O Hômi na estrada - Allan Samsa

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Texto Original Racionais MC`S Adaptação Allan Samsa


O hômi na estrada recomeça sua vida Sem eira nem beira Perdido que só ele Cego de liseira Doido por paz E sem um conto na carteira

A casa é simples Uma cozinha e uma sala As paredes têm sonhos Pregados com fita gomada Esse é o palco da história Do hômi na estrada

Desde criança Foi menino presepeiro Nunca foi medroso Sempre aventureiro Dos tempos da FEBEM Guarda fama de encrenqueiro

Nas redondezas O esgoto a céu aberto A catinga truando Os canos descobertos E os meninos chorando Dão o clima incerto

Do lugar que veio Mais um filho da miséria A fé e o candomblé Ninguém se desespera E o povo mantém a confiança Onde a fome impera

Houve mais uma morte Uma pobi coitada Deixaram o corpo Coberto de paulada Deus, Nossa-Senhora É o retrato da desgraça


E o hômi entristece Vendo seu filho ali Crescendo na guerra Um dia quer possuir A mínima condição De sair e fugir

Os ricos olham de cima A miséria e a agonia Aparecem no jornal Falam de paz e calmaria Mas na favela É um dia após o outro dia

A ficha suja De ex-presidiário Fez do mundo inteiro Seu adversário Ele tenta ser honesto Mas só leva de safado

O hômi pega seu chapéu Sai pra dar uma volta Gato, cachorro, menino Fazem a sua escolta Disputam o almoço Esperando uma reviravolta

O Sol escaldante Aperreia o juízo Faltou água O clima fica indeciso Não tem prazo pra voltar Vai no improviso

Do tempo de escola Ele não lembra nada Ia pelo rango A mãe o obrigava Essa é a história Do hômi na estrada


Um amigo seu Tava ganhando dinheiro Mexendo com coisa errada Era seu grande parceiro Caiu pra puliça Com três tiros no peito Assaltos na redondeza Começam uma luta Puliça tudo invadindo Era tanta disputa E o pôbi do hômi Acusado de forma injusta

Paulo Brabo

A noite chega E um clima estranho no ar Ninguém sabe o seu destino E ele sem nada desconfiar Mas enquanto ele se deita Alguns procuram seu lar


Na madrugada Disseram seu sobrenome Ele nem sabe E uma dúzia de hômi Caminham pra sua casa Encapuzados e sem nome

Ele conta as balas que tem Treze tiros de automática A conta fica fácil Nem precisa de matemática Engatilha mesmo assim Vamos ver na prática

A chaga que ele carrega Não vai curar tão cedo Mesmo entre os seus Ele ainda causa medo E se for pego de bobêra? “senta o dedo”

A seguir o filme muda E tudo gira em câmera lenta Ele lembra do filho O pensamenta lhe acalenta Não vai vê-lo crescer Dez tiros, ele não aguenta

Pressentindo o mal O hômi acorda assustado Ouve os passos lá fora Vários sussurram abaixados Contagem regressiva Julgado, acusado, culpado

No dia seguinte O jornal estampa a notícia “Bandido encontrado morto” E tome malícia Quando deveria ser “Inocente morto pela polícia”


Fim


O hômi na estrada é um cordel baseado na letra da música O homem na estrada do grupo de rap Racionais. Composta por Mano Brown, a canção conta os últimos dias da vida de um ex-presidiário – negro, pobre, morador da periferia – que busca reconstruir sua vida. Faixa quatro do LP Raio-X do Brasil (1993), é uma das canções de maior sucesso do grupo de rap paulistano. A narrativa é feita por um narrador onipresente – que se coloca ao lado do personagem da letra –, embora às vezes o foco narrativo mude, como o narrador misturando sua história dentro do próprio relato. A obra é alográfica.

Paulo Brabo

O cordel se manteve fiel ao ambiente e a caracterização dos personagens, investindo na adaptação da linguagem através da sextilha, estrutura do cordel formada por seis versos, onde os versos pares (dois, quatro e seis) devem rimar. Além disso, a escrita “errada” do jeito matuto do nordeste


de falar se faz presente na adaptação. O que motivou este trabalho foi a percepção das semelhanças entre rap e repente. O rapper cearense RAPadura, as bandas O Surto e Jumenta Parida - numa pegada mais hardcore - já atentaram pra essa mistura. O cordel, tal como a letra da música, mistura a narrativa indireta com a direta, em trechos que transcrevem uma frase dita, intercalada com frases do narrador. A narrativa, segue uma ordem cronológica até a tragédia final, com inserções de flashbacks que são pensamentos soltos do narrador sobre o personagem, retratando sua vida e condição. A adaptação tem o objetivo de homenagear a música rap que desde sua origem retrata uma realidade muitas vezes silenciada. Moradores das “quebradas”, pobres, nordestinos encontraram nos cordéis, bem como nas

emboladas, e no rap uma maneira legítima de falar das dificuldades de uma forma rimada. O homem na estrada tanto pode ser aquele que batalha para reconstruir sua vida, apesar da violência nas grandes cidades, como o nordestino que migra da sua terra nas estradas secas atrás de água e melhores condições no sudeste e grandes capitais. Moradores das periferias e nordestinos: homens e mulheres na estrada.


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