alarmá-lo. Havia riscos a correr, o prelado pressentia-o muito bem; no entanto, disse à Madre Júlia que, se não houvesse pequenos percalços a serem vencidos, sempre que se inicia uma nova atividade, a coisa não faria sentido e aconselhou que fechasse negócio. Assim que teve o consentimento do bispo, pôs-se em ação. Foi, em companhia do senhor Lemaire, à casa de duas antigas religiosas desta abadia. Estas damas, vendo Madre Julia, com sua aparência tão pobre, não confiaram no que dizia, quando se apresentou como pretendente de sua antiga casa, querendo alugá-la. Disseram ao senhor Lemaire: O quê? Então é esta? E uma delas pôsse a rir, desabridamente. Madre Júlia ter-se-ia retirado, um pouco envergonhada, se o senhor Lemaire não tivesse dito que responderia por ela. A esta altura, as damas mudaram de tom e as negociações transcorreram normalmente. Madre Júlia foi, logo depois, à casa da senhora que havia comprado toda essa propriedade ao governo, na intenção de doá-la às religiosas quando as circunstâncias mudassem e, enquanto isso, pretendia dar-lhes a importância advinda do aluguel. No caminho, nossa Madre encontrou o filho dessa senhora, que se preparava para o sacerdócio. Após uma troca de palavras, ele lhe perguntou se ela não era aquela que milagrosamente havia sido curada; ela não pôde negá-lo. Esse jovem a tratou com muita deferência e, provavelmente, foi isso, também, que dispôs a mãe a fazer o mesmo. Esta senhora concedeu à Madre Júlia todas as facilidades que se possam imaginar para o arrendamento da casa. O preço ficou estipula170
do em 424 florins. Foi-lhe deixada a possibilidade de renovar o contrato anualmente e de devolvê-la, assim que acontecimentos imprevistos interditassem o estabelecimento. Não se podia desejar negócio mais bem feito. O contrato foi assinado de modo a entrar em vigor a 19 de dezembro de 1809. O senhor, dono da pensão, não fora tão conciliador quanto a senhora acima mencionada. Uma vez que tinha poder para, de sua parte, negociar da maneira que achasse mais conveniente para si, exigia de Madre Júlia, que ficasse com alguns armários e uma lareira que ele havia mandado fazer, bem como uma estufa apropriada ao ambiente, pela importância de 300 florins. Madre Júlia teria desejado não precisar incomodar-se com esse tipo de coisas, mais ainda, considerando que normalmente há, na casa, uma série de benfeitorias que, ao ser vendida, não dão direito à indenização. No entanto, era preciso sujeitar-se às suas exigências, caso contrário, ele fazia a casa passar às mãos de outros, pois que tinha truques para isso. Foi assim que se concluiu todo este negócio. Várias pessoas de Gand vinham insistindo, por razões diversas, para que Madre Júlia fosse a Bréda. Ela quis, no entanto, vir a Namur, de onde partiu para Bréda, nos primeiros dias de dezembro. Teve que enfrentar estradas pavorosas, eram um verdadeiro lodaçal; os cavalos estavam sujos até o ventre. Mas, com a graça de Deus, chegou bem. Encontrou a senhorita, de que vamos falar, numa antiga casa religiosa que havia alugado. Esta senhorita, de boa família, gastara toda a sua fortuna neste empreendimento, em que se envolvera sem conselho de ninguém, onde nada dava certo e onde ela permanecia, com a desaprovação de todo mundo, mesmo de seus confessores, coisa que ela publicava a todos, pois era muito franca, Tinha dívidas e duas pensionistas como única fonte de renda. Moravam com ela: uma outra jovem, sua sobrinha, uma doméstica e uma louca, que ela abrigara mediante uma pensão. Não tinha capacidade nenhuma para gerenciar um empreendimento desses, o que nos prova de que não é suficiente querer o bem, mas que é preciso que se queira o que Deus quer de nós. Seja como for, esta boa pessoa quis desvencilhar-se da casa, da sobrinha, da louca e também das dívidas, e pôr tudo sobre os ombros de Madre 171
Júlia. Nossa Madre estava muito bem informada a respeito, para não se deixar enredar. Testemunharam-lhe uma grande alegria, quando ela chegou. Eis que estais em vossa casa, minha Madre, disse-lhe a senhorita. Podeis comandar e organizar tudo, dispondo como vos aprouver. Mandou comprar uma garrafa de vinho; preparou um lanche, com comes e bebes. Madre Júlia reparava que, nas coisas que trazia e dispunha, a casa era bem magra. Foi preciso entrar em negociações. Mal a senhorita expôs suas razões, nossa Madre viu que não podia fazer aliança com esta jovem, que queria, para início de conversa, permanecer na casa e ajudar com o que pudesse. - Não, senhorita, disse-lhe nossa Madre Júlia, se quereis vos consagrar a Deus, é preciso fazer um noviciado, em Namur, para sondar se, realmente, existe vocação autêntica. Havia muitas questões a debater, e nenhuma encontrou solução. Madre Júlia não se pronunciou abertamente, como convinha, sem perda de tempo, por pura comiseração para com essa pobre alma, que, via-se bem, estava fora de si e ela mesma, destituída de condições de se fazer valer. A senhorita levou, ainda, Madre Júlia a ver o senhor N., nomeado diretamente por Sua Santidade, o Papa, para desempenhar as funções de bispo, que não havia na região. Tratavam-no por Vossa Grandeza. Esta Grandeza tomou o partido de Madre Júlia, contra a senhorita, que repetia constantemente: Como sou infeliz! Como sou infeliz! Nem sequer sabia falar nem escrever corretamente o francês, e dispunha-se a ensinar francês! Por fim, Madre Júlia conseguiu desvencilhar-se dela; despediu-se e prosseguiu a tratar dos interesses do Instituto. Retornando de Bréda, passou por Bruxelas, e, por problemas de diligência, aí permaneceu algumas horas. Teve oportunidade de conhecer a condessa de Ribeaucourt, que lhe demonstrou interesse. Era uma das herdeiras da casa que nós ocupávamos em Namur e que nós desejaríamos comprar. Neste dia, a lembrança dessa senhora lhe veio, viva, à mente. Estava entre a dúvida e o desejo de ir vê-la. Não havia razões suficientes que o justificassem. Ela conhecia esta dama, mas a grandeza é sempre mais imponente do que atraente e, aparentemente, nada a atraía à casa de madame. Pensou ainda: talvez ela lhe fizesse doação de alguma coisa para os 172
pobres. Dizia para si mesmo: Este pensamento é um tanto estranho. Afastou do seu íntimo esta pequena luta interna e saiu a fazer compras, sobretudo em tecidos, para os hábitos das Irmãs. Após ter andado pela cidade durante mais de duas horas, voltou extremamente fatigada, à hospedaria. Ao querer repousar, quando já havia esquecido, de todo, Madame de Ribeaucourt, subitamente dominou-a a vontade de ir ver essa senhora, sem saber explicar bem o porquê. Nem sequer se deu o tempo de se sentar um pouco, partiu para a casa de madame. A primeira coisa que a senhora lhe disse, foi: te.
- Nossos contratos terminaram ontem, a casa me pertence novamen-
Madre Júlia respondeu-lhe, polidamente, que estava satisfeita de ter sido lembrada disso. A casa, agora, está avaliada em 15.000 francos. O senhor Ribeaucourt, estou certa, não a concederá por menos preço. Porém, acrescentou ela, eu vos prometo, - sem compromisso, - repetiu isso várias vezes -, eu conseguirei para vós um desconto de 3.000 francos. Madre Júlia expressou seus agradecimentos à senhora, que lhe recomendou segredo, e disse-lhe que consultaria a Irmã São José, que lhe escreveria nos próximos dias. Madame de Ribeaucourt sabia muito bem que desejávamos esta casa e que nos convinha, por ser espaçosa e boa; não sabia, no entanto, que houvesse outros interessados compradores, mas nós o sabíamos. Madre Júlia, de volta, informou detalhadamente a Irmã São José, admirando a Providência em tudo isso. O bom Deus permite que eu vá a Bréda, onde nada fiz, e atende-me em Bruxelas. Madre Júlia foi consultar o senhor bispo, que achou conveniente que ela fosse pessoalmente tratar do assunto, em vez de escrever, e que deveria levar consigo a Irmã São José, para que o negócio fosse concluído e que ninguém viesse pretendê-lo, como se estivesse em leilão. Partiram, as duas, no dia seguinte. Regatearam o que puderam, para obterem um desconto, mas em vão. Ademais, Madame de Ribeaucourt disse à Madre Júlia que ela 173
havia consultado o seu diretor, o qual lhe dissera que, uma vez que ela não estava separada do marido e que havia comunhão de bens, ela não podia dar; por conta própria, o abate de 3.000 francos. Como se tratasse de uma senhora muito rica, pensávamos, tranquilamente, que ela pudesse dispor desta soma; mas o diretor não o entendeu assim. Firmou-se, então, que daríamos 12.000 francos de entrada e os restantes 3.000, no prazo de seis meses. As duas viajantes retornaram a Namur. Indo conversar com o bispo, este era do parecer de que elas deveriam pagar os 15.000 à vista, uma vez que estavam com o dinheiro. Ambas se auxiliaram na contagem das moedas e, no dia seguinte puseram-se novamente a caminho, na mesma viatura de aluguel, levando o dinheiro em dois cestos que as incomodaram muito, porque não podiam perdê-los de vista; isso as obrigou a lancharem na própria condução, num pátio do albergue. Aliás, diga-se de passagem, este era um costume de Madre Júlia, o de evitar, tanto quanto possível, de entrar nos albergues. No verão, quando fazia tempo bom, ela passeava, enquanto desatrelavam e davam descanso aos cavalos. Geralmente levava consigo sua pequena provisão e almoçava ao abrigo de uma cerca-viva, um pouco afastada; outras vezes, principalmente à noite, em seu quarto; algumas vezes, à mesa de hóspede. Conforme as circunstâncias, ela acompanhava a todos, em tudo; mas evitava, como razoável, a algazarra dos albergues. Que suplício não terá suportado ela, nessas andanças, bem como a descomodidade das diligências, já por causa das injúrias, blasfêmias e palavras e expressões de baixo calibre que devia ouvir continuamente. Ver como seu Deus, tão facilmente, tão indignamente, tão constantemente ultrajado por criaturas que ele cumula de benefícios, era um suplício para um coração amoroso, que sentia o divino vivamente unido ao seu. Várias vezes ouvi-a dizer de que ela não sabia por que ainda não morrera de dor; que eram necessários esforços imensos sobre si mesma, para não explodir. Aconteceu, às vezes, que, num ímpeto de prudência e zelo, tenha manifestado seu modo de pensar; e Deus, todo bondade, permitia que ela encontrasse, por vezes, um ou outro que a apoiava, dominando-se ou, pelo menos, retendo, por alguns momentos, o turbilhão de palavras indecorosas. 174
Madre Júlia e sua companheira chegaram em Bruxelas no dia 1 2 de dezembro de 1809. Passou-se a escritura, contou-se o dinheiro, no dia 13, ao meio-dia; embarcaram de retorno após o almoço, pernoitaram no caminho e chegaram a casa no dia 14, à hora do almoço. Todas as Irmãs regozijaram-se em Deus, pela aquisição desta casa. Cantou-se o Te Deum, para agradecer o Senhor que ele se havia dado uma casa entre nós. O recibo saiu no nome da Irmã São José, uma vez que fora pago com seus bens. As ordens religiosas não estavam, ainda, tão estabilizadas, para que se pudesse agir de outra forma.
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Capítulo 7 DESDE A AQUISICÃO DA CASA DE NAMUR, EM DEZEMBRO DE 1809, ATÉ O FINAL DE SETEMBRO DE 1810 Madre Júlia, pouco depois da aquisição de nossa casa, escreveu ao secretário do bispo de Gand, que, segundo o conselho do bispo de Namur e de acordo com a lógica da sã razão, ela acreditava que não era o momento de se pensar em estabelecer a casa de Abbaye-sur-Bois. As circunstâncias, de fato, não eram nada favoráveis: aguardavam-se, dia após dia, novas leis relativas aos docentes; quanto às corporações religiosas, temia-se muito de que fossem suprimidas. Apesar de tudo, em Gand, as coisas não eram vistas sob este ângulo. Mas como não havia pressão de parte alguma, nossa Madre diferiu ainda, depois escreveu uma segunda carta, a qual foi respondida por parte do bispo de Broglie, dizendo-lhe que viesse imediatamente com boas Irmãs, a fim de iniciar o estabelecimento. Esta maneira de agir estava de acordo com sua maneira de pensar. Nossa Madre não era, naturalmente, nem lenta, nem temerosa. Ela só havia protelado desta maneira, por prudência e para que houvesse uma autoridade que apoiasse e confirmasse o sentimento interior que nutria, de saber se Deus, realmente, queria esta obra e, relativamente a isso, disse à Irmã São José: Embora ninguém nos ajude, é preciso ir sempre em frente e, ainda que tenhamos que pagar para ver, não convém recuar. Foi, realmente, isso que aconteceu. Elas partiram, pois, com duas Irmãs, rumo a Gand, no dia 12 de fevereiro de 1810. Desembarcaram e foram à casa de nossas Imãs, na paróquia de São Pedro. A Irmã Catarina Daullée era a superiora da casa. Madre Júlia aproveitou a condução de aluguel que haviam arranjado e retornou no dia seguinte, levando consigo, para Namur, quatro postulantes. Pretendia voltar em seguida a fim de reencontrar a Irmã São José, mas foi obrigada a demorar-se alguns dias em Namur, a resolver uma série de 177
pequenos imprevistos. O principal foi: uma jovem, que viera ter conosco oito dias antes da partida de nossa Madre e que se destinava unicamente ao cultivo do jardim, foi atacada de súbita e intensa febre epidêmica, que punha em sobressalto e em risco toda a comunidade. Estávamos, ainda, sem enfermaria. Esta jovem era de Namur; viviam, ainda sua mãe e duas irmãs. Madre Júlia não hesitou e achou que a única solução era enviar a jovem para casa. Expôs seu parecer ao nosso superior, Padre Minsart, o qual foi de opinião contrária, objetando que isso surtiria um maléfico efeito na cidade; no entanto, a necessidade, mais forte que seus argumentos, fez com que concordasse. Ele mesmo foi falar à doente, que lhe deu a entender, decididamente, que não admitia. Madre Júlia elevou seu coração a Deus e mandou chamar o confessor desta jovem, para que ele a fizesse refletir; mas assim que ele entrou no quarto de nossa Madre por uma porta, a enfermeira entrou pela outra, para dizer que a doente queria ir para casa, que ela mandava dizer. Aproveitou-se essa disposição do momento e fez-se vir a mãe e uma irmã para que a buscassem. A saída se deu sem qualquer crise de revolta ou agressão, como se supunha, graças a uma hemorragia de vinte e quatro horas, que a deixara extremamente debilitada. Nossa Madre não a achara nem suficientemente forte, nem bastante corajosa para o trabalho do jardim, e não a admitiu mais. Em seu retorno a Gand, encontrou as Irmãs Luce e Madalena na abadia de Nonnenbosch; a Irmã São José mandara-as dormir lá, para guardarem a casa. Madre Júlia lhes deu, como superiora, a Irmã Catarina e nomeou, como superiora da casa São Pedro, a Irmã Maria Steenhaut. Depois, passou a ocupar-se em arranjar e prover a tudo. Mandou fazer, na abadia, o mínimo indispensável, mas havia sempre alguma porta ou parede que exigiam reparos. Tínhamos uma casa religiosa bastante ampla; era preciso, agora, providenciar com alguns móveis: cadeiras, mesas, objetos de cozinha, cobertores; o total das compras somava 560 francos. Madre Júlia ia regatear com os revendedores e comprava tudo a bom preço. Era preciso, também, pagar ao antigo inquilino, tudo o que nossa Madre havia combinado de lhe comprar, o que perfazia 680 francos. Haviam trazido um saco de dinheiro, com 1.400 francos, que chegaram ao fim e, como se pode facilmente imaginar, era preciso uma grande simpli178
cidade em tudo, para fazer um estabelecimento funcionar com tão pouco. Entretanto, as três Irmãs tiveram tudo o que lhes era necessário. Havia, além do mais, o aluguel da casa, que chegava a 771 francos, e prover à subsistência, até onde aprouve à Providência que nos fosse possível. As Irmãs da abadia tiveram que dormir, durante algumas semanas, sem camas, sobre o assoalho, com uma esteira. Também, nos primeiros dias viram-se destituídas de muita coisa que faz parte do conforto, tendo, para sentar-se, duas velhas cadeiras quebradas que o senhor que entregara a casa havia esquecido: o restante das coisas, nesta mesma base. É difícil de se imaginar a alegria que as boas Irmãs experimentam, nestas ocasiões, nem mesmo o sentimento de gratidão que as invade, quando, a cada dia que passa, elas veem chegar as coisas mais necessárias, não desejando nenhuma superficialidade, até repelindo-as com desdém; ter apenas o necessário excita seu amor a Providência, sempre atenta às suas verdadeiras necessidades. Madre Júlia foi visitar o senhor pároco de Santa Ana, em cuja paróquia se situava a nova casa; visitou, também, o cura de St-Bavon, a fim de receber crianças para instruir, - não recebíamos, em nenhuma de nossas casas, crianças que tivessem a recomendação dos senhores párocos. Ela só quis receber, no início, um pequeno número, trinta no máximo, a fim de formá-las de tal modo, que depois pudessem servir de exemplo às outras. Estava ciente da dificuldade, senão impossibilidade que se tem, de manter a disciplina numa classe onde se colocarem crianças em excesso. A Providência abençoava o governo desta boa Madre, porque ela só buscava a glória de Deus. Dizia, em suas confidências íntimas, que, em suas viagens e em toda parte, numa série de acontecimentos, via efeitos tão palpáveis da atuação de Deus, que já não podia mais se inquietar a respeito de nada; que seu único cuidado e toda a sua solicitude eram de conhecer e fazer a vontade de Deus. Percebia-se, realmente, que ela empreendia, pronta e corajosamente, sem se preocupar muito com os meios e a maneira de execução, e que o bom Deus a socorria sempre com tudo o de que necessitasse, abençoando seus trabalhos, os quais, aliás, não eram imprudentes nem impensados, no início da fundação. Mas havia, por vezes, tantas causas secundárias que haveriam de influenciar, que nem sempre é possível de prever e dispor o que se pretendeÉ neste pormenor que ela não conhecia nem dificuldade, 179
nem obscuridade que a detivesse; bastava-lhe entrever o fim a que Deus a chamava. Seu caminho ordinário era andar às cegas. Conservava sua alma unida a Deus, sem querer perscrutar nem calcular e avaliar os acontecimentos obscuros. Mantinha-se atenta às indicações e apelos da Providência e seguia-os. Dizia que todos os lugares lhe eram iguais. Doava-se inteiramente ao dever, estivesse onde estivesse e, quando não havia mais nada a fazer, partia. Era da opinião de que uma estadia mais longa, que não fosse necessária, poderia tornar-se prejudical à comunidade, na casa filial. Pode-se dizer que sua vida, desde a cura extraordinária, foi, por assim dizer, uma contínua viagem. No entanto, sentia-se, muitas vezes, taciturna e sem apetite, chegando a passar vários meses sem quase se alimentar; mas não deixava de agir e de escrever. Esta era sua principal ocupação, quando estava em casa. Se acontecesse de um estabelecimento exigir uma viagem, em que ela pressentia tratar-se da glória de Deus ou o bem de suas filhas, era inútil opor-lhe o motivo de sua saúde, a fim de impedi-la. Suas forças ultrapassavam o natural; podese dizer que Deus lhas dava em dobro e de maneira privilegiada, em muitas ocasiões. Também, ela jamais se poupava e sempre de novo recomeçava, pondo-se a caminho sempre que necessário, Havia algum tempo que ela vinha sentindo a necessidade de fazer uma viagem a Amiens, para, de uma vez por todas, receber os 11.400 francos que ficaram empenhados. Achava que dependia dela, não deixar que esfriasse a boa vontade que se havia conseguido suscitar. Falou sobre o assunto com o Padre M. Schouwenberghe, secretário do bispo de Gand, que estava ausente. Ele lhe aconselhou que partisse em busca do senhor bispo, que se encontrava a seis léguas de Amiens, em casa de Madame de Lameth, sua tia. O secretário lhe deu uma carta a ser entregue ao prelado e disse à nossa Madre que seguisse o que ele lhe aconselhasse. Assim prevenida, tratou de realizar os outros afazeres que a levaram a Gand, e partiu. Sigamos mais de perto a Madre Júlia nesta viagem. Chegou, primeiramente, ao castelo de Hénencourt, onde encontrou o senhor bispo no paço, disposto a partir por algumas horas. Disse-lhe: Madre Júlia, é preciso que eu siga meus compromissos. Ide para junto de minha tia. Conduziram Madre Júlia para perto da tia do senhor bispo. Era uma dama idosa, muito respeitável, que recebeu nossa Madre muito civilmen180
te; passados alguns momentos, ordenou que lhe dessem um apartamento, onde a boa Madre, tão ativa e tão cansada, teve um pouco de repouso. Para sua felicidade, entra-lhe no quarto uma pequena, de dez a onze anos, filha da camareira, que viera para vê-la; foi, para ela, motivo de alegria e tudo o que lhe faltava, no momento. Quando, nas viagens, encontrasse alguma criança a quem pudesse falar do bom Deus, estava compensada de suas fadigas e a Providência lhe oferecia oportunidade para isso. Nossa Madre pediu que a garotinha trouxesse seu catecismo, e lho explicava; a pobre menina gostou tanto, que se punha a rezar para que chovesse, a fim de que Madre Júlia não pudesse partir tão cedo. Se ela não teve o êxito de Santa Escolástica,1 pelo menos usufruiu de todos os momentos em que ela estava no castelo. Nossa Madre foi convidada a comparecer à mesa, com Madame de Lameth, o bispo e vários padres; Madre Júlia sentiu-se constrangida com isso. Embaraçava-se, quando se via pressionada a comer a uma mesa bem servida. Durante a maior parte do tempo, ficava sem apetite, com momentos de enfado; e quando ela podia comer, era a comida mais simples que lhe sentava, sem repugnância; de resto, quanto mais delicados os alimentos, tanto mais se lhe excitava o coração. Disse-me, algumas vezes, que ela podia comer o que quisesse, sem temer a sensualidade; era como se tivesse perdido o gosto. Ela sabia não haver nada de virtude nisso. Creio que as longas doenças que sofreu podem ter contribuído para isso, mas penso, também, que sua alma, unida constantemente a Deus, já não era suscetível a este tipo de gostos e sabores. Encontrou, enfim, o momento de falar com o senhor bispo, que, tendo lido a carta de seu secretário e examinado um pouco a coisa, aconselhou-a de ir até Amiens e fazer tudo quanto pudesse, em termos de negócios, para poder reaver a importância. Disse-lhe, também, que previa que as negociações seriam muito difíceis. Porém, antes de a deixarmos partir do castelo de Hénencourt, falaremos, brevemente, de um episódio, do qual se podem tirar bons ensinamentos. Mencionamos, já, que Madre Júlia tinha uma sobrinha, chamada Felicidade, que ela educara desde a idade de sete anos e conservara sempre 1. Alusão ao episódio narrado nos “Diálogos de São Gregório, o Grande”, acerca do último encontro de Benoit e de sua irmã Escolástica, a qual, para deter o irmão por mais tempo junto de si, rezou para que chovesse, e assim aconteceu.
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junto de si, até que veio a se casar; casou-se a contragosto de sua tia, que muito sofreu com tal decisão e se opusera com veemência porque ela julgava que a sobrinha não tinha vocação para o casamento. Contudo, não se indispôs contra ela, e compensou-a dos obséquios recebidos durante sua longa enfermidade; de sua parte, ajudou-a, sempre, como pôde. Havia envidado esforços no sentido de fazer com que seu marido fosse chamado a Rubempré, para ocupar o cargo de mestre-escola, esperando que eles pudessem, aí, viver com sua família; mas o infortúnio os perseguiu e uma série de desgraças sobre eles se desencadeou. Madre Júlia, estando no castelo de Hénencourt, próximo a Rubempré, desejando dar uma prova de amizade à sobrinha, mandou que viesse vê-la. Essa pobre mulher chegou, pálida, magra e mal vestida: era a pobreza personificada. Nossa Madre sentiu o coração apertar-se-lhe, vendo-a; não havia coisa mais iminente a fazer, do que suplicar a alguém, do castelo que lhe oferecesse um pouco de vinho e comida. Ela mesma empenhou-se em fortificá-la espiritualmente. Se nossa Madre fosse suscetível deste amor próprio, tão comum entre as pessoas, que considera vexatório e acabrunhador quando um dos parentes pobres e mal-vestidos se apresenta a nós, então, ela deveria ter sofrido terrivelmente. Mas seu coração era bom demais e sua humildade por demais autêntica, para se deixar atingir por esses sentimentos. A respeito da parentela, direi, de boa vontade, alguma coisa que, estou segura, fará honra ao coração bondoso de Madre Júlia. Seu irmão era alfaiate de profissão; ele vivia honestamente, em tempo de prosperidade, mas suas enfermidades progrediram, de tal modo que não mais pôde trabalhar e, tendo sofrido algumas perdas, reduziu-se a um estado de extrema pobreza. Quando este irmão, pobre e estropiado, vinha, no lombo de um burro, para vê-la em Amiens, todo seu cuidado consistia, não em subtraí-lo aos olhares das pessoas da casa, mas de lhe dar a melhor acolhida possível. Ela jamais esquecera os cuidados que ele teve por ela, nos primeiros anos de sua doença. Falava a respeito, de vez em quando, com muito enternecimento, Era sensível à miséria do irmão, mas sua confiança na divina Providência e sua resignação não lhe permitiam qualquer perturbação, e ela sentia um grande consolo no fato de seu irmão, que era um excelente cristão, empenhar seus sofrimentos para o céu. Encarregou-se da educação de seu sobrinho Norbert, certamente por compaixão e em reconhecimento 182
para com seu irmão, mas, mais ainda, no desejo e na esperança de formar um servidor fiel e, talvez, um futuro ministro de Deus. Era esse o seu grande desejo. Esta criança nascera com privilegiadas disposições para aprender e uma certa abertura de espírito, mas um extremo amor próprio. O demônio - talvez por despeito para com sua tia - atacou intensamente a criança e não o fez, senão para proporcionar sofrimentos agudos a sua tia. Em várias oportunidades, ela esteve a ponto de devolvê-lo ao pai; mas como isso representava, para o pai, um golpe bem duro, cujo efeito seria o de contribuir ao triunfo da malícia e do furor do demônio, ela cultivou, longamente, a paciência; o sucesso não se fez esperar. Madre Júlia partiu de Hénencourt e veio a Amiens. Hospedou-se em Faubourg-Noyon, bem próximo à casa onde morávamos. Escreveu um bilhete a Madame de Franssu, pedindo-lhe que viesse ao albergue. A boa senhora veio; aí permaneceu por três horas, duas das quais foram ocupadas no assunto que interessava Madre Júlia, sem que ela, no entanto, tivesse conseguido o que desejava. Após ter-se aconselhado com Deus, em seu íntimo, finalmente encontrou o meio de fazer valer. Pesando as coisas de todas as maneiras, insinuou que os interesses do bom Deus pediam que se chegasse a um acordo, assegurando-lhe que ela daria todos os passos, da maneira mais cômoda possível para ambas, e pedia-lhe, finalmente, seu consentimento, para poder negociar com o Padre de Sambucy. Esta boa senhora, ressentindo-se, ainda, de sua fraqueza e, ao mesmo tempo, percebendo que se tratava de uma imposição da justiça, suplica-lhe: Pelo menos, que ele, depois, não venha me falar; já não estou em idade de o suportar. Mas cuidai, neste negócio, que no fim do mês de maio ou inícios de junho, o mais tardar, que esteja concluído. Esta coisa que me diz respeito, que já vos disse dever decidir-se quando florescerem as rosas,1 neste tempo, convém que esteja decidido. Depois disso, entrego-vos ao Padre de Sambucy, e podereis fazer o que vos aprouver. Madre Júlia ficou muito contente com esta declaração, e as duas se separaram como boas amigas em Deus. Faltava enfrentar a reunião com o Padre de Sambucy. Foi chamado e veio. Inicialmente, houve uma longa e cansativa conversa, que não levou a nada. O assunto em que o Padre de 1. Trata-se do projeto da fundação da Congregação da Natividade, proposta pelo Padre Enfantin à Madame de Franssu.
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Sambucy mais insistia, era o da reunião, da unificação, mas nossa boa Madre fez-se surda a tudo isso, pois nada, ainda, lhe indicava que era chegado o momento oportuno. Madame Baudemont havia entregue ao padre de Sambucy 500 francos, em reconhecimento aos 11.400 francos que nos haviam sido dados por Madame de Franssu, e que, em seguida, emprestamos ao Padre de Sambucy, com os quais foi comprada a casa das Damas da Instrução Cristã. Padre de Sambucy perguntou a Madame de Franssu, o que ela desejava que se fizesse com os 500 francos. A boa senhora respondeu-lhe que poderia fazer o que achasse conveniente e, como a casa de Faubourg estava necessitada, ele lançou mão do dinheiro, para cobrir gastos de emergência. Madame de Franssu acabara de prevenir Madre Júlia a respeito disso, e pediu a Madre Júlia que não trouxesse à tona esse detalhe; mas o Padre de Sambucy o introduziu por si mesmo. Ele era justo demais, para não admitir que os frutos, naturalmente, pertencem àqueles a quem pertence a árvore. Nossa Madre disse-lhe: - O que está feito, feito está. Deixemo-lo. Mas eu vos peço que, doravante, Madame Baudemont não pense mais em reconhecimentos, mas que se preocupe em fazer entrar fundos. Virei em fins de maio, para receber, com ela e convosco, os arrendamentos. Elaboraremos e assinaremos os termos e veremos as coisas se concluírem da maneira mais fácil possível para vós. - Se se fizer a reunificação, disse o Padre de Sambucy, não quero nada para a casa de Faubourg. Mas pensai bem nessa unificação, minha boa Madre. Dizei sim, dizei sim! - Eu quero a vontade de Deus, respondeu Madre Júlia. - Oh! Estou contente, sinto-me contente, pois é isso que eu peço. - Eu também não peço outra coisa, replicou Madre Júlia, do que aquilo a que me referi na última viagem, quando cá estive. Sem dúvida, estou pronta, se o bom Deus o quiser, mas, por ora, não é o momento de se pensar nisso. Não esqueçais de lembrar a Madame Baudemont, de se preocupar com a entrada de recursos. Ele prometeu falar-lhe e ambos se separaram, civilmente. 184
Já falei a respeito de uma pessoa que tínhamos em nossa casa, durante alguns anos, por caridade, e que, no dia da partida de nossa Madre, escapounos de maneira muito estranha. O Padre de Sambucy, que a impedira de viajar, devolveu-a a casa, após nossa partida; pouco tempo depois, vendo que ela não era o que ele pensava, devolveu-a a seu pai. Ela escreveu, então, a Madre Júlia, - ela já o fizera antes de sair - pedindo-lhe, com as palavras mais ternas e mais comoventes, que a quisesse receber novamente. Nossa Madre estava um tanto confusa a seu respeito, vendo-a esquivar-se justamente no momento da partida. Chegou a pensar que, talvez, Deus não nô-la destinasse e ela não fosse bastante segura para decidir por si mesma. Aguardava, pois, alguma indicação da Providência, antes de tomar qualquer iniciativa. Miguela residia a uma légua de Amiens. Viera à casa de Madame de Franssu, passar o dia em sua companhia, exatamente no dia em que nossa Madre estivera em Faubourg. Madame de Franssu veio ver Madre Julia; a boa Irmã Marta, que assistia Madame de Franssu, também veio vê-la, mas nenhuma das duas lembrou-se sequer de mencionar Miguela, nem a esta comunicaram que Madre Júlia, com quem tanto desejara encontrar-se, estava na cidade. Tudo ficou nesse pé. Nossa Madre retomou o caminho de Gand, onde se deteve por pouco tempo, chegando a Namur, no dia 16 de março de 1810. De volta de suas viagens, Madre Júlia encontrava, geralmente, muitas cartas, que era preciso responder. Suas filhas que estavam fora da casa mãe escreviam-lhe com frequência e longamente, sobretudo as superioras de casas filiais. Prestavam-lhe conta, geralmente, das principais dificuldades e embaraços e, às vezes, de mínimos detalhes, nos quais ela entrava com bondade maternal. Suas filhas eram jovens e sem experiência, compromissadas, geralmente, antes da maturidade; era preciso ajudá-las a se formarem, conduzi-las, guiá-las, dar-lhes força, consolá-las. Não podendo estar simultaneamente, em vários lugares, procurava compensá-lo através das cartas frequentes e longas, que lhe tomavam muito tempo; isso não significa que ela se inquietasse e refletisse longamente sobre tudo o que queria dizer, não; não era esse o seu método. Punha-se à mesa, onde era vista, diariamente, a escrever sem parar. O seu estilo não era cuidado, mas era simples e rescendia a Deus. Encontravamse, nas cartas, muitos erros 185
de ortografia, bem como palavras suprimidas. Era raro que as relesse; mas acontecia que, às vezes, apôs ter escrito três ou quatro páginas, sentindo que não era exatamente o que devia dizer, pacientemente recomeçava tudo outra vez, até que encontrasse a forma acertada de expressão. O mais das vezes, ia direto ao assunto. Havia, também cartas que ela não chegava a enviar, após tê-las recomeçado duas ou três vezes. A Irmã São José dizia-lhe, às vezes: - Mas, minha Madre, fazei, antes, um rascunho, para não perder duas ou três folhas de papel. - Eu não saberia, respondia ela; não é meu jeito. Enfim, seja qual for sua maneira de escrever, a verdade e que suas cartas sempre propiciavam muita unção de graça às suas filhas, e lhe eram muito benéficas ao coração. Com relação às cartas de maior peso e responsabilidade, tinha sempre o cuidado de lê-las à Irmã São José, não sendo convencida de sua capacidade, desejando, ao contrário, que se lhe dissesse o que poderia haver de deslocado, incorreto ou, melhor dizendo, recebendo sempre opiniões que visavam a corrigi-la, embora nem sempre as pusesse em prática. Quando Irmã São José queria obrigá-la a corrigir erros de ortografia ou de estilo, dizia-lhe: Minha amiga, passai adiante. É preciso que todo mundo saiba que Madre Júlia é uma ignorante e que é o bom Deus que faz tudo. Entretanto, para as pessoas de alta consideração, como os bispos, ela as corrigia, por respeito para com eles. Entre todas as cartas que Madre Júlia encontrou, em seu retorno de Amiens e de Gand, havia uma, enviada pela Madre Vitória, de quem tanto já se falou. Ela estava, por ora, em Rubempré, Esta Irmã não estava satisfeita lá. A saúde se alterara e ela suspirava constantemente pelo momento de poder reunir-se a nós; mas seu espírito inseguro e agitado não queria admitir que ainda não havia chegado o momento, e nossa Madre, de sua parte, não via claro a esse respeito: era isso que a impedia de saber, exatamente, qual deveria ser o tom da resposta. Além da circunspecção que convinha manter, em caso de indiscrição de sua parte, nossa Madre não queria, de forma alguma, pelo amor de sua alma, rejeitá-la totalmente. Por essa razão,
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escreveu três cartas, achando, sempre, que ainda não era o que queria dizer; acabou rechaçando todas as três. Se Madre Júlia era fecunda em suas cartas, ela o era mais ainda em suas instruções: era uma fonte inesgotável. Falava nas conferências, uma hora e meia, quase sem interrupção: eram advertências, quando necessário, instruções frequentes, ensino da religião, diariamente. Quanto a este último, tomava o catecismo nas mãos, mas dele pouco se servia; pois seguia explicando, arrebatada, aspectos da moral, as regras, as virtudes, etc. A graça, atuando nela, fazia com que apontasse o remédio a necessidades, às vezes, ocultas e secretas, de suas filhas. Ela não preparava longamente o que deveria dizer, nem fazia qualquer outra preparação, que não fosse a oração; já quase não lia mais nada, por falta de tempo; mas ela havia lido muito e se cultivara bastante, em sua juventude, auxiliada pelo Padre Dangicourt, depois pelo Padre Pirron e vários outros. Depois, ela havia permanecido, tanto antes, quanto no início de nosso agrupamento, durante dez anos, sob a orientação do Padre Thomas, a maior parte do tempo em solidão e, como ele era um sacerdote instruído, culto, zeloso e comunicativo, disso ela aproveitara muito. Com muita frequência fazia citações da Escritura Sagrada e de outras grandes obras; mas convém que se reconheça que, no tocante a nomes, números e datas, ela, de vez em quando, não era exata. A Irmã São José lhe apontou, sobretudo, este particular, ao que ela respondeu: Isso não prejudica em nada. Sirvo dessas passagens apenas para delas extrair alguma lição útil de moral. Conservo-me no contexto; quem quiser pode encontrar, depois, nos livros mesmos, a exatidão dos fatos. Assim, esta boa Madre não temia ser apanhada em falha; ela estava sempre por cima, distanciada desse amor próprio tão circunspecto, que não ousa arriscar nada; só via o seu Deus e a salvação das almas. Tudo, em Madre Júlia, era simples. Em nada era diferente das Irmãs, exceto a santa comunhão diária, que lhe era permitida e concedida, havia um bom número de anos; foi seu primeiro guia espiritual, Padre Dangicourt, que lhe conseguiu essa graça. Suas orações não eram mais longas que as das outras Irmãs e, muitas vezes, mais curtas até, por exigência das ocupações. A verdade é que, quando pudesse compensá-las, como em certos dias de festa ou em viagens, quando as viaturas se detinham por mais 187
tempo em algum lugar, ela ia diante do Santíssimo Sacramento buscar seu lenitivo espiritual e ficava horas inteiras em meditação. Sabe-se que fora curada milagrosamente. Desde esta cura, nada se pôde verificar, em suas orações, que pudesse descobrir o que se passava entre Deus e ela. Mas durante todo o tempo em que permaneceu presa ao leito ou sobre um sofá, era possível perceber- se que sua oração era de todo sobrenatural. Era vista, diariamente, durante quatro ou cinco horas, absorta em Deus, sem nenhum movimento ou qualquer uso dos sentidos. Sua fisionomia era, então, marcada pelos traços característicos da paz e da doçura que lhe impregnava a alma; às vezes ruborizava. Tinha-se prazer em ir, vir e falar junto dela, ela não se apercebia de nada. Conseguia-se tirá-la deste estado, tocando-a levemente; mas se se fazia isso bruscamente, ela soltava um pequeno grito, depois olhava, sorrindo, e estava sempre disposta a vos escutar. O que se passava então? Apenas os confessores podem falar a respeito, já que ela sempre manteve a maior reserva para com todos, até com suas melhores amigas. O que podemos dizer é que Deus, tirando-lhe sinais exteriores de sua presença, não lhe subtraiu a realidade, pois que toda a sua conduta é um encadeamento de favores de uma Providência especial e particular, que a tem conduzido como pela mão, embora os olhares humanos nada possam ter visto de extraordinário nisso. Não se poderia dizer que Deus, infinitamente sábio, proporcionando sempre os instrumentos dos quais quer se servir, às pessoas sobre as quais eles devem agir, não teria pretendido, como outrora, manifestar seus dons, por causa da dura incredulidade dos homens? Dizei-me, eu vos peço, se há, hoje em dia, chefes de repartição, prefeitos, etc., para quem, a reputação de ser uma pessoa com especiais revelações ou orações extraordinárias, representa um título que lhe dá direito a ser acolhido em sua comunidade? Não será, ao contrário, um motivo para que seja expulso como se fora patife ou louco? Madre Júlia fez uma viagem a St-Hubert, levada pelas necessidades da alma e do corpo, de suas filhas. De lá, dirigiu-se a Liège, a fim de se entender com um negociante e conseguiu tecidos para vestir todas as nossas Irmãs, não só de Namur, mas de outras casas também. A 1º de maio partiu 188
para Gand; havia sido solicitada, para que pudesse providenciar uma capela para as Irmãs da abadia. As pessoas que iriam arcar com as despesas, não quiseram fazê-lo sem sua presença. Ela deveria encontrar, aí, também o Padre Thomas, o qual, tendo um momento livre, aproveitava para vir conhecer nossos pequenos estabelecimentos. Residia, atualmente, em Rouen. Não posso silenciar uma circunstância muito própria para salutares reflexões, e que foi, seguramente, conduzida, como tantas outras, pela Providência, para acabar de destruir, em Madre Júlia, toda espécie de confiança e de apoio em qualquer suporte humano. Disse que o senhor bispo de Gand viajara à Picardia; ele estivera em Amiens e entrevistara-se com Monsenhor Demandolx e o Padre de Sambucy. É preciso que se recorde isso, para entender o que segue. Entretanto, nossa boa Madre não o supunha, absolutamente. Num desses seus longos percursos pela cidade, ocorreu-lhe de passar diante do bispado e, precisando conversar com o Padre Van Schouwenberghe, que fora nomeado superior da abadia, perguntou por ele. Como fosse hora do jantar, e ela ainda não houvesse jantado, esse bom padre insistiu para que ficasse, embora ela se recusasse a isso. Ele lhe disse: Jantareis com o bispo. Foi preciso obedecer. Não foi a primeira vez que teve essa honra; foi tratada com muita bondade. Mas ela reparou bem, durante a refeição, que havia alguma alteração em Sua Excelência, ou alguma preocupação, conforme lhe parecia. No entanto, não se preocupou muito com o fato uma vez que ele retornava de longas andanças, à procura do Imperador (Napoleão), a quem, em Anvers, conseguira apresentar suas homenagens. Napoleão era esperado em Gand e esse era o assunto de toda a conversa que mantinha com os padres, à mesa; não era, pois, de admirar que a presença de nossa Madre passasse despercebida, a qual, certamente, encontrarse-ia totalmente deslocada aí, se não fosse a obediência que a obrigara a ficar. Retirou-se o mais breve que pôde. Nos últimos dias de sua estadia em Gand, achou conveniente ir ter com o Padre Van Schouwenberghe, a fim de falar-lhe sobre a capela e outros assuntos. Como estivesse a entreter-se com ele, de pé, num hall de entrada, aconteceu de o bispo, passar por aí; ao vê-los, exclamou, recuando:
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- Oh! como isso é proposital, a Madre Júlia com o Padre Van Schouwenberghe. Realmente oportuno! Tomais cuidado com ela, pois é capaz de vos seduzir. Já seduziu esta Irmã São José: é uma verdadeira intrigante! O senhor bispo de Namur não a vê com bons olhos! Depois, recuando mais e fazendo certas gesticulações, disse: - Sabeis o que faz Madre Júlia? Não se vê o que ela faz, mas se sente, isso se sente muito bem. Voltara à tona, novamente, a história da disciplina. Dizia tudo isso, dirigindo a palavra ao Padre Van Schouwenberghe; depois, virando-se para Madre Júlia, disse-lhe: - Não vos darei mais superior nenhum; retiro-vos o Padre Van Schouwenberghe. Ela desobedeceu a todo mundo, acrescentou, ao Padre Varin, ao Padre Montaigne; Padre Bruson já não queria que ela deixasse Amiens. - Mas, Excelência, Padre Bruson encontra-se aqui, disse Madre Júlia, podemos conversar com ele. Padre Van Schouwenberghe, que silenciara até aqui, disse: - Mas se as coisas estão neste pé, por que o Padre de Sambucy está
insistindo tanto em ter novamente a Madre Júlia em Amiens?
- Eu não sei, respondeu. Já não compreendo mais nada. É que ouvi coisas, coisas, coisas ... É uma intrigante, só age conforme a sua cabeça. - Mas por que o Padre de Sambucy quererá o seu retorno? - Quantas crianças tendes na abadia, Madre Júlia? - Oitenta, Excelência. - Isso não é nada mau. - Excelência, eu vos peço, dai-nos um superior. - Eu não o tenho. - O Padre Van Schouwenberghe? - Não. Não será ele. - Bem, então outro, Excelência. 190
- Nomear-vos-ei um outro, antes de minha ida a Paris. Era um misto de desprezo, de ridículos, de zombaria, de série: tudo bem próprio a desapegar da terra e elevar todas as nossas afeições, ao único amigo fiel o único apoio sólido. O prelado retirou-se e o Padre Van Schouwenberghe disse: - Mas de onde provém este vendaval? - Não o tinha mais visto, desde sua viagem à Picardia, respondeu Madre Júlia. Oh! Se fosse por causa das Damas da Instrução Cristã, que estão aqui, escreveria uma carta bem salgada ao Padre de Sambucy. Ele manobrava o Padre de Sambucy, porque estas Damas tinham vinculações com ele. Mas deixemos as variações do espírito humano e retornemos a Namur, com o Padre Thomas, Madre Júlia e duas postulantes, que ela trouxera de Gand, no dia 19 de maio. Embora só houvesse, na casa, três ou quatro Irmãs que conheciam o Padre Thomas, - que havia partido de junto de nós fazia já uns cinco anos, - todas se alegraram muito com a sua chegada, porque Madre Júlia falara a seu respeito muitas vezes, como de um bom Pai que lhes poderia ser muito útil, no sentido de sua progressão nas ciências e na virtude. Ele havia passado conosco os dois primeiros anos de nossa congregação, à rua Nova, e lá ele se dedicara e doara grande parte do seu tempo a formar as primeiras Irmãs. Dava-lhes instrução espiritual, corrigia-as continuamente, em sua maneira errada de falar e lhes dava noções de gramática, algumas noções, também, de história sagrada. O Padre Enfantin, na época, também passara um ano conosco, juntamente com o Padre Thomas. Não posso deixar de mencionar sua maneira de agir, com relação à Madre Júlia e devo dizer, também, que, à sua maneira, ele foi muito útil às Irmãs. Este bom Padre Enfantin, que os seus íntimos chamavam de o pequeno padre, não tinha, creio, mais do que vinte e oito anos. Era cheio de zelo e de ardor; o bom Deus atraíra-o a si por vias extraordinárias; passava por vidente, e creio que, realmente, ele tinha visões, salvo senão se souber discernir as do bom espírito, das do mau, o que, muitas vezes, se constitui numa grande dificuldade. Seja como for, ele era muito virtuoso e exemplar, mas um 191
pouco extremado, querendo fazer experiências sobre as almas assim como os médicos e cirurgiões as fazem sobre os corpos. Foi-lhe confiada, pelo Padre Varin, a direção de nossa Madre. Ele percebeu, nela, alguém que oportunizava uma experiência em profundidade, e não a poupou. Ela acabava de recuperar, por um extraordinário favor de Deus e pela sua fé, bem como pelas orações deste bom padre, o uso das pernas. Mas seu estômago a incomodava sempre; havia alguns anos, não podia comer feijão, nem mesmo beber água pura e fria. Ele a obrigou, de início, a beber água pura e fria, misturando-a, às vezes, com cinza e fazendo-a comer pratadas de feijão ou de salada, etc. É impossível imaginar o sofrimento que representou esse regime; seguia-o, no entanto, corajosamente e sem queixa. Às vezes, obrigava-a a comer ajoelhada, no refeitório, diante das Irmãs, e jogava-lhe, bruscamente, um copo de água fria no rosto de tal modo que significasse um misto de zombaria e desprezo. Tratava-a, não raro, mas com muita frequência, com palavras ásperas, as mais desprezíveis, as mais cruéis e isso, perante as Irmãs, provocando cenas que faziam tremer de pavor, simplesmente por causa de algumas faltas leves ou imaginárias, ao mesmo tempo, lançava-lhe olhares que perturbavam as pobres Irmãs, embora tivesse o cuidado de preveni-las; pois, na ausência de Madre Júlia, ele falava sobre isso com suas filhas, fazendo-as saber de que tudo aquilo eram provações para o aperfeiçoamento de sua Madre. Ninguém sabe avaliar o rigor das disciplinas que lhe impunha, seu número e sua rigidez. Obrigou-a a fazer, também, assim que recuperou o uso das pernas, um retiro de dez dias, durante os quais ela não teve um momento de repouso, continuamente em oração, em penitência ou meditação, num celeiro, onde ele a havia confinado. Ouviam-se, às vezes, palavras ásperas que ele lhe dirigia. Se a tratava rigorosamente e com desprezo perante as Irmãs, quando falava em particular com ela, era pior. Não tenho coragem de transcrever os termos ignóbeis de que se servia e não saberei dizer qual a conotação e qual o tom que as acompanhava. Estou mesmo persuadida de que nossa Madre só me fez confidente de uma pequena parcela; ela aceitava todas essas coisas como vindas de Deus e com espírito de penitência. Salvaguardava a intenção e o espírito de zelo do Padre Enfantin.
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Não posso deixar de mencionar uma provação à qual foi submetida. Madre Júlia tinha uma gatinha que, durante doze a quinze anos de sua enfermidade, acalentara-lhe os pés e lhe proporcionara algumas distrações úteis em sua longa solidão. Esta bichana lhe fora dada pelo seu bom guia espiritual, Padre Dangicourt. Seja porque o Padre Enfantin suspeitasse algum apego naquilo, seja porque quisesse levar sua experiência mais longe, lembrou-se, ao ver a gata doente, de dizer à Madre Júlia que era preciso que ela a matasse. Ele não ignorava que nossa boa Madre tinha um horror extremo a esse tipo de expediente; não podia nem sequer ouvir falar. Na cozinha, nunca era ela que dava as ordens, quando se tratava de matar algum animal. Pode-se crer, que isso que se lhe pedia, ultrapassava suas forças naturais; entretanto, era preciso obedecer. Nossa Madre sobe habilmente ao celeiro, apanha a pobre gatinha que estava tranquilamente deitada sobre seu avental; o animalzinho pensa que será acariciado. Madre Júlia desce, com o animal ao colo, até o pátio, põe a gata ao chão e desfecha-lhe uma forte paulada sobre a cabeça; depois abre um buraco e a enterra. Eu certifico de que tudo isso não se fez sem grande violência. Algumas Irmãs assistiram à cena de longe, outras a imaginaram, mas ninguém falou sobre o caso. Padre Enfantin disse-me, mais de uma vez, que estimava profundamente a Madre Júlia; que, para falar-lhe com tanto autoritarismo e aspereza, era preciso que se violentasse, a tal ponto que, às vezes, ele chegava a tremer. Não o fazia por nenhuma espécie de inclinação, pois o demônio, até que se intrometera nessas experiências, tomara-o em sentido contrário. O bom padre confidenciou-me, ainda, que sentia, por ela, sentimentos de desagrado e de aversão, que lhe tornavam insuportável tudo o que ela dizia e fazia, principalmente nos últimos tempos em que esteve conosco. Sabia muito bem que se tratava de tentação e não ligava muita importância ao fato, mas o tom de sua voz e suas atitudes se ressentiam disso. Dizia, ainda, que Madre Júlia havia recebido de Deus graças especiais, raras e privilegiadas; que ele conhecera e tivera a confiança de pessoas diversas favorecidas por Deus de maneira toda particular, mas que nenhuma podia se comparar à Madre Júlia. É de se crer que Madre Júlia estivesse obrigada a lhe revelar tudo, e era em vista desta transparência de alma, que ele podia fazê-la progredir, a passos de gigante, na vida espiritual e que, por isso, podia prever coisas extraordinárias. 193
Mas, vendo que Madre Júlia não correspondia às suas ideias, acusou-a de menosprezo à graça; irritava-se, e Deus, que o destinara a que, por um ano apenas, fosse ocasião de exercício e de mérito para Madre Júlia, não permitiu que ele descobrisse o gênero de mérito que lhe destinara, não devia haver nada de ruidoso, mas antes, Madre Júlia deveria, sob as tênues nuvens de alguma imperfeição, ocultar e abrigar toda a sua virtude, obscurecendo-a, tanto quanto necessário, a fim de preservá-la das influências do amor próprio. Padre Enfantin deixou-nos no dia 24 de agosto, após ter passado um ano em nossa casa, e Padre Thomas o substituiu, no dia 9 de setembro, e esteve, com alguns padres da Fé, em Bordéus. O tempo que esses dois padres passaram conosco foi-nos muito útil. Recebíamos, também, o Padre Varin, quando vinha a Amiens. Tínhamos quartos vazios, sempre à disposição desses hóspedes, e fazíamos muito gosto em servi-los e hospedá-los, e eles, cheios de zelo e do espírito de Deus, pagavam-nos muito bem nossos cuidados, com palavras de edificação e instruções. Mas isso não duraria muito tempo; nossa casa não era considerada, na época, como casa religiosa; era como um começo e um prelúdio, ao qual esses padres davam o tom e o matiz. Mas, uma vez feito isso, as coisas tomariam outro rumo e tudo deveria mudar de aspecto, como, realmente, mudou. Retornemos a Namur. Padre Thomas só permaneceu em Namur por dez dias, durante os quais ocupou-se com visitas a todas as aulas e a dar, às Irmãs e às crianças, todo tipo de lições. Fez, também, algumas conferências piedosas na capela, que, certamente, foram úteis a grandes e a pequenos. Insistiu-se com ele, para que retornasse em setembro, mês das férias, e ele prometeu que viria. Partiu dia 29 de maio, com Madre Júlia. Passaram por Gand e foram a Amiens, onde o grande negócio dos 11.400 francos, que o Padre de Sambucy nos devia, terminou de maneira sensata, uma vez que nos deram quatro notas promissórias, resgatáveis em várias datas. Nossa Madre entreteve-se, por alguns instantes, com Madame de Franssu, que estava doente; depois foi a Montdidier, com o Padre Thomas, que lá tinha negócios.
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Nossa Madre precisou, também, dar algumas voltas pelos arredores. Esteve no colégio onde Padre Sellier informou-a de que deveria ir a Paris, distante dezoito léguas de Montdidier. Lá estava o Padre Leblanc, que queria, com muita insistência, falar com ela, porque tinha muitas coisas a lhe comunicar. Ela não se sentia atraída, de forma alguma, a essa viagem, mas, por acatamento à vontade desses padres, resolveu ir. Durante dois dias teve que aguardar a diligência. Chegando a Paris, lá não encontrou o Padre Leblanc, mas ficou à espera dele, durante dois dias. Encontrou, em Paris, Madame Leclerq e Madame Doria, aquela, havia-lhe emprestado a casa de Bettencourt e era religiosa da Visitação. Encontrou-se, também, com o Padre Montaigne, a quem ela relatou tudo o que nos dizia respeito; tudo o que o zelo pela glória de Deus achou interessante relatar. Comunicava-se, frequentemente, com seu amigo, o Padre Varin, o qual, embora não escrevesse mais à Madre Júlia e de quem ela não recebia, direta nem indiretamente, ordens nem conselhos, não deixou nunca de se interessar por nós, pela maior glória de Deus e a salvação das almas, assim como nós jamais deixamos de ser reconhecidas para com ele. Retornando de Paris, Madre Júlia se deteve em Plessiers-St-Just, que ficava a três léguas de Montdidier, onde Padre Trouvelot, que desempenhava as funções de pároco, lhe havia formado algumas postulantes. Escolheu três, que trouxe para Amiens, para depois ir a Gand. Passando por Courtrai, encontrou lá mais duas, que estavam dispostas a acompanhá-la. Ela já as vira em outras ocasiões, em suas viagens. Talvez nos pareça estranha a maneira como as recrutava, à moda militar. Ela não podia, é óbvio, fazer todas as entrevistas e exames, antes de as admitir, mas, na casa mãe, fazia-as aguardar durante um certo período, para submetê-las à provação, antes de ingressarem no noviciado. De qualquer maneira, para ela era sempre motivo de muita tristeza e trabalho quando algumas Irmãs não se saíssem a gosto, as quais deveriam ser mandadas de volta para suas casas. Na maioria das vezes, era preciso que ela mesma as levasse, pois que, sendo jovens, não podia despedi-las e deixá-las ir sozinhas, em viaturas públicas. Ela sabia demais o que se passava e o que se dizia nessas viagens. Desta vez, no dia 29 de junho, ela levou em sua companhia, para Namur, quatro postulantes deixando algumas em Gand. Retornou a essa 195
grande cidade no dia 28 de julho; havia prometido de lá vir novamente, a fim de assistir à primeira missa na capela da casa de Nonnenbosch. Soube, nesta ocasião, que a jovem Irmã Firmine, da casa de Jumet, andava muito atormentada por tentações contra a vocação e que sua superiora já não sabia o que fazer para ajudá-la. Esta boa Madre aproveitou a ocasião para ir a Jumet e teve a satisfação de deixar a Irmã bastante tranquilizada. Em Gand, encontrou a capela concluída, mas desprovida do que é necessário para rezar a missa: não havia cálice nem paramentos, em uma palavra, não havia nada. Entretanto, ousou dizer ao Padre Van Schouwenberghe que ela desejava muito que a santa missa fosse rezada no dia de São Pedro atrás das Grades, a 1º de agosto; foi na véspera que ela lhe falou. O padre perguntou-lhe se ela tinha tudo o que fosse preciso: Não tenho nada, disse ela, mas tenho a confiança de encontrar tudo o que for necessário. Com efeito, o bom Deus a atendeu da maneira como ela esperava e, no dia seguinte, teve tudo o de que necessitava, quer por empréstimo, quer por oferta. Teve, assim, a felicidade de assistir ao santo sacrifício nesta nova casa e tiveram, também, comemorada a sua primeira sexta-feira deste mesmo mês de agosto de 1810; mas ainda era vedado de tê-la todos os dias. Depois, viu-se obrigada a partir novamente, porque a aguardavam em Stavelot, na diocese de Liège, onde a haviam solicitado para tratar de um novo estabelecimento. Encontrou, lá, prós e contras: a casa, que era uma antiga casa religiosa, era o que ela desejava, quase grande demais; mas tudo caiu por terra, quando soube que uma parte era habitada por um dono de pensão, o que não lhe haviam dito; caso contrário, ela não se cansaria a vir até aí, pois não queria esse tipo de mistura. Com toda precaução que se tomasse, parecia-lhe sempre temeroso a convivência de crianças dos dois sexos. Empreendeu a viagem de volta e não pensou mais no assunto; entre os gastos e a fadiga, estava quite. Voltou à casa de Namur no dia 10 de agosto. Quando deixou Gand, para ir a Stavelot, fizeram-na prometer que retornaria oito ou dez dias após, porque o Padre Bruson pregaria um retiro às Irmãs e ele julgava que sua Madre poderia ser-lhes útil; ela mesma teria gostado de participar, mas o bom Deus dispôs tudo de outra maneira. O Padre de Sambucy escrevera, nesse meio tempo, no intuito de mostrar sua boa vontade para com nossa Madre; ele pretendia, no decorrer do mês de agosto, reembolsar o 196
total da soma, que não foi possível fazer antes, da qual já havia quitado quatro notas; pedia que se lhe indicasse alguém por quem pudesse remeter a importância, ao mesmo tempo que lhe levasse a nota. Esta circunstância pareceu, à Madre Júlia, um dispositivo da Providência que ela não podia deixar de aproveitar. Teria preferido evitar a viagem para Amiens, mas, não encontrando a quem pudesse enviar, pensou em ir pessoalmente. Nessa meio dúvida, partiu para Gand; era, em todo caso, uma viagem que tinha o direcionamento de Amiens, caso decidisse, efetivamente, ir até lá. Esperava encontrar, junto ao Padre Van Schouwenberghe, algum impulso. Com efeito, o Padre de Sambucy, que vinha se empenhando em destruir as más impressões que ele sabia ter causado contra Madre Júlia, no espírito deste bom sacerdote, - com o qual mantinha correspondência, acabava de lhe escrever. Dizia que Madre Júlia não tinha razão em mostrar tanta desconfiança, que ele o provaria, uma vez que lhe remeteria toda a importância, que o dinheiro estava só aguardando determinações dela. Quando nossa Madre foi consultar o Padre Van Schouwenberghe e que ambos perceberam as despesas inúteis que poderiam causar se enviassem um terceiro, não obstante ela insistisse na repugnância que lhe causava a ideia da viagem, os motivos aduzidos na carta fizeram com que o sacerdote lhe aconselhasse de ela ir pessoalmente, e ela foi. Chegando em Amiens, foi, imediatamente, à procura do Padre de Sambucy, no Oratório, isto é, na casa das Damas da Instrução Cristã onde lhe dissera que se encontraria. Lá, informaram-na de que o padre estava a pregar um sermão, que era impossível falar com ele, que em breve chegaria também o bispo. Teve que se retirar. Falando com o escrivão, soube que o Padre de Sambucy não tinha, ainda, o dinheiro em mãos, mas que, certamente, o teria em breve, que ele havia feito um recibo a propósito e que, desta vez, não lhe escaparia. Isso fazia com que Madre Júlia pressentisse o aborrecimento de uma viagem inútil. Ela teria motivo para queixas, mas o tempo não lhe permitiu: a começar pelo próprio tabelião, que a mandou chamar, pois Leonardo e o Padre de Sambucy dirigiram-se para lá imediatamente, reprovando-a por ter sido tão apressada. Deixou os quatro recibos com o tabelião e voltou, com as mãos vazias, infeliz, segundo a maneira humana de pensar; pois, embora o bom Deus a sustivesse maravilhosamente, ela não deixava de sentir as incomo197
dações e os cansaços, dos contratempos e das viagens, tão longas e tão intensas, chegando a passar noites inteiras em charretes e, ainda mais, seus sessenta anos de idade. Deteve-se um pouco em Gand e, neste mesmo dia 25 de agosto, retornou a Namur. Era admirável como, no retorno de suas viagens longas, penosas e frequentes, no dia seguinte era vista disposta, agindo como se não tivesse nem deixado a casa, dispondo tudo o que lhe competia. Pode-se, a propósito, aplicar-lhe a passagem de Isaías: Os que esperam no Senhor renovam suas forças; tomam seu impulso como as águias, correm sem se cansar, avançam sem se fatigar. No dia seguinte ao de sua chegada, ocupou-se, como de costume, a distribuir pequenos prêmios às crianças de nossa escola. No fim do mês de agosto, a distribuição era feita com solenidade, livros e outros brindes, e, em seguida, se lhes dava férias. Até então, as férias se estendiam por todo o mês de setembro, mas Madre Júlia exortou os alunos que não ficassem fora das aulas todo o mês, que a metade seria suficiente, e fê-lo de tal modo, que quase todos retornaram antes do dia 20. Nossa Madre percebia que as Irmãs tinham necessidade de repouso, após um ano de trabalhos; mas, de outro lado, ela via os inconvenientes que as férias representavam para as crianças, que desejou, se fosse possível, suprimi-las de todo. Padre Thomas chegou a Namur, conforme havia prometido, no fim do mês de agosto e o retiro iniciou a primeiro de setembro. As Irmãs de Jumet e de StHubert estavam em nossa casa, para gozarem de suas férias e participarem do retiro que o Padre Thomas pregaria. Nossa boa Madre sacrificou-se, também desta vez, por suas filhas, para que todas elas pudessem participar do retiro. Encarregou-se da cozinha e de tudo o mais, com duas ou três flamengas que não tinham condições de entender as conferências do Padre Thomas. Esse bom sacerdote não se poupou em nada, falava cinco vezes ao dia, com empolgação e muito sucesso. Ele permaneceu conosco, após o retiro, alguns dias mais. Durante sua curta permanência, Madre Júlia discorria com ele, sobre planos de novas fundações, no sentido de se providenciar uma capela mais espaçosa, ou uma enfermaria, ou mais salas de aula, rogando a Deus para que sua santa vontade sempre fosse conhecida em todos esses empreendimentos.
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Havia, também, uma circunstância que, desde muito, a inquietava e parecia ter chegado a seu término, nessa época: é que seu sobrinho lhe era motivo de inquietações e descontentamentos e prometia-lhe pouco para o futuro. Aos poucos, ela foi-se decidindo a reenviá-lo a seus pais e dizer-lhes que o fizessem aprender alguma profissão, temendo que, após ter dispendido seu tempo nos estudos, se visse incapacitado de ganhar-se a vida de alguma maneira. Padre Thomas confirmou-a nesta ideia e teve a complacência de levá-lo, ele próprio, a Amiens, onde sua mãe, que fora avisada, veio buscá-lo. O bom Deus não permitiu que Madre Júlia tivesse qualquer compensação por parte da família; embora tivesse se preocupado com eles, mais em vista da glória de Deus, do que pela recompensa dos seus, em nada teve êxito. Deus é infinitamente bom em seus ciúmes; permite que todos se afastem, que os parentes nos aflijam, que os amigos nos julguem, murmurem contra nós e nos desprezem. Pequenos incidentes, nulidades em aparência, servem, nos desígnios de Deus, para desapegar o coração e dar-lhe o último burilamento. Creio que o pequeno episódio que vou relatar entrou nesses planos da particular Providência que Deus tem para com seus escolhidos. Padre Thomas, antes de partir, solicitou, à Madre Júlia, a devolução de um cálice e um paramento, que lhe pertenciam. Fê-lo duas ou três vezes. Ele tivera a bondade de nos enviar, outrora, um outro, era justo que se lhe devolvesse o seu. Madre Júlia estava igualmente disposta a entregar-lhe o paramento, mas estava ocupada com inúmeros outros afazeres; parecia-lhe, ademais que o Padre Thomas não tinha necessidade dele no momento e que lho pedia mais como que por displiscência, que poderia levá-lo noutra oportunidade. Era a véspera de sua partida, e não havia caixa apropriada para embalar tão preciosos objetos e, além do mais, Madre Júlia acabara esquecendo, assim que Padre Thomas partiu sem que, aparentemente, ela não tivesse mostrado nenhuma boa vontade sobre o assunto. É preciso que se diga, ainda, que ela havia insistido com ele, para que permanecesse mais oito ou dez dias, para o bem e utilidade de suas caras filhas. Padre Thomas tinha suas razões para não aceder ao convite; e como era de índole bondosa e inclinado a obedecer, sofria com essa insistência, que se tornara quase uma violência. Ele se persuadiu, não sei por que estra199
tagema do inimigo comum dos homens, que as Irmãs estavam perdendo sua confiança nele, já em vista dos pedidos e das recusas de que haviam sido testemunhas. Eis que, algumas semanas após sua partida, Padre Thomas escreveu à Madre Júlia: No momento, devo dizer-vos, minha boa Madre, que fiquei surpreso com o descontentamento que em vós percebi, quando anunciei minha partida; mais um pouco, e vós teríeis trazido todas as vossas filhas para me julgar e me condenar. Temo, sinceramente, que isso venha em prejuízo dos frutos do retiro. Foi para me punir, que me recusaste os objetos que tanto vos solicitei? Se quis partir, eu tinha minhas razões para isso, e poderíeis, sem inconvenientes, respeitá-las. Se vos pedi o cálice e os paramentos, é porque gosto de me servir deles e já não o posso fazer, porque os guardais. Obrigastes-me a pensar que tenha sido intriga de vossa parte. Acho esse espírito tão diferente do de Jesus Cristo, e acuso-me de vô-lo atribuir. Viva a simplicidade! Assim como São Francisco de Sales, eu daria cem serpentes por uma pomba. Eu não sei agir de maneira mais fina, etc. Eu não posso dizer que Madre Júlia não tenha se aborrecido de todo, com a leitura dessa carta, pois vinha de um amigo; mas direi que não o deu a perceber; que ela, imediatamente, mandou preparar uma caixa, pôs os objetos em seu interior e os enviou, no mesmo dia, com uma carta que nada transpirava em termos dos sentimentos a que o padre fizera alusão, porque ela já não pensava nisso, mas que aproveitou no sentido do desapego. Dizia de vez em quando, rindo, à Irmã são José: Só tenho a vós; qualquer dia, vós também me fareis algum logro, isso vai acontecer. Mas isso não aconteceu. Quando se esgotou o tempo de férias, Madre Júlia pediu às Irmãs de Jumet que regressassem, bem como as de St-Hubert; ela ficara com uma em Namur e a trocara por outra. É que achou que seria vantajoso que ela fosse, para seu próprio benefício e para exercitá-la. Assim, partiram, 200
em quatro, numa pequena charrete. Foram recebidas pelas crianças, com alegria e com aclamações, o que prova sobejamente o reconhecimento e a afeição dessas pobres meninas. Elas haviam chegado bem antes que suas mestras, haviam preparado uma refeição, às próprias custas, na casa das Irmãs, cuja chave elas guardavam. Quero interromper-me, aqui, para não mais o repetir depois, e dar uma ideia do que se passava em todas as nossas escolas, porque o apego das crianças é o mesmo em toda parte onde estão nossas Irmãs. Madre Júlia vigiava continuamente para que esta afeição fosse dirigida, pelas mestras, de modo a excitar e manter as crianças no cumprimento de seus deveres, e que não degenerasse em puerilidade, menos ainda, que não ocorresse de, as mestras, terem preferências por umas, mais do que por outras. Era uma das coisas que ela via como sendo a ruína das escolas. Uma Irmã que se mostrasse fraca, nesse ponto, devia mudar ou ser mudada de escola. Quando pretendeu voltar, não encontrou nenhuma condução, nenhuma outra oportunidade, que não fosse demasiadamente cara; e esta boa Madre visava sempre a santa pobreza. Decidiu, pois, percorrer a estrada a pé. São quinze léguas, até Ardennes; é uma região montanhosa, com subidas e descidas íngremes. Partiu à tardinha, e pernoitou a três léguas de distância; restavam-lhe ainda doze, que ela pretendia fazer em dois dias. No caminho, encontrou um capitão e um sargento, rapazes de vinte a vinte e quatro anos, que também iam para Namur. Achou-os tão honestos e tão agradáveis como companhia, que preferiu segui-los do que arriscar-se a andar sozinha por aquelas estradas. Fazia muito calor e ela estava, conforme seu costume, muito agasalhada; não tinha vestido de verão; ademais, tinha sua capa embrulhada, debaixo do braço e sua mala de viagem, bastante pesada, debaixo do outro. Seguia, assim, esses dois militares, que se mostravam bravos, cheios de zelo, de ambição e de amor à sua causa. Um deles acabava de passar a capitão; sentia-se num arrebatamento extraordinário, a ponto de exprimi-lo com palavras cheias de ardor. Quando Madre Júlia o escutava, excitava-se ainda mais pela milícia à qual havia sido convocada. Darei até a última gota de sangue pelo meu imperador, dizia ele. E eu, dizia ela em seu íntimo, não darei ao meu, tudo o que ele quiser de mim? 201
Ela disse que suas palavras animavam seu passo e inspiraram-lhe atos de amor a Deus: tudo é útil às boas almas. Ademais, ela influenciava, com seu zelo, o coração de suas filhas; quando chegava a casa, extraía, de suas viagens, tudo o que lhes pudesse ser útil, e lho relatava, animando-as. Seus companheiros de viagem, à porta da cidade, separaram-se e quando, finalmente, chegou em casa, bateu à porta com todas as forças, para que não a fizessem esperar; pois ela iria, diz ela, cair na rua. Suas forças haviam chegado ao fim. As Irmãs, tendo-se reunido, ao som da campainha que sempre tocava quando ela chegasse, ouviram-na dizer, enquanto passava pelo meio das filas: Não posso falar com ninguém: depressa meu quarto, uma cadeira, uma roupa, uma cama. Ela gotejava suor. Não comera, durante a caminhada de doze léguas mortais, senão um ovo e um pedaço de pão. Durante as viagens, era de uma extrema frugalidade; isso provinha de sua grande repugnância pelos albergues. Passou uma noite muito agitada; temia-se encontrá-la enferma no dia seguinte. Descansou até uma hora além do costume, teve uma certa dificuldade em subir a escada, mas nada mais além disso. Retomou, no mesmo dia, todas as funções de costume.
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Capítulo 8 ESTE CAPÍTULO CONTÉM A VIAGEM QUE MADRE JÚLIA FEZ A AMIENS, NO MÊS DE OUTUBRO DE 1810, PARA RECEBER O DINHEIRO QUE NOS FORA DADO PELA MADAME DE FRANSSU E QUE ESTAVA EM PODER DO PADRE DE SAMBUCY. ACABA COM O RETIRO DE 1812. Poucos dias após o seu retorno de St-Hubert, Madre Júlia recebeu uma carta do tabelião de Amiens, em cujas mãos havia deixado os recibos do Padre de Sambucy; dizia-lhe que, desta vez, o referido padre tinha o dinheiro em mãos, e que queria que os recibos fossem quitados, razão por que ela não poderia deixar de vir. Três dias após ela recebeu outra carta, do Padre de Sambucy, que lhe pedia para que não o fizesse ficar por mais tempo com o dinheiro, mas que ela poderia indicar um intermediário para fechar o negócio. Era impossível, para nós, assim que ela se viu na emergência, de uma maneira ou de outra, de precisar voltar a Amiens. Alugou uma condução com quatro lugares, porque levaria duas Irmãs consigo, até Gand. Foi-lhe possível conservar a viatura até Amiens; já que tinha dinheiro a trazer, na volta, pareceu-lhe que assim seria mais seguro do que na diligência; mas achou que uma religiosa sozinha numa viatura, era um espetáculo bem pouco de acordo com a santa pobreza, de que fizera profissão. Mandou de volta, portanto, a condução para Namur e alugou um pequeno cabriolé, para chegar até Amiens. A Providência, que velava sobre ela, não permitiu que ela embarcasse assim, sozinha com um homem desconhecido, tendo uma enorme soma de dinheiro a transportar. Madame de Vercruysse de Courtrai, que ela conhecia bem e em cuja casa pernoitara, algumas vezes, encontrou-a perto da abadia. Ela pretendia voltar para casa justamente neste dia e viera à procura de Madre Júlia, para oferecer-lhe um lugar em sua viatura. Nossa boa Madre disse-lhe que já tratara com outra viatura e que, portanto, não poderia aceitar; mas a 203
senhora a constrangeu de tal maneira, que Madre Júlia achou bom enviar a Irmã Catarina a ver se o homem com quem havia tratado, concordaria com isso. Para encontra-lo, a Irmã dirigiu-se, primeiramente a um outro condutor, que lhe deu informações; ao falar com aquele com quem havia sido tratada a viagem, a Irmã foi muito mal recebida; ele deixou bem claro que não queria saber da intriga e que a viagem deveria ser paga. No entanto, após apontadas as razões, ele se acalmou e disse-lhe que, já que a senhora havia encontrado solução melhor, deveria aproveitá-la. Nossa cara Madre chegou, portanto, sem despesas, a Courtrai. Não foram necessárias viaturas particulares, mas sua viagem avançou pouco, pois teve que tomar uma diligência e, devido a contratempos de condução, foi obrigada a percorrer dez léguas a pé, antes de chegar a Amiens. Chegando lá, seu primeiro cuidado foi procurar o Padre de Sambucy; mas, desta vez, ela não chegou a vê-lo; estava ocupado junto a um doente e foi o tabelião que concluiu o negócio. Madre Júlia chegara no domingo, ao meio dia, e foi procurá-lo no mesmo dia. Ela tinha que resolver, também, um negócio antigo, junto a esse mesmo tabelião, referente a um terreno que pertencia à Irmã São José. Esta propriedade estava em poder de um arrendatário, que residia longe dali, e que o negligenciava. Como, não se deve fazer esse tipo de negócios em dia de domingo, o tabelião disse à Madre Júlia: Voltai amanhã, às sete horas! Nossa boa Madre foi exata no horário estipulado. Leonardo, de sua parte, havia trazido o dinheiro do Padre de Sambucy; ele só devia mais 10.400 francos; o dinheiro todo foi posto num cesto grande, sem ser recontado. O tabelião acrescentou, da sua parte, 4.500 francos, que foi posta de lado, em outro cesto menor. Quando tudo estava concluído, nossa Madre pediu a Leonardo a que a ajudasse a levar todo este dinheiro até a diligência, que haveria de sair às oito horas, e ela o seguiu de perto. Uma vendedora, em cuja casa ela pernoitara, disse-lhe: O quê! Me-
ter-vos-eis numa diligência com todo este dinheiro? Oh! Se fosse eu, jamais o faria!
Realmente, não era coisa segura. Entretanto, nossa Madre não se atemorizou; sem ser temerária era corajosa e confiava cegamente na proteção de Deus, a quem recomendou sua viagem, bem como a todos os anjos. 204
Colocou o grande cesto entre suas pernas e o pequeno, em seu avental, que amarrou com um nó, para que ficasse mais seguro; e, tudo arranjado, da melhor maneira possível, partiu, sob a guarda de Deus. Havia levado pão consigo e em momentos de parada, quando os passageiros desciam para almoçar ou para jantar, ela comia seu pequeno pedaço de pão, na viatura. À noite, no entanto, foi preciso descer; era embaraçoso. Teve o cuidado de ser a última a descer e dispendeu muita força para retirar seu grande cesto, que era extremamente pesado. Levou-o, com uma força extraordinária, até o pé de uma escada, onde encontrou o empregado da casa, a quem disse: Meu amigo, tenho um grande cesto, muito pesado. Você poderia me ajudar a carrega-lo até o quarto onde vou dormir? Livros, são coisas realmente pesadas! Disse ela ainda, porque havia colocado alguns por cima. Este homem pegou no cesto e só com muita dificuldade pôde carregá-lo. Madre Júlia o acompanhou de perto, com seu cesto menor, contendo 4.500 francos, em prata branca. Enfim, uma estação estava vencida! Encontrava-se em Arras e, ordinariamente, ela tomava ali, a diligência de Lille, que tornava a partir às dez horas da noite, mas ela não ousou embarcar à noite, com todo aquele dinheiro e, no dia seguinte, não havia mais diligência; foi, preciso procurar outra viatura. Felizmente, encontrou um condutor que só tinha um militar para a sua condução. Ele iria pernoitar em um local afastado de Lille, mas seria possível arranjar uma diligência. Não havendo outra saída, nossa Madre arriscou esta. O problema era, de manhã, fazer descer toda esta bagagem que a embaraçava demais. O bom Deus enviou-lhe, ao quarto, uma boa e corpulenta empregada, a quem ela disse: Minha cara amiga, eu tenho dois cestos que são um tanto pesados; você me faria o favor de ajudar-me a leva-los até lá em baixo, no fim da escada? A doméstica tomou o cesto que não imaginara fosse tão pesado. Tornou-se vermelha, depois escarlate... Madre Júlia a encorajava e ajudava como podia. Afinal chegaram ao pé da escada. Ah! Minha boa amiga, já que você foi tão excelente, ajude-me a levá-lo até a viatura. Nossa Madre subiu, depois do cesto, e ninguém mais conseguiu fazê-la descer, embora viessem dizer-lhe: Vinde aquecer-vos, os cavalos ainda 205
não estão prontos! Ela lá estava, como que pregada. Seu companheiro de viagem chegou com urna grande espada que metia medo; com facilidade poderia cortar-lhe a cabeça. A viagem transcorreu, no entanto, bem feliz; mas, descendo da viatura, não houve meios de esconder o cesto. Quando o militar havia descido, o condutor, que viera em auxílio, pôs a mão por baixo e crendo levantá-lo com facilidade, surpreendeu-se com tanto peso. - Ah! mãezinha, disse ele, tendes ovos bem pesados aqui dentro! - É verdade, disse Madre Júlia, ovos, são muito pesados. Havia, de fato, alguns no cesto. - Gostaria de ter alguns destes ovos, disse ele. A brincadeira não deixou de inquietar nossa boa Madre. Encontrava-se num albergue em que jamais estivera e onde, não sei por quê, o dono lhe fez tantas reverências, mostrou-lhe tanta amizade, que lhe pareceu algo de estranho, que a intranquilizara. A dona do albergue veio, pessoalmente, compor-lhe a cama, deu-lhe bonitos lençóis, bem trabalhados e acomodou-a como se fosse alguém de muita consideração. Nossa Madre não dormiu bem; em seu belo e cômodo leito; disse ter oferecido a Deus o sacrifício de sua vida e preparou-se para a morte; mas nada lhe aconteceu. Ficou livre do medo. No dia seguinte, embarcou na diligência, onde ela mesma depositou seu inquietante cesto, não sem muito esforço, mas com a força que Deus lhe dava. O condutor obrigou-a a pagar mais do que o estipulado, em vista do esforço que ele havia dispendido no carregamento. Chegaram a Lille pelo meio-dia. Ela fez parar a viatura diante da casa de um senhor Malingié, com quem tinha necessidade de conversar. Este senhor, vindo à porta, fez-lhe cortesias e insistiu para que descesse e almoçasse com ele, porque era exatamente a hora do almoço. Ela não sabia como se livrar do embaraço e viu-se obrigada a segredar-lhe, no ouvido, o motivo que a prendia à viatura. Depois, pediu-lhe que viesse até o albergue, para poderem conversar. Desceu, desta vez, da condução, sem que ninguém se envolvesse em seus afazeres; mas foi preciso permanecer no pátio, para tomar conta dos dois cestos. Várias vezes quiseram levá-los até o escritório, enquanto aguardava o embarque. Ela teve certas dificuldades em se desembaraçar dessas delicadezas importunas. 206
Enfim, o senhor Malingié1 chegou; tratou com ele sobre negócios, depois pediu-lhe que carregasse os cestos até a diligência, o que ele fez com muita dificuldade. Felizmente que esta diligência para Courtrai encontrava-se neste mesmo albergue, pois a dificuldade teria sido bem maior, se fosse preciso atravessar parte da cidade, como já acontecera à Madre Júlia, em outras viagens, carregada de bagagens, trocando continuamente de diligências. Após terse livrado de um mau momento, seguia-se-lhe outro. Ela esperava poder pernoitar, em Courtrai, à casa de Madame Vercruysse, mas não sabia como ir até lá, saindo do albergue. Não vendo nenhuma saída, entregou o caso nas mãos de Deus, como costumava. Pode-se facilmente imaginar, como, ao longo da estrada, ela tinha o coração e o pensamento elevados para Deus, e rezava: Meu bom Deus, tirai-me do embaraço! Este era seu costume, em toda e qualquer ocasião. Quando entraram em Courtrai, numa grande rua central, veio-lhe à mente a ideia de perguntar aos passageiros, se não havia, nesta rua um tal de senhor Vercruysse. - Há vários, disseram-lhe. - Mas um que vende fios para renda? replicou. - Há vários, disseram-lhe ainda. - Mas um que tem uma grande casa junto à rua? - Estais frente a frente com ela! - Oh! eu vos peço, mandai parar a diligência! A diligência parou. O senhor, a senhora, a família e a empregada, todos se achegaram à porta. O cesto passou, nesta ocasião, por várias mãos, que chegaram a sentir seu peso; mas, uma vez em casa desta senhora, tudo estava seguro, embora a senhora tivesse certo receio, por causa do pessoal da diligência, que, talvez, tivessem percebido do que se tratava. Quanto à Madre Júlia, ela estava muito tranquila, testemunhou seus agradecimentos a seus hospedeiros e, no dia seguinte, despediu-se deles. 1. Este é também o nome do pároco de São Pedro. É sem dúvida, um parente próximo deste último, que residia em Lille. Madre Júlia escreveu, na Carta 208 de 9 de maio de 1812: “O senhor pároco de São Pedro vai a Lille com o padre Lemaire; eles têm a bondade de me dar um lugar em sua viatura.
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Foi preciso, desta vez, tomar a diligência bem mais longe; mas a Providência dispusera de tudo, dando à empregada de Madame Vercruysse, a força e a vontade de carregar o cesto. Sua patroa havia dito, na véspera, que sua empregada sentia dor embaixo dos dois braços, de maneira que a pobre coitada carregou o cesto com grande sofrimento, Madre Júlia quis dar-lhe algum dinheiro, o que ela recusou decididamente; disse que fizera este trabalho por amor a Deus, e que, por isso, não aceitaria nada. Chegando a Gand, era preciso ir até uma de nossas duas casas; as duas ficavam bastante afastadas da Praça de Armas, onde parou a diligência. Era impossível pensar que Madre Júlia pudesse transportar os dois cestos: eis um ponto quase enigmático; Deus, habitualmente, a conduzia por este caminho. Em tudo o que ela fazia ou empreendia, preocupava-se em saber se Deus queria tal coisa, essa era a única iluminação de que precisava para agir; pois, na maioria das vezes, ela não sabia como encontrar a saída. Nesta ocasião, a Providência assistiu-a, enviando-lhe, à Praça onde estava a viatura, logo que dela desceu algumas alunas de nossas escolas, que se puseram a gritar: Eis nossa Madre! Eis nossa Madre! Eram oito e meia da noite, quase não se enxergava mais ao caminhar. Nossa Madre ficou feliz ao ouvir a voz destas meninas. Cumprimentou-as e deu-lhes demonstrações de carinho, pedindo a uma delas, que fosse à casa das Irmãs de São Pedro, dizer-lhes que enviassem a Irmã ecônoma. Esta boa Irmã chegou; nossa Madre explicou-lhe a causa do seu embaraço e estimulou-a a que se animasse de coragem para carregar o cesto, pois era longe. Paravam de pouco em pouco, davam-se mais alguns passos; felizmente que era tarde e via-se pouco. A pobre Irmã, no entanto, procurava não demonstrar cansaço, para não trair o que havia no cesto. Enfim, um pouco além da metade do caminho, frente à porta de uma grande casa, derrubou o cesto, já exausta. Era justamente a casa do senhor Lemaire negociante, do qual já se falou. Quando Madre Júlia se deu conta da situação tocou a campainha; o próprio senhor Lemaire apareceu, ficando surpreso e contente de a ver. Ela lhe contou o contratempo em que se via, e pediu-lhe que guardasse o dinheiro em sua casa. Ele concordou em que estaria bem mais seguro ali do que em casa das Irmãs; mas, não podendo 208
assumir o compromisso de guardá-lo, sem contá-lo, disse à nossa Madre que deveria voltar no dia seguinte, pela manhã. Ela foi-se, depois disso, contente e aliviada por ter o episódio, acontecido justamente diante da porta deste bom senhor. No dia seguinte, contou-se o dinheiro e, enquanto contavam, Madre Júlia disse ao senhor Lemaire: Veio-me uma ideia: vós podeis utilizar este dinheiro em vossos negócios e, por caridade, dar-nos-eis o que quiserdes, se vos aprouver. Quando Madre Júlia retornou de Gand a Namur, lembrou-se de algo que se tornava inevitável; teria de viajar novamente, recém-chegada, para devolver a seus familiares, a doze léguas de Amiens, Felicidade Chary, que a Irmã São José trouxera para Namur, quando de sua saída de Amiens. Era uma jovem de dezessete anos, que, de um estado de força e de saúde, decaíra num langor acentuado, provocado por excessos no trabalho e temperaturas contraídas. Ela parecia atacada do peito e ameaçada de definhar sempre mais. Não tínhamos, ainda, enfermaria e, como ela não era nem noviça, mas apenas postulante, não existia a obrigação de conservá-la; mas, acima de tudo, a esperança de que o ar de sua terra pudesse ser-lhe favorável e o temor de que, mais tarde, ela fosse incapaz de viajar, eram razões que pressionavam Madre Júlia a que reencetasse uma longa viagem, a mais dispendiosa e a mais sacrificada de todas quantas tinha lembrança até então; no entanto, era preciso enfrentá-la e pôr-se novamente a caminho, mal chegada. Por que, perguntar-se-á, não tê-la levado consigo quando foi buscar o dinheiro do Padre de Sambucy? Por quê? É que nem tudo se pode prever e é preciso ir comprando a vida eterna através de sofrimentos e trabalhos. Aliás, ela não estava, quando Madre Júlia partiu, tão doente quanto agora. Seja como for, nossa Madre esteve seis dias a caminho, com sua pobre jovem enferma, para com a qual ela procurou ter todo o cuidado possível e que apesar de tudo, não deixou de sofrer muito e fazer sofrer também a Madre Júlia, devido aos frequentes vômitos e cólicas que a afligiam. Não seria possível relatar todos os pormenores desta viagem. Chegaram, enfim, à casa do senhor Chary, seu tio padre. Ele fora avisado. Recebeu, com reconhecimento, a Madre Júlia, que ele conhecia e estimava, chegando, mesmo, a pagar-lhe a viagem. Um mês depois, es209
creveu à Namur, à Madre Júlia, um longo relato da morte desta jovem,1 que foi das mais edificantes. Ela morreu a 12 de dezembro de 1810. Sua vinculação e sua estima por nossa casa não se apagaram de seu coração e foram mencionadas ainda nos últimos dias de sua vida. É de se crer que os sofrimentos tão intensos que suportou a tenham purificado das faltas de sua juventude e, embora não tenha chegado a ser noviça, porque não foi, talvez, achada bastante madura, pode-se dizer que ela teve o noviciado do desejo e que ela não nos é estranha. Trabalhou muito em seu caráter; era obediente e muito esforçada em tudo; a pobre jovem foi-nos enviada pela Providência, para ser iniciada nas vias da salvação, pois que era bem grosseira e ignorante quando chegou em nossa casa, três anos antes de sua morte. Ela só era conhecida, em seu vilarejo, como ela mesma contava, como a criança mais traquinas do lugar, e Deus, todo bondade, conduziu-a de tal modo, que, pode-se dizer, teve morte de uma predestinada. Que Ele seja louvado para sempre! Deus, muitas vezes, tem permitido que tivéssemos, em nossa casa, pessoas que, por razões diversas, aí não permaneceram, mas que, apesar de tudo, puderam dar-se por felizes de aí terem chegado; e nós, de nos regozijarmos por elas terem encontrado, além da instrução, o bem para suas almas. Madre Júlia havia partido no dia 2 de novembro; retornou no dia 16, fatigada a mais não poder. Recebeu, três semanas mais tarde, convites insistentes para ir até Jumet; esta casa não era muito espaçosa e as pensionistas eram cada vez mais abundantes, porque não havia outras escolas nos arredores. Era questão de se aproveitar a boa vontade que demonstrava um homem que possuía prédios, um pátio e um jardim adjacentes ao terreno da escola. Ele estava disposto a vender, alugar ou fazer qualquer outro tipo de negócio que se quisesse. Madre Júlia partiu, pressurosa, no dia 12 de dezembro e retornou no dia 14, porque quis consultar a Irmã São José, antes de fechar qualquer negócio; foi novamente a Jumet, no dia 17. Dava a questão por concluída, mas o demônio subvertera os espíritos. O proprietário lhe disse que sua mulher não queria mais se desfazer da propriedade e que havia dificuldades muito grandes quanto ao aluguel, mas que, se quisesse, poder-se-ia pensar 1. Esta informação autografada de padre Chary se conserva nos arquivos da casa-mãe de Namur.
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em arranjar uma granja - havia, mais ou menos, 300 florins de despesas - e que ele a deixaria, gratuitamente, por dois anos. Madre Júlia reconheceu o espírito da coisa, que havia provocado uma mudança tão brusca nos ânimos e, embora estivesse pressionada a abrigar quarenta e cinco pensionistas e a premência de ter que recusá-las, não consentiu em fazer despesas tão onerosas e tão pouco razoáveis. Participou de uma reunião, das mais penosas a que já assistiu, que durou mais de uma hora, durante a qual se esmerou em apresentar todos os meios possíveis de acomodação. Esse homem, quando percebeu que não atingiria seu objetivo, que era o de negociar com sua granja, entregou os pontos. Houve uma acomodação que concedeu, a nossas Irmãs, uma grande sala a mais, mas ainda não era o suficiente. Nos primórdios da congregação, nada se fez sem muito sofrimento. Tudo o que nos foi vantajoso, teve, subjacente, inúmeras dificuldades, e era Madre Júlia, sobretudo, que as enfrentava. Foi nesta viagem que ela se explicou detalhadamente e com franqueza, à mulher do prefeito de Jumet, a propósito de professores de dança, música, etc. Madre Júlia partiu, a 12 de fevereiro de 1811, para Gand. O objetivo da viagem foi o fato de ela ter dado ordem à Irmã Maria Steenhaut, superiora da casa São Pedro, de despedir uma postulante que, havia algum tempo, dava mostras de não ter vocação, mas que se a suportava, para prolongar um pouco a provação e porque, sendo boa rendeira, o senhor pároco a estimava muito, pela utilidade que representava, e porque ele não via seus defeitos sob o mesmo prisma que Madre Júlia, que tinha dons especiais para tanto. Como o bom padre buscava soluções para todos os embaraços, a superiora sentia-se temerosa de tomar a iniciativa, desde que o senhor pároco se encarregara de todas as despesas da casa. Os benfeitores tornam-se, às vezes, entraves difíceis, para superioras fracas. Mas, graças a Deus, nossa Madre não era desse gênero: suas complacências, seus cuidados, só vão até onde devem ir. Quando ela soube que esta jovem prejudicava o espírito de paz e de união entre as Irmãs, não hesitou mais e deu ordem de a despachar. Isto desagradou o senhor pároco, mas como era um homem muito virtuoso, 211
isso foi superado e Madre Júlia sentiu-se impelida a ir a Gand para amenizar a situação e para contratar, para a casa de São Pedro, uma professora de renda que fizesse esquecer a outra. No momento, não havia nenhuma formada, em Namur. Ela não podia dar, ao senhor pároco, nenhum motivo de prejuízo pela perda, quanto às rendas, e ela não deixou de se preocupar com o assunto, tanto que, decorridos alguns meses apenas, fez nova viagem, para trazer uma ótima rendeira à casa de São Pedro. Encontrando-se, o bispo, em Gand, Madre Júlia teve a honra de conseguir uma entrevista com ele; desta vez, deu-lhe a melhor acolhida possível e perguntou-lhe, entre outras coisas, como estavam suas relações com o Padre de Sambucy? Ao que ela respondeu que acreditava estar de bem com ele, pois que lhe falara na reunificação. - Não vos apresseis, disse o bispo. Aguardai, aguardai, que sereis solicitada. Depois, vendo-a em companhia de outras pessoas, disse, apontando para ela: Eis uma pessoa de quem não gosto..., isso dito de uma maneira amável, forma que sabia usar tão bem; penso que era como para tranquilizá-la, devido a alguns galanteios amargos que lhe dirigira, em sua outra viagem. Seja como for, eu só os menciono para mostrar os altos e baixos pelos quais o senhor bispo fazia Madre Júlia passar, para fazê-la mais apreciar sua inalterável essência, que é sem vicissitude, e para fazer com que se estimasse cada vez mais, por essa característica. É também este o efeito que todas essas modalidades de alterações, por parte das criaturas, nela produzem. Antes que Madre Júlia chegasse a Gand, uma antiga superiora de uma comunidade, que tinha dívidas a pagar e conciliações a fazer com suas religiosas, veio falar com o Padre Van Schouwenberghe e disse-lhe que devia vender ou alugar a casa que lhe fora cedida por suas Irmãs. Entrou em todos os detalhes e Padre Van Schouwenberghe pensou em Madre Júlia, a quem não deixou de falar a respeito. De acordo com o conselho do senhor bispo, que fora dado no sentido de que ela fizesse o negócio, ela foi, em companhia do Padre Van Schouwenberghe, ver a casa, que ficava em Audenarde, pequena cidade a cinco léguas de Gand. A casa pareceu muito conveniente, mas agora tratava-se de saber qual o melhor tipo de negócio: alugar, comprar, ou nada 212
fazer. Viam-se vantagens e desvantagens, em qualquer um dos casos; assim, Madre Júlia partiu sem negociar, deixando tudo no seio da Providência. Retornou a Namur, no dia 24 do mesmo mês. Foi chamada a Jumet, no dia 4 de março. A casa, novamente, tornara-se demasiadamente pequena. Era preciso envidar as últimas tentativas para convencer o locatário da pequena parte da casa, a procurar outra moradia. Já se lhe haviam dado muitas razões neste sentido, e parecia que o acordo não tardaria; Madre Júlia foi concluí-lo, mediante uma indenização que se lhe deu, o que deixou as Irmãs muito à vontade. Imediatamente após ter dado seus conselhos e sugestões para diversas providências a serem tomadas com relação à casa, e após ver suas filhas um pouco mais fortalecidas, dando, a cada uma, remédios e preservativos contra os perpétuos ataques do inimigo do gênero humano, retornou a Namur, no dia 6. Encontrou outra necessidade emergencial a que deveria dar providências, a de uma enfermaria, pois a prudência lhe dizia que não devia mais protelar esta causa. Nenhum cantinho sequer para colocar uma doente. Já era tentar a Providência, não fazendo esforços no sentido de encontrar um local para uma enfermaria, numa casa como a nossa. Dedicou-se, pois, a esse empreendimento, em inícios de março, mas teve muito trabalho em estimular os operários: falava-lhes com autoridade, bondade, alegria e esgotava, nisso, todos os recursos possíveis; envolveu na obra a maior parte das Irmãs e ela mesma ajudava no transporte de areia, carregar os rebocos, etc. Ela não permitia que as Irmãs, principalmente as mais jovens, aparecessem no local onde trabalhavam os operários, fora desses momentos em que se estava sempre em grupo. Madre Júlia partiu para St-Hubert, no dia 22 de abril, a pé, com uma Irmã. Percorreram quinze léguas flamengas1 em dois dias; o mesmo percurso foi feito na volta, sob um calor excessivo e por caminhos tão difíceis, que eram obrigadas a andar sempre os três quartos a pé, por causa das montanhas, mesmo que tivessem viatura. Esta viagem não nos lembra nada de especialmente importante. Entretanto, não foi uma das menos necessárias; todos os relógios precisavam de corda. 1. A légua variava, então, de acordo com o país. Por ex., a de Paris era de 3.933m; a da Picardia, de 4.444m; a de Artois, de 3.964m (a de Flandres?). “Larive et Fleury”, 1888.
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Neste século, o inimigo vai semeando, sem descanso, o seu joio no campo do pai de família. Oxalá os trabalhadores não adormeçam um só momento, sob o risco de encontrarem a erva bem crescida. Que os chefes de família e as superioras sejam vigilantes! É mais necessário agora, do que nunca. É preciso continuamente sustentar, endireitar, reparar. Um vigor cheio de dinamismo, de bondade e de força é necessário, pois as almas, mesmo as inocentes e que têm boa vontade, se ressentem de não sei que malícia do século e do furor dos espíritos das trevas espalhados pelo ar. As tentações são mais fortes, mais frequentes, uma espécie de efervescência e leviandade abala e agita toda a natureza que, encontrando-se em estado de degradação nos corpos, transmite sua repercussão às almas. Sem dúvida, pode-se fazer o bem; ninguém o faz sem mérito e será feito até o fim dos tempos. Onde as misérias são abundantes, a misericórdia é superabundante. Mas nós o dizemos por uma experiência que outras casas religiosas também têm. É preciso, neste século degradado que absorve a escória, muita coragem, vigilância, humildade, para não desanimar de si mesmo e das dificuldades. Era isso que nossa boa Madre fazia, com um zelo que os obstáculos estimulavam, em vez de abater. Ela retornou, no dia 28, desta viagem. Tornou a sair no dia 6 de maio, rumo a Gand, onde encontrou, sob outras formas, quase a mesma coisa. As crianças que aprendiam a fazer renda estavam prestes a abandonar a aprendizagem, porque seus pais estavam descontentes com os gastos demasiados que eram obrigados a fazer com os utensílios da renda, e isso, por falta de uma Irmã. Pois a professora falava tão baixo, tão baixo, que chegava a ser estranho: ninguém a ouvia e ninguém a respeitava. São bagatelas, mas de grandes consequências; não me deterei mais a relatá-las, mas faço-o uma vez mais, para mostrar que é preciso uma vigilância bem abrangente, a qual não decai nunca. As superioras eram jovens e escapavam-lhes muitas coisas; elas também tinham suas imperfeições. No que concerne ao estabelecimento de Audenarde, nossa Madre não achou conveniente ir adiante, pois o momento era crítico: era justamente a época em que o Imperador mandara que viessem a Paris todos os bispos, para tratar assuntos de religião. Nossa Madre retornou de Gand no dia 18 do mesmo mês, para ir novamente a Jumet, no dia 24, onde era solicitada muitas e muitas vezes, até ser pressionada por um expresso 214
enviado pela Irmã Anastácia, superiora da casa de Jumet. Eis a circunstância agravante que a obrigou: tornarei conhecida, aqui, uma das coisas que mais têm afligido o coração de nossa Madre, desde a fundação de nosso Instituto. Tínhamos, entre nós, havia oito anos, uma jovem de dezenove a vinte anos, chamada Firmine. Madre Júlia a recebera a conselho dos Padre da Fé, que, vendo, nesta menina, tudo o que há de perigo para se perder, teriam desejado salvá-la; ela mesma suplicava que a guardássemos, dizendo que no mundo, se condenaria; mantivemo-la e suportamo-la, em suas variações constantes. Madre Júlia, por vezes, teve esperanças de que seu gênio se fixaria e, com a idade, ela amadureceria; mas como persistiu em seu amor próprio e nos sentimentos humanos, o demônio aproveitou-se para lhe inspirar as mais fortes tentações, voltadas para os prazeres do mundo. Ela se abria para com nossa Madre, que lhe mostrava a futilidade de tudo. As tentações pareciam se dissipar, mas ela tornou-se relapsa em seus exercícios de piedade, infringia pequenas regras, sem escrúpulos; nenhuma virtude religiosa parecia desenvolver-se nela, em quem tudo rescendia à infância. O demônio, em tão favoráveis conjunturas, redobrou de esforços e ela, assim desarmada, sucumbiu. Ela tinha um irmão, detentor de um pequeno emprego junto ao rei da Westfália, em Cassel. Escreveu-lhe, às escondidas da superiora, e dele recebia as respostas, por intermédio da lavadeira da casa, que ela conquistara para seu lado. Ela dizia a seu irmão que era infeliz, suplicava-lhe que não a abandonasse e lhe servisse de pai; enfim, que mandasse procurá-la. O demônio havia preparado suas intrigas do lado do irmão, que respondeu à sua irmã, falando-lhe numa linguagem cheia de ternura, dizendo-lhe mil coisas que facilmente a cativaram, ao mesmo tempo que procurava deixá-la entrever as alegrias e o bem-estar que ela teria com ele, que lhe prometia muitas vantagens temporais. Nem era preciso tanto a um coração já seduzido. Quando se sentiu segura do apoio do irmão, tornou-se insuportável a todas as Irmãs, por suas atitudes de vaidade. Sua superiora chegou a descobrir a causa de toda essa desordem. Havia muito que escrevia, carta após carta à Madre Júlia, que aí veio ter, o mais depressa que pôde, no dia 24 de maio. Mas o mal era irreversível; ela 215
só disse algumas poucas palavras, assim que percebeu a ousadia da jovem. No dia seguinte, dirigiu-se a Namur, a fim de buscar a Irmã Ângela Lesergent, a qual, no dia 28, a acompanhou até Jumet, para assumir o cuidado das pensionistas, das quais a Irmã Firmine, até então, fora a mestra, e isso, com certos aplausos do público, que, julgando apenas pelas aparências, achavam-na muito esbelta e diziam-lhe, mesmo, na rua, que ela era bonita... A superiora de Jumet estava penalizada e todas as Irmãs extremamente aflitas. Como o irmão não estabelecera nem o dia, nem a hora de sua partida, temia-se o escândalo deste rapto. Nossa Madre estava indecisa quanto à maneira como convinha proceder a respeito da desertora: levá-la a Namur, à casa mãe? Isso era um tanto impraticável. Foi assistir à missa nesta incerteza, e, como precisasse conversar com o senhor pároco, foi encontrá-lo na sacristia. Este bom padre ajudou-a a resolver as dificuldades, ao aconselhar-lhe a que se livrasse, antes cedo do que tarde, desta pessoa inoportuna; que a moça, praticamente, já fizera sua opção, que não havia outra saída, que não se era obrigado a suportar as inconveniências que ela provocava. Isso estabelecido, Madre Júlia pagou um bravo e honesto vizinho, para levá-la até Mons, onde a colocaria na diligência para Amiens; lá estava sua mãe e uma senhora, sua protetora, de quem a havíamos recebido e a quem Madre Júlia teve o cuidado de escrever imediatamente, prevenindo-a de tudo o que se passava. O alívio que se sentiu com sua saída foi proporcional ao que se havia sofrido por causa dela, embora permanecesse uma chaga no coração, e uma grande chaga. No dia 24 de junho, Madre Júlia veio novamente a Jumet, com a Irmã São José. Foi uma visita que alegrou sumamente as Irmãs, uma espécie de descontraimento por tudo o que haviam sofrido e também para ver como a nova Irmã se desincumbiria no pensionato, que era grande. Tiveram a satisfação de encontrar tudo em ordem; retornaram no dia seguinte.1 No dia 9 de julho, Madre Júlia partiu para Gand; seu principal objetivo, desta vez, era o de ocupar-se com os negócios temporais relativos à Irmã São José, a umas trinta léguas além de Gand. Encontrou suas filhas 1. Ver, a propósito, Cartas de Santa Júlia Billiart, 177, 178, 179.
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prontas a iniciarem seu retiro e, por diversas razões, ela pediu para que o prorrogassem, se possível, até o seu retorno, o qual se daria dentro de alguns dias; elas assim o fizeram. Madre Júlia, assim, esteve com elas novamente, em seu regresso, voltando, depois, a Namur, no dia 23; as Irmãs de Gand iniciaram imediatamente o seu retiro. Mas acontece que o padre, que devia tê-lo iniciado com alguns dias de antecedência, já não pôde, agora, por ter outros compromissos, o que muito aborreceu principalmente as Irmãs jovens, que se apoiam demais sobre os meios, e não sobre os fins. Quando se deu notícia do fato à Madre Júlia, houve lástimas com termos impróprios: era como se se lhe imputasse a perda do pregador, tendo feito retardar o retiro. Essa carta não transpirava, em nada, o respeito e a submissão, a julgar pelas expressões; talvez haja engano. Nossa reverenda Madre tinha, como princípio, de que é preciso, em determinadas circunstâncias, repreender oportuna e inoportunamente; que nem sempre o melhor expediente é olhar os fatos tão de perto, a fim de examinar as nuances dos prós e dos contras. Bastava-lhe, algumas vezes, obter os indícios de faltas, desleixos ou de alguma decadência, para prevenir em sentido contrário. E percebeu-se, muitas vezes, que esses golpes, por ela denominados golpes de podadeira, obrigavam os lobos a saírem dos esconderijos e produziam os melhores efeitos. Nesta oportunidade, a respeito da qual acabo de falar, acreditando conhecer o coração de suas filhas, ela não tinha motivo, ao que parece, para grandes alarmes; mas, de outro lado, conhecia a fragilidade da juventude e, para todos os efeitos, ela mesma escreveu e fez, também, com que a Irmã São José escrevesse, uma carta bem severa, na qual se dizia que, embora, talvez, elas não tenham se equivocado quanto ao conteúdo em si, esse aviso serviria para premuni-las e chamar-lhes a atenção para o tocante à forma. Com uma ternura e uma bondade de mãe, ela sabia, maravilhosamente, manter a autoridade: Quem não age assim, dizia ela, abandona os interesses de Deus e não tem condições de ser superiora. No final de agosto, as Irmãs de Jumet e de St-Hubert vieram, segundo costume, para as férias. As de Jumet não vieram todas ao mesmo tempo; as primeiras a chegar deveriam retornar na metade das férias, para que pudessem vir as outras. Ocorreu que uma das que haviam ficado, chamada Irmã Marta Laval, não se conformou por não ter vindo juntamente com as 217
primeiras; aliás, como não tivesse o espírito da vocação, ela se ressentia de uma série de inclinações e gostos humanos, bem como de uma acentuada vontade própria; ter que ficar parecia-lhe o maior sacrifício do mundo. Escreveu, à Madre Júlia, uma carta repleta de extravagâncias e, em Jumet, seu modo de falar e agir não era muito mais sensato. Fazia, aproximadamente, cinco anos que ela estava conosco, embora só tivesse emitido os votos uma única vez, e isso por quinze dias apenas, pois não fora julgada capaz para mais. Madre Júlia vinha percebendo, desde muito - e os confessores eram do mesmo parecer -, que ela não tinha vocação. Aguardavase tão somente uma ocasião favorável para despedi-la do Instituto, o que não foi coisa fácil, por estar muito apegada à casa de Namur, em função de nossa Madre, que ela amava entranhadamente e de maneira toda humana. Adoeceu gravemente, chegando às portas da morte, por ter sido enviada a Jumet. Enfim, nossa Madre Júlia, confiante em Deus, embora não soubesse, ainda, a maneira como deveria agir no caso, mas sentindo-se, interiormente, repleta de força sobrehumana, julgou ter chegado o momento. Após ter consultado suas conselheiras, partiu no dia seguinte ao do recebimento da carta, dia 7 de setembro, às cinco da manhã, com a Irmã Anastácia, que viera com a primeira turma a Namur. Ao meio-dia chegaram a Jumet. Esta Irmã era do tipo que não podia ser mandada embora sozinha; era de se temer que a cabeça se lhe transtornasse, ou que se sentasse, no recanto de algum bosque, à espera da morte. Que transtorno! E como agir adequadamente, para induzi-la a partir sem violência, coisa que Madre Júlia não queria e não sabia praticar? Não posso relatar como tudo aconteceu; nossa Madre contou-me apenas uma parte do que se fez e do que se disse; mas o que posso dizer e que aquilo tudo, por parte de nossa Madre, representou um misto de força e de doçura, de argumentos e de bajulações, numa palavra, uma cena tragicômica, onde foi preciso que Deus agisse poderosamente, para - tendo chegado ao meio-dia - pudessem partir à uma hora com a pessoa, a fim de levá-la para casa, a cinquenta léguas de distância. A parte restante da viagem não transcorreu sem grandes dificuldades; mas, confiando perfeitamente em Deus, o seu socorro veio prontamente. Porém o episódio não terminou 218
ali. Seguiram-se cartas, escritas em todos os estilos imagináveis: o pároco de seu vilarejo envolveu-se na questão; ela ousou escrever até mesmo ao senhor bispo. Madre Júlia, em seu retorno, encontrou uma operação semelhante a ser feita em casa, a propósito da Irmã F..., que estava conosco havia cinco anos. Ela estava, de momento, gozando suas férias em Namur; mas seu encargo era a escola dos pobres em Jumet, onde exercitava a paciência das Irmãs por seu caráter impaciente. Madre Anastácia, sua superiora, sofria muito com ela. Foi por isso que Madre Júlia tomou a resolução de vigiar bem esta Irmã, transferindo-a para uma escola de pobres em Namur, já que ela tinha queda para este trabalho. Logo após sua transferência, a Irmã F., pareceu modificar-se; mas, pouco tempo depois, seu infeliz caráter a dominou de tal modo, que ela, espontaneamente pediu para desligar-se do Instituto, dizendo que essa modalidade de transferência estava além de suas forças. Madre Júlia quis ver, nisso tudo, a vontade de Deus; não dispendeu nenhum esforço no sentido de retê-la, não obstante lhe tivesse exposto o perigo de sua decisão. Manteve-se, durante vários dias, nesta resolução. Em seguida, porém, temerosa de dar um passo em falso e prejudicial à sua salvação, e assim desaconselhada, reconsiderou sua decisão e pediu para ficar. Deveria partir no dia seguinte, às cinco da manhã; tinha já seu lugar reservado na diligência. Madre Júlia reuniu o conselho, e após terem deliberado até meio-dia, pesando todos os prós e contras, os altos e baixos, numa palavra, após terem avaliado o conjunto do caráter e da conduta da Irmã, ficou decidido que ela partiria. Não se tratou de deliberação precipitada, absolutamente. Esta filha era, desde sua entrada em nossa casa, um espinho para o coração de nossa Madre. Estava, por ora, sem o vínculo dos votos. A Irmã Elisabeth Desprez, de uma vila próxima a Namur, saiu ainda durante as férias. Em Jumet, ocupava-se das lidas da casa; era noviça, estava conosco fazia, aproximadamente, dois anos. A Irmã Dorotéia, cozinheira, em Namur, também saiu; ela só estivera um ano conosco. A Irmã Aldegonde também só passou um ano conosco e saiu também, neste mesmo ano de 1811. Somando todas essas, mais a Irmã Firmine, totalizaram seis, neste ano. Foi um expurgo, mais ou menos como em Amiens, após as epidemias 219
e em vésperas de nossa partida. Parece que Deus, de tempos em tempos, toma sua joeira e elimina a palha, o que não deixa de ser uma grande graça. Nos primeiros dias de outubro, o bispo de Namur retornou de Paris, onde estivera durante seis meses, para tratar de assuntos da Igreja. Quando conversamos com ele, alguns dias após sua volta, disse-nos, entre outras coisas, que vira o arcebispo de Bordéus, o bispo de Amiens e também o Padre de Sambucy; que o bispo de Amiens lhe dissera, a nosso respeito: Eu estava enganado! Eu estava enganado! Fui mal aconselhado!, dando a entender que a atitude que tivera conosco não provinha dele e que reconhecia ter agido erradamente. Quanto ao Padre de Sambucy, insistiu na ideia da reunificação, mas o bispo de Namur lhe disse: Eu guardo o que a Providência me deu, e a conversa morreu ali. O senhor arcebispo de Bordéus disse ao bispo de Namur, que seu parecer era o de que as Irmãs de Nossa Senhora de sua diocese deveriam depender, em tudo, exclusivamente da casa de Bordéus e que, de resto, a comunicação com as demais seria apenas por cartas. Com efeito, alguns dias mais tarde, Madre Júlia recebeu uma carta de Madre Vicente, que lhe perguntava a respeito desta novidade, enviando-lhe a cópia de um bilhete que recebera do arcebispo, logo após seu retorno de Paris, no qual, após tecer elogios à Madre Júlia, ele manifesta seu pensamento. Madre Júlia adorou as determinações da Providência e nisso reconheceu a sabedoria do arcebispo: as circunstâncias eram tão críticas, as distâncias tão consideráveis, o século tão perverso, que condições teriam suas filhas para viajar, para transportar coisas? De fato, apesar de todas as instâncias de Madre Vicente, jamais foi possível para lá enviar uma única Irmã, e Madre Júlia mesma, só fez uma única viagem a Bordéus, a qual, aparentemente, foi de utilidade aos olhos da Providência. Percebe-se agora, sensivelmente, que foi durante esta longa ausência que se fomentaram todas as borrascas que nos expulsaram, finalmente, de Amiens. Várias pessoas prudentes achavam difícil conservar a filiação com Bordéus, e Madre Júlia percebia isso mesmo, havia muito. Mas ela jamais quis romper como primeira, temendo destruir o que Deus havia construído, assim que ela, pessoalmente, não se surpreendeu com essas informações. Escreveu à Madre Vicente que se submetia às ordens da Providência e falou-lhe amigavelmente. Madre Vicente não mais escreveu, nem mesmo 220
por ocasião do ano novo, mas Madre Júlia enviou-lhe uma carta em fevereiro e Madre Vicente respondeu muito tempo depois, porque ela e outras Irmãs haviam estado muito doentes, e haviam ocorrido alguns episódios aflitivos entre elas. Nossa Madre partiu, a 8 de outubro, para Gand; lá, falaram-lhe de um estabelecimento, numa zona de campanha muito povoada. O pároco do lugar, que era quem fazia as expensas do estabelecimento, suplicara-lhe para que viesse. Ela encontrou uma casa um tanto sofrível e uma bonita capela, frente a frente com a casa, chamada capela de Nossa Senhora Dolorosa, à qual se cultivava uma grande devoção na região. Este povo conservava-se simples e bom, não obstante a corrupção quase universal. Esta campanha, a cinco léguas da cidade de Gand, tinha, desde muito, um bom pastor, cheio de fé e de virtude. O padre quis ter Irmãs de Nossa Senhora no lugar, para o bem de todos os seus paroquianos. Madre Júlia entendeuse muito bem com ele e prometeu-lhe enviar-lhe Irmãs dentro de algumas semanas. Nesse meio tempo, era preciso, ainda, providenciar a respeito de camas e dar andamento a outras pequenas coisas. Este vilarejo, chamado Zele, encantou nossa Madre. Ela retornou de lá para junto de suas filhas, toda entusiasmada e impregnada de zelo, esmerando-se, conforme seu costume, por influenciar-nos com o ardor que a dominava. Voltou a Zele no dia 11 de novembro, em companhia da Irmã Jane Godelle, que devia se tornar a primeira superiora deste novo estabelecimento, seguindo-a, depois, a Irmã Colette Martes e a Irmã Juliana Massaen, ambas flamengas que sabiam muito bem o francês, para instruir com êxito as crianças, ajudadas pela Irmã Rose Hannequart, tirada de uma de nossas casas de Gand. Elas foram recebidas da melhor maneira imaginável, com delicadezas a toda prova, e o senhor pároco e os habitantes do vilarejo, que era muito povoado, estavam maravilhados de poderem contar com Irmãs para a instrução de seus filhos, a tal ponto que transformaram a recepção numa verdadeira apoteose. Pois, creio que nunca, Irmãs de uma escola tenham sido recebidas com tiros de artilharia. Este bom povo tinha algumas peças de canhão, que decidiram ativar, em homenagem as Irmãs, no intuito de testemunhar-lhes sua grande alegria, o que, aliás, causou em nossas pobres Irmãs, mais medo do que prazer.
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Nossa Madre passou alguns dias em Zele, durante os quais teve a alegria de ver já sessenta crianças se reunirem na escola, para iniciarem sua instrução. Nossa Madre voltou a Namur e teve uma de suas mais longas estadias, que durou uns três meses, sem viajar. Mas é preciso que se diga que contraiu uma doença no mês de dezembro, que durou perto de três semanas, sem contar a convalescença. Enfim, partiu para Gand, depois a Zele, no dia 19 de fevereiro de 1812 e voltou no dia 4 de março. Nestas viagens, falaram-lhe de diversos possíveis novos estabelecimentos, mas tudo não passou de agitação momentânea; não houve nada de definido. Aliás, as filhas de nossa Madre não tinham formação. É preciso acautelar-se para não agir com precipitação, a fim de evitar inconvenientes. Ela passou em Zele, na volta, e encontrou a casa em bom andamento; as duas jovens Irmãs que para lá haviam sido levadas, por emergência e sem muito conhecimento, faziam tudo o que estava ao seu alcance, para contento dos habitantes, que não exigiam, no momento, mais do que isso. A 11 de março, Madre Júlia partiu de Namur, para ir a Jumet, numa dessas suas viagens relâmpago de alguns dias, que ela fazia com frequência. Desta vez, teve, em Jumet, uma de suas maiores satisfações, porque as três ou quatro Irmãs que prejudicavam o ambiente, já não estavam, e as que compunham agora a comunidade eram muito unidas entre si, reinando, no meio delas, um excelente espírito religioso, que transformava esta casa num lugar de paz e de felicidade e atraía as bênçãos sobre o pensionato e sobre as crianças pobres, as quais nunca estiveram tão bem quanto agora. Madre Júlia partiu no dia 21 de abril, para encetar a cansativa viagem a St-Hubert; retornou dia 27. Durante esses poucos dias, ocupou-se em arrancar e limpar tudo o que fosse necessário, pois sempre há coisas a fazer e refazer, quando se trata de criaturas; ora são as carências, ora são os excessos. Em retribuição, as boas Irmãs, assim como as crianças, anteciparam de um mês a festa de Santa Júlia, - cuja data é o dia 22 de maio -, a fim de poderem comemorar o onomástico de nossa Madre. Esse costume é adotado em todas as casas por onde ela passe, quando se aproxima a sua data onomástica. As de StHubert foram um tanto precoces, como se pode
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notar, mas esmeraram-se por trazerem à nossa Madre, aquilo que a sua ingenuidade infantil achou de melhor para lhe ofertar. 1 Depois partiu para Gand, a 5 de maio, onde a festejaram novamente, com mais aparato, porque as condições, lá, eram outras. Retornou a Namur, no dia 21 de maio, véspera de sua festa, que foi comemorada pelas pensionistas, com muito gosto e dedicação. Nos primeiros dias de junho, Madre Júlia recebeu uma carta da Irmã Catarina Daullée, a qual lhe informava que havia grande probabilidade cie que a igreja de nossa casa de Nonnenbosch estaria à nossa disposição, pois aquele senhor que a alugara para oficina, já não a queria mais. Nossa Madre temeu que, se Deus nô-la quisesse dar, faltaria com a Providência, não se deslocando imediatamente para Gand. Partiu, pois, no dia 9, para realizar esse interessante negócio, o qual, no entanto, ainda não se concretizou. A senhora, que devia alugar esta igreja, ouviu com interesse as propostas de Madre Júlia, no entanto, não queria decidir já. Durante sua ausência, ela consultou a uns e outros, persuadindo-se, finalmente, que, se nós tivéssemos esta igreja, nossa casa se transformaria em hospital. Com relação a esse assunto, nossa Madre foi conversar com um vigário de paróquia, padre N., que lhe havia encaminhado uma postulante. Ela achou oportuno ir agradecer-lhe e dar-lhe notícias. Disse-lhe, na conversa, o motivo de sua vinda a Gand. Este senhor aproveitou a oportunidade para lhe fazer uma série de perguntas sobre a casa de Nonnenbosch. Perguntou-lhe, entre outras coisas, se ninguém nos dava nada para a nossa subsistência, etc. Ele veio ver a nossa casa, olhou e examinou, refletiu e, em seguida, declarou que gostaria de nos ajudar no que fosse possível, para a glória de Deus. Disse mais: que dispunha de recursos para isso e que sempre nutrira o desejo de organizar um estabelecimento deste tipo, em grande proporção; que esta casa se prestava muito bem, que, se se pudesse dispor da igreja, seria ótimo, mas que era preciso fazer isso, depois aquilo e mais aquilo, etc. Nossa Madre pensou que seria possível que a Providência quisesse nos ajudar, particularmente, neste estabelecimento, que estava um tanto estagnado e ao qual vinham poucas externas, por causa do trajeto, e só havia, por enquanto, quatro pensionistas; ademais, porque não tínhamos 1. Este costume foi abolido (nota manuscrita de nossa cara Madre São José).
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a possibilidade de oferecer muitos presentes às pobres meninas que aprendiam a fazer renda, as mães vinham buscá-las, no final de alguns meses, para pô-las em outro lugar onde se lhes dava mais. Pois é este o costume das escolas de Flandres, para os pobres: é preciso instruí-las e, por assim dizer, pagá-las. Nós não teríamos podido conservá-las, se, algumas vezes, não tivéssemos recebido donativos de algumas pessoas generosas, a fim de que pudéssemos vesti-las. Elas tinham um uniforme: um pequeno boné e um avental, que combinavam. Seu guarda-roupa estava em nossa casa, e as Irmãs vestiam-nas e despiam-nas semanalmente; sem isso, não sobraria mais nada, ao final de quinze dias. Era um prazer vê-las limpas em seu pequeno uniforme. Relato isso, para que se veja que nossa Madre não queria que se temesse o sofrimento, o embaraço, nem a gentalha, quando se trata da ordem e da limpeza e de tudo o que possa ser vantajoso para as crianças, que se civilizavam e desenvolviam, pouco a pouco, o gosto pela limpeza. Era uma metamorfose proporcional à extrema grosseria e imundície em que se encontravam, quando vieram ter conosco. Toda a nossa tristeza consistia no fato de elas, não permanecerem por muito tempo. Vendo este senhor tão bem-disposto em ajudar nossa casa de Nonnenbosch, a nossa Madre, naturalmente, acolheu muito bem todas as suas propostas; faltava examinar como isso se concretizaria, em termos práticos. Entretanto, ela voltou para Namur, onde sua presença era indispensável! Nesse retorno, trouxe uma postulante consigo e uma jovem, que este mesmo senhor havia solicitado que levasse, - por quinze dias apenas, - até a nossa casa, para sondar se se agradaria. Em seguida, ela deveria ir despedir-se de sua família, suposto que ela se decidisse a tornar-se uma das nossas. Tendo chegado a Namur, nossa Madre tornou a viajar, no dia 15, para Jumet, depois, Zele, no dia 19, onde, entre assuntos agradáveis, encontrou também motivos para se exercitar na paciência e na caridade. É a condição das coisas deste mundo: nada é perfeito. Ausentou-se por vinte e quatro horas de Zele, para dar um pulo a Gand, depois voltou a Zele e de lá a Namur, no dia 26. Ela encontrara, em Gand, o senhor N., sempre animado de boa vontade e bem solícito em fazer o bem, embora ele tenha ficado contrariado e quase desconcertado com o fato de não termos podido ficar com a igreja, coisa que estava, praticamente, determinada. Ele pensou em entregar os pontos, mas retomou sua coragem e dispôs-se a agir. 224
Nossa Madre mal pôde chegar a Namur, que passou a receber carta sobre carta da Irmã Catarina; o senhor escrevia também. A Irmã fazia-o vir a casa diversas vezes durante o dia, que ele era forte e ativo, que os operários estavam ocupados com a mudança da capela, de cima para baixo, conforme seu desejo, que ele distribuía tal aula aqui, tal outra ali, que pedia para que todas as Irmãs ficassem com o véu durante o dia todo - o que ainda não era nosso modo de andar - que ele faria um regulamento para as escolas dos pobres, etc, ... que, quando todas essas medidas fossem tomadas, ele viria pessoalmente a Namur escolher tantas Irmãs quantas fossem necessárias. Principalmente, ele insistia muito a respeito de nossos hábitos, achando-os muito pobres, concordando que se pode muito bem conservar o espírito de pobreza interior, mas que, uma vez que temos pensionistas, o exterior deve ser diferente. Chegou a dizer que uma mestra das pensionistas há de ser como uma deusa. A Irmã Catarina entrava com tanto entusiasmo nos detalhes, que se podia ver, sem o auxílio de lentes, que se tratava de um homem que batia e cortava sem pedir conselho a ninguém. Ele escreveu pessoalmente a Madre Júlia, enviando-lhe o modelo de um prospecto para as pensionistas e as externas, a fim de que ela mandasse imprimir duzentos, em Namur, dentro de poucos dias e que lhos enviasse imediatamente, mandando-lhe, também, duas Irmãs. Dizia, entre outras coisas: Não se receberá mais postulantes na casa de Gand. Em Namur, podeis receber quantas o bom Deus vos enviar. Mas em Gand não, pelo menos por enquanto. Esta maneira de dizer e de fazer as coisas, tão independentemente, sem que transparecesse o desejo de trocar ideias e consultar a outrem, pareceu, a Madre Júlia, desde o início, um tanto surpreendente. Ela viu nele um padre virtuoso, realmente, e cheio de boas intenções, mas que não tinha nem a graça, nem a incumbência para a missão na qual se envolvera; com ele teria que estar constantemente em luta, para conservar o espírito de nosso Instituto ou, melhor dizendo, ela percebeu que, se, sob a hipótese aparência de que se atingisse algo melhor o deixasse prosseguir, seria a ruína, apesar da melhor boa vontade do mundo; pois o espírito de pobreza, de unidade e de submissão, tudo corria o risco de ir por águas abaixo. Ela escreveu, portanto, à Irmã Catarina, suas reflexões e seus temores a respeito deste bom senhor. A resposta da Irmã, bem como de uma outra 225
que a ela se unira, provaram-lhe, de sobejo, que seus temores não eram infundados. Estas boas Irmãs, que são jovens e sem experiência, vendo um bem a ser feito, não perscrutaram mais adiante; a esperança de verem as classes dos pobres se desenvolvendo e prosperando havia-as fascinado, de tal maneira que sua resposta se transformou numa completa justificativa do senhor N. e de toda a sua maneira de agir. A Irmã Catarina andava aflita e até perturbada, porque julgava que o motivo da desconfiança de nossa Madre com relação ao senhor N. fosse ela, talvez por causa das cartas, que escrevera tão às pressas e sem relê-las. Nossa Madre passou a afligir-se e a inquietar-se mais por causa da prevenção, da inadvertência das Irmãs, do que, propriamente, pelas atitudes do senhor, uma vez que destas não era difícil livrar-se, mas a juventude e a inexperiência sempre causam apreensões. Ela tinha razões particulares para se acautelar com relação a esse senhor, razões de reconhecimento e de interesse, quero dizer, de um interesse espiritual, porque dele havia recebido postulantes, e ele lhe dissera que procuraria mais algumas. A que já estava conosco, vinda através dele, e que viera para provar se tinha vocação, afeiçoara-se muito, já à casa, e podia-se temer que, em seu retorno a Gand, este senhor, se estivesse irritado contra Madre Júlia, a desviasse. Tudo isso passa e volta à mente, diz nossa Madre, mas a gente não deve arrefecer, quando estão em questão os fundamentos e o espírito do Instituto. Ela só se preocupava em descobrir a maneira certa de desligar sem quebrar, se fosse possível. Este senhor já havia feito alguns investimentos e gastos, tinha, pois, o direito de se lamentar, se, após ter-lhe dado oportunidade de avançar, fosse obrigado a recuar. Nossa Madre orava muito e suplicava a Deus, depois, aguardou o momento de iluminação. Também, escreveu, a este senhor, uma carta sem maior significado, fazendo-lhe entender que ela não iria a Gand tão cedo quanto ele o havia solicitado; protelou esta viagem para outra data. Antes disso, ela já escrevera à Irmã Catarina, incumbindo-a de dizer ao senhor que ela iria ver se duas Irmãs a mais fossem, realmente, necessárias em Gand, e que ela não achava tão necessário, agora, fazer mais um prospecto, uma vez que já possuíam um: isso tudo, para fazê-los moderar e perceber que competia a ela de julgar essas coisas, não ao senhor, menos ainda, de maneira tão individual e exclusivista.
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Enquanto isso tudo ocorria, o senhor disse à Irmã Catarina: Esta mulher tem medo; ela será a causa de que as coisas não saiam a contento, etc., etc. Entretanto, passaram-se uns quinze dias, sem que houvesse uma previsão de algum distanciamento favorável. Ir a Gand, enfrentar este senhor e falar-lhe cara a cara não lhe pareceu um bom expediente, tanto mais que ele era um bom falador e teria tantas razões a aduzir, e tão categóricas, que não lhe parecia fácil, depois, livrar-se dele. Nossa Madre também estava apreensiva no sentido de que este senhor poderia ganhar para sua causa o vigário-geral, o qual poderia ser envolvido no plano, para conseguir realizar o que pretendia. Esta questão tornar-se-ia mais espinhosa e mais delicada do que se possa imaginar. Madre Júlia depositou toda a sua confiança em Deus e, estando a falar a respeito do assunto com a Irmã São José, mandou que pegasse uma caneta e uma folha de papel e ditou-lhe, palavra por palavra, a carta que segue. Em seguida, ela mesma a escreveu e enviou-a ao senhor N,. com a confiança de que fora o bom Deus que lha inspirara.Com efeito, a carta foi um golpe certeiro, embora este bom padre tivesse respondido que não acreditava dever deter-se, por um pequeno desgosto, numa causa que ele havia abraçado, movido pela graça e pela glória de Deus, a verdade é que ele não avançou mais. Senhor, Prometi-vos de chegar nos primeiros dias livres, após o dia 11 de maio, mas circunstâncias adversas impediram-me de atender o vosso convite. Peço-vos a gentileza de suspender os diversos projetos que tendes, relativamente ao estabelecimento de Nonnenbosch. Tenho diversas considerações a fazer-vos, que são da máxima importância. Uma vez que só buscais a glória de Deus, devo dizer-vos que, se formos depressa demais, poderemos estragar tudo; eu tenho, aqui, um Superior1 maior, que me instrui em tudo e cujos conselhos sempre achei de bom alvitre seguir. Sua última opinião é de que se suspenda tudo, por ora. Tende a bondade, senhor, de transmitir as informações desta minha carta ao senhor vigário 1. O bispo de Namur
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geral, a fim de que ele possa julgar por si. Nosso Instituto não deve ser conhecido de outra maneira. Quanto à senhorita Teresa,1 não podendo dirigir-me a Gand assim imediatamente como o desejaríeis, aconselhais que vô-la envie na primeira oportunidade que aparecer? Peço-vos que me informeis a respeito. Nutro, constantemente, o vivo sentimento de gratidão por toda a bondade que já nos demonstrastes. Aceitai o meu protesto de profundo respeito, com o qual tenho a honra de ser... (P.S.) Esta carta2 é de maior consequência, peço-vos que lhe deis atenção. O surpreendente foi que, na primeira viagem que Madre Júlia fez a Gand, no dia 18 de julho, este senhor lhe confessou que sua carta lhe causara profunda impressão e lhe tocara o coração, a ponto de fazê-lo adoecer. A partir disso, pode-se avaliar qual era o espírito que nela operava e que lhe inspirava esses expedientes, tornando-se um motivo para profundas reflexões, o fato de que todo zelo vem de Deus, e o cuidado que se deve ter com tudo aquilo que, de início, parece bom, mas que deve ser examinado com vagar, e que, em tudo, é preciso que sejamos circunspectos. Nosso primeiro fundador3 o recomendara, com insistência, à Madre Júlia: Madre, Madre, dizia ele, não deixeis que os padres assumam qualquer autoridade em vossa casa; o confessor mesmo, só deve governar as consciências. Para terminar nossa história, devo dizer que nossa Madre se humilhou muito diante desse senhor, admitindo que ela tenha tido culpa, e muita, em tê-lo deixado começar; ele desembolsou, aproximadamente, 50 coroas, que lhe teríamos restituído de boa vontade, se ele as tivesse solicitado. Ocorre que as mudanças da capela, sem essa importância, não teriam sido possíveis. Mesmo assim, mais tarde, por inconveniências maiores, foi preciso que nossa Madre sa trocasse novamente de lugar.
1. Maria Teresa Van de Putte, que, pouco tempo depois, entrou na congregação e devia tornar-se, mais tarde, Madre Maria Teresa, quarta Superiora Geral. 2. Ver “Cartas de Santa Júlia Billiart”, nº 212. 3. Ver “Cartas de Santa Júlia Billiart”, nº 212.
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Como este padre era de boa índole, tudo voltou ao normal. Ele conservou, até mais tarde, sempre respeito e estima por nossa Madre; o testemunho que a postulante lhe deu neste sentido, provavelmente tenha contribuído para isso. Ele, conforme prometera, procurou outras candidatas, e, o que é mais admirável, ele não mais tentou meter a foice na seara alheia. Ele não veio mais à casa de Nonnenbosch, e era isso que nossa Madre desejava; ele era sempre motivo de temor, durante a ausência de nossa Madre, por não ter conhecimento algum do espírito de nosso Instituto. Foi graças à vigilância firme de nossa boa Madre, que não houve nenhuma espécie de cisma entre nossas Irmãs de Gand e nós; pois, com efeito, não será um cisma, para casas religiosas terem costumes, espírito e usos diferentes? Eu entendi, em todas essas circunstâncias, porque conheci de perto a intenção de nossa Madre, que sua preocupação sempre foi a de premunir, para depois de sua morte, as suas filhas, contra os perigos da inexperiência; um zelo pouco esclarecido ou uma confiança muito cega podem pôr em risco o espírito do Instituto, o espírito de simplicidade, que nos é próprio. Ela fez uma viagem a Gand, no dia 8 de agosto, para levar a postulante que, mais tarde, veio a se chamar Maria Teresa, aquela que fora recomendada pelo senhor N., a qual, após ter retornado a casa, quis entrar conosco, para se consagrar a Deus. Nossa Madre trouxera também uma outra. As duas eram muito jovens, para deixá-las viajar sozinhas; era a prudência de nossa Madre que exigia isso, prudência contra a qual ela nunca falhou; não poupava esforços e fadigas, em tais ocasiões. Teve que fazer esta viagem com grande pressa, pois retornou no dia 12. Ela passava, às vezes, noites na diligência, para ganhar tempo. No dia seguinte, foi a Jumet e encontrava-se, já, de volta, para o dia da grande festa da Assunção. A 14 de setembro foi a Bruxelas, a fim de prevenir duas jovens Irmãs de Zele, para que viessem à casa mãe de Namur fazer seu retiro e gozar suas férias. As Irmãs de Jumet e de St-Hubert também vieram. Que direi deste retiro de 1812? Nossa Madre não o fez, para permitir que suas filhas o fizessem; ela se ocupou nos afazeres de Marta, só participando nos de Maria quando lhe fosse possível. Eu a vejo como tendo alcançado um tão elevado grau de perfeição, que a ocupação exterior em nada a prejudica; seu desapego, em todas essas mais diversas ocupações, era muito grande. Fazia, deixava de as fazer, mu229
dava-as, livre de qualquer resquício de apego; e o Espírito Santo, embora a encontrasse quase sempre ocupada com coisas externas, não deixava de expandir, nela, sua benéfica influência. Falava em particular com suas filhas, tanto quanto fosse necessário, mas seu maior impulso era o de instrui-las em comum, exortá-las, repreendê-las, quando preciso fosse. Neste retiro, tais ensinamentos foram, para nós todas, como um rio que corre rápido, sem se esgotar, e isso tudo ela o fazia, sem estudo, sem nenhum projeto, nem outra preparação, que não fosse a oração. Uma das Irmãs, a Irmã Gertrudes Steenhaut, recolheu uma pequena parte, mas muito pequena, do que ela nos disse. Este escrito perdeu de seu conteúdo, ao passar por um segundo canal; no entanto, será conservado para aquelas que nos seguirem, e, nos outros anos, tentaremos aumentar esta recolha. Havia, durante os dias de retiro, doze operários em nossa casa, porque fazia-se necessário outro dormitório para as pensionistas; queríamos transformar um daqueles que elas ocupavam, em capela, pois tornara-se muito pequena, sendo aumentada apenas em inícios de 1813. Foi feita também, neste ano de 1813, urna pequena cela para a Madre Júlia, no alto da escada grande e dispuseram-se três quartos, no sótão, para as Irmãs. Era a nossa boa Madre que estava sempre junto dos operários, para fazer com que a obra avançasse com acerto. Quanto ela sofreu nisso! O jardim também lhe dava o que fazer; era grande, e as Irmãs pouco entendiam do assunto, não sabiam o que fazer, nem por onde começar; era preciso que sempre ela pusesse a coisa em andamento. O bom Deus, pela sua Providência, havia-lhe dado, desde a sua juventude, uma experiência pluriforme.
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Capítulo 9 CONTÉM O CHAMAMENTO DE MADRE JÚLIA DE RETORNO À FRANÇA E TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE O ACOMPANHARAM; QUATRO VIAGENS QUE ELA FEZ; A EXTINÇÃO DAS CASAS NA FRANÇA E AS FUNDACÕES NA BÉLGICA: GEMBLOUX, ANDENNE, FLEURUS; A PASSAGEM DAS TROPAS ESTRANGEIRAS EM DIREÇÃO À FRANÇA. Em fins de setembro de 1812, Madre Júlia recebeu uma carta do Padre Sellier, um dos Padres da Fé, na qual lhe dizia que, tendo ido a Amiens, para tratar de assuntos seus com o vigário geral, havia-se lembrado de falar a seu respeito; segundo ele captara, o vigário geral julgava ter chegado o momento de chamar Madre Júlia de volta para Amiens. Ele lhe dissera aquilo sem grande esperança e como quem faz uma tentativa, mas não ficou pouco surpreso, ao ver que até o Padre Fournier, do qual é fácil lembrar a carta que escreveu à Madre Blin, no momento da partida, se exclamava: - Oh! já é mais do que hora! Nós estávamos enganados. Mas julgais que ela quererá voltar? - Eu tenho certeza. nier.
- Bem! falarei sobre isso com o senhor bispo, replicou o Padre Four-
Pouco tempo depois, nossa Madre recebeu uma carta do mesmo Padre Sellier, através da qual ele a pressionava insistentemente, a que viesse a Amiens, o mais breve possível. Anexou, a esta carta, um bilhete que havia recebido do vigário geral cujo conteúdo era o seguinte: Senhor, 231
É com grande prazer que vos anuncio a aprovação irrestrita, do nosso prelado, ao projeto de fazer Madre Júlia retornar, desejo muito vivo da Irmã Maria1, a qual prometeu submeter-se totalmente. Este chamado será um meio de reparar o erro a que fomos induzidos, com relação a esta santa filha. Assim, informai-a a respeito de nossas intenções e forçai-a a vir, o mais cedo possível, para dialogar com o senhor bispo e tomar todas as providências que se fizerem necessárias. De minha parte, recebê-la-ei imensamente satisfeito, e sei que meus colegas assim também pensam. Renovo meus protestos de sincera afeição, respeitosamente (ass.) FOURNIER, V.G. Madre Júlia respondeu. Depois o bispo, pessoalmente, escreveu-lhe: Amiens, 23 de outubro de 1812. O Padre Sellier encarregou-se, minha filha, de vos testemunhar o desejo que tenho de vos rever em Amiens, para assumir a gerência das Irmãs de Nossa Senhora em minha diocese, da qual, um erro vos afastou, um erro que me fez cometer um homem em quem eu acreditava poder depositar toda a minhaconfiança. Mas hoje, mais esclarecido, não temo em confessar que fui enganado a vosso respeito. Eu vos peço, pois, minha querida filha, que para cá retorneis o mais breve possível, se não para aqui fixardes vossa residência imediatamente, pleo menos para tomardes as providências e a direção de uma nova ordem de coisas. Aguardai a melhor acolhida da parte da Irmã Maria e de suas companheiras, que se sentirão encantadas em poderem submeter-se à vossa autoridade, conforme me declararam, unanimemente. Não encontrareis nenhum obstáculo ao bem, que eu reforçarei com todas as minhas energias; e posso certificar-vos, ademais, que todo mundo se apressará em manifestar-vos o contentamento que vosso retorno há de causar. 1. Irmã Maria Prévost, Dama da Instrução Cristã, superiora da casa, nomeada pelo bispo, por intermédio do padre de Sambucy.
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Daqui, podereis empreender a viagem que achardes conveniente, quando as coisas, aqui, estiverem em bom andamento. Lisonjeio-me, querida filha, se ouvirdes e atenderdes os meus apelos, e tenho certeza de que não duvidareis de minha benevolência e de minha afeição paternal. *JEAN-FRANÇOIS, bispo de Amiens Meus respeitos ao vosso santo bispo de Namur, se o virdes, antes de vossa partida. Em seguida, nossa Madre escreveu diretamente ao senhor bispo: Senhor, Sinto-me reconhecida, mais impossível, com a carta que tive a honra de receber de vossa Grandeza, na qual quereis honrar-me com vossa confiança, ao quererdes fazer-me Superiora das Irmãs de Nossa Senhora em Amiens. Senhor, não tivesse, eu, a capacidade de poder corresponder à vossa bondade, eu encontraria os valiosos benefícios que soube sempre apreciar, apesar das nuvens por que cruzamos, vós e eu. Senhor, sentir-me-ia muito feliz em poder atender imediatamente as vossas solicitações, mas pensei dever fazer-vos as exposições a seguir. Vejo-me impedida, por meus compromissos, a não ter nenhum domicílio, em parte alguma, tendo que supervisionar as pequenas casas que estão surgindo, estabelecidas em Flandres, desde que ali nos introduzimos, sem contar aquelas que se apresentam, e que as circunstâncias do momento nos obrigam a protelar. É-me, pois impossível de me radicar em um lugar, nem em outro. É preciso que eu vá e venha, segundo as situações o exigirem: tal é o espírito do nosso Instituto. Eu retorno sempre de novo a Namur, é verdade, após minhas visitas, porque esta é a casa onde estão as noviças e postulantes. Senhor, não sei se esta interdependência das casas corresponde aos vossos projetos; como todas as outras estão no mesmo pé, não posso condescender. Tais são os sentimentos de minhas superioras. 233
Senhor, estejais persuadido de que teria um prazer imenso, se pudesse, em atender vosso pedido. Omito outras circunstâncias locais, a respeito das quais informei o Padre Sellier. Quanto à minha viagem, gostaria de saber se não posso adiá-la, etc, etc. Em meio a essas tentativas de acordo, o bispo de Amiens escreveu ao bispo de Namur, em resposta a uma carta que ele havia recebido dele: Amiens, 26 de novembro de 1812 Senhor, Seria incapaz de esquivar-me a reconhecer de que devo arrepender-me muito, por ter seguido o conselho pernicioso que me deram, persuadindo-me a afastar de minha diocese a boa Madre Júlia. O mal que sua partida causou tornou-se tão grande, que me vi na iminência de perder vários estabelecimentos preciosos, se me não tivesse apressado em chamá-la e se, de vossa parte, não a tivésseis movido a atender aos meus insistentes apelos. Seu retorno enche-me de alegria e estou tão satisfeito quanto comovido pela recepção que teve de sua antiga comunidade, e da santa insistência com que a Superiora, que eu havia nomeado, se demitiu do cargo, protestando à Madre Júlia que queria viver sob sua dependência e de ser a última de suas filhas. Ainda não está tudo definitivamente combinado, mas comecei por reconhecer a Madre Júlia como Superiora geral das casas, sem esquecer sua qualidade de fundadora, e tenho, desde já, a esperança bem fundada de que, sob a orientação desta virtuosa filha, sua Congregação vai recomeçar, em minha diocese, uma nova etapa. Assim, senhor, depois de Deus, é a vós que devo os grandes benefícios que a Providência vai operar por seu intermédio. Aceitai os protestos de afeição sincera e respeitosa, com a qual sou, senhor, Vosso muito humilde e obediente servo, *JEAN-FRANÇOIS, bispo de Amiens.
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Creio não ter podido mostrar de melhor maneira a mudança no modo de julgar das pessoas, do que permitindo que elas mesmas falassem, através de suas cartas. Nossa Madre Júlia, no entanto, não se afobava. Soubera, mediante notícias de terceiros, que havia dívidas na casa de Faubourg e ela desconfiava de que as coisas não fossem assim como se contavam. Numa palavra, repugnava-lhe a ideia de assumir um compromisso, assim, quase obrigada, e mais, prevendo inúmeras dificuldades. Foi esse o motivo por que foi protelando; mas, como o bispo de Amiens insistia sempre, ela não pôde esquivar-se por mais tempo e partiu, no dia 9 de novembro. Passando por Gand, pediu à Irmã Catarina que a acompanhasse. Chegou em Amiens a uma hora da madrugada; teve que bater à porta de três albergues, antes que encontrasse pousada. Logo que amanheceu, dirigiram-se, ambas, à casa de Faubourg-Noyon. Ela escreveu à Irmã São José: Entrando no pátio, eis duas palavras que Deus me deu, como norma de procedimento: “Olhai-me e segui-me”. Foi recebida com respeito por todas as Irmãs, com demonstrações de alegria por parte da jovem superiora, que era esta Irmã Maria, que havia sido tirada do Oratório, outrora chamado de Instrução Cristã. Não demorou em mandar apresentar seus respeitos ao senhor bispo, que quis vê-la no mesmo dia. Encontrou-o com o seu vigário geral, e os dois, num primeiro momento, mostraram-se como que ofendidos. Não foram dadas grandes explicações, nesta primeira entrevista, mas o prelado fez com que fosse expedido, já no dia seguinte, um documento, através do qual concedia-lhe todos os poderes de Madre geral, em sua diocese. A casa de Faubourg-Noyon, tanto pelo elevado aluguel, quanto pela sua localização, não convinha à nossa Madre. Ela fez declarações neste sentido, antes mesmo de chegar a Amiens, e o bispo consentira em que se procurasse outra. Passando por Gand, nossa Madre, por caridosa civilidade, foi a casa de um senhor, sobrinho do cura da catedral de Amiens, e que estava estabelecido, no momento, em Gand, cidade que pretendia deixar, para retornar a Amiens. Ela foi, penso eu, perguntar-lhe se tinha algum recado ou encomenda para Amiens, dizendo-lhe que iria para lá, porque o senhor bispo 235
lho solicitara. A conversa encaminhou-se de tal modo, que ela pôde dizer-lhe que procuraria outra casa, porque a de Faubourg não lhe convinha; ao que o senhor retrucou: Mas ela poderá convir-me a mim. Peço-vos que não a negocieis com outrem, antes de minha chegada. Nossa Madre, que nunca ficava inativa, pôs-se imediatamente, com a Irmã Maria, a percorrer as ruas de Amiens, no intuito de encontrar outra casa; desejava encontrar uma grátis, ou por pouco preço. Informaram-na, então, a respeito das dívidas da casa, que eram consideráveis. O bispo de Gand chegou; ele foi ver a casa que lhe convinha. Tratou do negócio em casa do senhor cura, seu tio, juntamente com Madre Júlia. Estabeleceu-se que ele daria 3.000 francos à nossa Madre, como quitação de todas as melhorias que nós havíamos feito na casa; e Madre Júlia gastou os 3.000 francos no pagamento de parte das dívidas: isso parecia até um lance da Providência. Nossa Madre quis prosseguir procurando e batendo de porta em porta, com sua companheira, mas só encontrou uma pequena moradia, anexa a uma ruína de abadia, chamada Moreaucourt, que servia como fábrica de fiação para pobres. Foram-lhe oferecidas casas muito caras, mas ela não as quis, a prudência lho vetava. Ela via bem que o que havia encontrado não era lá tão conveniente, mas a Irmã Maria insistiu muito para que tentassem se acomodar aí; e Madre Júlia admitiu, como experiência e no intuito de nada interditar por si mesma, mas seguir, passo a passo, nas pegadas de Nosso Senhor, com muita circunspecção, sem antecipar-se a cada momento. Cederam-lhe as dependências gratuitamente, e ficou estipulada a importância de 300 francos, para que as Irmãs assumissem a instrução das meninas pobres, na fábrica de fiação. Houve um senhor de Rainneville, que quis instaurar em sua vila, Rainneville, a duas léguas de Amiens, numa moradia adequada, uma fundação com duas ou três Irmãs, com garantias de subsistência. Eram catorze, as que estavam na casa de Faubourg, sem contar as das casas filiais. Nossa Madre falou muito pouco, durante as três semanas que esteve em Amiens; o que mais fez foi olhar e examinar. Sem poder encontrar nenhum vício, nem defeito notável, dizia apenas, com relação a cada coisa que passava diante de seus olhos: Não é isto. A derrocada desta casa proveio, talvez, do fato de só ter dez pensionistas, algumas das quais, ainda por cima 236
não pagavam; o que Madame de Franssu deixou, mais a parte que o Padre de Sambucy abstraiu, para aplicá-la em outro empreendimento com as crianças do coro, disso não sobrava grande coisa para as Irmãs. A jovem Superiora admitia ter recebido donativos consideráveis; o que ela não sabia dizer, era em que haviam sido gastos e como as dívidas haviam-se acumulado. Um dia, eu anotei as despesas, disse ela; no dia seguinte, esqueci de o fazer; depois, estive doente, etc. Nossa Madre Júlia falou, por respeito, ao senhor bispo, a respeito do santo tabernáculo, ao qual já fizemos alusão; disse-lhe que nos havia sido dado por Madame de Franssu e que, no momento, tínhamos necessidade dele em Namur. O prelado lhe respondeu: Bem, já que vos pertence, levai-o, minha filha, levai-o imediatamente. Madre Júlia não quis retirá-lo no momento, a fim de que o Senhor pudesse permanecer na casa algumas semanas ainda, enquanto as Irmãs estivessem em Faubourg, pois, na nova pequena casa, elas não teriam capela. Não se poderia perceber, na cedência do senhor bispo, agora, o cumprimento das palavras que Madre Júlia havia dito à Madre Blin, no sábado, véspera de sua saída definitiva de Amiens: O primeiro pensamento que me ocorreu, ao despertar, foi que nos retinham o santo tabernáculo, assim como, outrora, a Arca da Aliança foi retida pelos filisteus, e que nos será, um dia, devolvido? Com efeito, foi-lhe devolvido, como se vê; e competia à nossa Madre levá-lo, agora. Seja como for, a verdade é que, por vezes, nossa Madre tinha previsões claras e definidas, que passavam como relâmpagos e que, portanto, não poderiam ser negligenciadas, tendo reconhecido nisso, muitas vezes, a graça que a guiava e salvava de embaraços. De toda maneira, ela não as seguia sem se aconselhar, principalmente se se tratava de algo que se apresentasse com alguma suspeita, ou perigosa, segundo seus pontos de vista. A reverenda Madre, vendo as coisas mais ou menos encaminhadas, retornou a Namur, aqui chegando no dia 11 de dezembro. Logo após sua chegada, passou a receber carta após carta da Irmã Maria, as quais faziam alusão às menores circunstâncias. Aproximadamente três semanas após seu retorno, recebeu uma, que lhe anunciava que os administradores de Moreaucourt não queriam mais, absolutamente, ceder a sua pequena casa gratuitamente, ao que nossa Madre consentiu que se 237
pagassem, como aluguel, aqueles 300 francos prometidos pelo trabalho com as crianças pobres. Pouco depois, mandaram-lhe dizer que o senhor que tinha ficado com a casa de Faubourg, iria retirar-se, não a queria mais; deixava, no entanto, mil francos de indenização. Em seguida, Madre Maria lhe disse que pensava sempre em retornar à sua primeira casa. Ela soubera que só estava emprestada e que, portanto, havia determinado retornar a ela. Madre Júlia ter-se-ia oposto inutilmente, mas não o fez. Mandou-lhe dizer que, uma vez que as coisas estavam neste pé, a casa estava dissolvida: que não era ela, mas Deus que o determinava. Na verdade, que sentido fazia, fundar uma casa, sem quaisquer recursos? Era um forte indício para deixar que as coisas tomassem seu rumo, naturalmente. Diversas Irmãs foram deslocadas para as casas filiais, outras reuniram-se em Namur, outras ingressaram na ordem das Damas da Instrução Cristã. Nossa Madre relatou o que se passava, ao Padre Fournier, e o partido pelo qual havia optado, de não relevar a casa com nada. Ele respondeu com a seguinte carta: Amiens, 7 de janeiro de 1813. Minha cara Irmã, Nosso Prelado, após a leitura da carta que me enviastes, persuadiu-se, como vós, de que é impossível que vossa casa de Amiens subsista por muito tempo, sem contrair dívidas, assim que não terá mais recursos do que aqueles que ela já não tem hoje. Ele não pode, contudo, aprovar a proposta que fazeis, permitindo-vos a liberdade de mandar de volta para suas famílias, as Irmãs desta casa, em que não encontrais, quer no tocante ao físico, quer no aspecto moral, as qualidades suficientes para as funções de vosso Instituto. Espero que considereis sempre, como filhas, as Irmãs das outras casas e que useis para com elas, a autoridade que vos dá o vosso título de Superiora Geral, conservando ou eliminando as que vos convêm e as que não vos convêm.
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O senhor bispo refere-se à vossa prudência e à vossa caridade, que são notórias. Nosso Prelado ignorava as intenções da Irmã Maria, que de nada nos informou, nem mesmo das dívidas que havia contraído. Fazei, por ela, o que julgares conveniente, de acordo com o parecer equânime que formulastes. Recebei, minha mui cara Irmã, os agradecimentos do senhor bispo e os meus, em retribuição aos votos que nos formulais; aceitai os nossos em troca; são expressos no sentido de vossa própria satisfação e do sucesso de vossos empreendimentos, para a glória de Deus e o interesse do próximo. Conjuro ao Senhor que continue a cumular-vos com suas graças e suas bênçãos. Recomendo-me às vossas orações, protestando-vos sentimentos tão sinceros quanto respeitosos, com os quais eu sou, minha mui cara Irmã, Vosso muito humilde e devoto servo FOURNIER, V.G. Foi preciso esperar que viesse o mobiliário da casa de Faubourg-Noyon para pagar as dívidas e, como não fosse suficiente, o senhor bispo faria a suplementação: pois nossa Madre foi fiel em manter-se na retaguarda, como lhe havia sido indicado ao entrar na casa. Veio uma outra notícia, algum tempo mais tarde; que o santo tabernáculo estava detido no seminário, para onde o senhor procurador desta casa, encarregado, pelo bispo, da venda e dos negócios da casa de Faubourg, mandara-o levar, e pretendia guardá-lo, como indenização pelas dívidas. A esse respeito, nossa Madre Júlia escreveu ao senhor procurador a carta que segue: Senhor, Tomo a liberdade de vos remeter esta carta, porque acabo de saber que sois o depositário do santo tabernáculo que deveria já ter-nos sido enviado da casa de Faubourg, logo que esta fosse desocupada. Não o reclamo como tendo sido dado a mim, pessoal-
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mente, mas em nome do Instituto das Irmãs de Nossa Senhora, expulsas de vossa cidade sem fundamento, como sabeis. Tive a honra, por decoro, de leva-lo ao conhecimento de Sua Excelência, que me disse para levá-lo imediatamente; mas, por respeito para com o santo sacramento, tenho preferido aguardar o momento do fechamento da casa. O mesmo motivo impediu que o levasse na ocasião, para a nossa cidade de Namur; e Madame de Franssu, a doadora, pediu que o deixássemos, por quatro meses ainda, até que ela tivesse tempo de providenciar com outro. Fizemos mais do que isso, Excelência, e a Providência, que dispõe de todas as situações, devolve-nos, pela dissolução desta casa que jamais deveria ter existido, aquilo que foi dado, não a mim, nem às Irmãs, mas ao Instituto das Irmãs de Nossa Senhora. Senhor, em nada tenho contribuído para a dissolução desta casa. Fostes testemunho da prudência com que quis agir, para com o vigário geral, no intuito de ir até onde achei que devesse ir, e para nada fazer precipitadamente, nem de um lado, nem de outro. Uma reunificação não é tarefa de um dia; faltavam-me o conhecimento de coisas que eu não sabia, não conhecia nem a superiora, nem as súditas; o tempo faria com que as conhecesse. Ninguém, em sã razão, pode impedir esta caminhada, que é a que dá experiência; não tenho desejado outra, eis por que nada quis solidificar, no que concerne à reunificação. Ignorava o comportamento que a superiora queria manter, ela dissimulou sua forma de pensar. Aceitei todas as imposições para uma segunda tentativa em Moreaucourt. As coisas estavam quase concluídas, mudou-se totalmente de tática de ação, e isso pouco tempo após a minha partida. Eu não podia sequer saber que o senhor que ficara com a casa se retiraria. Contribuí, enquanto estava em minhas possibilidades, para pagar as dívidas de que a casa estava onerada; fiz o que pude de melhor. O senhor se retira, deixando mil francos, para a casa; aquilo veio pelo meu intermédio. Senhor, julgo-me responsável perante Deus, como superiora, de fazer todas as reclamações possíveis, relativamente a objetos que pertencem ao Instituto, como também de um santo cibório 240
que, igualmente, nos foi dado; dizeis que a Arca da Aliança não quis ficar com os filisteus... As reclamações que faço são todas justas e imbuídas de espírito cristão; espero que o bom Deus tome para si a nossa causa, como já o fez tantas vezes. Escreverei imediatamente à Madame de Franssu, comunicando-lhe que a casa de Faubourg foi dissolvida. Senhor, tenho confiança que concordareis que minhas razões são justas e fundamentadas, que não peço nada para mim, pessoalmente, mas com justiça, tudo o que nos pertence. Tenho a honra de vos apresentar meu profundo respeito, bem como ao senhor Superior. Estou pronta a instituir um estabelecimento em vossa cidade, quando a Providência me oferecer os meios para isso, etc. Madame de Franssu, de quem já falamos diversas vezes, e que nos havia dado este tabernáculo, não estava mais em Amiens. Pressionada pelo seu mal nervoso e seguindo conselhos do Padre Enfantin, em quem ela depositara sua confiança, partiu em procura de outros ares, em terra estranha, na esperança de encontrar, como o padre lhe havia sugerido, alívio e cura para o corpo e para a alma. Seja qual for o motivo, ela levantara vôo, como um pássaro, numa bela manhã, sem a ninguém dar notícia do seu paradeiro. Partiu no mês de junho de 1812, pouco depois de forte enfermidade. Esqueceu a todos e só veio a darnos notícias suas, em fevereiro de 1813, em resposta a uma carta que nossa Madre lhe escrevera - tendo descoberto, por acaso, o lugar em que morava - na qual lhe pedia uma declaração, de sua parte, para que nossa Madre pudesse utilizá-la junto ao senhor superior do seminário, no intuito de retirar de lá o tabernáculo que nos havia sido dado. Mas ela se recusou a dar o documento, receando, como disse, de descontentar o superior do seminário e, com isso, indispô-lo a aceitar um elemento que ela queria recomendar-lhe e que se destinava ao sacerdócio. Talvez se esteja admirado de não ouvir mais falar, nesta nova ordem de coisas, daquele1 que contribuíra tanto para as desgraças que nossa Madre teve de enfrentar em Amiens. Ele já não se encontrava mais lá. Nesta 1. O Padre Enfantin
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viagem, nossa Madre certificou-se ainda mais de quanto ele queria, por determinação, que ela fosse expulsa de Amiens. Ele gozava da confiança do senhor bispo, que o escutava; veio a perder, imediatamente, esta confiança. Mas essa história já não é mais a nossa. Eis uma outra, que nos diz respeito: o que nossa Madre havia previsto, - quando estava ocupada, ao mesmo tempo, em estabelecer, em Gand, a casa São Pedro e a de Nonnenbosch, - aconteceu e foi esta previsão que a fizera seguir de perto, de maneira tão constante, a abadia. O pároco de São Pedro, que provia à subsistência da casa de sua paróquia, exercia, sobre esta casa, uma espécie de ascendência que entravava Madre Júlia. Ela foi como que constrangida a consentir que o senhor cura introduzisse na casa, oito ou dez grandes moças pobres, da escória do povo. Eram chamadas de neófitas. Elas aí dormiam e comiam, como sendo pensionistas, e recebiam instrução para o trabalho e formação geral. Este tipo de obra parecia excelente ao senhor pároco, para o bem de sua paróquia; mas à nossa Madre isso tudo dava a impressão de que se estaria desviando as Irmãs da tarefa a que nos obriga o Instituto, com relação às crianças. Essas moças grosseiras oportunizavam muitos aborrecimentos e grandes embaraços às Irmãs, ao se tornar necessário que uma delas fosse vigiada dia e noite, porque queria se enforcar. Uma vez chegou a ser surpreendida no galpão, experimentando suspender-se, e ninguém conseguia arrancar-lhe a ideia da cabeça. Vou omitir o relato a respeito do que sucedeu a uma outra. Nossa Madre, querendo advertir a todos de que esses tipos de garotas provocariam perturbação em nossas casas, foi mal interpretada, até duramente. Ocorreram outras pequenas altercações: mulheres de fora, enviadas pelo pároco, vinham intrometer-se nos trabalhos de confecção de renda. Enfim, as Irmãs estavam no auge do cansaço; tudo ia aos supetões. Finalmente, as boas Irmãs de São Pedro, seguindo o conselho de sua Madre, foram refugiar-se em Nonnenbosch, que a Providência lhes havia possibilitado, e a casa de São Pedro fechou, nos últimos dias de dezembro de 1812. Nossa Madre partiu, no dia 9 de março de 1813, para visitar as pequenas casas dependentes da diocese de Amiens; eram em número de quatro. Havia ainda uma, da diocese de Paris, que ficava próxima a esta cidade: isto obrigou nossa Madre a ir a Paris, porque uma senhora, que era a fundadora da casa, lá estava e era preciso tratar com ela. 242
Elas não estavam de acordo sobre certos pontos; além do mais, este estabelecimento não condizia com o objetivo de nosso Instituto. As Irmãs tinham poucos alunos matriculados, porque havia várias escolas nos arredores; esta era muito pequena, de modo que nossa Madre, num primeiro relance, percebeu tratar-se de um estabelecimento que deveria ser transferido para outro lugar; mas como em toda parte, em tais circunstância, ela deu apenas conselhos e um pequeno regulamento, com promessa de mais algum novo agrupamento, se se achasse conveniente; ela não quis, em absoluto, usar de sua autoridade para exigir uma obediência imediata das Irmãs, mas expôs-lhes o seu ponto de vista e deixou-as livres. Elas disseram que queriam filiar-se a uma entidade, e não ficar com a senhora, mas este aspecto foi protelado para outro momento. Nossa Madre andava passo a passo, como já se tem afirmado no início. Havia, ainda, a casa de Rubempré, perto de Amiens, que se encontrava em situação embaraçosa. A Irmã Vitória era a superiora. Esta Irmã Vitória de que se tem falado no início, a qual muito contribuiu nas desgraças que sofremos à época em que estávamos em Amiens. Nossa Madre tinha, com relação a ela, diversas informações de pessoas que lhe contaram ou que ela mesma soube por si, ao chegar em Amiens, de que essa pobre filha perdera inteiramente o espírito de sua vocação. Não havia, na casa, nem ordem, nem autoridade, nem exercícios de piedade, nada; aquilo era um verdadeiro alvoroço, semelhante ao que fazem as mulheres, em seus afazeres domésticos; enfim, era uma descompostura total. O senhor pároco já havia falado do seu descontentamento, mas como a boa opinião que se tivera a respeito desta Irmã no arcebispado não estava, ainda, apagada de todo, Madre Júlia viu-se em grande embaraço. O bom Deus dispôs tudo a contento, servindo-se de certas circunstâncias. Aconteceu que, estando justamente nossa Madre com o senhor bispo, a Irmã Vitória também lá se encontrou. Ela já havia visto o bispo, estava numa antecâmara. O bispo falou à nossa Madre, que lhe disse, em termos, seu modo de pensar. O prelado quis que Madre Júlia fosse procurá-la, lhe falasse, exortando-a. Ela o fez por obediência, falou à Irmã com doçura, procurou encorajá-la a enveredar novamente pelo caminho da virtude; mas não obteve resultado nenhum. Irmã Vitória se exclamava a respeito do que se dizia acusada, o que, aliás, era tanto melhor para ela, 243
porque seu bom Jesus também o fora, etc. etc. Após um longo espaço de tempo, nossa Madre voltou para junto do senhor bispo, o qual lhe perguntou o que achara dela, como a sentira. - De bronze, respondeu nossa Madre. - Realmente, disse o senhor bispo, eu percebi isso na expressão de seu rosto. Deve haver, nela, algo escondido; mas, com as mulheres, isso só se vem a descobrir à hora da morte. O secretário do senhor bispo, muito considerado pela Irmã Vitória, também apareceu e quis fazer com que nossa Madre dissesse algo de favorável com relação à Irmã; pressionou-a muito neste sentido, mas ela permaneceu de pé, entre o bispo e ele, imóvel, sem dizer uma palavra. Eles perceberam logo de que ela estava convicta e determinada a não se incumbir desta Irmã. Tudo terminou assim. Ela não chegou a visitar este estabelecimento, pois que razões múltiplas a impediam de querer assumir a sua direção. Nossa Madre visitou as casas de Rainneville, Montdidier e Bresle, tornou a passar por Gand e Zele e voltou a Namur, no dia 13 de abril. Partiu para sua viagem anual de St-Hubert, no dia 10 de maio; retornou no dia 17. Tínhamos em nossa casa, fazia dois anos, uma jovem chamada Irmã Pacífica Era noviça, tinha apenas dezoito anos. Desde o mês de janeiro, esteve sempre doente, sem apetite; não se sabia qual a causa de sua indisposição. Chamou-se o médico, o qual nada diagnosticou, até o momento em que expeliu uma parte da tênia que trazia, sem dúvida, desde muito tempo. Foi posta na enfermaria, cuidou-se muito dela, mas sempre em vão. Ela só definhava cada vez mais, não se alimentava, e diariamente tinha crises, como de alguma coisa que a agitava, a sufocava e a punha em tal estado, que por várias vezes acendemos a vela benta e rezamos as orações pelos agonizantes. Foram-lhe ministrados, finalmente, os últimos sacramentos, através dos quais ela recebeu muitas graças e muito consolo. Os sofrimentos aumentaram, mas sua paciência não a deixou um só momento; ela edificava a todos quantos a viam. Pediu que se lhe concedesse a graça de emitir os votos, o que nossa Madre lhe permitiu, oito dias antes de morrer. Ela desejou também receber o santo escapulário; foi-lhe concedido; ela tinha,
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no mesmo dia, recebido a absolvição geral e tinha pedido a Deus, do fundo do coração, que a deixasse morrer, para não mais o ofender. Nossa Madre tinha uma viagem a fazer a Jumet, para onde levaria uma Irmã, e transferiria uma de Jumet para Gand. Partiu no dia 28 de maio para Jumet, e tornou a partir no dia 29, com outra Irmã, mas sempre preocupada, com o pensamente na doente que deixara em casa. Ela estava indecisa, se faria sua viagem até Gand, ou se a concluiria em Zele, de onde a Irmã poderia seguir sozinha até Gand. Seu condutor perguntou-lhe aonde queria ir, mas, não podendo decidir-se, embora fosse natural que seguisse para Gand, ela lhe disse que ainda veria, quando ele estivesse no local onde os caminhos se separam. Quando lá chegaram, ele não lhe perguntou nada e enveredou pelo caminho de Zele; nossa Madre não disse uma palavra sequer e deixou-o agir, o que fez com que sua viagem fosse abreviada pela Providência. No dia seguinte, ela viajou novamente com a Irmã Jane Godelle, a quem desejaria proporcionar a alegria de vir passar uma dúzia de dias na casa mãe. Retornou a Namur no dia 1º de junho. Seu primeiro cuidado foi o de ir ver a doente, que tinha sempre, passadas as crises, uma fisionomia agradável e um rosado bonito, nada macilento, embora o corpo o fosse extremamente; tinha o olhar vivo, olhos claros e belos, nada de mau odor. Nossa Madre achou-a melhor do que supunha e julgou que ela viveria ainda muito tempo. Fazia onze dias que recebera os santos sacramentos, e perguntara, em duas oportunidades, na véspera, se não poderia receber mais uma vez o santo viático, e a enfermeira estava muito preocupada com isso. A noite foi sofrida e, de madrugada, a enfermeira veio falar à nossa Madre, para que a doente recebesse a santa comunhão. Nossa Madre foi de parecer, que não via por que necessidade de pressa; entretanto, endossou o sentimento da enfermeira e pediu ao senhor pároco que viesse imediatamente. Felizmente, ele não se fez esperar: a doente teve a felicidade de receber ainda seu Senhor e seu Deus, em estado de plena lucidez. Foi-lhe dada a santa comunhão no início da missa da comunidade e, antes que a missa tivesse terminado, o pároco foi chamado. Ela ainda estava consciente, coisa que conservou até o último momento. A fala lhe era difícil, mas não a perdera 245
de todo, pois dois ou três minutos antes de expirar, ela passou o braço em volta do corpo de sua enfermeira e disse-lhe, ainda, algumas palavras. O senhor cura teve tempo de rezar as orações dos agonizantes, de sugerir-lhe alguns bons sentimentos e ele a viu exalar o último suspiro, da mesma forma que várias dentre nós, numa breve agonia, no dia 2 de junho de 1813. Nós admiramos a felicidade que ela teve, de morrer tão poucos instantes após ter recebido seu Salvador. Sua morte foi-nos um grande consolo e não tivemos nenhum sentimento de tristeza. Fizemos uma agradável recreação à mesa, neste dia e no dia seguinte, dia do enterro. Temos a confiança de que ela interceda por nós junto de Deus. O costume da região é o de colocar várias pessoas na mesma cova; mas nossa Madre obteve uma permissão do prefeito, para enterrá-la à parte. Foi enterrada, pois, quase vis-à-vis com Cristo, um pouco à esquerda, a doze ou quinze passos de distância. Nossa Madre teve particular consolo com esta morte; ela nos disse que omitir-nos-ia as razões, que só as conheceríamos no dia do juízo final; que tudo o que podia dar-nos a conhecer é que esta jovem Irmã, quando ainda criança, antes de vir à nossa casa, suportara grandes combates em nome da virtude. Há, à distância de quatro léguas de Namur, uma pequena cidade, chamada Gembloux. Havia, nesta cidadezinha, uma velha professora que, não podendo mais atender aos seus compromissos na instrução das crianças, decidiu retirar-se; isto fez com que pessoas viessem de Gembloux a Namur, falar com o senhor bispo, em seguida com nossa Madre Júlia, para ter Irmãs nossas. Nossa Madre foi visitar o local, no dia 14 de junho, a fim de buscar as necessárias informações. Ela encontrou todo mundo, tanto do lado das autoridades civis, quanto eclesiásticas, da mesma forma que os habitantes, extremamente zelosos em ter Irmãs. A casa, no entanto, era tão suja e tão mal ajustada a isso, que ela não quis nada confirmar e voltou, deixando tudo indeterminado. Havia, no entanto, três ou quatro motivos para ela exigir melhorias, dizendo que, se eles o fizessem, ela procuraria mandar Irmãs.
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Em seguida, ela foi obrigada a viajar à França, no dia 6 de julho, a fim de atender a necessidades sempre novas das pequenas casas. As Irmãs de Ambleville, próximo a Paris, tendo, sabiamente, decidido vir a Namur, nossa Madre lhes disse, após sua decisão, que se dirigissem a Montdidier e que lá ela as apanharia. Eram três. Nossa Madre as conduziu, com uma postulante de Montdidier, e chegaram em Namur, no dia 24. Depois, ela foi a Gembloux, no dia 12 de agosto, para ver a quantas andavam as coisas por lá. Ela achou que haviam trabalhado muito e que nada se estava poupando para ter Irmãs na cidade, o que fez com que ela partisse, no dia 14, para Gand, para buscar uma Irmã que ela destinara a Gembloux. Retornou por Zele e lá buscou, de passagem, duas Irmãs que deveriam vir gozar suas férias e fazer seu retiro anual em Namur. Nossa Madre ouvira falar, várias vezes, de uma pequena cidade chamada Andenne, também a quatro léguas de Namur, como em se tratando de um lugar onde havia muito por fazer, se ali se pudesse abrir um estabelecimento; mas a comunidade não tinha recursos para fornecer nem moradia, nem subsistência às Irmãs. Nossa Madre conhecia o vigário do lugar e também uma senhora, cuja filha estava em nossa pensão de Namur. Após ter buscado certas informações e apreendido que lá havia uma casa que se podia alugar, muito conveniente para nós, determinou-se a ir a Andenne fazer algumas tentativas, se isso fosse do agrado do senhor bispo. Ela foi, por isso, pedir-lhe, primeiramente, sua opinião e o seu consentimento, depois ela foi até o local, para conhecer as coisas mais de perto. Lá esteve no dia 29 de agosto. O prefeito da cidade era um homem excelente, cheio de sentimentos cristãos. Ela foi acolhida da melhor maneira que se possa imaginar; desejava-se imensamente que recebêssemos, em nossa escola, os garotos, porque havia-os em grande quantidade e não havia recursos, no local, para dar-lhes instrução. O prefeito ficou muito contristado, quando soube, de nossa Madre, que tal não atendia aos objetivos de nosso Instituto, que tudo o que poderíamos fazer na cidade, que era carente de padres e de todo recurso, seria o de prepará-los à primeira comunhão e outros sacramentos. Este bom prefeito não se aborreceu e não esmoreceu em seu desejo de ter Irmãs. O senhor cura, o vigário e muitos cidadãos também o desejavam, mas a comunidade, estando em dificuldades devido às intempéries, 247
ninguém ofereceu recursos pecuniários. Nossa Madre viu que nada podia esperar desse lado. Por essa razão, determinou-se a alugar imediatamente a casa em questão, tanto mais que ali havia um espaçoso jardim que pareia compensar o preço da locação, a qual, com os impostos, somava, aproximadamente, 400 francos. Nossa boa Madre sabia que tinha, em mãos do senhor Ferdinando Lemaire, de Gand, o dinheiro de Madame de Franssu à sua disposição, o qual estava destinado a semelhantes empreendimentos. No dia 1º de setembro, nossa Madre fez uma viagem a Bruxelas. Uma senhora havia solicitado, que viesse, porque queria confiar-lhe uma neta; mas esta senhora não se encontrava no local e nossa Madre teve o aborrecimento de perceber que fizera uma viagem de vinte e quatro léguas em vão. Mas como ela era exata em tudo, justa e avisada, a fim de não dar prejuízo à casa, soube, mais tarde, fazer com que a senhora lhe pagasse o que gastara com a viagem. No dia 13 de setembro ela foi a Andenne, em companhia da Irmã São José, para ver se os operários que o proprietário devia controlar no trabalho, faziam, realmente, a obra avançar. Ela chegou, nada estava iniciado e ela pôs tudo em andamento. No dia 28 foi a Gembloux, para ver quais as providências que já haviam se tomado. Lá, as coisas andavam a pleno vapor. Punham, em tudo, muito zelo e muito dinamismo. Gembloux fez, para a pequena casa, 900 francos de despesas; mas isso não a fez nem maior, nem mais cômoda. Nossa Madre havia feito a petição exigida pelo artigo 5 do decreto imperial de nossa aprovação. Ela o havia encaminhado ao prefeito, apresentando os estatutos aprovados pelo governo, certificados visados pelo bispo, documentos que deviam ser enviados ao ministro, pelo prefeito. As mesmas formalidades haviam sido feitas para a casa de Andenne, e esta casa já estava pronta para receber as Irmãs. Nossa Madre já enviara, por água e por terra, os móveis simples. Duas Irmãs lá já tinham estado por alguns dias, de modo que nossa Madre partiu, no dia 6 de outubro de 1813, com quatro Irmãs, para constituir a casa. O senhor cura havia anunciado a abertura da escola no domingo anterior e, no dia 7, foi celebrada uma missa cantada, como se costuma fazer em todas as novas instalações. Em seguida, houve, já, um grande número de crianças externas que vieram inscrever-se. O preço fora fixado de acordo com a região: é variável, necessariamente. Vieram também pobres. Jantou-se em casa do senhor cura. 248
No dia 11 do mesmo mês, nossa cara Madre partiu para Gembloux, com a Irmã Cisca Steenhaut, chamada, então, Irmã Gertrudes; Adelaide Pelletier, chamada Irmã Bernardina; Isabel Rodders, chamada Irmã Catarina; Madalena Graefmeyer, chamada Irmã Madalena, para formarem a nova casa. No dia 13, o pároco, segundo o costume, cantou uma missa do Espírito Santo. As autoridades civis assistiram a ela e também um grande número de jovens que se tinham apresentado para nossas escolas, tanto para o pensionato, quanto para fazer parte do número das externas e das pobres. Após isso, todos foram à casa das Irmãs, onde se fez a leitura das cláusulas e condições que constavam de uma ata que o prefeito mandara lavrar, e as aulas começaram em seguida, para a satisfação desta pequena cidade, onde as Irmãs foram longamente desejadas. Há, ainda, uma cidadezinha, a cinco léguas de Namur, chamada Fleurus, a qual, à maneira de Gembloux, da qual é vizinha, também desejava Irmãs. O prefeito do lugar havia solicitado insistentemente à nossa Madre, que ali viesse ter, a fim de se combinar a modalidade de fundar um estabelecimento. Nossa boa Madre partiu, pois, no dia 18 do mesmo mês de outubro, com a intenção de passar por Fleurus, ir até Jumet e retornar por Gembloux, três lugares situados, mais ou menos, na mesma direção. Quando estava em Jumet, achou oportuno dar um pulo até Maubeuge, onde um bom padre a estava solicitando, havia muito, para encontrar-se com pessoas que, segundo ele, tinham vocação para se tornarem Irmãs de Nossa Senhora. Convinha, pelo menos, examiná-las. Nossa Madre desejava, sempre, ver antes as pessoas que iria admitir e não gostava de proceder de maneira contrária, embora, às vezes, isso tenha acontecido. Esta viagem foi feita sob um mau tempo terrível, em circunstâncias penosas e adversas: foi obrigada a andar a pé, de vila em vila, não encontrando a pessoa certa, que pudesse dar-lhe conforto e conselho; ao contrário, encontrou pessoas importunas e cansativas em excesso. No entanto, ela viu algumas das pretendentes, mas todas muito ridículas, exceto uma, que lhe pareceu inspirar alguma esperança. Todas, porém, tinham o coração e o espírito preocupados com seus irmãos, parentes e amigos que deveriam partir para a guerra, que dizimava toda a juventude; de maneira que nossa Madre não encontrou motivos e frutos que lhe dessem satisfação, nesta viagem, exceto os sofrimentos que ela soube suportar com reta intenção, 249
para a glória de Deus, o que não pode tornar nada inútil, uma vez que se transforme no móvel de nosso agir. Esta viagem foi feita em cinco ou seis dias. Tornou a viajar no dia 26 do mesmo mês, desta vez para Rochefort, onde a chamaram para fundar mais um estabelecimento; não obstante, para sua lástima, ela fez uma viagem inútil, que não serviu para nada. Bem que teria gostado de sediar Irmãs nesta cidade, porque, vizinhas da comunidade de St-Hubert, elas seriam, umas para as outras, uma espécie de socorro por ocasião de doenças ou outras emergências, tanto mais que, para ir de Namur a St-Hubert, sobretudo no inverno, os caminhos são tão intransitáveis e perigosos, que é preciso desistir de o fazer. O principal obstáculo à fundação do estabelecimento, nesta cidade, foi a excessiva distância que havia entre a igreja e a casa que era destinada às Irmãs; este sempre foi, para nossa Madre, um inconveniente maior. Esqueci de dizer o que sucedeu à nossa Madre, quando esteve em Fleurus, no dia 18 de outubro. Ela encontrou o senhor prefeito e todos aqueles a quem o projeto pudesse interessar, imbuídos da melhor boa vontade possível, as cláusulas foram convencionadas, salvo o resultado de posterior reflexão. Lembraram-se que era necessária a concorrência do poder espiritual com o temporal, e como, então, o legítimo bispo de Tournai, - sob cuja jurisdição estava esta cidade -, fora deposto,1 decidiu-se aguardar alguma mudança, que pudesse oportunizar o prosseguimento. Esta prorrogação foi muito favorável, dada a invasão das tropas estrangeiras2 que sobreveio. No dia 9 de novembro, nossa Madre foi a Andenne visitar as Irmãs que se haviam estabelecido recentemente. No dia 16 esteve em Jumet, para onde levou uma Irmã; passou por Fleurus. No dia 27, partiu para Gand, a fim de visitar a Irmã Catarina, que estava gravemente enferma de uma bronquite que contraíra no final da quaresma, que ela passara de maneira muito rigorosa e como uma jovem que conta com suas forças. Se nossa Madre estivesse estado lá, esta imprudência não teria acontecido. Todos os 1. O bispo Hirn foi preso em Vincennes, com o bispo de Boulogne e o Dom de Broglie, bispo de Gand. Por sua oposição à causa da Instituição dos bispos pelos metropolitanos e não pelo Papa. (“História religiosa da França contemporânea, por Dansette; Flamarion, 1965, p.174-5) 2. Os exércitos russos, prussianos e austríacos, coligados contra a França, após a batalha de Leipzig, perseguem as tropas francesas, passando pela Bélgica.
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anos, após as festas da Páscoa, ela sofria de bronquite aguda. Esta doença se agravou, desta vez, atingindo o pulmão, de tal modo que não foi mais possível salvá-la; faleceu no dia 1º de julho de 1814. Sua vida foi sacrificada, sua doença e sua morte, edificantes. Nossa Madre retornou desta viagem a Gand, no dia 3 de dezembro de 1813. Não posso omitir os temores pelos quais passamos, quando da passagem de tropas estrangeiras pela França. O bom Deus, em sua grande misericórdia, preservou-nos de termos que hospedá-los em nossas casas; mas não fomos poupadas da angústia de vê-los entrar, a cada instante, pois, embora não fosse preciso abrigá-los, não estávamos nunca fora de perigo. Eles tinham por hábito ir de um lugar a outro, a seu belprazer, entrar e ficar onde achassem mais conveniente para eles: o que nos punha sempre em sobressalto, obrigando-nos a ficar à espreita, espiando pelo buraco da fechadura, qual o momento favorável para deixar as crianças entrarem ou saírem da escola. Nossa Madre mandou reforçar a porta da rua, e o fez em tempo, porque eles vieram várias vezes, de dia e de noite, batendo e empurrando com insistência; os excessos e as violências que praticavam, aqui e em outros lugares, eram tais, que punham todo mundo em alarme. Tínhamos posto a imagem da Virgem sobre as principais portas da casa, e uma oração que cada uma rezava, diariamente; e, cinco vezes ao dia, nossa Madre rezava conosco cinco Pater e Ave, com os braços abertos, e, após a ação de graças o Miserere e o Domine non secundem. Enfim, unimo-nos, da melhor maneira possível, às orações de toda a Igreja, no seio da qual encontravam-se, ainda, um bom número de justos que pudessem repelir a cólera de Deus, justamente irritada, arrancar-lhe a chibata das mãos e fazer nascer a esperança de um futuro mais feliz. Graças infinitas sejam dadas ao Deus todo poderoso e todo bondade, pois foi Ele que assim o fez. Não sei exprimir o quanto e de quantas maneiras nossa Madre excitava-nos ao reconhecimento e gratidão por este inestimável benefício. E, em geral, sempre que houvesse alguma aflição pública, seja na Igreja, seja no Estado, como por exemplo, um tempo adverso às colheitas, etc., ela nos incitava a que fizéssemos orações particulares, dizendo que se tratava de um dever de religiosas, o de orar por todas estas necessidades. 251
Enquanto, por toda a parte, o país estava infestado de soldados estrangeiros, o temor e a prudência retiveram nossa Madre em casa. Ela ficou, aproximadamente, cinco meses sem pôr os pés fora de casa; mas, logo que o grosso das tropas se foi, ela se arriscou, no dia 12 de abril, a ir ver suas filhas de Andenne. No dia 22, ela foi, com a Irmã São José, a Gembloux; no dia 3 de maio, a Fleurus e a Jumet. No dia 11 do mesmo mês, partiu para Gand e Zele; ela fez, ainda, outras pequenas viagens. No dia 21 de junho deste mesmo ano de 1814, nossa Madre partiu para fundar a casa de Fleurus. Levou consigo as Irmãs Juliana Masseau, Anastácia Pillaut e Pacífica Camus. Agnes Fléchemer, que era da casa de Jumet, distante apenas duas léguas de Fleurus, veio reunir-se a elas para ser a quarta e, pouco tempo depois, faltaram ainda duas. Esta casa se desenvolveu, no início, com rapidez; no mês de agosto, já contava com dezesseis pensionistas e muitas externas. Infelizmente, não havia local para receber as pobres, e foi isso que nossa Madre não pôde suportar. Ela aceitara o estabelecimento, na condição de que conseguissem uma casa para pobres, pois, repito-o, nós devíamos ter os pobres em toda parte. Esta é a primeira e principal pedra de nosso edifício. Não posso silenciar um pormenor que interessa pessoas as quais o reconhecimento e os interesses comuns da religião nos ligam. Desde o início do reinado de Luís XVIII, na França, os jesuítas foram restabelecidos ou tolerados, e os senhores, ditos Padres da Fé, filiaram-se à sua instituição, endossando o seu espírito. Nesses primeiros momentos de liberdade, o padre Varin escreveu à Madre Júlia e ela lhe respondeu; na carta, ele prometeu que viria a Namur, o que não chegou a se concretizar; mas nossa Madre encontrou-o em Amiens, numa viagem que ela fez em inícios de julho; reencontraram-se com muita alegria em Deus. Nossa Madre trouxe, da viagem que fizera a Amiens, em julho de 1814, nove postulantes e a superiora da casa de Bresles. Eram em três, nesta casa; uma ficou com a Irmã Clotilde, em Montdidier e a outra voltou para casa de seus pais. Não me deterei relatando as circunstâncias que forçaram as Irmãs a se retirarem desta casa; contentar-me-ei em dizer que tudo foi pesado longamente e que o fato só se consumou após ter-se consultado o senhor bispo de Amiens. As Irmãs de Reinneville retiraram-se por conta própria. 252
Assim, na França, só permaneceram três Irmãs em Montdidier, para as quais nossa Madre obteve enfim, nesta viagem, a posse de uma grande casa que havia sido dada por uma boa senhora, às Irmãs de Caridade, na falta das quais nossas Irmãs deveriam aí entrar e administrar, no mês de setembro; entraram, realmente, mas, em 1816, os administradores de Montdidier solicitaram Irmãs de Caridade de Paris, e nossas Irmãs, tendo vindo a Namur para suas férias, no mês de setembro do mesmo ano, aqui ficaram. Em fins de julho, nossa Madre fez uma curta visita a Andenne e a Gembloux; aqui, a casa se tornara demasiadamente pequena e havia outros incômodos. No dia 22 de agosto foi a Fleurus, ver uma outra casa, uma vez que a primeira se tornara pequena demais, não podendo comportar as pobres; decidiu-se por uma que achou adequada, não olhando tanto o preço, que era um tanto elevado. Partiu, no dia 30, para Douai, fez oitenta léguas, tanto de ida quanto de volta, a fim de poder falar com um tal senhor Paulet, proprietário de uma grande abadia situada em Gembloux, da qual, uma parte nos era extremamente conveniente, para nela localizar nossas Irmãs, que minguavam na pequena e insuficiente casa. No dia 22 de setembro, ela conduziu as Irmãs de Fleurus para sua nova casa. No dia 26, fez uma visita a Andenne. No dia 27, partiu para Gand, onde surgira a questão acerca de um estabelecimento, para o qual o senhor Le Surre, vigário geral, a havia solicitado; mas não chegou a ser fundado. Nossa Madre fora bem acolhida pelo Padre Paulet, proprietário da abadia de Gembloux. Escreveu-se a ele, inutilmente, e nada se pôde obter por cartas e requerimentos. Ele enviou, no dia 6 de outubro, um seu procurador até o local, a fim de fechar o negócio com Madre Júlia, que também lá se encontrava. Embora só tenhamos conseguido uma pequena parte da abadia, havia lugar de sobra para alojar todas as Irmãs de Namur, e salas de aula bem amplas. Tudo aquilo nos foi cedido por um aluguel bastante módico, mas era preciso fazer alguns reparos indispensáveis, que nos custaram muito. Nossa Madre para lá retornou no dia 10, acompanhada da Irmã São José, a fim de ativar os operários, que trabalhavam desde seu retorno de Douai 253
e que, graças aos cuidados do vigário de Gembloux, haviam quase terminado a tarefa, ao menos tanto quanto fosse necessário para que as Irmãs aí pudessem entrar, no dia 18 de outubro. Nossa Madre foi aguardá-las na nova casa, desde a véspera. O cargo de superiora coube à Irmã Gertrudes Steenhaut. No dia 2 de novembro, nossa Madre partiu em visita a suas filhas de Fleurus e às de Gembloux. No dia 15, novamente a caminho, com a Irmã São José, para Gembloux outra vez, depois para Fleurus e de novo para Gembloux. No dia 18, esteve em Andenne; no dia 5 de dezembro, em Fleurus e, no dia 12, em Andenne, onde estava a Irmã Escolástica Husson, noviça, atacada de uma doença perigosa, da qual veio a falecer, no dia 18 de janeiro de 1815, em perfeita resignação, com a idade de, apenas, vinte e cinco anos. No decorrer do ano de 1815, ela fez diversas viagens em visita às casas filiais próximas de Namur. Ela lá ia continuamente, conforme as necessidades, que eram muito frequentes. Fez três viagens a Gand, duas a St-Hubert, as quais sempre eram penosas, duas a Liége, a fim de preparar e lançar os fundamentos, para um estabelecimento que só pôde iniciar em 12 de outubro de 1816, após a perda que tivemos desta cara Madre. Foi pessoalmente a Dinant, ver o local e dispor tudo para um estabelecimento, que se efetuou a 19 de junho do mesmo ano. Pensamos que estas duas casas foram tão exitosas devido à proteção que esta querida Madre nos dispensou, da morada dos Bem-aventurados, onde a invocamos com confiança, para que tomasse a tutela da obra que ela iniciara sobre a terra. É por isso que ela pode ser considerada, ainda, a fundadora desses estabelecimentos também. Não se esperava receber, em 1815, todas essas tropas estrangeiras, que haviam retornado, recentemente, para seus países. Não somente as passagens se esgotaram, mas este país foi teatro de guerra, quando Napoleão, saído de sua ilha,1 veio, com sua armada, atacar os aliados que, havia diversos meses, se agrupavam junto às nossas fronteiras, para entrar na França. Fleurus, Jumet, Gembloux ficaram juncados de militares; houve lutas em Fleurus e escaramuças em todos estes distritos. Via-se, das janelas 1. A ilha de Elba, cedida pelo rei de Nápoles à França, a 28 de março de 1801 e anexada no ano de 1802, em agosto. Após sua abdicação, Napoleão recebeu esta ilha, com uma pensão anual, mediante o tratado de Fontainebleau, de 11 de abril de 1814. Ele se rendeu a 20 de abril de 1814. (“Napoleão”, por G. Lefébve, P.U.F. 1969, p. 566).
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da casa de nossas Irmãs, o fogo dos canhões e as fileiras de soldados que caíam mortos. Que duro espetáculo para religiosas! A batalha decisiva, em que a armada de Napoleão sofreu uma derrota espantosa, da qual não mais se reergueu, deu-se por estas bandas. Estes infelizes desertores não sabiam aonde se refugiar, nem onde encontrar alimento, da mesma forma que aqueles que os perseguiam, um bando dos quais quebrou as portas da casa de nossas Irmãs em Fleurus. Seu primeiro ímpeto foi o de procurar comida. Enquanto estavam na cozinha, ocupados em satisfazer a necessidade que os oprimia, as Irmãs, que estavam no alto da casa, tiveram grande medo, que se intensificou quando ouviram seus passos que subiam. Mas a santa Virgem, cuja estátua estava num quarto de porta aberta e que eles devem ter visto, não permitiu que avançassem mais; desceram lentamente e se retiraram da casa. As Irmãs, imediatamente, saltaram por sobre os muros do jardim, que eram bastante altos, jogando-se do outro lado, com grande risco. Quando estavam a salvo, perceberam que faltava uma delas. Voltaram para procurá-la, e a divina Providência não permitiu que elas fossem vistas pelos militares. O bom Deus preservou-as de muitos perigos, pois havia um grande pântano em torno do muro, no qual elas poderiam ter-se precipitado. Era noite; todas seis, unidas, bem como algumas pensionistas que estavam com elas, escorregaram pelos jardins, até à casa de um morador do lugar, que as acolheu com bondosa caridade; mas nenhum lugar era seguro. Eis que entra uma tropa de soldados, elas se escondem no celeiro, mas os soldados também vão para lá. Que medo e que susto levaram! Um soldado toma uma pelo braço, que grita com todas as forças e consegue escapar. Uma outra joga-se escada abaixo, seu alarme fez com que viessem em seu socorro. Encontravam-se por perto, graças a um cuidado especial da Providência, policiais que subiram ao celeiro. Aliás, um desses soldados, seja movido por um bom sentimento ou outra coisa, disse aos outros, falando de nossas Irmãs, que estavam agachadas a um canto, mais mortas que vivas, e que, tendo tirado seus véus, eram escuras como corvos: Deixemos esses pobres diabos! Com efeito, não lhes fizeram nenhum insulto, mas um medo cruel. Levaram colchões, cortinas e tudo o que havia ficado na casa. Elas tiveram o cuidado de esconder sua roupa interna e tudo o que foi possível, quando foram dados os primeiros alarmes. Colocaram feridos em suas casas; foram obrigadas a permanecerem durante quatro semanas 255
em casa do senhor que as abrigara. Era um senhor de sessenta anos; ele teve muitos cuidados por elas, não obstante o maior de todos os contratempos fosse o de se encontrarem fora de casa; consolavam-se apenas por sua resignação à vontade de Deus. Finalmente, puderam retornar ao seu querido lar, mas sujo, vazio e numa desordem afrontosa. Em Gembloux, entraram pelas janelas. Todo o andar térreo foi saqueado, devastado, mas elas tiveram um salva-guarda prussiano que chegou em tempo, para impedir que as coisas não fossem piores. Elas só tinham elogios à honestidade desse oficial. As de Jumet também ouviram e viram os horrores da guerra; forneceram, tanto quanto lhes foi possível, alimento aos que vinham pedi-lo, franceses e estrangeiros. Não receberam nenhum insulto. Um oficial prussiano passou em sua casa, diversas vezes, servindo-lhes de salvaguarda. Também em Namur tivemos grandes alarmes, sem nenhum mal maior. Após a derrota da grande armada de Napoleão, que foi a 18 de junho, os franceses que - conforme se conta - em número de quarenta mil, puseram-se em fuga, entraram em Namur no dia 19. Não se sabia, ainda, o que aquilo significava. No dia 20 de manhã cedo, os prussianos estavam às portas da cidade. Até às seis horas da tarde, os tiroteios foram contínuos, mas não houve tiros de canhão. Só havia dois franceses. Os prussianos eram multidão, mas o general teve a generosidade de não os deixar atirarem sobre a cidade - o que a teria reduzido, imediatamente, num montão de escombros -, e isso, em reconhecimento à boa acolhida que eles tiveram, em Namur, onde, além da boa recepção, foram bem tratados durante muito tempo. Caso contrário, o combate teria sido menos longo, os prussianos teriam perdido menos homens, mas a cidade teria sido destruída. Pelas seis horas da tarde, os aliados entraram por uma porta, os franceses retiraram-se por outra. Assim terminou o combate. Foi devido à proteção e bênção da Virgem sobre a cidade, pessoas piedosas estão persuadidas disso. Cantaram-se missas, levantou-se um altar na catedral, fez-se um belo culto de ação de graças. Não saberemos, jamais, agradecer suficientemente o bom Deus, que nos protegeu como um bom pai e nos preservou dos maiores perigos. 256
Pois não é a história da guerra que pretendo contar, não é esse meu objetivo; outros o farão, sem mim. É a história da Providência, é o tributo de reconhecimento que desejo legar às nossas Irmãs dos tempos futuros. Nossa Madre, nessas circunstâncias, tomou sempre muito cuidado em reunir e esconder diversos objetos. Era de uma solicitude contínua, de dia e de noite, no sentido de afastar os males que nos ameaçavam. Muitas vezes vigiava até tarde, rezando na capela, enquanto os soldados batiam à porta, com pancadas. Esta boa Mãe era muito afeiçoada às suas filhas, que ela via como tesouros que Deus lhe havia confiado, para que não fossem atingidas no corpo e na alma, vendo os perigos aos quais elas estavam expostas, principalmente nas casas vizinhas aos locais em que se deram os horrores da guerra, ouvindo os relatos hediondos e não podendo, de tempos em tempos, receber notícias delas. Ela suportou todos esses transes com grande força de alma, encorajando-nos e incitando-nos à confiança; mas sua fisionomia se alterou e ela se sentiu mal, pouco tempo depois. Pode-se dizer que esses assaltos lhe afetaram o sistema nervoso, pois que era muito sensível e contribuíram à doença mortal, que se tornou declarada seis a sete meses mais tarde.
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Capítulo 10 ESTE CAPÍTULO CONTÉM DIFERENTES PARTlCULARlDADES QUE PODERÃO CONTRlBUIR A QUE MELHOR SE CONHEÇA O MÉRITO DE MADRE JÚLIA E AS CIRCUNSTÂNCIAS DE SUA MORTE. Pensa-se que, para consolo das Irmãs de Nossa Senhora, se deva falar ainda de sua digna Mãe, a fim de que a lembrança das circunstâncias de sua morte se conserve entre nós e que o conhecimento de suas preciosas virtudes seja um odor que exale seus perfumes através dos tempos. Que direi de sua confiança em Deus? Parece que ela ultrapassou, nesta virtude, todas as outras, e que sua confiança na Providência tenha atingido um grau raro. Quando as dificuldades, os embaraços, os afazeres múltiplos caíam sobre ela, todas estas coisas não a faziam mudar em nada. Tive oportunidade de vê-la, diversas vezes, assumir um ar agradável e, rindo, dizer: Tudo isso, afinal, não compete a mim, mas a Deus. Estava muito longe de se apoiar em suas próprias forças; a oração era seu primeiro recurso, nessas circunstâncias espinhosas e, embora se ocupasse do assunto e falasse sobre ele com pessoas que pudessem ajudá-la, era em Deus que depositava sua esperança. Sempre que tomava qualquer decisão, não tinha nenhum sentimento de inquietação. Dizia: Quando me decido por algo, já não penso mais naquilo, está decidido. Isso não quer dizer que fosse renitente e não mudasse, de vez em quando, de ponto de vista, mas significa que o fazia com paz e tranquilidade e mesmo, não me recordo de tê-la visto perturbada até nas coisas da maior importância, nas quais parecia que era conduzida por forças interiores, que não permitiam que se enganasse; e o sucesso, às vezes contrário a toda aparência e raciocínio humano, mostrava, de sobejo, de onde lhe viera a inspiração. Quantas vezes ela me disse: Devo pôr toda a minha confiança em Deus, em minhas viagens; vejo, tão sensivelmente, a Providência atuando em acontecimentos dos quais 259
eu não saberia encontrar a solução, e todas as vezes que me sinto embaraçada, o bom Deus vem em meu socorro; também, não me inquieto com nada. Vós sabeis que não sou inteligente; é preciso que o bom Deus faça tudo. Disse-me ainda, inúmeras vezes: Eu saio do meu quarto sem nenhuma intenção; mas dir-se-ia que sou conduzida para lá, onde houver alguma necessidade que me chama. Há pessoas que, em estado de saúde, conseguem manter sua confiança em seu Deus, mas que, na doença e, sobretudo, ao sentir que a morte se aproxima, perturbam-se. Mas a esperança de nossa cara Madre foi firme sempre. Soube, em parte por ela mesma, que, durante sua longa enfermidade de vinte e dois anos, que teve crises agudas, que, durante períodos consideráveis da Revolução, esteve por longo tempo, privada do socorro espiritual, uma vez que todos os padres estavam foragidos. Via-se, então, entregue a estas perigosas e sofridas provações, pelas quais Deus faz passar as almas que deseja purificar. Quando foi impelida à derradeira extremidade, após meses de lutas, a Providência enviou-lhe um ministro fiel que a confessou e lhe deu a santa Eucaristia. Este pão dos fortes a consolou e a fortificou e, como aquele alimento que um anjo deu a Elias, fê-la prosseguir na sua rota, até atingir o cume da montanha, onde a alma, abrasada de amor a Deus, é, felizmente, liberta do temor, conforme a palavra do Apóstolo, que diz que o amor destrói o temor. Se nos faltasse, ainda, alguma prova para nos persuadirmos de que nossa Madre atingira este alto grau de confiança, sua última doença nô-la forneceria. Esta doença, extremamente dolorosa, se prolongou por três meses, com períodos de melhoras intermitentes, que nos deixavam entre o temor e a esperança. Somente ela não se alterava; era impossível saber-se qual sua preferência: se viver ou morrer. Ela só vivia pelo bem do Instituto; seu espírito e seu coração aí estavam, consagrados e dedicados a esse escopo. Disse-me, muitas vezes, que nada de estranho a poderia afetar, pois que ela estava como que perdida e fundida com o Instituto. Penso, por essa razão, que, como São Martinho,1 ela não teria recusado de retomar o com1. Soldado húngaro, fundador do primeiro mosteiro do ocidente, em Ligugé, no ano 360. Sagrado bispo de Tours, em 372, retomou o combate, sempre a caminho, na evangelização da campanha. (Missel de la semaine”, por Jounel; Desclée, 1973; p.1763
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bate, mas sentia vivamente, como São Paulo, que lhe seria mais vantajoso livrar-se dos elos do corpo, para ser urna com Cristo. Lembro-me sempre de um olhar que, poucos dias antes de cair enferma, eu a vi lançar ao Céu, exclamando: Meu Deus, como deve ser feliz uma alma, quando estiver livre da massa do seu corpo! Não tinha presunção e, durante toda a sua vida, ela se preocupou apenas com os desígnios e os julgamentos de Deus; ouvia-se-lhe dizer, muitas vezes, que, em todas as suas iniciativas e atitudes, ela tinha sempre o juízo de Deus presente. Dar-me-ei por muito feliz, se puder passar um bom número de anos no purgatório; não penso em ir diretamente para o Céu, carregada como estou, de tão grande responsabilidade. Mas esses diferentes modos de pensar não alteravam, em nada, a sua confiança. Durante sua última doença, não falou nem em juízo, nem em purgatório. Dizia, com ternura: Deus é nosso Pai. Não demonstrou nenhum sinal de temor ou inquietação, nenhuma perturbação de consciência. Tudo foi extremamente simples e tranquilo, em sua doença e bem-aventurada morte. Não sei se teve algum pressentimento de seu fim, mas no dia em que se pôs de cama, abraçou algumas de nós que estávamos perto dela e o fez de maneira doce e amável. Em seguida, pediu a extrema unção, que lhe foi administrada no dia seguinte. Havia muito tempo que perdera totalmente o apetite, e suas extremas fadigas haviam provocado, em seus nervos, uma contração irreversível. Numa palavra, o momento assinalado pela Providência havia chegado. Seu estômago foi o principal fulcro do seu mal; ele se retraiu de tal sorte, que já não era possível ingerir alimento de espécie alguma: apenas algum líquido, em momentos de repouso, podia ser introduzido, gota a gota. Sobrevieram vômitos de bílis, cujos esforços, ou antes, convulsões, lhe causavam dores horríveis e a nós, penalização profunda. Ela nos consolava, esta boa Mãe, dizendo: Coragem, não tenhais medo! Os nervos tornavam-se-lhe, às vezes, tão tensos, que parecia estar sendo estrangulada. Em tais momentos, não havia outro recurso, do que colocá-la em banho quente, o que a aliviava por algum tempo. O mínimo ruído representava, para ela, um tormento e só se lhe podiam dizer poucas palavras. 261
Às vezes, lia, para ela, alguns trechos da Imitação. Um dia, estando próxima de seu leito, abri o livro da Imitação. Como já não pudesse ouvir muito, ela alongou o braço, sem olhar e sem mesmo, por sua posição poder ver, e, pondo o dedo sobre um versículo, disse: É aqui que deveis ler. Era justamente a passagem que dizia: Se carregais com resignação a cruz do Senhor, ela também vos carregará e vos fará chegar a este fim tão desejado, onde encontrareis o término das penas, que nesta vida não terminam jamais.1 Como se faziam, na comunidade, novenas e orações a São José, para obter a sua cura, ela me disse: - É preciso fazer a promessa de vestir três meninas pobres, em honra de São José. - Sim, minha Madre, disse eu, nós faremos, se São José fizer o que lhe pedimos. - Oh! disse ela, ele fará sempre alguma coisa, ide depressa aos pés da Virgem, prometer-lhe que fareis o que vos disse. Eu lho prometi e São José fez, com efeito, alguma coisa, segundo a fé de nossa Madre, nele, mas não segundo nosso desejo, de acordo com o que lhe pedimos, e isto foi, provavelmente, o conceder-lhe um fim tranquilo e feliz, pois esta cara Mãe não demonstrou, até o último instante, nem inquietação, nem ânsia, nem temor, efeitos que a doença não lhe teria proporcionado. Conservou a lucidez até o fim, efeitos, certamente, da graça e da virtude. Como tudo contribui para o bem dos eleitos, creio que uma pequena circunstância, surgida na ante-véspera, de sua morte, tem possibilitado, dada a sincera amizade que nos unia, que concluísse seu perfeito desapego de tudo o que é terreno. Eu mesma sentia-me bastante doente; entretanto, transportaram-me para o seu quarto, colocaram-me num sofá, de onde pudesse vê-la. Sua fisionomia desfigurada fez-me profunda impressão. Não sei como pôde acontecer, mas, no momento de me retirar, nem sequer pensei em passar perto de seu leito e dirigi-me diretamente para o meu, que ficava em urna cela, perto de seu quarto. Retornei no dia seguinte, pelas cinco ou seis horas da tarde, oito horas antes de sua bem-aventurada morte. Pedi que me levassem até junto dela e esta boa Mãe, fazendo um 1. Imitação, livro II, cap. XII, v.5.
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pequeno sinal com o dedo e podendo, ainda, dizer algumas palavras, assim falou: O bom Deus não ficou contente, ontem, assinalando, sem nenhuma reprovação, que eu não cumprira meu dever; era desta maneira que, durante sua doença, ela me chamava a atenção para minhas faltas. Em diversas ocasiões, repetiu-me as mesmas palavras. Disse-me ainda: - Retornareis esta noite? - Não, disse-lhe eu, estou com muita febre. Ela não disse mais nada; abracei-a e não mais a vi, a não ser depois de morta, quando seu rosto estava como que transfigurado e não mais a expressão viva da dor, como antes; nele havia uma espécie de sorriso; todas as nossas Irmãs confirmam isso mesmo. Durante toda a sua vida, ela foi cuidadosa em ocultar os favores que o bom Deus lhe concedia; ainda pôde receber muitos, durante sua última doença, que, igualmente, ela soube dissimular. Seja como for, sua paciência inalterável, sua humildade profunda e a calma inquebrantável de sua alma, isso só em si, é suficiente para a nossa edificação e a nossa confiança. Poucas semanas antes de cair enferma, estando conosco à mesa, ela viu, sobre seu prato, num pequeno pedaço de carne, uma representação bastante natural de uma cabeça de defunto; ela o guardou com cuidado e nô-lo mostrou, a diversas dentre nós, dizendo: Isso não me chegou ao acaso! Um pouco antes, na recreação, ela nos contara um sonho que tivera, coisa que jamais costumava fazer. Disse: Parecia-me que ia por um estreito caminho, circundado de águas profundas, pelos dois lados, as quais me metiam medo; no final do caminho, do outro lado, havia pessoas que me chamavam, dizendo: ‘Vinde, vinde conosco!’, mas eu tinha medo de avançar, por causa das águas; sentei-me, então, em meio do caminho e disse: ‘Prefiro que venham me procurar’. Estava alegre, enquanto nos contava esse sonho. Disse ainda, várias vezes, durante sua doença, que Deus a retirava deste mundo, porque não era digna de nos conduzir. Esta boa Madre pediu-me perdão, com grande ternura e humildade, dos aborrecimentos que me causara, embora jamais me tivesse causado algum real. Era difícil não amá-la, mesmo quando ela contrariava, humilhava e feria, porque ela sabia curar, e como era amável e amante, tudo em Deus e por Deus. Nos últimos 263
dezoito meses de sua vida, seus nervos estavam extremamente afetados e o excesso deste sofrimento a tão elevado grau a conduziu, que suas filhas jamais puderam nem sequer supor, dado seu amor ao sofrimento e o costume que adquirira, de saber ocultá-lo a quem quer que seja. Tendo chegado a uma percepção muito particular de saber o que nela se passava, posso dizer que, muitas vezes, pude ver, em sua fisionomia, os traços da dor e da alegria, simultaneamente. Outras vezes, era só dor, e seus olhos brilhantes diziam-se que sua alma havia sido atingida. Então, como num vislumbre do seu fim, ela recebia ainda mais vivas impressões da graça, as quais, caindo sobre órgãos tensos, espalhavam, em nosso meio, impressões muito fortes. Esta boa Madre tinha os órgãos fortes, a alma elevada, e foi, desde a infância, encaminhada para as grandes virtudes. Ela seguiu este instinto do Céu, que, no presente, há algo de estranho sobre a terra. Os arroubos de seu zelo não traziam nenhuma nuança de cólera, nem de impaciência; sempre calma, sempre tranquila, sempre sorridente, com versatilidade passava de uma coisa a outra, tomando a santa comunhão incontinenti, se fosse hora de o fazer. Caiu enferma no dia 14 de janeiro de 1816. Faleceu no dia 8 de abril, às duas da madrugada, segunda-feira da Semana Santa. Perdeu a fala pelas 7 ou 8 horas da noite; as últimas horas transcorreram sem que nenhum sinal indicasse que se aproximava a hora final. Foi preciso, mesmo, aproximar um espelho de sua boca, para certificar-se de que já havia falecido. O Padre Renson, nosso confessor, passou a noite em nossa casa, a fim de assisti-la até o fim, rezando junto dela as orações da Igreja e receber seu último suspiro. Vestiram-na, depois de morta, com as vestes religiosas e todas nós notamos algo de agradável em sua fisionomia, que não se descoloriu totalmente. A maior parte de suas filhas a abraçou, e foi só então que sentimos a perda que estávamos tendo. Ela me pedira e recomendara que a enterrássemos com toda simplicidade, como às outras Irmãs, mas o bispo não o permitiu. Fez-se um enterro muito solene, cuja pompa, a mais comovedora, foi a presença de todas as crianças de nossas escolas, que eram bastante numerosas, bem 264
como as pensionistas e todas as Irmãs. Quisemos, todas, assim como várias pessoas estranhas, ficar com alguma coisa dela. Uma certa fama de suas raras virtudes já era notável em meio ao público. Nosso confessor mandou confeccionar, para esta ocasião, uma lembrança de morte, para ser distribuída entre as pessoas conhecidas.1 Madre Júlia teve grandes virtudes. Era cheia de zelo, de força e de coragem, de um caráter uniforme, jamais triste, perturbado ou embaraçado. Nosso Senhor, talvez, tenha dado a mesma resposta que deu à santa personagem que lhe perguntou o que é que ele mais gostava em sua serva, Gertrudes.2 Ele respondeu que era a paz do seu coração. Seja como for, durante os vinte e dois anos que tive a felicidade de conviver com ela, jamais a vi perder esta preciosa paz, nem percebi, nela, o menor sinal de impaciência. Ela tinha recursos para tudo. Não conhecia o respeito humano, nem a amargura do coração; esquecia facilmente as ofensas, repreendia, às vezes, com muita severidade; algumas vezes, dir-se-ia que lutava contra o demônio, nas almas que percebia obcecadas ou violentamente tentadas. Tais atitudes poderiam sugerir, a alguns, sentimentos de cólera, mas não havia, nela, nada disso. Era dona absoluta deste impulso e, tendo-se, a pessoa, retirado ou dado o braço a torcer, ela sorria e mostrava-se tão calma, como se tivesse acabado de cumprimentar com um bom-dia. Disse-me, várias vezes, que agia assim, expressamente, para dobrar o demônio e, com efeito, algumas vezes teve êxito. Dizia, em determinadas ocasiões: Eu provo esta pessoa: se tem alguma virtude, firmar-se-á; de outra feita, estagnará durante alguns anos na casa, e, no final das contas, nós seremos logradas. Era a sua última cartada, quando nada conseguira por outros meios. Nutria um amor terno e profundo para com Cristo, presente no Santíssimo Sacramento. Prosternava-se diante deste adorável Senhor, tão devota e profundamente, que inspirava piedade. Padre Dangicourt, seu guia espiritual, por quem ela foi iniciada no caminho da piedade, desde os sete anos, e que lhe possibilitou receber a santa comunhão clandestinamente, com nove anos, lhe concedeu, quando já tinha vinte e dois anos, autorização para a comunhão diária. Jamais, disse-me ela, experimentara 1. Vem transcrito, o texto, no final das “Memórias” nas Testemunhas. 2. Monja da abadia de Hefta (1256-1302), em Saxe. Grande mística, cuja espiritualidade, expressa em suas “Relações” e seus “Exercícios”, teve grande influência em seu tempo. (Missel de la semaine, por Jounel; p. 1769).
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um sentimento de alegria e de surpresa tão grande, quanto nesta oportunidade. Esta permissão não lhe foi dada em vão, posso assegurar que jamais deixou de comungar uma única vez, por tédio ou angústia de consciência. Apenas, em suas viagens, aconteceu que, muitas vezes, viu-se privada de comungar, por motivo de força maior, e ainda assim, muito raramente, pois sempre que passava por algum lugar, desconhecido que fosse, preocupava-se imediatamente em satisfazer esta sua necessidade, proporcionar-se a maior felicidade. Ela encontrava facilidades em situações onde outros jamais teriam nem sequer julgado dever procurar os meios, porque a Providência assistia-a maravilhosamente em tudo. Para glorificar a Deus e obedecer a certas ordens recebidas, fazia o relato de tudo, na volta. Teve sempre muito gosto em trabalhar nos serviços da capela e na confecção de paramentos. Aprendeu tais coisas na juventude e, por um sentimento de piedade, sempre que tivesse algum tempo disponível, ocupava-se em tais trabalhos. A ornamentação e a limpeza da capela eram dos seus principais cuidados. Em geral, era muito trabalhadora, jamais ociosa; frequentemente trabalhava no jardim, em seus momentos de lazer. Sofria tanto e passava, às vezes, noites tão sofridas, sobretudo nos últimos tempos de sua vida, que seu físico se apresentava acabrunhado, que teria podido repousar mais do que as outras, de manhã; foi vista apenas uma vez, levantar-se uma hora mais tarde do que a comunidade; via de regra, despertava sempre mais cedo. Era na santa comunhão que ela buscava todo consolo da alma e do corpo; com efeito, nosso Senhor lhe retribuía a confiança. Dizia muitas vezes: Não sei como posso aguardar o momento da santa comunhão, se sofro tanto. Mas logo que tenho o meu Jesus, sinto-me completamente consolada, tranquila de todo. Ela não queria saber de outro médico, em suas indisposições corriqueiras, as quais teriam passado por extraordinárias, para outras pessoas. Ela só consultou o médico em sua última doença, e em outra doença muito grave, que tivera alguns anos antes. Disse-me, nestas duas oportunidades: Minha filha, vamos chamar o médico para a honra da casa; pois o senhor bispo não ficaria contente, se não o chamássemos. Vê-se, com isso, o seu desapego de si mesma e sua confiança em Deus. Quando estava sob 266
cuidados médicos, cumpria, como menina obediente, suas ordens. Em sua última doença, chegou a me dizer: É preciso suportar a doença e seus acompanhamentos. O sofrimento, nela, como que se identificou com sua natureza. Desde a sua primeira juventude, foi atacada de forte dor de dentes, quase contínua, a qual lhe durou dezoito anos - o que por si só já conta alguma coisa -, dor, esta, que foi seguida de mais vinte e dois anos, cuja causa profunda jamais foi inteiramente destruída; numa palavra, ela foi uma vítima de dor, crucificada, e crucificada por amor. Por isso é que o crucifixo lhe inspirava profundos e intensos sentimentos. Beijava-lhe frequentemente os pés, as mãos, o lado, com muita ternura. Tinha-o sempre sobre o travesseiro de sua cama; é de seu exemplo que temos este costume entre nós. Quando entrava em seu quarto, tomava o crucifixo e apertava-o contra o peito. À noite, quando se sentia acabrunhada de dor, não podendo adormecer, o crucifixo era seu consolo; conservava-o sobre o coração. Disse-nos, várias vezes, que não ficava bem carregar o crucifixo de maneira indiferente, sem render-lhe um culto especial, e ela mandava que o beijássemos toda vez que guardávamos ou retirávamos nosso terço; ensinou-nos a segurá-lo na mão, quando se rezava em comum os cinco Pater e Ave para as indulgências. Quando tínhamos a infelicidade de deixá-lo cair, ela queria que se beijasse o chão naquele lugar, em reparação, e nós perseveramos neste costume.1 Sua sensibilidade era tão grande por esse sagrado objeto que, muitas vezes, precisava desviar os olhos, não podendo conter a emoção. Era incapaz de deter-se na meditação da Paixão de nosso Senhor, sem banhar-se em lágrimas. Dizia: O quê! Um Deus reduzir-se a tal estado, por nós! Eu tinha, em nosso quarto, um bonito quadro da Descida da Cruz. Quando ela caiu enferma, colocaram-na em minha cama, pois seu pequeno quarto não possuía lareira, e como este quadro estava sempre diante de seus olhos, disse-me: Minha filha, peço-vos, tirai este quadro do quarto; ele me impressiona muito. 1. Todos esses costumes relativos ao crucifixo foram suprimidos, com a mudança de hábito e o desaparecimento do terço grande, que as Irmãs de Nossa Senhora traziam suspenso da cintura.
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Esta sensibilidade não era, nela, um efeito da imaginação, como se observa em várias mulheres. Devo dizer uma coisa pouco comum: é que nossa Madre Júlia, que era de um natural tão vivo, cheio de dinamismo e de ardor e, ainda por cima, atacada de doença nervosa que, de ordinário, produz muitos devaneios e imaginações de toda espécie, estava absolutamente isenta de tais fatos imaginários. Seu espírito era límpido e desapegado; fazia pouco esforço e, se o fizesse, seria na liberdade; jamais preocupada nem mergulhada em seus pensamentos; em qualquer momento que fosse abordada, encontrava-se seu espírito de todo livre; qualquer tarefa que se lhe apresentasse, era bem-vinda, se, todavia, fosse relacionada com Deus. Um belo dia de primavera, tendo acabado de fazer uma viagem com ela, eu lhe disse: - É pena, minha Madre, que eu, quando viajo, por dois dias fico vendo, na imaginação, árvores, estradas, homens, mulheres, etc. E vós, minha Madre? - Eu, disse ela, já não penso mais nisso. Tudo se apaga, assim que entro em casa. Não tenho mais imaginação. Jamais sonho, ou, se sonho, é tão pouco e tão raro, que nem vale a pena falar nisso. Se tinha qualquer coisa complicada a decidir, a dizer ou a fazer, não dizia, como todo mundo: Eu vou ver, eu vou pensar, mas falava: O bom Deus me dará a solução. Embora fosse tão ativa, era grande sua paciência e sabia esperar os momentos e os socorros divinos, e alguma maneira proveitosa de falar a respeito de Deus; e quando tinha êxito, exclamava: Isso não vem de mim. Esta frase estava constantemente presente em seus lábios. Seu grande despojamento no pensar vinha-lhe, provavelmente, das operações da graça, para a purificação de sua alma, nas longas e extraordinárias orações e colóquios com Deus que fazia, durante sua enfermidade e as fortes dores que se prolongaram por muitos anos. Quando estava doente ou ausente, tinha o espírito tranquilo e livre de todos os cuidados da casa. Deus não tem necessidade de mim, dizia ela, para fazer com que as coisas andem. Assim que eu saio, deposito tudo nas mãos da Providência. Algumas vezes, ouvi-a dizer: Quando me acordo, o primeiro pensamento que me ocorre é de admiração e de reconhecimento à bondade de Deus, que me concedeu mais um dia para o glorificar. 268
Ela não ia daqui e dali, sem conhecimento de causa e sem conselho. Deixava, muitas vezes, as pessoas em ritmo de espera, ocupada em prepará-las, ora através da amizade, ora mediante alguma maneira suave e cativante de agir, tornando-as abertas e disponíveis. Dizia, muitas vezes: Ainda não é o momento de se falar neste assunto. A esse respeito ainda ouvi-a dizer: Não sois vós, e sim Deus que deve agir em vossa alma: é inútil querer fazer qualquer coisa antes do devido tempo, e tentá-lo, seria perturbar-se inutilmente; eu não estou inquieta quanto a isso, porque Deus se encarregará de tudo, e quando o momento for chegado, ele saberá fazer prevalecer a sua vontade. Há almas que Deus conduz, por assim dizer, por si mesmo, as quais têm pouca necessidade dos socorros humanos, salvo o que for determinado pela obediência, pelo direito e pela prudência. Falava-me, um dia, de uma pessoa muito virtuosa, a qual gozava da reputação de ter enveredado por essas vias extraordinárias. Esta pessoa inclui-se no número daquelas de quem Deus exige a pronta execução daquilo que lhes inspira e, por causa disso, tais pessoas estão expostas ao embate dos homens. Tenho algo deste gênero, dizia ela, e significava muito ouvir isso de seus próprios lábios, porque ela quase não desvendava seu interior às suas amigas. Isto me leva a entender o que o Padre Varin dizia de nossa Madre. Este Padre dizia que o Espírito de Deus agia nela e que, por isso, era preciso deixar um grau razoável de liberdade, para não contradizer ou suprimir os movimentos, e que uma sujeição tão estreita e contínua, como a que o Padre de Sambucy exercia, não lhe convinha. Ela tinha um respeito muito grande pelos padres e um profundo sentimento de veneração pelos bispos. Isso tudo provinha de sua fé viva e dinâmica, que foi auxiliada por padres cultos e espirituais, os quais se esmeraram em formá-la, tanto na sua juventude, quanto mais tarde, em sua vida adulta. Nunca mais pôde encontrar instrutores semelhantes; por isso, ela como que ruminava as antigas lições e por elas se guiava, antes que pôr-se à procura de novas. Foi isso que levou certos a pensarem, a seu respeito, que se conduzia por sua própria cabeça, uma vez que ela não lhes pedia os conselhos que eles achavam que devesse pedir. E, algumas vezes, ela dava tempo ao tempo, até que os conhecesse bem, antes de dar-lhes confiança. Embora nossa Madre fosse de uma índole muito viva, ela se mantinha muito moderada e equânime, nas diferentes ocasiões. Se fosse preciso 269
falar com bispos, com os grandes do mundo, tendo mil razões a lhes expor e não tendo, quase, acesso a eles, isso não a impressionava nem preocupava. Quantas vezes a observei, em tais circunstâncias, interiormente atenta a Deus, aguardando, tranquila, o momento favorável, a hora da graça. Às vezes, em meio ao arroubo dos discursos, ela não encontrava a palavra apropriada para o momento; então, mantinha-se calma, como se tudo estivesse, novamente, a contento, e refletia que o momento de Deus não havia chegado. Não se constrangia nem se embaraçava, quando falava com os grandes, mas gozava sempre, interiormente, de grande liberdade, que transparecia em suas maneiras de falar e de agir. Suas palavras fluíam espontâneas. Aqueles que a conheciam particularmente, reconheciam, nessa fluência, um zelo interior que tinha sempre em vista seu objetivo: o bem do Instituto. Por natural inclinação amava o silêncio e o cultivava, voltando-se, interiormente, totalmente para Deus, quando não tinha nada a fazer ou a dizer por si mesma. Ela insistia muito para que as Irmãs também adquirissem esse hábito e não era impunemente que, às vezes, surpreendia-as a conversarem fora de hora. Há exemplos de severas repreensões que deu, neste sentido. Pode-se dizer que atribuía a maior importância a esse ponto da regra. De vez em quando punha-se a escutar junto às portas, ou mesmo durante a recreação, como se comportavam suas filhas, para depois chamar-lhes a atenção. Era amiga da mortificação e da penitência. Quem sofreu mais em profundidade do que ela? Quantas vezes chegou a nos dizer que não seria, jamais, superiora de uma comunidade relapsa. Esta palavra estava frequentemente em seus lábios e, para certificar-se disso, basta ler o material que se conseguiu recolher de suas conferências, nas quais se encontram traços e expressões de seu íntimo. Esta Madre mortificada, sem aparato, não se exaltava quase nunca, e quando o fazia, era por um momento apenas. Não se pode duvidar, como afirmo em outra passagem, que, durante um bom número de anos, ela tenha recebido grandes e especiais favores de Deus, por ocasião de suas quatro ou cinco horas consecutivas de oração, - oração que era quase contínua -, durante as quais sua alma, profundamente abismada em Deus, era como que abstraída dos sentidos, os quais se tornavam insensíveis a tudo. Já falei também, em outra oportu270
nidade, da grande paz e deslumbramento que transpirava, quando saía dessas suas longas comunicações com Deus, cuja maravilhosa consequência está suficientemente provada por suas heróicas virtudes, a humildade e a paciência sobretudo, cultivadas em meio a dores extremas, em vinte e dois longos anos de enfermidade, o que desconcertaria qualquer pessoa que não estivesse bem fundamentada em Deus, e das quais nunca ninguém a ouviu queixar-se. Ninguém nunca pôde testemunhar qualquer desejo de querer livrarse deste sofrimento; todas as pessoas que viveram com ela, e eu tenho a felicidade de ser uma delas, podem atestá-lo. O testemunho daquele de quem Deus se serviu para restituir-lhe o uso das pernas, depois de tanto tempo, também deve ser muito levado em conta. Este bom Padre dizia, pois, que, tendo sido merecedor da confiança de muitas pessoas privilegiadas por Deus, de maneira muito rara hoje em dia, ele não conhecera nenhuma, cujos dons recebidos fossem mais valiosos que os de Madre Júlia. Deus, após a cura, retirou-lhe todos os sinais exteriores que teriam sido, talvez, incompatíveis com a vida de dinamismo que levaria a partir daí. Aconteceu uma única vez, segundo me recordo, no dia da Purificação; estando, com suas filhas, no estabelecimento de Amiens, entoou subitamente, com seu fervor costumeiro, o Nunc dimittis. Quando chegou na passagem Lumen ad revelationem gentium, olhando um crucifixo, sua voz emudeceu, seus olhos tornaram-se fixos e brilhantes sobre o divino objeto que enlevava toda a sua alma, seu semblante se transfigurou e, por um curto lapso de tempo, ficou totalmente imóvel, o que teria podido durar muitas horas, se Madame de Franssu não tivesse entrado. Soprou-se a vela, fez-se muito barulho; uma jovem Irmã, irrefletidamente, jogou-se sobre nossa Madre, que lentamente retornou a si e retirou-se para o quarto. As graças extraordinárias são, ordinariamente, acompanhadas de provas e tribulações: é isso que a divina Providência tem preparado, sempre, para aqueles que quer purificar, e tudo contribui para este objetivo. A última provação pela qual passou foi, talvez, a mais sensível ao seu coração. Mas que ninguém se penalize demais com isso, pois convém que seja vista como uma destas perseguições que Deus concede aos seus eleitos, 271
para a sua santificação, à qual muitos podem contribuir, sem nenhuma má intenção. O que pode reforçar isso, é o fato de nossa Madre, quando ainda não se suspeitava de ninguém, nem ela, nem eu, prever o vendaval que se armava e me dizer: - Minha filha, ainda deverei passar por uma perseguição. Respondi-lhe, como São Pedro a Nosso Senhor: - Não, minha Madre, tal não vos acontecerá; já sofrestes tudo em Amiens. - Foi-me predito, replicou ela, que serei perseguida pelos bispos, pelos padres e pelas Irmãs. Nem tudo está terminado ainda. Esta previsão vinha de um tempo bem anterior; era do Padre de quem Deus se serviu para curá-la. Gostaria de, inicialmente, dar a conhecer o que ela sofreu da parte de pessoas de fora, que não deixaram de exercer influência em algumas de dentro, e qual o motivo. A fim de divulgar o que sei a respeito, assunto que foi dos mais dolorosos para o coração de Madre Júlia, vou transcrever o extrato de uma carta que ela escreveu ao Padre Le Surre, vigário geral de Gand. (...) Não ignorais, senhor, todas as confusões que foram provocadas pelas opiniões contraditórias sobre o ‘Catecismo Universal’.1 Senhor X, incutiu, na mente das jovens Irmãs de Gand, a ideia de que eu sigo os mesmos princípios do meu bispo,2 a quem são atribuídas opiniões suspeitas a este respeito. Durante vários anos, fui atacada da maneira mais violenta, por causa dele. Não tenho nada contra meu bispo, que considero meu Superior, e todas estas coisas não me dizem respeito. Eis o que jogou contra mim esses senhores de Flandres. Souberam preconceituar as Irmãs contra mim, dizendo que, mais cedo ou mais tarde, eu as induziria ao erro; enfim, sofri os mais violentos ataques, sem jamais os ter provocado. O Padre Van Schowwenberghe (secretário geral 1. Conhecido também sob o título de ‘Catecismo Imperial’. Foi composto por ordem de Napoleão, após a Concordata de 1802. É uma obra principalmente redigida pelo canônico Astros, sobrinho do ministro Portalis, com a colaboração do abade Bernier e do cardeal Caprara. Publicado a 4 de abril de 1808. (“História da Igreja de Cristo”, por Daniel Rops, livro IX, p. 138). 2. O de Namur.
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do bispo de Gand) tem sido meu conselheiro em todas estas crises difíceis; ele sempre teve minha confiança e só me conduzo, graças a Deus, através de seus conselhos. Tendo levado comigo a Irmã Catarina, a qual já é falecida, ela era testemunha dos conselhos que solicitava, mas, sempre prevenida contra o bispo de Namur, ela dissimulava... Não, jamais saberei relatar com fidelidade o que fez Madre Júlia sofrer tanto, nesta época: que incerteza, que dolorosa ansiedade, que alarmes de consciência não lhe provocaram, sobre coisas que o tempo e a experiência provou, de sobejo, que não tinham nada de comum com ela. E é de se notar que, não só o bispo de Namur não introduziu o catecismo em sua diocese, mas que o governo foi obrigado a desistir de querer introduzi-lo no país. Nossa Madre só admirava a paz e a fé pura, às quais teria sacrificado mil vidas. Nestas ocasiões, pude ver, muitas vezes, correrem lágrimas de seus olhos; mas Deus, que residia em seu coração, não tardou a dissipar as nuvens. Conduziu-a seguramente pelos caminhos da humildade e da obediência que lhe era própria, sem permitir que ela se perturbasse, nem que, pela boca ou pelo coração, faltasse, no mínimo que fosse, ao respeito devido à primeira autoridade que Deus havia lhe dado e que, nesta circunstância difícil, foi exposta a muitas contradições, cujas pessoas envolvidas utilizavam nossa digna Madre como saco de pancadas, a qual saiu ferida em excesso, deste combate. Tudo aquilo era tratado como se lhe dissesse respeito e como se se tivesse algo a temer dela, ela que seguia sempre na simplicidade e na mais terna e sincera afeição pela Igreja, que teria sacrificado mil vidas, para conservar a pureza de sua fé. Não sei, exatamente, que zelo supérfluo animava essas pessoas, aliás, respeitáveis. Posso dizer, simplesmente, que a caridade de nossa Madre justificava aos que a afligiam. Eles se propõem um bem, dizia ela. Devo, que quando foi atingida pela doença mortal, sabendo que haviam sido feitas, contra ela, queixas e acusações ao senhor bispo, disse-me: Às vezes, a gente se torna culpável sem o saber: por isso, ide pedir perdão por mim, ao bispo. Assim o fiz. O prelado, aparentemente, não dera maior importância às queixas que lhe haviam sido feitas, pois me disse: Mas que
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fez ela? Ela não fez nada. Tudo o que reprovo nela é que ela se calou; ela não soube se poupar. Se, numa época que representou o tempo de sua maior purificação, várias de suas filhas, por permissão de Deus, encontraram, nela, pouca exatidão na observância da regra e que por ela teriam sido influenciadas, é preciso, inicialmente, perguntar se havia, então, uma regra.1 Aquela intitulada Do Instituto de Maria, da qual se fazia leitura às Irmãs, não era uma regra feita para nós, nem para que por ela nos guiássemos; sabia-se e falava-se nisso. As coisas que não eram observadas, não constituíam problema: a impossibilidade de observá-las o justificava por si. Esta regra servia apenas para inspirar sentimentos religiosos; ela tinha sido entregue à Madre Júlia, pelos Padres da Fé com este objetivo tão somente. Tratava-se de uma regra feita por certas Damas de Roma; talvez tenha havido algum malentendido, por parte de algumas pessoas, quanto a isso. Como nossa boa Madre estava longe de supor o que se passava no espírito de algumas de suas filhas! Ela me dizia, simplesmente: Eu não me prendo, a rigor, às nossas regras, quando vejo algo melhor a fazer, porque nada, ainda, está determinado. Mas parecia que tudo estava fixado, no espírito das Irmãs, inquietas pela perfeição do Instituto. Pode-se dizer que tudo aconteceu, de uma parte e de outra, com a permissão de Deus. Para melhor esclarecer este ponto, eis o extrato de uma carta que ela escreveu ao Padre Le Surre, vigário geral do bispo de Gand. Senhor, em vista da confiança que sempre me inspirastes, creio-me inspirastes, creio-me obrigada a vos comunicar que, sem que em nada eu tenha contribuído para isso, pessoas estranhas têm servido como instrumento para me fazer conhecer as denúncias que foram feitas contra mim, com relação à inobservância das Regras, em nossa casa. Repetir-vos-ei, como tive a honra de vô-lo dizer, que há alguns artigos, os quais não nos é possível observar. O senhor bispo2 e seu vigário geral são conhecedores do fato. Te1. Foi Madre São José que redigiu a Regra, após a morte de santa Júlia. 2. O de Namur.
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mos um grande número de alunos; ademais, nossa casa, sendo a casa-mãe e tendo que resolver todos os assuntos problemáticos que aqui chegam, de um ponto a outro, é uma casa de gênero totalmente diferente da de Gand. A casa de Namur é uma escola para todas as nossas jovens Irmãs, que, neste momento, são numerosas; é preciso instruí-las, da manhã à noite, etc...1 Se se encara Madre Júlia como uma superiora que, chegando ao governo depois que tudo estiver inteiramente regulamentado, se vê na obrigação restrita de procurar manter o que se lhe confiou; se se a encara assim, devo dizer que não se está no ponto de vista certo para bem poder julgá-la. Ela não deveria ser vista, senão como fundadora, como mãe de família, que tateia, examina, faz experiência e se aplica em procurar o melhor para seus filhos. Os alarmes têm sido feitos, ao que parece, em função do que poderia parecer infrações ao pequeno regulamento diário, escrito a mão, que nossa Madre mesma havia composto e ao qual, em sua condição de fundadora, ela tem podido imprimir quaisquer modificações. Pode-se, acaso, pensar que uma congregação incipiente pudesse, nos primeiros anos, supor-se chegada ao ponto para o qual deve tender? No início, são pequenos ensaios, que vão mais e mais se aperfeiçoando. As primeiras Irmãs do Instituto, várias das quais não existem mais, poderiam dizer como nossa boa Madre nos tem conduzido, no início, com grande ternura e, como crianças, começando com pouco, como, por exemplo, ter apenas duas ou três horas de silêncio por dia e não tendo um horário rígido para fazer cada coisa a seu tempo, todos os dias da mesma forma, que uma coisa mais útil possa, às vezes, substituir uma outra, principalmente para a instrução e, de modo especial, o ensino religioso e do catecismo. Ela percebia que tais coisas representavam, para o objetivo do Instituto, a necessidade de meio, e ela não tinha escrúpulos em usurpar daquilo que era menos urgente no momento, a fim de prolongar a instrução, coisa que ela fazia quase sempre, até o fim de sua vida. Isto e outras coisas do gênero foram mal interpretadas por parte de diversas Irmãs, que não entenderam que estávamos na infância do Instituto; que Madre Júlia nos havia sido 1. Ver “Cartas de Santa Júlia Billiart”, carta 341, p. 850.
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dada por Deus, que a conduzia para ser nossa Madre; que se, como bons filhos e como se estivéssemos em nosso primeiro berço, nós nos tivéssemos deixado levar às cegas, ela, certamente, não nos teria extraviado. Aquela que nos congregou, instruiu, proporcionou a existência religiosa por obra do Espírito de Deus, continuou, ainda, sendo assistida por ele, para, a seu tempo, aperfeiçoar sua obra, se, realmente, ele a tivesse destinado a conduzi-la à perfeição, e não apenas a colocar-lhe os fundamentos, como se pode deduzir, constatando que Ele nô-la arrebatou tão depressa. Deus lhe deu todas as qualidades próprias para tornar-se a executora da obra de que foi incumbida e a qual ela, tão airosamente, cumpriu. Que intrepidez em todos os acontecimentos! Que calma em seu íntimo! Que coragem para sofrer ou empreender! Quem de nós, dirigindo-se a ela com coração infantil, não foi sustentada em suas fraquezas, pela força de sua grande alma? Tudo isso seria motivo para se lamentar a respeito das inquietações demasiadamente precoces que se verificaram, se não se entrevisse, de maneira um tanto nítida, que elas foram permitidas por um desígnio particular de Deus, a fim de dar, à Madre Júlia, oportunidade de provação mais sofrida, de fazer brilhar seu coração e aperfeiçoar suas virtudes: numa palavra, para dar-lhe o último golpe de pincel àquela que, pouco depois, deveria recolher os doces frutos desta última amargura. Esta venerável Madre tinha uma grande fé e confiança no sacramento da penitência e uma viva contrição. Quando estou para me confessar, dizia ela, eu peço a contrição a nosso Senhor; não posso tê-la por mim mesma, mas estou certa de que Ele ma dará. – Oh! dizia ela ainda, quando se faz o ato de contrição todos os dias, à noite, deve-se estar bem tranquila. Deus poderia não nos perdoar, quando se o faz de todo coração? Veja-se que, quando ela o fazia, punha, nisso, todo o seu coração. Humilhava-se, profunda e sinceramente, de tudo o que ela chamava faltas e descuidos, mas sem perturbação. Estava longe de julgar-se isenta de defeitos; acreditava, ao contrário, tê-los em grande número. E se ninguém está livre deles, devemos supor que, a julgar pela retidão de seu coração e a grandeza do seu amor, que os seus têm sido consumidos no fogo da caridade e que lhe tenham sido muitovantajosos.
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Esta Madre, da qual temos muita saudade, recebeu de Deus um espírito justo e simples, um amor como nos primórdios do cristianismo, à virtude, com uma força de corpo e de alma que não era comum. O dom da força, disseminado em seu coração pelo Espírito Santo, coroou e aperfeiçoou esta força natural, pode-se dizer, pois não era um entusiasmo que a empolgava, mas um esforço voluntário que tendia a um fim elevado e que, tendo tido primeiro seu efeito para refrear, conduzir e regular suas próprias paixões; tendia, com um zelo admirável, a produzir os mesmos efeitos nos outros. Ainda jovem, na casa paterna, ela instruía, na religião, as crianças de uma família pobre e muitas outras pessoas. Encontrava, de vez em quando, um pequeno mendigo, ao qual deu tantas boas lições, que lhe fez desaparecer a primitiva grosseria e o deixou em condições de ter um pequeno emprego. Depois, teve outro e, de emprego em emprego, estabeleceu-se e veio a ter uma honesta fortuna. Tive oportunidade de ver, com muito enternecimento, uma carta, muito bem escrita, muito bem ditada e cheia de sentimentos religiosos e de reconhecimento, que ele escreveu à nossa Madre, trinta anos após, para agradecer-lhe, recomendando-a a Deus, como a principal causa de sua felicidade. Quando o bom Deus dispunha nossa Madre a iniciar um estabelecimento com muitas dificuldades, no auge da Revolução Francesa, seu zelo recebia novos estímulos, principalmente quando percebia que algum sujeito poderia proporcionar a glória de Deus e que ela o via como trancado e embaraçado nas malhas do amor próprio: timidez, temor, escrúpulos, não havia esforços que ela não fizesse, para pô-lo em liberdade. Para isso empregava, às vezes, expressões repletas de força, pois a doçura vinha automaticamente. Enfim, ela não deplorava nem o sofrimento, nem o tempo, ainda que estivesse sempre muito ocupada, mas, não encontrando sempre a correspondência que desejava e vendo, muitas vezes, seu trabalho frustrado de tudo aquilo que ela esperava, isto era motivo para a desolação de seu coração e, como era profundamente humilde, convenciase sempre mais de sua incapacidade. Esta boa Madre, antes de sua morte, dizia ainda: Deus me retira deste mundo, porque não sou digna de vos conduzir. Ela teria sido mais verdadeira, se tivesse dito que nós não éramos dignas de ser conduzidas por ela. Pois, quem pode duvidar que, se ela tivesse encontrado, em 277
nós, disposições correspondentes às suas, se pudesse ver sair, das primícias de nosso pequeno Instituto, grandes santas, como se vê saírem nos primórdios de todas as Ordens Religiosas, as quais eram conduzidas por Santos, dos quais ela tinha, em grau que só Deus conhece, o espírito, as virtudes e as máximas. Os fragmentos das conferências que ela nos fazia, que eram vertentes do seu coração, sem arte e sem estudo, confirmam tudo quanto disse. Como se poderia entender que uma mulher, sem ciência nem cultura, pudesse falar duas horas corridas, com força e sentimento, dizendo só coisas boas e úteis, sempre muito espirituais e profundas, sem mistura de baixeza nem de insipidez? Tudo isso, certamente, não provém do espírito humano. Embora se tivesse doado totalmente ao Instituto e que seu zelo fosse desmedido, no sentido de abarcar tudo o que pudesse ser, de alguma forma, vantajoso à sua querida congregação, ela se conservava perfeitamente submissa a tudo o que lhe pudesse sobrevir, com a permissão de Deus. Creio que se poderia dizer dela, como Santo Inácio dizia de si mesmo, que um quarto de hora de oração lhe seria suficiente para o consolar da destruição de todas as nossas casas. Nas ocasiões mais críticas, dizia: O bom Deus pode destruir o que construiu. Nós devemos conservar-nos muito tranquilas em todos os acontecimentos; não é ele o mestre em fazer e depois desfazer?
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Documentos RELATIVOS À MORTE DE MADRE JÚLIA E TRANSCRITOS EM SEQUÊNCIA ÀS «MEMÓRIAS» DE MADRE SÃO JOSÉ. Carta comunicação1, anunciando a morte da Santa, redigida pelo Monsenhor Renson, confessor da comunidade de Namur.
JESUS, MARIA, JOSÉ No ano da graça de 1816, na Casa Mãe de Namur, a 8 de abril, pelas três horas da madrugada, faleceu, piedosamente, no sexagésimo quinto ano de sua vida, a reverenda Madre Maria Rosa Júlia Billiart, fundadora e Superiora geral das Irmãs de Nossa Senhora, assistida com os sacramentos de nossa Mãe, a santa igreja. Esta virtuosa filha, nascida em Cuvilly, vilarejo da antiga Picardia, de pais honestos e muito cristãos, começou a amar a Deus em tenra idade, aos primeiros vislumbres da razão. O Senhor, cujos desígnios são sempre misericordiosos, sempre sábios e sempre poderosos, e que destinava Júlia a uma grande obra, quis prepará-la a isso com rudes e longas provações. Ele permitiu que os seus bons pais, acabrunhados por diversos reveses, caíssem no infortúnio. Este triste acontecimento obrigou sua piedosa filha a devotar-se a trabalhos penosos e contínuos, que ela susteve com infatigável paciência, no intuito de aliviar a indigência dos autores de seus dias. Mas ela não atingira ainda a idade de vinte e cinco anos, quando um deplorável acidente, sempre dirigido pela imperscrutável Providência do Todo-Poderoso, alterou sua saúde, até então muito robusta; a qual degenerou gradativamente, até o ponto em que, alcançando a idade de trinta anos, Júlia caiu num estado de langor e de enfermidade inimaginável, que, durante 1. No original: “lettre faire-part” – aviso mortuário afixado sobre os muros dos edifícios públicos de Namur – conforme o costume – para anunciar a morte da Santa.
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vinte e dois anos, esteve constantemente estendida sobre um leito de dor. Acabrunhada pelos sofrimentos, que pareciam ter-se reunido todos nela, sua invencível paciência, sua doce e total resignação à santa vontade de um Pai que só golpeia seus eleitos para os santificar, bem longe de se alterar por pouco que fosse, engrandeceram-se mais e mais, proporcionaram-lhe íntimos colóquios com o Autor de todas as graças e a uniram a Deus através de liames para sempre indissolúveis. Enfim, o tempo marcado nos adoráveis decretos da Providência tendo chegado, Deus pôs um termo a estas rudes provações e a muitas outras, que nós passamos em silêncio. Júlia recuperou a saúde por um acontecimento onde sempre se acreditou perceber alguma coisa de sobrenatural. Desde então, Júlia empenhou-se em responder à vontade de Deus, que a chamava à educação cristã das meninas pobres, para as quais ela tinha urna atração tão pronunciada que, durante suas longas enfermidades, ela as chamava para junto de seu leito; a fim de catequisá-las. Júlia congregou, pois, algumas moças de boa vontade, com as quais começou seu precioso Instituto, sob a proteção da Santa Virgem; e a divina Providência tem protegido tão prodigiosamente as puras intenções desta generosa filha, que, no espaço de poucos anos, erigiu catorze casas deste Instituto. Uma piedade simples e sólida, uma extrema confiança em Deus, um zelo ardente para a sua glória e a salvação das almas, uma vigilância contínua sobre todos os estabecimentos da Congregação, para aí manter, nas Irmãs, o espírito do Instituto, têm caracterizado esta alma forte. Enfim, uma doença muito aguda de, aproximadamente, três meses, suportada com todos os sentimentos de uma alma elevada a Deus e que ele sustém por sua graça, terminou sua preciosa vida. Tantas virtudes, tantos meritórios e infatigáveis trabalhos, só podem fazer-nos esperar que sua morte tenha sido feliz; mas, se lhe restam algumas máculas a limpar, junto desta Justiça infinita, que julga as próprias justiças, nós a recomendamos à caridade dos fiéis, que ela tão bem mereceu, a fim de que, o mais breve possível, ela repouse no seio de Deus, que é todo caridade.
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CARTAS ENDEREÇADAS À MADRE SÃO JOSÉ, EM RESPOSTA AO ANÚNCIO DA PERDA QUE TIVEMOS, COM A MORTE DE NOSSA DIGNA MADRE JÚLIA.
Carta de Sua Excelência, o bispo de Namur1 Recebo, com a mais viva dor, minha querida filha em Jesus Cristo, o golpe fatal que acaba de vos separar, por um tempo, de vossa respeitável e tão virtuosa Madre, a Irmã Júlia. É neste momento que é preciso mostrar uma coragem e uma resignação heróicas, uma submissão plena e total aos desígnios de Deus, sempre justos, mesmo em seu rigor. Testemunhai, a todas as vossas Irmãs e vossos alunos, como participo, realmente, de sua aflição. O que acrescento à minha, é que ainda não posso visitar-vos, precisando cuidar de minha fraca saúde, muito danificada por um longo catarro, ainda não curado, a fim de poder celebrar, na quinta-feira, a bênção dos santos Óleos, e me poupar, se puder, para o ofício do santo dia de Páscoa. Mas o Padre Médard, meu vigário geral, terá ido até vós, para vos consolar e vos apoiar, nesta tão grande crise. Deus queira conservar-nos a Madre São José! Temo de que ela possa sucumbir, neste terrível golpe; mas o Senhor terá piedade de vossa comunidade, tão útil e tão fervorosa, e esta Madre ficará entre nós, tenho esperança nisso. Não duvido de que o Padre Renson não tenha assistido a Madre Júlia, em seus últimos instantes. É-me doloroso de não ter podido vê-la e edificar-me junto dela, no exercício de sua alta virtude, durante o percurso de sua doença. Havia oferecido diversas vezes o santo sacrifício da missa pela cura desta digna Madre, tão necessária à vossa obra. Deus não escutou minhas preces. Que seu santo Nome seja bendito em todo tempo e sua vontade, sempre paternal, cumprida! Estou, minha querida filha, totalmente à vossa disposição e à de vossas Irmãs, na união com Nosso Senhor Jesus Cristo.
+ FRANÇOIS-JOSEPH, bispo de Namur. 8 de abril de 1816.
1. Esta carta foi endereçada à Irmã Eulália, mestra geral do pensionato de Namur.
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Dai notícias minhas à Irmã Anastácia, superiora da comunidade de Jumet.
Carta do Padre Varin (Paris) 8 de maio de 1816 Minha querida Madre em N. S. Que golpe o Senhor nos aplicou, arrebatando-nos nossa boa Madre Júlia; mas como seus desígnios são adoráveis! Ele a havia dado à vossa pequena Sociedade, de uma maneira que fazia resplandecer tanto o seu poder, quanto sua bondade, e ele só a chama, depois de cumpridos os desígnios que lhe havia proposto. Estou persuadido de que a obra, da qual ela foi o instrumento nas mãos de Deus, longe de se prejudicar com o seu afastamento, receberá, por sua intercessão, um novo impulso; pois, quem poderá deixar de recorrer, agora, às suas preces? Se elas têm sido tão poderosas junto ao Coração de Deus, quando ela estava no lugar de seu exílio, quanto mais o serão agora, que ela está na pátria celeste, no seio de seu Deus? Poderíamos nós, com efeito, ter, para com esta Madre, outro sentimento; e aquela que sobre a terra só viveu de amor, não estará destinada a amar durante toda a eternidade?
Eis que para vós, que a substituís, minha querida Madre, é, este um grande motivo de consolo e de confiança. Sim, ela ser-vos-á mais útil no céu, do que sobre a terra; ela vos fará experimentar, sensivelmente, os efeitos de seu crédito junto de Deus, ela atrairá sobre vós as luzes e as graças de que tendes necessidade, para firmar e difundir a obra do Senhor, e todas as vossas filhas reconhecerão, convosco, que elas têm, em sua boa Madre, uma poderosa protetora. Sede minha intérprete junto de toda a vossa família e aceitai a expressão da respeitosa e inviolável afeiçãode Vosso todo devotado servo (ass.) J. Varin
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Carta do Padre Thomas (extrato)1 Paris, 6 de maio de 1816.
JMJ
Minha boa Madre, Tive notícia, simultaneamente, da morte de nossa boa Madre Júlia e de vossa doença. Creio que a perda que tivestes afeta-vos mais do que o perigo que correstes. É agradável ter-se, numa casa, excelentes pessoas, é bem difícil preencher o vazio que aí deixa uma superiora de seu mérito, quando Deus a retira. (É de acreditar que os abalos violentos que sofrestes, e dos quais ela me deu o detalhe, terão influído sobre vossa saúde e a de todas as vossas irmãs. Quanto mais numerosa a família, mais extensa a solicitude e maiores as preocupações das superioras. Enviei a nossos padres a carta da Irmã Eulália; eles se penalizam convosco e todos desejam que o Senhor vos devolva a saúde, para poderdes continuar o que tão heroicamente iniciastes com Madre Júlia. Parece-me que, se estivesse em melhores condições, de boa vontade vos faria uma visita domiciliar e passaria alguns dias convosco, mas o bom Deus não o permite. Estou sempre indisposto (e, no entanto, prometem que irão curar-me radicalmente); sinto um mal estar que me debilita e se estende da cabeça aos pés - não é preciso mais, para deter-me em meus trabalhos. Nossos padres prometeram-me que, na festa da Ascensão, irei pregar um retiro aos homens, na catedral. As aparências não são nada favoráveis. Quando vossa saúde estiver restabelecida, pedir-vos-ei, minha boa Madre, de escrever-me duas palavras, vós mesma. Meu endereço é: Rua St-Jacques, nº 193.) Apraz-me unir minhas preces às vossas, para o repouso da alma de nossa boa Madre Júlia, embora suas raras qualidades nos permitem esperar que ela esteja com seu Deus. Jamais esquecerei os serviços importantes que me prestou, durante os anos tempestuosos que passamos 1. Madre São José só transcreveu um extrato desta carta. Aqui, está publicada integralmente, as passagens omitidas por Madre São José estão entre parênteses. (De acordo com “autógrafo” conservado nos Arquivos da casa-mãe).
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juntos. Considerei-a sempre como uma pessoa de bom senso e jamais me arrependerei de ter seguido os que ela houve por bem me dar. Não conheço ninguém a quem eu deva tantas obrigações... razão por que peço a Deus, de todo coração, que a recompense por mim e por tantos outros que encontraram, junto dela, conselhos salutares. [Recomendo-me às vossas orações e às de todas as vossas boas Irmãs, sobretudo da Irmã Eulália, que teve a bondade de escrever-me. Sou, sinceramente, minha boa Madre, Vosso devoto servo THOMAS, padre] - Estes dois escritos, da parte de duas pessoas que conheciam a fundo Madre Júlia e que, após a experiência de muitos anos e uma longa ausência, eram isentos de prevenção a favor ou contra, são a mais bela oração fúnebre e a menos suspeita que se lhe possa fazer. Monsenhor Demandolx, bispo de Amiens, deu também um tocante testemunho de seus últimos sentimentos a este respeito.
Carta de Monsenhor Demandolx, bispo de Amiens Não saberia vos referir, minha reverenda Madre, quanto tenho sido afetado pela perda infinitamente sensível que acabais de ter, com a morte de vossa boa Madre Júlia. Conheceis o terno apego que tinha por ela e quanto admirava as suas virtudes. O céu quis recompensá-la por sua fidelidade, e eu estaria desesperado, se me permitisse lamentar, por um só instante, o estado de felicidade de que goza no céu. A paciência, a resignação que fez resplandescer em sua última doença, são o último ato de seu sacrifício. Tenhamos sempre diante dos olhos os exemplos que ela nos deu, e que nos sirvam de encorajamento, nas provações que tivermos que suportar. Sei que falo à Irmã Blin, à Irmã São José, à verdadeira amiga da Irmã Júlia. Não duvideis de que transferirei a vós os sentimentos que a ela devo284
tei, e que conservo, para com vossa congregação, a mesma afinidade que lhe testemunhava. Não obstante forçado a interromper as viagens que podiam nos aproximar, não as considero concluídas, e espero sempre que ainda nos será permitido de vos ver, de tempos em tempos, em Montdidier, e que as relações que eu tinha com vossa casa, continuem acontecendo. Os superiores eclesiásticos não se oporão a isso; e de minha parte, espero que minhas relações com vosso venerável bispo, prossigam. Desejo-o sinceramente, para que jamais seja privado desta consolação. Apresentai-lhe minhas respeitosas homenagens e não duvideis jamais de todos os sentimentos que vos tenho devotado. + J. Fr., bispo de Amiens Amiens, 3 de maio de 1816. - Devo ainda dizer uma palavra de grande peso; foi o respeitável Superior1 que nos foi dado, aproximadamente, seis meses antes do fim da vida de nossa Madre, que a pronunciou. Ele disse, após a morte de nossa cara Madre, a uma de nossas Irmãs e a mim, que, após tudo o que ouvira falar a respeito dela, ele tinha desejado saber qual o espírito que a animava, e que ele a havia provado e reconhecera que ela era fiel e conduzida pelo bom espírito.
1. O senhor abade Médard, vigário geral do bispo Pisani de la Gaude
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Testemunhos
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PRÓLOGO OU ESCLAREClMENTO PARA O QUE SEGUE. Em 1820, quatro anos após a perda de nossa digna Madre Júlia, vários padres da França que a haviam conhecido pessoalmente, pensaram que se devia conservar sua memória. De acordo com isso, alguns puseram por escrito o que sabiam a seu respeito e o enviaram a Namur, a um padre conhecido seu, que também se interessava por nossa digna Madre e que, residindo nos lugares onde ela falecera e onde havia estabelecido a principal casa do Instituto, poderia facilmente confiar os apontamentos a alguém que deles pudesse fazer bom uso. Com efeito, remeteu-os ao nosso Superior, Padre Médard, que, sabendo que nós já tínhamos escrito tudo quanto era do nosso conhecimento, nô-lo remeteu por sua vez. Transcrevemo-os aqui, para que sirvam de apoio e de prova ao que já fora recolhido por nós, pois tão somente o último caderno (capítulo) foi escrito depois da Morte de nossa Madre, por ter ficado inconcluso. Há pouca diferença, como se poderá ver, com o que nós havíamos escrito. No todo, consiste em duas ou três transposições e alguns anos de um maior ou menor sofrimento. Esses padres dão trinta anos de duração à paralisia completa das pernas, porque a contam a partir do estado de enfermidade em que nossa Madre entrou alguns anos antes, por ocasião de um grande susto que teve. Mas a impossibilidade de andar só durou vinte e dois anos. Ativemo-nos, no relato de sua história, às informações dadas por ela mesma: seria difícil, parece-me, que ela se enganasse. Há, ainda, uma transposição no relato que fez o padre de Lamarche: o que diz que o retorno de Bettencourt tenha acontecido antes da estadia de nossa Madre nesta campanha; pois é nesta época que, lembro-me muito bem, vi o Padre de Lamarche visitar Madre Júlia várias vezes. Era então que ela instruía 1. Esses “Testemunhos”, precedidos do “Prólogo” acima, foram inseridos pela Madre São José, no meio do primeiro capítulo das “Memórias”, antes do parágrafo: “Foi a 5 de agosto de 1803...”. Madre São José intitula esta segunda parte do primeiro capítulo: “Os começos e a origem das Irmãs de Nossa Senhora, a partir do segundo agrupamento, em 1804.
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na piedade, junto de seu leito, ao qual ainda estava presa, seis jovens que residiam na mesma casa1 que ela, sem contar outras que vinham à cidade para vê-la, com o mesmo intuito. Querendo transcrever as cartas desses senhores sem qualquer alteração julguei dever fazer este esclarecimento, para explicar o que poderia parecer contraditório; pois, dentro do que nos interessa, sobre o assunto, nada melhor do que o testemunho que esses senhores nos dão, da vida pura e inocente de nossa digna Madre, desde sua infância, acrescida das qualidades naturais de que a divina bondade houve por bem orná-la. Glória e honra sejam dadas, eternamente, por nos todas, ao Pai das misericórdias!
TESTEMUNHO DO PADRE TROUVELOT. cura de Ressons
J.M.J. Ressons, 20 de janeiro de 1820 Senhor, Há, aproximadamente, três semanas, que o senhor Guénard me pediu para enviar-vos os apontamentos que poderia ter, sobre madre Júlia Billiart, de Cuvilly; minhas ocupações não me permitiram, ainda, um só momento disponível, a fim de que possa desincumbir-me do encargo. Hoje, tentarei reparar o atraso. Estive em Cuvilly, há alguns dias, e é das pessoas que conheceram particularmente essa grande alma, e sobretudo de seu irmão, que captei o pouco que tenho a vos dizer. Júlia Billiart nasceu de pais virtuosos, mas pouco favorecidos pelos bens da fortuna. Seu pai e sua mãe possuíam um pequeno comércio de renda, tecidos, confecções e tinham alguns pedaços de terra que lhes davam alguma renda para poderem sustentar sua pequena família. Júlia, a mais velha,1 teve, desde sua infância, inclinações muito virtuosas. Criança que era, retirava-se, muitas vezes, em seu pequeno quar1. O Hotel Blin, em Amiens.
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to, para rezar, o que fazia com um recolhimento que edificava seus pais e todos aqueles que disso foram testemunhas. Foi enviada, cedo, à escola, onde o mestre conseguiu fazer com que lesse e escrevesse, em pouco tempo; aprendia sobretudo o catecismo, com um ardor extremo; na idade de sete anos, sabia-o perfeitamente e o compreendia melhor do que outras crianças mais idosas e mesmo mais inteligentes. Uma vez saída da escola, empregava seus momentos de lazer na leitura de livros piedosos e a ensinar o catecismo a outras crianças. Padre Dangicourt, então pároco de Cuvilly, reparou, bem cedo, nas felizes disposições de Júlia e cultivou-as com o zelo que conheceis. Nada vos direi, senhor, sobre este digno e virtuoso sacerdote; sabeis que era o conselheiro e diretor de todos os padres, até os mais respeitáveis, dos arredores de Cuvilly. Este senhor tinha prazer imenso em ver Júlia corresponder aos cuidados que lhe dedicava. Viu, nela, um discernimento e uma concepção por seus deveres de cristã, bem acima de sua idade, que lhe permitiu fazer a primeira comunhão na idade de nove anos; mas fê-la comungar, então, secretamente e assim procedia, em todas as grandes festas e mesmo, algumas vezes, com maior frequência. A comunhão pública só a fez dois anos mais tarde. Júlia jamais foi vista em agrupamentos de jogos ou divertimentos. A oração, a leitura de livros piedosos, instruir outras crianças, desviá-las de ocasiões de pecado: estas eram suas recreações. Após sua primeira comunhão, ocupava-se com o trabalho do campo, a fim de ajudar seu pai e sua mãe; mas tinha sempre a preocupação de encontrar um momento, após o meio-dia ou à noite, para ir visitar o Santíssimo Sacramento, prática que nunca negligenciou, enquanto pôde caminhar; jamais prejudicou o seu trabalho por isso. Tinha quinze a dezesseis anos, quando seus pais perderam, pouco a pouco, toda a sua pequena fortuna. Ladrões entraram furtivamente em sua butique e roubaram-lhes, aproximadamente, três mil francos; foram obrigados a vender o restante de seus bens, para pagar as mercadorias, que deviam, e viram-se, assim, reduzidos a uma grande miséria. Júlia pôs-se, então, a trabalhar com uma coragem que com nada se abalava; fazia a colheita e não havia operário a quem ela não sobrepujasse. Jamais, no entan289
to, foram negligenciados seus deveres de cristã; confessava-se e comungava de oito em oito dias e o fazia sempre com uma piedade e um recolhimento que testemunhavam quanto ela valorizava esses atos. Parecia que hauria, desses sacramentos, as forças, mesmo corporais, das quais necessitava, para suportar as fadigas que enfrentava, no intuito de aliviar a miséria de seus pais. Um dia, quando seu pai e sua mãe, desolados com a desdita em que se encontravam, viam-se na necessidade de vender pela sexta parte do preço, alguns restos de mercadorias que ainda possuíam, Júlia, confiando em Deus, fez um pequeno embrulho com essas mercadorias e tomou a estrada de Beauvais, pela qual jamais transitara, e onde conhecia uma pessoa. Chegando a Beauvais, entrou em casa do primeiro comerciante cuja butique viu aberta, ofereceu-lhe a mercadoria que trazia. Este honesto homem avaliou tudo e pagou-lhe, à vista, o preço real de todas as mercadorias que trouxera. Júlia, contentíssima, retomou imediatamente o caminho de volta a Cuvilly, rendendo graças a Deus e entregando aos pais o dinheiro que recebera. Continuou, durante seis anos, no trabalho do campo, e os homens mais robustos e mais hábeis não podiam fazer tanto quanto ela fazia. Na idade de vinte e um a vinte e dois anos, caiu enferma. Foi levada ao médico de Cuvilly. Ela foi vítima da ignorância deste miserável; ele lhe sangrou o pé, ao mesmo tempo que ela entrava em convulsões e esteve, durante muito tempo, em risco de vida; mas continuou enferma como consequência disso e não podendo servir-se das pernas, até que foi curada, como sabeis que o foi, em Amiens. Uma dama caridosa de Cuvilly, chamada Madame de Baudoin, incumbiu-se do cuidado de Júlia, durante, aproximadamente, 18 meses; em seguida, Madame de Pont-l’Abbé, cujo castelo ficava em Gournay-sur-Aronde, fez com que Júlia viesse morar com ela, e esta senhora cuidou dela, até o momento em que estourou a Revolução, e esta dama, sendo forçada a abandonar o castelo, Júlia retirou-se para Compiègne, em casa das senhoritas de Chambon.1 Durante todo o tempo em que Júlia esteve enferma, ocupava-se sempre com a instrução da juventude, principalmente ensinando o catecismo às crianças. 1. Júlia era a quinta criança da família Billiart. Cf. “Index biographique BILLIART.
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Teve a felicidade de preservar do cisma muitas pessoas a quem ela instruía quando vinham vê-la. (Isto deve ser entendido com relação ao período em que teve perfeito uso da língua). Ficou em Compiègne, aproximadamente, quatro anos, indo, depois, a Amiens. Eis, Senhor, as informações que pude ter sobre a juventude de Júlia Billiart. Tenho mais certeza nas informações dadas, do que se tivesse conhecido Júlia pessoalmente; obtive a maior parte das informações, que já conhecia, do próprio irmão. Não sei bem como, escrevendo sua vida, poder-se-ia silenciar o período de amargura que lhe prepararam o Padre de Sambucy e o bispo de Amiens, perseguição que a obrigou a sair de Amiens para ir a Namur; fui testemunha de tal ato e Deus serviu-se de mim, sem que eu soubesse, para fazer-lhe ver que Deus a queria em Namur, onde veio a falecer. Esquecia de vos dizer que Júlia era de índole muito viva, a qual, ajudada pela graça, ela soube moderar que, mesmo em sua infância, ninguém sofreu-lhe as consequências. Se, algumas vezes, ela temia ter aborrecido seu jovem irmão, punia-se imediatamente e sabia tão bem reparar suas pequenas faltas, a ponto de ser ela só que sofria. Desejo, senhor, que estejais satisfeito com essas anotações e que elas possam, de alguma maneira, ser-vos úteis. Quereria transcrevê-las em outra folha de papel; vejo que seria obrigado a modificar e a retardar por alguns dias a sua remessa, assim que prefiro não mais fazer-vos esperar e conto com a vossa compreensão, que há de perdoar os erros e a má caligrafia. Estou, pelo menos, contente que tive esta oportunidade para reavivar vossa agradável lembrança e vos apresentar a homenagem do respeito profundo, com o qual eu vos peço que acrediteis em mim, senhor. Vosso muito humilde e obediente servo, (a)TROUVELOT, cura de Ressons.
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P.S. Pessoas que me falaram, ontem, a respeito de Júlia, lembraram-me que, enquanto esteve enferma, fazia-as virem ao seu quarto, ela as instruía, apesar das dores que sofria, e estimulava-as à virtude, tanto ela pintava-a com cores atraentes, e sobretudo por sua paciência, sua bondade e o zelo que punha em instruí-las. 1
Três senhoritas de Chambon que moravam juntas, em Compiègne.
TESTEMUNHO DO SENHOR DE LAMARCHE, padre (Carta reconhecida como autêntica, pelo bispo de Beauvais, em 1881) 2 de fevereiro de 1820 Foi apenas em 1793 que comecei a conhecer a Madre Júlia. Ela deixara sua cidadezinha de Cuvilly. Havia sido transportada para a cidade de Compiègne, como sendo mais segura, por causa das confusões em que a França estava submersa. Eu desempenhava meu ministério junto às almas piedosas do lugar, sobretudo no convento das Carmelitas. Madre Júlia vivia retirada em um quarto, em companhia de uma sobrinha que a atendia. Ia visitá-la, ela não falava, melhor dizendo, só falava por sinais. Para confessá-la, era preciso que fosse avisada pelo menos uma hora antes. Preparava-se com um fervor extremo e obtinha, como ela mesma mo confessou, a graça de poder expressar-se claramente. Era após ter recebido os santos Sacramentos que ela retomava seu silêncio. Pareceu-me que não era fruto de um esforço natural que ela conseguia explicar-se em confissão, mas que obtinha esse favor devido à sua viva fé. Acompanhei-a, com intervalos, durante um ano; admirava mais e mais os progressos que ela fazia na piedade. Oferecia-se continuamente a Deus como vítima, para abrandar sua cólera. Sua resignação era perfeita; sempre calma, sempre unida a Deus, sua oração era quase contínua. De Compiègne, foi transportada para Amiens, aonde não pude segui-la; de lá, foi transportada a um lugarejo chamado Bettencourt. O aba292
de Thomas aí esteve com ela; fui visitá-la. O senhor Thomas sabe como lhe foi devolvida a fala; o que sei é que então, sua ocupação preferida era a de instruir a juventude. Falava livremente e explicava o catecismo com grande unção e grande facilidade. Ocasionou muito bem à região. Depois, retornou a Amiens, onde introduziu na piedade várias jovens; tive oportunidade de vê-la várias vezes e sempre me encantei em ouvi-la falar de espiritualidade. Dirigia as moças e presidia a seus exercícios espirituais, que elas faziam ao pé de seu leito, pois ela permanecia deitada, sua paralisia persistia. Sua casa era uma espécie de convento; era vista como uma santa e tinha-se muita confiança nela. Foi assim que Deus começou a executar desígnios de misericórdia para com ela. Foi assim que ele preludiou a formação de uma nova Comunidade, que em breve se estendeu até Flandre (Bélgica), onde teve várias casas, e mesmo em Bordéus. Foi nesses inícios que o Padre Enfantin a curou totalmente da paralisia, ordenando-lhe que caminhasse, em nome de Deus; esta graça inflamou seu zelo. Ela visitava as casas que havia fundado, fundando novas; eu a vi, nesses percursos, gozando de perfeita saúde, caminhando com tanta facilidade, como se jamais estivera doente, após ter sido, durante mais de trinta anos, transportada para onde quer que fosse. Um grande amor à pobreza, um inteiro desapego de si mesma, uma perfeita submissão à vontade de Deus, uma união íntima com Nosso Senhor que a dirigia em tudo, dando, às suas filhas, o exemplo de todas as virtudes, comunicavam, em toda a parte, o odor de Jesus Cristo. Bastava vê-la, falar-lhe, para se estar convencido de que o Espírito de Deus regulava seus pensamentos, seus sentimentos, suas ações. Deus a fez passar por grandes provações; foi atrapalhada em seus projetos, foi submetida a uma superiora local, em uma de suas casas; gemia com todas as trapaças que se lhe faziam, jamais perdeu a calma, a tranquilidade de alma. Sempre vigilante sobre si mesma, falava aos superiores eclesiásticos de maneira sempre respeitosa, sempre desconfiando de sua capacidade. Ela só abandonou a casa de Amiens, berço de seu Instituto, após ter recebido ordem, e lá permanece ainda, até que a Providência se manifestasse claramente. Retirou-se para Flandre (em Na-
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mur, Bélgica) e, desde então, minhas comunicações com ela cessaram totalmente. Eis tudo o que sei é a respeito do qual atesto a veracidade. AMARCHE Diretor das Damas do Sagrado Coração em Beauvais.
CARTA DO SENHOR AUGÉ, pároco de Beauvais. Eu vi esta santa filha, muitas vezes, em casa do Padre Thomas, onde permanecia durante meu retiro em Amiens. Ela ainda estava paralítica em metade de seu corpo, sempre assistida em seu leito. Dizia-me que muitas damas e senhoritas piedosas vinham visitá-la, exporlhe suas dificuldades, e ela lhes dava conselhos. Não relatava com agrado o que lhes dizia; escutava-a com admiração e edificação. Esta filha, que jamais recebera formação, a não ser a elementar, em sua cidadezinha, falava sobre assuntos espirituais e religiosos como teria feito o doutor e o diretor mais profundamente versado em espiritualidade, e isso, sem cometer uma falta no idioma francês, em bom estilo e com singular facilidade, como se estivesse lendo em um livro. Eis tudo quanto, de minha parte, posso referir. GÉ
CARTA DO SENHOR AUGÉ,1 padre Meu bom amigo, deveis ter recebido uma notícia sobre a infância de Madre Júlia, que vos enviei, há algumas semanas. Passo-vos as anexas, para que delas se faça o que se julgar a propósito. Qualquer informação 1. Irmão do precedente.
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é do meu irmão, pároco, atualmente, em Beauvais. Ele é digno de toda confiança. O senhor de Lamarche, que assina a outra, é um dos mais estimados sacerdotes do clero de Beauvais, a quem se pode dar inteira fé. Nada, aqui, é novo; nossos padres se portam como de costume; ninguém sabe que vos escrevi. Minhas amizades e respeitos. Vosso devotado servo,
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Cronologias SANTA JÚLIA BILLIART
1751 12 de julho - Nascimento e batismo em Cuvilly, quinto filho de uma família de sete. 1759 Junho - M., o abade Dangicourt, nomeado vigário em Cuvilly. 1760 Primeira comunhão secreta; pública, em 1762. 1764 4 de junho - Confirmação em Cuvilly, pelo bispo de Beauvais. 1765 Voto de castidade. 1767 Início das dificuldades financeiras para a família. 1774 Atentado contra a vida de seu pai; começo de uma longa doença. 1782 Epidemia: o tratamento desfecha numa paralisia; privilégio da comunhão diária. 1790 Perseguição; ela encontra refúgio em casa de Madame de Pont-l’ Abbé, em Gournay-sur-Aronde. 1791 Data provável da partida para Compiègne; perde o uso da fala. 1792 19 de junho - Morte de seu pai, com a idade de 75 anos. 1793 Encontro com M. de Lamarche, que se torna seu confessor. Visão da futura obra apostólica, assinalada pela Cruz. 1794 Morte, no cadafalso, de M. Baudoin e do conde de Arlincourt, pai de Madame Baudoin, que deixa, por afeição, uma renda vitalícia de 600 libras a Júlia. Outubro - A convite de Madame Baudoin, Júlia deixa Compiègne pelo hotel Blin, em Amiens. A caminho, vê sua mãe pela última vez. 8 de dezembro - Voto de propagar a devoção ao Sagrado Coração. 1795 25 março - Consagração à Santa Virgem. 19 de abril – Consagração a São José.
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1799 1801 1803 1804
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Julho - Filiação, pelo abade Thomas, à Associação dos Devotos do Sagrado Coração no Santíssimo Sacramento do Altar, canonicamente erigida em Roma, por decreto do Papa Pio VI, a 16 de janeiro de 1790. Setembro – Morte de sua mãe. Júlia torna-se o centro de um pequeno agrupamento de companheiras, dentre as quais Francisca Blin de Bourdon, a quem havia encontrado por primeiro, no outono de 1794. 16 de junho - Deixa Amiens para Bettencourt, com o Padre Thomas e Francisca; o bispo de Amiens, senhor de Villaret, descobre seu dom excepcional de catequista. Visita do Padre Varin a Bettencourt: ele revela a Júlia que a crê chamada a trabalhar pela glória de Deus, de uma maneira mais ampla. Durante a estadia em Bettencourt, Júlia recupera o uso da fala. Fevereiro - Retorno de três refugiados de Bettencourt a Amiens, a rua Puits-à-Brandil. 5 de agosto - Eles se fixam na rua Nova. 2 de fevereiro - Consagração das três primeiras Irmãs de Nossa Senhora, Júlia Billiart, Francisca Blin de Bourdon e Catarina Duchâtel, que veio da comunidade de Madre Barat, crendo-se chamada a evangelizar os pobres. Atingida por uma enfermidade de langor, ela retorna para as Damas, onde falece, no final de alguns meses. O Padre Varin lhes dá uma pequena Regra. 20 de fevereiro - Primeiras postulantes, Vitória Leleu e Justina Garson. 20 de de abril – 24 de maio - Grande missão, em Amiens, sob a direção dos Padres da Fé, que associaram as Irmãs de Nossa Senhora; primeira o bra catequética pública. 1º de junho - Cura milagrosa de Madre Júlia, no quinto dia de uma novena ao Sagrado Coração, pela intermediação do Padre Enfantin. 5-14 de junho - Retiro individual, dirigido pelo Padre Enfantin. 15 de junho - 10 de agosto - Júlia e Vitória Leleu ajudam os Padres da Fé nas missões de St-Valéry e Abbeville. Instruem as mulheres e as crianças que os missionários lhes enviam.
1805 Janeiro - novembro - Postulantes são recebidas na rua Nova. 3 de fevereiro - Indulto que transfere para Amiens Monsenhor Demandolx, bispo de La Rochelle. 2 de julho - O Padre Varin dá às Irmãs uma Regra mais detalhada. 10 de setembro - Partida do Padre Thomas para as missões no sul da França. É substituído, como confessor das Irmãs, pelo Padre de Sambucy. 15 de outubro - Vitória Leleu e Justina Garson fazem votos de pobreza, castidade e obediência; Júlia Billiart e Francisca Blin de Bourdon renovam os seus, nas mãos do Padre Varin. Escolhem seus nomes de religião. Júlia chamar-se-á Irmã Santo Inácio, mas só usará esse nome na comunidade após o estabelecimento da Companhia de Jesus na França, em 1814; Francisca Blin de Bourdon escolheu chamar-se Irmã São José. Vitória Leleu, Irmã Anastácia, e Justina Garson, Irmã St-Jane. O Padre Varin deixa Amiens, por Paris e o Padre Leblanc torna-se seu superior eclesiástico. 1806 2 de fevereiro – Visão do apostolado futuro da Congregação, durante o canto do Nunc dimittis, à rua Nova. 19 de junho - Aprovação dos Estatutos da Assossiação dita de Nossa Senhora, por Napoleão. Junho - Viagem do Padre Leblanc a Flandre, para lá encontrar M. Fallot de Beaumont, bispo de Gand; Júlia, que o acompanha, é convidada a fundar estabelecimentos em Flandre. Agosto - As Irmãs deixam a rua Nova, indo a uma casa mais espaçosa, em Faubourg-Noyon, em Amiens; Madame de Franssu, amiga de infância da Irmã São José, aí é recebida como hóspede contribuinte. 9 de dezembro - Partida para a fundação de St-Nicolas, em Flandre; de passagem por Gand, as Irmãs aí vestem o primeiro hábito das Irmãs de Nossa Senhora, bento pelo bispo de Gand. 17 de dezembro - Abertura da escola de St-Nicolas. 1807 4 de fevereiro - Retorno de Júlia a Amiens, após uma entrevista com M. Pisani de la Gaude, bispo de Namur, que lhe pede uma fundação nesta cidade episcopal. 21 de fevereiro - Fundação de Montdidier, na França.
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10 de março - Decreto imperial confirmando a aprovação de 19 de junho de 1806. 7 de julho - Fundação em Namur, numa casa que fazia parte de um seminário maior. Irmã São José é nomeada superiora. Padre Minsart é nomeado confessor da comunidade. 23 de julho - Madre Júlia é notificada, por ocasião de uma visita do Padre Leblanc a Namur, que este último é substituído, como superior da comunidade de Amiens, pelo Padre de Sambucy. 25 de julho - Partida de Madre Júlia para Bordéus, a fim de instaurar uma filiação com Madame Vincent e sua comunidade. 12 de novembro - Júlia deixa Bordéus, se detém em Poitiers, onde inicia um retiro com a comunidade de Madame Barat; estranhamente preocupada, prossegue em sua viagem para Amiens. 20 de novembro - De passagem a Paris, é informada, por uma carta do bispo de Amiens, que lhe é interditada sua entrada em Amiens, na casa de Faubourg-Noyon e na diocese. Toma conhecimento, igualmente, da dissolução dos Padres da Fé por Napoleão, sob instigação de Fouché. 3 de dezembro - Madre Júlia vai encontrar o bispo de Amiens; está doente e obtém a permissão de retornar a Faubourg-Noyon, até que sua saúde lhe permita partir para Namur. 4 de dezembro – Chega a Gand o novo bispo, Monsenhor de Broglie. 1808 21 de março - Partida de duas Irmãs para a fundação de Jumet, na Bélgica; Júlia não é autorizada a acompanhar as Irmãs. Abril - Por sugestão do bispo de Amiens, ela visita as Irmãs de Jumet. Várias Irmãs estão doentes, em Namur, ela vai para lá; na volta para Amiens, visita St-Nicolas, com Madre São José, e elas chegam em Amiens no dia 5 de abril. 1º de agosto - Júlia parte para Bordéus, a fim de elaborar uma regra mais completa com a Madre Vicente; de passagem a Paris, é expulsa de Amiens pelo Padre Varin, que havia recebido um dossiê do bispo de Amiens. 21 de outubro - Chega a Namur, chamada à cabeceira da Irmã Xavier, superiora interina, que estava moribunda.
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1809 1810 1811 1812
6 de dezembro - Na ausência das duas fundadoras, a comunidade de Namur é transferida à rua de Fossés, que se chamará, mais tarde, rua Emile Cuvelier, depois rua Júlia Billiart. Esta será a casa mãeSemana de Natal - Retiro em Amiens, dirigido pelo M. Cottu, que, aparentemente, substituiu Padre de Sambucy, o qual ainda dirige tudo; ele apresenta uma Regra às duas Madres. 5 - 13 de janeiro - Novena ao Menino Jesus, durante a qual Madre Júlia é iluminada sobre a situação difícil. 11 de janeiro - O bispo de Amiens pede que todos os bens de Madre São José sejam destinados à casa de Amiens; Madre São José recusa-se. 12 de janeiro - Carta do bispo de Amiens, informando Madre Júlia de que deve deixar sua diocese. 15 de janeiro - Madre Júlia deixa Amiens, acompanhada de cinco Irmãs; elas chegam a Namur, no dia 21 de janeiro. 27 de janeiro - Morte da Irmã St-Jane (Justina Garson), causada pela umidade da casa de St-Nicolas. 25 de junho - Carta veemente de M. de Broglie, bispo de Gand, ao Padre de Sambucy, na qual toma a defesa de Madre Júlia. É o começo da reabilitação, que não tardará a ser completa. 14 de agosto - Fundação de St-Hubert, nos Ardennes belgas. 21 de novembro - Instalação provisória das Irmãs em Gand, na rua das Mulheres. 13 de dezembro - Aquisição da casa da rua de Fossés, em Namur, primeira propriedade das Irmãs de Nossa Senhora. 15 de fevereiro - Fundação de Nouveau-Bois, em Gand. A aliança com a casa de Bordéus se dissolve. 11 de novembro - Fundação em Zele. 12 de dezembro - Internamento de M. de Broglie, por ordem de Napoleão. Final de setembro - Júlia, reabilitada, é convidada, por intermédio do Padre Sellier, a retornar a Amiens. 23 de outubro e 1º de novembro - Cartas pessoais de M. Demandolx à Madre Júlia, pedindo que retorne à sua cidade episcopal.
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17 de novembro - Documento elaborado por M. Demandolx - nomeando Madre Júlia Superiora geral das Irmãs de Nossa Senhora - dirigido à Madre Maria Prévost, superiora da casa de Amiens. 1813 7 de janeiro - O convento de Amiens é fechado. 9 de março - Entrevista com o Papa Pio VII, em Fontainebleau. 6 de outubro - Fundação em Andenne. 11 de outubro - Fundação em Gembloux. 1813-1814 - Fechamento das “pequenas casas” da França: Ambleville, Bresles, Rubempré, Rainneville; a casa de Montdidier existe ainda, por ocasião da morte de Júlia Billiart; só será fechada em setembro de 1 816. 1814 21 de junho - Fundação em Fleurus. 18 de outubro - A comunidade de Gembloux é transferida para a Abadia de Gembloux. 1815 13 de fevereiro - Partida para Liege; primeiras tentativas de uma fundação que só será realizada em 1816, após a morte da fundadora. Preparativos da fundação de Dinant, que só se realizará, igualmente, em 1816, após a morte de Madre Júlia. 7 de dezembro - Júlia sofre uma grave queda, numa escada, em Namur. 1816 14 de janeiro - Madre Júlia cai enferma. 15 de janeiro - Recebe a Extrema Unção. 8 de abril - Júlia morre, às duas horas da madrugada, segunda-feira da Semana Santa. 10 de abril - Quarta-feira Santa, funerais antecipados, por causa dos ofícios da Semana Santa. Julho - Por ocasião da colocação do monumento fúnebre, reaberto o esquife: o corpo é encontrado intato. 1817 27 de julho - O corpo, no mesmo estado que no ano anterior, é posto numa cova, sob a capela do jardim da casa mãe. 1818 8 de setembro – Aprovação episcopal do Instituto das Irmãs de Nossa Senhora; documento assinado por Charles-François-Joseph (M. Pisani de la Gaude) bispo de Namur. 1842 Abertura da cova onde repousa a fundadora, após as inundações. Idem em 1880, o que determina a autoridade eclesiástica a permi302
1844 1889 1891 1906 1969
tir a construção de uma tumba mais elevada, tal qual aparece no oratório atual. 28 de junho - Aprovação pontifical do Instituto, pelo Papa Gregório XVI. 25 de junho - Introdução da causa da beatificação, ratificada pelo Papa Leão XIII. 10 de dezembro - Encerramento do processo de Namur. 19 de março - Decreto de beatificação, pelo Papa Pio X. 13 de maio - Beatificação de Madre Júlia. 22 de junho - Canonização da bem-aventurada Júlia, chamada, desde então, Santa Júlia Billiart, pelo Papa Paulo VI.
FRANCISCA BLIN DE BOURDON 1756 8 de março - Nascimento de Maria Luísa Francisca Blin de Bourdon, segunda filha e terceira criança, em Gézaincourt, na Picardia, onde residiam os avós maternos da criança. Ela foi batizada no dia seguinte e confiada a seus avós, o barão e a baronesa de Fouquesolles. 1762-1768 Francisca é confiada às Damas Beneditinas da abadia St-Michel, em Doullens, onde ela permanece cada ano, durante os meses de verão. 1764 Recebe o sacramento da confirmação, das mãos de M. de Motte, bispo de Amiens. 1767 É admitida à primeira comunhão. Neste mesmo ano, M. de Motte, por um decreto de 7 de outubro, prescreve a celebração da festa do Sagrado Coração em sua diocese. Houve uma grande manifestação na abadia. Foi lá, dizia Madre São José, que aprendi a honrar o Sagrado Coração de Jesus. 1768-1771 Torna-se pensionista na casa das Ursulinas de Amiens. Encontra uma amiga de infância, que era mais velha de cinco anos, Jane de Croquoison, que se tornará Madame de Franssu. Volta, depois, a Gézaincourt.
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1775 Deixa Gézaincourt, para reunir-se com seus pais, o visconde e a viscondessa Blin de Bourdon, no castelo de Bourdon, à margem do Somme. Fez sua entrada na sociedade e é apresentada na Corte de Versalhes. 1781 Junho - Casamento de seu irmão, o visconde Luís Maria César, com a senhorita Elisabeth Pingré de Fieffes. O casal se instala no Hotel da rua dos Agostinhos, em Amiens, Hotel tornado famoso na história da congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Dezembro - Casamento de sua irmã mais velha, Maria Luísa Aimé, com M. Gaspar Félix, escudeiro. 1784 24 de fevereiro - Morte do barão de Fouquesolles, seu avô. 2 de abril - Morte da viscondessa Blin de Bourdon, sua mãe. O visconde Blin de Bourdon acolhe, em Bourdon, sua filha mais velha, enquanto Francisca vai com sua avó, em Gézaincourt, onde se ocupa da administração da propriedade que lhe foi legada, terras e castelo, e cujo nome ela adotou, até a Revolução. Recebe, aí, frequentemente, suas amigas, Madame de Franssu e Madame Baudoin. 1793 No final deste ano, seu pai, acusado, injustamente, de ter emigrado, é aprisionado na Providence, em Amiens. A 17 de dezembro, seu irmão também é encarcerado, por ter desmascarado a injustiça que fizeram contra seu pai. 1794 Fevereiro - Francisca é aprisionada, com vários membros de sua família, na Providence. Pede, em vão, que seja posta junto de seu pai e seu irmão; mais tarde, será transferida ao Carmelo, transformado em prisão. Março - Sua cunhada é aprisionada na Providence. 18 de março - Morre, aos 88 anos, sua avó, que ficara só, no castelo de Gézaincourt. 27 de julho - Queda e morte de Robespierre. Pouco a pouco, as prisões se abrem. 3 de agosto - Libertação do pai e do sobrinho de Francisca. 4 de agosto - Libertação de Francisca. 14 de setembro - Libertação do irmão de Francisca. A família se reúne no Hotel Blin, em Amiens, após oito meses de separação e de angústia. 304
1795 Ata da união de oração e de boa obra entre três ou mais pessoas para honrar a união inefável das três pessoas divinas. Ata dirigida ao Sagrado Coração de Jesus e assinada por Maria Luísa Francisca Blin. 25 de março – Consagração à Virgem Maria. 19 de abril - Consagração a São José. 1797 1799 1804
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2 de julho - Renovação da consagração ao Sagrado Coração, em presença do abade Thomas, de Júlia e de suas companheiras. Julho de 1795- fevereiro de 1797 - Francisca se divide entre Gézaincourt e Bourdon, onde seu pai a reclama com frequência. 1º de fevereiro - O pai de Francisca, tornado voltairiano, morre após se reconciliar com Deus, sob a influência de Francisca. Abril - Retorno ao hotel Blin, em Amiens, junto de seu irmão e de Júlia. 16 de junho - Partida de Júlia, Francisca e Padre Thomas, - tornados indesejáveis, por causa de seu zelo, - para Bettencourt, onde permanecem até fevereiro de 1803. 2 de fevereiro – Consagração de Júlia Billiart, Francisca Blin e Catarina Duchâtel à vida religiosa, pelo voto de castidade, e a promessa de se dedicarem à instrução das meninas e à formação de professoras, “na companhia da gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora”. 30 de junho - Partida para Namur, da Irmã São José, nomeada superiora da nova casa pelo bispo de Amiens, à instigação de M. de Sambucy, que a queria afastar. 7 de julho - Chegada a Namur, após uma escala em St-Nicolas. Estadia em Amiens, de 5 de maio de 1808 a 1º de março de 1809, onde ela sofreu muitas intrigas, antes de ser banida, tendo-se recusado a deixar toda a sua fortuna para a casa de Amiens, de onde já haviam repelido a fundadora. Fins de março - Irmã São José, gravemente enferma, recebe os últimos sacramentos. 8 de abril - Morte de Santa Júlia Billiart. 2 de junho - Madre São José é eleita segunda Superiora geral. 19 de junho - Fundação da casa de Dinant. 14 de outubro - Fundação da casa de Liège.
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Verão de 1816 - Madre São José redige as Constituições do Instituto, após ter estudado os escritos de Madre Júlia, as Regras de São Benedito, de São Francisco de Sales e de Santo Inácio; é a estas últimas que ela faz alusão; delas tira a maior parte. 1817 14 de agosto - Morte de M. Demandolx, bispo de Amiens, assistido por M. de Broglie, bispo de Gand, cassado de sua sede pelo governo holandês. 3 de novembro - Fundação da casa de Thuin. 1818 Maio - Decretos do rei de Holanda, suprimindo as ordens contemplativas, tolerando as ordens de ensino, até o dia em que a instrução oficial será estabelecida em toda a parte; apenas as hospitalares são mantidas. 8 de setembro - Aprovação das Regras por M. Pisani de la Gaude, bispo de Namur, após dois anos de experiência. Translado para a casa mãe, das obras de Hugo de Oignies. 1819 Projeto da fundação, na Holanda, de uma congregação, pelo Padre Wolff. De 1819 a 1824, sete postulantes são formadas em Gand, para isto. Desse grupo, sairão três congregações prósperas, que reconhecem Madre Júlia como fundadora; as Irmãs de Nossa Senhora de Amersfoort, de Coesfeld (Wesphalie) e a congregação de Jesus, Maria, José, de Boi-le-Duc. 1821 Dezembro - Morte de Madame Félix, a única irmã de Madre São José. 1823 Intrigas, múltiplas do governo holandês, cada vez mais francófobo. 9 de fevereiro - Morte da Irmã Anastácia Leleu, a companheira, desde os primeiros dias, depois tornada sua Assistente. 1824 6 de março - Morte de sua amiga de sempre, Madame de Franssu. Ordem dada às Irmãs francesas, de se naturalizarem belgas, para poderem ensinar. 27 de dezembro - Recepção da ata de naturalização de Madame Francisca Blin de Bourdon, assinada pelo rei Guilherme I. 1825 O governo holandês torna-se perseguidor: ameaças de suprimir as escolas mantidas por religiosos e religiosas. Os Irmãos das Escolas cristãs são expulsos.
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1826 22 de fevereiro - Morte de M. Pisani de la Gaude, com 83 anos. Reeleição de Madre São José para um segundo decênio. Morte de seu único irmão. 1827 Ordem de fechar as capelas privadas, ao público. 18 de maio - Senhorita de Biolley de Verviers obtém do governo permissão para ter três ou quatro Irmãs de Nossa Senhora residindo em sua casa. 8 de setembro - Consagração do Instituto a Nossa Senhora Auxiliadora, pela Madre São José. 27 de novembro - Fundação da casa de Verviers, na residência de Mademoiselle de Biolley. Quatro Irmãs de Nouveau-Bois à Gand são expulsas “manu militari”; elas são hospedadas em casa de M. Gobert, que abriga, já, clandestinamente, noviços dos Jesuítas. 27 de novembro - Três Irmãs de Jumet são expulsas pela polícia. 1829 O rei Guilherme visita a casa de Namur, onde Madre São José o impressiona por sua atitude cheia de dignidade e nobreza. 1830 Verão - As Irmãs, indesejáveis no ensino, tomam a direção de um hospício, em Huy. Idem, no hospício de Thuin, de Zele, de StGilles e o hospício de St-Jacques, em Namur. Setembro - Os Belgas se revoltam e conquistam sua independência. 1831-1834 Madre São José, com 75 anos, esforça-se por revigorar seu Instituto, após todos esses anos de perseguição. 1832 Visita da casa mãe pelo primeiro rei dos Belgas, Leopoldo I de Saxe-Cobourg Gotha. 1833 Março - Morte do Padre Thomas. Setembro - Nova visita do rei, acompanhada de sua esposa, a rainha Luísa Maria de Orleans, filha do rei dos franceses, Luís Filipe. 1835 Um complô de reforma do Instituto, segundo um espírito mundano, aborrece Madre São José. Foi desbaratado pela Irmã Inácia Goethals, chamada a Namur para assumir o cargo de Assistente. Tornou-se a terceira Superiora geral, em 1838. 1836 16-18 de maio - Por ocasião do segundo decênio, o capítulo geral elege, por unanimidade, Madre São José vitalícia. O generalato será vitalício, até o capítulo geral de 1948. lnauguração dos recolhimentos mensais, pelo Padre Delcourt, S.J. A festa patronal das
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noviças é fixada no dia de Santo Estanislau e a das professas, na festa da Apresentação, 21 de novembro. Domingo de Laetare - Sagração de M. Dehesselle, bispo de Namur, que sucede M. Barrett. O novo bispo não é um desconhecido; quando era jovem e vigário em Liège, acolheu as primeiras Irmãs de Nossa Senhora, na paróquia St-Nicolas. 11 de maio - Morte da última testemunha de nossa chegada em Namur, M. Minsart. 8 de outubro - As Irmãs tomam a direção do hospício de Harscamp, em Namur. Última fundação realizada pela Madre São José pessoalmente. 4 de novembro - Fundação de Bastogne, sob a direção de Irmã Inácia, em nome da Madre São José. 1837 20 de maio – Fundação de Philippeville, pela Irmã Inácia. Ao longo deste ano, declínio progressivo da saúde de Madre São José. 1838 2 de fevereiro - Recepção dos últimos sacramentos. 8 de fevereiro – Última bênção de M. Dehesselle, que veio visitá-la. 9 de fevereiro - Morte da cofundadora, com a idade de oitenta e dois anos.
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Biografia D’AVI AU DU BO IS DE SANZAY CAR LOS, FRANCISCO (1 736-1825) Nascido a 7 de agosto, no castelo du Bois de Sanzay, em Deux-Sèvres e ordenado a 2 de setembro de 1760, tornou-se logo vigário geral em Poitiers. A 14 de dezembro de 1789, foi nomeado bispo de Vienne, em Isère, sede suprimida mais tarde, pela reorganização da Igreja de França. Cassado pelos decretos revolucionários de 1792, foi a Savóia. Escolhido para o bispado desta região, em 1797, governou-o sem levar o título, disfarçado a leigo. Em 1802, foi transferido para Bordéus, como arcebispo. Por ocasião da publicação do Catecismo Imperial, a 4 de abril de 1806, teve a coragem de recusá-lo. A diocese de Bordéus se emocionou em ver seu arcebispo, o santo de Aviau, fazer sua caminhada pastoral a pé, com um bastão na mão, escoltado por paisanos: o que o Imperador julgou, aliás, como “uma falta de dignidade chocante”. Em 1807, Madre Júlia foi solicitada pelo venerável arcebispo que ouvira falar dela, pelos Padres da Fé, vindos de Amiens para pregar uma missão. Como ele possuía uma associação de moças, dirigida por Madame Vincent, cujo objetivo era a instrução das crianças pobres, ele desejou uni-la ao instituto. Júlia deixou Namur a 25 de julho de 1807, e chegou a Bordéus a 5 de agosto. Escreveu à Madre São José: Encontrei, em Bordéus, um santo prelado. É de uma caridade sem igual. Recebeu-nos com toda bondade possível, sempre que uma ou outra de nós se dirige à sua casa, para tratar de nossos assuntos. Tem interesse pelo nosso pequeno estabelecimento. É de muita simplicidade; não me embaraço com ele, pois sua caridade é grande. Ela tornará a partir, de Bordéus para Amiens, no dia 12 de novembro de 1807. 309
Em 1811, o senhor de Aviau, vendo a dificuldade das relações, nesta época, entre Bordéus e Namur - tanto mais que Madre Júlia não tinha autorização para lá ir - manifestou sua vontade de ver interrompida a filiação, fazendo o elogio da Madre geral das Irmãs de Nossa Senhora. Ele desejava, aliás, que as Irmãs de Namur e as de Bordéus se escrevessem mutuamente, para conservar os laços de uma santa amizade. No Concílio de Paris, convocado por Napoleão, em 1811, para tratar da investidura dos bispos pelos metropolitanos, e não pelo Papa, formou-se um forte núcleo contra esta inovação. O bispo de Troyes, Etienne de Boulogne, fortemente apoiado por monsenhor de Aviau, fez o discurso de abertura, onde proclamou ‘a união indissolúvel que era preciso manter com a Sede de São Pedro’ e todos os bispos renovaram o juramento de obediência ao Papa. Enquanto Monsenhor de Aviau defendia o Papa, o ministro da justiça fez a seguinte observação a Napoleão: Não toqueis no bispo de Aviau; é um santo, vós insurgiríeis todo mundo contra vós. Faleceu a 11 de julho de 1825.
BARAT SOFIA, MADALENA (1779-1865) Nasceu na noite de 12 para 13 de dezembro de 1779, em Joigny, às margens de Yonne, na Borgonha, na humilde casa de Jacques Barat, vinhateiro e tanoeiro. Foi batizada na igreja St-Thibault, onde seu irmão Luís, então com doze anos, lhe serviu de padrinho. Tinha também uma irmã mais velha, Maria Luísa. Como Júlia Billiart, ela foi admitida a comungar desde a idade de nove anos, por um favor excepcional. Seu irmão Luís, tendo terminado brilhantemente seus estudos eclesiásticos no seminário de Ses, foi enviado, após ter recebido o diaconato, como professor de Matemática, no colégio de Joigny, onde havia feito seus estudos secundários. Retornado ao lar paterno, maravilhou-se com as 310
disposições intelectuais de sua mais jovem irmã e quis ser seu preceptor. Tendo recusado o juramento constitucional, foi detido em Paris, onde se havia escondido e escapou da guilhotina devido a morte de Robespierre. Recebera, clandestinamente, a ordenação sacerdotal das mãos de M. de Barral, antigo bispo de Troyes, ingressado pela migração. O senhor Barat, lisonjeado com os sucessos de sua filha, que já sabia ler, no original, Virgílio e Homero, augurava-lhe um futuro brilhante. Luís, que se consagrava a um ministério ainda clandestino, na diocese de Paris, conduziu a irmã a capital, como aluna e colaboradora; ela acabava de completar dezesseis anos. Uma cristã fervorosa, a jovem Duval, os hospedou. Sua casa tornou-se, em breve, o centro de uma pequena comunidade ardorosa. O abade Barat aí vinha celebrar a missa, da qual participavam, além da senhorita Duval e Sofia, duas amigas daquela, que se destinavam, como ela, à vida religiosa. Continuando seus estudos, Sofia abordou as ciências religiosas, sob a direção de seu irmão, a quem ela havia também solicitado que fosse seu diretor espiritual. Ele tomou a sério esta incumbência e pôs nisso um rigor jansenista. Em breve, o abade Barat se uniu aos Padres da Fé e falou de sua irmã ao Padre Varin, que desejava fundar uma Sociedade do Sagrado Coração, para a educação da juventude. Este Padre teve a intuição de que Deus lhe enviava a fundadora que ele buscava. A preparação que esta jovem filha havia recebido, excepcional para a época, a predispunha para isso. Sofia aquiesceu e, a 21 de novembro de 1800, ela se consagrava ao Sagrado Coração, com suas duas amigas e a serva da senhorita Duval, como irmã conversa. Depois disso foi a fundação de Amiens, em setembro de 1801, pela tomada de um estabelecimento que decaía. A 7 de junho de 1802, Sofia foi admitida à profissão religiosa e, pouco depois, a 21 de dezembro, designada superiora. É nessa época que Madre Júlia e Madre Barat se encontraram e tornaram-se amigas, não obstante a diferença de idade; Júlia tinha vinte e oito anos a mais do que Madre Barat. O Padre Varin enviava muitas vezes a jovem superiora para junto de Júlia, à escola e ao aprendizado da paciência e da fé viva. Ele es311
crevia à Madre Barat, no dia 5 de abril de 1803: Dizei à boa Júlia que penso continuamente nela, porque gosto de me lembrar sempre que o bom Deus é bom. A 11 de junho de 1803: Ide, eu vos peço, visitar, por mim, a boa Júlia; dizei-lhe que tenha confiança e que as obra à qual Nosso Senhor a chama, merece bem que seja comprada com algum sacrifício. (Trata-se da compra da casa do Oratório, como vem contado em Memórias). Numa outra carta, de 27 de junho de 1803: Ide ver a boa Júlia, dizei-lhe que não a esqueço nunca e que Nosso Senhor, menos ainda. Madre Júlia, de sua parte, declarava que era muito agradecida à conversação da pequena Madre Barat, como gostava de chamá-la. Ela escreveu à Madre São José, durante a missão de St-Valéry, em junho de 1804: Mil saudações à minha boa e querida e pequena Madre Barat; estou muito contente que ela venha vos visitar e que aproveite o ar de nosso jardim. Em 1804, foi a fundação de Grenoble. Durante a ausência de Madre Barat, a casa de Amiens foi confiada a Madame de Baudemont (ver a seguir). Essa e o abade de Sambucy, confessor dos alunos e da comunidade, preparavam uma redação das Constituições, para a qual não tinham sido designados. Esse turbulento abade trabalhava também no sentido de eleger Madame de Baudemont como Superiora geral. A eleição se realizou a 18 de janeiro de 1806: Madame Barat é que foi a eleita, com maioria de votos; seguiram-se perturbações na comunidade. Madame Barat tinha vinte e seis anos. O Padre Varin, desejando ver Madre Barat assumir suas responsabilidades, pediu sua demissão de superior geral e se afastou. Após ter fundado Poitiers, Bordéus, Niort, Madre Barat retornou para Amiens, no fim de outubro de 1808 e teve a tristeza de saber que sua antiga amiga, Madre Júlia Billiart, era desprezada, relegada, junto de seu bispo, na emergência de ser expulsa, ela e sua congregação, de uma cidade e de uma diocese repletas de boas obras. A 15 de janeiro de 1809, as Irmãs de Nossa Senhora partiram bem friamente, bem corajosamente, em grande paz e amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, como se exprimiu a fundadora, numa carta. Esta proscrição era também, em grande parte, obra do padre de Sambucy. 312
Duas Irmãs de Nossa Senhora, tendo decidido de ficar em Amiens, o bispo pediu às Damas do Sagrado Coração, de assumir a direção da comunidade e do orfanato. Foi a Irmã Maria Prévost (ver mais adiante), ainda noviça, que foi designada para isso. Ela entrou em Faubourg-Noyon no dia 3 de março de 1809. Três outras religiosas do Sagrado. Coração foram emprestadas, e um ato autêntico de filiação uniu as duas sociedades. Uma carta, juntamente com a ata dava ao abade de Sambucy o título de fundador. Tudo aquilo foi decidido e cumprido por Madame de Baudemont, sem que Madre Barat o soubesse, a qual foi totalmente ignorada em Amiens e posta de lado pela superiora. Madre Barat começou, então, uma vida errante que durou vários anos. Tendo que suportar muitas dificuldades ocasionadas pelo padre de Sambucy, tornou-se gravemente enferma; mas sua paciência triunfou: padre de Sambucy foi desacreditado por todos. Enfim, após ter visto desaparecerem todas as suas primeiras companheiras, ter sofrido uma grave crise interior e múltiplas provações causadas por acontecimentos políticos, ela deixou este mundo, após um governo de sessenta e três anos, no dia 25 de maio de 1865, reconfortada pela bênção do Papa Pio IX. Tinha a idade de oitenta e seis anos.
DE BAUDEMONT ANA Superiora, na época de Madre Júlia, das Damas da Instrução cristã (Sagrado Coração), no Oratório, em Amiens. Era uma antiga clarissa, mulher de caráter e de virtude; mas a têmpera de seu espírito dominador a tornava mais apta a criar uma obra, que se filiar a um Instituto existente. Esta tendência se acentuou ainda mais pelo apoio caloroso que lhe prestou o abade de Sambucy, que trabalhou no sentido de fazê-la superiora geral, em lugar de Madre Barat; mas esta última foi eleita a 18 de janeiro de 1806. Irmã de Baudemont continuou a agir como superiora do Oratório, ignorando, praticamente, a superiora geral que se sentiu, bem depressa, sobrando em Amiens. Em 1814, Irmã de Baudernont foi enviada a Poitiers; em maio de 1816, deixou a Sociedade, de maneira regular, e ingressou no convento de St-Denis, em Roma, fundado pelo padre de Sambucy. 313
Foi ela que, por instigação do padre de Sambucy, instalou, como superiora das Irmãs de Nossa Senhora, em Faubourg-Noyon, a Madre Maria Prévost, à revelia de Madame Barat.
BAUDOIN, CONDESSA (? - 1796) Chamada, simplesmente, Madame, à época revolucionária -, filha do conde de Arlincourt, viveu em Paris com seu marido e suas três filhas, passando o verão em Cuvilly, numa casa de campo, que foi incendiada em 1802. Madame Baudoin, a convite do pároco Dangicourt, visitou a piedosa enferma, Júlia Billiart, em companhia de Madame de Séchelles e de Madarne de Pont-l’ Abbé, cujos castelos eram vizinhos. O conde de Arlíncourt, de passagem por Cuvilly, não tardou em compartilhar das predileções de sua filha e se apegou a Júlia, a ponto de lhe deixar, em testamento, uma renda vitalícia de 600 libras. Em maio de 1794, este último foi executado, bem como outros fazendeiros generais; e em julho do mesmo ano; o conde Baudoin também foi guilhotinado. Madame Baudoin fugiu, então, de Paris, com suas três filhas, e foi a Amiens, onde ocupou um apartamento em casa do visconde Blin de Bourdon (irmão da Madre São José). Não tardou a fazer vir Júlia, sua consoladora, que residia, então, em Compiègne, e a alojou numa pequena dependência, no Hotel Blin. Foi lá que Júlia conheceu a cofundadora, Francisca Blin de Bourdon. Madame Baudoin levou também, para o Hotel Blin, um padre, o abade Thomas, doutor na Sorbonne, que teve um papel importante na formação do Instituto Nossa Senhora. Por ocasião de uma estadia em Paris, Madame Baudoin morreu, assistida pelo abade Thomas, que lhe havia aconselhado de confiar sua filha mais moça, Lise, aos cuidados de Júlia (ver mais adiante).
BAUDOIN LISE (1777 - ?) Terceira filha da precedente. Acompanhou sua mãe e suas irmãs ao Hotel Blin, em Amiens, após a morte de seu pai, em 1794. Foi introduzida, por sua mãe, na amizade de Júlia e chegou a ter, por ela, uma predileção muito grande. 314
Quando a condessa Baudoin morreu, em Paris, em 1796, tendo recomendado a sua filha mais moça à solicitude de Júlia, Lise retornou ao Hotel Blin e convidou quatro de suas amigas, também muito provadas pela Revolução, a se unirem a ela: Jane e Aglaé de Fos de Méry, Josefina e Gabriela Daria. Com Francisca Blin de Bourdon, elas formaram, sob a direção de Júlia, que chamavam de Mère, uma pequena comunidade piedosa; muito fervorosa, cujo animador era o padre Thomas (ver mais adiante). Mas em breve o grupo se dispersou; Lise foi viver com sua irmã, casada em Paris, e que morreu pouco depois. Lise mesma tornou-se muito mundana e morreu jovem também.
BICHERON ANGÉLICA (1787- 1825) Nasceu em Soissons, a 25 de setembro de 1787. Sobrinha do abade Antônio Bicheron (veja notícia a seguir), entrou na rua Nova, a 17 de julho de 1805 e fez parte do segundo grupo de postulantes; recebeu o nome de Irmã Josefina. Descontraída e amável, foi amada por Madre Júlia, que a admitiu à profissão a 20 de fevereiro de 1807. Acompanhou a Irmã Catarina Daullée, enviada a Montdidier, para lá fundar uma escola, a pedido dos Padres da Fé que aí tinham um colégio. As classes iniciaram com sessenta alunos, com uma missa do Espírito Santo e um bom almoço que foi muito apreciado. Em junho de 1809, em sua primeira viagem à Picardia, após sua destituição, Madre Júlia levou as Irmãs de Montdidier que desejavam permanecer unidas à sua fundadora. Irmã Josefina viveu dois anos em Namur, depois foi enviada a St-Hubert para lá ensinar; ganhou a afeição de seus alunos por sua grande doçura. Em breve, adoeceu e foi transferida para Jumet, depois a Gembloux, na esperança de que uma mudança de ar pudesse restabelecê-la. Em 1821, foi conduzida a Namur pela Madre São José. Aí definhou, durante quatro anos, sem se queixar e seus sofrimentos complicaram-se com uma hidropisia. Sua paciência por ocasião de uma operação e sua constante amabilidade ilustraram a formação que Madre Júlia lhe havia dado. Morreu tranquilamente, em Namur, a 14 de julho de 1825.
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BICHERON ANTOINE-JOSEPH (abade) Veio de Soissons para Amiens, no tempo da Revolução. Com o abade Sellier, fundou o colégio para rapazes, no Oratório, que em breve foi cedido aos Padres da Fé. Em outubro de 1804, o colégio foi transferido para Faubourg-Noyon e depois para Montdidier. O abade Bicheron foi nomeado pároco de St-Remi, em Amiens. Um dia em que estava em Soissons, contou a cura de Madre Júlia a um grupo de crianças, entre as quais se encontrava sua sobrinha, Adelaide Pelletier, com doze anos de idade. Os alunos iniciaram imediatamente uma novena de ação de graças; isto representou, para Adelaide, o começo de um atrativo interior que a conduziria, mais tarde, à Congregação de Nossa Senhora. Duas outras sobrinhas entraram, na rua Nova: Escolástica Pelletier e Angélica Bicheron, em 1805. O abade habitava em Amiens, um apartamento à casa de Madame de Rumigny, uma amiga de Júlia; foi lá que ele encontrou a santa (ver o episódio da visita de Leonardo, doméstico do padre de Sambucy). Faleceu a 19 de março de 1824.
BILLIART JOÃO FRANCISCO e DEBRAINE MARIA ANTONIETA João Francisco Billiart, estabelecido em Cuvilly, na Picardia - atualmente distrito de Oise - desposou, em 1739, Maria Antonieta Debraine, natural de Maignelay, a três léguas de Cuvilly. Tiveram sete filhos, dos quais Júlia foi a quinta. Duas meninas, as mais velhas, Luísa Antonieta e Maria Rosa, morreram com pouca idade. Júlia, nascida a 12 de julho de 1751, e batizada no mesmo dia, na igreja St-Eloi, tinha treze anos quando perdeu, em 1764, um irmão mais velho e uma irmã mais moça, João Batista e Maria Luísa Angélica. Só lhe restou, pois, uma irmã, Maria Madalena Henriete, sete anos mais velha que ela, e um irmão caçula, Luís Francisco, nascido a 20 de julho de 1754, que se casaram.
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Os pais de Júlia moravam na rua Lataule, em Cuvilly e trabalhavam no comércio de variedades e confecções, cujo fruto, somado a alguns terrenos, permitiam-lhes viver numa folga modesta. A todos esses lutos acrescentaram-se, mais tarde, os reveses. Numa noite ladrões se apossaram da melhor parte das mercadorias, uma perda de 3.000 libras, que os arruinou. Júlia tinha dezesseis anos e precisou trabalhar muito, a fim de ajudar seus pais. O pai morreu a 19 de junho de 1792, com a idade de setenta e cinco anos, na ocasião em que Júlià, enferma, estava refugiada em Compiègne, na casa das senhoritas de Chambon e na impossibilidade de vir consolar sua mãe. Aquela faleceu em 1795, na ocasião em que Júlia estava estabelecida no Hotel Blin, em Amiens.
BILLIART NORBERT (1796-1828) Conhecido, na congregação, sob o apelido de pequeno Norberto. Era filho de Luís Francisco Billiart, irmão de Madre Júlia. Este último, que era enfermo, vivia honradamente de seu trabalho de alfaiate, em Cuvilly. No entanto, adoecendo mais e mais, não pôde mais trabalhar e viu-se reduzido a um estado de pobreza. Em suas Memórias, Madre São José escreve, no capítulo VII: Madre Júlia incumbiu-se de seu sobrinho Norberto, sem dúvida por compaixão e em reconhecimento para com seu irmão – ela não podia esquecer os cuidados que ele tivera para com ela, nos primeiros anos de sua doença em Cuvilly -, mas ainda mais pelo desejo e a esperança de ganhar para Deus um servidor fiel e, talvez, um bom ministro. Este era seu desejo. Com treze anos de idade, acompanhou sua tia a Namur, na ocasião de seu exílio. Ela o fez estudar nesta cidade. A santa faz alusão a ele, nas suas primeiras cartas a Madre São José, notadamente numa carta datada de Doullens, durante a viagem: O pequeno Norbertro abraça sua boa Madre Blin; ele se comporta bem e é muito tranquilo em viagem. Mais tarde, ela escreve: Não me dizeis nada do meu pobre Norberto? Contai-me vossas impressões. E a 10 de maio de 1810: Não estou preocupada que vejais uma vez 317
mais o pequeno Norberto, a fim de que possais avaliar a causa de ele não mais vir ver-me. Entretanto, Madre São José relata, em suas Memórias, no capítulo VII: Esta criança nasceu com disposições ótimas de aprendizagem e uma certa abertura de espírito, mas um extremo amor-próprio. O demônio – talvez com despeito de sua tia – atacou vivamente o menino e ele crescia, proporcionando aborrecimentos profundos à sua tia. Ela esteve, diversas vezes, a ponto de manda-lo embora para seu pai; mas com isso significava dar um golpe doloroso ao pai, e entrevendo em tudo a malícia e o furor do demônio, suportou-o durante muito tempo; mas foi preciso tomar essa decisão. É preciso admitir que a educação dada pela sua tia, com todos os cuidados que a acompanharam, produziria, mais tarde, excelentes frutos, o que, realmente se confirmou. Madre Aloísia, quinta Superiora geral, em uma carta de 2 de setembro de 1881, confidência: Sim, o pequeno Norberto de que falais, era meu pai; eu tinha dois anos e meio quando faleceu, em 1828, mas minha mãe me falou, na minha infância, desta tia-avó tão eminente pelas suas virtudes. Além do episódio da primeira comunhão em Namur, lembro-me que M. Frayssinous, grande amigo e protetor de meu pai – que ele fizera nomear, ainda jovem, como principal do colégio de Nemours – interessava-se por ele precisamente por causa de seu parentesco com a venerável Madre Júlia.
BILLIART NORBERTO (1826-1889) Filho do precedente, foi advogado na Cour d’Appel de Paris. Um jornal anunciando sua morte, apareceu em 17 de julho de 1889, no qual se lia este elogio: M. Norberto Billiart era um homem de bem, um coração valente e generoso. Secretário e amigo de dois homens eminentes, MM. Billiaut e Rouher, deveu sua estima e sua confiança às qualidades de homem e de escritor. Advogado em Paris, secretário da Conferência, este título o designou a M. Billiaut. M. Norberto Billiart redigia sozinho o “Monde Judiciaire”, revista mensal que teve o maior sucesso. Escreveu diversos romances e tornou-se célebre por artigos políticos importantes e algumas brochuras de atualidade. 318
Conversador agradável, com um imenso repertório de anedotas, sempre repetidas por ele com espírito e graça, exerceu, na época do Império, as funções de diretor do “Jornal Oficial”, e, por ocasião da queda do regime, retirou-se muito dignamente. Alguns anos antes de sua morte, M. Norberto Billiart veio passar alguns dias em Namur, de 23 a 27 de dezembro de 1881, convidado por Madre Aloísia. Lá passou as festas de Natal com as Irmãs e assistiu à tradicional vestimenta das pobres do pensionato. (Anais da casa mãe, Namur). Grande amigo da familia Carpeux-de Monfort, onde passou os últimos anos de sua vida, em Paris, repousa, no cemitério, na tumba desta mesma família. Algumas recordações pessoais que pertenceram à Madre Júlia e que ele havia, cuidadosamente, guardado na família Carpeux, até 1954, Madame Clément-Carpeux, entrando em contato com a casa-mãe de Namur, pô-las à disposição das Irmãs de Nossa Senhora, antes de sua morte.
BLIN DE BOURDON Esta família é uma das mais antigas da Picardia. Originária de Beauvoisis, ela já é mencionada no século XI e o adágio Bom como um Blin remonta à Idade Média. Uma filiação ininterrupta une Jean de Blin, senhor de Rainvilliers e de Blin, em 1254, A Pierre-Louis, senhor de Bourdon, visconde de Domart-em-Ponthieu. Aquele, nascido em 1706, desposou Maria Luísa Claudine de Fouquesolles, filha do barão de Fouquesolles, visconde de Doullens, senhor de Gézaincourt e antigo mosqueteiro do rei. Estes são os parentes de Maria Luísa Francisca, nascida em Gézaincourt, a 8 de março de 1756, no castelo de seus avós maternos, com quem ela viveu até inícios de 1775. Herdou o domínio de Gézaincourt, situado a dois quilómetros de Doullens, nos confins dos atuais distritos da Somme e do Pas-de-Calais. Em 1775, Francisca reúne-se a seus pais, no castelo de Bourdon, cujo domínio se estendia pelas margens do Somme, ao norte da atual via férrea de Amiens a Abbeville. O herdeiro deste domínio será o irmão mais velho de Francisca, o visconde Luís Maria César que, em junho de 1780, deixou o exército, para desposar Elisabeth Pingré de Fieffes; em dezembro do mesmo ano, a irmã de Francisca, Maria Luísa Aimé, uniu-se a Gaspard Félix, escudeiro. Os 319
dois novos lares se estabeleceram em Amiens. É nesta época que o jovem visconde adquiriu o Hotel da rua dos Agostinhos - muito conhecido sob o nome de Hotel Blin, nas histórias das Irmãs de Nossa Senhora - frente ao Oratório, no cruzamento da rua dos Agostinhos e a rua do Oratório. Ele subsiste hoje ainda. O antigo castelo de Gézaincourt foi substituído, em 1839, por uma construção em estilo do império. Foi vendido em 1947, às minas de carvão nacionais do Norte e do Pas-de-Calais para suas obras sociais, notadamente as Colônias de Férias. O castelo de Bourdon, transformado, no século XIX, em hospital para idosos, foi destruído por um incêndio, em 1929.
BOURTRAINGHAN ELISABETH VITÓRIA Nascida em Glancourt, Artois, ingressou com as Irmãs de Nossa Senhora no dia 13 de novembro de 1805, recebendo o nome de Irmã Teresa. Tinha sido babá numa respeitável família de Amiens, e era conhecida como tal, na cidade. Com vinte e dois anos de idade, compensando com um exterior avantajado à sua pouca educação, ereta, ativa, insinuante, dotada de bom gosto, ganhou as boas graças do padre de Sambucy, que lhe permitiu fazer votos anuais após um ano de noviciado e a supunha dotada para ocupar um cargo de autoridade. Nomeou Madre Vitória e a nomeou superiora, em substituição à fundadora, assim que esta se afastou de Amiens, por instigações do mesmo padre de Sambucy. Ela teve muito sucesso com as Irmãs e pessoas de fora, mesmo no bispado. Foi cumulada de elogios. Mas em breve reconheceram-se-lhe os limites e ela foi enviada, como superiora, a Rubempré, onde se portou pouco religiosamente. Quando esta casa fechou, por intervenção de Madre Júlia, ela se retirou da vida religiosa.
DE BROGLIE MAURICE-JEAN_MADELEINE (17661821) De família nobre, originária de Chieri, Piemonte, de onde um ramo se instalou na França, em 1634, e adquiriu os títulos de marquês (1671), de duque (1742) e de príncipe do Santo Império (1759), ele nasceu no castelo de Broglie, na Normandia, a 5 de setembro de 1766. É filho de Ví320
tor Francisco, duque de Broglie e marechal de França, o qual se cobriu de glória militar durante a guerra dos sete anos e mereceu o título de príncipe do Santo Império para si e sua posteridade. Após uma emigração na Alemanha, em 1790, com seu pai, Maurice foi ordenado em Trèves, em 1792. Uma estadia na Polônia (junho de 1798) e em Berlim (dezembro de 1801) foi seguida de seu retorno a Paris, em 1802, onde se tornou o capelão de Napoleão; em 1805, foi sagrado Príncipe-Bispo de Acqui no Piemonte. Em 1807, foi transferido para Gand, onde chegou a 4 de dezembro. Em breve, as ingerências do Imperador nos negócios da Igreja o levaram a uma atitude de oposição. Em 1809, ele protestou com energia, contra o decreto de 18 de fevereiro, que tocava na vida religiosa das Hospitalares, decreto que degenerava o espírito. Esta corajosa intervenção obteve satisfação, no dia 8 de novembro, junto do governo. Depois que Napoleão destituiu o Papa de seus Estados, ele, como bispo, fez-lhe a oferta da cruz da Legião de Honra; recusou-a, audácia que lhe valeu uma blasfêmia, no momento da visita do Imperador a Gand, em 1810. Recusou-se, também, de fazer ler, no púlpito, uma circular sobre o recrutamento militar; e, convidado a celebrar o futuro nascimento do rei de Roma, o filho de Napoleão, limitou-se a pedir ao Senhor que fizesse com que o Imperador corrigisse suas deformidades de caráter. Foi a ocasião de uma bela palavra. Furioso, Napoleão gritou ao bispo: Eu vos fiz bispo! Fiz-vos meu capelão! Sem mim, que seríeis? E M. de Broglie respondeu: Senhor, eu seria um príncipe. Em 1811, os bispos franceses foram convocados para o Concílio Nacional de Paris, que se reuniu no dia 17 de junho. M. de Broglie, com o arcebispo de Bordéus, M. d’ Aviu, e o bispo de Tournai, M. Hirn, puderam mãos à obra, no sentido de preparar uma resposta a ser dada em nome da assembleia, sobre a questão da instituição canônica dos bispos pelo Papa e não pelos metropolitanos. Como presidente, M.de Broglie exprimiu a recusa de aceitar as decisões de Napoleão; a esse respeito, o Imperador, ultrajado, fez deter seu adversário, a 12 de julho, demitiu-o do cargo de capelão e o condenou a quatro meses de isolamento em Vincennes. Esta resistência às pretensões tirânicas de Napoleão, valeu, ao M. de Broglie, a honra do exílio. No dia 12 de dezembro de 1811, foi internado em Beaune e pouco depois, relegado à Ilha de Santa Margarida (no mar das Caraíbas). 321
Durante o exílio do bispo, um certo abade de la Brue de St-Banzille, usurpando o título de bispo, fez sua entrada em Gand, a 13 de julho de 1813. O clero não se submeteu; seguiu-se uma perseguição. Entretanto, M.de Broglie comunicava-se com o Papa Pio VII, em Fontainebleau, e ele lhe confirmou que seria sempre bispo em Gand. Após a derrota de Leipzig, em outubro de 1813, e a primeirA abdicação de Napoleão, a 6 de abril de 1814, este teve que se retirar à Ilha de Elba, ao largo da costa toscana. Logo, em Roma, dá-se a entrada triunfal de Pio VII, a 24 de maio de 1814; no mesmo dia, M.de Broglie fazia sua entrada solene em Gand. Este ilustre confessor da fé lutou até o fim, pela defesa da Igreja. Engajado num conflito com Guilherme I de Orange, rei dos Países Baixos - a Bélgica fora unificada à Holanda, pelo tratado do Congresso de Viena, de 1815, - M. de Broglie opôs-se ao juramento da nova Constituição, onde os direitos da Igreja eram ignorados, e em 1816, ao projeto de organização da instrução pública. Citado diante do tribunal de Bruxelas, teve que deixar a Bélgica, em 1817 e retirou-se para a França, em Beaune, depois em Paris, onde morreu, no dia 20 de julho de 1820. Este prelado mostrou sempre uma grande bondade à Madre Júlia, nas provações que a atingiram; ele foi seu auxílio na questão de St-Nicolas e na fundação de Nouveau-Bois, em Gand; não cessou de interessar-se pelo Instituto de Nossa Senhora, até sua morte. Foi ele que disse, um dia, com força, à Madre Júlia: Vós não fostes feita para permanecer em uma única diocese; não, Madre Júlia, vossa vocação é a de ir por todo o mundo.
CARDON MARIA CAROLINA (1785-1856) Levou o nome de Maria Carolina, até sua chegada na Bélgica, onde tomou o de Irmã St-Jean (não confundir com a Irmã St-Jean, Justina Garson, que foi superiora em St-Nicolas). Fez seus primeiros votos em Amiens, em 1807. Em 1808, Madre Júlia conduziu-a a Montdidier, para lá substituir a superiora, Irmã Catarina Daullée, destinada a St-Nicolas.
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No momento das confusões causadas pelo padre de Sambucy, ela foi muito solicitada a que se separasse da fundadora. Madame Prévost, a nova superiora de Amiens, veio várias vezes a Montdidier, com este objetivo. Em vão. Inutilmente Irmã Maria Carolina foi mandada a Amiens, onde foi retida durante quatro ou até mais dias: as instâncias do padre de Sambucy e mesmo do bispo, foram infrutíferas. Foi proibida, então, de corresponder-se com Madre Júlia; isso não a inpedia de permanecer-lhe fiel, àquela que via sempre como sua Superiora geral. Ela era, aliás, sustentada e encorajada, assim como duas companheiras suas, pelas cartas da Madre Blin de Bourdon e da Irmã Catarina Daullée. Estas três Irmãs de Montdidier, decididas a reunir-se com Madre Júlia em Namur, obtiveram enfim, após novos assaltos, a autorização de partir. Retiraram-se, primeiramente, à casa da mãe de Irmã Maria Carolina, em Plessis-StJust, onde a Madre Júlia veio procurá-las. No dia 17 de abril de 1809, deu-se a fundação da escola St-Hubert, solicitada pela municipalidade, com o incentivo de M. Maximilien Zoude, prefeito da cidade. Irmã Maria Carolina, que se chamou Irmã St-Jean, por lá passará, como superiora, durante quarenta e um anos. No início, foi auxiliada por M. Joly, Irmão das Escolas cristãs, vindo de Reims, para ocupar-se com os rapazes. Ela, foi uma fiel correspondente de Madre Júlia: setenta e quatro cartas conservadas da fundadora nô-lo atestam. A última carta escrita por Madre Júlia, a 16 de janeiro de 1816, antes de cair, definitivamente, enferma, era dirigida à Irmã St-Jean. Dela respigamos esta frase: É tarefa tão interessante, a de receber as almas que o bom Deus nos apresenta, para que nos esforcemos a ganha-las para Ele e lhes demos bons princípios religiosos. Sabei que é esta minha única ambição sobre a terra. Em setembro de 1850, Madre Constantina, quinta Superiora geral, vendo-a acabrunhada pela velhice e enfermidades, chamou-a à casa-mãe para que aí pudesse repousar. Faleceu a 21 de fevereiro de 1856. A paróquia de St-Hubert, onde ela deixara uma recordação extraordinária, mandou celebrar uma missa solene, para o repouso de sua alma. 323
COTTU (ABADE) Foi vigário geral da diocese de Amiens, sob a administração de M. Demandolx. Neste cargo, teve contatos com as Irmãs de Nossa Senhora de Faubourg-Noyon. Foi seu confessor, pregou-lhes retiros e tornou-se seu superior eclesiástico, em substituição ao padre de Sambucy. Residiu com este último e sua atitude com relação à Madre Júlia, estava calcada na do padre de Sambucy, cujos pontos de vista ele endossava; nada fazia, sem aconselhar-se com o outro. No decurso de um retiro, que ele deu em Faubourg-Noyon, em dezembro de 1808, ele apresentou uma regra às fundadoras, que o bispo havia mandado redigir. Este não admitia nem Madre geral, nem visita regular às casas filiais, nem fundações fora da diocese de Amiens. Júlia compreendeu que não poderia aceitar estes artigos, e sua refutação lhe mereceu a expulsão da diocese, em inícios de janeiro de 1809. Monsenhor Cottu era um homem de piedade e de sabedoria; mas foi um instrumento cego nas mãos do padre de Sambticy, que o havia subjugado totalmente.
DELAINVILLE (ABADE) Este virtuoso missionário das campanhas, que pregava, ocasionalmente, na casa das Irmãs de Nossa Senhora em Amiens, tinha um modo de ser ímpar. Seu talhe era esbelto, alto, sua voz bem forte, sua oratória veemente; sabia tocar, persuadir e fazia muito bem, nas missões populares. Posto a par das dificuldades de Faubourg-Noyon, ele adotou as ideias do padre de Sambucy e fez uma cena violenta com Madre Blin, a este respeito. Esta última, terminou a discussão com estas palavras; Senhor, a julgar unicamente pela maneira com que me falais, jamais teria confiança em vossas palavras; tende a bondade de rezar por mim.
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DANGlCOURT (ABADE) Nascido em Bresles perto de Beauvais, foi nomeado vigário em Cuvilly, em junho de 1759, para assistir seu tio, M. Potier, a quem sucedeu como cura da paróquia St-Eloi, em 1765. Neste mesmo ano, estabeleceu, em sua paróquia, a festa do Sagrado Coração de Jesus, que um decreto de Clemente XIII, datado de 6 de fevereiro de 1765, permitia celebrar. Júlia foi, assim, iniciada nesta devoção que recomendou insistentemente às suas Irmãs. Ele lhe havia permitido a recepção da Eucaristia, na idade de nove anos; e quando adoeceu, ele lhe levava, todas as manhãs, a santa Comunhão. O abade Dangicourt falou, um dia, com tal admiração a seu bispo, a respeito de Júlia, que o bispo, M. de la Rochefoucauld o convidou a que levasse sua protegida a Beauvais, para que ele a conhecesse. Júlia, tendo respondido as perguntas de Sua Excelência com muita profundidade, ouviu, de seu pastor as palavras: Esta jovem parece-me assistida pelo próprio Deus. E quando, pouco depois, a paralisia a imobilizou, seu bispo encaminhava-lhe mulheres da vizinhança que a ele se confiavam, especialmente Madame de Pont-l› Abbé e Madame Baudoin. No início da Revolução, recusou-se a prestar juramento à Constituição Civil do Clero, instaurada a 17 de julho de 1790, e foi obrigado a se esconder, a fim de não abandonar seu rebanho. Muitas vezes rezou missa no pequeno quarto de Júlia. O abade Trouvelot, pároco de Ressons, escreveu, mais tarde, a seu respeito: Nada vos direi deste digno, virtuoso sacerdote; sabeis que era o conselheiro e o diretor de todos os padres, até os mais respeitáveis, dos arredores de Cuvilly. Era, também, um excelente pregador, cuja fama era conhecida até em Paris. Cada ano, era convidado a pregar em Mont-Valérien, pérto de Paris; foi lá que se refugiou, quando viu-se obrigado a fugir. Segundo Madre Blin, ele faleceu lá. Outros afirmam, ao contrário, que M. Dangicourt teria morrido em idade avançada, em Bresles, sua terra natal. Madre Júlia, no fim de sua vida, estando na casa das Irmãs, em Bresles, onde residia a família de M. Dangicourt, obteve um retrato dele, que foi conservado na casa-mãe, em Namur, até o incêndio de 1940. 325
DAULLÉE CATARINA (1785-1814) Nasceu em Quérieux, vilarejo da Picardia, a 23 de outubro de 1785. Após vinte anos de idade, ingressou com as Irmãs de Nossa Senhora, na rua Nova, e fez os primeiros votos a 27 de outubro de 1806. Seus dons de organizadora, unidos à sua caridade e seu zelo, valeram-lhe a estima e afeição de Madre Júlia, que a designou para fundar a casa de Montdidier, a 21 de fevereiro de 1807, sob a paternal direção de M.de Lamarche, superior do colégio. Seu grande cuidado, em Montdidier, foi o de afastar os alunos pagantes, em consideração a uma outra casa religiosa. Em 1808, Irmã Maria Catarina Cardon (chamada, mais tarde, Irmã St-Jean, por ocasião de sua chegada à Bélgica) veio substituí-la, como superiora, em Montdidier, sendo que Irmã Catarina destinava- se à escola de St-Nicolas, na Bélgica. A superiora desta casa havia sido chamada a Amiens, por motivos de saúde. Quando, a 12 de janeiro de 1809, Madre Júlia recebeu, do bispo, a ordem de deixar Amiens e de levar consigo suas Irmãs, enquanto se empreendiam esforços com o objetivo de reter algumas, Irmã Catarina escreveu às Irmãs de Montdidier, a 21 de fevereiro de 1809, uma carta inflamada, para conquistá-las a ideia de permanecerem fiéis à fundadoraMinhas boas Irmãs, permanecei firmes; não tenho palavras para vos exprimir o zelo e a coragem que sinto neste momento em que vos escrevo. Se tivesse asas, voaria até vós, a fim de vos testemunhar meus sentimentos e vos encorajar a vos mostrardes filhas de nossa Madre Júlia, etc.etc. Mensionava também, nesta carta, a resposta que enviara ao padre de Sambucy, que havia tentado demovê-la a permanecer fiel a Amiens. Senhor, pedis que vos dê notícias minhas; a primeira que tenho a honra de vos transmitir, é a de que já não reconheço mais, como berço de minha ordem, Amiens, sem que Madre Júlia lá esteja, como cabeça, pois que foi Deus mesmo que assim a constituiu. Se ela não puder mais permanecer em Amiens, eu a seguirei a qualquer porta. É inútil que se me fale de regulamento, nem que se me faça nenhuma proposta, pois eu só tenho um objetivo: seguir minha Madre, seguir minha Madre. Se me pedirem para que abandone minha Madre Júlia, deixo, imediatamente, a diocese de Gand e a casa de St-Nicolas. É partido tomado, pois, não tenho nenhum compromisso 326
com o bispo de Gand, nem com o de Amiens, sou livre: tudo pela glória de Deus! Na primavera de 1809, Madre Júlia foi fechar o estabelecimento de St-Nicolas, por causa da insalubridade da casa e da má vontade dos administradores. O bispo de Gand convidou, então, as Irmãs de Nossa Senhora, a virem instalar-se em sua cidade episcopal. Encontraram, no início, um campo de apostolado na paróquia São Pedro; mais tarde, em 1810, instalaram-se numa parte de antiga abadia, que se chamará Nouveau-Bois, onde Irmã Catarina trabalhará, até o fim de sua vida. Os começos, em Nouveau-Bois, foram muito difíceis; as Irmãs suportaram carências de toda espécie, com corajosa constância. Por ocasião das visitas da fundadora, Irmã Catarina e suas Irmãs dissimulavam suas necessidades, com temor de precisarem abandonar o grande número de crianças pobres que lhes haviam sido confiadas. Quando Madre Júlia foi reabilitada e chamada de volta a Amiens, ela escolheu Irmã Catarina Daullée para acompanhá-la e ajudá-la, nesta situação delicada; detiveram-se em Amiens, de 9 de novembro de 1 812, até inícios de dezembro. Em 1813, período de perseguição contra o clero, após o Concílio de Paris, que provocou a prisão de M. de Broglie e a intrusão de M. de la Brue no arcebispado, Irmã Catarina ofereceu um esconderijo, em sua casa, aos padres perseguidos. Sós, o abade Renson e o abade Fol aí tiveram uma estadia prolongada; as outras vítimas também por aí passaram, às escondidas. Esta superiora tão generosa, tão caritativa, tão zelosa e tão benquista, das Irmãs e de todas as pessoas, foi, contudo, o principal instrumento das duas últimas provações que contristaram a fundadora. Em Gand, Irmã Catarina havia-se apegado, com uma rigidez inflexível, aos usos seguidos em Arniens, nos inícios da obra. Ela não estabelecia nenhuma diferença entre a Regra dada pelo Padre Varin, que era, aliás, apenas provisória, e os regulamentos esmiuçados, formulados em vista do bom andamento das coisas, e que devem, necessariamente, variar, sobretudo num estabelecimento a iniciar. Madre Júlia agia com abertura de horizontes; e sua condição de fundadora dava-lhe o direito e mesmo o dever de modificar certos costumes, para o bem da obra. Por exemplo, Namur, sen327
do uma casa de formação, cujo principal objetivo era a formação religiosa, Madre Júlia não se restringia, sempre, a um horário fixo e invadia horários de coisas que eram de menor importância, a fim de que pudesse ser prolongada a hora de instrução. Irmã Catarina, bem como a Irmã - Maria Steenhaut, superiora da casa de São Pedro, e a irmã desta, Irmã Gertrudes (Cisca) que eram, as três, as filhas prediletas de Madre Júlia, não satisfeitas em criticar secretamente a conduta de sua Madre, deixaram transparecer seu descontentamento externamente, a respeito da pretensa inobservância e violação da fundadora. Irmã Catarina foi também o instrumento da outra provação que atingiu a fundadora. Após o surgimento do Catecismo Universal do imperador, M.de Broglie, bispo de Gartd e M. Hirn, bispo de Tournai, devido à sua oposição, haviam sofrido os rigores do exílio, enquanto que M. Pisani de la Gaude governava pacificamente sua diocese. Este último, no entanto, recusara-se a introduzir em sua diocese o Catecismo Universal; a liberdade relativa de que gozava, era de vida à velha e sincera amizade que o unia ao ministro Portalis. Em Gand, supunha-se que a coisa fosse de outra maneira, como se esta liberdade fosse fruto de uma condescendência do bispo, aos desejos do Imperador; e como percebiam a nossa Madre sempre respeitosa para com seu bispo, cuja honra e reputação ela sempre defendia, acabaram por envolve-la na mesma reprovação inconsiderada. Assim, a fundadora viu-se na emergência de encaminhar ao M. Le Surre, vigário geral do bispo de Gand, uma refutação das suposições injustas, relativas aos dois casos acima, no intuito de preservar a unidade em sua família religiosa. É preciso acrescentar, aqui, que, após a morte de Madre Júlia, todas as suas filhas transviadas reconheceram o erro; abriram-se-lhes os olhos; sua eminente virtude, bem como a sabedoria de seu governo foram reconhecidas universalmente. Em meio aos alarmes causados pela passagem das tropas estrangeiras, Madre Júlia recebeu a notícia de que Irmã Catarina fora atingida de doença mortal. Aniquilada pelo trabalho incessante e pelas rigorosas mortificações, extinguia-se lentamente, atacada de tuberculose, após ter tido a alegria de rever sua Madre e de ter conhecimento do retorno de M, de Broglie e dos padres proscritos. Morreu na noite de 2 de julho de 1814, deixando a lembrança de uma Irmã de Nossa Senhora autêntica. Madre 328
Júlia escrevia à Madre Blin, no dia 13 de julho de 1814: É de se crer que se tratava de uma alma madura para o Céu; será nossa protetora, na feliz eternidade, tenho confiança nisso; ela há de nos obter, de nossa boa Mãe, todas as graças de que temos necessidade.
DEGOUY FELICITÉ Era a segunda filha de Maria Madalena Billiart, irmã de Júlia. Desde a idade de sete anos, jamais abandonara sua tia enferma, que servia com um devotamento filial, e isso durou vinte e três anos, salvo uma interrupção de quinze dias, como veremos. Acompanhou a tia em Cuvilly, no castelo de Gournay-sur-Aronde, em Compiègne, em Amiens e Bettencourt. Numa carta endereçada a Francisca Blin, a 1º de setembro de 1795, Júlia escreve: Minha pequena Francisca deve partir hoje para minha terra; recebi uma carta de meu irmão, na qual me notícia que minha pobre mãe está muito mal e que se sente como um pobre abandonado. Vou enviar-lhe o que tenho, do pouco que me resta daquilo que a santa Providência me tem dado por vós; divido-o com ele. Minha Felicidade trabalhará para se sustentar, quando retornar. Em outras cartas a Francisca Blin, ainda faz alusão ao devotamente de Felicidade: Minha pobre pequena Felicidade trabalha tanto quanto pode, dia e noite, para poder, manter-se... Ela tem muito cuidado comigo, chegando a comprar, para me fazer um caldo, carne de veado, a quinze abaixo da libra. (25 de outubro de 1795). E em outra carta, de novembro de 1795: Já que tivestes a caridade de permitir-me dispor do que deixastes, eu o farei, na necessidade urgente; ainda nada disse à minha pequena; enquanto a santa Providência lhe der a possibilidade de trabalhar, vamos vivendo tranquilamente. Em fevereiro de 1803, quando Júlia retomou o caminho de Amiens, deixando Bettencourt, Felicidade separou-se da tia, para desposar M. Thérasse, mestre em St-Ouen, próximo a Bettencourt; mais tarde, ele será nomeado para Brémenil, de pois Rubempré. Por ocasião de sua passagem pelo castelo de Hénencourt, em 1809, em casa da tia de M. de Broglie, que lhe havia dado hospedagem, Ma329
dre Júlia mandou chamar sua sobrinha Felicidade, que residia, então, em Rubempré, próximo a Hénencourt. Ela vivia em extrema penúria; Madre Júlia não se sentiu humilhada de vê-la pálida, magra e malvestida; testemunhou-lhe, ao contrário, uma ternura com um misto de reconhecimento por seus cuidados de outrora, e incutiu-lhe ânimo a que suportasse, com resignação, suas provações. Esforçou-se, também no sentido de assegurar posição de M. Thérasse, em Rubempré
DEMANDOLX JEAN-FRANÇOIS (1744-1817) Nasceu em Marselha, a 20 de setembro de 1744. No momento da Revolução, era abade comandatário da abadia de Sénanques, cônego e vigário geral de M. Belloy, bispo de Marselha. Não tendo prestado juramento à Constituição Civil do Clero, retirou-se a região montanhosa do sudeste, e viveu depois na Itália e na Alemanha. Retornado à França, após a perseguição religiosa, foi escolhido corno vigário geral por M. de Belloy, que havia sido nomeado arcebispo de Paris, na Concordata. Pouco tempo depois, foi nomeado bispo de La Rochelle e sagrado em Paris, a 2 de fevereiro de 1803. Foi transferido para a sede episcopal de Amiens, a 17 de dezembro de 1804, tornada vacante pela nomeação de M. de Villaret, primeiro bispo concordatário, para o bispado de Casal, no Piemonte. O primeiro e maior cuidado de M. Demandolx foi seu clero: era preciso unificar os padres que tinham preferido sair da França, a prestar o juramento, e os padres juramentados ou constitucionais. Era uma tarefa delicada, que o novo bispo parecia ter conduzido a contento. O clero era pouco numeroso, na nova diocese de Amiens, que compreendia os departamentos de Somme e de Oise; a formação dos seminaristas tinha sido abandonada durante a Revolução. A vida cristã despertava: os Padres da Fé dedicavam-se às missões paroquiais, congregações religiosas eram fundadas ou vinham instalar-se 330
na diocese, para combater a ignorância religiosa, que era grande: as Irmãs de Nossa Senhora, as Damas do Sagrado Coração, as religiosas da Santa Família. M. Demandolx tinha um coração afetuoso e de grandes virtudes; Madre Júlia o chama, numa carta, um bom santo prelado; mas era muito influenciável, adotando, sem sequer examiná-las, as ideias do abade de Sambucy; ele não passou de um instrumento, em suas mãos, contra Madre Júlia. Este senhor que, a 12 de janeiro de 1809, fez partir a fundadora, declarando-lhe que a deixava livre para que se retirasse à diocese que quisesse; e quanto a ele, iria retomar a casa, para nela formar verdadeiras Irmãs de Nossa Senhora. Em junho de 1812, o abade de Sambucy deixou Amiens. Este desastrado conselheiro, uma yez ausente, o bispo de Amiens não tardou a reconhecer os erros que cometera contra Madre Júlia; esforçou-se por reparar as funestas consequências e incumbiu o Padre Sellier e seu vigário geral, M. Fournier, de prepararem o retorno da fundadora. A 23 de outubro de 181 2, escreveu-lhe pessoalmente, rogando-lhe que viesse, sob o título de Superiora geral. A 17 de novembro deste mesmo ano, endereçou esta ordem, sob a forma de mandamento, às Irmãs de Nossa Senhora de Amiens: ... Intimamente convencido das preciosas vantagens que devem resultar da unidade de Regras, de funções, de costumes, de usos e, geralmente, de uma inteira uniformidade entre as Irmãs da Associação dita de Nossa Senhora, e bem informado de vossa sabedoria, de vossa prudência e de todas as outras boas qualidades, declaramos ter-vos reconhecido, como no presente vos reconhecemos por este documento, por Superiora geral de todas as casas da Associação das Irmãs de Nossa Senhora, que são e que serão, no futuro, estabelecidas nos domínios de nossa diocese e, neste sentido, vos damos todos os poderes, direitos e mesmo privilégios que vos têm sido dados, nesta qualidade e condição, pelos bispos das dioceses onde as referidas Irmãs de Nossa Senhora têm estabelecimentos, etc. À morte de Madre Júlia, em 1816, a primeira carta de condolências que se recebeu em Namur, foi a de M. Demandolx, na qual ele recorda o terno apego que tinha por ela e a admiração que nutria por suas virtudes.
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Os Últimos anos de sua vida foram dolorosos: atingido por um enfraquecimento das faculdades intelectuais deixou seus vigários gerais dirigirem a diocese. Morreu a 14 de agosto de 1817 e foi sepultado na capela do novo cemitério da Madalena, seu coração foi depositado na catedral. Em 1937, a capela da Madalena tendo sido desativada, o corpo de M. Demandolx foi posto na catedral, na tumba dos bispos.
DORIA GERTRUDES E GABRIELA Nascidas de uma família originária da Itália, cujos membros se afirmaram, no tempo da Revolução, como os defensores do direito violado pela lei das expulsões. Amigas de Lise Baudoin (ver em páginas anteriores), foram conduzidas, por esta última, para junto de Júlia, pouco tempo depois da morte do pai de ambas, vítima das cruéis privações da prisão dos Jacobinos. O respeito que haviam adquirido pela interessante paralítica, foi, em breve, acompanhado de verdadeira afeição por sua pessoa. Duas outras amigas, as senhoritas de Fos e de Méry, uniram-se a elas. Após a morte de Madame Baudoin, por volta de 1796, as cinco amigas habitavam, juntas, o Hotel Blin e Francisca Blin filiou-se ao grupo. Viviam em comum, davam à Júlia o nome de Mère, salmodiavam, no coro, o ofício da Santa Virgem e fizeram, conjuntamente, várias consagrações, sob a direção do Padre Thomas, que redigiu para elas um pequeno regulamento. Dedicavam-se também, desde o início, a visitar os pobres e a instruí-los. Era um ensaio do que Madre Júlia deveria fazer a seguir. Ao final de quatro ou cinco anos, só restou, desta pequena sociedade, Francisca Blin, Gertrudes Doria deixou Madre Júlia, para entrar com as Damas da Visitação, em Paris, onde havia sido educada. Ela continuará mantendo uma afetuosa correspondência com Madre Júlia. Tornou-se, mais tarde, superiora, em Boulogne-sur-Mer e em Paris, faleceu em 1829. Quanto a Gabriela Doria, desposou o conde de Cornulier e morreu pouco depois, em 1804.
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Quando, em 1797, o governo exigiu, dos padres, o juramento de ódio à realeza e interditou toda função sagrada aos padres refratários, Padre Thomas, procurado peia polícia, foi causa de várias perseguições ao Hotel Blin; o que o fez deixar Amiens. Gertrudes Doria possuía um pequeno castelo em Bettencourt, que pôs à disposição daquilo que sobrevivia da pequena sociedade: Padre Thomas, Madre Júlia e Francisca Blin de Bourdon. Levando Felicidade consigo, partiram, a 16 de junho de 1799, ao cair da noite, e permaneceram em Bettencourt até fevereiro de 1803.
DUCHATEL CATARINA Vinda de Reims, foi a primeira postulante a ingressar. Entrara, inicialmente, na comunidade de Madre Barat, mas, julgando-se chamada para evangelizar as pobres, quis fazer uma experiência junto a Madre Júlia; as duas comunidades lho permitiram, de comum acordo. Em 2 de fevereiro de 1804, Padre Varin veio rezar a missa na capela da rua Nova. Júlia Billiart, Francisca Blin e Catarina Duchâtel fizeram ou renovaram, em presença do Santíssimo Sacramento, o voto de castidade, ao qual acrescentaram o de se dedicar à instrução das pobres órfãs e de formar professoras para as escolas, que fossem lecionar aonde fossem chamadas, para instruírem, gratuitamente, as crianças pobres. O artigo das órfãs foi alterado, pouco tempo depois, e recebiam-se outras crianças, de todas as classes sociais. Elas também se consagraram ao Coração de Jesus, sob a proteção do sagrado Coração de Maria. E a partir deste dia que tomam o nome de Irmãs de Nossa Senhora. Receberam, também neste dia, das mãos do Padre Varin, uma Regra provisória, a título de experiência. A jovem Duchâtel, atingida de um mal de langor, manifestou, no final de um ano, o desejo de retornar às Damas da Fé. (As Damas do Sagrado Coração chamavam-se, inicialmente, em Amiens, Damas da Fé, depois, Damas da Instrução Cristã). É lá que ela vem a falecer, seis meses após seu reingresso. A afeição que sempre demonstrou ao nosso Instituto, deve fazer com que a consideremos uma das nossas.
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ENFANTIN BARTHÉLEMY (1776-1854) Nascido em Eymieux, nas proximidades de Valence, distrito de Drôme, em 1776. Seus dois prenomes nos dizem, sem dúvida que nasceu no dia 24 de agosto e foi batizado no dia 25. Era de cepa campesina e, muito jovem, ajudou os seus pais nos duros trabalhos do campo. Desejando tornar-se padre, foi confiado a seu tio, pároco de ST-Lattier, vila próxima a Eymieux. Logo, os contratempos da Revolução forçaram-no a retornar à família e a retomar o trabalho da lavoura; tinha quinze anos. Aos vinte e dois anos, encontrou, em Dauphiné, um venerável sacerdote proscrito, Claude Dhière, torna-se seu discípulo e recomeça, sob sua direção, os estudos interrompidos havia sete anos. Mas, em 1799, o padre Dhière foi descoberto, detido e jogado na prisão, depois deportado à Ilha de Oléron. Luís Enfantin foi, algum tempo, desamparado, até o dia do encontro com M. Malgoutier, bem como com outros padres, que camponeses católicos haviam escondido nas montanhas desertas de Pin-Bouchain; tendo, eles, reunido alguns jovens desejosos de seguir a carreira eclesiástica, Enfantin a eles se uniu. Receberam, um dia, a visita de M. d’Aviau, então bispo de Valence, proscrito e errante. Em setembro de 1800, - as circunstâncias autorizam certas dispensas – ele foi ordenado, ao mesmo tempo, subdiácono, diácono e padre, por M. d’Aviau, quando de nova visita do corajoso prelado. A ordenação teve lugar durante a noite, na granja do presbítero de Monestier, sem nenhuma presença de fiéis. Após a Concordata (1802), reencontramos o padre Enfantin, desde 1803, entre os missionários agrupados em torno do Padre Varin, sob o nome de Padres da Fé. Entusiasta, empreendedor, ousado e pronto para a ação, dotado de imenso amor a Deus e às almas, com uma necessidade profunda de se devotar, de se sacrificar pela glória de Deus e a salvação dos pecadores, tal nos aparece aquele que denominaremos, desde agora, Padre Enfantin. Participou, com os Padre da Fé, na missão de Tours, depois na de Amiens, que iniciou em 29 de abril de 1804 e que Madre Júlia acompanhou, em cadeira portátil, ajudando, como pode, os pregadores no dia seguinte ao desta missão que, a 1º de junho, sob inspiração divina, ele “foi 334
o instrumento da cura milagrosa de Madre Júlia. Alguns dias mais tarde, os Padres da Fé inauguraram uma nova missão em St-Valéry-sur-Somme e Madre Júlia, desta vez, nela participou ativamente, ocupando-se com a evangelização das pessoas que os Padres a ela encaminhavam, e andando pela cidade, sem qualquer dificuldade. A oposição jacobina, irritada com esses sucessos, denunciou os missionários à autoridade civil, o que significou ordem de deixarem o distrito, nas próximas vinte e quatro horas, sob pena de serem detidos. Padre Enfantin e Padre Thomas ficaram na cidade de Amiens, dissimulando suas presenças; empregaram-se, durante mais de um ano, como professores de escola normal em qualquer maneira, na casa das Irmãs de Nossa Senhora, na rua Nova, para prepara-las à sua função de religiosas docentes. Em 1805, teve lugar a missão de Bordéus, que em breve se estendeu a outras paróquias dos arredores; depois, houve um retiro geral para todos os padres da diocese. A fama do Padre Enfantin foi extraordinária. Não provinha nem de uma ciência teológica aprofundada, nem de uma oratória consumada, mas de sua fé ardente e de sua íntima convicção, que aterrava a incredulidade. M. d’Aviau, feito arcebispo de Bordéus, escreveu, com uma fina ponta de malícia: Gosto da eloquência demostênica do Padre Lambert, a abundância ciceroniana do Padre Thomas, a dissertação elevada do Padre Gloriot, a homilia do Padre Desmarres; mas nada iguala os “ó meu Deus! Ó Jesus! Ó Maria!” e outras exclamações do Padre Enfantin. Não há nada, até os seus “oh!”, que não sejam arrebatados; quando a gente os ouve, comove-se até o fundo da alma. Em 1809, foi chamado a pregar a Romans; teve o mesmo sucesso. Seu confessionário era assaltado; a afluência era tal que várias vezes confessou durante a noite inteira. Retornou a esta cidade, em inícios de 1812 e aproveitou sua segunda estadia para aí estabelecer uma primeira escola religiosa, que se tornaria o berço de uma congregação de ensino. Tendo feito um vibrante apelo em um dos seus sermões, trinta jovens se apresentaram; dentre elas, escolheu oito. Sempre pronto a decisões, lançou também um apelo a Madame de Franssu (ver mais adiante), que havia conhecido em Amiens, que dirigiu após a missão de 1804 e que havia já pressentido este fim: ordenou-lhe, da 335
maneira mais impressionante, que se pusesse a caminho de Romans e que dissesse adeus, provavelmente sempre, à sua cidade de Amiens. Quando ela chegou, Padre Enfantin havia caído nas mãos da polícia imperial, ofendida por certas alusões ousadas, recolhidas em um de seus sermões. Foi exilado em Nimes, durante dois anos. Em outubro de 1813, Padre Enfantin escreveu a Madame de Franssu, que se dirigisse a Crest, pequena cidade de Drôme, onde ele a nomeou superiora, idosa, já, de sessenta anos, de uma congregação que ele fundara, com o nome de Natividade de Nosso Senhor, segundo uma visão que tivera. Como Padre Enfantin era sobretudo missionário, sempre em viagem, contou inteiramente com Madame de Franssu, para esta fundação e as que se seguissem. Em setembro de 1820, Padre Enfantin reapareceu, para receber os primeiros votos das religiosas. Em 1814, ele tentara, como a maior parte dos antigos Padres da Fé, entrar no noviciado dos Padres Jesuítas, restabelecidos pelo Papa Pio VII, mas sua tentativa fora em vão. Nem sua idade - quarenta e sete anos - nem, talvez, seu caráter se prestasse facilmente a esse gênero de vida. Padre Enfantin, sempre missionário antes de tudo e sempre em viagem, não podia seguir com atenção, o desenvolver-se da Sociedade que fundara, e teve, por isso, intrigas penosas com o bispo e Genobie. Faleceu em 1854, em Lyon, onde havia se retirado, em casa de sua sobrinha, Madame Laporte.
EVRARD JOSEFlNA (1785-1809) Nascida em Quérieux, vilarejo da Picardia, a 14 de maio de 1785. Ingressou na rua Nova, a 25 de janeiro de 1805, e tomou o nome de Irmã Xavier. Fez seus primeiros votos a 27 de março de 1806, e foi designada a fundar a casa de St-Nicolas, com Irmã -St-Jean (Justina Garson) e Irmã Maria Steenhaut. Esta foi a primeira casa filial; iniciou em 17 de dezembro de 1806. Em julho de 1807, Madre Júlia, dirigindo-se a Namur com Madre Blin, para aí estabelecer uma casa, buscou, passando por St-Nicolas, a Irmã 336
Xavier, que e lá havia destinado à classe de pobres, em Namur. Madre Blin foi a superiora; é então que ela começa a adotar o nome de Irmã São José. Irmã Xavier aplicou-se ativamente, desde o início, a ensinar o catecismo em sua nova diocese. Teve, bem depressa, mais de oitenta crianças para instruir. Não foi sem dificuldade que ela procurou, para as crianças, o material didático indispensável, porque havia poucos livros elementares à disposição dos principiantes; e os que existiam, eram muito caros. Era preciso copiar e ditar muitos exercícios. Madre São José precisou voltar a Amiens, com Madre Júlia, para regularizar os negócios de Madre Blin. Irmã Xavier foi encarregada, provisoriamente, a cuidar da casa; a ausência da superiora, que seria de quinze dias, prolongouse por vários meses, devido às confusões de Amiens. De saúde muito delicada, Irmã Xavier tornou-se indisposta e sua saúde, em breve, foi afetada de maneira alarmante. Além da umidade da casa de St-Nicolas, que prejudicara sua já fraca constituição, a quaresma, que ela observara de maneira excessivamente rigorosa, sem pensar nas aulas cansativas que dava diariamente, tudo isso acabou com suas forças; a tuberculose era declarada. M. Minsart, capelão e confessor, mandou que suspendessem as aulas, até que se pudesse encontrar outra professora. Definhando sempre, ela não podia dispensar certas ocupações de superiora. A ausência de Madre Blin se fazia sentir. Madre Júlia, obtendo, enfim, permissão para uma rápida visita a Namur, em outubro de 1888, encontrou Irmã Xavier muito doente e remediou a situação, enviando-lhe, como companhia, a Irmã Eulália Laporte. Ela percebera que à jovem superiora interina faltavam algumas características de tato necessárias para conduzir as Irmãs; falava-lhes com excessiva autoridade e não gozava, por isso, de sua confiança. A 6 de dezembro de 1808, as Irmãs de Nossa Senhora deviam deixar sua primitiva casa do bispado e entravam na grande casa da rua de Fossés (ver Casa-Mãe). Tudo era sofrimento. Enfim, Madre Júlia, até então prisioneira, de alguma forma, em Amiens, é autorizada a deixar a diocese e chega a Namur, a 21 de janeiro de 1809; Madre Blin a seguiu, a 5 de março. Irmã. Xavier teve, assim, o consolo de rever suas duas Madres, antes de morrer, a 10 de março de 1809. 337
FALLOT DE BEAUMONT ETIENNE, ANDRÉ, FRANÇOIS (1750-1835) Nascido em Avignon, a 19 de abril de 1750. Em 1782, foi sagrado bispo de Vaison e em 1810, foi transferido para Gand. Em 1806, Madre Júlia foi convidada pelo Padre Leblanc, a acompanhá-lo a Flandre, onde ele estava, para inspecionar o colégio de Roulers, confiado havia pouco, aos Padres da Fé, por M. Fallot de Beaumont, bispo de Gand e Bruges. Este Padre desejava apresentar Madre Júlia ao bispo, que, imediatamente, pediu-lhe que estabelecesse uma casa das Irmãs de Nossa Senhora em sua diocese. Madre Júlia aceitou, sob a condição de receber, antes, Irmãs que falassem a língua flamenga. Monsenhor encarregou-se de procurá-las. A 28 de agosto de 1806, percebendo que vocações desabrochavam, ela retomou o caminho do distrito de Escaut. O bispo lhe apresentou a jovem Maria Steenhaut, que veio com ela para Amiens. Retornou em breve, a convite do senhor bispo, no sentido de encaminhar a fundação de St-Nicolas. Quando, em dezembro de 1806, levou consigo as Irmãs que deviam abrir a escola de St-Nicolas, foi recebida, de passagem a Gand, bem como suas companheiras, pelo próprio bispo, que aceitou a incumbência de benzer o primeiro costume religioso adotado pela fundadora. É este mesmo bispo, que se empenha, mais tarde, na obtenção da aprovação imperial das Irmãs de Nossa Senhora, que era preciso ter, para poder funcionar. Em 1807, M. Fallot de Beaumont foi transferido ao bispado de Plaisance, na Itália, e substituído, em Gand, pelo Príncipe Marice de Broglie. Em 1811, ele assistiu ao Concílio Nacional de Paris, reunido por Napoleão. Neste mesmo ano, faz parte da delegação enviada ao Papa Pio VII, então prisioneiro em Savone. E em janeiro de 1814, foi encarregado de oferecer ao Papa, em Fontainebleau, a restituição dos Estados pontifícios, sem contrapartida. Pio VII respondeu: É somente em Roma, quando lá estiver em plena liberdade, rodeado do Sacro Colégio, que poderei acolher os pedidos que me são feitos. 1835. 338
Retirou-se da sede de Plaisance em 1816 e morreu em Paris, em
DU FOS DE MÉRY E JANE, AGLAÉ
Eram filhas de Alexandre Luís Vítor, marquês de Fos e conde de Méry. Sua família possuía o domínio de Lataule sous-Cuvilly e não era desconhecida de Madre Júlia. Aglaé herdará o título de Demoiselle de Lataule e Jane, de Demoiselle de Bauchemont. Estas duas jovens viram sua família dizimada e seus bens consideravelmente reduzidos pela Revolução. Amigas de Lise Baudoin, fizeram parte da pequena sociedade formada em volta de Madre Júlia, no Hotel Blin, com as senhoritas Doria e Francisca Blin de Bourdon. No finai de quatro a cinco anos, estas jovens deixaram o grupo do qual só restou Francisca Blin. Aglaé morreu, dois anos após sua partida, em circunstâncias aflitivas e sem sacramentos. Quanto à Jane, uniu-se ao marquês Inácio Ferretti, a cuja família pertencia o Papa Pio IX (Mastai Ferretti). Ela morreu sem posteridade.
DE FRANSSU JANE, CROQUOISON (1751-1824) Nasceu em Amiens, a 21 de abril de 1751 e foi batizada na igreja St-Michel, que foi destruída em 1799. Seu pai, Fraçois-Hyacinthe de Croquoison, era presidente-tesoureiro de França e da Generalidade de Amiens, função mais honorífica, que lucrativa. Sua mãe levava o nome de Boullenger de Rivery. Tinha dois irmãos mais velhos e uma irmã mais moça. Foi educada cristamente pela família, depois foi confiada às Ursulinas de Amiens, em 1762, para aí completar sua educação. É lá que encontra, em 1768, Francisca de Gézaincourt, futura cofundadora do Instituto de Nossa Senhora, que se torna sua melhor amiga, embora mais moça de cinco anos. As duas jovens conheciam-se já anteriormente, permanecendo muito leais, durante toda a vida. Como Francisca Blin de Bourdon, Jane tinha o desejo de tornar-se carmelita; mas seus pais a isso se opunham e quiseram casá-la; Jane cedeu. Com vinte e um anos, a 16 de junho de 1772, desposou Adriano Jacques Francisco Wignier de Franssu, senhor de Franssu, Boi-Louis e outros lugares. Ele tinha quarenta e três anos e ainda levava luto pela sua primeira 339
mulher falecida, sem filhos, a 25 de setembro de 1771, após um ano de casados. Ele tinha feito toda a sua carreira no exército e retirou-se, após a guerra dos Sete Anos; o Rei concedeu-lhe a carta de Major de Dragons. Eles dividiam sua vida entre seu Hotel d’Abbeville e o castelo de Franssu (distrito de Somme). Jane entregou-se aos seus deveres de dona de casa e a suas obrigações de sociedade, oferecendo a todos o exemplo de uma piedade viva e esclarecida. Não tiveram nenhum filho que lhes alegrasse o lar. Durante as perturbações da Revolução, ela seguiu seu marido a Abbeville, enquanto que sua mãe, viúva, procurava refúgio em Amiens. Em 1794, ela perdeu sua mãe. Em 1795, uma certa segurança foi-se restabelecendo pouco a pouco, M. e Madame de Franssu recomeçaram a habitar seu castelo de Franssu. M.de Franssu sobreviveu de pouco tempo ao golpe de estado de dezoito brumário (10 de novembro de 1799); ele morreu em Abbeville, a 18 de março de 1800. É na ocasião da transferência das Irmãs de Nossa Senhora a rua Nova, no dia 5 de agosto de 1803, que Madame de Franssu vai interessar-se pela obra iniciada por Júlia e Francisca. Ela ia com frequência à rua Nova, assistia missa, celebrada pelo Padre Thomas, no pequeno oratório contíguo ao quarto da santa paralítica, ajudando suas amigas, nesses inícios de seus trabalhos apostólicos. Em breve, em 1806, ela ocupou uma pequena dependência, na casa de Faubourg-Noyon, onde se estabeleceram as duas fundadoras, com suas primeiras candidatas. Durante à grande missão de Amiens, em 1804, pregada pelos Padres da Fé, ela conheceu o Padre Varin e sobretudo o padre Enfantin, que iria, desde então, desempenhar um papel importante em sua vida. Durante a missão, os Padres Thomas, Lambert e Enfantin residiam na casa das Irmãs de Nossa Senhora. O Padre Enfantin teve muito sucesso, era um agitador da multidão. Madame de Franssu não perdia de o escutar e fez mais, confiou-lhe seus desejos de vida religiosa e apostólica. Mas ela tinha. Cinquenta e três anos, saúde muito frágil, e nenhuma preparação para este gênero de vida.
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Entrementes, produziu-se um acontecimento extraordinário: a cura miraculosa de Júlia Billiart, por uma inspiração do Padre Enfantin; este episódio aumentou ainda mais a ascendência do Padre, junto de Madame de Franssu. Este, partiu logo depois; a pregar missões no sul da França. Constatando a miséria e o abandono das crianças, compreendeu que, para recristianizar a França, era preciso, não apenas pregar missões, mas também fundar ordens de congregações voltadas ao ensino. Por ocasião do decreto da dissolução dos Padres da Fé, teve que retornar à sua diocese de origem, Valence. Quando as Irmãs de Nossa Senhora tiveram que abandonar a diocese de Amiens, em 1809, Madame de Franssu, muito aflita com a partida de suas duas fiéis amigas, só tinha um desejo: realizar os projetos que trazia no coração. Teria sessenta anos, mas seu ardor não era menor. Sempre em contato com o Padre Enfantin, ela aguardava a hora de Deus, que soará apenas em 1812. Foi então que o Padre Enfantin a chamou para a fundação de uma escola religiosa em Romans, na Dauphiné, onde ele havia pregado uma missão. Ela partiu sem demora: nem sua idade, nem suas enfermidades, nem a extensão do trajeto, que levaria quinze dias de viagem, nem as dificuldades de uma instalação a fizeram hesitar. Ao partir a diligência, soube que o Padre Enfantin acabava de ser condenado ao exílio, pela polícia imperial, por um período de dois anos, em Nimes. No tempo de espera, reuniu em torno de si algumas crianças pobres e pôsse a ensiná-las a ler e a escrever e ensinou-lhes o catecismo. Algumas meninas da cidade uniram-se a ela. Em outubro de 1813, Padre Enfantin, libertado, escreveu-lhe para que se dirigisse a Crest, pequena cidade de Drôme, onde ele devia reunir um grupo de seis pessoas devotas, com as quais se encontraria. Nomeou-a superiora: é o começo da Congregação da Natividade de Nosso Senhor. Desde então, internamente, ela levará o nome de Irmã Maria José. Um ano havia de corrido, e padre Enfantin arquitetou o projeto de transportar a sede de sua congregação para Valence, onde ele dispusera várias candidatas. Mas Padre Enfantin, antes de tudo missionário, estava quase sempre em viagem através da França toda; confiava, por isso, inteiramente sua fundação a Madame de Franssu.
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Após Valence, onde ela permaneceu de outubro de 1814 a fevereiro de 1816 Padre Enfantin enviou-a a fundar uma casa em Roussillon, na diocese de Grenoble, onde permanecerá oito anos; aguardavam-na aí muitas provações, causadas pelas benfeitoras desta casa, tornadas membros da comunidade. Foi também, atingida por uma doença tão grave, que se temia por sua vida. Havia sete anos que Madame de Franssu deixara a Picardia; mudara quatro vezes de residência, mas tanto ela quanto o seu grupo, esforçando-se por viverem como religiosas, não se haviam, ainda, consagrado por votos. Em maio de 1819, Padre Enfantin veio a Roussillon e julgou que chegara o momento de dar um hábito religioso a estas mulheres; a tomada de hábito teve lugar no dia 6 de maio de 1819. O período a seguir, foi o noviciado, de um ano, e, em setembro de 1820, Padre Enfantin retornou a Roussillon, para receber os primeiros votos, a 20 deste mesmo mês. Em setembro de 1821, as religiosas da Natividade, estabelecidas em Vienne (Isère), desde 1818, foram transferidas a Grenoble, por chamado do bispo, e outras religiosas da Natividade foram enviadas a Vienne. Atritos dolorosos vão-se seguir entre o bispo de Grenoble e o Padre Enfantin, bem como com o vigário geral, M. Bouchard; eles querem fazer, da congregação, sua coisa e fixar, em sua cidade, o único noviciado de todo o Instituto. No momento de tais dificuldades, o fundador está muito distante, em missão, e Madame de Franssu teve que responder a tudo. O verdadeiro superior era M. Bouchard ou o Padre Enfantin? Em Grenoble, a superiora, tendo feito dívidas consideráveis, M. Bouchard, sem consultar sequer o Padre Enfantin e Madame de Franssu, nomeou outra superiora e deu-lhe o título de assistente geral. Madame de Franssu, muito enferma, não podia permanecer em Grenoble; mas o motivo mais grave para evitar esta viagem, era o temor de provocar um cisma na congregação. As Irmãs de Valence, nem as de Vienne estavam dispostas a aceitar a autoridade de M. Bouchard, que outra coisa não fazia, do que executar as ordens do senhor bispo, com algum tom de ridículo. Madame de Franssu lembrava-se dos contratempos sofridos por Madre Júlia e Madre
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São José, em Amiens. Testemunha de seus sofrimentos e de sua constância, ela palmilhava sobre suas pegadas. Após um acordo passageiro entre o Padre Enfantin e M. Bouchard, o conflito recrudesceu e o Padre Erifantin recorreu ao núncio de Paris, onde ele acabava de fundar uma nova casa. Profundamente ferido pelos procedimentos de M. Bouchard, Padre Enfantin tomara a resolução de retirar as religiosas de Grenoble, mas a superiora não respondeu ao seu chamado. Madame de Franssu, nestas circunstâncias, prosseguia, sem se cansar, em sua tarefa de mediadora. As negociações retardavam constantemente, por causa das viagens do Padre Enfantin. O acordo, desde tanto tempo negociado e aguardado, revelou-se, finalmente, impossível e, no decurso de fevereiro de 1824, a separação tornou-se ato consumado. A idade, os cuidados, as deficiências de uma saúde frágil, faziam Madame de Franssu pressentir que seu fim estava próximo. Quinze dias apenas haviam decorrido, desde a separação, quando veio a falecer, no dia 6 de março de 1824. Tinha setenta e dois anos de idade. A congregação da Natividade manteve-se florescente; quando às Irmãs separadas de Grenoble, tomaram o nome de Irmãs da Providência.
GERSON JUSTINA (1782-1809) Nasceu em Chépy, perto de Abbeville, no dia 6 de setembro de 1782. A 20 de fevereiro, ingressou na rua Nova, em companhia de sua amiga da mesma povoação, Vitória Leleu. A 15 de outubro de 1805, ambas pronunciaram seus votos, em presença do Padre Varin e tomaram como nomes de religião, St-Jean e Irmã Anastácia. Em 1806, Irmã St-Jean foi designada superiora da primeira casa filial a ser fundada em St-Nicolas, em Flandre, tendo, como companheiras, outra francesa, Irmã Xavier, e uma flamenga, Irmã Maria Steenhaut. A despedida foi comovente, no dia 9 de dezembro: Madre Jútia começou por dirigir a Deus a oração de Jesus pelos seus: Pai, conservai em vosso nome aquelas que me destes, a fim de que elas sejam unidas entre si e permaneçam unidas ao centro comum. Depois as Irmãs da comunidade de Amiens bei343
jaram os pés das missionárias que iam partir para tornar Deus amado e conhecido pelas crianças de Flandre. Conduzidas por Madre Júlia e passando por Gand, a fundadora apresentou-as a M. Fallot de Beaumont. Ela pediu à Sua Excelência que benzesse o hábito religioso, confeccionado em Amiens, que elas iriam usar pela primeira vez, no domingo, dia 15 de dezembro de 1806, oitava da Imaculada Conceição. A casa destinada às Irmãs, em St-Nicolas, era muito deteriorada e úmida; Madre Júlia obteve, antes de partir, a promessa de que fariam trabalhos de saneamento, mas os administradores não se apressaram. Quando Madre Júlia, retida durante muito tempo em Amiens por causa das confusões surgidas, pôde, enfim, retornar à Bélgica, passando por St-Nicolas, encontrou Irmã St-Iean em grave estado de saúde, devido à umidade da casa. A Irmã foi levada a Amiens; depois, a conselho médico, foi conduzida por sua superiora a Chépy, a fim de respirar o ar da terra natal. Morreu pouco tempo depois, piedosamente, a 27 de janeiro de 1809. Ela era de um caráter amável e alegre, muito humilde e muito prudente. Um dia, chamada ao bispado de Gand, ouviu M, de Broglie, que fora prevenido pelo padre de Sambucy contra Madre Júlia, dizer-lhe coisas muito desfavoráveis da fundadora. Irmã. St-Jean refutou todas as acusações com muita prudência e doçura. E como o bispo a louvasse por sua bondade retrucou vivamente: Senhor, se a Mãe é má, como serão boas as filhas? Mais tarde, quando o bispo de Gand reconheceu a verdade acerca de Madre Júlia, disse-lhe, falando da Irmã St-Jean: Que perde tivestes! Acabais de perder uma filha encantadora! Não confundir com Irmã St-Jean, primeiramente chamada Irmã Maria Carolina, que foi superiora em St-Hubert, durante quarenta anos. (Ver Cardon, em páginas anteriores).
GODELLE JANE (1773-1845) Nasceu em Hannopel, por volta de 1773. Ingressada em Amiens, com mais de trinta anos, sucedeu, em 1808, à Irmã Anastácia Leleu como 344
mestra de noviças, primeiro em Arniens, depois em Namur. A uma educação muito distinta, unia um julgamento seguro, um grande espírito de fé e uma prudência madura no contato com o mundo. Durante uma ausência da fundadora, em Amiens, as Irmãs, tendo pouca confiança no esclarecimento da assistente, Madre Vitória, perguntaram à Madre Júlia a quem deveriam dirigir-se, no aconselhamento espiritual; a fundadora desigou Irmã Jane Godelle, mestra de noviças; tal declaração foi considerada, pelo padre de Sambucy, como uma tentativa de rebeldia de Madre Júlia. Por ocasião da saída de Amiens, Irmã Jane dirigiu o segundo grupo de exiladas voluntárias. Nomeada superiora da nova fundação de Zele, em Flandre, ela lá entrou em 15 de novembro de 1811, com as Irmãs Juliana Massaen, Colette Maertens e Rose Hannequart. Madre Júlia mesma as havia levado e conta, numa carta: Minha Irmã Jane brindou-nos com maçãs queimadas, por ter esquecido de pôr-lhes água; ela disse que a marmita a bebera toda! Em 1816, por ocasião da morte de Madre Júiia, ela sera enviada a Jumet para substituir a Irmã Anastácia, chamada a Namur. Faleceu em Namur, a 23 de abril de 1845.
DE LAMARCHE, SACERDOTE Era um tipo sobrevivente do clero francês, tão grande pela ciência, como pelo caráter e pela santidade. Residindo em Compiègne, no momento da Revolução, prestava serviços religiosos principalmente junto às carmelitas. A 17 de julho de 1704, quando aquelas foram conduzidas ao cadafalso, ele as acompanhou, disfarçado, até o pé da guilhotina e deu-lhes a última absolvição. É ele, também, que sustenta a coragem do conde Baudoin, condenado à morte. Perseguido, por sua vez, jamais pôde explicar como conseguiu escapar da morte; sua gratidão levou-o a consagrar sua vida aos mais humildes e aos mais laboriosos ministérios.
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Em sua estadia em Compiègne, visitou regularmente Júlia Billiart, que lá se havia refugiado. Vivia retirada em seu pequeno quarto, com sua sobrinha Felicidade; estava paralítica e privada do uso da fala, comunicando-se só através de sinais. No momento da confissã, conseguia fazerse entender por um socorro especial da graça, como pensava padre de Lamarche. O fenômeno se renovava a cada visita do padre de Lamarche, que o documenta em uma carta escrita após a morte da Santa. Ele diz que a encontrou sempre calma, sempre unida com seu Deus, quase continuamente em oração, apesar dos momentos de aridez, e oferecendo-se a Deus como vítima. Júlia estava no auge da felicidade, tendo, enfim, um padre que lhe pudesse trazer a santa comunhão. Mais tarde, ele se encontrou frequentemente com Júlia, quando ela estava em Bettencourt, de 1799 a 1803. Em 1807, na estada de Júlia com Madame Leclercq, em Paris, no momento em que fora proibida de entrar na diocese de Amiens, ela conseguiu, através desta senhora, ir até o padre de Lamarche, que residia, então, em Plessier-St-Just. Ela partiu imediatamente, mas não encontrou mais o santo padre, chamado com urgência ao colégio de Montdidier, que os Padres da Fé, surpreendidos pelo decreto imperial de dissolução, tiveram que abandonar precipitadamente. Com o padre Guénard, ele dirigiu o colégio. Interessou-se, também, pelas Irmãs de Nossa Senhora, instaladas em Montdidier desde 21 de fevereiro de 1 807. Mais tarde, viveu em Clermont-sur-Oise, onde continuou trabalhando como era de seu costume, e foi nomeado o apóstolo de Beauvais.
LEBLANC PIERRE-CHARLES-MARIE ( ? - 1851) Nasceu em Caen, na Normandia, de família de alta linhagem, muito afortunado. Com dezesseis anos, tornou-se auxiliar de acampamento do marquês de Saint-Simon. Na Revolução, seguirá os príncipes da família real ao exílio, julgando que essa fosse sua obrigação. Entretanto, compreendeu que a glória das armas não era sua vocação e ficou em Louvain, a fim de se preparar para uma profissão. Lá encontrou Xavier de Tournely, que o apresentou a seu irmão, o Padre François-Eléonor de Tournely, o 346
qual - com o padre Charles de Broglie - tinha estabelecido, em Louvain, uma casa de Padres do Sagrado Coração. Charles Leblanc reuniu-se a eles. Esta sociedade religiosa destinava-se a palmilhar a rota traçada por Santo Inácio. Em breve, a invasão da Bélgica pelo exército francês obrigou-os a fugir da Alemanha. A 18 de abril de 1799, a Sociedade dos Padres do Sagrado Coração fundiu-se com a dos Padres da Fé, fundada em Roma, pelo Padre Paccanari, com o mesmo objetivo: reconstituir a companhia de Jesus, que fora suprimida em 1773. A 16 de maio deste ano de 1799, Padre Leblanc é ordenado sacerdote, pelo delegado apostólico de Vienne, O grupo volta à França, em 1801. Em setembro, o Padre Leblanc começa sua obra missionária em Bayeux. Em 1802, subsitui, temporariamente, o Padre Varin, em Paris, como superior dos Padres da Fé. É então que é citado a comparecer diante de um magistado e submetido a remeter-lhe o estatuto da nova Sociedade. O Padre recorreu ao ministro dos cultos, Portalis, que lhe testemunhou benqueiença e explicou favoravelmente ao Primeiro cônsul, as peças que havia produzido. Napoleão não mais insistiu e disse a Portalis: Deixemo-los fazer; veremos, mais tarde, em que podem nos servir. Em 1804, tornou-se reitor do colégio de Amiens, e em 1805, o Padre Varin deixou Amiens, encarregando o Padre Leblanc a substituí-lo junto às Irmãs de Nossa Senhora como superior eclesiástico. Esforçava-se por conter, com mão segura, o Padre de Sambucy, professor de terceira classe, no colégio, e designado como confessor das Irmãs de Nossa Senhora, das Damas da Instrução Cristã - Damas do Sagrado Coracão. Este jovem padre era empreendedor e radical em suas ideias, e de um temperamento difícil. As previsões do Padre Varin foram completamente frustradas. Em 1805, o colégio de Amiens foi transferido para Montdidier, pois os Padres da Fé não desejavam enviar seus alunos às escolas oficiais que acabavam de ser instauradas em Amiens. No ano seguinte, o Padre Leblanc, devendo ir inspecionar o colégio de Roulers, confiado aos Padres da Fé, teve a inspiração de convidar Madre Júlia para acompanhá-lo, a fim de apresenta-la ao bispo de Gand, M. Fallot
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de Beaumont. Esta foi a oportunidade para a implantação das Irmãs de Nossa Senhora em Flandre. Quando Madre Júlia veio fundar a escola de Montdidier, a 21 de fevereiro de 1807, ela aproveitou esta estadia para pedir conselho ao padre Leblanc, em quem tinha muita confiança, a respeito do regime interno de sua comunidade de Amiens; ela necessitava muito de um critério objetivo e de palavras de estímulo. Em julho de 1807, estando, Madre Júlia, em Namur, recebeu a visita do Padre Leblanc, o qual lhe anunciou que o bispo de Amiens a destituíra do cargo de superiora das Irmãs de Nossa Senhora de Faubourg-Noyon e subsituído pelo padre de Sambucy. Minha boa Madre, concluiu o santo religioso, atualmente, vós não tendes mais influência do que eu, em vossa casa de Amiens. Encorajou-a através de cartas, até que a correspondência foi interceptada pelo padre de Sambucy e Madre Júlia, estando em Bordéus, não recebia mais notícia de suas filhas de Amiens. A 1º de novembro deste ano de 1807, a dissolução dos Padres da Fé foi promulgada; o Padre Leblanc transmitiu a notícia à sua comunidade, no dia 4 de novembro, dia de sua festa (São Carlos). Os Padres tiveram que se dispersar; Padre Leblanc, substituído, em Montdidier, pelo padre de Lamarche, da diocese de Beauvais, retornou a Bayeux, onde foi nomeado capelão honorário da catedral e também da prisão. Ao longo do ano de 1812, ele se pôs em comunicação com o Papa Pio VII, preso em Savone, depois em Fontainebleau, e, por estratagemas que ele sabia descobrir com cuidado, tornou-se um dos intermediários mais ativos da correspondência do Papa; soube, também, enviar-lhe socorros em dinheiro. Foi ele e os Padres da Fé que a rigor conseguiram a audiência de Madre Júlia com o Sumo Pontífice, em Fontainebleau. Em janeiro de 1813, uma ordem de detenção foi emitida contra ele; escondeu-se primeiro em Ravanel, na diocese de Beauvais, uma casa religiosa. Retirou-se, em seguida, para Andenne, na Bélgica, em casa do vigário, M. Vitor Kinet, e só saiu do esconderijo em 1814, após a deportação de Napoleão à Ilha de Elba. Seguindo toda probabilidade, a fundação de Andenne por Madre Júlia teria sido preparada, em segredo, pelo Padre Leblanc.
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Pio VII, liberto e tendo entrado triunfalmente em Roma, a 24 de maio de 1814, publicou, a 7 de agosto, o restabelecimento da Companhia de Jesus. Padre Leblanc e Padre Varin foram os promotores do restabelecimento dos jesuítas na Bélgica e na França; e quase todos os Padres da Fé nela se enfileiraram. A 31 de julho de 1814, foi aberto um noviciado em Gand, e, embora noviço ele mesmo, o Padre Leblanc foi nomeado o superior. Às primeiras dificuldades suscitadas pelo rei Guilherme I, da Holanda, em 1816, o noviciado procurou refúgio no pa lácio episcopal. No ano seguinte, quando M. de Broglie, afastado de sua diocese por ordem do rei, retirou-se à França, foi acompanhado unicamente pelo Padre Leblanc, o qual era seu amigo e confidente. Desde que viu M. de Broglie em segurança, ele retornou a Gand. Em breve, a perseguição recomeçou e o Padre Leblanc foi autorizado a fugir a Suíça, com sua comunidade. Os escolásticos lá permaneceram; o Padre Leblanc, no entanto, clandestinamente; ocupava-se ora com os noviços, ora com os trabalhos pastorais na campanha. Contudo, tiveram que expatriar-se algum tempo depois. Padre Leblanc tornou-se reitor do colégio de Fribourg, depois do de Chambéry, em seguida procurador e Pai espiritual em Turim. A Bélgica, tendo conquistado sua independência em 1830, Padre Leblanc para lá retornou, em 1833, e instalou-se em Nivelles. De Nivelles, foi enviado a Namur, depois a Mons e enfim a Tronchiennes, perto de Gand, onde estava fixado o noviciado Idoso e doente, a ponto de nao poder abandonar o quarto, teve o privilégio de aí ter missa diariamente. Faleceu santamente, em 12 de janeiro de 1851, com setenta e sete anos de idade.
LELEU ANASTÁCIA, VITÓRIA (1780-1823) Nasceu em Chépy, perto de AbbevIle, a 29 de julho de 1780. Seu Irmão, Luís Leleu, entrou na Sociedade dos Padres da Fé, sabendo que Vitória desejava tornar-se religiosa, apresentou-a à Madre Júlia, que a recebeu com alegria, ao mesmo tempo que sua amiga Justina Garson. Foram as primeiras postulantes. Vitória tinha vinte e quatro anos.
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Quando os Padres da Fé organizaram a missão de St-Valéry-sur-Sonnne, convidaram Madre Júlia como colaboradora; esta escolheu Vitória para acompanhá-la e ajudá-la, pois reconhecera grandes qualidades nela, a doçura, uma discriçao rara e um bom senso prático que ia direto ao objetivo. A 15 de outubro de 1805, fez profissão, em presença do Padre Varin, ao mesmo tempo que sua amiga, e as duas fundadoras, que a renovaram e completaram. Comprometeram-se também, por voto, a observar as Regras dadas pelo Padre Varin, no dia 2 de julho precedente. Desde então, passou a chamar-se Irmã Anastácia. A fórmula dos votos, escrita por ela e por ela assinada, foi conservada; é bastante simples: Eu., Irmã Anastácia, prometo a Deus Todo-Poderoso diante da Santa Virgem, sua Mãe, e toda a corte celeste, e em vossa presença, meu Padre, representante de Deus, uma pobreza, uma castidade e uma obediência perpétuas, e, de acordo com esta obediência, um cuidado particular pela instrução das crianças. Em tudo observando as constituições, as condições e as disposições que me foram determinadas. Em Amiens, na capela da casa das órfãs, a 15 de outubro de 1805. Ela foi, pouco depois, incumbida da formação das noviças. Madre Júlia tinha prazer em chamá-la de seu pequeno conselho, sendo, o grande conselho, a Madre Blin. Com as primeiras confusões na comunidade, provocadas pelo padre de Sambucy; na ausência das duas fundadoras, esta Irmã Anastácia foi a que mais lhe sofreu as consequências. Seu sofrimento foi tanto maior porque o padre dava-lhe a entender que a ausência de Madre Júlia e sua companheira se prolongaria indefinidamente. Quando se tratou da fundação de Jumet, sem se preocupar com qualquer escolha de Madre Júlia, o bispo ordenou que para lá fosse enviada, como superira, a Irmã Leleu, que atrapalhava as iniciativas do padre de Sambucy, por sua fidelidade às fundadoras. Irmã Anastácia partiu com Irmã Francisca Bélin, a 21 de março de 1808. Elas se detiveram em Tournai e foram recebidas pelo bispo com uma grande consideração e expressões de bondade verdadeiramente paternal. Chegadas a Jumet, descobriram a casa, abandonada pelas Damas da Visitação, munida apenas de alguns lençóis, quatro ou cinco esfregões e algumas 350
pequenas gamelas de barro; nem camas, nem fogo, nem pão. Isso se explica pelo fato de, no intervalo entre as negociações e a chegada das Irmãs, o pároco de Jumet fora nomedado capelão em Gosselies e seu substituto, M. Fiêvet, ainda não havia chegado. O Pároco de Gosselies, advertido da miséria das religiosas que ele tanto desejara, para sua antiga paróquia, foi imediatamente ter com elas e ficou estupefato à vista de tanta carência de tudo. Ele mesmo foi comprar pão. Graças a algumas pessoas caridosas, elas toram tiradas desse embaraço extremo e Madre Blin acorreu de Namur, para lhes trazer ajuda e consolo. Durante algum tempo, tiveram que dormir sobre a palha. Alegravam-se com essas privações e delas souberam tirar proveito. Nas numerosas cartas escritas à Irmã Anastácia - delas conservamos cinquenta e duas - Madre Júlia fala-lhe, com toda confiança, de suas dificuldades e considera as palavras de seu pequeno conselho com muita atenção. Madre São José e Irmã Anastácia foram sempre suas íntimas confidentes. Sob a sábia direção de Irmã Anastácia, a casa de Jumet prosperou rapidamente. As alunas afluíram ao pensionato; de Bruxelas a Charleroi, as famílias cobiçavam, para suas filhas, a educação sólida e prática das Irmãs de Nossa Senhora. Desde 1810 e 1811, era preciso estipular a distância das localidades. Mas Irmã Anastácia não teve apenas alegrias, em sua casa; uma grande provação a afetou: a partida da Irmã Firmine. Esta fora recebida bem jovem em Amiens, como órfã, a 28 de fevereiro de 1804 eternamente amada pelas primeiras Irmãs (ver mais adiante). A saída da jovem religiosa, em 1811, envolta em circunstâncias tristes, foi um acontecimento que afligiu profundamente Madre Júlia e Irmã Anastácia. Na ocasião das frequentes passagens das tropas estrangeiras, de 1813 a 1815, Irmã Anastácia, por sua prudência e sua grande confiança em Deus, evitou os graves perigos que ameaçavam as crianças e as Irmãs. Em 1815, quando a provação atingiu dolorosamente Madre Júlia, por causa da atitude de oposição de certas irmãs para com ela, é ainda Irmã Anastácia, aquela que Madre São José escolhe como confidente e lhe fala com preocupação: Nós somos as duas filhasd mais velhas... não é fácil às outras, de apreciarem nossa Madre como nós. Mas sabeis, como eu, que ela está 351
disposta e se doa intensamente, de coração aberto, à obra que iniciou, e isso, de maneira admirável... Quando da morte da santa fundadora, a 8 de abril de 1816, desde que tomou conhecimento do fato, Irmã Anastácia acorreu imediatamente a Namur, para reconfortar Madre São José, que, muito emocionada, lhe disse: Querida, minha querida filha, como eu vos entendo, num momento destes! Madre São José, tendo sido reconhecida, por unanimidade, como segunda Superiora Geral do Instituto, escolheu Irmã Anastácia como assistente e superiora da casa-mãe. Suas qualidades justificavam a escolha. Um ano mais tarde, elas submeteram ao julgamento de pessoas ponderadas, o projeto que vinham nutrindo, de transportar, secretamente, do cemitério à casa-mãe, o corpo de sua santa fundadora. Ele foi depositado sob a capela do jardim. É a 27 de julho que a tarefa se executa, sem despertar à menor suspeita. Padre Guilherme Colson, antigo professor de Sagrada Escritura, no seminário de Namur, declara, em seu depoimento jurídico: O corpo de Madre Júlia, depositado no cemitáerio da cidade, foi transladado à casa-mãe, algum tempo após sua morte. M. de Hauregard, então advogado e membro do conselho distrital de Namur, mais tarde cônego da Catedral, acompanha as Irmãs neste translado. Jamais dois caracteres foram tão harmônicos; durante sete anos, elas deram exemplo da mais plena concórdia posta a serviço da obra. Ninguém suspeitva que a assistete, muito mais jovem que Madre São José, a precedesse na morte. Em 1823, a febre tifóide que assolou Namur, atingiu-a e ela faleceu santamente, com a idade de quareta e dois anos, a 9 de fevereiro de 1823. Madre São José escreveu: Que direi? Como a chamarei? Caridade, pureza, simplicidade, doçura, amabilidade, eis seu nome, pois é isso que a designa, para cada uma de nós. Tantas vezes agradecemos a Deus por nô-la ter dado. Mas, oh! Ele nô-la havia apenas emprestado, por um curto espaço de tempo. Ele, como bom Pai, teve receio de que, como fracas heras, nós não nos fizéssemos bastante estreitamente ao sustentáculo que ele nos havia dado; ou mais, ele quis arrebatar para si esta pombinha branca e ela voou junto de seu
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seio, pois podemos, piedosamente, crê-la já ter chegado lá e ter a doce confiança de que ela ainda se interessa por nós.
CASA-MÃE A primeira casa, que foi o berço do Instituto, situava-se na rua Nova, em Amiens. Júlia e Francisca aí se estabeleceram no dia 5 de agosto de 1803. Chamou-se a casa das crianças azuis, porque, antes da Revolução, era um orfanato de meninos vestidos nessa cor. As primeiras crianças que aí entraram, com as Irmãs de Nossa Senhora, também eram órfãs, pobres e abandonadas. Foi lá, igualmente, que foram recebidas as primeiras postulantes e que tiveram lugar as primeiras profissões. Desde 2 de fevereiro de 1804, o Instituto era moralmente constituído pela primeira consagração de Júlia Billiart, Francisca. Blin e Catarina Duchâtel. No dia 15 de outubro de 1805, deu-se a profissão renovada e completada para Júlia e Francisca, e emitida pela primeira vez por Vitória Leleu e Justina Garson. No dia seguinte, a eleição de uma superiora geral pôs a autoridade efetiva entre as mãos de Madre Júlia. M. Demandolx, novamente promovido à sede de Amiens, aprovou os estatutos e quis mesmo selá-los com suas armas. A datar deste dia, a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora estava canonicamente estabelecida. Em agosto de 1806, decidiu-se à abertura de uma escola; as Irmãs de Nossa Senhora deixaram a rua Nova por um imóvel mais vasto, pertencente ao bispado, que o alugou às Irmãs; era o Faubourg-Noyon, a casa que parecia dever ser a ca sa-mãe. Mas as provações que as Irmãs aí sofreram e que são relatadas nas Memórias, levaram-nas a emigrar, exceto duas, em 1809. A supressão definitiva desta casa teve lugar no dia 7 de janeiro de 1813, por Madre Júlia, reabilitada e chamada de volta a Amiens. Desde então, a verdadeira casa-mãe fixar-se-á em Namur, de início provisoriamente, numa parte do seminário posto à disposição das Irmãs por M. Pisani de la Gaude. Depois, M. Minsart, o sábio diretor e confessor das Irmãs, descobriu uma casa mais vasta, situada na rua de Fossés, cujo nome foi, sucessiva353
mente, rua Emile Cuvelier, depois, no século XX, rua Júlia Billiart. É esta casa, desde 1809, a casa-mãe para toda a congregação. Pertencia, então, à família dos condes de Quarré. Com seu grande jardim e suas vastas salas, no primeiro relance em que a viu, M. Minsart já achara-a adequada para este fim. Madre São José havia previsto esse glorioso destino. Em 1809 escreveu: A casa de Amiens mereceu perder o nome de mãe, o de filha e mesmo sua existência. A casa de Namur, abrindo as portas, a esta família repelida e recebendo-a em seu seio, tomou o seu lugar. A casa de Namur, situada em primeiro lugar, foi desde então, o viveiro onde o espírito do Instituto deveria implantar-se; de lá é que ele deveria se propagar às casas filiais, disseminadas pelos diversos países e continentes. As Irmãs entraram nesta casa, que tinha um longo passado, no dia 6 de dezembro de 1808. Em 1398, lá se instaurou um local de devoção; a 3 de maio de 1463, tornou-se uma dependência, um refúgio da abadia de Boneffe. Quando os filhos de São Bernardo dela tomaram posse, esculpiram a imagem de seu Pai acima da porta principal. As Irmãs de Nossa Senhora puderam contemplá-la, até o incêndio de 13 de maio de 1940, que causou a ruína de uma grande parte do estabelecimento. No século XVIII, o Padre Abade, impelido por uma grande necessidade financeira, vendeu o imóvel e suas dependências, dividindo o todo em três partes. É uma destas partes, vendida a Gérard Raymond, que se tornou, em 1759, a propriedade dos condes de Quarré. E é desses últimos proprietários que, em 1808, as Irmãs se tornaram locatárias. Abandonada havia catorze anos, a casa estava muito deteriorada. A 13 de dezembro de 1809, o hotel Quarré foi comprado com o dinheiro de Madre São José, após um encontro fortuito e providencial com a condessa de Ribeaucourt, que recebera esta parte como herança. Esta foi a primeira propriedade da congregação. Desde que a casa mãe foi fixada em Namur, as primeiras fundações foram sendo consolidadas e as novas a ela se uniram. A seguir, foi de Namur que se espalharam as pioneiras da Europa, da América do Norte, do Congo (Zaire) e de lá emigraram, por sua vez, à Ásia, à África, à América do Sul, ao Havaí.
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MÉDARD, SACERDOTE, VIGÁRIO GERAL DE M. PISANI DE LA GAUDE (?-1826) No momento em quê surgiam as prevenções de alguns membros do clero de Gand e de Tournai contra o bispo de Namur (ver mais adiante Pisani de la Gaude) que defendia Madre Júlia, alguns chegaram ao ponto de quererem dividir o Instituto de acordo com as dioceses. Madre São José escrevia à Irmã Anastácia, a 27 de setembro de 1815: Se cada diocese se arrogar o dever de nos governar à sua maneira, isso não deixará de fazer com que surja uma bonita música. Felizmente, não aconteceu nada disso. Foi então que M. Pisani de la Gaude, sem dúvida a pedido de Madre Júlia, deu a Congregaçao um superior eclesiástico especial, na pessoa de padre Médard, seu vigário geral. Isso ocorreu alguns meses antes da morte de Madre Júlia. Durante a última doença da fundadora, que durou três meses, M. Médard teve a convicção de que a santa doente tinha conhecimento, por uma luz sobrenatural, da época de sua morte. Desde 14 de janeiro, ela pediu e recebeu os últimos sacramentos, das mãos de padre Médard. Após a morte de Madre Júlia, por ordem do bispo, ele compôs e fez gravar, sobre a pedra tumular, um epitáfio; esta pedra está, atualmente, encravada na parede posterior da capela do jardim, em Namur. Quando da transladação do corpo da Santa - do cemitério à casa-mae - isso pôde ser feito graças à aprovação do padre Médard, que acompanhou o cerimonial, após a permissão verbal do bispo. Foi também padre Médard, assistido por dois outros padres, que presidiu a assembléia de 2 de junho de 1816, quando o escrutínio para a eleição da nova superiora geral, Madre São José, foi recolhido e apurado em sua presença. Padre Médard, que sabia do valor do dom de Deus feito ao Instituto neste dia, encorajou a nova superiora geral e felicitou as eleitoras pela feliz escolha que o Espírito Santo, lhes havia inspirado. Quando o rei Guilherme I iniciou a perseguição contra as comunidades religiosas, limitando seu número e que, por um espírito francófobo, proibiu, às Irmãs de origem francesa, de continuarem a ensinar, padre Médard inquietou-se, certo de uma próxima perseguição. Com efeito, em 1826, um decreto de supressão dos Irmãos das Escolas cristãs os exilou do 355
reino. Ao comunicar a notícia deste decreto revoltante do Conselho de regência, o protetor da educação cristã, que era o vigário geral Médard, foi dolorosamente afetado: Se, pelo menos, exclamava ele, no primeiro momento de comoção, se pelo menos não se tocar nas Irmãs, eu morrerei. Ele não pensava estar tão próximo de seu fim; ele nao precisou aguardar a sua pena, pois nesta mesma noite, o Senhor o chamou a si, às três horas da madrugada. Não estava doente, rezara a santa missa, na véspera. Uma sufocação, uma opressão do coração o fulminou, num quarto de hora. Isso representou uma grande perda para o Instituto, do qual fora nomeado superior eclesiástico. Ele vinha desempenhando essa função com uma paternidade efetiva. Sempre estimou as duas fundadoras, amou sua obra com amor sincero e devotou-se, sem reservas, no sentido de fazê-la prosperar.
MINSART NICOLAU JOSÉ (1769-1837) Nasceu a 6 de outubro de 1769, em Linsmeau, pequeno vilarejo belga. Foi batizado no mesmo dia, na igreja paroquial de São Pedro. Tinha um irmão e cinco irmãs. Foi aluno no colégio dos Agostinhos, em Tirlemont. Durante a revolução dos belgas contra o Imperador José II, em 1789, Nicolau abandonou o estudo de retórica e foi depressa alistar-se como voluntário. Restabelecida a paz, retomou seus estudos de filosofia, em Liège. Depois, em 1791, foi apresentar-se na abadia de Goneffe, onde foi admitido por aquele que seria o último abade da abadia, Dom Gabriel Simon, e foi chamado Dom Jerônimo. A 25 de maio de 1793, professou e, a 21 de dezembro, foi ordenado sacerdote: tinha 24 anos de idade. Os revolucionários franceses, tendo conquistado, pela segunda vez, a Bélgica, devastaram ou queimaram as abadias; a de Boneffe foi pilhada e vendida como bem nacional e monges dispersados. Alguns foram levados como reféns, entre eles, Dom Jerônimo que foi rigorosamente vigiado, em Mons, durante quatro meses. Quando a perseguição diminuiu, padre Minsart ficou em Louvain, para dedicar-se ao estudo da teologia, sob a direção de M. Devenise. Este, em breve, foi chamado a Namur, pelo bispo, 356
que lhe pediu que reorganizasse seu seminário. Padre Minsart o seguiu e foi nomeado vigário geral, na paróquia de São João Evangelista, a 5 de maio de 1806, depois pároco, a 1º de outubro de 1808. Na chegada das Irmãs de Nossa Senhora, no dia 7 de julho de 1807, tornou-se seu confessor e não conhecia limites em seu devotamento ao atendimento espiritual, mas estendia-o também ao domínio material. Conhecedor da vida religiosa por experiência, foi, para as Irmãs, não apenas um amigo dedicado, mas também um sábio conselheiro e um verdadeiro pai. Madre São José, que era superiora da casa de Namur, confiava totalmente nele. Durante as provações de Amiens, ele foi posto a par de tudo e sustentou moralmente as duas fundadoras. Foi ele, também, que colaborou nos primórdios do estabelecimento da casamãe atual. Não apenas a havia escolhido, mas interveio financeiramente. Madre Júlia anunciou a nova à Madre São José, escrevendo-lhe: O melhor de tudo é que, por intermédio do bom padre Minsart, haverá como pagar a locação durante dois anos, sem que nos custe nada. Após o retiro pregado pelo padre Thomas, em 1810, quinze Irmãs pronunciaram seus votos em presença de padre Minsart, delegado pelo bispo para esta circunstância. Ele continuava tomando a peito a causa do progresso do Instituto Nossa Senhora e não o diminuiu, até o momento em que o viu solidamente estabelecido e em estado de ultrapassar e prescindir de cuidados tão insistentes. A paróquia de St-Loup, tendo ficado vacante, foi assumida por padre Minsart, a 3 de novembro de 1813. Em 1816, veio visitar nossas duas fundadoras, que estimava profundamente, e que estavam gravemente enfermas; disse às Irmãs: Madre Júlia morrerá, mas a Irmã São José será restituída ao trabalho da Congregação. Assim aconteceu. O Instituto não limitou seu zelo. Construiu e restaurou várias igrejas, instituiu outras comunidades religiosas. Em 1822, teve oportunidade de restabelecer um convento de religiosas bernardinas, em Colen, na diocese de Liège, cujas constituições foram aprovadas em 1831. Neste mesmo tempo, desolado por ver as filhas de sua paróquia sem emprego, fez apelo a 357
duas senhoras para que abrissem um ateliê de costura. Este foi o começo da congregação das Irmãs de Santa Maria de Namur; foi aprovada pelo bispo Barrett, em 1834, e canonicamente constituída. Pouco tempo depois, adoeceu e teve que ceder, ele, o apóstolo zeloso, permanecendo acamado. Faleceu a 11 de maio de 1837, com sessenta e oito anos de idade. Havia pedido para que fosse enterrado em Colen, junto às bernardinas, cujo convento havia restaurado. O filho de São Bernardo retornava às suas origens.
PADRES DA FÉ (1791-1814) A Companhia de Jesus, desde sua supressão, em junho de 1773 induzida pelos esforços combinados do absolutismo das cortes de Bourbon e a incredulidade - não cessava de excitar a saudade do clero e dos homens sinceramente afeiçoados à religião. Jovens eclesiásticos, os padres Charles de Broglie e Eleonor de Tournely, que a Revolução havia forçado a fugirem para a Bélgica, em julho de 1791, haviam concebido o projeto de fazerem reviver a ordem dos jesuítas, sob um outro nome, a Sociedade do Sagrado Coração de Jesus. Em breve, reuniram-se a eles, Xavier de Tournely e Pierre Charles Leblanc, vindos do exércido de Condé. Puseram-se a estudar as constituições de Santo Inácio. Seu amigo, José Varin, que também havia servido no exército, juntou-se a eles. Após a segunda conquista da Bélgica pelos revolucionários, em 1794, todos tiveram que fugir para a Alemanha. Quando, em 1797, Bonaparte ameaçou Vienne, os Padres do Sagrado Coração, permaneceram em Hagenbrunn. Após a morte de Tournely, o fundador, é Padre Varin que é eleito superior; ele fora ordenado a 12 de março de 1796. Enquanto a Sociedade do Sagrado Coração se desenvolvia na Alemanha, uma outra sociedade, tendo o mesmo objetivo, formara-se em Roma, sob a autoridade de Nicolau Paccanari, ainda leigo; este obtivera do Papa Pio VI uma aprovação provisória. Esta nova sociedade adotou o nome de Companhia da Fé, e Paccanari teve a idéia de fundir em uma, as 358
duas Sociedades que tinham o mesmo objetivo. Pio VI emitira esse desejo; isso foi de grande peso, para determinar o Padre Varin a ceder ao apelo. Desde então, chamaram-se Padres da Fé. Em 1800, Paccanari enviou os Padres da Fé a fundarem estabelecimentos em diversos países; Padre Varin e seus companheiros retornaram à França. Os Padres da Fé estabeleceram colégios em Lion e em Amiens; mas sofreram, em breve, incômodos por parte do governo, que suprimiu o colégio de Lyon, recém fundado. Em 1803, deu-se a fundação do colégio de Belley - onde Lamartine fez os seus estudos - junto à fronteira de Savoie, depois, em 1 804, o de Roanne. Os Padres da Fé ocupavam-se de um outro ministério, o das missões, para a recristianização da França; pregaram-nas em Tours, depois em Amiens, em StValéry-sur-Somme e em Abbeville. É durante estas três últimas missões, que a sua ação foi grandemente auxiliada por Madre Júlia. As relações que existiram entre Madre Júlia e Padre Varin datam da estadia em Bettencourt e fizeram deste Padre o promotor da Congregação de Nossa Senhora. Em 1802, numa estadia em Roma, Padre Varin percebeu que Paccanari mostrava pouco interesse em se reunir com os antigos Jesuítas e teve, também impressões menos boas a respeito da conduta deste sacerdote. Tirou a conclusão disso: ele não é conduzido pelo Espírito de Deus. Separou-se, em breve, de Paccanari, a 21 de junho de 1804. Desde então, os Padres da Fé, na França, conservando a mesma denominação, vinham a ser, de qualquer maneira, os Padres do Sagrado Coração. O Santo Padre ratificou plenamente esta decisão. Os Padres da Fé abriram, sucessivamente, pequenos seminários e colégios, e as grandes missões recomeçaram. Os sucessos reavivaram o ódio do partido anti-religioso e a ordem de dissolução foi dada em novembro de 1807. A 7 de agosto de 1814, Pio VII publicou a bula que restabelecia a Companhia de Jesus no mundo inteiro. Imediatamente, os Padres da Fé foram da opinião de que deveriam escrever ao Padre Brzozowski, geral da Companhia, que residia na Rússia - país onde os jesuítas tinham podido subsistir - para pedirlhe de ser admitido na Companhia. Padre Varin foi consultar o Padre de la Clorivière, antigo jesuíta, que lhe aconselhou 359
de permanecer na França de aí continuar trabalhando como antes. Pouco depois, o Padre de la Clorivière anunciou-lhe que acabara de receber uma carta do Padre Geral, autorizando-o a preparar o restabelecimento da Companhia na França. Quase todos os Padres da Fé solicitaram sua admissão como o maior dos favores. Padre Varin foi admitido a 19 de julho de 1814 e seus companheiros o imitaram. Este foi o fim dos Padres da Fé, na França; tinham, enfim, atingido seu objetivo: tornarem-se jesuítas, para melhor servirem a Cristo e à Igreja ad maiorem Dei gloriam!
PIO VII (1742-1823) Barnabé Chiaramonti nasceu em Césène, em 1742. Foi, primeiramente, monge beneditino em São Calixto, Roma, depois bispo de Imola. No final de setembro de 1799, quando Roma estava ocupada pelas tropas napolitanas e os Estados pontifícios pela Áustria, os cardeais resolveram reunir-se em Veneza, sob a presidência do cardeal Consalvi. Após meses de discussão, o cardeal Chiaramonti foi eleito Papa, por 34 votos contra 35, a 17 de março de 1800. Tinha cinquenta e oito anos. Sob aparências suaves escondiam-se uma firmeza de rocha, uma instransigência absoluta, quando se tratava das questões referidas. Salvo poucas horas de deficiências físicas, ele será sempre um suave inflexível. O rei de Nápoles, tendo restituído Roma ao Papa, é a contragosto que a Áustria autoriza Pio VII a retornar à Cidade eterna. A 3 de julho de 1800, o novo Papa fazia sua entrada em Roma, entre as aclamações de seu povo. Os destinos da lgreja estariam à mercê, durante quinze anos, de dois homens que se digladiavam face a face: Pio VII e Napoleão Bonaparte. Houve, primeiramente, a Concordata de 1801, que restabeleceu a religião católica na França, mas à qual o cônsul Bonaparte acrescentou setenta e sete Artigos Orgânicos, que foram um regulamento draconiano, expondo a Igreja ao poder do primeiro Cônsul. Pio VII protestou vigorosamente e só teve uma resposta evasiva: Bonaparte preparava sua coroação. O Papa admitiu vir a Paris para a sagração do Imperador, que teve lugar no dia 2 de dezembro de 1804. Napoleão escrevera-lhe: Esta cerimô360
nia adquirirá um novo brilho, se for feita por Vossa Santidade em pessoa; ela atrairá, sobre nós e nossos povos, as bênçãos de Deus... Vossa Santidade conhece os sentimentos afetuosos que nutro para convosco, dede muito tempo... Na véspera da coroação, Josefina de Beauharnais informou ao Papa de que ela só estava casada civilmente com seu imperial esposo. Pio VII falou com a firmeza que lhe era própria e exigiu que o casamento religioso fosse celebrado imediatamente, caso contrário, não participaria da cerimônia de coroação. Concordou, no entanto, que a cerimônia fosse quase clandestina; apenas o cardeal Fesch, tio do Imperador, realizou o ato, à noite, numa das salas das Tulherias. Depois, houve a polêmica do Catecismo imperial, que foi publicado em 4 de abril de 1806. Certos bispos o refutaram, notadamente os bispos da Bélgica. Em 1804, mais um novo decreto havia submetido as ordens religiosas à autorização prévia do governo, a qual, a todo instante, poderia ser retirada, etc. O curioso é que, o Imperador, discípulo de filósofos, odiava os jesuítas, deixando, durante algum tempo, prosperar, com algum tumulto, os Padres da Fé, que reunia e tratava como irmãos. Esta tolerância durou pouco, e um decreto exigiu sua dissolução. Entretanto, o Papa acabava de reconstituir a Companhia de Jesus na Rússia (1801), depois em Nápoles (1804). Não iria, acaso, fazer o mesmo em toda parte? Quando Napoleão assinou o decreto do bloqueio continental contra a Inglaterra, quis que os Estados pontifícios se submetessem a ele. Pio VII recusou-se, apesar das ameaças do déspota. A situação chegara a uma tensão tal, que a ruptura era iminente e certa. A 17 de maio de 1809, os Estados pontifícios foram anexados ao império. Pio VII excomungou os espoliadores; a pessoa de Napoleão não foi mencionada, mas a intenção era mais do que evidente. Na noite de 5 de julho de 1809, um documento foi apresentado ao Papa, exigindolhe que retirasse a excomunhão. Nós não podemos, não devemos, não queremos, foi a resposta do Papa. Foi, então, levado como prisioneiro a Savone, a quarenta quilômetros de Gênes. Recusou, por diversas vezes, a transferir para Paris a sede de Roma, em troca de sua liberdade. Aí permaneceu por três anos, totalmente isolado; mas guardou sua energia férrea. 361
Por ocasião do divórcio de Napoleão e de Josefina de Beauharnais, a questão foi tratada pela oficialidade diocesana; Pio VII formulou restrições, mas não o condenou de todo. Como o Papa refutasse a investidura dos bispos, feita pelos metropolitanos, Napoleão reuniu um concílio, em junho de 1811, no coro de Notre Dame de Paris. Desde os primeiros dias, o apelo de M. de Boulogne, bispo de Troyes, apoiado por M. d’Aviau, bispo de Bordéus, todos os bispos, sem exceção, renovaram seu juramento de obediência ao Papa. O furor imperial explodiu. Uma delegação partiu para Savone; Pio VII, doente, fatigado, parecia estar no ponto de ceder, mas bem depressa, reencontrou sua firmeza e rechaçou toda outra concessão. Em consequência, Napoleão baixou a ordem, no dia 27 de maio de 1812, de transferir o Papa para Fontainebleau. Pio VII, septuagenário, enfermo, esgotado, deixou-se transportar sem articular uma palavra sequer de protesto. Que Deus perdoe, murmurou ele várias vezes; por mim, eu já perdoei. A 19 de janeiro de 1813, Napoleão visitou-o e tentou um último assédio. Após cinco dias de debate contínuo, foi elaborado um projeto: Pio VII, num instante de aniquilamento, cedeu. Mas em 24 de março, fez com que entregassem uma carta de retratação ao Imperador. Napoleão teve que reunir o exército, a 15 de abril e, em outubro, houve a derrota de Leipzig; a França seria invadida, em 1814, e a 6 de abril, Napoleão teve que abdicar uma primeira vez, em Fontainebleau. Durante este ciclone de catástrofes, as questões religiosas eram postas em segundo plano. Napoleão havia dado ordem de tranferirem o Papa, novamente, para Savone. Em toda parte, ao longo da estrada, manifestações populares acalentaram o coração de Pio VII. A 24 de maio de 1814, o Pontífice exilado reentrou em Roma, numa cidade em festa. Menos de três meses após sua reinstalação, restabeleceu a Companhia de Jesus. Durante os Cem Dias, Murat sitiou Roma e Pio VII teve que fugir novamente, para Florença. Murat vencido pelos austríacos, Pio VII pôde retornar definitivamente a Roma, a 7 de junho de 1815. Aquele que fora tão grande na provação, mostrou-se tal ainda agora; acolheu nobremente, em seus Estados, a mãe de Napoleão, em breve seguida por toda a geração dos napoleônidas. Ele dizia de Napoleão: A piedosa e corajosa iniciativa de 1801 (a Concordata) nos fez esquecer e perdoar todos os 362
erros subsequentes... São meros desvios da ambição humana. Todos esses sofrimentos tinham, no entanto, traumatizado sua alma; durante sua agonia, ele murmurava ainda: Fontainebleau! Savone! Pio VII, envelhecido, desgastado, pouco a pouco foi sendo tomado por uma lenta paralisia; entregou-se com confiança total ao cardeal Consalvi, seu secretário de estado, que o apoiara sempre e deixou-lhe, praticamente todas as iniciativas. A 6 de junho de 1823, Pio VII teve uma grave queda e, após dez semanas de grandes dores, suportadas com heroísmo, entregou sua alma a Deus, a 20 de agosto de 1823. As Irmãs de Nossa Senhora tiveram que sofrer todas as vicissitudes do regime napoleônico: exigências relativas ao ensino, passagens de tropas e combates na Bélgica; as Cartas de Madre Júlia são um eco disso tudo. Quanto a Pio VII, sabemos que, por intermédio dos Padres da Fé, nossa fundadora teve uma longa audiência com o prisioneiro de Fontainebleau, da qual a nossa Madre dirá: Minha filha, eu vi o Santo Padre; juntos choramos as desgraças da Igreja. Júlia, dizendo essas palavras, apertava na mão um crucifixo, o qual lhe fora dado por Pio VII. O decreto de beatificação, promulgado por Pio X, menciona: Nosso predecessor, Pio VII, durante sua iníqua detenção no castelo de Fontainebleau, havia dado a Júlia, prosternada a seus pés, grande esperança de ver propagar-se pelo mundo inteiro esta obra salutar, tão heroicamente iniciada e empreendida, para o bem da juventude e das famílias cristãs.
PISANI CHARLES-FRANÇOIS-JOSEPH (1743-1826) Marquês de la Gaude nasceu em Aix-en-Provence, a 4 de março de 1743, último descendente de ilustre família que deu dois doges a Veneza. Tendo feito seus estudos de direito, tornou-se advogado, depois conselheiro no Parlamento de Provence. Era noivo de Mademoiselle de Entrecasteaux, quando a jovem morre subitamente, pouco antes do casamento. Deixou o mundo, renunciou a tudo, decidido a tornar-se franciscano; mas seu tio materno, o marquês de Reboul, bispo de St-Paul-Trois-Châteaux, 363
fez com que se decidisse a servir a Igreja como padre secular. Conferiu-lhe o sacerdócio e o fez cônego e arcediago de sua catedral. Em 1783, foi promovido a bispo de Vence, cujo trono ocupou até a Revoluçao Francesa. Recusou-se a prestar o juramento constitucional e foi condenado perante o tribunal recolucionário; estando próximo à fronteira, conseguiu fugir e procurou refúgio em Roma, onde publicou sua Carta Pastoral do bispo de Vence sobre a obediência ao Soberano Pontífice. A Concordata de 1801, uma vez publicada, ele pôde retornar a Paris, para encontrar o ministro dos cultos, Portalis, um amigo íntimo, que fora seu colega no Parlamento de Aix. Introduzido por Portalis junto ao primeiro Cônsul, o antigo bispo de Vence pediu a recuperação de alguns de seus bens, que haviam sido sequestrados e que ainda não tinham sido vendidos. Napoleão diz a Portalis: Põe fim a esta questão, depois, olhando para M. Pisani, acrescentou: Estais ainda em idade de trabalhar, faço-vos bispo de Namur. A audiência não durara mais do que cinco ou seis minutos: era o dia 5 de fevereiro de 1804. Tomou posse da catedral de Namur a 15 de abril do mesmo ano. Um dos seus primeiros cuidados foi de reorganizar o seminário, com a ajuda do Padre Devenise, a quem ofereceu a presidência. Chamou a Namur os Irmãos das Escolas Cristãs e comprou o antigo convento dos dominicanos, para nele estabelecer as ursulinas. Ouvindo falar de Madre Júlia, através dos Padres da Fé, M. Pisani quis vê-la, a fim de introduzir, na cidade episcopal, uma casa de Irmãs de Nossa Senhora. Ficou convencionado que no verão seguinte, em 1807, seria aberta uma casa de educação em Namur. M. Pisani contribuiu com oportunas advertências, a respeito dos obstáculos que o desenvolvimento da obra encontrava em Amiens, dando conselhos à Madre Blin, superiora da casa de Namur, de permanecer em Amiens, a fim de tratar a questão da procuração geral que Padre de Sambucy possuía. Posto a par da situação da comunidade de Amiens, escreveu, em julho de 1808, à fundadora: Minha diocese vos é devotada e sempre vos oferecerá um asilo, a vós e às vossas Irmãs. Por ocasião do Concílio de Paris, reunido em 1811, por ordem do Imperador, ele não foi detido como seus colegas, M.de Broglie, bispo de Gand e M. Hirn, bispo de Tournai, apesar de sua oposição às injunções de 364
Napoleão, graças à intervenção de seu amigo Portalis. Este fato será mal interpretado mais tarde por padres das duas dioceses e por alguns membros do Instituto de Nossa Senhora, em Gand. Foi reprovado, também, por ter admitido Catecismo Universal do Imperador, no qual se encontravam erros; ora, M. Pisani não introduziu o catecismo em sua diocese e, mesmo, foi devido à sua intervenção que o governo desistiu de querer impô-lo como obrigatório ao país. Este fato parece ter sido totalmente ignorado em Flandre, o que contribuiu para avivar a suspeita de alguns com respeito a M. Pisani: não se aceitava o fato de ele continuar governando a diocese de Paris, enquanto que seus amigos e correligionários sofriam os rigores do exílio. Madre Júlia foi, então, envolvida nessas suspeitas, porque era vista sempre muito respeitosa para com o seu pastor, cuja honra e reputação sempre defendeu. Após a Concordata explodiu, na diocese de Namur, a questão do stevenismo. Os adeptos do cônego Corneille Stévens, que não haviam admitido a Concordata nem os Artigos orgânicos, recusavam submeter-se à autoridade hierárquica e nem reconheciam Stévens como chefe, ele, antigo vigário capitular. Os esforços de M. Pisani, no sentido de refazer a união, não tiveram muito sucesso. Só em 1815, o cônego Stévens e os eclesiásticos que o haviam seguido vieram apresentar sua submissão. Foi nesta ocorrência que M. Pisani obteve ajuda de Madre Júlia, em reconduzir as religiosas ursulinas, arrastadas ao cisma por seu diretor. Pouco a pouco, elas reconheceram seu erro e protestaram, individualmente, sua submissão ao bispo, em 1817. Houve uma reparaçao pública. A 8 de setembro de 1818, M. Pisani deu sua aprovação às Regras e Constituições das Irmãs de Nossa Senhora. Nós as aprovamos, confirmamos e ordenamos que sejam exatamente observadas, na casa principal destas Irmãs, existente em Namur, e em todas as casas já estabelecidas em diversos locais de nossa diocese. Sob o governo de Madre São José, à época de Guilherme I da Holanda, foi preciso que ele interviesse várias vezes junto ao governo, para conservar o Instituto de Nossa Senhora. Mostrou sempre uma grande afeição para com o Instituto. Um bispo francês veio, um dia, celebrar o santo sacrifício na capela das Irmãs de Nos365
sa Senhora, em Namur. Este bispo pediu Irmãs para sua diocese: Vós sois nossa propriedade de direito; não se pode negar as próprias origens e é preciso procurar a tumba lá onde o berço se formou. – Ah! respondeu firmemente M.Pisani, que o acompanhava, quando o Instituto se inclinar em direção à sepultura, eu vos cederei minha família, pois será o signo da decadência, e eu prefiro que ela vá morrer longe; mas, enquanto o Instituto viver, o bispo de Namur guardará as filhas que a Providência lhe deu. Foi também M. Pisani que disse, após a morte de Madre Júlia: Madre Júlia será, um dia, canonizada, porque ela nunca faltou à caridade, durante suas duras e longas provações de Amiens. Morreu repentinamente, fulminado por uma apoplexia, em 23 de fevereiro de 1826, com oitenta e três anos de idade. Foi venerado como um santo. Seu corpo foi exposto durante três dias, no bispado: avaliou-se o número de fiéis a vê-lo, em 30.000 pessoas. O mausoléu erguido à sua memória ainda existe, na catedral.
DE PONT-L’ABBÉ, MADAME Esta grande senhora habitava o castelo Gournay-sur-Aronde, a seis quilômetros de Cuvilly. Gostava de permanecer à cabeceira de Júlia, quando enferma, em companhia da condessa Baudoin e de Madame de Séchelles. Quando Júlia esteve exposta às ameaças dos revolucionários, amotinados contra ela, que julgavam cúmplice dos padres refratários, Madame de Pont-l’ Abbé, que a estimava com ternura, veio buscá-la em sua viatura. Levou-a para o seu castelo, bem como a Felicidade, sobrinha de Júlia. Mas, em breve, perseguida ela mesma, teve que fugir ao exterior, deixando Júlia e sua sobrinha, então com dezesseis anos, à guarda do caseiro e de sua mulher. Enquanto Júlia ainda estava sendo procurada pelos revolucionários, estas bravas pessoas fizeram-na conduzir, dissimulada sob um monte de feno, até Compiègne, a fim de salvá-la do furor dos revolucionários. Madame de Pont-l’ Abbé faleceu em país estrangeiro. 366
PRÉVOST MARIA-ELISABETH Passou sua primeira infância na ilha São Domingos e veio à França em 1792, no período mais sangrento da Revolução. Seu pai corria os mares, mas a irmã, Madalena, antiga ursulina, recolheu-a junto de si, em Clermont-sur-Oise. Uma amiga das Damas do Sagrado Coração, Madame de Rumigny, preparou-a à primeira comunhão, que se realizou no dia de Todos os Santos, em 1795. Sua irmã, Madalena, preparava-se para entrar no Sagrado Coração de Amiens, quando faleceu. Desde então, Maria Elisabeth não pensava em outra coisa do que no Sagrado Coração, onde entrou, no último dia de maio de 1808. No ano seguinte, foi uma das quatro jovens Irmãs que Padre de Sambucy desejou transferir, do noviciado das Damas da Instrução Cristã - chamadas, a seguir, Damas do Sagrado Coração - em Faubourg-Noyon. Ele queria reorganizar esta casa à sua maneira, após a partida forçada de Madre Júlia e da maior parte das Irmãs. Uma vez que sua paixão por Madame Vitória arrefeceu, ele a enviou a Rubempré e instalou como superiora, em seu lugar, a 3 de março de 1809, Madre Maria Prévost, entrada havia apenas nove meses na congregação: tudo isso foi combinado com Madre de Baudemont, sem que Madre Barat tivesse sido consultada. Madre Prévost esforçou-se por unir a seu grupo as Irmãs de Montdidier, em vão. (Ver nota Cardon). Madre Júlia foi reabilitada e chamada a Amiens pelo bispo; este anunciava, a 17 de março de 1812, à Madre Prévost, que ele havia constituído Madre Júlia Superiora Geral das Irmãs de Nossa Senhora de sua diocese e pedia-lhe que a reconhecesse como tal. Eis como Madre Júlia apresentou a jovem superiora de Faubourg-Noyon à Madre São José, numa carta datada de 18 de novembro de 1812: A superiora parece ser de uma grande franqueza; tem espírito e modos, fala muito bem. Recebeu educação e é suscetível de receber mais, adquirindo experiência; tem um grande espírito de subordinação, de devotamento e de franqueza. Em outra carta, de 21 de novembro, ela acrescenta: Ela pertence ao tipo de pessoas que são postas adiante do tempo e fora de seu espaço, o que, algumas vezes, faz com que falte a sequência de uma 367
boa vocação. Não há melhor modelo de subordinação, desde que entro em casa; mas, através disso tudo, vê-se que a superioridade a tem prejudicado muito. Só ficou oito meses no Oratório; pouco para apreender o espírito, pouco para que possa formar algo de mais sólido... Suas Irmãs são muito apegadas a ela. Madame Prévost, tendo feito muitas dívidas e não podendo mais sustentar o aluguel da casa de Faubourg-Noyon, procurou, com Madre Júlia, uma casa mais modesta. A 1º de janeiro de 1813, a pequena comunidade se instalou em Moreaucourt, onde não pôde permanecer por muito tempo. Em breve, Madre Prévost largou mão de todas essas dificuldades e escreveu a Madre Júlia, informando-a de que ali ela estava apenas emprestada, e que ela retornaria ao Oratório. Madre Júlia respondeu, simplesmente, que, já que era assim, a casa estava dissolvida. M. Demandolx compreendeu a situação e o estabelecimento foi suprimido. M. Fournier, vigário geral, mandou dizer à Madre Júlia: Nosso prelado ignorava as intenções da Irmã Maria, que nada nos comunicou, nem mesmo a respeito das dívidas que contraíra. Duas religiosas seguiram Madre Prévost, outras, de saúde delicada, retornaram aos seus familiares e algumas ingressaram com as Irmãs de Nossa Senhora em Namur. Madame Prévost, durante meio século, ajudou Madre Barat a fundar sua obra. Foi mestra de noviças em Lyon, durante mais de vinte anos, depois, tornou-se assistente geral em Paris, em 1853. Anteriormente, havia presidido a várias fundações no sul da França. Em toda parte, manifestou sua grandeza de alma e sua caridade.
QUESTE MADALENA, FIRMINA (1791- ?) Nasceu em Amiens, a 29 de outubro de 1791. Foi levada, por uma senhora de muita influência na cidade, que era sua protetora, à casa da rua Nova, no dia 28 de fevereiro de 1804. A 2 de fevereiro deste ano, Júlia e Francisca haviamse ligado por voto, se comprometendo a dedicar-se à educação das órfãs: esta foi a primeira oportunidade de o fazer. Ela ainda tinha a mãe viva, a qual, no entanto, parecia não se interessar por ela. 368
Enquanto Madre Júlia auxiliava no apostolado dos Padres da Fé, em St-Veléry-sur-Somme e em Abbeville, o internato cabia à Madre Blin. Ela se esmerava em desenvolver a cultura do espírito e do coração de Firmina e de suas jovens companheiras e preparava-as à primeira comunhão. Júlia também vigiava sobre Firmina; escreveu de St-Valéry, a 23 de junho de 1804, à Madre Blin: E Firmina, que diz da ausência de sua querida mãe? Oh! Como teria vontade de abraçá-la, principalmente se ela fez novos progressos na virtude..., etc. E em outra carta, datada de Abbeville, 18 de julho de 1804: E minha Firmina, ela ama o bom Deus?... Oh! Como agradeceremos ao bom Deus juntas, quando eu retornar; verei quem é que ama mais a Deus, Firmina ou Elisabeth... etc. Objeto de tão religiosa ternura, testemunha da cura milagrosa de Júlia, benefícios extraordinários de que Deus a cumulava e maravilhosas lições de catecismo que lhe davam, a jovem Firmina arraigou-se profundamente em Júlia. Muito bonita, graciosa e espiritual, Firmina adquiriu mais, dados os cuidados de Madre Blin, esta distinção de maneiras, estes conhecimentos úteis que a formaram para se ocupar com a educação da juventude. Firmina sabia que ninguém a amava como suas mães adotivas; a piedade a encantava, a aprendizagem era seu prazer: acreditava-se chamada à vida religiosa. Tendo suplicado à Madre Júlia que a recebesse como postulante, foi admitida, logo que atingiu a idade de dezessete anos. Ensinava bem; suas lições eram muito apreciadas pelas alunas, este sucesso lisonjeava sua vaidade. A fim de subtraí-la à influência de Madre Vitória, foi afastada de Amiens. Em outubro de 1808, Madre Júlia partiu para a Bélgica, levando consigo Firmina e confiou-a à Irmã Anastácia, superiora na casa de Jumet. Trabalhando no pensionato, Firmina se distinguia por sua polidez e seu talento. Mas os elogios que as alunas e seus pais lhe dispensavam, fizeram-lhe mal. Escreveu às escondidas da superiora, a um irmão que detinha um pequeno emprego em Cassel, na corte do rei da Westphália, e recebia, da mesma forma, as respostas través da lavadeira da casa, que ela conquistara para o seu partido. Certa de poder estar junto de seu irmão, tornou-se in369
suportável às Irmãs, infringindo a Regra e não cumprindo mais, a não ser por mera formalidade, seus deveres de piedade. Irmã Anastácia, tendo descoberto a correspondência clandestina, advertiu Madre Júlia, que veio imediatamente falar a Firmina com grande bondade, mas imediatamente se convenceu de que o mal já era irremediável. Confiou a jovem a uma pessoa responsável, para que a conduzisse a Amiens, após ter prevenido a senhora protetora que, em 1804, a havia confiado às Irmãs de Nossa Senhora. Isso se deu em fins de maio ou inícios de junho de 1811. A 27 de julho de 1849, quando suas duas mães adotivas e a maior parte de suas companheiras já haviam falecido, Firmina apresentou-se em Namur, acompanhada de seu marido, M. Dumoulin; eles estavam em Spa, para um tratamento. As antigas Irmãs que Firmina havia conhecido lhe foram trazidas pela superiora geral da época, Madre Constantina. Recordaram-se todos os episódios de outrora e Firmina falou com enternecimento e profunda gratidão, da bondade das Madres Júlia e Blin.
DE SAMBUCY DE ST-ESTÈVE LUÍS ETIENNE (? - 1848) Foi seminarista em St-Sulpice, sob a direção de M. Emery. Lá, reuniu-se aos abades de Broglie - dos quais um, Maurice, futuro bispo de Gand -, de Villèle, Varin de Tournely, etc. Estes seminaristas formaram uma piedosa associação para, mutuamente, se incentivarem à prática da virtude. Após sua ordenação e sua filiação aos Padres da Fé, tornou-se professor, no colégio de Amiens. Era um padre empreendedor e categórico em suas ideias, dotado de brilhante imaginação, homem de espírito ao qual não faltava bom senso. Quando os Padres da Fé foram dispersos, em 1804, ele permaneceu em Amiens. Muito versado em direito canônico, julgou-se destinado a redigir código de vida mais perfeita para as filhas de Madre Júlia, de quem era confessor e isso, contrariando os pontos de vista de Padre Varin, que lhes dera uma regra para experiência. Ele quis imprimir ao Instituto modos 370
de vida à maneira dos antigos mosteiros: nada de Superiora geral, nada de relacionamento entre as casas, etc. Tendo indisposto as autoridades eclesiásticas contra a fundadora, conseguiu expulsá-la de Amiens, bem como a Madre Blin. Desde que teve campo livre, esforçou-se por executar seus projetos, fezse nomear o superior da comunidade e governou a casa. Interceptou toda a correspondência das Irmãs com Madre Júlia, para ter liberdade de movimentos e de ação. Entretanto, a casa de Amiens definhava; aquilo que o zelo indiscreto havia perturbado tanto, trazia a marca da presunção. Chegou quase a perder a cabeça quando, em junho de 1812, a polícia imperial o levou de Amiens, seja em vista de envolvimentos seus em assuntos políticos, seja por causa de comprometimentos com a autoridade episcopal. Internado em Paris, prosseguiu na redação das regras das Damas do Sagrado Coração. Pois desempenhou papel semelhante com essas religiosas, das quais também era confessor. Pretendeu introduzir, no governo dessa sociedade, modificações bem diferentes das Regras dadas pelo Padre Varin, seu fundador. Algumas religiosas se deixaram persuadir, mas Madame Barat e outras se opuseram a ele, contra tais inovações. Estas últimas viram-se reduzidas ao silêncio e a Sociedade nada mais fez do que vegetar, durante os últimos anos do Império. Reergueu-se somente com o retorno do Padre Varin, com a queda do império, que pôs fim à proscrição dos Padres da Fé. Padre de Sambucy, libertado também, saiu engrandecido na opinião de todos, por seu cativeiro; obteve, do novo governo, o emprego de secretário de M. de Pressigny, embaixador do rei da França, Luís XVIII, próximo à Santa Sé. Partiu para Roma, a 7 de julho de 1814. Recém-chegado, decidiu conseguir a aprovação das suas Constituições da Sociedade do Sagrado Coração, que havia denominado as Apostolinas. Escreveu para Amiens: Dizei às Damas que eu espero obter-lhes uma casa em Roma; já estou tratando deste negócio, etc. Fazia apenas três semanas que chegaral Ele não propunha mais sua maneira de ver, impunha-a. A 7 de novembro de 1814, dirigindo-se ao Padre de Clrivière, superior dos Jesuítas da França, acusava o Padre Varin de inércia e Madame Barat de imperícia, dizia-se incumbido de organizar, ele só, a congregação. É por isso, concluía, que é importante, que o Padre 371
Varin não se intrometa, do contrário, ele provocará um cisma. Soube-se, mais tarde, que ele se atribuíra indevidamente todas essas prerrogativas. Entretanto, algumas religiosas do Sagrado Coração haviam-se reunido a ele, em Roma: Madame de Sambucy, sua irmã, Madame de Baudemont, a superiora do Oratório, Madame Copina, a mestra de noviças, e mais algumas. Quase vinte anos mais tarde, em 1832, Madre Barat, de passagem por Roma, visitou as duas religiosas que residiam no convento St-Denis e que aí vegetavam ainda, com umas trinta alunas: Madame de Baudemont e Madame Copina. Era tudo o que restava da obra do Padre de Sambucy. Quanto ao sacerdote, havia muito que deixara Roma; voltando à França e não podendo apresentar-se em Amiens, foi a Paris, onde faleceu, em 1848, cônego titular de Notre Dame.
SELLIER LOUIS-ANTOINE-FABIEN (1772-1854) Nasceu em Hangest-sur-Somme, a 20 de julho de 1772, de família de agricultores. Em 1783, foi enviado ao colégio de Amiens, inicialmente dirigido pelos Jesuítas, antes da supressão, e que tinha guardado suas tradições. Quando a Revolução, em 1790, dispersou professores e alunos, ele voltou à sua família e continuou, sozinho, seus estudos de filosofia. Por ocasião de um levante em massa, de jovens de dezoito a vinte e cinco anos, para alistamento no exército, foi riscado pelo controle, por causa de uma mancha no olho direito. Desempenhou, então, um modesto cargo de funcionário público; mas, ao mesmo tempo, ocupou-se com a educação religiosa de três filhos de M. Poujol, sem aceitar qualquer retribuição. Embora crente firme, vivia afastado das práticas da religião, sem dúvida devido à dificuldade de encontrar bons sacerdotes. Em 1797, associou-se a M. Bicheron (ver notícia acima), para estabelecer um pequeno pensionato em Amiens. Sentiu, então, a necessidade de se reconciliar com Deus e comungou, a 17 de janeiro de 1798. No fim de três anos, uniuse ao abade Corbie, para fundar um outro pensionato. 372
Em breve, sentiu um apelo pronunciado pela Companhia de Jesus. Ouvindo falar dos Padres da Fé - cujo objetivo era o restabelecimento desta Companhia -, e da chegada do Padre Varin a Paris, superior desses Padres, encheu-se de alegria. Apressou-se em oferecer ao Padre Varin o estabelecimento que dirigia em Amiens com M. Corbie e o pôs à disposição dos Padres da Fé, em outubro de 1801. Depois, pediu ao Padre Varin que fosse consultar o Padre Thomas, a respeito de sua vocação. Este último residia, nesta época, em Bettencourt, em companhia de Júlia Billiart e de Francisca Blin de Bourdon. Foi o primeiro encontro de Júlia e do Padre Varin. Este lhe falará, em seguida, da obra à qual havia sido chamada. Em setembro de 1801, Padre Varin deu os Exercícios espirituais de Santo Inácio a M. Sellier, que acolheu em seu grupo, depois o enviou a Amiens como professor de retórica, o que ele fez com muito sucesso. Teve, então, como companheiro, o Padre de Sambucy (ver nota acima). Após seu ingresso na Sociedade dos Padres da Fé, Padre Sellier estudava teologia e, a 9 de março de 1805, recebeu a unção sacerdotal das mãos de M. de la Tour d’Auvergne, bispo de Arras. No mês de agosto de 1805, o pensionato de Amiens foi transferido a Montdidier; e quando se deu a supressão dos Padres da Fé, a 1º de novembro, ele passou às mãos de M. de Lamarche. Chamado pelo sub-prefeito, para reassumir a direção do colégio que regredia, Padre Sellier atendeu o chamado, a 20 de fevereiro de 1809, para ser novamente expulso pelo poder imperial, em 1812. Teve, então, a responsabilidade por diversas paróquias: Louvrechy, Thory, Rubempré. Em 1814, a queda do império permitiu ao Padre Varin de reunir os Padres da Fé e de preparar, com o Padre de Clorivière, o restabelecimento da Companhia. Padre Sellier foi um dos mais entusiastas nessa tarefa, e a ela se uniu, a 11 de abril de 1814. O bispo de Amiens propôs, então, a formação de um colégio, sob a designção de Pequeno seminário diocesano, na abadia de St-Acheul, perto de Amiens. O Padre Sellier para lá foi enviado, como prefeito dos estudos e Padre espiritual dos religiosos e dos alunos.
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Padre Varin havia sentido muito a partida das Irmãs de Nossa Senhora para a Bélgica e, aflito por ver a França e a diocese de Amiens privadas do serviço que estas religiosas prestavam à religião, propôs ao Padre Sellier de fazer com que viessem a Amiens, Irmãs da Santa Família de Besançon, que aí chegararn no dia 25 de janeiro de 1817. Contribuiu, também, ativamente, para o estabelecirnento das Irmãs de São José, surgidas em 1822, na diocese de Arras. Após o fechamento de St-Acheul, pelas Ordenanças de 16 de junho de 1828, ele pregou missões um pouco em toda parte, ajudando e aconselhando Madame de Houet de Bonnault a fundar a congregação das Fiéis Companheiras de Jesus. Padre Sellier foi também iniciador da reabilitação de Madre Júlia, desde fins de setembro de 1808. Falou a seu respeito com o vigário geral Fournier, o qual opusera-se tão intensamente contra a fundadora; ele esteve imediatamente de acordo e Padre Sellier transmitiu a notícia a Júlia. Alguns dias mais tarde, escreveu urna segunda carta a Júlia, enviando-lhe um bilhete que ele acabava de receber de M. Fournier. Este último revelava que o bispo aplaudia o projeto de trazer Júlia de volta a Amiens. E, a 23 do mesmo mês, o bispo lhe fez o pedido pessoalmente. Voltando a St-Acheul, Padre Sellier aí terminará santamente seus dias, estando quase surdo e cego. É nessa época que ele dita e assina, em 1852, uma notícia intitulada Compêndio das virtudes que notei em Madre Júlia. Ele a conhecera muito bem e apreciara-a muito; Madre Júlia, de sua parte, tinha inteira e sincera confiança nele. Eis alguns excertos destes escritos: O que mais me encantou em Madre Júlia foi um dom de oração de todo extraordinário; creio que ela alcançara um alto grau de contemplação (...). Ela passava, ordinariamente, três horas neste santo exercício; seu recolhimento era tão profundo, que parecia alienada de seus sentidos; saía deste maravilhoso estado só com esforço (...) Não duvido de que este espírito de oração tenha subsistido nela, e que, em meio às mais absorventes ocupações, ela não tenha atingido uma solidão interior que ela habitava, juntamente com o seu Deus. Este dom da oração elevado a tão alto 374
grau, é suficiente, por si só, para provar a que ponto de perfeição a reverenda Madre Júlia chegara. (...) Ao espírito de oração, Madre Júlia associava a pureza do coração, em grau não menos excelente. (...) Esta virtude consiste, essencialmente, como se sabe, no desapego de tudo quanto não é Deus. (...) Uma terceira virtude, não menos admirável, em Madre Júlia, era sua paciência. Suportava, sem se queixar, todas as privações inerentes à sua tarefa e à sua condição de sofrimento habitual. (...) Enfim, uma quarta virtude que Madre Júlia cultivava, que era como que a salvaguarda e a fonte de todas as outras, era uma profunda humildade. Júlia gostava de recordar a baixeza de sua origem (...) A seus olhos, ela não passava de uma pobre ignorante, incapaz de ser útil a quem quer que fosse e tornada peso para todo o mundo. Entretanto, graças ao seu bom senso natural e às luzes que recebera em suas comunicações com Deus, era dotada de uma rara e incomum penetração nas vias interiores e no discernimento dos espíritos. (Autógrafo conservado nos Arquivos da casa mãe, em Namur). Dois anos mais tarde, Padre Sellier morreu santamente, com a idade de oitenta e dois anos, a 14 de março de 1854.
STEENHAUT MARIA (1782-1844) Foi a primeira postulante belga. Apresentada à Madre Júlia por M. Fallot de Beaumont, bispo de Gand, empenhou-se em introduzi-la na casa de seus pais, família solidamente cristã. Madame Steenhaut, vivamente tocada por esse encontro, não só consentiu na partida de sua filha, mas acrescentou: Tenho tanta confiança em vós, minha cara Madre, que não só vos dou minha filha mais velha, mas também as três mais jovens, se Deus se dignar inspirar-lhes o desejo da vida religiosa. Esta felicidade me foi recusada, peço 375
a Deus que chame minhas filhas. De fato, duas outras filhas tornaram-se Irmãs de Nossa Senhora. Maria ingressou na rua Nova, em Amiens, em setembro de 1806. No mês de dezembro seguinte, Madre Júlia conduziu três Irmãs à fundação de St-Nicolas, em Flandre, duas francesas às quais reuniu a jovem noviça, Irmã Maria Steenhaut, encarregada da aula de flamengo. Tendo partido dia 9 de dezembro de 1806, chegaram em Gand para se apresentarem ao bispo; pediram-lhe que benzesse o hábito religioso, que traziam em suas bagagens: foi a primeira tomada de hábito da congregação. 17.
Chegaram a St-Nicolas a 14 de dezembro, e a escola foi aberta dia
A casa de St-Nicolas revelou-se, desde logo, inabitável, devido à excessiva umidade; duas Irmãs, Irmã Xavier (Josefina Evrard) e Irmã St-Jean (Justina Garson) contraíram a tuberculose que as levou rapidamente à sepultura. Madre Júlia, não obtendo nada dos administradores da cidade, após ter alugado, durante um ano, outra casa, fechou o estabelecimento. No dia 8 de maio de 1809, as Irmãs de St-Nicolas dirigiram-se a Gand, onde o senhor bispo as aguardava. Irmã Maria conta esta chegada em Gand, onde Madre Júlia as havia deixado, no pátio do Hotel du Cerf, sentadas sobre suas bagagens, lá onde estacionavam as diligências. As Irmãs foram, assim, alvo da curiosidade dos transeuntes, enquanto Madre Júlia ia ao bispado informar-se a respeito da moradia prometida. Ainda não haviam providenciado. Esta ausência se prolongou por várias horas. Enfim, puderam instalar-se, provisoriamente, em casa das Irmãs de Caridade A 21 de novembro de 1809, as Irmãs tomaram posse de uma casa, situada à rua das Mulheres, na paróquia São Pedro. Em fevereiro de 1810, abriu-se a casa de Nouveau-Bois, da qual a Irmã Catarina Daullée foi nomeada superiora, enquanto que Irmã Maria a substituía neste cargo, na paróquia São Pedro. A comunidade de São Pedro deixará esta casa, nos últimos dias de 1812, para reunir-se às Irmãs de Nouveau-Bois. Irmã Maria explica assim esta partida: O bom pároco de São Pedro quis exercer uma autoridade quase 376
absoluta, na comunidade; ele só buscava, é verdade, a glória de Deus e o bem de sua paróquia, mas sua maneira de agir não concordava com o espírito de nosso Instituto. Aconteceu que, muitas vezes, Madre Júlia viu-se forçada a ceder às suas instâncias, quer admitindo postulantes em quem ela não percebia sequer vocação para a nossa Congregação, quer transferindo Irmãs, de emprego e de casa. No dia 2 de julho de 1814, a superiora de Nouveau-Bois, Irmã Catarina Daullée, faleceu; Irmã Maria foi designada para substituí-la e permanecerá à testa desta comunidade até 1838. Após breve estada em Zele, ela retornou a Gand, até sua morte. Irmã Maria participou dos preconceitos da Irmã Catarina Daullée, concernentes à atitude, falsamente interpretada, de Madre Júlia, com relação a M. Pisani de la Gaude (ver nota adiante) a propósito do Catecismo universal. Elas reprovavam, também, em sua fundadora, seus horizontes largos e elevados (ver Catarina Daullée), sob pretexto de uma rigidez inflexível no apego a certos usos observados em Amiens, no começo. Não contentes de criticar, secretamente, a conduta de sua Madre, deixavam transpirar seu descontentamento no exterior. Madre Júlia precisou recorrer à autoridade de M. Le Surre, secretário do bispo (ver cartas 340, 341, vol.6). Ela arrastou também, para este erro, sua jovem irmã, Cisca, chamada Irmã Gertrudes. Por ocasião da morte de Madre Júlia, todos os olhos se descerraram e as Irmãs Steenhaut reconheceram seus erros (ver nota adiante). Irmã Maria faleceu em Gand, a 9 de dezembro de 1844.
STEENHAUT FRANCISCA, DlTA CISCA (1791-1821) Nove anos mais moça que sua irmã, Maria, ela tinha quinze anos quando encontrou Madre Júlia pela primeira vez, a 28 de agosto de 1806. Neste mesmo ano, a 26 de novembro, Madre Júlia, passando por Gand, para ir a St-Nicolas, recebeu Cisca em presença do bispo. Como Júlia e Cisca, ajoelhadas diante dele, pediam-lhe a bênção, ele pousou uma mão 377
sobre a cabeça da fundadora, outra sobre a da jovem, dizendo: Mãe, eis vossa filha; filha, eis vossa Mãe. A mãe e a filha se abraçaram e, desde então, contava Cisca, eu senti uma viva afeição por nossa Madre, que nada neste mundo dela me poderia separar. Madre Júlia escrevia, neste mesmo dia, à Madre Blin (carta 43, vol.1): Creio que não vos levarei mais do que uma (postulante), com a qual minha boa pequena Irmã Maria ficará muito admirada, porque é sua irmã, Francisca, que, provavelmente partirá comigo, a menos que venha a mudar de ideia. Apresentei-a, hoje, ao senhor bispo, que muito se alegrou com suas disposições. Quando Madre Júlia teve que deixar Amiens, por ordem do bispo e levar todas as suas filhas, foi feita exceção com Cisca - que já se chamava Irmã Gertrudes - que o Padre de Sambucy estimava muito e na qual tinha muitas esperanças para o futuro. Madre Júlia disse a M. Cottu: Ela não quererá ficar, estou certa. A uma intervenção de Madre Blin, ela acrescentou: Eu vos prometo de deixá-las inteiramente livres. Esta jovem Irmã de dezessete anos sofreu os assaltos repetidos de M. Cottu, do Padre de Sambucy, de M. Demandolx; a todos os argumentos, lisonjeiros, aterradores, ela só tinha uma resposta obstinada: Eu seguirei minha Madre. Durante vários dias, voltou-se à carga, sem resultado. A 15 de janeiro de 1809, um primeiro comboio partiu, levando Madre Júlia com cinco Irmãs, das quais a mais jovem, que era Cisca. O frio era rigoroso e a viagem durou uma semana inteira; a geada sucedendo a neve, os cavalos não podiam sequer avançar. Cisca revia, com alegria, seu país e fazia com que as companheiras admirassem as vastas planícies e os velhos campanários do país natal. Irmã Gertrudes fez profissão a 9 de setembro de 1810, em Namur. Em 1814, M. Pisani de la Gaude convidou Madre Júlia a fundar uma escola e um pensionato em Gembloux. Esta casa teve como mestra, no pensionato, e um ano mais tarde como superiora, a Irmã Gertrudes. Simples e mortificada, tão recolhida que não desviava nunca seu pensamento da presença de Deus, de índole amável e alegre, foi favorecida por graças extraordinárias e até êxtases, um dos quais foi atestado por seu confessor e dois médicos.
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Irmã Gertrudes esteve, no entanto, entre as Irmãs que fizeram oposição à sua Madre, nos seus últimos anos de vida. O que mais dolorosamente tocou o coração de Madre Júlia, escreveu Madre São José, foi de ver que suas filhas prediletas entraram nessa intriga contra sua pessoa e sua autoridade. Após a morte da fundadora, quando essas Irmãs desgarradas reconheceram seus erros, Madre São José fez com que Irmã Gertrudes escrevesse seus sentimentos e seu pensamento sobre Madre Júlia. Não obstante a grande estima e elevado conceito que eu tinha sobre a virtude de nossa querida Madre, o demônio, invejoso, sem dúvida, da glória que dela advinha para Deus, e do proveito espiritual de que eu usufruía desta grande confiança, fez nascer em meu espírito algumas confusões, fundamentadas em certas ações exteriores que nela observava, no final de sua vida. E o que me parecia zelo outrora, apresentou-se-me como o efeito de um natural vivo e inconsiderado. O que mais aumentou a tentação, ou, melhor dizendo, o que a provocou, no início, foi que algumas Irmãs me falaram de suas próprias dúvidas a respeito de nossa Geral. Vendo-lhes a firmeza de sentimentos, acreditei haver presunção de minha parte, se me julgasse mais esclarecida do que elas, o que me levou a admitir tudo quanto diziam. Então, impelida, sem dúvida, pelo demônio, que me prendeu em suas malhas, por esta falta e pretendida desconfiança de mim mesma, eu mesma confirmei a opinião de algumas, pelo relato destas coisas. Tudo o que posso dizer, é que eu tinha a melhor das intenções do mundo e que teria mesmo pensado faltar à graça, se me tivesse contentado de ver e de pensar tudo isso, sem falar nada. Hoje, que escrevo estas coisas, após a morte de nossa digna Madre, vejo aquilo tudo sob outro enfoque; pois, afinal, tais coisas aparentes, que ocultam coisas tão extraordinárias, servem para embelezar sua vida repleta de virtudes, bem raras no gênero. Apesar do sofrimento que deve ter-lhe causado esta afronta de suas filhas, ela demonstrava a maior calma e não se justificava, nem por uma coisa, nem por outra; mas tendo tomado a peito a glória de Deus e a propagação do Instituto, ela usou os meios mais adequados para fazer amar, não a si, mas a verdade. Quanto mais eu penso em sua vida, mais eu me convenço de que ela era animada do espírito de Deus. Irmã Gertrudes pediu a Deus a graça de passar, na vida religiosa, tantos anos quantos ela havia vivido no mundo; e, de fato, religiosa aos quinze anos, faleceu aos trinta. 379
Em sua última doença, teve que enfrentar atrozes sofrimentos, os quais não alteraram sua serenidade de ânimo, nem sua filial confiança em Deus. Faleceu em Gembloux, a 18 de março de 1821. Os habitantes, em seu reconhecimento ingênuo, afixaram no catafalco, no dia dos funerais, esta tocante inscrição: Gertrudes, nós temos saudades de ti. Seus restos repousam na abadia do antigo cemitério dos monges. Seu elogio fúnebre está resumido nesta reflexão de Madre São José, a segunda Superiora Geral: Gembloux perdeu sua fina pérola, que não será substituída facilmente.
STEENHAUT CATARINA (1795-1815) Nasceu em Gand, a 16 de abril de 1795; com a idade de quize anos, seguiu suas duas irmãs mais velhas, na congregaçao das Irmãs de Nossa Senhora, onde recebeu o nome de Irmã Terésia. Enviada a Gembloux, junto de sua irmã, Irmã Gertrudes, era a alegria da comunidade, pela amabilidade de seu caráter. No mês de janeiro de 1814, o exército dos aliados contra Napoleão atravessou esta pequena cidade, quando um destacamento de cossacos penetrou na abadia onde viviam as Irmãs, atraídos pela esperança de algum espólio. A jovem Irmã, à vista desses terríveis soldados, foi tomada de tão grande pavor, que caiu gravemente enferma. Madre Júlia escreveu, em julho de 1814, à Irmã Juliana, em Zele: Rabisco estas coisas às pressas; estou mandando para Gand a pobre pequena Irmã Terésia, irmã da Irmã Maria e da Irmã Gertrudes, que teve um sobressalto em Gembloux, quando da passagem das tropas. Enviamo-la à sua cidade natal, para ver se a mudança lhe fará bem. Em meu retorno a Gand, visitei estas três casas – Jumet, Fleurus e Gembloux, que tinham sofrido a passagem das tropas – e encontrei esta pequena em lastimável estado; no entanto, ela ainda entra em aula. Apesar dos ternos cuidados de que foi alvo, por parte da Irmã Maria, sua irmã mais velha, que a criara, ela morreu, com dezenove anos de idade, a 9 de fevereiro de 1815, após ter tido o consolo de poder emitir os votos. 380
THOMAS ANTÔNIO (1753-1833) Nascido em Sotteville, na Normandia, a 23 de setembro de 1753, doutor na Sorbonne, vigário em St-André-les Arts, em Paris; era um padre cheio de ciência, de mérito e de virtude. Foi banido de Paris pela Revolução. Devido à sua recusa de prestar o juramento cismático, foi feito prisioneiro em Arras, pelo feroz Lebon, e condenado como refratário. Uma doença grave fez prorrogar a execução, e a morte de Robespierre, tendo provocado a queda do cruel procônsul, padre Thomas conseguiu libertar-se da prisão. Sua liberdade continuava não menos ameaçada, pois as perseguições contra os padres católicos não haviam cessado. Disfarçado, ocultando seu nome e sua condição de eclesiástico, exercia secretamente seu ministério em Amiens. Madame Baudoin, que o conhecera em Paris, encontrou-o, falou-lhe de Júlia e o levou para junto da enferma. Tornou-se seu confessor e, diariamente, infatigavelmente, levava-lhe o pão eucarístico. Em breve, foi convidado a residir no Hotel Blin, e o quarto de Júlia transformou-se em oratório, onde o santo sacrifício era oferecido, secretamente, todos os dias. Veio a ser o diretor espiritual do pequeno grupo das jovens que se reuniram a Júlia e a Francisca para formarem uma pequena comunidade religiosa. Foi ele que lhes deu um pequeno regulamento. Em 1796, Francisca Blin fez, sob a direção deste santo padre, um retiro de trinta dias, segundo o método de Santo Inácio. Padre Thomas, caracterizado pelo seu zelo, foi objeto de intensas buscas, enquanto o culto católico era ainda legalmente interditado na França. O Hotel Blin foi, por três vezes, visitado e vasculhado, em vão. Também a 16 de junho de 1799, no início da noite, Padre Thomas, acompanhado de suas amigas, partiu para Bettencourt, refugiar-se no castelo que fora posto à sua disposição por Gertrudes Doria. A Concordata de 1801, devolvendo a liberdade religiosa, permitiu a organização de uma campanha de renovação moral e cristã, levada a efeito pelo pequeno grupo, na paróquia privada de seu pastor.
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O retiro do Padre Thomas foi, em breve, conhecido, e visitantes apresentaram-se em Bettencourt, notadamente o Padre Varin, que aí se deteve várias vezes e pôde conhecer Madre Júlia sempre enferma. Ele percebeu, contra toda aparência, que ela estava destinada a trabalhar pela glória de Deus de uma maneira bem ampla. Ao mesmo tempo, conquistou, para a ideia, o Padre Thomas. Em 1803, este deixou Bettencourt e entrou na sociedade dos Padres da Fé, dirigida pelo Padre Varin, onde foi destinado à pregação de missões. Teve, no entanto, autorização para continuar seu ministério junto à sua pequena família espiritual. Foi assim que passou a residir na casa da rua Nova e foi uma das primeiras testemunhas da cura miraculosa de Madre Júlia; chorou de alegria pelo fato. Com o Padre Enfantin, dava lições às jovens Irmãs, a fim de torná-las cada vez mais eficientes no ensino. Aquele que, havia dez anos, fora o pai espiritual e o amigo devotado do pequeno grupo, deixou Amiens, a 10 de setembro de 1805, para participar das missões no oeste e no sul da França. Desde 1810, Madre Júlia obteve do Padre Thomas, a promessa de que viria a Namur, anualmente, pregar os Exercícios de Santo Inácio às Irmãs das diversas casas reunidas, para as férias, na casa-mãe. Por ocasião desses retiros, ele também dava, às Irmãs, um curso de pedagogia. Admitido em 1814 na Companhia de Jesus, retomou a sua atividade de missionário; nomeado superior da casa de Laval, percorreu, durante mais de quinze anos, as principais cidades da França, com diversos confrades seus. Após a morte de Madre Júlia, Padre Thomas escreveu à Madre Blin, a 6 de maio de 1816: Uno, prazeirosamente, minhas preces às vossas, para o repouso da alma de nossa boa Madre, ainda que suas raras qualidades nos dêem a esperança de que ela esteja com seu Deus. Jamais esquecerei os grandes favores que me prestou, durante os anos tempestuosos que juntos passamos. Considerei-a sempre como uma pessoa de bem e jamais me arrependerei de ter seguido aqueles conselhos que me deu, de tão boa vontade. Não conheço outra 382
pessoa a quem dava mais favores; assim, peço, de todo o coração a Deus que a recompense, por mim e por tantos outros que encontraram, junto dela, conselhos salutares. Admiravam-se, no Padre Thomas, a candura, a simplicidade, a amenidade de caráter, unidos à ciência e ao devotamento. Faleceu em Laval, a 23 de março de 1833. Padre Varin, então Provincial da França, de passagem a Laval, anunciou esta morte à Madre São José: Escrevo no quarto e sobre a mesa do respeitável Padre Thomas, sim, de quem temos saudade! Oh! quantas caras lembranças ao coração se prendem à época em que, pela primeira vez, conheci o Padre Thomas! Foi em Bettencourt... e a boa Madre Júlia... e sua fiel companheira... e todas as sequências desta santa união, formada e abençoada pelo Senhor! Não, jamais estas lembranças se apagarão de meu espírito, porque são a memória do coração. (13 de abril de 1833).
TROUVELOT Antigo militar, proscrito pela Revolução, depois, sucessivamente, pároco em Plessis-St-Just, decano de Ressons-sur-Matz, arcipreste de St-Jacques, em Compiègne. Foi um conselheiro precioso de Madre Júlia, nas mais críticas circunstâncias e professou sempre, por ela, a mais profunda estima. Havia dado um sinal desta estima singular, preparando postulantes para o noviciado de Namur. Retornando de Paris, em junho de 1809, Madre Júlia se deteve em Plessis-St-Just para aí buscar algumas postulantes que M. Trouvelot havia reunido. Ela escrevia, a 4 de junho, à Madre São José: Parto com quatro ou cinco postulantes de Plessis. M. Trouvelot vos diz coisas lindas, e a toda a comunidade; ele é bom por excelência. Após a morte de Madre Júlia, ele ficou em Cuvilly, para lá recolher lembranças de contemporâneos (ver Testemunhos, no final de Memórias).
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Seu sobrinho, o abade Trouvelot, pároco de Morsain, depois de Vicq-sur-Aisne, escreveu, a 26 de setembro de 1822: Sei e posso afirmar que meu caro tio tinha uma profunda veneração pela reverenda Madre Júlia Billiart e sempre falava nela com particular estima.
VAN DE PUTTE MARIA TERESA (1793-1858) Nascida em Gand, foi encaminhada à Madre Júlia por um vigário muito zeloso e devotado à casa de Nouveau-Bois. Madre Júlia escreveu, a 22 de julho de 1812, à Madre São José, falando da nova postulante: Aquela que deve vir comigo é uma senhorita de família muito honesta. Uma prima, que lhe serve de mãe, pediu que a acompanhasse, o que achei não dever recusar... Esta jovem é de bom porte e de boa aparência; saiu de um pensionato onde adquiriu o gosto pela vida religiosa. Maria Teresa Van de Putte foi admitida aos votos a 12 de setembro de 1813, com a idade de vinte anos e foi, desde o início, o que deveria ser durante toda a vida, uma religiosa modelar. Estimou a congregação como sua mãe e amava-a como sua filha. A ela se dedicou de corpo e alma. Em 1817, passou do pensionato de Namur à fundação de Thuin. Sucessivamente, mestra geral e superiora desta casa, atraiu a estima de todos. Madre São José apreciou-a desde cedo e não pôde caracterizá-la melhor, do que com estes termos: Ela tem alguma semelhança com a preciosa amiga que eu perdi (Madre Júlia), mas sua saúde não é forte. (Carta a Ir. St-Jean, de 4 de março de 1823). Quando Irmã Anastácia, superiora de Namur e assistente da Madre São José, faleceu, em 1823, a cofundadora chamou Irmã Maria Teresa para junto de si, a fim de substituir sua assistente. Esta respondeu à expectativa de sua superiora; foi seu braço direito na direção do Instituto e sua inteligente e atenta secretária na espinhosa correspondência provocada pelas intrigas do governo de Guilherme I, da Holanda.
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Irmã Maria Teresa, sempre doentia, viu seu estado agravar-se e, em 1833, Madre São José teve que nomear uma sub-assistente, Irmã Bórgia, que assumia, ao mesmo tempo, a direção do pensionato de Namur. Em breve surgiram confusões muito graves entre as Irmãs e no pensionato sob a influência nefasta da sub-assistente e a comunidade de Namur se dividiu em dois grupos: as Irmãs fiéis à Madre São José e as que aceitaram as ideias revolucionárias da Irmã Bórgia. Quando a causa do mal se revelou aos olhos da Madre São José, ela viu o remédio e aplicou-o imediatamente, com uma determinação viril. A 24 de junho de 1835, a superiora de Jumet, Irmã Inácia Goethal foi chamada a Namur e, após longas conferências, Madre São José nomeou esta última, assistente em lugar de Irmã Maria Teresa, sempre enferma. Irmã Bórgia, seguida de duas adeptas, deixou a congregação, não podendo aceitar de ter sido suplantada. Irmã Maria Teresa, feita superiora da casa mãe, parecia encontrar um pouco de saúde. Escrevia a Irmã St-Jean, a 27 de outubro de 1835: A união entre nós três, nossa cara Madre, Irmã Inácia e vossa serva, é tão perfeita quanto se possa imaginar: mesmo espírito, mesmo objetivo, mesma vontade, eis a nossa divisa. Após a morte da terceira Superiora geral, Madre Inácia Goethals, que o foi de 1838 a 1842, Madre Maria Teresa foi eleita a quarta superiora geral, depois de abdicar por alguns meses, por motivos de saúde. Durante este curto governo, ela fundou a casa de Ixelles-lez-Ruxelles e a de Willamette, Orégon, que será transferida, mais tarde, para a Califórnia. Ela morreu em Bruxelas, a 8 de dezembro de 1858.
VAN SCHOUWENBERGHE Secretário do bispo de Gand, o príncipe-bispo Maurice de Broglie, este padre sempre foi um conselheiro devotado para Madre Júlia. Ela teve uma primeira entrevista com ele por causa da fundação de St-Nicolas, no final do ano de 1808. O prelado, tendo sido prevenido desfavoravelmente a respeito da fundadora, pelo Padre de Sambucy, M. Van Schouwenberghe
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pediu uma entrevista para ela, na esperança de que um diálogo dissipasse as prevenções do bispo, o que, efetivamente, aconteceu. Mais tarde, em 1810, ele foi nomeado superior eclesiástico das Irmãs, pelo bispo de Broglie. O novo superior, de vez em quando, convidava Júlia à mesa do bispo, para grande confusão desta. Quando Madre Júlia foi motivo de suspeita, até por suas próprias filhas de Gand, com relação à atitude, falsamente interpretada, do bispo de Namur, a quem ela defendia, Júlia escreveu uma carta explicativa a M. Le Surre, vigário geral, em que ela declara: Senhor Van Schouwenberghe sempre tem sido meu conselheiro, nas crises mais difíceis; ele sempre gozou de minha confiança e eu, em tudo quanto faço, sou dirigida, graças a Deus, por seus conselhos. Ele sempre tomou sua defesa, quando foi atacada, em diversas oportunidades, devido a relatos tendenciosos do Padre de Sambucy ao bispo de Gand.
VARIN JOSEPH-DESIRÉ (1769-1850) Era o mais jovem dos três filhos de um Presidente na corte real do Parlamento de Besançon. Veio ao mundo a 7 de fevereiro de 1769, no mesmo ano em que nascia Bonaparte, em Corse. Seu pai, Varin d’Ainvelle, tinha-lhe dado o nome de uma de suas terras e foi assim que, antes de sua entrada na vida religiosa, levava o nome de Varin de Solmont. Embora sentisse um grande atrativo pela carreira das armas, entrou no seminário de St-Sulpice, em Paris, onde estudou sob a orientação do sábio e santo M. Emery, em companhia de dois príncipes de Broglie, Charles e Maurice - futuro bispo de Gand -, dos MM. de Villèle, de Tournely, de Sambucy e de Grivel. Terminou o segundo ano de teologia quando estourou a Revolução. Refugiou-se na Suíça, com sua família. Aí encontrou vários cavalheiros que estavam em Coblentz, para se engajarem no exército dos príncipes franceses; seguiu-os. Atuou nas campanhas de 1792 e 1793, na armada de 386
Condé. Retornou à Suíça, mesclando-se à vida mundana dos emigrados, depois foi prestar serviço na armada do príncipe de Cobourg. Numa carta à sua irmã, Madame de Chevroz, datada de 28 de julho de 1774, ele conta como, chamado pelo Marechal de Broglie para ir a Anvers, encontrou, em Venloo, seus dois antigos amigos, os padres Charles de Broglie e Eleéonor de Tournely. Este, com dois outros padres, haviam formado uma sociedade religiosa, cujo objetivo era restabelecer a Companhia de Jesus. Transtornado com este encontro, decidiu partir no dia seguinte com eles, por Munich, vendo nisso a vontade de Deus: era o início da Sociedade do Sagrado Coração. Após cinco semanas de viagem, chegaram em Augsbourg, onde Joseph Varin apreendeu a notícia da morte de sua mãe que, tendo entrado na França, perecera corajosamente no cadafalso, dia 17 de julho de 1794. Foi lá que começaram seu noviciado, com um retiro, sob a direção do Padre Tournely e se consagraram, por um voto especial, ao Sagrado Coração de Jesus e ao santíssimo Coração de Maria, a 15 de outubro. Acrescentaram o voto de obediência ao Soberano Pontífice e seguiram, ponto por ponto, os regulamentos da Companhia de Jesus. A 12 de março de 1796, Padre Varin recebeu o sacerdócio das mãos de Clément Wenceslas. Obrigados a fugir diante dos exércitos franceses da República, fixaram-se em Hagenbrun, perto de Vienne, onde de Tournely morreu, em julho de 1797. Padre Varin sucedeu-o; como superior, eleito pela maioria absoluta dos sufrágios: tinha vinte e oito anos. Era uma alma de fogo, cheia de elã, de energia e de sensibilidade. Os Padres da Fé de Roma, informados da existência dos Padres do Sagrado Coração trocaram uma correspondência, seguida destes, em vista de obterem uma fusão das duas Sociedades. Por uma extrema desconfiança de si mesmo, Padre Varin aceitou a proposta e se pôs sob a jurisdição deste Padre Paccanari, espírito aventureiro, caráter dominador, consciência duvidosa que, superando sua confiança, fez com que lhe fosse dada a condução das duas Sociedades fundidas, juntamente com o nome de Padres da Fé. A reunião se deu a 18 de abril de 1799. 387
Enviado a Paris, Padre Varin e seus dois companheiros foram hospedados em casa da mulher de um marceneiro e se dedicaram ao hospício de Salpétrière, levando vida pobre e laboriosa. Antes do fim do ano, eles já haviam reunido uma dezena de padres. Como haviam entrado na França sob um disfarce, sem passaporte e conhecidos como emigrados, foram, dentro em pouco, vistos como suspeitos. A Concordata de 1801, tendo cessado a perseguição, eles puderam dedicar-se livremente às obras apostólicas. Foi então que, tendo admitido na Sociedade o Padre Luís Barat, Padre Varin tomou conhecimento de Madalena Sofia Barat, com a qual ele fundará a Sociedade das Damas do Sagrado Coração. Com seus companheiros, o Padre Varin estabeleceu vários colégios: em 1801, em Lyon; em 1802, em Amiens, onde o haviam chamado Padre Corbie e M. Louis Sellier, que desejavam entregar-lhe seu colégio. Eles organizaram também missões com vistas à recristianização da França. Pregaram-nas em Tours, Amiens, St-Valéry-sur-Somme e Abbeville. Nestas três últimas cidades, sua ação foi poderomente auxiliada por Madre Júlia e suas Irmãs. Com efeito, tendo ido diversas vezes a Bettencourt, para lá visitar o Padre Thomas, Padre Varin encontrou-se com Júlia Billiart, sempre enferma. E este homem, de uma experiência consumada nas coisas espirituais, descobriu, em breve, os tesouros de graça encerrados nesta alma simples e generosa. Contra toda aparência, ele a preveniu de que estava destinada a trabalhar pela glória de Deus de uma maneira mais ampla, como não havia feito ainda. Sabendo da extraordinária inteligência que Júlia, desde sua juventude, mostrara no ensino do catecismo, não hesitou em propalar que ela era chamada a devotar-se à educação da juventude e, da parte de Deus, ordenou que a isso se aplicasse. Na fundação do Instituto, ele teve um papel preponderante: redigiu as primeiras Regras provisórias, recebeu os primeiros votos, a 2 de fevereiro de 1804. No ano seguinte, os Padres Thomas e Enfantin, tendo deixado Amiens, deixaram Padre Varin só, encarregado do Instituto de Nossa Senhora. Ocupou-se da organização interna e redigiu uma Regra mais extensa, embora ainda não definitiva. Os pontos principais deste esboço foram conservados nas Constituições aprovadas pelo Papa Gregório XVI, 388
em junho de 1844. A 15 de outubro de 1815, ele presidiu a profissão de Madre Júlia e de suas companheiras, onde a fundadora tomou o nome de Irmã Santo Inácio, para deixar bem evidente qual o espírito que a animava. Padre Sellier escreverá, mais tarde: Padre Varin dirigia a empresa de Madre Barat, apoiando singularmente os planos de Madre Júlia e esmerava-se em os realizar. Estas duas Instituições cresciam juntas, sob a direção do Padre Varin, que pode ser considerado fundador das Damas do Sagrado Coração e o impulsionador das Irmãs de Nossa Senhora. Durante uma estada em Roma, em 1802, Padre Varin percebera que Paccanari mostrava pouco ardor em se reunir aos jesuítas; ademais, outras impressões desagradáveis que tivera, o levaram a esta conclusão: este homem não é conduzido pelo espírito de Deus. Após ter implorado as luzes do Céu durante vários dias, escreveu ao cardeal legado, expondo-lhe a situação; este respondeu-lhe que se separasse de Paccanari. Esta grave decisão foi tomada em 21 de junho de 1804. O Papa Pio VII, vindo a Paris para a sagração de Napoleão, ratificou plenamente esta decisão. Colégios, seminários ainda foram fundados e a obra das grandes missões desenvolvia-se mais e mais. Estes sucessos provocaram o despeito do partido anti-religioso, e Fouché obteve de Napoleão, a ordem de dissolução da Sociedade, que foi promulgada a 1º de novembro de 1807. Padre Varin, sucumbido pela dor, retirou-se a Paris, onde, em breve, recebeu a ordem de partir para Besançon, dentro de vinte e quatro horas. Lá, ele não podia sair da cidade ou fazer qualquer exortação, sem ter, antes, obtido a autorização do prefeito. Residia em casa de Madame de Chevroz, sua irmã, onde recebia, clandestinamente, padres, dava retiros, dirigia religiosas, visitava os hospitais. Contribuiu, também, à fundação das Irmãs da Santa Família de Besançon e lhes deu uma casa que possuía nesta cidade. Em 1817, estas religiosas estabeleceram-se em Amiens. Tendo diminuído a vigilância policial, Padre Varin visitou seus antigos confrades e empreendeu esforços, no sentido de se filiar aos Jesuítas, cujo Padre geral estava na Rússia. Este incumbiu o Padre de la Clorivière do restabelecimento da Companhia na França. Padre Varin e seus companheiros foram recebidos a 19 de julho de 1814.
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Dois anos mais tarde, tendo terminado seu noviciado, pronunciou seus votos, depois foi admitido à profissão solene de quatro votos, a 5 de abril de 1818. A 2 de março deste mesmo ano, ele escrevera à Madre São José: A lembrança do berço de vossa Congregação fez com que ela se me tornasse tão cara, que diariamente a tenho no coração e no espírito; todos os dias apresento-a ao Pai celeste em união com seu divino Filho, durante o santo sacrifício da Missa. Nomeado superior da casa de Paris, desempenhou esta função até 1821, depois presidiu à inauguração do colégio de Dôle, em 1823 e foi colocado novamente na direção da casa de Paris, em 1825; aí permaneceu até 1833. Desempenhou também, em diversas etapas, as funções de padre espiritual e de vice-provincial. Em toda parte, teve o dom de saber conciliar o respeito e a amizade. Um homem se caracteriza por suas palavras habituais, que são o eco do seu pensamento. As de Padre Varin eram: Coragem e confiança! Como Deus é bom! Estas duas frases estavam sempre presentes em suas cartas. Faleceu tranquilamente em Paris, a 21 de abril de 1850, na idade de oitenta e dois anos.
DE VILLARET JEAN, CRISÓSTOMO (1739-1824) Bispo de Amiens, Beauvais e Noyon, tomou posse do cargo em 1802. Tendo ordenado o fechamento das capelas particulares, fez exceção ao oratório da Madre Júlia. Realmente, tendo vindo a Bettencourt para administrar o sacramento da confirmação, ali permanece alguns dias, no pequeno castelo de Mademoiselle Doria, com o Padre Thomas e suas duas companheiras. Comovido pelo estado de enfermidade de Madre Júlia, permitiu ao Padre Thomas que continuasse a rezar a missa junto da enferma e essa autorização prolongou-se, após seu retorno a Amiens. M. de Villaret encorajou vivamente os inícios da obra catequética de Madre Júlia, antes de partir para organizar as igrejas de Piemonte, de 390
acordo com a bula que acabava de ser publicada pela Santa Sé. Para isso, foi transferido a Casale, em 1804. Protegeu, também, o colégio de Amiens, dirigido pelos Padres da Fé, no momento das primeiras intrigas governamentais, certificando a lealdade destes Padres para com o Imperador. Em 1806, Napoleão quis estabelecer o monopólio do ensino, exigindo, para todo estabelecimento, a autorização do chefe da Universidade imperial. Mas, habilmente, não querendo retirar à Igreja a incumbência que tinha junto ao ensino, havia escolhido, como grande-mestre, um católico convicto, M. de Fontanes, e como chanceler, M.de Villaret. Foi assim que este último interveio junto ao grande-mestre da Universidade, para reconduzir Padre Sellier à direção do colégio de Montdidier, de onde havia sido expulso. M. de Villaret demitiu-se do encargo de Casale, em 1814, para retornar à França; faleceu em Paris, em 1824.
VINCENT, MADAME Enquanto Padre Enfantin pregava em Bordéus, em 1806, algumas jovens vieram pedir-lhe que as conduzisse à vida religiosa. Após alguns meses de formação, elas aderiram à Madame Vincent. Era uma virtuosa dama, conta o Diário de Madame Barat, que, com algumas companheiras, mantinha uma escola para pobres. Deixando Bordelais, Padre Enfantin deixara-lhes uma Regra análoga à que o Padre Varin havia dado ao Sagrado Coração de Amiens. Tendo ouvido falar elogiosamente das Irmãs de Nossa Senhora de Amiens, através dos Padres da Fé, M. de Aviau, bispo de Bordéus, escreveu à Madre Júlia, a fim de convidá-la a vir à sua cidade, para preparar o ingresso deste grupo em sua congregação. Madame Vincent, entretanto, adotara a Regra das Irmãs de Nossa Senhora, a qual havia sido fundada pela Bem-aventurada Jeanne de Lestomac, no Século XVII. 391
Madre Júlia, que havia partido a 25 de julho de 1807, desembarcou, no dia 5 de agosto seguinte em Bordéus, após uma viagem de trezentas léguas. Encontrou uma comunidade de umas vinte Irmãs e uma escola com umas trinta alunas. Madame Vincent, escreveu a fundadora, é uma brava senhorita de muito bom senso... Estou satisfeita com ela; será uma pessoa exata na observância do regulamento. A 8 de setembro, M. d’Aviau presidiu a tomada de hábito de dezessete religiosas. Dia 13 de setembro, Madre Júlia abriu uma segunda escola em Chartron, em Bordéus, e voltou para Amiens, em inícios de novembro. Foi então que explodiu o drama de Amiens: Madre Júlia não pôde reassumir sua condição de fundadora e foi-lhe proibido que se ocupasse com as outras casas. Entretanto, Madre Vincent escrevia sua carta, expondo suas dificuldades. Também, havia sido decidido que Madre Júlia retornaria a Bordéus, para aí redigir, com Madre Vincent, as constituições das Irmãs de Nossa Senhora. Acabo de escrever à Madre Vincent, para que tenha paciência... que, quando as coisas estiverem um pouco mais organizadas em Namur, espero ir vê-la, para as constituições que deseja... O bispo de Namur está de acordo de que as constituições se façam em Bordéus; esse apoio foi espontâneo, sem que nada fizesse, de minha parte, para obtê-lo. (Carta à Madre São José, de 1º de fevereiro de 1809). E noutra carta, endereçada à mesma, de 24 de fevereiro: Madre Vincent me pede, com trompa e com grito, para que sejam feitas as constituições... diz também que é preciso que lhe dê uma superiora... que a de Chartron está sempre doente, etc. Constatando todas essas dificuldades, M. d’Aviau manifestou o desejo, em fins de 1811, de ver as religiosas de Nossa Senhora de sua diocese livres de qualquer outra dependência, que não a da casa principal de Bordéus. Mas desejava que as Irmãs de Nossa Senhora de Namur e de Bordéus se escrevessem mutuamente, para conservar os laços de uma santa amizade. Madre Júlia empenhou-se em deferir este desejo, dando-se conta de que, tal como as distâncias, as relações eram difíceis, principalmente sob o governo suspeito de Napoleão. Estas religiosas desenvolveram-se durante alguns anos; depois, Madre Vincent e suas irmãs tiveram o desejo de reunirem-se às Damas do 392
Sagrado Coração, que acabavam de retomar, em Bordéus, um estabelecimento para os pobres, sob a direção de Madame de Lalanne. Neste seu empenho, elas acreditavam avançar as negociações, assumindo as Regras, o hábito e o nome da Sociedade; era uma usurpação, contra a qual aconselhou-se Madre Barat a que pedisse a intervenção de M. Fraysinous, então ministro dos cultos. Madre Barat escreveu, a propósito: Acredita-se e repete-se que devemos garantir nossos direitos. Oh! é assim que a gente se engana... Melhor seria reunir-se! Ela foi pessoalmente a Bordéus, em 1825, para realizar a reunião. Em 1832, as duas casas de Bordéus fundiram-se em uma, no bairro de Gandiran. Madre Vincent colhia, enfim, o fruto de seus esforços.
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Apêndice DOCUMENTOS DIVERSOS ALUSIVOS À VIDA DE SANTA JÚLIA BILLIART AOS QUAlS AS “MEMÓRIAS” FAZEM REFERÊNCIA Padre Eugênio Griselle, da companhia de Jesus, que revisou, em 1906, a 2ª edição da Vida da Venerável Madre Júlia Billiart, do Padre Ch. Clair, Paris, Savaère, anotava o seguinte:
Somos levados a pensar que a leitura das cartas da Bem-aventurada, das quais se falou em sua vida, outros documentos ‘primitivos’ que lhe dizem respeito, como os ‘Anais’ de seu Instituto, as ‘Memórias’ de Madre Blin de Bourdon, seja qual for o amplo uso que delas tenham feito seus primeiros historiadores, só poderiam ser proveitosas à sua memória. Este desejo tem sido, em grande parte, realizado: 454 cartas da santa, piedosamente conservadas, têm sido editadas pela Gregoriana (Roma, 1976), e eis, presentemente, as Memórias. Padre P. Griselle acrescentava: O apêndice natural desta história tão surpreendente será, realmente, a publicação completa destas cartas autógrafas de M. d’ Aviau du Bois de Sanzay, de M. Pisani de la Gaude, e outras correspondências análogas, cujo valor histórico, a par da própria data, por mais particulares que tenham sido os assuntos tratados, não poderia escapar a ninguém. Poucas fundadoras, mesmo as mais célebres, oferecem, em sua vida, o mesmo recurso para a história eclesiástica de sua época. 395
Eis a realização deste desejo. Os autógrafos de todos os documentos que seguem são conservados nos arquivos do Instituto, com exceção de dois, cujos originais são conservados nos arquivos do bispado de Gand. CARTAS DE M. D’AVIAU DU BOIS DE SANZAY, arcebispo de Bordéus, a Madre Júlia Bordéus, 13 de março de 1809 Ser-me-ia difícil, Madame e reverenda Madre, de vos dar conselhos particulares e próprios às diversas circunstâncias em que vos encontrais e que podem variar de um momento a outro. A modéstia, a humildade, a simplicidade são vosso ornamento; com isso, pode-se contar com a assistência do bom Deus, Ele se servirá de M. de Namur para vos guiar, pois que estais em sua diocese. Esse bispo havia mostrado, também, muito interesse para com vossos piedosos e úteis estabelecimentos. Eu mesmo ficaria encantado em ter a oportunidade e os meios de vos servir. Madame Vincent e suas companheiras fazem, aqui, muito bem e são muito estimadas. Pensa-se, geralmente, hoje em dia, que, para realizá-lo de uma maneira mais segura, deve-se evitar o estardalhaço... Recomendo-me às vossas ardentes orações e às de vossas Irmãs, assegurando-vos, minha reverenda Madre, meu sincero devotamente, Arcebispo de Bordéus Bordéus, 29 de março de 1809 Vossas reflexões, minha reverenda Madre, parecem-me muito sábias; esta viagem longa, penosa e dispendiosa não podia ser, nas circunstâncias em que estamos, de grande utilidade; talvez dela até resultem alguns inconvenientes. Hospitalares, quando passarem a se dedicar ao ensino, sabereis melhor em que vos apoiar. Cuidando bem, nossas Irmãs que ensinam, ainda que provisoriamente, aplicam-se a glorificar a Deus, tornam-no conhecido, amado e servido pelas jovens e numerosas alunas. 396
Recomendo-me, minha reverenda Madre, a vós e às vossas, renovando-vos os protestos sinceros de inteiro devotamento, Ch. Fr. arcebispo de Bordéus Bordéus, 18 de janeiro de 1810 E eu também, minha boa Madre, desejo-vos felizes e santos anos. Com tantos compromissos, sem dúvida, seria mais interessante vô-lo assegurar verbalmente, mas as conjunturas não são nada favoráveis a tais viagens; é preciso que se queira o que Deus quer. Felicito a reunião de Namur, pelo sucesso de seu trabalho. Aqui, a Irmã Vincent e suas associadas nas duas casas continuam a glorificar a Deus, fazendo com que Ele seja conhecido, amado e servido; é muito edificante. As dívidas, na verdade, são uma dura provação, mas elas foram contraídas com intenção pura, e espero que a boa Providência tome conta disso. Recomendo-me às vossas orações e às de vossas zelosas companheiras, minha reverenda Madre, e vos reitero os protestos de meu inteiro devotamento, Arcebispo de Bordéus Bordéus, 21 de janeiro de 1811 Os testemunhos de vossa lembrança, na passagem do ano, minha venerável e cara Madre, fazem jus ao meu reconhecimento, pois que me asseguram que vossa caridade, de tempos em tempos, me recomenda ao bom Deus. E julgo muito indicado, em vossa carta, o caminho que mais seguramente conduz a ele, este áspero, mas real caminho da cruz. Pedi-lhe, pois, por mim, para que nele trilhe constantemente e sem me afastar ou afrouxar, seja por negligência, seja por imprudência. É também à sombra desta divisa da cruz que se sustém a casa de vossa Irmã Vincent. Comuniquei-lhe que vós me escrevestes, e disse-me que tipo de socorro ela vos pedia. Penso como vós, minha boa Madre, 397
que, para alguém se avantajar, o melhor será aguardar circunstâncias mais favoráveis. Atenho-me às vossas piedosas disposições e faço votos para que tudo contribua à glorificação de nosso adorável Mestre. Pedindo-vos orações, peço também as das almas fervorosas que vos envolvem, e permaneço, com um sincero e total devotamento, vosso mui humilde servo, (a) Ch. Fr. arcebispo de Bordéus Bordéus, 7 de fevereiro de 1811 Talvez, minha venerável Madre, quando a Irmã Vincent vos escreveu da maneira como dizeis, ela estivesse vivendo o sofrimento que a superiora de Chartron lhe causou, bem como uma outra, a quem aquela inspirava ideias quiméricas. Graças a Deus, parece que tudo voltou à ordem e cordialidade. Oportunamente, procurarei obter informações a respeito; eu penso, como vós, que o tempo não é oportuno para viagens, e longas viagens de Irmãs... Agradeço-vos, minha boa Madre, assim como às vossas dignas filhas, a esmola espiritual que tivestes a caridade de me oferecer, por ocasião da festa de São Francisco de Sales. Não vos esquecerei nunca no santo Altar. Uno-me às vossas piedosas disposições e permaneço, bem sinceramente, minha venerável Madre, vosso mui humilde servo, Ch.Fr. arcebispo de Bordéus CARTAS DE M. PISANI DE LA GAUDE, bispo de Namur Resposta à carta de Madre Júlia, de 22 de maio de 1807 (Carta 54, v. 1) Narnur, 26 de maio de 1807 Recebi, há poucos instantes, minha cara irmã em J.C., vossa carta de 22 de maio, e respondo-a o mais depressa possível, para vos testemunhar minha satisfação a respeito de vossa resolução perseverante de virdes a Namur, nos primeiros dias de julho próximo. Soube também, com verdadei398
ra alegria, que vossa associação foi aprovada pelo nosso governo; gostaria muito, se pudésseis diferir vossa partida por alguns dias, que me trouxésseis uma expedição legal do decreto imperial que aprova vossa sociedade. Vós me anunciais a chegada de três de vossas irmãs, de acordo com a resolução do Padre de Sambucy; recebê-las-ei, certamente, com muita alegria, mas nossos recursos são tão precários, que não ouso rejeitar inteiramente a oferta generosa de vossa digna Superiora. No entanto, tenho a firme esperança de que, após um mês de estadia em Namur, a importância de vossa obra, a maneira como vossas irmãs a executarão, merecer-nos-ão colaboradores caridosos que se unirão a mim, primeiramente, para vos não deixar morrer de fome, e em seguida, para consolidar esta obra. Não me falais da vinda de Padre de Sambucy; ele havia, contudo, prometido de vir ver-me, seu quarto está preparado, e a circunstância de vosso estabelecimento deve ter-lhe sido motivo pressionante para vir fazer-me relato de tudo. Peço-vos que assegureis a esse eclesiástico de meu sincero devotamento, bem como do desejo de o conhecer. Terei verdadeiro consolo de falar-lhe, conjuntamente com seu excelente irmão, que conheço há muito. Felicidades, minha cara e respeitável Irmã em J.C., para vós e as filhas que vós me destinais, os sentimentos paternos que vos tenho devotado em J.C. e com os quais sou vosso + C.F.J. bispo de Namur. Resposta a uma carta de 3 de junho, de Madre Blin Namur, 7 de junho de 1808 Recebi, minha cara filha em J,C., apenas hoje, e à noite, vossa carta do dia 3 de maio (quisestes ter escrito, sem dúvida, 3 de junho). Percebo toda a justeza dos motivos que vos fazem prolongar vossa estadia em Amiens; não deveis duvidar de que aprovo vosso pedido. Estamos acostumados aos sacrifícios; submeter-nos-emos, pois, àquele de estarmos privados de vossa pessoa, do exemplo de vossas virtudes e do fruto de vossos trabalhos de caridade. 399
Nada mais sábio, mais razoável, que vossas propostas a serem apresentadas ao bispo de Amiens. Não duvideis que este digno prelado, verdadeiramente pai para suas ovelhas, não acolha, com igual bondade e justiça, vossas diversas solicitações. Faço-o pensar como eu, a esse respeito: eu não colocaria nenhuma oposição. Felicito-me, de resto, que o clima de nossa cidade, o tom religioso que nela reina e do qual fostes testemunha, as marcas de devotamento e de afeição pastoral que me empenhei em vos testemunhar, vos induzem a retornar para junto de vossas filhas de Namur, que suspiram pela vossa volta; elas portam-se maravilhosamente. O número de pensionistas aumenta, mas a casa e que é pequena, o que lastimo. Cultivai vossa saúde, regressai, o mais breve que puderdes; trazei-nos, se possível, vossa boa Madre comum, que eu saúdo e estimo no Senhor. São os mesmos sentimentos que vos dediquei, minha cara filha em JC, e com os quais vos deixo aos pés transpassados, bem como seu Coração, por seu amor para conosco. (a) C.F.J. bispo de Namur Resposta a uma carta de 6 de julho, de Madre Júlia (Carta 78, vol. 2) Namur, 29 de julho de 1808 Sobrecarregado de afazeres, minha cara irmã em J.C., respondo, um pouco tarde, a vossa carta de 6 de julho, mas não sou menos sensível à atenção que tivestes, de nos enviar a terceira irmã (Irmã Agnes), de quem tínhamos necessidade, dada a indisposição da Irmã Xavier. Julguei entrever, em vossa carta, que ficaríeis com a Irmã São José junto de vós, e que vosso estabelecimento de Namur não a teria mais na direção. Preocupei-me com essa privação, mas meus temores desvaneceram-se, pela carta que a referida Irmã acabou de me enviar, em 21 de julho: fala-me de vossas agradáveis esperanças, das quais me falais novamente. São provações que terão fim, como todas as outras. Conheceis Namur: por mais que eu deseje ver confirmado vosso estabelecimento de Amiens, como casa principal, não estou menos satisfeito com a confiança que tendes em mim e que eu mereço. Sim, minha diocese vos é devotada - ofere400
cer-vos-á sempre um asilo, a vós e às vossas Irmãs. O local, é verdade, é um tanto pequeno, mas Deus saberá aumentá-lo, se sua vontade for a de que eu possua todo o enxame. Estou muito contente com todas as vossas filhas; espero que elas o estejam comigo. Unamos nossas preces, minha cara Irmã, e contai sempre com minha afeição em J.C. e meu inteiro devotamento. C.F.J bispo de Namur Para a Irmã São José Namur, 29 de julho de 1808 Recebi, minha querida filha em J,C., vossa carta do dia 21 de julho; ela me cumulou de alegria, informando-me de que estais sempre com a intenção de retornar a Namur, para aí dirigir a obra da educação das meninas pobres, tão felizmente iniciada sob vossa direção. É verdade que tive temores quanto à mudança de vossas disposições, segundo a carta da Irmã Júlia, que me escrevia e falava de maneira um tanto velada. Mas eis-me plenamente refeito e sinto, com isso, grande consolo. Sofreria muito, se vosso estabelecimento de Amiens não fosse conservado, porque ele deve ser vossa casa mãe. Vosso digno bispo entenderá as boas razões de vossa superiora geral, pelo menos assim o espero. Quanto à minha diocese, felicitar-se-á sempre por vos possuir, tanto vós, quanto Madre Júlia e todas as companheiras que trouxerdes. Quereria tão somente dispor de um local mais amplo; Deus nô-lo encontrará, se for sua vontade, à qual devemos sempre conformar a nossa. Conservai vossa saúde, minha cara filha; voltai o mais breve que puderdes e contai com minha afeição paternal em J.C. e meu mais completo devotamento, C.F.J. bispo de Namur
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Às nossas caras filhas, as Irmãs de Nossa Senhora reunidas em Namur Namur, 1º do Ano de 1810 Recebi com sensibilidade, minhas caras filhas em J.C., o tributo das homenagens e dos votos que houvestes por bem me dirigir, neste começo de ano. Estejais seguras, minhas caras filhas (e disso tenho confiança), de que formulo para todas vós, os mais santos sentimentos para vossa verdadeira e sólida felicidade. Peço, pois, ao bom Deus, a este Deus de bondade e de misericórdia, que conserve, no interior de vossas almas, uma paz constante, e entre vós, a união mais íntima e perseverante; que ele sustenha vossa coragem na excelente obra da instrução das jovens; que o Espírito Santo vos iluminou para que a encetásseis e sobre a qual ele difunde, tão visivelmente, suas bênçãos. Enquanto tiverdes os olhos fixos em vossas duas Madres respeitáveis, modelos de conduta que deveis imitar, é preciso esperar que o Senhor vos comunicará as graças de plena fidelidade à vossa vocação, - e então, operando assim a vossa salvação, tereis cooperado grandemente na salvação das almas de vossas jovens alunas, favorecido a diocese, a Igreja, com frutos espirituais muito abundantes, e a vosso bispo, um consolo íntimo e duradouro, que terá amenizado os sofrimentos contínuos de sua solicitude pastoral. Sou, no amor e no espírito de N.S.J.C., minhas caras filhas, vosso Bispo e vosso Pai, (a) C.F.J. bispo de Namur CARTAS DE M. MINSART, pároco de São João Evangelista, Namur, à Madre São José, em Amiens V. + Jesus Querida Irmã, Mandais perguntar às Irmãs, notícias sobre a doença de Irmã Xavier. Segundo critério médico, não há perigo nenhum e o mal reside mais no 402
imaginário, do que no real. Entretanto, percebe-se que ela definha; isto pode provir da falta de apetite, pois quando come, é à força, e não lhe faz bem. Tenho reparado também, há alguns dias, que a tosse a incomoda, embora escarre bastante. Suspendemos a aula, na semana passada e só voltará a funcionar, quando a nova Irmã chegar. Mando-a caminhar todos os dias e diariamente a faço beber vinho, três vezes ao dia. Ainda que esta boa Irmã esteja ansiosa por se unir ao seu bom Salvador e que todos os seus desejos se dirijam a Jesus Cristo, seu Esposo, e que sua vontade esteja toda em Deus e cumprir sua santa determinação seja seu maior prazer, creio, no entanto, que a doença e a morte de seus pais lhe tenham causado forte impressão, provocando-lhe a própria doença, não obstante o médico não lhe tenha descoberto a causa. Espero que não tardeis a rever vossas boas Irmãs que desejam ver-vos. Se, contudo, vossos afazeres vos prendem em Amiens mais tempo do que supúnhamos, prefiro que todo negócio seja concluído antes de regressar, para não precisar voltar uma segunda vez. Aguardando, recebei o humilde respeito de vossas filhas e de vossas caras alunas, que são sete, em breve oito. Saudações à Madre Júlia e todas as outras Irmãs e pedi-lhe que nos incluam em suas preces. Recomendo-me, também, às vossas e estou convosco unido, pela caridade, no Sagrado Coração de Jesus, cara Irmã. Vosso mui humilde servo, N.J. Minsart, vig. de S.J. Namur, 21 de junho de 1808 P.S. Parto, segunda-feira, para umas curtas férias. Se me escreverdes, estarei em Louvain, em casa de Mademoiselle Paridaens, no pensionato, em Marché des Cochons.
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Namur, 20 de julho de 1808 Cara Irmã, A última palavra da carta escrita ao nosso Reverendíssimo bispo, deixao apreensivo de que ireis me abandonar e, talvez, permanecer em Amiens. Quanto a mim, não posso crer que tal possa acontecer e que vossa Madre queira reter-vos, a não ser em vista da necessidade de vossa pessoa, para realizar a obra à qual foste escolhida. Esta notícia, contudo, inquietou-me bastante, desde que retornei de minhas férias; de outro lado, pensando, diante de Deus, na certeza que tenho de vosso retorno, baseado na suprema bondade de Deus, o qual não permitirá que me abandoneis, aí, então, encontro novamente paz em minha alma. Estamos, pois, aguardando-vos, quando vossos afazeres tiverem terminado em Amiens (...) Vosso devotado servo, (a) N.J. Minsart
Namur, 14 de agosto de 1808 Várias razões, que seria longo enumerar aqui, impediram-me de responder à vossa primeira carta, que me fala dos aborrecimentos de vossa Madre, provocados por seus Superiores. Não me surpreendo, quando se quer imprimir um espírito contrário àquele que estabelecestes e que está gravado em vossos corações, e quando se quer manter uma jovem superiora que, talvez pouco iniciada na virtude, à qual falta a experiência para dirigir as almas, conforme Deus deseja; a informação que me deu a Irmã Anastácia (digna cooperadora da obra de Deus e digna para o cargo que ocupa), em Jumet, indica-me que não vos deveis prender a um local, se a regra que querem dar-vos e contraria ao espírito da vossa e à obra de Deus que Madre Júlia tão bem iniciou e que não pode fazer rápidos progressos, sem uma proteção particular do todo-poderoso. Não sou contrário a que se recebam as cruzes, as tribulações e as penas que Deus vos envia; mas se a obra de Deus e sua glória são diminuídas com isso, creio, então, dever procurar ou404
tro lugar, para o qual Deus aponte o caminho. Lembrai-vos, ao menos, que nós não permitiremos que sejais separadas de vossa casa de Namur, sendo necessária lá principalmente neste momento, tendo em vista que a Irmã Xavier piora cada vez mais e, estando quase sempre acamada, não pode, já, atender as Irmãs e as crianças. O sacrifício que vossa ausência nos impõe, ser-nos-ia muito doloroso, se não soubéssemos que vossa presença em Amiens é tão necessária. Não percais de vista, portanto, perante o bom Deus, esta pequena casa, onde prevejo que tanto bem será feito: trezentas a quatrocentas crianças pobres, 50 pensionistas, uma grande comunidade de Irmãs que buscam a perfeição devem prender-vos a esta obra de Deus. Temos em vista três grandes casas com grandes jardins. Serão alugadas e espero, então, que o Senhor Deus faça chover crianças. Após as férias, já não saberemos onde colocar as pensionistas que se apresentam, em nossa pequena casa. Espero que o bom Deus nos dê outra. A casa de Jumet está muito bem e as lrmãs que lá estão, também. Disse à Irmã Anastácia que viesse ver-nos nas férias, juntamente com uma outra Irmã, a fim de fazer o retiro e edificar nossas Irmãs; ela gostaria muito, se Madre Júlia concordasse. Penso que sua presença edificaria nossas Irmãs e que, assim, Deus seria louvado; dizei-me o que pensais a respeito, o mais breve possível. Nossa Irmã Luísa, que julgávamos não ter vocação, acaba de se transformar radicalmente, conforme declaração de todas as Irmãs. Ela mesma reconhece que é outra: tudo lhe é fácil; ela faz tudo de boa vontade e as faltas que comete contra a regra, a penalizam sumamente. Creio que é um benefício da graça. Só posso atribuir isso à paciência das Irmãs e às orações de vossa Madre. Deus seja louvado! Aguardando vossa resposta, vossas Irmãs vos saúdam, bem como à Madre Júlia e às Irmãs, como também eu, Vosso mui humilde servo, (a) N.J. Minsart
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Namur, 26 de setembro de 1808 Cara Irmã, A Irmã Xavier, certamente, não vos deu o detalhe da casa que estamos por alugar, por trezentos florins; apresso-me, pois, em fazê-lo, recordando o desejo que tínheis de possuir uma deste tipo. Tem quatro grandes salas em cima e outro tanto em baixo; depois, dois pequenos quartos em cima e dois em baixo e mais duas grandes salas que podem conter, cada uma, umas cinquenta crianças pobres, além de outros cômodos, muito úteis às Irmãs; há um grande pátio e um jardim, mais ou menos do tamanho daquele do senhor bispo; podem-se plantar, lá, muitos legumes. Esta casa está por ser alugada e acaba-me de chegar, neste momento em que vos escrevo, a notícia de que ela nos está assegurada; ela ainda não está à venda, mas quando estiver, teremos preferência no negócio. Desejo prevenir-vos de que o bispo, que se manifestara tão contente, não parece, agora, muito satisfeito do negócio pretendido; atribuo este descontentamento ao fato de ver-se obrigado a continuar pagando o aluguel pela casa que deixaremos, mais o da nova casa. As razões que me levaram a procurar uma casa grande, não foi seguindo meros caprichos, mas que, nesta casa, poderemos receber umas duzentas crianças pobres e trinta pensionistas, se tivermos Irmãs para atendê-las. Mas, como espero, as pensionistas poderão sustentar as Irmãs que forem necessárias para os pobres, - única maneira de estabelecer uma escola de pobres em Namur, pois não é como em Montdidier, onde se encontram pessoas dispostas a se privarem de sua casa, para fazerem algo por J.C.; esta cidade é muito pobre e, no entanto, o grande número de pobres a quem se poderia dar uma instrução necessária só pode ser pensado mediante pensionistas. Como o tempo me é escasso e não podendo dizer-vos mais, termino esta minha carta, pedindo-vos que não demoreis em me responder; amanhã, talvez, escreverei novamente, se tiver novidades; aguardando com impaciência, tenho a honra de ser vosso mui humilde servo N.J. Minsart, vig.de São João Evangelista 406
Viva Jesus em nossos corações! Cara Irmã, O desejo que tenho de ver as Irmãs localizadas na casa a respeito da qual vos falei em minha última carta, e responder à vossa, datada de 30 de setembro me determinam a vos escrever em seguida, para não perder a ocasião de o fazer. O senhor bispo, que parecia contrariado a que se alugasse esta casa, só está aguardando o momento da chegada de Madre Júlia, para concluir o negócio, porque ele, sabendo-se desincumbido do pagamento da casa que as Irmãs ocupam agora, a qual será ocupada por mim - que fui nomeado pároco da catedral - em lugar de se opor a alugá-la, ele o deseja e continuará ainda dispensando seus favores à vossa casa, tendo em vista a desincumbência daquela que as Irmãs ocupam presentemente. Uma outra razão que me leva a aproveitar o momento precioso e do qual, no entanto, não ouso vos relatar todas as circunstâncias, e que espero muito obter uma outra casa contígua àquela que alugaremos; com isso, as duas proporcionarão maior espaço, mais útil e estará, a escola, bem situada na cidade, uma vez que fica no centro. Entretanto, espero que me dareis informações sobre a vinda de Madre Júlia; desejo também, por várias razões, falar-lhe antes que ela se encontre com o senhor bispo. Tenho, ainda, um desejo maior: é o de ver-vos de volta em Namur. Não que tenha queixa das Irmãs, contudo, a Irmã Xavier sempre indisposta, vendo-se obrigada a deitar-se várias vezes durante o dia, podeis imaginar que, no todo, não ocorre como se estivésseis aqui; creio, aliás, que a Irmã Rosália não tem a graça da vocação e que suas contínuas enfermidades a impossibilitam de trabalhar. Espero que Madre Júlia decida a questão e que devamos ter uma nova Irmã de Amiens para ajudar a Irmã Elisabeth e a Irmã Agnes, temendo que elas caiam doentes e esgotadas. Vedes, por tudo isso, que Madre Júlia é necessária em Namur e que esta viagem é, talvez, mais urgente que a de Bordéus. Aguardarei, pois, esta boa Madre, resignando-me à vontade do Senhor. Todo vosso, em J.C. Meus respeitos mui humildes à Madre Júlia, cara Irmã. Vosso mui humilde servo N.J. Minsart, pároco de São João Evangelista Namur, 3 de outubro de 1808 407
Cara Irmã em J.C. Madre Júlia deve ter-vos relatado o que o demônio fez, no sentido de impedir que tivéssemos a nova casa, mas o Senhor quis nos conceder a vitória, e o belo jardim que tanto desejáveis ter para o passeio das Irmãs e o vosso, está em vosso poder: podeis vir usufruí-lo, quando vos aprouver. Mas temo que o Senhor dele ainda nos prive. Falo muito a respeito, na carta que escrevo à Madre Júlia. Mas o apego que tendes à vossa casa, faz-me esperar que o Senhor vos reconduzirá de volta. Aguardando, dignai-vos de rogar ao Senhor por mim e nossas Irmãs, cara Irmã. Vosso mui devotado servo, N.J. Minsart, pároco de São João Evangelista Namur, 7 de novembro de 1808 Cara Irmã Acabo de transmitir o conteúdo da carta que me enviastes, ao senhor bispo. Ele teria respondido à de Madre Júlia, se suas ocupações extraordinárias não o tivessem impedido e se não tivesse manifestado seu pensamento às Irmãs, que, certamente, não terão deixado de vos fazer relato a respeito. Ele receberá toda a vossa comunidade em Namur, com muito prazer; ele não deseja, este honesto homem, senão o bem, a salvação das almas e a glória de Deus. Eis suas intenções, e seu coração deseja tanto o bem, que quererá proporcioná-lo, seja qual for o preço. Quanto às minhas intenções, delas não duvido, há muito que tenho desejado rever-vos de volta ao país, pois, como dizeis muito bem em vossa carta, é impossível, para pessoas jovens, de formarem e dirigirem uma casa da maneira como se gostaria que fosse. Aliás, a enfermidade da Irmã Xavier põe obstáculos muito grandes à felicidade deste estabelecimento; não é culpa sua, é verdade, mas, fundar uma casa sem uma pessoa em estado de a dirigir, é querer antes destruí-la, tanto para o aspecto temporal, quanto para o espiritual. Desejo ardentemente ver-vos chegar, com vossas companheiras, em Namur, esperando que Deus vos abençoe. Se a coisa viesse a ser contrária à carta que tivestes a bondade de me escrever, persisto em querer ter uma Superiora, na casa, que a possa dirigir na íntegra. Pedirei, mesmo, à Madre 408
Júlia, a Irmã Superiora de Jumet, pois que o estabelecimento deste lugar é bem menos importante que o de Namur, que, como consequência, o bem que ela aqui poderá fazer, será mais considerável que o de Jumet. deis
Aguardando o prazer de ver Madre Júlia, peço-vos que me recomenem vossas orações, cara Irmã. Vosso devotado servo, (a)N.J. Minsart, pároco de São João Evangelista Namur, 14 de janeiro de 1809
CARTAS DE M. SAMBUCY DE SAINT-ESTÈVE A M. Fallot de Beaumont, bispo de Gand Senhor, Tenho a honra de transmitir, com solicitude, a Vossa Grandeza, o Decreto das Irmãs de Nossa Senhora que o senhor bispo de Amiens recebeu, enfim, oficialmente. Queirais ter a bondade de reclamar também do Ministro, para vós, o envio oficial do mesmo decreto, a fim de que estas boas Irmãs sejam legitimamente autorizadas em vossa diocese. Sou, com profunda veneração, Senhor, de Vossa Grandeza, o mui humilde e mui obediente servo (a) L. Sambucy de St-Estève Amiens, 11 de agosto de 1807 A M. de Bloglie, bispo de Gand Senhor, As educadoras que conheceis em Amiens são solicitadas em diferentes departamentos. Na véspera de tomar uma decisão, elas me pedem de vos renovar, com sua respeitosa homenagem, a oferta de seus serviços. Elas vos são obrigadas, porque comprometeram-se verbalmente com o bispo 409
de Beaumont, o qual, em sua passagem, veio reclamá-las para seu sucessor. Quereríeis, pois, indagar, do prefeito de Gand, se ele lhes destina, realmente, a abadia do hospital Riche? Estas Damas têm uma atração particular por vossa cidade, e lhe darão a preferência, tranquilamente. Senhor Delpuis, de Paris, pediu-me, com insistência, que vos enviasse um grande número; mas meu coração para lá me transporta, naturalmente, e ficaria encantado se pudesse, várias vezes ao ano, passar algumas semanas junto de vós. Sabeis qual o interesse e que respeitosa afeição me fazem ser o que devo ser para vós, Senhor, de Vossa Grandeza, o mui humilde e mui obediente servo L. Sambucy de St-Estève, Cônego honorário de Amiens Rua Nova, Nº 11 Amiens, 29 de fevereiro de 1808 Provavelmente à Irmã Maria Carolina (chamada, alguns meses mais tarde, Irmã St-Jean), Superiora em Montdidier Minha boa Menina, Recebi, com reconhecimento, a expressão de vossos sentimentos, e posso vos retribuir com sentimentos igualmente puros. Deus queira reunir os espíritos e os corações! É este o desejo que nutro, diariamente. Em toda parte onde estiverdes, vós e vossas Irmãs, ser-me-eis igualmente caras. O bispo vos enviará Irmãs de Nossa Senhora, em alguns dias; não apresseis nada, até lá. Aguardarei, mesmo, uma carta vossa, quando tiverdes consultado vossas Irmãs, a fim de nada precipitar. Sou, minha boa Irmã, todo vosso em N.S. L. de Sambucy 20 de abril de 1809 410
A M. de Broglie, bispo de Gand Senhor, Recebi e transmiti ao senhor bispo de Amiens o maço de cartas que Madame Barat me remeteu de vossa parte. Conheço seu conteúdo e não sou o único que está satisfeito com vossa franqueza e vossa firmeza. Nosso bom bispo está realizando a visita diocesana. Espero vê-la na festa de Pentecostes e saberei o efeito de vossa carta. Antes de sua partida, ele me havia encarregado de vos esclarecer a respeito de Irmã Júlia. Protelei até este dia, porque supunha que ela reconheceria sua falta; mas, sabendo que ela vos encontrou em Gand e que vos contou o fato à sua maneira, limito-me a dizer-vos, neste momento, que a Irmã Júlia é a única culpada, nesta questão toda, e que vos darei, a este respeito, todas as informações que julgardes necessárias. Oh! como desejaria que o vosso retorno a Gand se fizesse por Amiens! Vós poderíeis ouvir da boca das próprias Irmãs, fiéis a seus votos e a seu bispo, provas inequívocas do mau espírito que nosso bom bispo quis destruir na raiz. Ele o conseguiu perfeitamente, e as casas da diocese respiram, enfim, sob a autoridade do bispo. O senhor bispo em pessoa presidiu à eleição da Superiora (eleição que jamais havia sido feita) e ratificou a escolha das Irmãs, na pessoa da Irmã Maria, Superiora atual. Ele me incumbe a vos dizer, de sua parte: 1º que a casa das Irmãs de Nossa Senhora de Amiens e a diocese subsistem sempre sob a autoridade do ordinário, e não mais em função da Irmã Júlia, que elas já não reconhecem como Superiora Geral; 2º que há, na casa de Amiens, muitos elementos à disposição dos bispos que queiram substituir as Irmãs da Irmã Júlia por Irmãs de Nossa Senhora de Amiens, que serão submissas ao bispo da diocese onde forem chamadas; 3º que ele está inteiramente disposto a restabelecer a união entre as casas de Amiens e de Namur, se os bispos de Tournai, Gand e de Namur encontrarem um plano de conciliação que possa lhes convir, e que ele deferirá de boa vontade a seu julgamento. Acrescentarei a tudo isso, Excelência, que, se puderdes fazer voltar as Irmãs da Irmã Júlia, elas encontrarão, nas Irmãs de Nossa Senhora de Amiens e outras casas unidas, Irmãs sem preconceitos, sem paixão, sem 411
ressentimento, cheias de caridade, amigas da paz, da união, e que não têm outro desejo, que o de serem submissas a seu respectivo bispo. Sou, com respeitosa afeição, Excelência, de Vossa Grandeza o mui humilde e mui obediente servo, L. de Sambucy Amiens, 17 de maio de 1809
A M. Le Surre, vigário geral do bispado de Gand Senhor e mui caro amigo, O conteúdo de vossa carta tem sido, para mim, a palavra do enigma. Explicou-me todas as demoras da carta que Madame de Peneranda1 me anunciava havia três meses; e eu vos confesso que o partido que tomastes, com relação à Madre Júlia, e as razões que vos determinaram, mergulhou-me num grande espanto, do qual é com sofrimento que me recupero. Vós me dizeis: 1º que o bispo de Gand teme magoar sensivelmente o bispo de Namur, a quem ele nada deve; e ele não teme em magoar sensivelmente o bispo de Amiens, que ele conheceu particularmente, e a quem ele deve o estabelecimento de St-Nicolas e o de Doorseele.2 Os elementos dessas duas casas saíram de Amiens, com a anuência do bispo. 2º acrescentais: o bispo de Gand não podia substituir, aqui, as Irmãs de Namur por aquelas de Amiens porque, de minha parte, julgo não haver mais do que seis na última casa. Jamais disse isso. O bispo de Amiens, em sua carta ao bispo de Namur, só mencionava duas antigas, porque não estava seguro das quatro outras que ficaram; eis por que mencionei seis, em lugar de duas, na transcrição da carta, sob a forma de nota, atendei, vossos quatro novos elementos – havia treze quando vos escrevi, e já se enviaram Irmãs para prover dois estabelecimentos – bem como os que possam ser recebidos no futuro, não são próprios para sustentarem um novo estabelecimento. É uma asserção gratuita, pois, se tivestes a confiança de vos dirigirdes a Amiens, antes que à Madre Júlia, para aí buscar algumas informações a esse respei412
to, se vos teria respondido que, sem contar os seis elementos antigos, os quatro novos são muito indicados para sustentar um novo estabelecimento, porque foram provados de longa data, na casa das Damas da Instrução Cristã de Amiens e formadas sob meus olhos, para seu novo Instituto. Uma dentre elas, entre outras, bem conhecida das Damas de Gand, Madame Prévost, atualmente Irmã Maria, Superiora das Irmãs de Nossa Senhora de Amiens, foi nomeada pelas antigas, para ocupar o lugar da Superiora, escolha que o bispo de Amiens ratificou e que faz o elogio, sem dúvida, da pessoa eleita: há unanimidade a esse respeito. E duvido que, entre todas as aderentes à Irmã Júlia, possa encontrar-se uma que valha. A casa de Amiens não está, ainda, limitada a este número, e cada dia apresentam-se novas candidatas, e candidatas que acompanho desde tempo. Pensais que elas não são próprias para sustentar um novo estabelecimento, permiti-me uma opinião menos arriscada. O presente é, para mim, um fiador seguro para o futuro. 3º Enfim, dizeis-me para acrescentar, a esta consideração, que a casa estabelecida na diocese de Gand não subsiste inteiramente, senão pelos fundos fornecidos pela casa de Namur. Isso me surpreende. Como se deixou, subitamente, de ajudar as Irmãs de St-Nicolas? Por que não se dirigir, então, à casa de Amiens, para solicitar os mesmos socorros reclamados e solicitados à casa de Namur? Se foram necessárias todas essas razões para determinar M. de Gand, confessais que elas não são sólidas. Ademais, eis a reflexão que me deixou estarrecido: se o bispo de Gand tinha a se queixar, em sua diocese, de uma associação qualquer, e que esta associação, por se subtrair a sua obediência, emigrasse à diocese de Amiens (é o caso do bispo de Amiens com o bispo de Namur) o bispo de Gand estaria muito satisfeito que o bispo de Amiens deliberasse e entrasse em acordo com ele. Nada mais justo. (Os bispos de Amiens e de Namur escreveram-se mutuamente). Mas se o bispo de Gand tivesse, em sua diocese, o berço desta associação, e tivesse, ainda, a casa mãe (e quando mesmo um outro bispo tivesse recolhido os espólios desta casa mãe), poderia, ele, estar satisfeito se o bispo de Amiens 1º o deixasse romper todos os laços com a casa mãe de Gand, 2º se dirigisse, primeiramente, ao chefe das dissidentes, do que ao bispo de Gand, 3º não lhe pedisse nenhum conselho, 4º admitisse estas suas Irmãs na cidade episcopal, 5º as separasse da casa mãe, para uni-las ao corpo dissidente, sob pretexto de elas prometerem obediência e fundos para o 413
novo estabelecimento, 6º enfim, se o bispo de Amiens, desde quatro meses que tivesse sido prevenido do que se passa, não fizesse menção de nada, ao menos através de seus vigários gerais. Coloco-vos como árbitro, meu bom amigo, que pensaria o bom bispo de Gand? Os bispos de Tournai e de Arras exprimiram, imediatamente, seu sentimento, e serão seguidos de vários outros. O excelente bispo de Namur, ele próprio, se explicou a respeito, com o bispo de Amiens e eu, de maneira franca e leal, que não há senão motivo para se congratular, ao precisar tratar com ele. Ele conserva, é verdade, ele só, confiança para com a Superiora geral, mas é um ponto contrário ao pensamento da maioria dos bispos e do governo, que não admite sequer as Irmãs de Caridade, e, digamos assim, lhes interditou o reunirem-se para uma nova eleição. Vedes que seria, pois, muito fácil ao bispo de Gand, e muito digno de seu zelo, conciliar os espíritos e reunir os corações. Peço-vos que o leveis a isso, em nome de todo bem que daí possa resultar, e para a honra da religião, atingida com tais tipos de dissensões. Queirais transmitir a Sua Excelência minhas respeitosas homenagens e lembrar-vos de mim junto a Nosso Senhor, em quem sou, com todos os sentimentos inalteráveis que vós conheceis, todo vosso, na vida e na morte, (a) L. de Sambucy Amiens, 16 de junho de 1809 (A autenticidade desta carta – cujo autógrafo se conserva nos arquivos do bispado de Gand, - tem sido constatada em 1868, por M. Henri-François Bracq, bispo de Gand). Notas à carta: 1 Peneranda – Dama do Sagrado Coração, superiora do estabelecimento de Doorseele. 2 Doorseele: antiga abadia perto de Gand, onde, em maio de 1808, as Damas do Sagrado Coração – chamadas primeiramente Damas da Instituição Cristã – tinham fundado um estabelecimento.
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CARTA DE M. DE BROGLIE, bispo de Gand A M. de Sambucy Gand, 25 de junho de 1809 Sois bem jovem, Senhor, para vos erigirdes, como o fazeis, em juiz, ou mais, em censor da conduta de um bispo. Salvien, São Jerônimo e São Bernardo, foram chamados, em seu tempo, os mestres dos bispos, mas entre esses homens e vós, há, não o negareis, alguma di- ferença. Havia decidido não dar resposta nenhuma às vossas cartas referentes à Madre Júlia, mas vossa última carta a M. Le Surre me impede de manter minha decisão. Se dela guardastes cópia, relede-a e espero que vossas expressões alusivas a mim, parecer-vos-ão inconvenientes. Não seguirei todo o vosso texto; observarei somente: 1º que é estranho que louveis tanto o bispo de Namur, que fez bem mais do que o bispo de Gand, e recebeu, em Namur, a superiora e as Irmãs emigradas de Amiens, segundo vossa expressão; que se empenhou por estabelecê-las em sua cidade, e passava horas inteiras neste asilo, após lá ter celebrado os santos mistérios, enquanto que o bispo de Gand se limitou a permitir que se estabelecessem em outra cidade, as religiosas que havia em St-Nicolas, sob a jurisdição de M. de Beaumont. São elas, e não eu, que tomaram a decisão de não aderir às mudanças operadas em Amiens e Montdidier, em suas constituições, e que ficaram vinculadas à mesma superiora e à mesma regra que antes. E, no entanto, ousais dizer: O excelente bispo de Namur, ele mesmo, se explicou ao bispo de Amiens e a mim, de uma maneira tão franca e tão leal, que só tem de se parabenizar quem precisar tratar com ele. Isto quer dizer exatamente o contrário do que sou, pois não sou nem franco, nem leal. Senhor de Sambucy, eu vos perdôo esta linguagem, não torneis a usá-la, e procurai saber a quem vós escreveis e de quem vós falais. O bispo de Amiens não me escreveu uma linha sequer sobre o assunto; se o tivesse feito, eu teria a honra e o prazer de lhe responder com toda a franqueza e toda a lealdade, pois não tive outro modo de ser. 2º Vós acrescentais: O bispo de Namur mantém, é verdade, confiança em uma superiora geral, mas é um ponto que contraria o pensamento da 415
maioria dos bispos. Dir-se-ia que vós sois, em verdade, o depositário da confiança da maioria dos bispos. O bispo de Amiens não quer Superiora Geral; O bispo de Namur dá respaldo a uma. No entanto eles estão, segundo vos parece, em perfeita harmonia. E o bispo de Gand, que não está por ninguém, nem por nada, nesta questão, que se limita a conservar religiosas estabelecidas em sua diocese pelo seu predecessor, é o único errado, Quereríeis que eu tomasse partido a favor do bispo de Amiens, contra o de Namur; em verdade, sois estranho, e poder-se-ia levar a moderação mais longe, se vos respondesse que me conformaria com o que os meus dois colegas estabeleceram? O bispo de Amiens e vós, pois vós estais sempre juntos em tudo, não quereis Superiora Geral; ora, se não há Superiora Geral, só haverá Superioras específicas e particulares. Então, por que a Irmã Júlia ou uma outra não seria superiora da casa existente na diocese de Gand? 3º Que, se o bispo de Namur tem razão em sustentar uma Superiora Geral, a Irmã Júlia o era antes das últimas mudanças operadas por vossa direção, nesta associação. E por que não poderia, eu, inclinar-me mais a favor de um dos colegas, do que em favor do outro? 4º A verdade, em tudo isso, é que vossas alterações não tiveram o êxito que esperáveis, e não vos arrependeis de as terdes feito. Quanto a mim, guardo o que o bispo de Beaumont me deixou, deixo essas religiosas sob as mesmas regras e, uma vez que não quereis Superiora Geral, deveis achar simples que uma Superiora particular governe a casa da diocese. 5º Dizeis que nada devo ao bispo de Namur. Sabei que sou, desde antes da Revolução e depois, muito mais ligado a ele do que com o bispo de Amiens, que tenho apenas a honra de conhecer. Aprecio e estimo igualmente a esses dois respeitáveis colegas; mas, para agradar ao bispo de Amiens, seria necessário reprovar o que fez o bispo de Namur? Ora, se eu não tivesse conservado as religiosas desta congregação, enquanto que ele acolhia todas as emigradas, teria sido uma censura positiva à conduta de meu colega. 6º Dizeis que devo, ao bispo de Amiens, estas religiosas; foi sob a gestão de Beaumont que elas vieram à diocese. Aliás, como nem ele, nem vós, admitis Superiora Geral, esta não é uma congregação, são reuniões iso416
ladas. Enfim, cada bispo tem o mesmo direito e a mesma jurisdição sobre idênticas associações existentes em sua diocese. Já não há, propriamente falando, ordens religiosas e, sobretudo, não há mais religiosas isentas. 7º Pretendeis que me seria bem fácil conciliar os espíritos! Ninguém me pediu tal coisa e como concordar com as mudanças do bispo de Amiens quanto a esta associação, e a recepção das emigradas pelo bispo de Namur? Aliás, estes dois respeitáveis bispos só têm que se felicitar por tratarem conjuntamente desta questão. Pois que estão em tão boa harmonia, por que seria necessário consolidar espíritos que estão em tão feliz acordo? 8º Não posso, antes de terminar, silenciar o que dizeis, que há treze religiosas da vossa opinião, em lugar de duas, segundo o bispo de Amiens, e de seis, segundo a vossa nota. Teria sido mais honesto colocar este número, treze, como primeiro, mas parece que não houve tempo, aparentemente. Acrescentais que quatro desses novos membros têm sido provados, de longa data, com as Damas da Instrução Cristã, e formadas sob vossos olhos, para seu novo Instituto; quer dizer que, muito tempo antes desta reforma, vós formáveis e cozíeis em outra associação, do que fazer cessar a de Madre Júlia. Realmente pode-se chamar, a isso, franqueza e lealdade? Aconselho-vos, pelo interesse que tenho por vós, de não julgar e não injuriar um bispo, e de vos intrometerdes em menos questões. Quanto a mim, conservei o que encontrei e deixo as coisas como estão. Aceitai, Senhor, o protesto de minha afeição sincera, (a)+ Maurice, bispo de Gand (A autenticidade desta carta – cujo autógrafo se conserva nos arquivos do bispado de Gand – foi constatada, em 1868, por M. Henri-François Bracq, bispo de Gand).
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CARTAS DE M. DEMANDOLX, bispo de Amiens À Madre Júlia, em Namur, 23 de outubro de 1812 (cf. Memórias) Resposta de Madre Júlia (cf. Cartas, 221, p. 598) À Madre Júlia, em Namur Ou me expliquei mal, minha cara filha, ou vós me entendestes mal. Meu projeto não é de vos fazer abandonar Namur, para vos estabelecerdes em Amiens. Mas, vendo-vos como Superiora Geral de vosso Instituto, peço-vos, simplesmente, que venhais visitar a casa que vós lá tendes e nela fazer todas as reformas que achardes convenientes, a fim de que não haja, entre vós, senão um mesmo espírito. Vinde, pois, o mais breve possível, a fim de consolidar, com vossa presença, um estabelecimento que vos deve ser bem mais caro, porque aqui vossa congregação teve origem, e do qual desejaria ser sempre o cabeça, sem, no entanto, o exigir. co,
Recebei, minha cara filha, o protesto dos sentimentos que vos dedi(a) + J.Fr. bispo de Amiens Amiens, 1º de novembo de 1812
Texto do documento enviado a Madre Júlia, da parte de M. Demandolx, no dia seguinte ao do seu retorno a Amiens, estabelecendo claramente a dependência de todas as casas das Irmãs de Nossa Senhora, no tocante à questão da Superiora Geral. Jean-François Demandolx, pela misericórdia divina e a graça da Santa Sé Apostólica, bispo de Amiens, Beauvais e Noyon, etc., etc., à Irmã Júlia Billiart, Irmã dita de Nossa Senhora, salvação e bênção em Nosso Senhor. Intimamente convencido das preciosas vantagens que devem resultar da unidade de regras, de funções, de usos, de costume e, geralmente, de uma inteira uniformidade entre as Irmãs da Associação dita de Nossa
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Senhora, e bem informado de vossa sabedoria, vossa prudência e de todas as vossas outras boas qualidades. Nós declaramos ter-vos reconhecido, como por estes presentes nós vos reconhecemos, como Superiora Geral de todas as casas da Associação das Irmãs de Nossa Senhora, que são e que serão estabelecidas na extensão de nossa diocese, e, para este efeito, nós vos damos todos os mesmos poderes, direitos e privilégios que vos têm sido concedidos na dita qualidade ou denominação, pelos bispos das dioceses onde as ditas Irmãs de Nossa Senhora têm estabelecimentos. Recomendamos, em consequência e ordenamos expressamente a cada uma das Irmãs da Associação dita das Irmãs de Nossa Senhora que estão e que estarão, futuramente, nos domínios de nossa diocese, que vos porteis, em todo tempo e em toda circunstância, com respeito, submissão e obediência devida à vossa Superiora Geral. Serão, os presentes princípios, lidos em presença de toda a comunidade estabelecida em Faubourg-Noyon da cidade de Amiens e transcritos em seu Registro; e a Superiora informará disso a todas as Irmãs espalhadas pelas casas da diocese, a fim de que cada uma não tenha motivo de pretextar ignorância. Dado em Amiens, com nossa assinatura, nosso signo e o selo de nossa secretaria, na segunda-feira, 16 de novembro do ano de Nosso Senhor de mil oitocentos e doze. J. Fr., bispo de Amiens. Por Mandamento, etc. (a) Gravet, ch., Secr. Selo de M. J. F. Demandolx. bispo de Amiens
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A M. Pisani de la Gaude, bispo de Namur Amiens, 26 de novembro de 1812 Senhor, Não saberia me eximir de confessar que tenho muito a me arrepender, por ter seguido o pernicioso conselho que me foi dado, persuadindo-me a afastar a boa Madre Júlia de minha diocese. O mal que sua partida ocasionou tornou-se tão grande, que me vi na iminência de perder vários estabelecimentos preciosos, se não me tivesse apressado a chamá-la de volta e se, de vossa parte, não a tivésseis convencido de atender minhas insistentes solicitações. Seu retorno cumulou-me de alegria, e fiquei tão satisfeito quanto comovido, pela acolhida que recebeu de sua antiga comunidade, e do santo empenho com o qual a superiora que eu havia nomeado, se demitiu do cargo, protestando à Madre Júlia que ela renunciava de todo coração, muito feliz, desde agora, de viver em sua dependência e de ser a última de suas Irmãs. Ainda não está tudo definitivamente arranjado. Mas comecei por reconhecer a Madre Júlia como Superiora Geral das casas de sua congregação. Fiz expedir a ata de sua nomeação, sem esquecer sua qualidade de fundadora, e tenho, desde já, a esperança bem fundada de que, sob a direção desta virtuosa filha, sua congregação vá retomar, em minha diocese, uma nova vida. Assim, Excelência, após Deus, ser-vos-ei devedor dos grandes bens que a providência há de operar por seu intermédio. Aceitai a afirmação de afeição sincera e respeitosa com a qual sou, Excelência, vosso mui humilde e mui obediente servo, J. Fr. bispo de Amiens
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CARTA DE M. FOURNIER, vigário geral do bispado de Amiens À Irmã Maria Prévost, Superiora da casa de Amiens Bispado, 17 de novembro de 1812 Transmito-vos, minha mui cara Irmã, a ata que constitui a boa Madre Júlia, Superiora Geral das casas das Irmãs de Nossa Senhora, estabelecidas nesta diocese. Estou persuadido de que nenhuma recusará reconhecê-la como tal. Em todo caso, Madre Júlia usará de sua autoridade para com aquelas que não quiserem adotar esta mudança essencial. Sua Excelência não anunciará a ninguém a casa que vós ocupais hoje. Mas ele espera que não tomeis, para com esta casa, nenhum compromisso definitivo, antes de ser consultado. Aliás, antes de agir, é preciso que estejais segura de terdes uma outra, seja a expensas vossas, seja às da cidade. Recebei, cara Irmã, a nova reafirmação de meus sentimentos, Fournier, vigário geral
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Conclusão Santa Júlia desejou ardentemente ser uma vítima consumada no amor de Deus. Este desejo, a vida da Santa o realizou maravilhosamente, no concreto do humilde quotidiano. A exigente santidade da fundadora aparece tão simples, que cada Irmã de Nossa Senhora pode ambicionar vivê-la, por sua vez. Júlia Billiart, testemunha da presença viva, essencial do Cristo nela, lega seu ardor generoso às suas filhas de hoje, como às de ontem. Ancorada em sua inquebrantável confiança, fonte de uma alegre coragem, ela trilhou, como primeira, sobre as veredas árduas do labor apostólico, arrastando, em seu seguimento, a longa fileira das Irmãs de Nossa Senhora de todos os tempos. Se a missão de animadora de Santa Júlia não está circunscrita ao tempo, não o está, igualmente, ao espaço: Amiens, Namur foram meras etapas de uma ação que ultrapassou as fronteiras da França e da Bélgica, para abrir-se ao mundo inteiro. Nossa época de renovação espiritual tem necessidade da sabedoria e da humildade de uma Santa, para abrir-lhe a via, toda de grandeza e de simplicidade, da confiança ilimitada na bondade de um Deus de amor. A canonização, em 1969, da fundadora das Irmãs de Nossa Senhora, é um apelo que dirige a Igreja à congregação que ela honra: apelo de retorno às fontes, para aí beber, em largos sorvos, o espírito de Santa Júlia, aí banhar-se na limpidez profunda de uma ardente simplicidade, no seio da qual se descobre a maravilha que fez brotar o inolvidável: Ah! como é bom o bom Deus!
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Bibliografia I Biografias das duas fundadoras QUINET, Soeur Louisia, S.N.D. Vie de la Révérende Mére Julie, fondatrice et première Supérieure des Soeurs de Notre-Dame, comprenant l’histoire des primières de cette Congrégation . Casterman, Paris-Tournai, 1862 BAESTEN Vincent, S.J . Vie de la Mère Julie Billiart, fondatrice de l’Institut des Soeurs de Notre-Dame de Namur, par um Père de la compagnie de Jésus. Balon, Namur, 1879; Vve Casterman, Tournai, 1881 (deuxième édition). CLAIR Charles, S.J. La Vénérable Julie Billiart, fondatrice et primière Supérieure Générale de l’Institut des Soeurs de Notre-Same à Namur. Arthur Sasvaète, Paris, 1895. CLAIR, Charles, S.J. La Bienheureuse Julie Billiart, fondatrice et primière Supérieure Générale de l’Institut des Soeurs de Notre-Dame de Namur, quatrième édition, revue et complétée par um Père de la même Compagnie. Arthur Savaète, Paris, 1906. TOMME Clara, S.N.D. (Soeur Ignace de l’Immaculée Conception) Histoire de la Vénérée Mère Saint-Joseph, née Marie-Louise-Françoise Blin de Bourdon, Demoiselle de Gézaincourt, cofondatrice et deuxième Supérieure Générale de l’Institut des Soeurs de Notre-Dame de Namur, par um membre du même Institut. Téchy-Tomme, Marchienne-au-Pont, 1920.
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I I Outras Referências BAUNARD abbé. Histoire de Madame Barat, fondatrice de la Société du Sacré-Coeur (deux volumes). Poussielgue, Paris, (1876). de CHARRY, Jeanne. Sainte Madeleine-Sophie, fondatrice de la Société du Sacré-Coeur de Jésus. Castermann, Paris, 1965. CRISTIANI abbé. Madame de Franssu, fondatrice de la Congrégation de la Nativité de Notre-Seigneur. Aubanel Frères, Avignon, 1926. DACIO Juan. Dictionnaire des Papes (Collection dirigée par Michel de SaintPierre). Éditions France-Empire, 1965. DANIEL-ROPS. L’Histoire de l’Eglise du Christ (14 volumes). L’Église des Révolutions (vol. IX). Librairie Fayard, éditions Grasset, Paris, 19621965. DANSETTE Adrien. Histoire religieuse de la France contemporaine. Flammarion, 1965. GUIDÉE, Achille, Vie du R. P. Louis Sellier de la Compagnie de Jésus. Mme. Ve Poussielgue-Rusand, Paris, 1858. GUIDÉE, Achille, S.J, Vie du R. P. Joseph Varin, religieux de la Compagnie de Jésus, ancien Supérieur Général des Pères du Sacré-Coeur en Allemagne, et des Pères de la Foi en France. Douniol, Paris, 1860. LABIS, chanoine. Histoire abrégée de l’Histoire catholique depuis Jésus-Chr. Jusqu’à nos jours. Casterman, Tournai, 1900. 428
LEFEBVRE, Georges. Napoléon Presses Universitaires de France, Paris, 1969. de MOREAU E. Histoire de l’Église. Casterman, Tournai-Paris. 1931. MOURRE, M. Dictionnaire d’Histoire Universelle (2vol). Editions Universitaires, Paris, 1968. PIERRARD P. Histoire de l’Eglise Catholique. Desclée, Paris, 1972. ROGIER L. Nouvelle Histoire de l’Eglise (5 vol). IV: Siècle des Lumières, Révolutions, Restaurations. Seuil, Paris, 1972. Srs de SAINTE-MARIE. Nicolas-Joseph Minsart, fondateur de l’ Institut des Soeurs de Sainte-Marie de Namur. Dasnoy-Lambert, Namur, 1931. III Manuscritos DESTOMBE Chanoine. Joseph-François Demandolx, evêque d’Amiens de 1805 a 1817. Chanoine Destombe, Sains-en-Amiénois, France, 1977. ROUSSEAU Félix. Monseigneur Pisani de la Gaude. Journal ‘Vers l’ Avenir’, Namur, août 1976.
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