Diagramação: Minha demora é curta - Stephanie Almeida

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MINHA DEMORAÉ E CURTA Vida cot idiana das mulheres do ser tão mineiro

Depois de quarenta minutos de entrevista: “Mas não vai nem esperar eu coar o café?” “Não, Dona Zefinha, minha demora aqui é curta” “Fica aí, moça. Tem biscoito.” “Eu vim só pra saber a sua história mesmo”

Stephanie Almeida nasceu em São Paulo em 1994. Apaixonada por jornalismo literário e o Norte de Minas, lugar de origem da família. Com o intuito de dar voz às mulheres da região, intermediou suas histórias a partir de seus relatos.

Stephanie Almeida

Por meio desta jornadade um mês, Stephanie tenta resgatar suas origens ao buscar ouvir relatos de mulheres do sertão mineiro. Dentro das histórias das personagens, você conhecerá maisdoquesuasvidas,mas o cenário em que estão inseridas. O sertão mineiro apresenta obstáculos que grande parte da população desconhece, mas que estas mulheres consideram corriqueiras. A vida cotidiana das personagens vai te supreender. Simples relatos trarão mais do que o entretenimento ao leitor, o fará refletir sobre a própria vida. As diferentes vozes femininas apresentadas soarão como lições de vida aos ouvidos de quem se dispor a escutá-las.



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MINHA DEMORAÉ E CURTA Vida cot idiana das mulheres do ser tão mineiro

Stephanie Almeida




Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP-Brasil. Catalogação na fonte Almeida, Stephanie Nome do livro / Stephanie Almeida 1.ed ._São Paulo: Edição do Autor, 2017. Livro-reportagem [Jornalismo] 92 p. 10x16,5cm 1.

Minas Gerais 2. Monólogos I. Título 370CDD

FICHA TÉCNICA Orientador: Cristhiano Aguiar Projeto Gráfico e capa: Aline Fortunato Ilustração: Suellen Samara Revisão: Maria de Fátima Almeida Entrevistadas: Ana Ferreira Rosa, Atanasia Silva Senna, Ernestina Soares Costa, Josefa Cardoso de Moura, Josefa Soares de Araújo, Maria Alves, Maria de Lourdes Antunes Pereira, Maria José Alves Silva, Maria Rosângela Andrade Almeida, Rosa e Rosimeire Alves de Souza.


Aos meus queridos pais, que tornaram a mi-

nha vida, e tudo o que existe nela, realidade. Este livro é uma homenagem às nossas origens e a valorização da nossa família.

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DÊ OUVIDOS

Este é um livro sobre a vida das mulheres do

sertão de Minas, mas também é sobre a minha. Eu não nasci em meio ao cerrado mineiro, não comi castanha de pequi¹ na infância, nem tive meus filhos com parteira mas, de certa forma, essa sensação corre por minhas veias. Vem do meu sangue. Minha mãe é mineira, meu pai é mineiro. Todos do mesmo lugar, mesma cidade, até da mesma família. Ali tudo é familiar pra mim. ¹ fruto do pequizeiro, nativo do cerrado brasileiro

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“Cê é neta de quem?”, me perguntam.

Quando respondo, os rostos sérios se abrem em sorrisos, abrem também as portas para eu entrar e tomar café. Eu estou em casa. Durante o mês inteiro em que estive no sertão mineiro, eu andei em Montes Claros, o grande centro comercial da região, visitei as pequenas cidades São João da Lagoa, Ponto Chique, Campo Azul, Ubaí e Januária. Todos esses lugares em que estive, me senti em casa.

Lembro de estar a caminho de Ponto Chi-

que até Campo Azul. A estrada era de terra, passava no meio de fazendas. Nos perdemos e entramos em uma roça. Buzinamos para pedir informação. Veio um senhor de dentro da casa. Antes de dar a informação, perguntou nomes, onde íamos, quem conhecíamos lá, de quem éramos filhos e netos. Foi assim que passamos meia hora conversando com Seu Zé de Cipriano, assim ele se apresentou. Ele contou histórias: tomou remédios caseiros do meu tio, brincou com meu avô, conhecia meus primos. E a informação? Antes de dá-la, Seu Zé de Cipriano nos chamou para tomar café, sua mulher tinha feito bis-

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coito. Tive de recusar, minha demora por ali era curta. Só no sertão mineiro acontece essas coisas. Estávamos eu, minha mãe e minha irmã perdidas, mas acabamos encontrando um amigo.

Família é tudo no Norte de Minas. O que im-

porta é o seu sangue, de quem você é neto ou filho. Se meus avós foram amigos de alguém, eu também serei tratada como tal, assim como meus filhos. No sertão mineiro, ninguém se esquece dos amigos.

Eu jamais esquecerei das amigas que entre-

vistei durante um mês de viagem. Conhecer cada mulher é conhecer o próprio Norte de Minas. Por dentro de cada história você vai perceber como é viver trabalhando com enxada, o pouco acesso aos serviços públicos básicos como a saúde, o avanço das religiões protestantes na região, o trabalho infantil, o alcoolismo, entre tantas outras características. Todas essas mulheres são verdadeiras historiadoras, cada uma com a sua linguagem, o seu jeito, o seu caso. Eu, como jornalista, busquei ao máximo dar a voz a estas mulheres. Eu sei, é apenas um livro, não é capaz de transmitir som. Mas, eu espero que, ao

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ler estes monólogos, você reconheça cada jeitinho, perceba como cada uma escolhe as palavras para se expressar. Sinta-se como eu me senti, uma amiga, sentada no sofá da sala ouvindo outra mulher falar sobre ela mesma. Quem sabe assim você se sentirá tão próxima dela que seria até capaz de escutar sua voz.

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SUMÁRIO CAPÍTULO I

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Josefa Cardoso de Moura E r n e s t i n a S o a r e s C o s t a Rosimeire Alves de Souza Maria Rosangela A. Almeida A t a n a s i a S i l v a S e n n a Josefa Soares de Araújo A n a F e r r e i r a R o s a R o s a

13 23 30 39 44 52 58 62

Maria de Lourdes A. Pereira

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CAPÍTULO II: OS FILHOS

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E r n e s t i n a S o a r e s C o s t a M a r i a A l v a r e s C a r n e i r o

75 77

Maria de Lourdes A. Pereira

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CAPÍTULO III: QUAL É O SEU SONHO?

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E r n e s t i n a S o a r e s C o s t a A n a F e r r e i r a R o s a M a r i a A l v e s C a r n e i r o M a r i a J o s é A l v e s S i l v a R o s a

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Rosimeire Alves de Souza

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ABRA OS OLHOS

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CAPÍTULO I

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Eu sempre ficava curiosa em relação aos

partos feitos na roça. Minha mãe teve duas filhas de parto normal e sempre disse que nunca teve medo. “Se a minha avó teve três gestações gemelares na roça tranquilamente, eu que estou no hospital cheia de assistência, não tenho que me preocupar”, ela diz. Você vai perceber ao longo deste livro que muitas das mulheres que você conhecerá nasceram e tiveram seus filhos com parteira na roça. A parteira é o começo de tudo, é com a ajuda dela que todas as histórias começam, inclusive as deste livro.

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“Era tudo parteira lá em casa. Minha vó

que fez o parto da minha mãe quando eu nasci lá em Ubaí. Eu não queria ser parteira, não. Um dia, eu já tava criando o meu segundo filho, veio uma mulher que morava pertinho de mim. Eu era nova ainda nesse tempo, acho que eu tinha 25 anos. Ela mandou chamar a minha mãe, mas ela tinha saído e pediram pra eu ir. Eu sabia porque eu já tinha ganhado menino, mas não sabia como que era o parto. Quando eu cheguei lá, ela já tava nas horas de ganhar o neném.Virgem nossa! Tava aquela sangueira pelo chão tudo! Ela falou: ‘Eu chamei você mesmo é porque eu tô desse jeito. Mandei chamar Dona Irene, mas ela não tava. Então que era pra você vir pra me ajudar’. Ela tinha dobrado o colchão,deitado nele e forrou as tábuas da cama. Nesse tempo, a gente não usava nem plástico, nem nada, né? Um pouco, eu ouvi bater. Ela tava embrulhada com o forro e aí deu aquele bate assim, não chorou nem nada. Eu fiquei calada. Daqui a pouco eu pensei ‘Uai! Deve ser esse menino que nasceu’. Quando eu arribei o forro, eu olhei e a menina tava pretinha, tava

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com a laçada no pescoço. Nasceu com o cordão laçado três voltas. Eu nunca tinha visto aquilo, mas Deus me ajudou e me iluminou tanto que na hora eu peguei ela e virei três vezes. ‘Descoisei’ o laço. Ela não chorou. Eu corri e peguei uma bacia de rosto. Emborquei em cima da cabeça dela e bati. Eu bati e ela chorou. ‘Eu não vou cortar o umbigo’. Eu não sabia como é que cortava. Eu já tinha ganhado dois, mas era mãe que cortava. Nem olhar eu não olhava. Aí a menina chorou, chorou. O rabo tinha ficado roxinho e foi clareando. Foi a única coisa que eu fiz que foi mistério de Deus. Se não fosse, ela tinha morrido na hora. Ela já tava roxinha, toda pretinha. Era uma menina branquinha e tava toda roxa. ‘Agora cê corta o umbigo’, ela falou. Eu falei que eu não sabia cortar, mandei esperar minha mãe chegar. Depois mãe foi lá e ficou cuidando dela. Foi tudo bem. Esse foi o primeiro parto que eu fiz.

Depois eles ficaram chamando eu de par-

teira. ‘Ah, agora que vocês fica falando que eu sou parteira, a hora que uma me chamar, eu nem lá vou’. Aquilo parece que foi abrindo a minha me-

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mória. Vinha uma, daqui a pouco vinha outra me chamar pra ficar mais ela quando chegasse o dia de ganhar o menino. Eu recebia o menino. Eu recebi mais de cinquenta menino. Caminhei umas três vezes indo pra Brasilinha¹ levando as mulheres. Teve uma que até ganhou na estrada. Ela tava deitada no meu colo quando eu vi que ela esquentou. O moço tava dirigindo na frente e o doutor que fazia estágio tava do lado.

‘Esse parto de hoje vai servir pra nós’, ele falou.

‘Pra nós, não. Pra você. Eu vou ficar é aí na

frente’

Quando acabou, ela tinha ganhado o me-

nino no meu colo. Eu falei ‘Pode parar o carro que ela tá ganhando o neném’. O doutorzinho desceu do carro pra ver como ela tava, o menino já tinha nascido. Aí ele cortou o umbigo. Tava faltando quinze minutos pra chegar em Brasília.

Eu fiz dois partos difíceis. Teve um que o me-

nino nasceu sentado. O marido da mulher me mandou chamar lá de madrugada. Tava só eu e ele

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com ela. Cheguei lá, ela tava ruim, ruim e dor, mais dor, mais dor. Depois eu peguei a luz, era candeia. Eu peguei a candeia e iluminei pra ver como é que ela tava. Minha Nossa Senhora do Céu, essa mulher tá é com o menino sentado. E agora? Como é que a gente vai fazer com esse menino? Não tinha ninguém, não tinha nem carro pra carregar a mulher. Moça, eu fui rezando, fui pegando com Deus pra me ajudar:

‘Meu Deus, o Senhor é que vai fazer esse

parto. Não é eu, não. Me ajuda! Não deixa essa mulher morrer em minhas mãos.’

Com pouco, ela foi crescendo e o neném

desceu. Dava pra ver o sexo da menina assim na frente. Eu nunca tinha visto um trem desse. Minha Nossa! Essa mulher vai morrer. E ela tava que não aguentava de dor. Pois foi descendo devagarinho e Deus ajudou que veio os pés dela de uma vez. ‘Agora é as mãos’. Eu dava só uma mexidinha nela porque nem sabia o que podia fazer do jeito que tava. Eu rezei um Pai Nosso com três Ave Maria, ofereci

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pro Santo Expedito. E se esse menino nascer com as mãos enganchadas? Daqui a pouco fez ‘Vap!’. Nasceu. Fui lá em cima no céu e voltei. Deus me ajudou tanto que foi desse jeitinho e ela, graças a Deus, foi feliz. Ganhou a menina. Salvou a vida dela e a minha, porque do jeito que eu tava com medo…

Agora a outra foi assim: ela tava com dor,

tava ruim. Ela tinha ganhado o menino e mandou me chamar, não tinha parteira lá. Eu fui, olhei pra ela e tava com aquele barrigão. ‘Cê não tá com nenhuma placenta parada, cê tá é com outro menino’. Eu passei a mão na barrigada dela e tava mesmo com outro menino. Ela ganhou o primeiro às 12h e, na hora que eu cheguei, ganhou esse outro às 15h. O menino nasceu encapeladinho, parecendo um pacotinho. Virgem Nossa Senhora! Tudo tampadinho assim. Peguei e arribei o forro, olhei o menino e rasguei aquela pele que tava por cima. Dei uns três tapinhas na bunda, tirou aquele grito e chorou. Dei graças a Deus! Se não tivesse tirado aquela pele por cima, ele tinha morrido afogado. Ele não tava fazendo nada, tava quietinho. Parecia que tava morto.”

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Você tinha medo de fazer esses partos?

“Eu tinha medo demais! Eu tinha medo era

delas morrerem. Eu ficava com tanto medo!

Teve uma que o marido veio me buscar 12h

da noite.

‘Eu não vou, não.’

‘Não, a senhora vai.’

O médico de Brasília de Minas tinha falado

que o parto dela é muito perigoso, tava de escapar a vida dela. Falou com ela que ela não podia ficar na roça, que ela podia sentir um negócio assim e não ia viver. Ela ficou implicada lá pra roça mesmo assim. Depois, quando foi esse dia, ela mandou ir atrás de mim meia noite. Ô meu Deus do Céu! Lá vem essa mulher! Ela falou assim:

‘Ó, cê tem que ficar mais eu. Até na hora da

minha morte, você tem que ficar perto de mim’

‘Pra que que você tem que falar isso? Você

não sabe se é eu quem morro primeiro.’

‘Não, quem vai morrer primeiro sou eu.’

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Eu fui, eu era amiga dela até na hora da

morte. Com pouco, ela tava com dor era umas 6h. Eu mandei chamar o marido dela e falei ‘Ó, cê vai buscar mulher pra ficar mais ela, que eu vou ficar de companheira, mas não fico pra receber o menino, não’. E ele tava me amolando, me amolando. ‘Pois se você não ir buscar a mulher, eu vou embora’, mas eu não ia, não. Eu pedi a Deus que eu não queria ficar com ela assim. Depois, quando foi na hora de ela ganhar o menino, os guia baixou nela. Ela tinha mexida com esses guia, né? Umbanda, essas coisas. Aí deu assim aquele grito mais feio, eu tava lá fora e corri pra ver. Quando cheguei lá, ela tava de pé e olhando pra barriga e benzendo. Eu olhei pra ela e não era ela. Eu abaixei a cabeça. Seja o que Deus quiser!

‘Quando ela ganhar o neném, fale com o

marido dela que acenda três velas pra ela’, falou os guia.

O marido dela não tava, tinha ido pro cur-

ral. Chamei ele que ela tava muito ruim. Com pouco, deu a hora de ganhar o menino. Ela sentou lá

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na cama. A mulher que tava lá com ela era simples. Simplesinha demais, chamava Alda. Eu ainda pensei ‘Meu Deus do céu, vai precisar de eu ajudar essa mulher’. Quando eu peguei na barriga da mulher, era uma barrigona, o menino era graúdo demais. Esfreguei a barriga e ela ficou branquinha. Ela era uma mulher branca. O menino nasceu uma metade e parou. A dor parou. Nossa! Eu fui rezando, pedindo a Deus. Ajudou que veio aquela dor forte e o menino acabou de nascer. Eu corri pra casa pra pegar a tesoura de cortar o umbigo. Quando eu voltei, tinha dado hemorragia. A espuma da cama tava até essa altura assim de sangue. O sangue tinha saído tudo. Ela tava branquinha da cor de leite. Ficou virando de um lado pro outro, de um lado pro outro. O povo ficou tudo besta! As mulheres que veio olhar ela, me perguntou:

‘O que que você tá achando? Como é

que ela tá?’

‘Minha Nossa Senhora! Vocês não estão ven-

do? Essa mulher tá nas mãos de Deus. Cês não tá vendo o jeito dessa mulher?’

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Com pouco, ela foi acabando. Não durou

nem meia hora que ela ganhou o menino. Os meninos dela juntaram em mim ‘Ô, Dona Zefinha, não deixa a minha mãe morrer, não’. Aí eu senti, moça! Graças a Deus que meu coração era forte. Eu senti que eu não fiquei pisada no chão, eu tava no ar quando esses meninos juntaram tudo em mim gritando e chorando pra eu não deixar a mãe deles morrer. Ela já tinha morrido. Tinha acabado de morrer. ‘Nossa Maria Mãe de Jesus, olha pra esses meninos e pra mim’.

Depois o marido dela veio em mim e me

contou que os guia falou com eles dois que ela não ia escapar, não. Mas eles não falaram nada comigo. Já sabiam que ela ia morrer naquele dia. Eu já sabia que o parto dela era perigoso. O menino que ela pariu naquele dia, quem criou, fui eu.” Josefa Cardoso de Moura, 80 anos Campo Azul/MG

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Zonas predominantemente rurais sempre

vão ser mais carentes de serviço público. Roças distantes umas das outras, cidades muito pequenas, quase não se tem acesso à saúde, por exemplo. Uma febre, se não amenizada com urgência, pode tirar a vida de uma pessoa. Foi o que aconteceu com Dona Nesta: uma simples febre trouxe a morte mas, depois, trouxe uma vida.

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“Pai só fazia era trabalhar, coitadinho. Gra-

ças a Deus, era bom. Pai e mãe era bom pra mim. Eu nasci na cidade de Campo Azul, mas fomos embora pra roça pequeninha. Todo mundo trabalhava: mãe, pai e irmão. Tudo igual: pai com filho, tudo igual. Se estivesse na enxada, tava todo mundo capinando. Se estivesse colhendo, todos colhia. O serviço não era separado, não. Pai com filho, com tudo. Pai trabalhava, nós trabalhava, mãe também trabalhava até grávida.

A juventude era só assim: ir na casa das vi-

zinha, brincava com as colega de roda, de cantar. Era só isso que nós fazia. Eles [pais] não deixava nós ir em uma festa sem eles. Só ia nas festa se fosse mais ele. E era os menino e as menina, as mulheres e os homens. Só ia se eles fosse de dois, nunca deixou nós ir numa festa sozinho. Nunca fui numa festa sem eles. Quando nós virou moça, foi assim. Nós ia, mas eles tinha que ir os dois.

Nós chegava na festa, pai falava ‘cês não

passa shampoo em ninguém, não. Se vocês passar shampoo em bêbado, dá até briga aqui’. Nós tinha

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que dançar mais os cachaceiro, gente de revólver na cintura, faca, tudo… e eu tinha um medo! Nós dançava com todo mundo. Se um bêbado chamasse nós pra dançar, ele não deixava nós negar com medo de briga. Meu pai era um homem muito sossegado, só fazia trabalhar, muito religioso. Criou nós bem criado. Coitadinho, ele era pobre demais. Nunca trabalhou sem ser na meia, trabalhava só na meia. Essas coisa que ele tinha era tudo partido na meia com o dono da terra. Ele nunca teve terra, mas trabalhou demais meu pai. Morreu novo, e acho que foi de trabalhar.

Ninguém namorava, não. Os rapazes iam

lá em casa. Eles chegava e mãe colocava nós pra dentro pra coar café enquanto ela ficava na sala conversando mais eles. Zé me viu um dia e pegou namorar comigo. Acho que nós foi até namorado uns dois meses e casou logo. Foi bom.

Minha nenénzinha tinha acabado de com-

pletar um ano, acho que não tinha nem um mês ainda. Era uma menina bonita. Uai! Nós tava torrando farinha quando chegou da roça. Eu ainda fiz

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arroz com carne porque não tinha feijão. Ela jantou boazinha. Quando foi de noite, veio aquela tremura, tremura, tremura. Ela tava queimando de febre na cama mais nós. No meio da roça, lugar onde não tinha médico. Eu chamei Zé: ‘Gracinha tá tremendo demais, é febre’. Eu perguntava pra ela o que que tava doendo, ela falou que era a perna. Nós esperou amanhecer. Levantamos era cinco horas da manhã pra pegar a linha do ônibus que saía daqui. Hora que eu fui colocar a roupinha nela pra nós viajar pra Brasília de Minas, o corpo dela tava pretinho. Nós corria com ela na estrada, mas ela morreu antes da gente subir no ônibus. Era uma lonjura! Tudo era longe. Ela morreu sem tomar nada. Nem um soro eu não dei porque eu não tinha lá. Ela acabou nos braços de Zé na metade da estrada que nós ia pegar ônibus. Tudo era difícil, minha filha. Médico era um trem ruim demais de achar.

Eu fiquei até meia depressiva com a morte

da menina, e aí Zé largou a terra e nós viemos embora pra cá pra Ponto Chique. Vendeu uma terra que nós tinha, era três alqueres, e comprou essa casa. A

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casa era um papel. Nós veio embora pra aqui pra colocar os meninos pra estudar, que lá não tinha aula pra eles.

Um dia, a mulher veio aqui com dois meni-

nos. A mãe dela pôs ela pra fora de casa por causa desses filhos dela. Chegou aqui, ninguém queria ela pra trabalhar por causa desses menino. ‘Só quero se você achar alguém pra olhar eles’. Ela chegou aqui com esses filhos passando fome. Não tinha um caroço de nada para dar os meninos. Nem uma mamadeira pra dar ela não tinha. O que ela ia ganhar não ia dar pra pagar alguém pra olhar eles. Ela já me conhecia e aí chegou aqui.

‘Ô, Dona Nesta, eu vim pedir pra você ficar

com um desses meninos. Eu te dou mesmo pra você ficar.’

‘Eu não quero, não, minha filha. Eu já tô ve-

lha. Eu criei meus filhos tudo, não dou mais conta’.

Depois eu fiquei sabendo que ela tinha dado

o mais velho. O mais novo, pra onde eu ia, ele me acompanhava. Tinha um ano e meio. Ela arrumou

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um menino pra ficar olhando o mais novinho, mas o coitado era pobrezinho. Cheguei lá e ele chorava querendo eu, mas eu não ia pegar pra cuidar, não.

Outro dia, eu tava na vizinha fazendo biscoi-

to e, naquela época, não tinha muro. Era comum assim, né? E da vizinha dava pra ver ele de lá mexendo num tambor de água. Um tambor desses de plástico que o povo usa pra parar água. Eu fui lá ver esse menino. Tava tremendo de febre. ‘Esse menino tá com febre demais e vocês deixa ele aqui mexendo com água?’. Ele chorou querendo eu. Eu apanhei ele e carreguei pra casa da mulher dos bicoito. A blusinha dele tava toda molhada, era até pra eu ter guardado essa blusa, mas eu esqueci, dei ao povo. Depois disso, eu falei:

‘Ó, Sirley, eu não vou te entregar o menino

mais, não. Deixa ele mais eu. Até quando eu tiver vida, eu crio ele’.

Já tá com 22 anos que ele mora comigo.

Ele quer que passa o nome pro nosso, como é filho de nós legítimo. Ele é louquinho por isso. Ele é como

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filho, os outros têm como irmão.

Eu falei pra ele que era adotado. Não pode

esconder uma coisa dessas, né? Ela até veio ver ele, mas ele não queria ela, queria eu. Graças a Deus, ele ficou mais eu até hoje, não pretende voltar pra lá. Nós também nunca fizemos ruindande com ele. A outra que pegou o mais velho nunca deixou a mãe ver o menino. Ela até chorou aqui em casa no dia. Essa era gente que podia, né? Diz que ele largou os padrastos e virou bandido. Era bonito o menino. Agora esse meu diz que quer ser polícia.” Ernestina Soares Costa, 77 anos Ponto Chique/MG

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* **

Recentemente descobri que havia comu-

nidades quilombolas na região do norte de Minas. Achei que essas coisas só existiam nos livros de história ou há séculos atrás. Não gosto de chamar de quilombo, mas de comunidade quilombola, justamente porque nessas comunidades é nítido o protagonismo feminino. As mulheres são muito engajadas na organização dessas pequenas aldeias que rodeiam a cidade de Januária. A Associação que organiza a Comunidade Alegre que visitei tem uma mulher como presidente, assim como sua antecessora.

Mas, primeiro, o que é ser quilombola?

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“Quilombola liga muito a essa questão da

pele, mas não é bem assim que eu penso. Ser quilombola é a pessoa se auto identificar como descendente de pessoas negras, mesmo que não seja negra. A gente tem pessoas quilombolas que não são negras na cor da pele, mas é uma coisa de descendência mesmo. Eu acho que essa é a diferença. E as comunidades quilombolas tem essa coisa que eu tô te falando de tradição, né? Tem uma cultura diferente, essa questão da agricultura familiar, a religiosidade.” Como foi a sua infância aqui?

“Eu não nasci aqui, meus pais são daqui.

Naquela época, era muito difícil as coisas e eles viajaram pra São Paulo, tentar a vida. Isso na década de 70, né? Lá eles me tiveram, só que eu vim pra cá pequenininha. Eu só nasci lá, mas eu me considero daqui. Eu vivi aqui.

A gente era muito pobre. Morava na beira

do rio, é um lugarzinho perto daqui que chama Venda. Era tudo muito simples, as casas eram de pau-a-

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-pique. A gente brincava nas árvores, de brinquedo feito, que a gente mesmo fazia, né? Tinha uma fartura de peixe porque a gente morava na beira do rio. Tínhamos peixe e plantava o que dava. Acho que era por isso que a gente não deixava passar fome. Eu não me lembro da gente passar fome. Tinha uma época, que o pessoal falava ‘das águas’, de chuva, que tudo ficava mais difícil. A pessoa não podia trabalhar porque era chuva direto. Meu pai pescava, trabalhava na roça e a gente ficava em casa. Aquela vidinha bem simples mesmo. Praticamente não comprava roupa porque a gente ganhava as coisas. Morávamos perto de um lugar, que existe até hoje, um clube de pesca que vinha pessoas de Belo Horizonte e se hospedavam. Essas pessoas traziam coisas e doavam pra gente. Era mais ganhado mesmo. Quando o meu pai acontecia de vender um peixe, não tinha muito isso de comprar roupa, não, era pra comprar açúcar, que não tinha como fazer em casa. Era pra comprar as outras coisas, pro alimento que a gente não conseguia ali.

A beira do rio ficava a cinco quilômetros da-

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qui do Alegre, onde a gente tá até agora. A gente vinha de lá até aqui todos os dias pra ir a escola a pé, não tinha bicicleta. Às vezes, a gente encontrava no caminho um irmão que tava com um chinelo melhorzinho e trocava com a gente o que tava mais ruinzinho. Os meus pais só conseguiram me deixar ir pra escola até a quinta série. Eu estudei até eu acho que uns doze ou onze anos. Eu parei e fui trabalhar em casa de família. Meus pais não tinham condições, era muita criança pequena e a gente já tava maior. Eu fui morar com a família. Ficava lá dormindo e fazendo o serviço doméstico. Trabalhando nessa situação e ganhando pouquinho, só pra gente conseguir se manter.” Como você conseguiu terminar seus estudos?

“Eu trabalhei fora, casei, fui pra São Paulo e

voltei pra cá. E aí surgiu uma oportunidade aqui na escola da comunidade. Eu tinha até a quarta série e aqui começou da sexta. Eu já tinha meus dois filhos, hoje tenho três. Já era casada e estabilizada com

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casa aqui. Eu fiz uma prova e recomecei a estudar da sexta série. Eu fiz com muita dificuldade. As pessoas começaram a desistir, mas eu via a possibilidade de terminar. Eu sempre tinha aquela vontade de continuar. Quando eu terminei o fundamental, não tinha o Médio aqui ainda. O Ensino Médio era a seis quilômetros daqui, em Riacho. O diretor daqui que me ajudou porque não tinha como ir. Conseguimos um ônibus pra tá levando a gente. Na época, parece que eram 16 alunos, mas só restaram três. Era muito pra ficar deslocando, né? Mas deu certo e eu me formei em 2010 no Médio em Riacho da Cruz, uma comunidade aqui perto. No final do ano mesmo, eu fiz a prova da Unimontes, que é a Universidade estadual, e eu passei. Só eu, dos três que ficaram, que tentou continuar. Eu passei em primeiro e estudava na AEJA, né? Eu me formei em 2013 em Letras, e hoje eu dou aula de Língua Portuguesa na AEJA e em Riacho da Cruz. Mas é bom! Já depois de adulta. É bom demais!”

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Como se tornou presidente da Associação

do Alegre?

“Eu sempre estive presente na Associação

do Alegre, sempre participei. Em 2000, quando eu vim embora de São Paulo, eu já era tesoureira. Sempre gostei de fazer alguma coisa voluntária, né? Eu acho uma coisa importante de fazer. A gente faz alguma coisa pra receber, pra ganhar um dinheiro, mas tem que fazer uma coisa pra ajudar. A Associação é toda voluntária, você não ganha em dinheiro. Você trabalha em prol de outras pessoas e por gostar mesmo. Há dois anos surgiu a oportunidade de ser presidente da Associação, porque a moça que era presidente precisou sair e tava tendo dificuldade em arrumar alguém pra ficar. Teve toda uma confusão. Eu me familiarizei em ser presidente e falei com os sócios que só aceitaria se todos me ajudassem. Tinha que ser um trabalho coletivo mesmo porque eu não tinha condições de trabalhar sozinha porque eu já tinha o meu trabalho, né? Eu não tinha como me

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dedicar o tempo todo na Associação. Eles se comprometeram a me ajudar e eu assumi a presidência.

Lá a gente decide muito sobre a comunida-

de, tenta manter em ordem e organizada. A gente faz mesmo porque a gente gosta, porque quer ver a comunidade crescer, não ficar tão dependente de políticos, vamos dizer assim. Porque a gente, tendo uma organização, consegue resolver muitos problemas. Aqui tem a questão da da água, faltava muita. A gente trabalha com poço artesiano, mas a água daqui não é apropriada para consumo, usamos porque não tem outra opção. Tem a questão da documentação, porque é através da Associação que as pessoas conseguem benefícios de aposentadoria, de auxílio-maternidade. Não tem segurança, nem saneamento básico e posto de saúde. Se a gente não ter essa organização, ficamos muito vulneráveis, dependendo de outras instituições, de prefeitura. Não que a gente não seja, a gente é, mas precisamos de muitas coisas que dá pra gente resolver aqui. Então, tem que ter uma pessoa buscando alguma coisa pra cá, um curso, tem que estar discutindo o

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que a gente quer, o que a gente pretende. Se eu tenho uma ideia, eu levo na reunião para discutir, ver o que eles acham.” O que você sonha para a comunidade?

“Se você perguntar pra um sócio da Asso-

ciação, ele poderia responder que ele tem o desejo de ter uma empresa aqui no Alegre para dar emprego. Eu não sei… Às vezes eu acho que, se tivesse um recurso muito grande aqui, uma empresa, talvez os danos que ela provocasse seria muito maior que o benefício. Emprego aqui a gente não tem quase. Tem coisa que a gente perde muito, né? Mas o meu sonho é de a comunidade conseguir se organizar sozinha mesmo, melhorar a vida das pessoas por si só. Eu penso de uma forma mais sustentável, mais voltada pelo o que a gente faz. Se a gente conseguisse só pelo trabalho que a gente executa, sem muita interferência externa, através da agricultura familiar, por exemplo… Comunidade Quilombola tem essa coisa tradicional, né? Eu acho que é uma característica que tem que manter. É um modo de pensar que eu

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tenho. Não que eu não queria uma empresa aqui, mas eu acho que é bem por aí. Eu acredito num trabalho feito por a gente mesmo.”

Tem machismo?

“Sempre tem machismo. Não é muito, não.

As mulheres daqui são mais ativas, mas tem aquela coisa de que é mulher, né? Que é mais frágil, mas não é bem assim. As mulheres que tomam a frente. Os homens trabalham, mas as mulheres são mais ativas na questão do grupo, de ajudar, de fazer alguma coisa pela comunidade. Quando vê que é uma mulher de atitude assim, eles respeitam. Mesmo antes de eu estudar, eu sempre fui uma pessoa independente, sempre trabalhei. Meu marido tem muito respeito. Meu filho pequenininho perguntou ‘Mãe, aqui em casa quem manda é a senhora?’. Eu falei ‘Não, é os dois’, mas, na verdade, é sempre a gente [mulher] que dá a primeira palavra. A gente fala que não pra não ficar feio (risos).” Rosimeire Alves de Souza, 40 anos Comunidade Quilombola Alegre, Januária/MG

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Tem uma venda em São João da Lagoa,

cidade apelidada de Pitinha, que todos dizem que tem de tudo. É a venda de Niquinha. “Tudo o que você imaginar, tem lá”, foi o que me disseram. Também me disseram que Niquinha é a mulher mais rica da cidade, que “é cheia de terra”, que “o patrimônio dela vale milhões”. Quem vê o comércio, não coloca fé nesses boatos. Niquinha tá no caixa todos os dias, com camiseta larga e calça jeans. Maquiagem, nenhuma grama no rosto. O comércio dela é padaria, mercado, papelaria, lojinha de 1,99, sacolão, armazém de construção e ainda entrega gás e água. Tá procurando alguma coisa? Vai lá em Niquinha que você acha. Eu fui procurar a história dela.

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“Eu já nasci no dia do trabalho, tem que tra-

balhar, né? Minha infância foi muito pobre, muito sofrida. Eu nasci em Montes Claros, mas eu cresci aqui no Pitinha mesmo. Lá em casa o negócio era batido feio. Meu pai era comerciante também, mas, naquela época, era uma dificuldade danada. Antes, a gente não tinha ponto de comércio. Pai saía comprando negócio aí pelas roças, pegava uma boa parte e a gente revendia aqui de casa em casa. Ele arrumava um caminhão desses aí, pedia a alguém que tinha, né? E levava o que sobrava até Montes Claros e vendia lá. Aqui o batidão era assim: a gente fazia sabão, minha mãe fazia rosquinha, geléia de mocotó, pé-de-moleque, e a saía vendendo de porta em porta. Tudo o que eu fiz na vida foi isso aqui. Chegava com a bacia de rosquinha numa casa e saía com uma de banana, chegava com a de banana e voltava com a de mexerica, desse pessoal aqui da região que tinha fazenda. Muitas vezes, a gente não tinha pra vender da gente, vendia o que era dos outros. Eu, pelo menos, o que eu mais fiz na minha vida foi vender coisa pros outros.

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Nunca tive vergonha de chegar de porta

em porta. Se visitava cem pessoas e dez comprava de mim, eu já agradecia. O que eu tinha pra fazer era aquilo. Não tinha outra coisa. Foi o que eu aprendi a fazer, né?

Esse comércio aqui já veio do meu pai. Uai!

Já tá com quinze anos que estamos aqui, mas o ponto de antes nós deve ter ficado uns 25 anos lá. Estamos há uns quarenta batido. Comprando abóbora, banana prata, cebola, alho… O que aparecer da roça, a gente compra e vai passando pra frente.”

Dizem que tudo o que precisa, tem aqui.

“Não é assim, não. A gente faz um esforço,

mas toda hora chega uma pessoa pedindo uma mercadoria que a gente não tem. Aqui eu já deixo um rascunhozinho que o que não tem a gente vai anotando.

Eu acordo mesmo é às cinco horas. Eu te-

nho uma filha de 12 anos, ela estuda de manhã. Aí eu já preparo o café-da-manhã pra ela e umas 6h30, eu já tô aqui. É o trabalho daqui mesmo, né?

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Asso rosquinha, ralo queijo, mói café, fico no caixa. Se for preciso, eu pego a minha bicicleta e vou sozinha entregar gás, feira. Fico aqui nesse batido até as 20h, depois vou pra casa preparar rosquinha pra assar de manhã de novo. Se tiver encomenda, eu faço todo dia. Só no sábado que não tem porque a gente não trabalha no domingo. Não tem descanso, não. O negócio é puxado mesmo! No domingo é pior ainda! Às vezes, eu vou na roça. A gente tem uma roça aqui pertinho e tem domingo que eu vou. Chegando lá, o batido é uma enxada. Ê ô dó! Eu capino. Eu vou ás pressas, porque tem que voltar pro comércio no dia seguinte. É um pouco cansado, né? Mas…

Tô satisfeita com o que eu faço e tudo, mas

quando minha filha já estiver com idade, aí eu quero ir pra uma roça. Lá é pra mim descansar que eu falo. A hora que essa daí se formar, eu não quero mais mexer com nada. Todo dia eu falo pra ela ‘Isabela, cresce pra você caminhar com as suas pernas logo pra eu poder desocupar que eu quero ir pra qualquer lugar na roça’. Quero levar uma vida de descansar, né? Quero criar galinha, porco, ter um leite pra fazer um queijinho, mas pro consumo mesmo e

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pra alguém que for lá visitar a gente.

Nunca fiz a unha na minha vida. Não gosto.

Nunca tive esse negócio de vaidade, não. Eu lavava o cabelo e só. A gente cresceu numa infância tão… que ninguém conhecia essas coisas, né? Ninguém tinha e você acaba acostumando. O que os olhos não vê, o coração não deseja: é a coisa mais certa que eu tenho.”

Conquistou muita coisa com o trabalho?

“Ah, só mesmo pra ir levando a vida.”

Não é o que o povo fala…

“Fala, né? Mas, não. Ô dó! Só mesmo pra

ir tocando a vida. A gente se esforça pra ver se vai colocando, pelo menos, as coisas em dia sem precisar tá passando dificuldade. Eu queria mesmo era ver minha filha formada e ter coisa melhor do que eu tive. Ela diz que vendedora, ela não quer ser, não. Ela fala que quer estudar. Que Deus abençoa que dê certo, né?” Maria Rosangela Andrade Almeida, 50 anos São João da Lagoa/MG

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** * **

Se for passar a noite em Pitinha, é melhor

hospedar-se no Hotel Nossa Senhora de Fátima. Não se engane, a cidade é pequena, mas o hotel não. A fachada azul clara e a imagem da santa deixa clara a mensagem: trata-se da propriedade de uma benzedeira.

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“Pode entrar! Está aberto!”

Não queria só entrar no hotel, queria entrar

na alma do negócio.

“Olha lá na casinha… Olha lá pra você ver!

Meus filhos eram pequenos, nasceram aí nessa casa. Essa aí foi meu marido que comprou quando nós casamos. As meninas foram crescendo e falaram ‘Mamãe, nós tem que comprar uma casa’. Eu falei ‘Como é que faz, minha filha?’. Pobreza. Pobre demais. A gente começou a vida na roça, com enxada, sofrendo, passando fome, necessidade. O meu marido era filho de papai. O pai do meu marido era rico. Logo, o pai dele morreu, mãe dele morreu e eles gastaram tudo com farra. A última coisa que ele herdou, que ficou dele, foi uma vaca. Aí a vaca ele trocou nessa casinha aí, que é essa casa hoje. Mas ele tinha vergonha de trabalhar pros outros por causa que era filhinho de papai, de Senhor Fulano, fazendeiro, era um homem de posses. Ele tinha vergonha de pôr a enxada nas costas e trabalhar. Quando foi

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um dia, ele falou comigo ‘Eu pôr a enxada na cacunda¹ pra tratar de você, eu não vou, não. Mas, se você quiser que nós vamos trabalhar, eu topo’. O que eu sabia fazer era isso, né? Nós começamos a trabalhar na roça. Passava tanta necessidade que nós tremia nos cabos da enxada de fome. Na semana, quando era meio dia, eu levava uma favinha² e nós comia. De tarde, partia castanha, comia. Mas Deus é pai! Um dia Deus ia ter dó de nós. Tínhamos plantado arroz, deu oito alqueres. Desse dia pra cá, a gente não passou mais necessidade. Colhemos o arroz, feijão, milho. Naquela época, era só eu que tinha o quarto ano³ aqui. Só eu. Todo mundo não tinha, tudo era do segundo, terceiro. E chegou um vereador e falou comigo.

‘Niza, cê tem o diploma do quarto ano?’

‘Tenho’

‘Cê quer dar uma aula na roça?’

‘Eu não sei dar aula, não, moço’

‘Sabe, sim. Vai dar aula.’

Aí ele conseguiu a aula pra mim na roça e

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eu fui professora. Fui pra roça, tinha 48 alunos. Trabalhei dois anos sem receber um centavo (risos). Mas aí meu marido trabalhava para aqueles fazendeiro lá, sabe? Ele aprendeu a trabalhar. E os alunos, cada um levava uma coisa pra gente, eles davam muito valor ao professor e tal, então, de vez em quando, um levava coisa, era frango, tudo.Trabalhei um ano. Não recebi, não. Eu pensava ‘Tudo bem, um dia eu vou sair’.. Quando foi no outro ano, eu fui transferida pra cá. Aí quando saiu, saiu 600 mil, era dinheiro pra acolá tudo. Que naqueles tempos falava era mil, né? Cruzeiro? Sei nem como é que falava esses dinheiros, não. Ou era mil réis, alguma coisa assim. Mas sempre tem as coisas na vida da gente que vem pra atrapalhar, né?! Chegou uma menina dizendo que tava formada e não sei o quê. Me tirou. Me tirou da escola e eu saí. Eu já tinha três filhos naquela época. Eu fui sofrer outra vez. Passado o ano, eu tornei voltar a dar aula e me aposentei. Aí a gente tinha casa, né? Era muito pequena e tudo, mas a gente era feliz dentro dela. A menina falou assim ‘mamãe, nós tem que fazer essa casa’. Como é que faz? Eu fui

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pelejando*. Eu tornei voltar a trabalhar e com aquele dinheiro comecei a comprar material. Tinha o moço lá, ele me vendia o material e deixava guardado. Fui juntando aos poucos até fizemos a casa embaixo. Com o passado de cinco anos, a laje vazou. Como é que ia fazer? Eu tenho um irmão em Montes Claros, irmão de criação. Eu peguei e fui lá falar com ele como é que eu ia fazer… Olha como é pra você ver, até hoje tá aí ainda, né? Ia comprar um telhão pra colocar. Ele falou:

‘Pra que esse telhão, menina?’

‘A laje tá vazando’

‘Não, não vai colocar telhão. Você vai le-

vantar as paredes. Lá tem estrutura?’

‘Tem, sim. Tem estrutura pra dois pavimentos’

‘Cê vai levantar as paredes lá e vai fazer um

hotel’

‘Deixa de ser tolo, menino! Quem sou eu

pra fazer um hotel?’

‘Vai fazer, sim. Cê sabe como é que eu

comecei? A nossa mãe, cê sabe quantas vezes ela

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veio pra cá pra fazer pão de queijo pra mim aqui na caçarola. Então, você vai fazer do mesmo jeito’

Ele começou do nada. Ele fazia pão de

queijo na caçarola porque não podia comprar um fogão.

‘Cê tá certo’

Voltei pra trás, trouxe aquele dinheiro de

volta, comprei os tijolos e levantei aí. Foi o milagre de Deus. Eu pedi pra Nossa Senhora que, se ela me desse forças para fazer, levantar as paredes o primeiro quarto era dela. Então consegui fazer. Cê viu lá o quarto? Cê já foi lá? Quer ir lá agora?”

Minha anfitriã me direcionou até o andar

de cima, onde ficava o hotel. Abriu uma caixa na recepção e apanhou uma porção de chaves. Eu a acompanhava pelo corredor e a medida que andávamos, Dona Niza destrancava as portas e me apresentava os quartos. No final do corredor, a porta de número um, encontrava o quarto de Nossa

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Senhora: uma espécie de capelinha improvisada. Uma parede inteira grafitada com a imagem da santa, o tapete marrom-claro se estendia no chão e, no canto, ao lado de uma cadeira, uma estátua da santa.

“Um dia veio uma família de crentes se hos-

pedar aqui, era um casal e duas menininhas. Eles queriam dormir todos juntos em um quarto só, mas não tinha cama suficiente para quatro pessoas. Eu vim na capela pegar o tapete e colocar o colchão em cima. A mais velha veio comigo e tinha três rosas aqui em Nossa Senhora Aparecida, né?

‘Vó, me dá uma rosa?’

‘Ô, minha filha, essa rosinha aqui é da mãe-

zinha Aparecida. Você não gosta dela?’

‘Não, eu não gosto’

‘Você não gosta da mãezinha do céu?’

‘Não, eu gosto de Deus’

‘Muito bem! Você ama Deus, mas ela é a

mãe dele’

Eu parei, eu não quis… Era uma criança,

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né? Eu não quis falar mais. Pra você ver como é que os pais ensinam aquelas crianças! Gente, por acaso, você tem a sua mãe, não tem? Será que se eu chegasse assim ‘Essa mulher não presta’, você gostava de mim? Não, né? Então, se eu amo a mãe, eu tenho que amar o filho; se eu amo o filho, eu tenho que amar a mãe. Só o que eu não gosto no crente é isso, porque eles não acreditam em Maria, não acreditam que Nossa Senhora é pura, que Nossa Senhora é virgem. Jesus fez tantos milagres! Eles falam que Nossa Senhora não faz milagre. Meu Deus, quantos milagres Nossa Senhora já fez na minha vida! Quantos e quantos, que eu não sei nem contar. Então, a gente tem que acreditar na mãe de Deus. Jesus nasceu aonde? No ventre dela. Nasceu dela. Ele fez o aleijado andar, ele fez o surdo ouvir, o outro que não sabia falar, falava. É muito triste, né? É por isso que eu não vou em crente. Ela que ensinou ele a falar, que ensinou ele caminhar, tudo ela ensinou. Por que eu não vou amar ela?” Atanasia Silva Senna, 76 anos São João da Lagoa/MG

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** * ***

Quando minha tia me indicou Josefa para

a entrevista, no percorrer do caminho ela me alertou “Ela é envangélica”. A religião predominante no sertão mineira é a católica, mas outras religiões têm avançado nos pequenos centros urbanos. Igrejas evangélicas têm se contrastado cada vez mais com a tradicional igrejinha na praça. O que tem feito essa transformação cultural? Josefa me contou que foi a voz de um anjo.

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“É uma vida boa! Era assim: nesse tempo, a

gente vivia da gente mesmo, né? Era pobre. Plantava, colhia… Comia na roça assim, sabe? Não comprava nada, não. Colhia os mantimentos tudo. A gente se mantia mesmo com a vida da gente, com o trabalho. Eram os pais mais a gente trabalhando. Naquilo, eu quis sair pra casar. Casar pra não morrer no serviço trabalhando. Aí que o serviço redobrou! Aí que o serviço dobrou pra mim! Eu tinha que trabalhar, só que agora eu embarrigava pra ganhar filho. Quando eu engravidava, eu ficava os nove meses sem alimentar, sem nada. Eu ficava... com pouco, morria! Quando eu ganhava menino, eu via a morte nos olhos. Ganhei dez filhos, nenhum na mão de médico. Foi tudo dentro de casa, repuxando os olhos até… saía fora o neném. Meus meninos foram criados assim: eu saía pedindo o povo aquelas roupinhas velhas pra poder emendar e enrolar eles. Criava enrolados no pano. Não sabiam o que era uma fralda, não sabiam o que era vestir uma roupinha nova. Quando foi um dia, eu mais o meu marido fomos na roça trabalhar… Eu era tão fraquinha que eu

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caí em cima da enxada. Desde em diante, eu não fui mais pra roça. Mas, fui pra tábua de roupa. Era a semana todinha na tábua, batendo em pedra no rio.

Depois deles tudo bem criados, eu achan-

do que eu finalmente ia parar com aquela trabalheira, partiram na cachaça junto com o pai. Era assim: eu pegava uma xícara de café, chegava um aqui e me chamava ‘Ó, seu marido tá ali brigando’. Eu tampava aquela xícara e corria pra rua, não sabia nem pra que rumo. Quando eu ia chegando com o meu marido aqui, vinha outro ‘Opa! Filho seu tá pra ali arrumando confusão’. Tudo bebendo. Eu não sabia o que era um prato de comida. Não tinha prazer em comer, não tinha prazer em beber uma xícara de café. Era assim… Eu falei com Deus ‘Me dá uma boa morte pra mode eu ter sossego. Pelo menos, na morte’.

Um dia, passava umas mulheres aqui e me

chamava pra ser crente:

‘Eu não vou batizar, não. Eu já sou batizada’.

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Aí que todo mundo embebedou. Se eles be-

biam, agora foi mais ainda. E as crente naquela insistência…

‘Ó, se for pra eu ser uma alma que serve à

Deus, que Ele me dê aviso, então’.

Quando foi a noite, eu peguei setes filhos e

o marido, tudo bêbado. Agasalhei eles tudo e sentei na cama, fui chorar. Falei com Deus que eu não ia mais rezar, não. Ele que tomasse conta de mim de agora em diante. Fui chorando, fui chorando… até deu meia noite. Veio um vento assim pela janela. Um vento, ficou passando pelo meu ouvido.

‘Foi você que queria que Deus te tirasse?

Você que queria salvação na alma?’ Eu levei um susto! Eu olhei aqui, olhei acolá e não vi nada, só meu marido dormindo de bêbado. Eu só ouvi a voz.

‘Foi eu mesmo’

‘Você falou que só ia fazer conserto na alma

se Deus te mandasse a confirmação?’

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‘Foi’

‘Ele me mandou, sou o anjo de Deus. Eu vim

pra fazer o conserto na sua alma, mas você vai ter que passar pelo batismo, limpar a sua alma. Vai passar por provas, provas de fogo. Vamos comigo?’ ‘Vou’

‘Daqui pra frente, você não reza mais. Você

só pedirá a Deus que cuide de você e os seus. O que Ele puder fazer, ele fará. Mas, você passará por muita prova’

Eu me batizei. Uns filhos meus batizaram,

meu marido também. Batizou, mas continuou bebendo. Todos morreram. Os que batizaram e tornaram a beber, Deus tirou tudo. No ano de 2001 pra 2002, eu fiquei sem meu marido e seis dos meus filhos. A prova é essa. Um deles foi matado e jogado dentro do rio. Foi um cara aqui que pagou 2 mil reais pra matar ele. Isso aí foi pra mim foi um peso muito grande. Até hoje, quando eu lembro, vem aquele peso, sabe? Mas eu vou esperar que Deus cobra. A outra amanheceu na cama enforcada. Ela tava

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com o pescoço inchado, acharam um pano cheio de baba e sangue. Enfiaram na boca dela e apertaram a goela. Diz que foi o homem que ela tinha. Ele ciumava demais, vivia brigando. Os outros morreram de chaga, cirrose hepática, câncer. Deus passa comigo na luta. Muito sofrida a minha vivência. Pobre e sofrida. A vida do pobre é muito sofrida, minha filha. Mas aquele que faz conserto na alma, Ele habita mais do que nos outros. Josefa Soares de Araújo, 80 anos Ponto Chique/MG

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*** * ***

Tem uma foto no álbum da viagem que fiz

a Campo Azul há uns dez anos atrás. São dois pés descalços, deformados, ásperos, cansados. Minha mãe tirou essa foto logo após Dona Aninha, cuidadora da roça de um primo, contar que nunca havia calçado sapatos na vida. Foi tão marcante a história dos pés descalços de Dona Aninha que, ao voltar a cidade, eu quis conhecê-la melhor.

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“Paquerar? (risos). Pai não deixava nós pa-

querar, não. Deixava nós era trabalhar de enxada. Não podia sair. Não podíamos nem ir em festa que pai não deixava. Quando tinha uma festa, falava assim ‘Arruma roupa pra nós ir’. Nós arrumava, penteava o cabelo. Daqui a pouco vinha pai: ‘Aonde que ocês tá indo? Cês vai é dormir’. Nós deitava na cama e ia chorar. Nossa, mas chorava demais por causa disso!

Eu morava lá na roça, como eu tô te falan-

do. Lá na fazenda que eu morava, tinha uma mulher que dava escola, era a professora. Só que pai não deixava nós estudar, não. Quando nós voltava dos estudos, pai já perguntava ‘Já saiu? Vamos pra roça. Vamos pra roça trabalhar’. Era trabalho de enxada, carregando gameleira de mandioca na cabeça pra fazer farinha.

O marido eu arrumei foi ele indo lá em casa,

essa é que era a tal paquera que o povo fala hoje. Ele não era muito companheiro, não. Até que era! Era trabalhador, mas bebia cachaça demais, xingava. Se ele batia? Ora… faltava matar eu! Ele não

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batia assim de machucar, né? Só um dia que ele me bateu com um pau de fogo, rachou a minha cabeça. O patrão me pegou e trouxe pra cidade, arrumaram remédio e eu sarei. Ah, era a cachaça, menina. Tinha jeito, não. Eu falava pra ele não beber… Vish! Era o mesmo que mexer com uma cobra. Depois ele adoeceu, arrumou doença pra lá e, com pouco, morreu. Tava com quarenta anos, morreu novo. Foi câncer que ele fumava muito e bebia muito. Mas o bicho me ajudava, moça. Ele mesmo doente do jeito que tava, trabalhava o diazinho sem comer. Ele não comia, só fazia aquele anguzinho ralinho pra ele beber. Ele começava a tomar aquilo, com pouco, largava pra lá. Foi indo, foi indo… não durou tempo nenhum. Quando ele morreu, ainda deixou pra nós três sacas de feijão.”

E o sapato?

“Que sapato, menina? Nós usava era bota

de poeira, fazia até assim na perna da gente (risos). Pai fazia aquelas sandálias de couro pra ir pra roça que tinha muito espinho. Éramos muito pobres, não

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tinha condições. Ia pras festas, tirava essa sandália e colocava numa sacola, quando tava chegando perto, a gente calçava. Tudo pra não estragar. Mas a gente era pobre! As roupinha… nunca comprava roupa. A hora que o povo batia as roupa deles, passava pra nós. Nós vestia uma até a hora de ficar suja e botava outra, só tinha duas muda. Era desse jeito! Hoje não. Hoje tá muito é bom! Eu tenho o meu chinelinho. Eu me aposentei, graças a Deus! Despesa dentro de casa, pago tudo. Pago luz, água, os outros papel que vem aí, funeral. O homem e a mulher da casa é eu. Tudo que passa aqui, passa nas minhas mãos. Meu dinheiro dá pra mim comprar tudo.” Ana Ferreira Rosa, 66 anos Campo Azul/MG

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Antes de visitar a pequena aldeia, muitos

me disseram que eu deveria levar, pelo menos, uma garrafa de água: “lá ninguém vai te oferecer nada”. Falaram que “o povo lá é tudo esquisito”, que é igual bicho do mato “tem muito incesto, é filha com pai, sobrinho com tia, primo com primo”. Eu precisava conhecer o vilarejo. Chama-se Alegre, mas diferente da comunidade quilombola de Januária. Quando cheguei com o carro, descobri que a alegria não morava lá. A única mulher apta a me dar entrevista era Rosa, eleita indiretamente a “presidente” de lá. Sentada no chão do lado de fora de casa, porque dentro era muito quente, Rosa me mostrou as dificuldades típicas do sertão: a falta d’água e a abundância de filhos.

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“Foi aqui. Fui nascida e criada aqui mesmo

no meio do mato, nesse mesmo lugar. Meus irmãos, nós somos onze. Lá em Belo Horizonte só nasceu dois. Nasceu um casal lá e o resto nasceu tudo aqui. Quase tudo foi naquela casa lá, só eu que não. Eu foi num mato aí de cabeça baixa num serviço que meu pai trabalhava.

Eu morei com o meu pai até os meus dez

anos. Com dez anos, eu saí de casa e fui morar com o pai dos meus mais velhos. Ah, sei lá, minha filha! A gente criado no mato aí igual filho de bicho, não sabe nem como é que passou as coisas. Só que eu fui morar mais ele com dez anos e devo ter ficado, sei lá, não sei nem com quantos anos eu engravidei dessas meninas, não. Só que eu morei mais ele um bom tempo sem eu engravidar. Aí eu tive esses cinco meninos com ele e depois larguei pra lá, moro com outro, o pai dessa aqui (mostra criança no colo). Ah, porque ele não faz nada, não, sabe? A vida é só mesmo beber, não trabalha. Eu cuidei dos meus cinco filhos mais Deus e Nossa Senhora. Agradeço muito João Ramos [ex-prefeito] e muitos

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filhos de Deus no Pitinha que me ajudou a criar esses meninos. A base de Deus foi esse povo que me ajudou a criar esses meninos. Ele [ex-marido] não ajudou nada, não. Até hoje! Agradeço esse, né? Que me apanhou com esse bando de menino aí. Agora mesmo eu tô em falta das coisas porque tem um carvão aí pra apanhar e não veio ainda. Tá aí desde a semana passada que meus trem acabou tudo. Então, o pai deles nunca caçou jeito de cuidar deles, não. Foi Deus, eu mesmo e os filhos de Deus. Nossa, mas nós já sofreu aqui nesse lugar!

Isso aqui é do meu tio. Essa casa aqui é dele.

Eu tô esperando aqui porque eles estavam querendo vir construir uma pra mim, mas essa casa aqui mesmo é do meu tio. Hoje mesmo o menino ligou aqui porque eles estão preocupados, que essa casa já caiu a pintura. Eu durmo naquela banda ali só que ela tem aqueles pedaços de pano que já acabou as paredes tudo. Essa outra aqui é do mesmo jeito: as paredes tudo caindo e eles estão preocupados dessa menina ganhar menino e como é que fica dentro de um trem desse daí? Pois é, minha filha, agora tá

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todo mundo no aberto aí. É, minha filha, eu vou falar com você que aqui o trem é difícil. Tem duas filhas minhas aí dentro, tá todas as duas grávidas. A valência minha é as menina ir lá na assistência.”

E o pai dessas crianças?

“Não dá nem notícia, só no dia que faz. Não

é daqui, não. É desses mato aí pra fora, pra baixo aí. É aquele trem que não tem responsabilidade pra nada, sabe? Conselho a gente dá demais.”

Qual é a renda do pessoal daqui?

“A renda aqui, minha filha, a maioria é nas

graças de Deus. Não falo mais nada que o trem aqui tá feio. Só que aqui arrumar um serviço é ruim. Aqui é ruim. Eu mesmo, meu sonho era arrumar um serviço pra trabalhar. Mas, como é que trabalha num lugar desse? É muito difícil arrumar serviço assim pra gente trabalhar. Plantar, como, moça? Agora mesmo nós estamos aqui desde ontem sem água. Na casa da

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minha tia ali, tá todo mundo sem fazer comida porque não tem água nem pra beber. Liguei lá pra menina trazer água hoje, diz que talvez traz aqui amanhã, se der ainda! Fica aí todo mundo sem tomar banho, sem lavar roupa, sem nada. Ah, a gente já tá sem saber o que a gente faz aqui. Energia tem. A nossa alegria mesmo é a televisão, quase todos aqui tem.”

Vocês são todos parentes aqui? “Aqui é tudo farinha de um saco só. Quase tudo.”

E os parentes namoram parentes?

“Fica aí, minha filha. Mas a maioria é primo

com primo. Só que os meus, não. O pai desses meninos meu aí, não. Eu falo assim: ele não é do povo da minha família, não, sabe? Ele é de outras famílias. Agora o restante aqui, quase todos, é. Aquela menina ali agora tá namorando com o primo dela, mas, antes, ela teve dois meninos com o tio dela. Eu não tô nem sabendo explicar pra você como que é esse rolo desse povo. Ela morou com o tio dela um cado de tempo, sabe? E aí separou dele e foi morar com

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esse primo.” Aqui todo mundo te tem como mãe, né?

“Uai! Eu tenho que se virar, minha filha. Tem

hora que eu enfezo, largo pra lá. E é assim, ninguém dá valor em mim, não. Vish, é só na hora da precisão. Acabou? Nossa! Me deixa jogado aí pro canto, nem lembra. Ah, minha filha, o que passa aqui, eu ainda dou conselho pros meus meninos e pros dos outros. Os pais aqui nem dá um conselho, sabe? Não entende das coisas, não. Tem hora que tá querendo fazer uma coisa errada, a gente tem que estar indo lá e falando ‘não pode fazer isso. Isso tem que ser assim e assim.” Qual é o seu nome e a sua idade?

“Minha filha, eu nem sei, não. Tem que tá

procurando os papel aí. Eu não sei nem meu sobrenome, não. A gente nasce aí no meio do mato, não sabe nem em que ano que é.” Rosa, por volta de 40 anos Comunidade Alegre, próxima à São João da Lagoa/MG

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“Minha história é grande demais da conta.

Minha vida dá uma matemática.

Eu nasci em Espinoza, divisa de bahia. É lon-

ginho um pouquinho, né? É roça, nós tava completamente na nossa residência na roça. Criando porco gordo, vaca , frango do terreiro, franguinho na panela. E a panela nunca esvaziou! Papai tem fazenda, minha filha. É, papai é fazendeiro. A fazendinha lá, não é porque é minha, não... Mas a fazendinha de casa é linda. Papai matava duas/três vacas por semana, dez/doze porcos capados do chiqueiro e despesa cheia de sacaria. Papai tratava demais da conta. Vish, minha filha, não tô te falando? Papai me

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considerava igual uma rainha dentro de casa.

Eu engravidei aos catorze anos. Era escon-

dido de pai, moça. Debaixo de sete chaves. Catorze anos, cê já pensou? O que que é uma pessoa de catorze anos hoje em dia? Foi no dia que ele quebrou o trenzinho. Eles falam ‘cabacinho’, que ninguém tinha usado ainda. No dia que ele me ‘quiabou’, eu deitei em riba do monte de algodão. Maciinho demais, né? Não estragou as costas. Sangrou demais, e muito! Ele foi vender o saco lá pros viajantes e já foi preparado: sinal vermelho. Ele era casado com a minha irmã e era engraçado com outra. Mas, ele achou que eu era mais rainha, né? A rainha Lourdinha. ‘Meu bem’. Ele me chamava de ‘meu bem’. E a bichinha não era bonitinha quase?! Cabelão batia nas costas, novinha, cinturinha assim! Nossa Mãe do Céu! Eu era um brinco, minha filha. Ele me apanhava até no colo.

No dia que papai viu, ele caçou um chi-

cotão e deu na minha cacunda. Chegou azular as costas. Como é que a pessoa de oito meses de gravidez não descobre? Papai descobriu na hora. O

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neném já tava com oito meses. Foi muitos litros de remédio bravo do mato pra ver se matava. Cinquenta litros de quinolina pra matar bicheira de boi eu tomei. Só não tomei Aldrim porque eu não achei. E eu ia morrer? Magina, morrer... Nunca. Ia não. Papai chorou. Chorou igual uma criança. E eu: Ó! casquei fora. Peguei uma sacolinha de pano e falei: ‘Aqui também eu não fico’. Olha só pra você ver, uma criança de catorze anos, tirou de dentro de casa. Papai falou pra mim ‘Minha filha, eu queria ver você sair no caixão, mas não queria ver você nessa vida’. Ficou num sentimento tão grande! Eu saí da casa de meu pai com o sol quente. Eu tinha engravidado de gêmeos, um saiu completo e o outro arrancado. O primeiro nasceu morto; o segundo, os médicos que tirou, já tava todo esbagaçado. Fez a limpeza, tirou os pedacinhos. Pesou cinco quilos! Olha o tamanho do bichão!

A relação da gente era assim: a primeira

mulher dele mora no Paraná e ele veio andando, trouxe essa de lá. Chegou em Minas, ele gostou de uma pessoa que trabalhava com a gente na fazen-

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da de papai. Aí ele partiu pra Diola, a morenona. Depois casou com a minha irmã. E aí veio eu. Todo mundo namorava ele ao mesmo tempo. O bicho não era feio. Lindo, lindo, lindo. Ele já era de outras, mas eu não importava. Quando eu dou fé, ele possuía sete mulheres. Sete mulheres! Só de casa. E as de fora? Eu comia vidro, moça. Eu gastei sete léguas pra matar uma mulher. Eu ralando, trabalhando e ele tomando cervejinha mais ela. Eu cheguei do serviço suada, nervosa, só morei a faquinha e pus no colo da saia. Foi bom eu não pegar que o batedor ia ser feio. Enquanto era só com as de casa, a gente não competia, mas era só ele arrumar outra… Ô, moça! Eu fui perigosa!

Aqui é uma confusão toda: é tudo primo

e irmão. Os filhos da minha irmã, filho de Diola e os meus tudo junto. Tudo uma família só. Meus filhos não podem nem pegar coisa do chão que elas não deixam. Graças a Deus, nem meus filhos, nem os delas, eu nunca nem trisquei a mão pra falar assim ‘cê é feio’. Então, os meninos meu e delas, nós sempre considerou igual.

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Mas aí deu aquela doença, como é que

fala? Trombose. Ele ficou seis anos na cama e eu cuidando dele porque ele foi abortado, né? Ficou sem as pernas. Eu lutava com ele dia e noite, só que ele fumava demais. Fumava duas carteiras de cigarro por dia. Eu brigava demais, mas não adiantava.

‘Se eu largar o cigarro, eu morro. Se eu fu-

mar, eu morro. Então, eu vou fumar’

Pois, justamente, o cigarro levou ele. Deu

problema nos pulmões. Tava pretinho, minha filha.

No dia que ele arruinou mesmo, as meninas

veio assim:

‘Tia, a senhora não vai reparar, não, mas

papai morreu!’

E eu deitada, deitada fiquei. Moça, pra mim

acho que eu mudei o mundo. Engraçado que, aqui tem um pé de abacate no quintal, né? Diz que ele falou ‘Lourdes, tira essas folhas de abacate embaixo de minhas pernas’. Olha pra você ver, lá na última hora e me chamando. Já tava na última hora

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e querendo meu cuidado. Ô, minha filha! Ali eu vou te contar, vai gostar de Lourdinha pra lá. Ele não esquecia de mim um segundo. Ele foi adorado! Muito adorado! E nós ficamos 66 anos juntos. Ele foi no caixãozinho, eu fiquei aqui sentadinha chorando. Fazer o quê, né?

Eu era considerada uma rainha dentro da

casa do meu pai. Minha madrasta me recebe lá chorando. Papai me tratava demais da conta. Eu fico sentida, né? Por causa dos erros, eu fico muito sentida. Não era pra eu sair pelo mundo sendo que eu tinha lugar de ficar conservada. Fiquei com vergonha. Passei seis anos sem ver papai. Quando apareci, ele me deu benção e chorou. Até hoje eu respeito demais da conta. Eu chego na casa dele agora: ele tá na sala, eu tô na cozinha; ele tá na cozinha, eu tô na sala. Eu tenho um acanho, moça, de ver aquilo. Eu chego canso. Repenso toda a vida.” Maria de Lourdes Antunes Pereira, 67 anos São João da Lagoa/MG

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CAPÍTULO II OS FILHOS *

“Parece que foi o anjo da guarda dele que

bateu em mim… Deu problema no coração e ele fez transplante. Ele ficou três anos com o coração. Ele saiu daqui pra fazer revisão, que fazia todo mês em Belo Horizonte. Saiu daqui umas 10h da noite e foi viajar. Antes dele chegar em Belo Horizonte, passaram na lagoa que tem lá perto da chegada. Ali ele acabou. Deu sinal. Quando ele tava acabando lá, eu caí aqui dentro do quarto. Eu tava apanhando os panos pra forrar a mesa porque eu tinha limpado a casa e caí no chão. Zé gritou os meninos ‘Vem pegar a sua mãe aqui’. Ele tava dentro do quarto porque ele dormia, né? Todo dia ele dormia depois do al-

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moço. Foi na hora que ele acabou lá.

Eu não sabia, não. Ele saiu daqui bonzinho,

gordo. Quando eu melhorei, perguntou o que é. ‘Eu não sei, não. Deu um negócio em mim e eu caí’. Tinha sentido mal, mas não sabia o que foi. Eles já sabiam que ele tinha morrido, mas não queria contar a eu. E ficou desse jeito, desse jeito… Com pouco, eu vi a casa enchendo de gente. Chegou a coordenadora da escola e me falou ‘Ô, Dona Nesta, Dim foi internado’. Eu perguntei se ele tava passando muito mal, ela só falava ‘Não sei, só ligaram pra cá que ele tá internado’. Já tinha morrido e eles sem querer me contar. Daqui a pouco, veio o meu mais novo gritando ‘Ô, meu Deus! Meu irmão não aguentou mesmo’. Eu desmaiei e também não vi mais nada. Depois eu acho que tacaram remédio em mim. Arrumaram ele lá em Belo Horizonte e trouxe pra cá, velou foi em casa. Se você ver a foto dele, tão bonito…Ô, Gizselia! Cê tem foto de Dim aí?” Ernestina Soares Costa, 77 anos Ponto Chique/MG

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**

“É a cabeça… Depois que meu menino

adoeceu, eu adoeci também. Já tenho três ou quatro filhos no céu, pra você ver. A cabeça vai virando, né? O juízo parece que acaba, não lembro mais das coisas. E agora foi esse, o derradeiro. Foi pior porque ele já tava com 65 anos. Deu doença nele. Ele adoeceu foi do tal câncer. Era rapaz. Não era casado, não. Ele morava mais eu. Ficou internado em Montes Claros, gastei foi muito com ele ainda. Internava a semana e depois vinha embora. E foi gastando, gastando… O doutorzinho mandou ele de volta porque não tinha mais remédio, foi pro pulmão dele a doença. Eu acho que não pega em ninguém, mas diz

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que essa doença é porque ela é muito danada. E foi indo… não alimentou mais. Ele não aturou muito, não. Parece que deu nele pra matar mesmo. Ele fumava, mas era pouquinho. É que ele bebia muito. Bebida. Pinga. Era só pinga. Aqui é pau d’água esses povo. Não tinha um dia de Deus que ele não bebia. Cansei de falar, dava conselho pra ele ‘meu filho, cê para de beber’. Ele era bom pedreiro, pra você ver, trabalhava e ganhava tanto dinheiro… Uai! E agora gastava tudo bebendo e dando os outros. Ele que comprou esse lote e me deu. Eu comprava o material mais ele pra construir. Ô dó! Coitadinho. Ajudou a fazer a casa, mas não lucrou nada. Não lucrou porque não cuidou da saúde. Ah, ele falava comigo que não tava doente. Não tem jeito, não. Eu não sei mais nada, minha filha. A cabeça, por causa da doença minha e do meu menino.” Maria Alves Carneiro, 88 anos São Judas, subdistrito de Ubaí/MG

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* **

“Eu ganhei nove filhos, Deus deixou só 3.

Nossa Mãe do Céu! Moça, eu já tive aborto embaixo de pé de pau, em riba de carroça de burro. É, eu dei problema que o menino ia descendo. Eu sentava em riba do chão, dormia em riba de cama de capim, desses capim que dá ao boi comer. O médico falou assim: ‘Mas você tá tão novinha! Deixa eu passar a mão nas suas pernas’. É desse jeito! Eu falei que não precisava dele passar a mão nas minhas pernas, era só pra me dar o medicamento. Ele queria me dar remédio pra parar a hemorragia. Como que ia parar? Pois o neném já tava morto. Ah, eu não tomei, não. Tomei foi umas injeções e fui embora pra

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vizinha. Chegou lá, o ‘ratinho’ caiu dentro do vaso. Ratinho desse tamanho assim! Dei descarga. Cê sabe o que eu tomei pra aguentar levantar de lá e ir pra roça? Caldo de sebo. Daqueles sebos mais velhos que nem cachorro não quer. A vizinha fez pra mim caldo de sebo pra dar força, moça. Aí cheguei lá em casa. Minha filha, quando eu deitei na cama, só faltou juntar urubu por riba. Já tava dando infecção, né? Agora eu fiquei aí igual uma pessoa pelegrina.

Eu tive um neném que faleceu quando eu

tava num cerrado, moça, lá pra Jaíba. Meu neném adoeceu de problema de garganta. Naquele tempo, o povo era besta, né? Panhei ele e corri pro médico. No dia que eu cheguei em Espinoza no médico, ele acabou nos meus braços. Gordinho não era, não, só aquele tanto! Branquinho igual leite. Com três meses, ele sentava. Onde já se viu isso? Sem a cama ao redor, sem os travesseiros, ele sentava e olhava pra mim batendo com a mão. ‘Mamãe, mamãe, mamãe’, e eu dava o peito. Ele adoeceu e durou só 24 horas. Eu pegava o peito, tirava o leite na colher

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e panhava no cantinho da boca dele. Foi aí que ele não engoliu mais. Eu pensei: “Esse aí não é meu mais, já é de Deus”. Quando eu pisei com ele no médico, ele acabou nos meus braços. Bichinho morreu pagão. Vish, mas foi um sentimento tão grande! Pra mim, ele faleceu porque não teve cuidado nas instâncias pra poder vir. Carro não tinha. Dinheiro não tinha. Ele era lindo demais da conta, muito lindo. Não é porque é o meu filho não, mas era a coisa mais linda.” Maria de Lourdes Antunes Pereira, 67 anos São João da Lagoa/MG

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CAPÍTULO III QUAL É O SEU SONHO? *

“O sonho meu é ver meus filhos estudado.

Uai! O que mais que eu ia querer? Acho que na minha cabeça não entra mais, não. Eu gosto de viajar. Eu tenho vontade de ir pra casa dos meus irmãos, os que mora longe, minha filha que mora longe. Zé é desse jeito aí: tem que dar café na mão, o remédio tem que ser derretido porque ele não engole. Depois que ele fez operação, ele não engole nada direito. Eu não posso sair. Esses meninos aqui não quieta dentro de casa pra ficar com Zé. É por isso que passa tempo, até anos, sem eu ir na casa de meus irmãos. Agora Zé não viaja desse jeito.” Ernestina Soares Costa, 77 anos Ponto Chique/MG

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**

“O sonho meu é de eu viver sozinha. Quero

nem saber de homem mais. Não. Não quero, não. Quero viver sozinha.” Ana Ferreira Rosa, 66 anos Campo Azul/MG

* **

“Eu nem sei falar com você qual o meu so-

nho, a cabeça anda ruim. Eu penso em muita coisa, nesse tanto de filho meu que já morreu. Deus já chamou. Eu penso em morrer e o outro ficar sozinho, mas é como diz: Deus prometeu, não tem jeito, né? Meu sonho é dele não ficar sozinho quando eu morrer.” Maria Alves Carneiro, 88 anos São Judas, subdistrito de Ubaí/MG

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* ***

“Sempre meu sonho é a minha família. O

sonho meu é ver meus filhos tudo bem de vida. Eu tenho sonho ainda, né? A gente sempre tem. Mas eu peço mais pros meus filhos. Eu já tô de idade, não aguento mais, mas eles aguentam. Eu tenho vontade de ver eles tudo bem de vida, não quero ver eles na situação que eu passei. Graças a Deus, nenhum deles é ruim de vida, mas a gente quer que sempre multiplica. Pelo menos, todos têm a sua casa. Quando eu casei, eu não tinha. Fiquei mudando pra casa dos outros, de fazenda em fazenda.” Maria José Alves Silva, 67 anos Ponto Chique/MG

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** ***

“Ah, sei lá. Tem hora que eu sento pra lá e

fico pensando na vida, sabe? Mas isso aí eu tenho que estudar ainda pra mim poder pensar. O que que eu vou pensar? (risos) O meu sonho é eu ter uma casa, sabe? Uma casinha. Não precisa ser muito boa, não, mas uma casinha bem fechada, bem tampadinha. É o sonho que eu tenho de ter aqui nesse lugar, sabe? Arrumar as minhas coisinhas que eu tenho aí dentro dela e sair, procurar um serviço pra fora. Só que eu quero sair aqui, eu tendo a minha casinha pra eu poder guardar minhas coisinhas e ir, porque eu não sei, a gente vai e chega lá não dá certo, tem que voltar e vou ter meu lugarzinho aí. É por isso que a gente fica aqui nesse sofrimento até hoje, porque esse marido meu mesmo é doido pra sair daqui e nós ir lá pro Pará de Minas. O irmão dele que mora lá, sabe? Só que eu falei com ele ‘eu não vou, não’, enquanto eu não ter a minha casinha que eu posso ir e vai que chega lá, não dá certo e a gente volta. Eu tenho ela aqui que eu posso chegar e entrar.”

Rosa, por volta de 40 anos

Comunidade Alegre, próxima à São João da Lagoa

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** ****

“Ah, o meu sonho… Eu tento viver assim. Eu

não sonho muito, acho que sou uma pessoa vitoriosa. Então, o meu sonho é trabalhar sempre, continuar trabalhando com saúde. Eu acho que tendo saúde para trabalhar, a gente consegue pessoalmente realizar. Eu não tenho aquilo de querer muita coisa, não.” Rosimeire Alves de Souza, 40 anos Comunidade Quilombola Alegre, Januária/MG

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ABRA OS OLHOS

Depois de quarenta minutos de entrevista:

“Mas não vai nem esperar eu coar o café?”

“Não, Dona Zefinha, minha demora aqui é

curta”

“Fica aí, moça. Tem biscoito.”

“Eu vim só pra saber a sua história mesmo”

A maioria das entrevistas eu fiz sentada no

sofá. Chegava sem avisar, simplesmente aparecia e pedia para entrevistar. No dia que visitei Josefa Soares, por exemplo, sua casa estava em reforma, era no banheiro do lado de fora da casa. A porta da

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sala estava aberta e, na gravação, eu pude ouvir as histórias do passado de minha entrevistada, mas também o seu presente: netos brincando no quintal e barulho de construção. É sempre assim. Algumas interrompem para falar com os filhos, os netos.

Tenho a impressão de que muitas das mi-

nhas entrevistadas nem levaram a sério a nossa conversa. Muitas acham que suas histórias não têm tanta importância, acreditam que suas vidas são comuns. Talvez até seja comum, talvez não seja nada de extraordinário. Mas eu acredito que todos temos histórias para contar, coisas para ensinar. Entender esse conceito foi o primeiro passo para que eu, de fato, compreendesse o que é a empatia. Valorizar o outro, saber se colocar no lugar dele, porque as experiências que ele viveu vão tornar as suas melhores. É fascinante a capacidade do ser humano em gerar conhecimento. Uma habilidade intrínseca que todos nós temos.

Durante gerações as mulheres foram, na

maior parte das vezes, as professoras no Norte de Minas. Eu queria que elas ensinassem mais do que

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português ou matemática, queria que elas lecionassem sobre a vida. Não precisa de diploma para isso. Como jornalista, eu busquei tornar o que elas consideram ordinário em extraordinário. Criei um livro com suas histórias com o intuito de ampliar o mundo dessas mulheres com pequenas coisas, com o cotidiano, com as dores e alegrias. Acredito que este deveria ser um hábito na vida de todos. Enxergar lições, ver a vida como uma grande sala de aula, todos somos alunos e professores. Nada me ensinou tanto quanto aprender isso. É uma questão de dar ouvidos, de olhar. Basta você abrir os olhos para enxergar as lições que a vida te oferece.

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