costura urbana: o entre como possibilidade

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costura urbana: o entre como possibilidade


CAP: DAVID SPERLING, LUCIANA SCHENK, LUCIA SHIMBO, JOUBERT LANCHA . COORDENADOR GT: MARCELO SUSZUKI


costura urbana: o entre como possibilidade

INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO . IAU-USP TRABALHO DE GRADUAÇÃO INTEGRADO . TGI I . 2016

ALINE SGOTTI



As cidades (...) são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas por sua vez, nos moldam por meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhe nossa própria forma pessoal. Nesse sentido parece-me que viver na cidade é uma arte, e precisamos do vocabulário da arte, do estilo, para descrever a relação peculiar entre homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana. A cidade tal como a imaginamos, a suave cidade da ilusão, do mito, da aspiração, do pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto a cidade dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas monografias da sociologia urbana, de demografia e de arquitetura. (RABAN apud HARVEY, 1992)


desenvolvimento

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO . SÃ0 CARLOS . 2016


1 2 3 4 5

as inquietaçþes

8

a cidade

14

o entre

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as diretrizes projetuais

30

as referĂŞncias

45



inquietações as a questão


cidade pessoa lugar pessoa pessoa pessoa

entrelaçamentos entre:

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A relação entre indivíduo e cidade é essencial para sua constituição, visto que ela é produzida coletivamente, sendo passível a diferentes olhares, modos de habitar, de transitar e de sentir. Portanto, associado ao imaginário de cada usuário há uma cidade distinta que resulta de suas vivências, memórias e sonhos.

A cidade não é apenas vítima do sistema racionalizado e da produção e consumo, mas se trata na verdade da produção de signos e imagens (SÓLA-MORALES, 1996). Nela, o modo de habitar, de se locomover e de se relacionar passa por constantes transformações, pautadas em função do tempo e do espaço em que ocorrem, de modo que as sensações causadas por determinado lugar são diversas ao se caminhar, passar de carro, permanecer nele por alguns instantes ou habitá-lo por longos anos. Tais percepções apreendidas pelos transeuntes somadas à afetividade e às lembranças do local constituem a imagem da cidade, de modo que os espaços urbanos estão intrinsecamente presentes no imaginário do sujeito. Assim, os locais de passagem, as transições, os percursos e os vazios fazem parte do cotidiano estando na memória coletiva mesmo quando passam despercebidos ao olhar apressado.


Com base nessas reflexões, requalificar os espaços e as relações estabelecidas com eles implica também na alteração da relação do indivíduo com a cidade, que passa a ser sentida de uma nova forma, de modo que ligar a rotina ao desconhecido, sair do comum e dar espaço a novas e percepções e experiências seriam formas de fazer com que locais inóspitos ao habitante passassem a atuar de maneira ativa na vida urbana, a partir da apropriação e da urbanidade gerada em tais situações. Desse modo lugares que antes tendiam à um desvio na passagem podem vir a ser um caminho agradável, locais abandonados podem se tornar atrativos, modificando o entorno e a dinâmica da urbe.

urbanidade

A aqui citada se refere à esfera de percepção do sujeito, dependendo assim da relação entre o ambiente urbano e aquele que o usa, em uma dimensão que envolve o corpo e o espaço, tanto na escala do edifício quanto na escala da cidade. Dessa maneira, a urbanidade está no modo como a relação espaço/corpo se materializa (AGUIAR, 2012). Logo, os espaços providos de urbanidade são gentis com o corpo, convidam ao estar e proporcionam vínculos de afetividade com a cidade. Decorrente desse fato, estando presente na memória, o lugar adquire um novo sentido, pois o espaço da imaginação é “um espaço poético” e um espaço que foi apropriado pela imaginação não pode permanecer como um espaço indiferente (BACHELARD, 2005), pois o “ser é atrelado a seus espaços” (HEIDEGGER, 1971), ele habita o lugar ao mesmo tempo que é habitado por ele. A dimensão do habitar se expande, assim, consequentemente a cidade também é casa, e, deve ser hospitaleira, fornecendo ambientes que propiciam a experiência do acolhimento, que convidem os habitantes a frequentar os espaços públicos e a se encontrar com o outro, com o desconhecido. 11


A arquitetura não é somente uma utopia, mas um meio para alcançar certos resultados coletivos. A cultura como convívio, livre escolha, liberdade de encontros e reuniões. (Lina Bo Bardi)

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Nesse sentido, a arquitetura se apresenta como transformadora do espaço, e, consequentemente da cidade e das pessoas, pois ela sugere novas formas de sociabilidade e apropriação. Assim, o Sesc Pompéia, projeto de Lina Bo Bardi, é uma referência, pois se trata de uma antiga fábrica de tambores que através da intervenção arquitetônica passou a ser um local de encontro entre pessoas, arte e cultura, gerando laços afetivos com o lugar. Na mesma lógica, tem-se também o High Line Park, em Nova York, projetado por James Corner Field Operations e Diller Scofidio + Renfro, um “jardim suspenso” construído numa linha férrea desativada, que propõe novas conexões, percursos, estares e relações com o entorno. Ambos os projetos revelam a potencialidade de lugares que utilizaram a arquitetura como meio para adquirir novas significações e funções no espaço urbano.

sesc pompéia

high line park


pertencimento identidade apropriação

articular percursos

relação corpo e espaço

sobrepor usos

propor passagens

Vivemos em cidades onde o espaço público é cada vez mais inóspito e a relação interpessoal mais escassa. Em contrapartida, o presente trabalho “costura urbana: o entre como possibilidade” propõe a produção de espaços que acolham as pessoas e que possibilitem a apropriação da cidade e a transformação da paisagem, trazendo aos usuários novas percepções e experiências ao caminhar, percorrer e sentir o espaço, partindo de locais já presentes no cotidiano citadino, mas que são subtilizados, costurando-os à cidade e à população. 13



a cidade questĂŁo


A investigação sobre a cidade se voltou aos espaços que estão no imaginário dos transeuntes, mas que são inóspitos ao pedestre. Assim, o olhar buscou locais sem uso, encontrando bordas ao longo da linha férrea, lotes vazios que resistiram à ocupação, entorno de áreas industriais, fábricas no perímetro urbano, antigas chácaras na área central, entre tantas situações que configuram áreas complexas ao habitar urbano. O cenário em questão compreende a cidade de Matão, com localização considerada estratégica, pois se situa na área central do estado de São Paulo, e é rodeada por cidades de grande influência econômica como Araraquara e São Carlos, entre outras. Foi fundada em 1892 no contexto da expansão cafeeira, sendo importante para seu desenvolvimento a passagem dos trilhos da linha férrea da FEPASA e posteriormente as rodovias Washington Luiz e a Brigadeiro Faria Lima, que conectam a área ao entorno.

Matão


Mancha urbana com o mapeamento de possíveis espaços de intervenção e as principais vias de circulação da cidade.

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expansão urbana

Desta forma a cidade teve seu crescimento impulsionado, o que possibilitou o surgimento, primeiramente da indústria metalúrgica voltada à implementos agrícolas, em especial à cana-deaçúcar. Mais tarde, tem-se a indústria da produção de insumos da laranja, o que caracteriza a economia da cidade como industrial e que permanece até os dias atuais. A presença de tais indústrias ocasionaram o aumento populacional, que passa de 8.229 habitantes em 1960 para 60.547 em 1991, sendo cerca de 80.990 hoje, segundo os dados do IBGE de 2014. A ocupação se deu num primeiro momento no núcleo central da cidade, ao redor da praça e da Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus e nas proximidades do Rio São Lourenço, se expandindo em uma

zoneamento urbano


mancha maior por volta da década de 1960, indo também em direção à linha férrea e à estação, como observa-se no mapa ao lado, que ilustra a expansão urbana. Nesse processo muitos lotes permaneceram vazios, inclusive na área central e indústrias que antes eram afastadas de áreas residenciais foram incorporadas a elas, o que pode ser visto no mapa referente ao zoneamento urbano. Ainda de acordo com os mapas tem-se que os vetores de expansão vão em direção aos eixos sul e leste principalmente, em direção à Rod. Faria Lima. Esquematicamente:

esquema de vetores do crescimento urbano, com base nos dados do plano diretor da cidade

Por outro lado, os equipamentos e espaços públicos não acompanharam tal crescimento , sendo escassa a presença de locais que congregam pessoas, principalmente voltados à atividades culturais. O levantamento realizado (nas páginas 20 e 21) mostra que o cenário atual conta com poucos parques e praças de uso ativo, e outras atividades como exposições e oficinas acontecem em locais muitas vezes improvisados, que acabam limitando as atividades e o número de pessoas.

Assim, considerando as características da cidade, somadas às inquietações que se voltam este trabalho – que se referem à precarização dos espaços públicos de qualidade – agrega-se a cultura, em função da demanda, e, como meio de gerar vitalidade.

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Dessa forma a cultura atuaria como irradiadora de novas possibilidades de convívio e interação entre as pessoas e entre as pessoas e a cidade. O levantamento dos equipamentos de Matão (incluindo educação, lazer e cultura) mostra que os locais relacionados à arte em na cidade são poucos e concentram-se nas principais e mais antigas quadras do centro da cidade, sendo eles a Casa da Cultura, edifício histórico onde funcionam exposições temporárias e a secretaria de cultura, a Biblioteca Municipal, que atualmente está instalada próxima à Casa da Cultura, em um prédio anexo a ela. O anfiteatro usado pela população é o da Escola Estadual Henrique Morato, já que não há outro no município, o que faz com que ocorram apresentações públicas também no Cine Teatro Matão, de caráter privado, mas que é utilizado para suprir essa demanda.

1. casa da cultura

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2. biblioteca

3. espaço das artes

4

4. anfiteatro


5

2

1

praça central

igreja matriz

3

5. cinema

áreas livres e equipamentos públicos 21



o entre


a linha 24

o vazio

o rio

O entre, espaço escolhido para intervenção, localiza-se próximo à área central de Matão e guarda camadas de história. De um lado é limitado pelo Rio São Lourenço e de outro pelos trilhos da


linha férrea da fepasa, ainda usados por trens de carga. Tal espaço pode ser compreendido como um “terrain vague”, termo que se refere à lugares aparentemente esquecidos, em que predomina a memória do passado sobre o presente. Lugares obsoletos em que somente certos valores residuais parecem manter-se apesar de sua completa desafeição com a atividade da cidade. São lugares externos, estranhos, fora dos circuitos e das estruturas produtivas. Lugares que se converteram em “áreas que a cidade não se encontra mais ali” (SÓLA-MORALES, 2002).

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Observando-se a expansão da ocupação em Matão (mapa página 18), tem-se que o vazio está localizada na mancha que foi ocupada na década de 1960, mas permaneceu inabitado, à margem da especulação imobiliária. Atualmente área é propriedade privada, sendo prevista pelo plano diretor da cidade como área de urbanização compulsória, porém não há previsão de quando isso possa se efetivar. Assim, o presente trabalho propõe o uso desse vazio como espaço público, concebendo não somente o vazio como ausência, mas como promessa, como encontro, como espaço do possível e da expectativa (SÓLA-MORALES, 2002). Dessa maneira, o olhar se expande, abrangendo a do espaço na escala da cidade, vislumbrando-o como parte integrante de um possível sistema de espaços verdes, que contém o CAJU (1), ao norte, área verde com complexo esportivo e escola, o parque José Taralo Mendes (2), a área de lazer mais ativa e frequentada atualmente, o “aeroporto” (4), uma pequena pista de pouso com potencial de vir a ser um espaço verde e por fim a área de intervenção, que também prevê uma localização estratégica, já que o vetor de expansão urbana tende à leste (ver mapas e diagrama das páginas 18 e 19).

área residencial

área de intervenção zona de expansão

área central 26

área de predominância comercial


na de ansão

N

1

22

3

4

principais áreas de alagamento e possível sistema de espaços verdes 27


o contato existente com o rio

os galpões

o contato com a estação 28


fluxos +movimento -

estação galpões vila dos operários serralheria abandonada

indústria de sucos prefeitura municipal

complexo esportivo praça

usos comercial residencial



as diretrizes projetuais


O primeiro gesto de projeto parte do princípio de dar conexão à área, assim para efetivar a mobilidade são realizadas alterações urbanas com o parcelamento de parte do terreno para consolidação de algumas quadras, em locais em que algumas residências já eram presentes, assim no mapa abaixo as quadras destacadas foram as que sofreram mudanças. Um partido importante foi o alargamento do espaço destinado ao rio, já que este não possuía espaço de vazão ocasionando alagamentos frequentes ao longo de toda marginal São Lourenço (que pode ser visto no mapa da página 27). Houve a realocação da Vila dos Operários (mapa página 29) para a quadra próxima. Visando a mobilidade sustentável, tem-se a implantação de uma ciclovia e de caminhos no parque que atendem ao pedestre facilitando seu descolamento entre pontos externos e internos da área. Assim a passarela (consultar o mapa das páginas 32 e 33) proporciona ao pedestre a ligação contínua da área, ora por passarelas, ora em nível)

alterações urbanas 32


p e r c u r s o

dar lugar para a apropriação anfiteatro

o f exposições i c parque i n a s

explorar o entre biblioteca

sobrepor

33


galpão

estacionamento

área de alimentaçã

nasce d’água

antigo armazém estação ferroviária passarela de conexão

ciclovia

34

jatos d’água área lú edifício cultural


horta apoio horta apoios

bosque e trilha de caminhada ão teatro de arena ente e espelho a temporário

pista de skate

estar sobre o rio árvores caducifólias

údica bacia de mitigação

piquenique

árvores frutíferas

proposta de implantação


corte AA

corte BB

corte CC 36


37


38

bosque

teatro de arena


A proposta de intervenção se divide em quatro momentos: 1. o parque 2. o contato com a memória e a tradição 3. o contato com a água 4. o edifício cultural

Assim, para cada momento tem-se diretrizes desenvolvidas na segunda etapa de trabalho.

delineadas

a

serem

1. Para o parque tem-se a proposta de promover estares que convidem o transeunte a experimentar e sentir a paisagem, com diferentes texturas de vegetação, uso do relevo em diferentes ambiências, como o bosque, o teatro de arena, o piquenique. Sentir as diversas épocas do ano através de árvores caducifólias e da floração, as cheias do rio através da bacia de mitigação, entre outros mecanismos.

pista de skate

piquenique

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área da estação

florações

corte da estação

contato com o rio

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corte da bacia de mitigação

espelho d’agua temporário


2. O contato com a memória e tradição propõe a apropriação da antiga estação ferroviária e de dois outros galpões presentes na área para abrigar uma oficina permanente relacionada ao Corpus Christi (festa religiosa tradicional da cidade) e que possui como técnica o tingimento de vidro moído para elaboração de obras de arte em forma de tapetes (proposta a ser desenvolvida). Como intervenção arquitetônica haveria uma cobertura ligando a estação ao outro galpão gerando um estar coberto entre ambos.

3. O contato com a água prevê a relação maior com o rio, através de passarelas e estares junto a água, da bacia de mitigação q dará possibilidade de vazão na época das cheias sem o problema dos alagamentos, da visibilidade de um pequeno curso d’agua presente no interior da área através de um espelho d’água temporário, já que ele só funcionaria na época de cheias e jatos de água em estares do parque, por exemplo.

42


4. O edifício cultural é um complexo que busca abrigar biblioteca, salas para atividades e oficinas e um anfiteatro. A proposta de inserção é a de que ele dialogue com a paisagem e que o usuário possa ter a experiência do relevo através da edificação, assim ele se insere de forma a ser sutil a quem está percorrendo o sentido norte-sul e se faz presente no percurso inverso do parque. Parte do programa a ser atendido, de acordo com levantamentos na secretaria de cultura de Matão são: aulas de desenho, oficina de grafite, pintura em tecido, pintura espatulada, aulas de crochê, tricô, violão, viola, teclado, ensaios da orquestra, canto coral, musicalização infantil, ballet infantil, grupo de teatro e roda de acordeom.

oficinas e exposições

anfiteatro

biblioteca 43

implantação


corte AA

fachada oeste

fachada leste

fachada oeste anfiteatro

fachada sul


BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danese. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Tradução Plínio Dentzien., 2001. GEHL, Jan. Cidade Para Pessoas. São Paulo. Perspectiva, 2013. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2006. RUBINO, Silvana, GRINOVER, Marina (orgs.). Lina por escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi . São Paulo: Cosac Naify, 2009. SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territórios. Gustavo Gili, 2002. 45


as referĂŞncias



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