Al Hakim

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Al Hakim R E V I S T A

S O B R E

E S P I R I T U A L I D A D E

i S L Â M I C A

EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

/ m o c. x m i f a r g. w w w / /: s p t t h / ı c n a t o K a m l e S : o t o F

Rumi New Age ou Islã? Seus poemas, versos e frases estão na boca de celebridades do mundo pop como a banda Coldplay ou a cantora Madonna e circulam pelas redes sociais... Daniel Rodrigues Placido traz uma reflexão sobre a aceitação de Rumi na cultura ocidental ao mesmo tempo em que se procura desvincula-lo do Islã, sua fonte de inspiração e razão de existir.


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AL HAKIM

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04 Apresentação 05 O que é o Sufismo? 09 A primavera de Rumi 11 Rumi, New Age ou Islã? 16 Silenciar a mente, ouvir o Mistério 24 A importância do sufismo para a psicologia 27 Simurg, o pássaro solitário 31 Aprendendo Islã on line 33 Mil anos de textos sufis 35 A muralha do mistério 36 A sopa do Dervishe 37 Bata nesse lugar 38 Poema de Jalaluddin Rumi 39 As alegrias da união com o Amado espiritual 41 Oração Anônima 42 Ordens Sufis no Islã

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43 "The Seeker Of Orient"

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Apresentação O sufismo é um assunto que desperta grande interesse na mídia e meio new age, mas nem sempre é apresentado de forma adequada e cuidadosa. O sufismo é uma tradição espiritual vinculada ao Islã, e não pode ser compreendida fora desse contexto. O Islã também é um tema que hoje em dia causa enorme incompreensão, seja pela má vontade e ignorância da mídia, seja, de fato, pelo crescimento infeliz de correntes minoritárias, literalistas e unilaterais, que não condizem com a grandeza, tolerância e beleza do verdadeiro islamismo. Diante disso, decidimos criar esta revista para divulgar para o público brasileiro, de forma embrionária, tanto o sufismo quanto o Islã tradicionais, a partir de artigos, resenhas e traduções de materiais clássicos e contemporâneos.

Editores Daniel Placido Sandra Benato Vinícius Rosa Cácia Cortez Sergio Rizek

Contato: alhakimrevista@gmail.com

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O que é o Sufismo?

t e n. s e t o u q c i m a l s i

Entenda o que é o sufismo através da perspectiva da luta contra o ego e de outros aspectos. O sufismo é muito mais do que isso. Vamos abordar, in Shaa Allah, o que é o sufismo através de outras perspectivas futuramente. Você pode estar buscando saber sobre o sufismo, sobre porquê o sufi é um muçulmano Sunita Tradicional e porquê o sufismo é superior ao salafismo. Onde está um dos principais erros do salafismo? Qual é um dos principais acertos do sufismo? Podemos estudar o sufismo (tasawwuf) a partir de diversas perspectivas. Este texto exporá a perspectiva do sufismo relacionada à luta que cada ser humano deve empreender contra seu ego. Por Abdul Qadir -naqshbandibrasil.org

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O Serviço Divino

No assunto abordado por Sheikh Nazim, sobre um dos 99 Nomes ou Atributos de Allah (swt) [Deus Glorioso e Exaltado], mais precisamente sobre o atributo AL-MA'JID: O Glorioso, ele diz: "Ele é o Mais Glorioso que mostra infinita generosidade e munificência para com aqueles que estão perto dEle." E continua: “Na medida em que você acredita no seu Sheikh, você pode entregar as rédeas às mãos dele, e assim encontrar descanso e satisfação em seu coração. Enquanto você estiver tentando pegar as rédeas com suas próprias mãos, estará carregando um grande fardo nos ombros. Os Sheikhs [Masheikh] são os herdeiros dos profetas e estão se oferecendo para carregar seus fardos, e você deve dar seus fardos a eles. Basta colocar seus desejos em sintonia com os do Sheikh; esse é o caminho para abrir seu coração ao Poder Celestial. Então, você poderá ver, ouvir ou saber algo que não pode saber agora. Muitos murids [discípulos] têm grande aspiração espiritual, Himmah e dizem: ‘Oh, meu Sheikh, estou pedindo por Himmah para que minha alma seja ativada.’ O Sheikh responde: ‘Oh, meu murid, estou pedindo serviço de você, Khidma. Você deve ser como eu. Quando você for como eu, meus poderes espirituais podem chegar até você; mas se não somos do mesmo tipo de metal, a corrente não pode passar por você. Eu sou cobre e você não deve permanecer pedra.” Esta citação é de Sheikh Nazim Al-Haqqani Ar-Rabbani. Extraída do livro: “99 Gotas dos Infinitos Oceanos de Misericórdia”. Está na página 214. A partir desta citação, nós podemos entender um pouco a função de um Sheikh no sufismo. Lembrando que Sheikh no sufismo se refere a mestre. Termos um mestre é uma excelente maneira de empreendermos a Jihad al-akbar (A Grande Guerra Santa), que é aniquilar a influência do ego sobre nós. Aquele discípulo que quer ter mais força nesta jihad, pode se dedicar a Himmah, isto é, ao Serviço Divino. Se nos colocarmos a meta de sermos os mais parecidos possíveis ao Profeta Muhammad (saas), seguindo a Sunnah [a maneira como era o Profeta (saas)], um mestre sufi irá nos

TONI ESCOBAR https://www.periodicodeibiza.es

indicar de maneira precisa, através de seu próprio exemplo, como nos adequarmos, em cada área de nossa vida, à Sunnah. Assim, nós sairemos, in Shaa Allah (se Deus quiser) vitoriosos na jihad al-akbar, isto é, venceremos a luta contra nosso ego. O Alcorão diz: “A aqueles que se esforçaram por nossa causa, nós os guiamos aos nossos caminhos” (29:96). Isto indica que, aquele que está buscando a Verdade, com sinceridade, será guiado a um caminho que lhe possibilite encontrar esta Verdade Última, que é Allah (swt). Aquele que quer mitigar a influência do ego sobre si, para se submeter plenamente a Allah (swt), Ele (swt) o guiará para mais próximo dEle (swt). Quanto mais estivermos seguindo a Vontade de Allah (swt), menos estaremos seguindo a vontade de nosso ego.

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Para entendermos melhor, por outra perspectiva, tomemos um Hadith [um dito, um ensinamento]. O Profeta (saas) disse: O mujahid é aquele que faz a jihad contra si mesmo (jahada nafsah) para obedecer a Deus. Este Hadith é encontrado em Tirmidhi, Ahmad, Tabarani, Ibn Majah, al-Hakim e Quda`i (4.862). Vários relatores de Hadith mostram que o Profeta (saas) diz que o verdadeiro guerreiro é aquele que empreende uma luta contra si mesmo. Outro Hadith, relatado por Al-Haythami [muhaddith e teólogo do Islã, especializado em Jurisprudência Islâmica da escola Shâfi'î. Viveu no séc XVI], no capítulo sobre Jihad al-nafs em seu Majma` al-zawa'id, diz: “O forte não é quem vence as pessoas, o forte é quem vence o seu ego” (Ghalaba Nafsah). Sheikh Nazim enfatiza, no texto base acima que estamos estudando, que não adianta a pessoa querer tomar por si só as rédeas de seu próprio ego, sozinho. Segundo o conceito de Ijtihad [esforço de reflexão que os ulemas ou muftis e os

Seguindo a vontade de Allah

juristas muçulmanos empreendem para interpretar os textos fundadores do Islãm e deles deduzir o direito islâmico ou informar o fiel sobre a natureza de uma ação], nós, muçulmanos comuns, não podemos derivar por conta própria passagens do Alcorão ou algum Hadith para interpretá-los de acordo com nosso ego. O muçulmano que age assim dirá, a partir de seus caprichos, o que é o Islam e o que é o certo ou errado segundo o Islam. Só que isso não é Islam. Isso é a religião do ego. Por isso os wahabis e salafis estão fora do Sunismo Tradicional, de acordo com os principais Muftis do Sunismo Tradicional, pois eles fazem Ijtihad a partir deles mesmos, isto é, a partir dos seus próprios egos. Isso não é permitido a um muçulmano ortodoxo, ou em outras palavras, a um muçulmano Sunita Tradicional. As três primeiras gerações de muçulmanos são chamadas de as-Salafu Salihin. Os wahabis e salafis, erroneamente e de maneira hipócrita, advogam um retorno a estas três primeiras gerações. Isso é uma falácia, porque nós temos o Imam Abu Hanifa, Imam Sha'fi, Imam Malik e Imam Hanbali que eram dessas gerações ou foram ensinados por Imames destas gerações e transmitiram exatamente quais regras se deve extrair do Sagrado Qur'an [Alcorão]. O sábio muçulmano [Ulema] que é capaz de extrair uma regra sozinho do Qur’an, do Hadith, ou através da analogia (Qiyas), é chamado Mujtahid Mutlaq. Os últimos Mujtahids Mutlaqs viveram nessas três primeiras gerações ou foram ensinados diretamente por alguém destas gerações. Estes tinham o direito de extrair regras diretamente do Alcorão. Então, vejam o erro dos salafis e wahabis, eles, agora, depois de mais de mil e quatrocentos hasancikardede.com

anos, extraem regras diretamente do Alcorão. Contrariam as orientações dos as-Salafu Salihin, que afirmam ser um erro fazer isso, mas se dizem continuadores deles. É uma grande contradição. Estes grandes Imames citados, fundadores das quatro Escolas de Fiqh Sunita Tradicional eram Mujtahids Mutlaqs. Eles tinham esta autorização.

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Não tomar desejos por divindade

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Então, Shaykh Nazim aponta neste texto base de hoje, que Allah al-MA'JID, Deus O Glorioso, mostra infinita generosidade e munificência para com aqueles que estão perto dEle (swt). Um Sheikh sufi [mestre sufi] está mais próximo dEle (swt), por verdadeiramente seguir as orientações dos as-Salafu Salihin, se submeterem a uma das 4 Escolas de Fiqh [Jurisprudência] do Sunismo Tradicional. Logo, um Sheikh sufi não sai derivando regras do Alcorão diretamente, ao bel prazer de seu ego, como os salafis e wahabis. Logo, o Sheikh sufi está mais próximo à Verdade, à palavra de Allah (swt), à Sua Vontade. É para perto dEle (swt) que um verdadeiro Sheikh sufi encaminha o muçulmano. Temos um estudo sobre a perspectiva da amizade no Islam, que mostra que as pessoas que estão próximas de nós nos influenciam muito, segundo o Profeta (saas). Então, quando estamos próximos de um Sheikh, mestre sufi, este nos mostrará e nos influenciará para os bons exemplos dos Imames Mujtahid Mutlaq. O mestre sufi nos apontará para a verdadeira Sunnah do Profeta (saas). Assim o muçulmano estará se aproximando mais de Allah (swt). Um mestre sufi encaminhará o muçulmano para a Aqidah Ash’ari ou para a Aqidah Maturidi [escolas de crença islâmica]. Um mestre sufi encaminhará o muçulmano para a Aqidah Ash’ari ou para a Aqidah Maturidi [escolas de crença islâmica]. E encaminhará o muçulmano para uma das quatro escolas de jurisprudência islâmica, encaminhado assim este muçulmano para o Sunismo Tradicional. Se a pessoa não está seguindo uma escola de Aqidah e uma de Fiqh [jurisprudência], então, esta pessoa não é um muçulmano tradicional.

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Os wahabis e salafis não podem fazer isso, não têm esta autorização, mas fazem. Eles dizem que determinadas coisas são Haram [proibidas] com base na derivação direta do Alcorão, não encontrando base para tais afirmações nas quatro Escolas de Fiqh. Derivam do Alcorão sem autorização e sem habilidade para isso. O nome disso é Bidah [inovação]. Esse é um desvio grave para o Islam, que o salafismo comete e acusa as demais linhas do Islam de cometerem. O salafismo está modificando o Islam, eles são os reformistas do Islam. E sequer este nome: salafi, é correto se aplicar para eles, pois eles não seguem a geração as-Salafu Salihin.

O Alcorão nos diz, na (25:43) “Não tens reparado em quem toma por divindade os seus desejos?” Nesta passagem Allah (swt) alerta para não seguirmos aqueles que tomam seus desejos como divindades. É o que faz o salafi. Ele toma seu desejo como divindade, quando modifica a palavra de Allah (swt) no Alcorão a partir de seu ego, de seus caprichos. Faz esta derivação direta do Alcorão porque seu ego diz para ele que ele pode fazer. Não tendo nenhuma autorização para isso. Ele, o salafi, toma como Deus seu próprio desejo. E isso é reprovável de acordo com o Alcorão. Ainda no Alcorão (79:40-41), diz: “Mas quanto àquele que temia a posição diante de seu Senhor e restringia a alma do desejo, então de fato o paraíso será o seu refúgio.” Logo, Allah (swt) nos deixa claro aqui que Ele (swt) quer que nós temamos a Ele (swt), que nós O obedeçamos. Tenhamos a Sua Lei como a Lei Absoluta. E restrinjamos os impulsos do ego para alterar esta Lei. Quem não altera esta Lei, a Lei de Allah (swt), como fazem os salafis e wahabis, terá o Paraíso garantido, in Shaa Allah (se Deus quiser)

Por isso Sheikh Nazim, que cumpre esta função de encaminhar o muçulmano para uma escola de Aqidah e uma de Fiqh, ressalta que é assim que se aproxima de Allah Al-Ma’jid. Por isso, o Alcorão nos ensina que: “A aqueles que se esforçaram por nossa causa, nós os guiamos aos nossos caminhos” (29:96). Assim seremos mais obedientes a Allah (swt).

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Henrique Cabral e Abdul Qadir

A primavera de Rumi Há dois anos, aconteceu em Curitiba, o encontro “Primavera de Rumi”, primeiro evento no Brasil em homenagem ao poeta Sufi Rumi - Muhammad Balkhī (1207-1273) o Jalal ad-Din (“Esplendor da Fé”) que nasceu em 30 de setembro de 1207, em Balkh no atual Afeganistão. A Revista Al Hakim está sendo lançada em setembro, na Primavera de Rumi, homenageando esse grande Sufi, com reflexões sobre sua Obra. - Abdul Qadir – Ordem Naqshbandi do Brasil.

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O Primeiro Encontro Primavera de Rumi, ocorrido em setembro de 2019, foi um evento ímpar. Com dezenas de participantes, e pela primeira vez no Brasil, com tamanha envergadura, Rumi teve um evento em sua homenagem que aglutinou ordens sufis, acadêmicos, artistas e apreciadores de seus escritos. O evento foi um sucesso, com palestras muito interessantes e com muita Baraka [bênçãos]. A organização do evento pretendia repeti-lo em 2020, 2021 e assim por diante, mas devido à Pandemia ele não foi possível. Rumi foi um grande sufi, seus contos e poemas estão no topo do ranking dos livros mais lidos no Ocidente. Tamanho à profundidade do que ele escreveu, mais de 700 anos depois de sua morte, ainda ecoa no coração dos seres humanos dos dias de hoje. Rumi disse: "Eu sou servo do Alcorão enquanto tiver vida. Eu sou a poeira no caminho de Muhammad, o Escolhido. Se alguém cita alguma coisa, exceto isso, de minhas palavras, eu me afasto dele, indignado com estas palavras” [LIVRO FIHIMA-FIHI]. Se Deus permitir, em 2022, teremos o “2º Primavera de Rumi”, para dar voz e espaço para este grande personagem que difundiu como ninguém o sufismo em todo o planeta Terra.

Música sufi e cerimônia do Sama O grupo de música da Ordem Naqshbandi de Curitiba ensaiou especialmente para o evento Primavera de Rumi. Era a segunda vez que o grupo se apresentava em público. Com instrumentos adaptados para a realização do Maqam [escala musical], conseguiu criar o tecido musical para a Cerimônia do Sama ( o Giro Sufi), e logo após, a execução de alguns Nasheeds. O grupo se fortalecera anteriormente, num Workshop em 2017, em Curitiba também, oferecido pelo músico Oscar Osman, de São Paulo, que é um profundo conhecedor da música clássica turca. Na ocasião do Primavera de Rumi, o grupo ainda contou com músicos de apoio especialmente para o evento. No futuro, Insh'Allah, o grupo terá a oportunidade de adquirir instrumentos originais para poder, então, melhor propagar a música sufi - Abdul Karim Pozzo.

ri d a Q l u d b A e l a r b a C e u qi r n e H

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Rumi, New Age ou Islã? Por Daniel Rodrigues Placido

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O poeta Muhammad Balkhī (1207-1273) foi chamado de Jalal ad-Din (“Esplendor da Fé”) e apelidado de “Rumi”, ou seja, oriundo da região de Rum ou “Roma”, nome usado pelos muçulmanos da época para designar a parte da Turquia na qual ele nasceu. Sua obra literária e mística começou a ganhar maior interesse nos círculos literários do Ocidente, junto com outras obras clássicas da cultura islâmica, possivelmente a partir de obras como Divan Ocidental e Oriental de J. W. von Goethe, no começo do século XIX (1819, depois 1827), e projetada por traduções posteriores como as de Arberry e Nicholson, entre outros. 11


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m o c. d a o r b a s n o i t i s n a r t

.. .o poeta devotado a Deus refugia-se no ser impessoal que tudo permeou por toda a eternidade Diz Goethe no seu Divan Ocidental-Oriental:... Aqui devemos notar o seguinte: o verdadeiro poeta é chamado a apreender o esplendor do mundo e, portanto, estará sempre mais inclinado a elogiar do que a culpar. Consequentemente, ele [Rumi] procura encontrar o tema mais digno e, depois de ter esgotado tudo, finalmente prefere usar seu talento para louvar e glorificar a Deus. Este impulso é mais adequado ao oriental, pois ele tende sempre à exuberância e acredita que a vislumbra em plenitude ao contemplar a Divindade, de modo que em cada uma de suas realizações

poéticas

ninguém

pode

culpá-lo

por

excessos. O chamado rosário islâmico, no qual o nome de Alá é exaltado com noventa e nove qualidades, exemplifica essa ladainha de louvor e glória... o poeta devotado a Deus refugia-se no ser impessoal que tudo permeou por toda a eternidade. Assim Attar se retirou para a contemplação, e Jalaluddin [Rumi], um jovem puro, que também acabara de se afastar do príncipe e da capital, estava ainda mais pronto para ser despertado para estudos mais profundos. (...) Suas obras parecem um tanto heterogêneas: ele usa pequenas histórias, contos de fadas, parábolas, lendas, anedotas... Instrução e edificação são seu objetivo, mas no geral ele busca, por meio da doutrina da unidade... resolver todos os anseios e indicar que no Ser Divino tudo será finalmente submerso (GOETHE, 2010, 200-201)

e

transfigurado.

Em certo sentido, Rumi é um autor cujas peculiaridades permitem tamanho alcance. Alguns de seus poemas, mesmo que profundos em sua elevação mística e com referências teológicas sutis, não demandam a princípio uma grande erudição ou conhecimento especializado para serem apreciados e, com certeza, falam ao coração de todos que estiveram abertos a isso. Rumi não exalta reis e príncipes, como era comum nos panegíricos da época, mas a Deus como Rei e Senhor, em uma relação de proximidade amorosa com Ele, em uma orientação para os desafios cotidianos, talvez como os Salmos atribuídos ao profeta Davi, também populares e acessíveis. Até aqui, nada problemático nem surpreendente. Todavia, uma coisa que alguém como Goethe sabia muito bem, além de ser evidente a qualquer um que conheça um pouco sobre o Islã: Rumi é um muçulmano no mais pleno sentido da palavra, tanto em sua vida quanto em sua obra, e parece um tanto estranho sua imagem na cultura popular ser distanciada do Islã. Existe um Rumi new age, o qual pouco ou nada tem ver com a mensagem do Profeta Muhammad legada à humanidade, no século VII EC. A chamada Nova Era (New Age em inglês), cuja origem pode ser rastreada tanto no ocultismo teosófico europeu do começo do século XX quanto na contracultura orientalizante dos anos 60-70 nos EUA,

Contudo, nada disso oferecia pistas sobre a situação atual de Rumi: a de virar um fenômeno da indústria cultural. Seus poemas, versos e frases estão na boca de celebridades do mundo pop como a banda Coldplay

tem como pressuposto uma leitura secular dos autores religiosos, uma herança curiosa do Iluminismo do

ou a cantora Madonna, assim como circulam pelas redes sociais. Hollywood, diziam os rumores, ia fazer um filme com o ator Leonardo Di Caprio no papel de

instituições e mediações. Nesse sentido, é parte da lógica novaerista tomar um autor ou um texto clássico sem uma preocupação maior com o sentido e contexto religioso de sua obra, como é o caso de Rumi.

Rumi. Pessoas com camisetas escritas I Love Rumi são vistas circulando por aí. A biografia de Rumi é reproduzida na TV e reside no topo da lista de bestsellers; aparece até em maços de cigarros ou campanhas de publicidade! [ 1]

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século XVIII, segundo o pesquisador W. Hanegraaff. Trata-se de um espiritualismo sem religião, contra as

Mas existem outros aspectos ainda nesta questão, muito além da Nova Era e de suas apropriações livres de autores e fontes clássicas.

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Se toda tradução é traição, contudo, ela precisa respeitar o contexto da obra original Antes de mais nada, a questão da autenticidade de certos versos e poemas. Como sustenta o Dr. Ibrahim Gamard, tradutor de Rumi, as traduções populares deste último citam versões dos versos que não ocorrem nas suas obras, como esta de Nicholson, “What is to be done, O Moslems? for I do not recognise myself. I am neither Christian nor Jew, nor Gabr, nor Moslem”, traduzindo: “O que fazer, Ó muçulmanos? Pois não reconheço a mim mesmo. Eu não sou cristão, nem judeu, nem Gabr, nem muçulmano”. Essas versões dão a impressão de um Rumi que despreza a religião formal, inclusive o Islã, o que não condiz com sua condição de especialista e seguidor da Lei islâmica. Por outro lado, existe o problema de traduções/adaptações demasiado livres e de segunda mão, como as de Coleman Barks, doutor em literatura inglesa e responsável por popularizar Rumî especialmente nos EUA. Ou outras adaptações, como as do médico e escritor Deepak Chopra, deliberadamente formulador de reinvenções, e não versões, as quais ele diz que, não obstante, captam a essência do original. Coleman não é tradutor nem intérprete de Rumi, pois não lê e tampouco escreve em persa. Por volta dos anos 70, ele tomou contato com a obra de Rumi através de um poeta que lhe mostrou as traduções consagradas de Arberry e sugeriu que as colocasse em versos livres americanos. Depois de ter encontrado um líder de uma ordem sufi com o qual sonhara, Coleman reformulou as traduções vitorianas de Rumi, de forma livre, e minimizou a presença do Islã. Um exemplo concreto dado pela pesquisadora Rozina Ali: John Arberry traduz com fidelidade os versos “Whoever asks you about the Houris, show (your) face (and say) ‘Like this’”, “Seja quem quer que pergunte sobre as Houris, mostre sua face e diga ‘assim’”; já Barks traduz os mesmos versos como “If anyone asks you how the perfect satisfaction of all our sexual wanting will look, lift your face

and say, Like this.”, “Caso alguém pergunte a você como se parece a satisfação perfeita de nossos sexuais todos, levante sua face e diga ‘Assim’”. As Houris, virgens prometidas no Paraíso no Islã, somem da tradução de Barks, tirando dos versos o seu contexto religioso claro. Se toda tradução é traição, contudo, ela precisa respeitar o contexto da obra original: seria como traduzir John Milton ignorando o cristianismo, Bashô ignorando o budismo ou traduzir Tagore ignorando o hinduísmo. Diante disso, gostaríamos de fazer algumas considerações gerais sobre a questão de Rumi e o Islã. Primeiramente, o Corão é considerado uma revelação divina no Islã, a Palavra de Allah colocada na forma de livro. Indicia a presença divina no meio humano, descida ao coração dos crentes. É essencial no Islã a recitação, rememoração e meditação sobre as frases e palavras corânicas, além de ser um ideal de vida diária. Ora, nas obras de Rumi, o Corão (assim como a sunna) aparece em citações expressas, ou com termos técnicos nascidos dele, claro que sempre à procura de sentidos novos e diversos, algo distante, portanto, do literalismo. O próprio Masnavi de Rumi, muitas vezes chamado de “Corão em persa”, afirma que “as raízes das raízes das raízes da Religião é o Islã, no que diz respeito a revelar os segredos da união com Deus e certeza espiritual (da Verdade) … é o remédio para os corações, o polimento para as dores, o revelador dos significados do Alcorão… “(Livro I, Prefácio). E a quem o Corão e seus significados foram revelados em sua descida a este mundo? Ao Profeta Muhammad, pelo arcanjo Gabriel. O Corão sustenta que a prova de amar a Deus é seguir o Profeta; seguindo-o, Deus também nos amará (3, 31). Além disso, no Islã, a unicidade incomparável de Deus (tawhid) é expressa no início da fórmula da Shahada: La ilaha Ilallah, isto é, “Não há divindade além de Allah”, por sua vez eco da sura 112 do Corão:

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A tolerância ou diversidade para qual a obra de Rumi alude e sinaliza não existe apesar do Islã, mas por causa dele Dize: Ele é Deus, o Único! Deus! O Absoluto! Jamais gerou ou foi gerado! E ninguém é comparável a Ele.

diversidade de suas manifestações. (BENEITO, 2007, 15). Cosmos esse que só existe pois é mantido pela presença oculta de Deus e que, dessa forma, também é Ele. Mas sem panteísmo, pois o mundo é e não é Deus: tudo é semelhante tanto quanto incomparável a Ele, simultaneamente.

Como reitera Faustino Teixeira (2007, 5-6), toda a obra poético-espiritual de Rumi gira ao redor desta questão da Unidade, como uma dança ou dialética. O tawhid, a unicidade divina, como aponta William Chittick (2007: 25), não é uma simples fórmula dogmática ou uma imposição do que deve ser, mas uma orientação para o pensamento sobre Deus e de como estabelecer nossa relação com Ele. Sobre esta questão da Unidade divina, escreve também Rumi no Masnavi: A alegria e a mágoa dos amantes é Ele, Seu ordenado e salário pelo serviço é Ele. Se eles contemplarem algo diverso do Amado, Isso não seria amor, mas inútil paixão. O amor é a chama que, quando se incendeia, Queima tudo, exceto o Eterno Amado. Ele usa a espada do ‘não deus’ para tudo eliminar, a não ser Deus. Olha cuidadosamente: após o ‘não deus’, o que resta? Permanece o ‘porém Deus’, o resto se foi. Bravo, ó grande Amor, incinerador de ídolos” (Masnavi, V 586-590) (apud CHITTICK, 2007, 26). A busca apaixonada pelo Um (BARBOZA, 2007, 10-14) é em Rumi feita mediante o polimento do espelho do coração (através da oração, do dhikr, da vida íntegra etc.). Assim como a mariposa é atraída pela chama luminosa e ardente, imagem amiúde usada por Rumi, nossa alma é atraída irremediavelmente para aniquilação em Deus. Mas buscar o Uno absoluto não faz da multiplicidade do mundo uma mera ilusão, pois, em última análise, o múltiplo igualmente deriva de Deus e tem seu sentido último Nele. A pluralidade cósmica expressa as diversas facetas do Real, que, mesmo único, tem 99 nomes (atributos). O cosmos é uma manifestação de Deus, e também, após limpo, é capaz de espelhá-Lo, ou seja, expressar o Real em sua diversidade e riqueza. Amar a Deus é amá-Lo em sua unidade e na

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Colocadas essas observações de modo prévio, é anacrônico fazer de Rumi uma espécie de ecumenista turco-persa do século XIII, posto que o ecumenismo é uma criação moderna. Tampouco um “perenialista”, ideia que é uma invenção da filosofia europeia renascentista, antesala da modernidade, de Pleton e Ficino a Steuco, e reinterpretada por ocultistas e esoteristas dos séculos XIX e XX. Contudo, não é errôneo dizer isto: dentro do contexto islâmico daquela época, a obra de Rumi apontou para um horizonte de diálogo e tolerância entre as diferentes religiões, e por uma série de motivos. Quais? Em primeiro lugar, Rumi viveu (WERNECK, 2007, 20), boa parte de sua vida em Konya, que era um ambiente cosmopolita, com o trânsito de pessoas de várias religiões e culturas; inclusive muitas delas iam ouvir os ensinamentos dele, que, por sua vez, falava em sua obra com imensa reverência de outros profetas, especialmente Jesus, modelo de pobreza e santidade (SACCONE, 2007, 31). Afora isso, o próprio Islã reconhece manifestamente o caráter sagrado de outras religiões fundadas por profetas e que têm uma escritura sagrada, a formar o “povo do Livro”: conforme o Corão, judeus, cristãos e sabeus – às vezes, zoroastristas são acrescentados. A tolerância ou diversidade para qual a obra de Rumi alude e sinaliza não existe apesar do Islã, mas por causa dele (CHITTICK, 2007, 28-29). E, por último, é preciso notar as sutilezas com que Rumi interpreta ou discute certas concepções e questões religiosas, ainda mais nestes tempos em que o próprio Islã parece contaminado pelo fantasma do literalismo e sectarismo. O trecho a seguir do Fihi ma Fihi é emblemático a respeito, e com ele encerro este nosso pequeno texto:

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Ao fim e ao cabo, todo o mundo reconhece a Unidade de Deus

Estava falando um dia a um grupo de pessoas, entre as quais havia um certo número de não muçulmanos. No meio de minha exposição, começaram a chorar e manifestar emoção e êxtase. Somente um muçulmano entre mil compreende este tipo de conversação. Que entenderam, que lhes faz chorar? O mestre respondeu: Não é necessário que compreendam o espírito interno destas palavras. A raiz do assunto são as palavras mesmas, e isto vocês compreendem. Ao fim e ao cabo, todo o mundo reconhece a Unidade de Deus, que Ele é o Criador e o Provedor, que Ele tudo controla, que a Ele tudo retornará e que Ele é quem castiga e perdoa. Quando alguém ouve estas palavras, que são uma descrição e uma recordação de Deus, sobrevêm uma comoção universal e uma paixão extática, pois destas palavras emana o aroma de seu Amado e sua busca. Ainda que os caminhos são diversos, a meta é única. Não vês que são muitas as vias até a Kaaba? Para alguns o caminho parte de Rum, para outros de Síria, para outros de Pérsia, para outros de China, para outros, por mar, desde la Índia e Iêmen. Assim, pois, se considerais os caminhos, a variedade é muito grande, e a divergência indefinida; porém, quando considerais a meta, todos eles estão de acordo e são um. Os corações de todos se voltam até a Kaaba. Os corações têm um apreço, um ardor e um grande amor pela Kaaba, e nisso não há lugar para desacordo. Esse apreço não é infidelidade nem fé; quer dizer, este apreço não se confunde com os diversos caminhos que temos mencionado. Uma vez que hão chegado ali, todas essas disputas, lutas e divergências acerca dos caminhos - um homem que a diz a outro, 'eres um falso, eres um infiel', e outro que contesta de modo igual- uma vez que hão chegado à Kaaba, se vê que a contenda só se refere aos caminhos, que sua meta era una... Para resumir: agora todos os homens amam a Deus no mais profundo de seus corações, e O buscam, rezam para Ele e põem em todas as coisas sua esperança Nele, não reconhecendo a nada além Dele como onipotente e mandatário de todos os seus assuntos. Tal percepção não é infidelidade nem fé. Interiormente não têm nenhum nome... Agora bem, os literalistas entendem que a Sagrada Mesquita é aquela Kaaba à qual as pessoas se dirigem. Entretanto, os amantes e os eleitos de Deus entendem que a Sagrada Mesquita significa a união com Deus... (apud NASR, 1985, pp. 189-190) . NOTAS [1] Ver: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581274-a-moda-da-rumi-terapia-entrevista-com-elif-shafak? fbclid=IwAR1eRouZm-ih1Ppe2APAwy-cJdMwLfmVFLQIq-g0Oos2nr2Q6k01O6aMlVg [2] Ver: https://historyofislam.com/contents/the-classical-period/maulana-rumi/ [3] Ver: https://www.newyorker.com/books/page-turner/the-erasure-of-islam-from-the-poetry-of-rumi BIBLIOGRAFIA GOETHE, Johann Wolfgang von. West-East Divan: The Poems, with "Notes and Essays": Goethe's Intercultural Dialogues. Trad. Martin Bidney. Nova York: Global Academic Publishing, 2010. BENEITO, Pablo; BARBOZA, Carlos Frederico; CHITTICK, William; SACCONE, Carlo;TEIXEIRA, Faustino et alli. Rumi. O poeta místico da dança do Amor e da Unidade, In: IHU Online: revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 04 de junho de 2007, edição 222, pp. 3-38. Disponível In: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao222.pdf NASR, Seyyed H. Sufismo vivo: ensayos sobre la dimensión esotérica del islam. Barcelona: Herder editorial, 1985. ESPOSITO, John. The Oxford Dictionary of Islam. Oxford: Oxford University Press, 2003. RUMI, Jalâl ad-Din. Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996.

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Silenciar a mente, ouvir o mistério

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Por Sandra Benato (sandra.benato@gmail.com)

Pesquisas recentes no campo da física quântica abrem espaço para que experiências da tradição espiritual comecem a ser referendadas cientificamente. Se, para muitas pessoas isto amplia a compreensão do sagrado, por outro lado também nos distancia de um núcleo essencial chamado mistério, pois referendar cientificamente significa usar o raciocínio para justificar um fenômeno de uma ordem distinta do racional.

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Para o Šayḫ, o si mesmo é um aspecto da Presença divina, o Senhor que se desvela conforme a receptividade inerente ao preparo ou à disposição original de cada um de nós

De modo bastante resumido, algumas pesquisas enfatizam o fato de que a consciência é o aspecto mais básico da natureza e permeia todo nível de realidade, incluindo o cérebro humano. Nesse caso, consciência é entendida como um mecanismo conectivo não-local que permite que a informação seja compartilhada instantaneamente, independente das distâncias espaço-tempo. A mente humana, nessas teorias, faria parte deste campo. Outras pesquisas atribuem esta mesma habilidade ao coração, com a vantagem de que o coração é o primeiro órgão a se formar no feto. Aos vinte e dois dias já é possível ser visualizado em ultrassonografia, onde aparece como um tubo - a “corda” de que nos fala Ibn ‘Arabī? Sua pulsação coloca-se em correspondência com os ritmos terrestres, em especial as ondas gravitacionais que começam a ser estudadas. Estas, apesar de forças super fracas, foram detectadas no colapso de grandes objetos cósmicos, como estrelas de nêutrons e buracos negros. Seu aparecimento vincula-se ao movimento dos corpos, independentemente do tamanho que estes possuam e alteram o tecido espaço-tempo-energia. Formam-se, então, ondas gravitacionais fractais multidimensionais que contribuem para a função de onda integral do universo, de tal modo que tanto o universo nos modela quanto nós modelamos o universo. Ainda que não sejam diretamente percebidas, podem ser “sentidas” de modo subjetivo, especialmente em nossa própria relação com a noção de “tempo”.

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Se buscarmos o que nos ensina Ibn ‘Arabī, o coração é o próprio centro do mistério, o “ponto escuro” que abriga os nomes de nossa identidade essencial, a presença da ipseidade que responde pelo sentido tanto de “ser” quanto de “consciência” e que resume aquilo que chamamos de si mesmo. Para o Šayḫ, o si mesmo é um aspecto da Presença divina, o Senhor que se desvela conforme a receptividade inerente ao preparo ou à disposição original de cada um de nós. É este Senhor que concede luz, vida e consciência ao sentido de “eu”. Esse “eu” é, por um lado, o vazio que porta o Senhor ao mundo, mas também uma “sombra” da luz divina que sustenta o si mesmo. Temos então uma polarização ambivalente, uma correlação entre as duas faces do eu: uma voltada para o Senhor, outra para o mundo e suas sombras, que correspondem a Huwa/la-huwa, o ele/não-ele, o Real e o mundo.

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AL HAKIM O que mantém a correlação é a força atrativa da paridade que, no Kitāb inšā’ ad-dawā’ir o Šayḫ chama de terceira coisa, um existente/não existente. Para exemplificar ele usa a imagem do ferro e da limalha de ferro: entre esses há uma força atrativa que os aproxima. O ferro pode ser comparado a wujūd, o ser, ou ao Real, al-Ḥaqq, enquanto a limalha simboliza a multiplicidade de suas possibilidades de expressão. A ipseidade em ambos é a ipseidade do ferro, enquanto cada fragmento da limalha é intrinsicamente um aspecto da identidade daquilo chamado ferro. Entre essas múltiplas identidades e a identidade una há uma força ou um campo que as atrai e vincula. Temos aqui, portanto, um processo lógico do terceiro incluído: a limalha não é o ferro, nem o ferro a limalha, mas, por outro lado, em função da força atrativa entre eles, a limalha é ferro e o ferro, limalha, reciprocamente, de modo que podemos dizer que a identidade de cada fragmento de limalha é um aspecto da ipseidade do ferro. Esse processo do terceiro incluído é válido tanto para aquilo que a ciência hoje começa a entender quanto para quando questionamos aquilo que somos: entre o eu e o si mesmo tanto há uma força atrativa de identidade como também um distanciamento enquanto distinção intermediária, o barzaḫ, que, a exemplo da linha divisória entre a luz do sol e a sombra, possui infinitos níveis ou gradações. Estes graus são experienciados tanto como estados subjetivos quanto estações ou instâncias distintas entre o eu e o si mesmo, o que também se aplica aos diversos planos da constituição do mundo. O barzaḫ, com suas gradações de imagens, produz-se no processo de atração da terceira coisa, mas a terceira coisa só existe enquanto força atrativa e, portanto, não possui uma imagem nem uma realidade em si. Para Ibn ‘Arabī, o sentido imediato de identidade é o sentido de “eu”. O eu com o qual a maioria das pessoas se identifica é o sentido de eu bašarī, ou eumortal, que chamamos comumente de “ego” e que desaparece com a morte do corpo físico. O eu “real” é a presença luminosa da Identidade essencial correspondente ao Senhor. O eu-bašarī é sua sombra, constituída a partir da projeção dos diversos Nomes divinos que se desvelam na receptividade de cada criatura. Assim como cada Nome divino nomina uma realidade determinada, o eu mortal se configura a partir da vivência biográfica destas realidades sem o sentido luminoso da Presença.

Esse “eu” é, por um lado, o vazio que porta o Senhor ao mundo, mas também uma “sombra” da luz divina que sustenta o si mesmo

O resultado é falso eu, uma crença, um ídolo, tal como quando o Šayḫ fala do deus criado nas crenças.

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Assim, o eu-bašarī é constituído por múltiplas sombras que absorvem a luz dos diversos aspectos da identidade essencial, encobrindo-as com máscaras. Por sua vez, essas máscaras são deformações da luz, mas ainda assim absorvem desta uma certa autonomia de expressão.


AL HAKIM Em outras palavras é como se disséssemos: o si mesmo é uma presença divina qualificada por um atributo e nomeada segundo um Nome divino. O eu, inconsciente desta realidade, apropria-se desta presença condensando-a em sombras que acredita serem ele mesmo. As máscaras são, portanto, as diversas roupagens com que o eu mortal veste a luz da identidade, matrizes autônomas com ordens de densidade diferentes que se relacionam entre si, alimentam-se mutuamente e, como são inconscientes de si, apresentam-se de modo compulsivo. Isto nos leva a um anestesiamento ainda maior do ser, pois a identificação com a sombra implica no desconhecimento do Senhor, na falta de consciência do si mesmo. No entanto, assim como para o Šayḫ o ídolo aponta para o real, as compulsões das sombras também podem apontar para o si mesmo, de tal modo que quem conhece a si mesmo conhece seu Senhor. O auto-conhecimento é, portanto, uma incumbência básica. Para isso Ibn ‘Arabī aconselha um método muito simples, o da auto-observação. Ele conta que costumava anotar todos os seus atos e até mesmo seus pensamentos e confrontá-los com o adab, ou a cortesia fundamental para com o Senhor. Temos aqui o princípio do que ele chama de murāqaba, auto-exame, a observação da alteração dos estados do coração que conduz à meditação e contemplação. Convém lembrarmos que há uma diferença entre pensamentos e consciência. Pensamentos são derivações da palavra eu, dos estados reativos associados ao eu bašarī, e surgem de associações entre as imagens vivenciadas. Mesmo a imaginação mais criativa depende do registro de imagens já experiências e estas imagens são carregadas de

Em outras palavras, a consciência depende da presença do nome predominante na identidade essencial, segundo os atributos regentes em um determinado instante, enquanto os pensamentos derivam do eu mortal. A murāqaba a partir do estado de atenção ao coração, amplia a consciência pois a presença ontológica fundamental tem seu vórtice na profundidade do coração. O grande desafio é aprender a diferenciar entre a compulsão da sombra e a luz da presença. Se o sentido de consciência se apresentar polarizado provavelmente é apenas o fluxo do eu idealizado em sua pretensão de senhorio. A consciência, por ser consciência de, é um fenômeno transjetivo, inclui a transitividade entre sujeito e objeto.

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O autoconhecimento é, portanto, uma incumbência básica. Para isso Ibn ‘Arabī aconselha um método muito simples, o da auto-observação

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percepções e sentimentos reprimidos que formam as sombras. A consciência, por outro lado, é um estado integrativo que caracteriza uma Presença, uma realidade ontológica que funda o ser e que trás consigo um modo de conhecimento ou de apreensão da realidade.

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sensação, uma lembrança, um afeto, um som, uma cor, etc. sensação, uma lembrança, um afeto, um som, uma cor, etc. A princípio isso provoca um alinhamento energético entre o coração, a mente e as emoções, chamado de “coerência psicofisiológica”, a nível de ṣabr, peito. Se aprofundarmos a atenção chegamos ao que está por detrás do sentimento, pensamento ou da imagem que se apresentou e assim sucessivamente. Segundo Tirmiḏī*, a profundidade do coração admite quatro níveis simbólicos: ṣadr, o peito, associado ao aspecto exterior e a todas as vivências do eu-mortal; qalb, o coração, propriamente dito, onde circulam as luzes da identidade essencial, em sua rotação contínua,

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o que nos leva à oscilação dos estados qualitativos da presença e à diversidade de nossos momentos, fazendo de nossas vidas aquilo que podemos chamar de vivência teofânica; fu’ād, o interior do coração, onde essas luzes mantém-se por si mesmas, conduzindo-nos às estações do coração; e lubb, ou o núcleo, o segredo do senhor contemplando em si mesmo seu próprio mistério.

Assim, para ampliar a consciência é necessário deixar de nos identificarmos com nossos pensamentos, pois eles são apenas estados residuais associados à reatividade da sombra. Os pensamentos negativos fazem surgir emoções negativas e alimentam essas emoções de acordo com a imagem que retemos na memória. Isso reforça a sombra, que atinge um modo autônomo de funcionamento. Por outro lado, um pensamento que vem da Presença é completamente isento de conteúdo negativo ou de racionalização, explicativas, críticas, justificativas ou julgamentos. Possui uma condição lumínica ou luminosa, simbólica, apresenta- se como um desvelamento e não como uma produção de crenças. Um modo de não nos identificarmos com os pensamentos é simplesmente focar a atenção em outro processo, como no alento, que não é apenas a respiração, mas o fluxo da presença que conecta as duas faces do eu a partir daquela terceira coisa da qual nos fala Ibn ‘Arabī. E esta terceira coisa é o fluxo da atração amorosa. Escreve Ibn ‘Arabī: A raiz do alento é a propriedade do amor. O amor possui um movimento (ḥaraka) dentro do amante, e o “alento” é o movimento do suspirar, do anelo pelo objeto do amor, e nesse movimento de suspirar experiencia-se o gozo. E, conforme o Real afirmou: “Eu era um tesouro, mas desconhecido, e amei/amo me fazer conhecer”. Através desse amor o alento surgiu e se tornou manifesto” (SPK, p. 126). Esse alento apresenta uma qualidade que pode ser percebida como uma imagem, uma emoção, uma

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No Livro do Nome Allāh Ibn ‘Arabī escreve que essa observação como quando vemos nossa imagem no espelho: se observamos a partir de um angulo inadequado podemos ver a imagem de algo estranho ou de outra pessoa refletindo-se no espelho e corremos o risco de aceitar aquela imagem como se fosse a nossa própria. “Modifique sua posição diante do espelho”, diz ele, “e verá nele sua própria imagem” (p. 73). Olhar para a sombra e não se identificar com ela faz surgir a face verdadeira.

A princípio, a dificuldade em manter-se em

contemplação, é justamente a dificuldade em estabelecer silêncio interior

No entanto, o sentido de silêncio é exatamente o sentido do mistério do amor, pois é a atração da consciência amorosa do real que proporciona o desvelamento. Se as imagens surgem e evitamos a racionalização, ela é experienciada como uma presença em função do Nome que carrega e não como um raciocínio. Quando o Šayḫ expõe sobre a prática espiritual enquanto exercícios de polimento ou de receptividade do coração, escreve: Esvaziamos nossos corações do pensamento reflexivo e sentamos com al-Ḥaqq no tapete do adab, da atenção espiritual (murāqaba) e da presença, prontos para receber o que quer que nos chegue Dele… Assim, quando os corações e a aspiração espiritual (himma) estão focados Nele e realmente Nele se refugiaram - abandonando qualquer traço de reflexão ou investigação intelectual - (os corações) são purificados e abertos. E quando alcançam essa receptividade interior, Deus se manifesta a eles, ensinando-os, informando-os em um único instante, por visão direta ( os significados internos daquelas passagens obscuras das escrituras) **.

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AL HAKIM Pois o renunciante abandona o mundo para ser recompensado; aquele que confia, para atingir o objeto de seu desejo; o aspirante procura o êxtase para aliviar sua angústia; o adorador se esforça pela proximidade; e o gnóstico, pela sua força espiritual almeja a união. No entanto, o Real somente se revela àquele que já não é mais descrito por nome algum. (Trad. Stephen Hirstenstein, The Four Pillars of Spiritual Transformation, p. 30). F.cap. 53.

Perder o próprio nome significa retornar à condição de pura receptividade e esvaziamento das sombras, o vazio do servo sem sinal algum de senhorio, sem outra motivação senão a atração amorosa a seu Senhor Aqui podemos aprofundar uma outra possibilidade

m o c. r l b m u t. n a t a w e n a a t s a d

do que nos ensina o Šayḫ: ele não fala apenas em focar sobre o coração, mas no processo da terceira coisa, já que, inúmeras vezes também afirma que huwa, huwa, la-huwa, la-huwa: Ele permanece Ele, e o servo permanece o servo: o coração é tanto o local do encontro quanto o encontro ele mesmo, portanto, um canal vazio feito de alento, do desejo atrativo que aproxima, a terceira coisa. Se é o Senhor que se senta no trono, focar na terceira coisa é partir em

A orientação de Ibn ‘Arabī, portanto, segue uma metodologia distinta da maioria dos processos meditativos: o foco não é controlar a mente, mas esvaziar o coração dos conteúdos gerados pelos pensamentos, pois, escreve ele, o coração não é vasto o suficiente para conversação e dikr simultâneos, e a invocação e a lembrança só são verdadeiras quando partem do coração. Nele está o ponto escuro, o ponto da presença da ipseidade. Essa é sua própria experiência, quando em uma de suas Circumbulações à Caaba, tem a visão de um ovem, Fatā. Em um determinado momento esse Jovem toca um ponto em seu peito, que ele chama de o ponto escuro do coração, o ponto do mistério e do segredo, e Ibn ‘Arabī conhece todos os seus Nomes, isto é, todos os atributos do Real que nele habitam. Em alguns momentos Ibn ‘Arabī escreve de modo mais específico sobre a disciplina espiritual, como por exemplo, no Ḥilyat alabdāl, onde menciona quatro práticas fundamentais: o silêncio, o retiro, o jejum e a vigília. No entanto, o principal é saber “quem” se dedica a essas práticas, pois “o quem” denota o porquê, o onde, o como, o quanto e o quando. Escreve ele: O renunciante zelosamente abandona sua vida no mundo e aquele que confia em Deus entrega seus negócios a seu Mestre; o aspirante é tomado pela audição e pelo êxtase e o adorador adora ferventemente em atos de devoção; o gnóstico se enamora de sua firmeza espiritual e de sua resolução. E, no entanto, aqueles que possuem verdadeiro conhecimento e domínio espiritual se ocultam no Mundo do Invisível, de modo que permanecem desconhecidos ao gnóstico, ao aspirante e ao adorador e são invisíveis àqueles que confiam seus negócios a Deus e àqueles que renunciam ao mundo.

perplexidade, sendo perplexidade um dos nomes tanto para identidade essencial - pois a ipseidade é o “vórtice” que se apresenta no vazio e carrega consigo o maravilhamento de uma potência infinita - quanto um nome da terceira coisa, um nome do amor. Essa prática pode se estender igualmente para o cotidiano, diante das circunstâncias da vida que acionam o coração, que provocam um impacto ou uma ignição interior. Esse impacto é um sinal do chamado do Senhor, seja através de nossa própria necessidade ou através daquilo que o mundo ou as pessoas exigem de nós. Assim como na contemplação a mente interfere com pensamentos residuais, na vivência centrada no coração - a vivência teofânica o eu-bašarī, o ego, também interfere e necessariamente oscilamos em extremos, ora positivos ora negativos. Quando tentamos nos posicionar no caminho da terceira coisa, da atração que a circunstância propicia, imediatamente surge o modo ou a qualidade com que o amor/desejo se apresenta (ou seu oposto). Isto significa que perceber através da terceira coisa é como ver por um modo de suspensão da consciência ordinária em que sujeito e objeto se apresentam distintos, através de uma receptividade, uma percepção direta, isenta da história do indivíduo ou de seus conteúdos passados. Essa isenção propicia o esvaziamento onde o Senhor se mostra e, ainda que essa presença apareça em uma forma imaginal (sentimento, intuição, sensação, necessidade, tensão, ideia, etc.), ela não possui um vínculo histórico e, portanto, é indefinível em termos de forma ou substância, mas ainda assim podemos perceber sua qualidade. O que se desvela é uma presença, uma ignição viva.

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AL HAKIM canal ou um espelho da Presença da Generosidade. Se o eu-bašarī tomar para si essa tarefa, certamente entra em colapso, pois nele mesmo não possui a habilidade de ser generoso. Por outro lado, se assumir a Generosidade como seu próprio atributo, sua expressão será perversa, corrompida, comparável ao demoníaco, pois a força do nome é infinita e, quando distorcida pelos interesses do eu mortal, ocorre uma usurpação da Presença da luz em direção a uma sombra ampliada que certamente provoca sofrimento tanto para o indivíduo quanto para os demais. TONI ESCOBAR https://www.periodicodeibiza.es

Por outro lado, esse mesmo indivíduo, em algum momento de sua história, vai necessariamente sentir a força atrativa do Real. Então começa sua caminhada em direção a si mesmo, o voltar a face ao Real, como escreve Ibn ‘Arabī. Nesse processo a purificação é longa e dolorosa. Serão incontáveis estados e estações até o encontro com o Generoso.

Como a presença é a presença da ipseidade, se a revestirmos com os conteúdos das experiências históricas a corrompemos com a sensação de que há em nós um movimento compulsivo e recorrente onde as circunstâncias se repetem. No entanto, a presença se atualiza em um novo alento, em correspondência com um novo momento e através da relação com um outro Nome da realidade que se apresenta na relação com uma pessoa ou circunstância diferente. Quem repete a experiência como história é o eu mortal que se julga autor da experiência. Nesse sentido, a prática espiritual da murāqaba, tanto pode ser entendida como um conjunto de disciplinas destinadas a polir o espelho, quanto a vivência cotidiana que nos obriga igualmente a aperfeiçoarmos nosso caráter. De fato, como não existe ato sem um atributo que o qualifique, não existe uma prática espiritual ou um modo de consciência sem um atributo que a direcione. Assim, as luzes dos Nomes que nos entificam ou o modo como o Senhor, a Ipseidade Real - que chamo de Identidade Essencial se apresenta, determina a qualidade da experiência, tanto da vida cotidiana quanto da prática espiritual. Se, por exemplo, o Senhor é O Generoso, a experiência será relacionada à Generosidade em sua infinita potencialidade criativa; o servo, ou o eu-bašarī, experiencia em sua vida confrontos com a Generosidade, onde este atributo exige manifestação. A experiência recorrente destes confrontos aperfeiçoa tanto a expressão do Generoso naquele indivíduo quanto a habilidade do indivíduo em se fazer um

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A qualidade de suas experiências vai depender da sua abertura à Presença e do quanto a Presença realmente se manifesta nele. De qualquer modo, ele não tem outro caminho a não ser o si mesmo A vida cotidiana está repleta de circunstâncias que impactam o coração, trazendo um sentido de uma “ignição” interior. Esse impacto é um sinal do chamado do Senhor, seja através de nossa própria necessidade ou através daquilo que o mundo ou as pessoas exigem de nós. Assim como na contemplação a mente interfere com pensamentos residuais, na vivência teofânica o eu-bašarī também interfere e necessariamente oscilamos em extremos, ora positivos ora negativos. Quando tentamos nos posicionar no caminho da terceira coisa, da atração que a circunstância propicia, imediatamente surge o modo ou a qualidade com que o amor/desejo se apresenta. Isto significa que perceber através da terceira coisa é como ver por um modo de suspensão dos pensamentos em que sujeito e objeto se apresentam distintos, ver através de uma percepção direta livre da história do indivíduo ou de seus conteúdos passados. Essa isenção propicia o esvaziamento onde o Senhor se mostra e, ainda que essa presença apareça em uma forma imaginal (sentimento, intuição, sensação, necessidade, tensão, ideia, etc.), ela não possui um vínculo histórico e, portanto, é indefinível em termos de forma ou substância, mas ainda assim podemos perceber sua qualidade. O que se desvela é uma presença, um influxo vivo.

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!Por la verdad de la pasión proclamo que el deseo es la causa del deseo! Si el corazón no lo llevara dentro, Se o esvaziamento do ego é uma necessidade para a manifestação plena da presença e isto nos é praticamente impossível enquanto vivemos na dimensão física, prestar atenção no movimento da terceira coisa nos coloca em silêncio diante do mistério.

no sería el deseo así adorado.

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A presença do Nome não tem forma, não tem ponto e traço onde a mente possa se restringir - para entender, definir, julgar, compartimentalizar - mas uma abertura que recebe um saber latente vindo da profundidade do coração. Um bom começo é exatamente perceber a sombra que restringe, define, julga, nega, exige. A murāqaba, portanto, parte do afrouxamento das estruturas do eu mortal para dar passagem mais ampla à presença. A dissolução dessas barreiras não conduz ao caos ou a impulsos descontrolados pois esse espaço vazio tem seu próprio modo de inteligência. No entanto, é preciso entender que a abertura ao Nome divino que se apresenta no momento é a presença de um desejo imensamente maior do que o eu pode suportar. A insanidade advém justamente quando o eu-bašarī senta-se no trono do coração pois este é o espaço do mistério cujo único canal é o amor. Se todo manifesto advém do desejo divino em se fazer conhecido, o coração não é senão a passagem da Sua paixão, como Ibn ‘Arabī afirma em um de seus versos:

(Trad. Pablo Beneito, La Taberna de las Luces: Poesía Sufí de al-Andalus y el Magreb, 2004, p. 11). *Le Profondità del Cuore -Trattato sufi - (Bayān al-farq bayna alṢadr wa l-Qalb wa l-Fu’ād wa l-Lubb).Trad. de Demetrio Giordani, Ed. Jouvence, 2015, p. ** Trad. de James Morris em Listening for God: Prayer and the Heart in the Futūhāt, parte 2. Disponível em: tp://www.ibnarabisociety.org/articles/morris2.html.

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A importância do sufismo para a psicologia Por Helio Laureano* É importante salientar no início desse artigo que não tenho a ilusória pretensão de ampliar essa narrativa para toda a forma com que a Psicologia se manifesta, mas, situar nas vertentes que compõem o chamado Humanismo, especialmente a Fenomenologia-Existencial. Se puder ainda ser mais criterioso, pretendo dar voz especificamente à importância do Sufismo para a Gestalt Terapia. É muito conhecida entre os gestalt-terapeutas a relação que existe entre essa forma de terapia e o Zen budismo. Mas, ainda pouco explorada uma possível relação com o Sufismo. Porém, entre as temáticas essenciais da prática gestáltica teremos o conceito de Awareness. E é aqui o lugar onde proponho realizar esse encontro.

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Awareness é uma palavra da língua inglesa de origem alemã com tradução incerta para o português, mas, traz o conceito de “estar presente” no momento em que se encontra; atenção plena (e não atenção simples); estar consciente da própria consciência. Como poderíamos compreender isso na prática? Por exemplo, quando machucamos um dedo, nossa atenção se volta para esse dedo.

No cotidiano talvez nem nos lembremos que temos esse dedo e o quanto é importante para as tarefas diárias. Awareness é perceber que houve um machucado, uma alteração, em uma parte do meu corpo, o dedo, e que agora estou vendo tudo isso. Apesar de ser uma ideia um tanto complexa para o pensamento, a falta de Awareness no cotidiano nos leva a ir despercebendo os acontecimentos ao longo de nossas vidas e torná-los comuns, apesar de não o serem. Muitas vezes, quando estamos irritados com algo ou alguém, não tomamos consciência de como nossos braços, por exemplo, podem ficar tensionados. A não atenção a esse fato pode levar, ao longo dos anos, a sensação de dores, sem perceber, no entanto, sua origem. Então, as doenças se tornam mero resultado da idade ou de questões biológicas. Isso significa que o homem, sobretudo, o ocidental, tem a característica de dualizar as coisas, ou seja, separar corpo e mente, e não se dar conta de que mente e corpo são a mesma coisa. Somos nossos corpos. Somos nossos pensamentos. Não “tenho” um corpo, porque “sou” esse corpo. Não “tenho” pensamentos, porque “sou” os pensamentos. Em Gestalt acreditamos que o homem, ao aprender a desenvolver a awareness, ou self-awareness, terá condições de perceber a si próprio, enquanto um ser singular, e a estar naturalmente atento à sua interação com o meio. Um conceito importante em Fenomenologia explica que, tudo aquilo que não sou eu, ou seja, que não se refere a minha pessoa, é estranho e me causa angústia. Ao passo em que não consigo propor a mim mesmo soluções para esses estranhamentos, e a não sentir a realização de ter conseguido algo, passo a diminuir meus “ajustamentos criativos” e a estar fechado para novas interações. Acreditamos que os problemas modernos conhecidos como depressão, síndrome do pânico, entre outros, sejam frutos da aparente “impotência” ao lidar com aquilo que não é próprio do indivíduo, diminuindo a self-awareness, e criando atenção exagerada na tentativa de encontrar soluções para a sobrevivência em um mundo que parece tão hostil. Mas, como desenvolvemos awareness para uma vida mais atenta e que nos permita melhores ajustamentos criativos? Nesse ponto, apresento a importância do Sufismo.

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Para o sufi não há impedimentos É preciso salientar que não acredito que a Psicologia possa abarcar a grandeza dos ensinamentos sufis como uma prática clínica, mas, ao menos perceber o que é tão evidente para o sufi: a importância de viver o tempo presente. Para iniciar essa parte gostaria de trazer um verso de Rumi onde mostra alguém que abandona a dualidade e vive a unidade:

"Não sou corpo, não sou alma. A alma do Amado possui o que é meu. Deixei de lado a dualidade, Vejo os mundos num só. Procuro o Um, conheço o Um, Vejo o Um, invoco o Um. Ele é o Primeiro e o Último, O exterior e o interior. -Nada existe senão Ele.”

O sufi é alguém que vive sua prática. É um modo de vida. Sua existência é permeada de awareness, pois tudo o que faz, fala e pensa, é sagrado. Isso não se refere ao conceito de sacralização, mas, de importância. Não há vida espiritual sem experiência, sem o mergulho. Rumi disse que não podemos conhecer ou realmente saber sobre a pérola que existe no mar sem mergulhar nele. Não há existência verdadeira (consciente) sem um mergulho, quando abrimos mão do controle sobre os aparentes resultados. Para o Sufi não há impedimentos. Não há um corpo, uma alma, mesmo sabendo que existem; pois, nesse mergulho na experiência espiritual, o fim de uma noção dual da existência se abre para uma vida plena, uma percepção ampla, onde realmente se faz parte do Todo. Há uma entrega, um “deixar de lado”, que conduz a uma abertura ao novo, àquilo que minha consciência, sem awareness, impediu de conhecer e sentir: uma ligação que permite um constante ajustamento no mundo das coisas. Esse é outro detalhe importante: o mestre sufi, mesmo retirando-se da vida cotidiana muitas vezes, não se ausenta dela realmente; vive no mundo, cria e cuida de sua família, participa em sua comunidade, trabalha e se “ajusta criativamente”, sem perder sua singularidade. Essa possibilidade de um “ajustamento criativo” tão importante à prática da Gestalt Terapia só é possível com uma vida consciente, uma vida com awareness. Não se trata de buscar por algo, como a felicidade, prosperidade, saúde, amor e conquistas. Trata-se de um viver onde a atenção é desfocada de uma solução e amplia-se para a experiência: como sou eu? O que tenho feito? Como esse assunto mexe comigo? O que aconteceu com o corpo no momento dessa conversa? Quando estou com medo, o que há com meu corpo? Onde sinto no corpo o medo, a raiva, a felicidade, as experiências? O que espero dessa situação? Como sinto quando estou pensando nisso?

/ m o c. a v n a c. w w w / /: s p t t h

Ao perguntar-se, o indivíduo está contando sua própria história, narrando sua vida, participando dela. É o que esperamos como resultado final da terapia da Gestalt, e é o que o Sufismo também incentiva.

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AL HAKIM Para finalizar, gostaria de deixar uma história Sufi para reflexão:

Logo depois acordou novamente. Sentia frio e fome demais para dormir. Foi então que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pedira um tipo de comida diferente. Mal terminou sua história, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se saísse do amanhecer, que dizia: - Velho homem, que fazes sentado aí? - Estou me contando minha própria história respondeu o lenhador.”

*Gestalt-terapeuta, especialista em Psicoterapia Fenomenológica-Existencial, diretor do Instituto Bashô, membro da Sociedade Brasileira de Etnopsiquiatria e Sociedade Internacional de Psicologia da Religião.

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“(...) O lenhador levantou-se e caminhou na direção de onde vinha a voz. Andou, andou e andou, mas não encontrou nada. Então sentiu mais cansaço, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperanças, mas isso não parecia tê-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também não o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu.


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Simurg o pássaro solitário Por Sonia Lyra, PhD

Na mística, o poeta persa ‘Attar utilizou no século XII esta enigmática ave mística. Em sua Conferência dos pássaros conta como “centenas de pássaros de brilhante plumagem decidem ir em busca do Simurg o Pássaro Rei. Atravessam geografias escarpadas e mares traiçoeiros ao longo de centenas de anos de voos penosíssimos, até que sobram apenas trinta aves. Por fim os trinta pássaros maltratados têm acesso à antessala do palácio de Simurg. E, no mesmo instante em que vai acontecer o prodigioso encontro, descobrem a maravilha: eles mesmos eram o Simurg que com tanta paixão haviam buscado: em persa, Simurg significa “Pássaro Rey”, porém também “trinta pássaros” (LOPEZBARALT, 1998: 29). Estas e outras intuições unitivas custaram a vida de muitos místicos, porém encontram-se respaldadas pela teologia islâmica.

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Todos aqueles que estiveram ou estão profunda e autenticamente enamorados sabem que o anseio

Mais que uma busca das causalidades históricas dos relatos místicos, o que se quer é apreender a presença de um arquétipo e sua atuação na alma humana. Como em todos os tratados espirituais, o desenvolvimento apresenta o itinerário da mente para Deus, ou “o plano clássico do itinerário celeste da alma em sua ascensão à sua pátria de origem” (CORBIN, 1995: 172), seguindo o itinerário aviceniano do pássaro, pertença ele ou não à Avicena.

A ascensão da alma através das etapas percorridas por Mohammad em seu Mi’râj (viagem noturna para a busca da gnosis, não sendo esta de ordem física, nem corporal) pode também ser experimentada pelo sufi..

Para tal apreensão pressupõe-se uma aproximação crescente a este valor arquetípico, ao preço de esvanecer-se a visão, ela mesma, em seus aspectos plásticos e aos pressentimentos mais secretos da alma que a acompanham, com a possibilidade de tornar-se o símbolo uma mera alegoria. Em todo caso, “para que o autor do relato da “ascensão celestial” possa proclamar ao final: “Sou eu quem está neste relato” ou como o fez Avicena, no final do “Relato do pássaro”, rodear-se por pudor de um certo humor - é preciso que o caso do Profeta em seu Mi’râj nos seja proposto não apenas como um simples fato histórico, seja qual for a sua historicidade, mas sim como um caso exemplar ao qual o místico deve reproduzir” (CORBIN, 1995: 173). O símbolo traz em si uma intuição poética profunda que pode tomar por imagens, realidades do mundo externo, ainda que não traduza e não permita tradução ao emitir suas imagens. A alegoria, porém, é tradutível e corresponde às realidades conhecidas. A ascensão da alma através das etapas percorridas por Mohammad em seu Mi’râj (viagem noturna para a busca da gnosis, não sendo esta de ordem física, nem corporal) pode também ser experimentada pelo sufi ou o ‘ârif (o adepto, o gnóstico) o qual converter-se-á em herói espiritual, podendo ascender aos cumes da vida contemplativa e da felicidade da experiência visionária.

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É dessa forma que ocorrerá o relato de Avicena, através do pássaro que se eleva de “Céu em Céu até o santuário do Rei de beleza incomparável” (CORBIN, 1995: 174), sendo então ao sufi, dado o privilégio de reproduzir e imitar o Profeta, tornando-se um autêntico adepto, cujo término revela a plena “consciência mística do encontro, o alcance desse Simesmo ao qual se diz “Tu” (CORBIN, 1995: 175). Como se sabe, o percurso até o cume da montanha, atravessa dolorosos percalços e indizíveis dificuldades no período iniciático da purificação, tornando-se cada vez menos conflitante no período da iluminação e, chegando por fim ao júbilo experimentado pelo místico no período unitivo .

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último daquele que ama, é a fusão total com o amado, sendo o amor humano uma réplica do amor divino. Porém, como falar de tal enamoramento senão através de símbolos? Portanto, o que aqui será feito, é abordar alguns aspectos da tradução espanhola, de um texto de Avicena já traduzido do persa que, entre outros, tem por título a língua dos pássaros, a língua do Verdadeiro Real e o Relato do pássaro (CORBIN, 1995) o que não deixa dúvidas de que o tema é sutil e complexo, cabendo à autora talvez, não mais que uma interpretação, ao modo de um comentador. Também, dada a profundidade e sutileza do tema, não será possível, dentro de algumas poucas linhas, traçar as transformações da personalidade que ocorrem no processo da transformação.


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...E assim o espírito nesta contemplação está na solidão de todas as coisas, desnudo de todas elas, nem permite em sí outra coisa que a solidão em Deus.

A quinta é que não é de alguma cor determinada; e assim é o espírito perfeito, que não só neste excesso não tem nenhuma cor de afeto sensual e amor próprio, mas nem ainda particular consideração entre o superior e o inferior, nem poderá dizer do modo, nem da maneira, porque é abismo de notícia de Deus a que possui, segundo se diz” (LOPEZ-BARALT, VO, 670).

Tais estados, ou estadios, ou estágios são mencionados aqui apenas para manter a memória de que, o Relato do pássaro, será compreendido de diferentes maneiras, de acordo com a perspectiva do buscador, de onde ele se encontra ao longo desta via. Cabe observar que no Relato do pássaro, o Profeta está presente como o arquétipo do sufi fazendo com que, ao ser transposto para a primeira pessoa, tornese o ta’wil da alma” (CORBIN, 1995: 175), sendo que, o que se aspira não é senão uma elevada edificação espiritual, sendo este ta’wil uma espécie de término, finalização do processo de ascenção mental aos itinerários celestiais. Para López-Baralt, o conhecimento que surge na busca da divina luz, é semelhante ao pássaro solitário no telhado que está agora, acima de todas as coisas. É um modo de falar dos estados contemplativos propostos pela mística sufi, e também pela mística

Tal síntese, porém, oculta o “lugar” do chamado: a angústia. O percurso e seu chamado, estão à mão, a todo instante, ali onde a dor e a doença afligem o coração do homem. “Os homens se diferenciam entre si, nos momentos da prova” (AL-‘ARABI ADDARQAWI, 1989: 85) e, a angústia (fâqah) oculta em si a intensidade do desejo de união. Nesse tempo de provas e angústias, “a alma perdeu suas asas e é arrastada até que se agarra às coisas sólidas” (CORBIN, 1995: 1840). Hoje, a psicologia analítica conhece esse estado da alma (psique) como projeção de conteúdos inconscientes em pessoas, coisas e/ou situações. É também aqui que essa mesma vertente da psicologia oferece uma nova possibilidade de trabalho para a purificação da alma

cristã, através de São João da Cruz. Sugere-se que tal estado traz consigo algumas propriedades. Entre elas: “A primeira, que ordinariamente se põe no mais alto; e assim o espírito neste lugar se põe em altíssima contemplação. A segunda, que sempre tem o bico voltado para o lugar de onde vem o ar; e assim o espírito vira aqui o bico do afeto para onde vem o espírito do amor, que é Deus. A terceira, é que ordinariamente está só e não permite nenhuma outra ave junto a sí, a menos que, pousando alguma junto, logo se vá; e assim o espírito nesta contemplação está

consiste inicialmente em encontrar as imagens ocultas nas emoções que, ao interagirem com a

na solidão de todas as coisas, desnudo de todas elas, nem permite em sí outra coisa que a solidão em Deus. A quarta propriedade é que canta muito suavemente; e o mesmo faz a Deus o espírito nesse tempo, porque os louvores que faz a Deus são de suavíssimo amor, saborosíssimas para sí e preciosíssimas para Deus.

que os alquimistas antigos (e os sufis entendem muito bem de alquimia) chamavam de imaginatio vera, isto é, um método dialético que

consciência, geram um processo de transformação nos nós emocionais do coração. No universo aviceniano do Relato do Pássaro, não se pode avançar para as alturas onde se encontra o pássaro solitário sem o símbolo, sem seu doloroso canto inicial, sem a nostalgia do seu chamado para que a alma desperte, trabalhe e triunfe. É aqui que a simbologia das asas “se impõe espontaneamente como um arquétipo” (CORBIN, 1995: 186) o qual pode ser retomado na apreensão de suas diferentes intensidades, até que “a visualização possa ser tão intensa e a alma pode transformar-se tão integramente em visão, que o símbolo se desvanece no brilho da transparência: é então sua própria imagem” (CORBIN, 1995: 186).

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Notas [1] LYRA, Sonia Regina, Ph.D. PósDoutorado/Filosofia: Kierkegaard: Obras Pseudonímicas e Obras Edificantes/UFPR; Doutorado/Ciências da Religião: Nicolau de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento/PUCSP; Mestrado/Filosofia: Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus”/PUCPR; Analista Junguiana: O Monge como Arquétipo Universal/IJUSP/AJB/IAAP; Graduação: Psicologia/PUCPR. Diretora do ICHTHYS Instituto: www.sonialyra.com.br. Autora de vários livros. Professora. Analista e Supervisora Clínica em Consultório Particular. Pesquisadora em Imaginação Ativa. [1] Todas as traduções do espanhol para o português, são traduções livres desta autora. REFERÊNCIAS AL- ‘ARABI AD-DARQAWI. (1989). Lettere di un Maestro Sufi. Tradotte Dall’Arabo e Annotate da Titus Burckhardt. Milano: Archè. CORBIN, HENRY. (1995). Avicena y el relato visionario. Barcelona: Ediciones Paidós. LÓPEZ-BARALT, LUCE. Para la génesis del “pájaro solitario”de San Juan de la Cruz. Universidad de Puerto Rico y Harvard University.

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Aprendendo Islã on line Esse rostinho lindo e alegre é de Rabiatu Nuhu, fotografada por sua mãe Neusa Job dos Santos (Jamila), mostrando uma das tarefas realizadas que recebeu da professora Elaine kaussar. Ela e outras crianças sufis fazem parte de uma escola virtual sobre o Islã que iniciou em junho com um pequeno grupo de crianças de três a cinco anos, assessoradas pelas mães. Hoje se reúnem duas vezes por semana, mesmo tendo as presenciais retornado. O encontro com as crianças fortalece também a relação entre as mães criando laços entre elas, que moram em cidades e regiões diferentes. A professora Elaine Storti conta o que a levou a propor a formação da sala de estudos on line sobre o Islam para as criança: "Inicialmente, sempre valorizei o ensino religioso para crianças e adolescentes porque passei minha infância e parte de minha adolescência na igreja cristã.

Lá eu encontrei as diretrizes para desenvolver parte de minha personalidade e segurança para lidar com situações adversar em minha vida. Desenvolvi a fé em Deus para resolver os problemas que eu não dava conta. Aprendi que milagres acontecem quando suplicamos de coração a Deus e que existem perdão e misericórdia, bases para eu crescer positiva aos desafios mundanos. Durante minha jornada ao Islã tive exemplos dentro da comunidade muçulmana de ensinamento islâmico aos menores pelos pais, escolas, madrassas e mesquitas. Meus filhos tiveram um pouco de oportunidade de viver tudo isso, mas o desafio de passar o islã para eles foi árduo, pois com um mundo cada vez mais cheio de tecnologias, fica complicado manter os pequenos longe de celulares, tablets e outros aparelhos. Com isso, a tendência é que as crianças e adolescentes se tornem adultos extremamente individualistas e até mesmo egoístas".

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"Eu acho o Islã um caminho lindo" A professora Eleine conta que quando percebeu que a Ordem Naqshibandi do Brasil não oferecia aulas gerais do islã para crianças e adolescentes, "fiquei um tanto preocupada com o futuro de nossas crianças, por isso pedi autorização para abrir um grupo de encontro pelo zoom a fim de passar a história dos profetas no islã e o ABC do islã para as crianças interessadas, pois vi que os adultos estão amparados com encontros virtuais e aulas diárias postadas em nossos grupos. Daí iniciamos o grupo de crianças da ordem naqsh e senti que em cada encontro o vínculo no grupo foi aumentando, o respeito entre os participantes predominando e a vontade de estarmos todos juntos nascendo".

Meu nome é Nuria Tondo. Tenho 8 anos. Sou muçulmana quase desde que nasci. Estou participando das aulas de Islã do grupo Crianças Naqshbandis. Gosto muito de nossas aulas, são muito divertidas e muito boas também. Nas aulas aprendemos muitas coisas importantes do islã, gosto muito de todos os colegas e também da professora.

Para Elaine, esse trabalho com as crianças ajuda a construir a formação das crianças, "espero que essas sementes sejam os próximos professores no futuro para formar grupos sobre a maior fortuna que Allah deixou para nós, que é o ensinamento de nossa religião".

Eu acho o Islã um caminho lindo. Eu faço as orações, faço o Dhikr e Du’a. Acho a professora Kawthar muito gentil, muito amorosa e muito legal.

Pois para ela, o ensino religioso vai de encontro com essas questões, procura ensinar valores que podem mudar este paradigma, pois tem como foco formar um cidadão que saiba viver em sociedade, que saiba colaborar, que conheça o significado das ações empáticas e que saiba não apenas sobre seus direitos, mas, também, o direito do próximo.

surpresa! Muito bonito o prêmio que ganhei.

Amo as aulas, já tivemos aulas sobre o profeta Abraão (as) e de Moises (as). As aulas são importantes para tudo no Islã e também nelas já tivemos sorteios de prêmios muito legais. Já ganhamos véu para as meninas e taqia para os meninos, coisas que são muito importantes para os muçulmanos.

Aprendi uma música de cumprimentos em árabe super legal. Na aula teve uma gincana super legal, teve uma gincana super legal também, tinha prêmio

Mas, o que eu mais gostei foi a história do profeta Abraão (as). Acho muito bonito que Allah deu o dom para Abraão (as) para que ele não gostasse de outros deuses e para que sempre ele buscasse a verdade. Queria muito que mais irmãozinhos e irmãzinhas entrassem para o nosso grupo".

"Estou certa de que a formação religiosa para as crianças e adolescentes aliadas às matérias voltadas ao processo natural escolar, como matemática, português, inglês, entre outras trazem valores essenciais que uma sociedade precisa para se desenvolver de forma saudável e equilibrada, constata.

@Meralmeri

Nuria, uma das alunas enviou uma mensagem sobre a experiência de aprender o Islã on line:

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Mil anos de textos sufis I. AL-SARRĀJ E O ARREPENDIMENTO Compêndio sobre o Sufismo, de ‘Alī as-Sarrāj aṭ-Ṭūsī (Ed. de R.A.Nicholson. Al-luma‘ fi at-taṣawwuf, Leyden - London, 1914). Segue extratos da tradução feita por Richard Gramlich e que aparece em sua obra La Mística del Islã. Editorial Sal Terrae. 1992, p. 61

Sobre as estações e suas realidades [41] O shayḫ Sarrāj (f. 378/998) dizia: quando se pergunta o que se quer dizer por “estações”, pode-se responder assim: por “estações” se quer dizer o lugar no qual o ser humano está colocado diante de Deus, e que consiste nos atos de culto, nas lutas espirituais, exercícios ascéticos e concentração em Deus. Disse Deus: Isto vale para os que temem minha estação e temem minha ameaça (A. 14:14).

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E disse: Não há nem um dentre nós que não tenha uma estação determinada (A.37:164). Dizia ainda o shayḫ: Perguntaram a Abū Bakr sobre a palavra do Profeta “Os espíritos são como tropas agrupadas”. E respondeu: “Agrupadas segundo suas estações”. Estações são, por exemplo, o arrependimento, a meticulosidade, a renúncia, a pobreza, a paciência, o contentamento, a confiança em Deus, entre outras.

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Sobre os estados O shayḫ dizia: por “estados” denota-se uma lembrança pura que desce no coração ou na qual o coração mergulha. Contam que Junayd dizia: “Um estado é um arrebatamento que desce sobre o coração e que não perdura”. Também se diz que o estado é a lembrança secreta de Deus, e conta-se que o Profeta disse: “A melhor lembrança de Deus é a secreta”. O estado não é feito de lutas espirituais, atos cultuais e exercícios ascéticos, tal como as estações que já mencionamos. Estados são, por exemplo, ter Deus sempre presente, a proximidade, o temor, a esperança, a saudade, a familiaridade, a tranquilidade, a contemplação, a certeza, entre outros O estado não é feito de lutas espirituais, atos cultuais e exercícios ascéticos, tal como as estações que já mencionamos. Estados são, por exemplo, ter Deus sempre presente, a proximidade, o temor, a esperança, a saudade, a familiaridade, a tranquilidade, a contemplação, a certeza, entre outros…

A estação do arrependimento [43] Abū Ya‘qub Yūsuf ibn Ḥamdān as-Sūsī dizia: “A primeira estação dos que se dedicam completamente a Deus é o arrependimento”. Quando perguntamos a Sūsī sobre o arrependimento, ele disse: “É o movimento que afasta de tudo o que o saber religioso reprova e aproxima de tudo o que o saber religioso aprova”. Perguntaram a Sahl ibn ‘Abdallāh o que era o arrependimento. Ele disse: “Que não te esqueças de teus pecados”. Quando perguntaram a Junayd , esse falou: “É esquecer de teus pecados”. Dizia o shayḫ: “A resposta de Sūsī sobre o arrependimento informa sobre o arrependimento dos

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noviços, dos que iniciam, buscam e se esforçam - esses são os que ora atuam por seu bem e ora contra eles mesmos; o mesmo vale para o que disse Sahl ibn ‘Abdullāh. A resposta de Junayd, que o ser humano esqueça seus pecados, informa, ao contrário, sobre o arrependimento dos místicos, que não pensam em seus pecados porque a majestade de Deus e a rememoração contínua de Deus se apoderou de seu coração. A resposta de Junayd, que o ser humano esqueça seus pecados, informa, ao contrário, sobre o arrependimento dos místicos, que não pensam em seus pecados porque a majestade de Deus e a rememoração contínua de Deus se apoderou de seu coração.

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Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o arrependimento, respondeu: “O arrependimento do arrependimento”. Perguntaram também a Dun-nūn e ele respondeu: “Os crentes ordinários se arrependem dos pecados; os escolhidos se arrependem da indiferença”. Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o arrependimento, respondeu: “O arrependimento do arrependimento”. Perguntaram também a Dun-nūn e ele respondeu: “Os crentes ordinários se arrependem dos pecados; os escolhidos se arrependem da indiferença”. Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o arrependimento, respondeu: “O arrependimento do arrependimento”. Perguntaram também a Dun-nūn e ele respondeu: “Os crentes ordinários se arrependem dos pecados; os escolhidos se arrependem da indiferença”. Portanto, o que a elite da elite, os que possuem conhecimento e experiência interior têm a dizer sobre o arrependimento, é o que Abu l-Ḥusayn an-Nūrī respondeu quando lhe perguntaram em que consistia o arrependimento: “O arrependimento consiste em que te afastes de tudo exceto de Deus”. É precisamente a isso que se referia Dun-nūn quando dizia: “Os pecados dos que estão próximos de Deus são as boas obras dos piedosos”; e: “O desejo de ser visto do conhecedor é a retidão dos noviços”. Pois, se o conhecedor está firme nas obras que aproximam de Deus e nos atos de obediência através dos quais buscou a proximidade de Deus, no tempo em que considerava a meda e estava ainda no início, e colocou mãos à obra e a realizou; se as luzes da guiança correta o circundam e a solicitude de Deus toca em sua sorte; se a proteção divina o envolve e seu coração consegue ver a majestade de seu Senhor e medita sobre a obra de seu criador e suas boas obras desde o princípio,ele presta atenção a seus atos de obediência, nas atividades religiosas e nas obras que o aproximam de Deus, do mesmo modo que praticava nos tempos em que era noviço, e apoiava-se neles e acreditava neles. Que imensa é, no entanto, a diferença entre os que se arrependem! Um se converte dos pecados e dos maus atos, outro se converte dos deslizes e das indiferenças, e outro ainda se converte de fixar-se em bons atos e obras de obediência… Ao arrependimento segue a meticulosidade.

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A Muralha do Mistério “No extremo Oriente existia uma muralha de mistério, da qual poucos se aproximavam. Algumas vezes, alguns conseguiam não só chegar perto, como escalar a muralha. Apesar de ser imensamente difícil chegar ao topo, alguns continuavam até conseguir. Quem tinha sucesso nisso e olhava para o outro lado, era visto sorrindo, até atravessar a muralha e desaparecer para sempre. Com o tempo, os moradores daquele país repararam que os que estavam se aproximando da muralha tinham algumas características em comum: seus olhos como que atravessavam as coisas, mirando o infinito; mostravam-se absortas e autocentradas, como alheias ao exterior e meditando sobre questões que os homens a seu redor não conseguiam entender, e, além disso, não respondiam o que se lhes perguntava. O que havia além da muralha? Isso deixava as pessoas muito curiosas, mesmo que não quisessem correr o risco de tentar subi-la. Dessa forma, muitos traçaram uma estratégia. Quando notassem que uma pessoa de olhos compenetrados e visão interior estivesse se voltando para a muralha, trariam correntes e ficariam aguardando-a perto dela. Assim que perceberam que um jovem tinha se aproximado e começava a subir a muralha, acorrentaram os seus pés. Não obstante ele prosseguiu na escalada, subindo, subindo, até que chegou ao topo. Quando olhou para o outro lado, abriu um sorriso esplendoroso, como os outros antes dele. Os homens ao pé da muralha, imensamente curiosos, puxaram a corrente, trazendo o homem de volta. Repletos de ansiedade, começaram a perguntar-lhe muitas coisas, para saber como era o outro lado. Só que o jovem não respondeu nada, em absoluto. Quando ele pisou no chão novamente, ele tinha perdido o dom da fala”. Adaptado por Daniel Plácido, com autorização do editor Sérgio Rizek. In: Jacob Nedlemann, Filosofia Viva. SP: Attar.

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A sopa do Dervishe O Šayḫ tinha um discípulo que era cozinheiro e vendia sopa no mercado. Sempre que ia ao mercado, parava na loja deste discípulo e tomava uma tigela de sopa em pé, ali mesmo. Um dia, quando estava com a tigela de sopa nas mãos, passou alguém com a pretensão de ser um dervishe, vestido com um manto sufi multicolorido * que saudou-o com grande cerimônia. “Gostaria”, disse ele, “que me mostrasses o caminho para Deus. Por favor, diga-me o que eu teria que fazer para encontrar esse caminho e agirei conforme me instruas”. O Šayḫ entregou-lhe a tigela de sopa que tinha nas mãos e disse: “Parte fundamental do teu trabalho é tomar essa sopa”. O dervishe pegou a tigela e tomou a sopa; quando terminou de comer, o Šayḫ disse-lhe: “Agora limpe, no teu manto Sufi, esse resto de sopa que respingou nas tuas mãos, e faça isso sempre que comer algo”. “Mas Mestre”, respondeu o dervishe, “não posso fazer isso! Podes me sugerir alguma outra coisa?” “Se não consegues fazer nem menos isso”, disse o Šayḫ, “não conseguirias fazer qualquer outra coisa que te dissesse. Vá embora! Não serves para esse trabalho!” O Šayḫ em questão era Awhad al-dn Balyani (f. 1287), segundo relato de ‘Abd alRahmān Jāmī (f. 1492), escritor persa que escreveu sobre ele em um dicionário sobre a biografia dos santos, o Nafahat al-uns (O Hálito da Intimidade -Tehran, 1958, pp. 258-262). Através de Jami sabemos que Balyani descendia de uma linhagem de Sufis que remonta a Abu ‘Ali Daqqaq, cujo genro e herdeiro espiritual era Qushayri (f.1074) - autor de um importante tratado chamado Epistola sobre o Conhecimento Sufi** . Associado especialmente a Abu Najib al-Suhrawardi (f.1168), fundador da Ordem Suhrawardiyya, isolou-se por onze anos no Monte Lingām, e frequentou vários mestres, além do poeta místico Shustari (f.1269), tendo ele mesmo escrito poesia. Dentre seus versos: A Verdade: não se pode ver outro senão Deus, Pois, sem dúvida, os mundos não são outro senão Ele. Até que eu contemplasse Haqq (O Verdadeiro, O Real) com meus dois olhos nunca deixei, nem por um instante, de procurá-Lo a cada alento. Eles dizem que não O podemos ver com nossos dois olhos: Eles são assim, e eu, com meus dois olhos, O vejo a cada instante. (1862)

* Em torno do século XIII, com a expansão das ordens sufis organizadas (tarīqa, plural turuq), desenvolveu-se o hábito de diferenciar as diversas ordens bem como o status de cada discípulo (noviços, avançados, etc.) através de mantos e vestimentas de formas e cores distintas, e outros aparatos como acessórios de cabeça; o kashkūl ou tigela de mendicantes; diferentes formatos e contas para os rosários de oração; o tabarzīn ou machadinha de duas cabeças; etc. ** Existe uma publicação desse texto - Risāla fī ‘Ilm al-Tasawwuf - com o título de La Scienza Iniziatica, em tradução de Giorgio Giurini. Turim: Il Leone Verde, 2003.

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Bata nesse lugar Por Beatriz Del Picchia

“Dhun-Nun, o Egípcio, explicou graficamente numa parábola como extraíra os conhecimentos ocultos nas inscrições faraônicas. Havia uma estátua apontando com um dedo sob o qual se achava a inscrição: “Bata nesse lugar para obter um tesouro”. A origem dessa inscrição era desconhecida, mas gerações inteiras haviam golpeado o lugar indicado. Como era feito de pedra sólida demais, os golpes deixaram poucas marcas e o significado permaneceu oculto. Certo dia, ao contemplar absorto a estátua, Dhun-Num observou que exatamente ao meio-dia a sombra do dedo indicador, ignorada durante séculos, traçava uma linha no pavimento ao pé da estátua. Marcou o ponto exato, muniu-se de instrumentos necessários e com uma barra de ferro fez saltar uma lousa. Aconteceu ser essa uma espécie de alçapão no teto de uma caverna subterrânea. Esta continha estranhos objetos de tal feitura que permitiram a Dhun-Num deduzir a ciência de sua fabricação, há longo tempo esquecida, e assim pode adquirir os tesouros e aqueles outros de gênero mais convencional que os acompanhavam”. (1) Os sufis insistiram sempre na praticabilidade de seu ponto de vista, afirma Robert Graves na introdução do antológico livro Os sufis (2) E os contos fazem parte dessa praticabilidade como recursos técnicos operacionais que não poderiam expressar-se de outra forma. Neste ponto semelhante ao koan zen, sua sabedoria não pode ser alcançada exclusivamente pela parte racional e cognitiva de nossa mente, que rapidamente absorve conteúdos fixando-se em seus supostos significados, ideias e princípios sem deixá-los chegar às partes mais profundas da psique (3). Ao invés disso, por vias indiretas e sutis como uma linha de sombra, os contos sufis convidam para que acessemos tesouros de sabedoria ocultos sob um alçapão no teto de nossa caverna mais subterrânea. 1-SHAH, Idries: Histórias dos dervixes, Ed Nova Fronteira, 1976, pg 59 2-SHAH, Idries: Os Sufis, Ed Cultrix, 1992-93, pg 15 3-DOUGLAS-KLOTZ, Neil: The little book of Sufi Stories, Hampton Roads, 2018

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Poema de Jalaluddin Rumi

Somente a Ti te elegi, de todas as coisas do mundo; Poderás ver-me sentado cheio de dor? Meu coração é como uma caneta em Tua mão, Tu és a causa da minha alegria ou melancolia. Exceto Tua vontade, que vontade tenho eu? Salvo o que Tu mostras, o que vejo eu? Tu fazes brotar de mim ora um espinho ora uma rosa; Às vezes sinto o perfume de rosas e às vezes arranco espinhos. Se me mantém assim, assim estou. Se quiseres que eu seja assim, assim sou. No cálice onde da cor à alma Quem sou eu, o que são meu amor e meu ódio? Fostes primeiro e último serás; Fazes que meu último seja melhor que meu primeiro. Quando estás oculto, eu me conto entre os infiéis; Quando se manifestas, sou dos fiéis. Não tenho nada que não me outorgaste Tu; O que buscas de meu seio e de minha manga? Poema: XXX do Diwan de Tabriz - Poema extraído do livro: “Diwan de Shams de Tabriz” de Jalaluddin

http://claudine.aquarelle.free.fr/

Rumi (sufi do séc. XIII), pg. 89.

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As alegrias com o Amado Espiritual NÃO PODEM SER EXPRESSAS EM PALAVRAS

Em resumo, o Rei o amava ternamente, E ele, como a lua, desvanecia-se naquele sol. O desvanecimento dos amantes faz com que cresçam mais fortes, Assim como a lua cresce mais brilhante depois de diminuir. Os doentes comuns anseiam pelo remédio para sua enfermidade, Mas aquele que está doente de amor grita: "Aumenta meu desvanecimento! Jamais provei vinho mais doce que este veneno, Não há saúde que possa ser mais doce que esta doença! Nenhuma devoção é melhor que este pecado (de amor), Anos são um momento comparados com este momento!” Por muito tempo ele viveu com o Rei dessa maneira, Com o coração ardendo, como um sacrifício vivo.

www.flickr.com/photos/alberto_c/7177458109

Assim passou sua vida, e no entanto não alcançou a união que desejava. A espera paciente consumiu-o, sua alma não podia suportá-la; Ele arrastou-se pela vida em dor e ranger de dentes. Por fim, sua vida acabou antes que alcançasse seu desejo. A forma de seu Amado terreno ficou oculta para ele; Ele partiu e encontrou a união com seu Amado Espiritual. E então disse: "Embora lhe faltem roupas de seda e de lã, É mais doce abraçá-la sem esses véus. Despi-me do corpo e de suas ilusões, E fui admitido na mais íntima união". A história pode ser contada até este ponto, Mas o que se segue está oculto e não pode ser expresso em palavras.

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Mesmo que fales e tentes exprimi-lo de cem maneiras diferentes, É inútil; o mistério não fica mais claro. Podes cavalgar até a costa do mar, Mas então tens de usar um cavalo de pau (isto é, um barco). Um cavalo de pau é inútil em terra firme, É o veículo especial dos viajantes no mar. O silêncio é este cavalo de pau, O silêncio é o guia e suporte dos homens no mar. Este silêncio que te causa aborrecimento Esta lançando gritos de amor audíveis para o homem espiritual. Tu dizes: "Como é estranho que o homem espiritual esteja calado!" Ele responde: "Como é estranho que não tenhas ouvidos! Embora eu dê gritos, tu não ouves; Os ouvidos sensuais, por mais apurados que sejam, são surdos [aos meus gritos". O homem espiritual, por assim dizer, grita em seu sono, Pronunciando milhares de palavras de consolo, Enquanto o homem carnal a seu lado não ouve nada, Pois está adormecido e surdo à voz do outro. Mas o homem do espírito que quebrou seu barco Mergulha no mar como um peixe do mar (da Verdade). Então, ele não esta nem calado nem falando, mas é um mistério. Não há palavras para exprimir seu estado. Esse ser maravilhoso não está em nenhum desses estados; Seria irreverência explicar mais amplamente o seu estado. Essas ilustrações são fracas e inapropriadas, Mas não se pode conseguir mais adequadas dos objetos sensíveis.

m o c. r l b m u t. h t r o n n r e d o m

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Oração anônima

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Aquele que sabe e não sabe que sabe, Está dormindo. Que ele se torne um, inteiro! Que ele acorde! Aquele que soube, mas já não sabe,

Que ele veja o princípio de tudo uma vez mais! Aquele que não deseja conhecer, e mesmo assim diz que quer conhecer: Que ele seja guiado à luz e à segurança! Aquele que não sabe, e sabe que não sabe, Que através desse conhecimento saiba! Aquele que não sabe, mas pensa que sabe, Que fique livre da confusão da ignorância! Aquele que sabe, e sabe que ele é: Esse é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens podem ser transformados. Eu que sei, e não sei que sei: Que eu me torne completo, que eu acorde! Eu, que soube, mas já não sei, Que eu possa, uma vez mais, ver o princípio de tudo. Eu, que não desejo saber, mas que mesmo assim digo que quero saber: Que eu seja guiado para a luz e a segurança. Eu, que não sei, E sei que não sei: Que através desse conhecimento eu saiba! Eu, que não sei, mas penso que sei: Que eu me livre da confusão da ignorância! Aquele que sabe, e sabe que ele é, Esse é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens podem ser transformados.

Que assim seja.

Essa antiga oração anônima é conhecida em todo o mundo islâmico. De acordo com a tradição, esta composta de vários hadiths do Profeta Muhammad, interlaçados como pérolas em um colar. (The Inner Journey: Views from the Islamic Tradition. Ed. William Chittick. Canadá: Morning Light Press, 20

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r ei h s a C· e e g _i m m o @

Nós que sabemos, e não sabemos que sabemos, Que possamos ser um, inteiros! Que possamos ser transformados! Nós que soubemos, mas que não mais sabemos, Que possamos ver uma vez mais, O princípio de tudo! Nós que não desejamos saber, Mas ainda assim dizemos que queremos saber, Que possamos ser guiados para a luz e a segurança! Nós, que não sabemos, e sabemos que não sabemos, Que através desse conhecimento possamos saber! Nós que não sabemos, mas pensamos que sabemos, Que sejamos livres da confusão da ignorância! Nós que sabemos, e sabemos que ele é, Ele é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens possam ser transformados! Assim foi com nossos antepassados, Assim será com nossos descendentes E assim é conosco. Afirmamos esse compromisso.


Resenhas AL HAKIM

Ordens Sufis no Islã Iniciação às Confrarias Esotéricas muçulmanas no Irã xiita e no mundo sunita O sufismo é um tema que tem despertado bastante o interesse no Ocidente nos últimos anos, basta ver a popularidade nas redes sociais de autores sufis como Rumî e Hafis, contudo, nem sempre o sufismo é visualizado em sua vinculação histórica e espiritual com o Islã.

Nesta obra, o autor, Mateus Soares de Azevedo, influenciado pelo perenialismo de F. Schuon e outros, apresenta o sufismo de forma introdutória, tanto em sua história quanto em suas práticas, métodos e principais ordens (turuk), como o esoterismo da tradição islâmica, derivado, em última análise, da linhagem do Profeta Muhammad. A perspectiva perenialista do autor enriquece a obra, pois permite comparações pertinentes do sufismo com outras tradições, como a cristã. Esta é mais uma obra preciosa da Polar Editora, a qual tem publicado há anos no Brasil, com qualidade e seriedade, obras clássicas sobre ou das tradições espirituais do Ocidente e Oriente próximo.

Desde a sua criação, em 1996, a Polar Editorial tem por objetivo demonstrar que a Sabedoria que muitos tem buscado nas tradições orientais também está presente em grandes obras e autores das tradições ocidentais, ou seja, em nossas próprias raízes culturais, e que essa Sabedoria, apresentada com diferentes roupagens, conforme o lugar, a época e a cultura em que é veiculada, é essencialmente a mesma em todos os tempos e lugares. Por isso, a Polar tem uma linha editorial muito definida: publicar grandes obras e autores das tradições espirituais que fazem parte das raízes culturais brasileiras, mas que ainda são inéditas em nossa língua.

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Resenhas AL HAKIM

"The Seeker Of Orient" Documentário sobre o filósofo e orientalista francês Henry Corbin por Daniel Placido

The Seeker Of Orient é do grande filósofo e Corbin. Sob a brilhante Taheri, alternam-se

um documentário a respeito orientalista francês Henry direção do iraniano Masoud depoimentos de amigos,

Talvez o mais oriental dos ocidentais, ou mais ocidental dos orientais, Corbin não perdeu, contudo, sua raiz protestante e ocidental, afinal, o Oriente não tem apenas uma conotação geográfica: encontra-se na

discípulos e especialistas na obra de Corbin, mais antigos ou mais recentes, como Seyed Hossein Nasr, Hermann Albert Landolt, Christian Jambet,

alma de quem desvela dentro de si o conhecimento espiritual, locus interno em que a aurora nascente de Boehme ou as luzes inteligíveis de Sohravardî, não

Mohammad Ali Amir Moezzi, Pierre Lory, Dariush Shayegan, Yann Richard, Karim Mojtahedi, Michel Cassé, Daniel Proulx, Jean-Claude Carrière, Gholamhossein Ebrahimi Dinani, Seyed Abdollah Anvar, Nasrollah Pourjavady, Inshallah Rahmati, Jeanfrançois Perouse, Nahal Tajaddod, Hasan Seyed Arab, Shahram Pazouki, Bahman Zakipour, entre outros. Além dos depoimentos e testemunhos, o filme faz um tour por lugares e instituições que marcaram sua demanda pelo Oriente, tal como um cavaleiro espiritual em busca do Graal.

importa a terminologia usada, levantam-se de forma gloriosa. Duração: 110 min Direção: Masoud Taheri Origem: França, Suíça, Itália, Turquia, Iran, Japão, EUA Legendas em inglês Link: https://vimeo.com/ondemand/222302? fbclid=IwAR2YPrrJ5AeZNmEouFZVXOQPz5ktdpa7rwJ5qPvx8fWoxWzDV8uZeatUjk

Acompanhamos o itinerário anímico e biográfico de Corbin, desde a infância, passando pela formação filosófica sob a tutela ou influência de nomes prestigiosos como E. Gilson, A. Kojève e outros, até o contato com a fenomenologia heideggeriana. Mas o encontro realmente providencial, com a ajuda de Massignon, foi aquele com a obra do sheik Ishraq, Sohravardî, por excelência o intermediário filosófico entre o mundo grego e o persa. Encontro que teve a força de uma transfiguração. Depois de uma temporada na Turquia, acompanhamos o filósofo, agora orientalista de renome, a tecer laços sociais e intelectuais duradouros com o Iran, ao mesmo tempo em que aprofunda seu conhecimento e paixão pelo xiismo, sem perder o vínculo com a Europa, seja através da universidade francesa, seja através das reuniões do Círculo de Eranos.

Fundada em 1986, a ATTAR EDITORIAL dedica-se à publicação de clássicos da literatura das tradições religiosas do Oriente e do Ocidente, além de outros temas em sua maioria ligados à Antropologia, à Estética e à História das religiões. Rua Madre Mazzarelo, 336 CEP 05454-040 - São Paulo, SP tel / fax: (11) 3021 2199 -attar@attar.com.br

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M IN IC UR SO

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Editora Garbha-Lux A Editora Garbha-Lux faz publicações sobre os temas centrais dos estudos e investigações do Instituto Garbha e do Núcleo Lux-Dzyu que são, prioritariamente, o budismo mahayana, o gnosticismo cristão e o gnosticismo islâmico. Sua equipe tem trabalhado duro para preservar ensinamentos profundos e, ao mesmo tempo trazer livros de qualidade espiritual para o idioma português. Publica estudos bem contextualizados, traduzidos, comentados e estruturados para o estudante que procura uma conexão com as verdadeiras tradições espirituais. O próximo lançamento da Editora Garbha-Lux será um livro do professor Alberto Brum: O Colégio Arcano e Filosófico dos Templários de Toledo. O livro faz uma investigação sobre a presença dos “cavaleiros do Graal” na liderança da escola dos tradutores, centro de um renascimento filosófico em Toledo na Espanha (séc. XII). A relação entre os primeiros templários (o núcleo dos fundadores) com os monges de Cister, com a tradição filosófica árabe e com o ismailismo. A Editora Garbha-Lux é uma instituição sem fins lucrativos. https://www.garbhalux.org.br

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S E G A M I K O O B E V I H C R A T E N R E T N I / S O T O H P / M O C. R K C I L F. W W W / /: S P T T H

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m o c. t o p s g o l b. t r a i f u s y o d

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