Politécnica 147

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FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO: Doutor Carlos Castilho Pais Doutora Maria do Céu Monteiro Marques DESIGN & EXECUÇÃO DO PROJECTO: Artur Patrício CONSULTORIA: Estela Gomes COLABORAÇÃO: Ana Maria Gonçalves Ana Paula Teixeira Eva Gonçalves Fátima Pinto Camilo Fernanda Ferreira Helena Pinto Idalina Araújo José Nunes da Silva Sandra Isabel Sara Rodrigues Sónia Aires Lima Victor Moreira © Autores dos textos © Fotografia da capa e separadores, Artur Patrício © Fotografias de Carlos Reveles EDITOR: Carlos Castilho Pais MORADA: Universidade Aberta Departamento de Humanidades R. Braancamp, 90 1250-052 LISBOA TELEFONE: 213 916 300 MAIL: castilho@uab.pt ISSN: 2183-5853

Nota: A ortografia de cada texto é da responsabilidade do seu autor.


Índice

Introdução….......................................4 1. Poesia…........................................5 1.1. Quadras…..........................5 1.2. Soneto…...........................11 1.3. Verso Livre…....................12

2. Prosa….......................................18 2.1. História Recontada…........18 2.2. Personagem…...................28 2.3. Resposta a Camilo.............32

3. Entrevista a Nuno Júdice…..........37 4. Fotografias…...............................40 5. Três Propósitos….........................45

6. Curso de Escrita Criativa…..........47


introdução Publicam-se aqui os textos que os Formandos do Curso de Escrita Criativa, Unidade de ALV da Universidade Aberta, produziram no quadro da aprendizagem realizada na edição do curso de 2014-2015. Dar a conhecer os textos dos Formandos é o principal objectivo desta publicação; mas a publicação deve ainda compreender-se enquanto instrumento de aprendizagem, que continua a que foi iniciada com o curso. Nesse sentido, congratulamo-nos com a colaboração de Nuno Júdice, que tão amavelmente acedeu ao nosso pedido de entrevista. A Nuno Júdice, a Carlos Reveles, que enriquece a publicação com as suas fotos, a todos os Formandos, especialmente àqueles que se esforçaram por concretizar os dois projectos de actividades após Curso (esta publicação e o sarau poético-musical), endereçamos os nossos agradecimentos. Um agradecimento especial é dirigido a Artur Patrício e a Estela Gomes, que foram incansáveis no trabalho que desenvolveram para que esta publicação visse a luz do dia. Doutor Carlos Castilho Pais Doutora Maria do Céu Monteiro Marques

© Artur Patrício

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Poesia QUADRAS

Caminho A vida é feita de opções, de escolhas e de caminhos; saltamos entre ilusões:

Teus olhos

tal qual os passarinhos. Teus olhos me queimam Os trilhos mal escolhidos,

quais brasas ardentes

trazem-nos desilusão;

prendem-se teimosos

sejamos então contidos,

nos meus tão carentes.

prudentes na direção. Teus olhos me gelam Antes de sair do ninho,

quais flocos de neve

não confiemos na sorte:

despedaçam-me a alma

preparemos o caminho,

num suspiro breve.

acertemos rumo e norte. Num gesto esgotado José Nunes da Silva

finto o teu olhar pudera ir p’ra longe e não mais voltar….

Ana Paula Teixeira

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Aos meus amores Ficava certeza a dúvida e passaram tantos anos do amor, nascia Joana. Teresa, o que nos amamos!

Meu sol, o melhor de nós és tu o melhor de mim o meu ser é todo teu filha, quero-te assim.

Iluminas o meu peito luz nas trevas, és meu Deus meu amor, agora e sempre os teus sonhos são os meus!

Victor Moreira

Momentos Na vida existem momentos fugazes ou prolongados, repletos de sentimentos intensos, amargurados…

Momentos de dor intensa com amargura sentida; momentos de mágoa imensa que marcam a nossa vida.

Nesses momentos tão loucos, onde as entranhas se rompem, todos os gritos são poucos, todos os ais nos consomem…

Estela Gomes

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Noites de Verão No cimo deste farol, vejo areia vejo mar é neste grande lençol que a lua se vai deitar.

Em noites de lua cheia vejo as ondas a bailar fazem desenhos na areia montes de espuma no ar.

As linhas de espuma branca traçam renda pelo chão as ondas na sua dança fazem da areia caixão. Idalina Araújo

Abril Manhã de Primavera, radiosa cravos vermelhos, belas melodias ruas com gente feliz e ansiosa da esperada liberdade que trazias.

Ficaram deste dia muitas histórias com elas repetidas vezes me prendias revivia a juventude, as memórias onde tu em cada canto me sorrias.

O futuro tem chegado devagar… não cedes a traições nem covardias e mesmo que te tentem destroçar acredito que jamais desistirias! Fátima Camilo

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Quando sonho Quando sonho, gostaria que fosse a realidade. só sonho que voltaria àquele tempo sem idade.

Às raízes vou voltar. Vontade vinda d’entranhas. mas a vida é um jogar, de tantas coisas estranhas.

A terra O mar, bem lá longe, parece brilhar, o sol, bem no alto, ofusca o olhar, o céu tão azul cintila sem parar, o rio, que corre, leva-nos ao mar.

Voltar atrás? A sonhar! Oh que grande estranheza esta! é seiva pr’alimentar, esta vida que me resta.

A terra, tão bela, parece acordar, o vento que sopra, chuva vai puxar, a erva macia, fragrância no ar, o orvalho, esse, sim, sim, cai sem cessar.

Maria Cristina A neve, tão branca, gelada caiu o monte, no alto, fagulhas largou, da nuvem sombria, chuva que surgiu o sono, profundo, fortificou.

Cláudia Queirós

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Poema à nossa condição Se o sonho comanda a vida, quero sonhar acordado, só assim a minha lida vou fazer com mais agrado.

Viagem

Queria poder fazer

Quis conhecer a essência da vida.

tudo aquilo que mais gosto

mas sem nada saber, só e perdida,

p’ra nunca chegar a ter

pus-me a caminho, p´ra longe voei,

tantas rugas no meu rosto.

mas esquecendo tudo o que deixei,

Daqui não levamos nada,

Voei p´ra lá do céu, sem hesitar,

senão termos que morrer,

quis viver a vida nova… Sonhar!

p’ra quê esta caminhada?

O caminho das sensações sem ver,

p’ra quê viver a correr?

afinal só me faziam sofrer!

Dinis Luís

A essência que tanto procurei, afinal não se procura, pensei… surpreendida, sorri sem temor: ao meu lado já estava o amor! Sara Rodrigues

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A aposta Foi lançada uma proposta para uma quadra treinar, logo me ponho a cismar em atinar com a aposta.

A tal ideia, fugiu pela casa vagueei, do facto, me lamentei mas por fim, algo surgiu.

Depois de muito tentar ufa, sempre consegui nas palavras que escrevi acabei por versejar.

Graça Rebelo

Ao meu mestre das palavras Eu quero versos sem nós atados ao meu dizer. e ter vontade de rir se ninguém os quiser ler.

Preciso seguir guiões p’ra fazer um figurão. Esperam isso de mim… quem sou eu pra dizer não?!

Tento rimar com rigor; sigo métrica. E a voz, na minha cabeça, diz: “eu quero versos sem nós”! Maria Longle

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SONETO Triste Tristes são dias cinzentos em que o coração aperta angústias e lamentos uma avenida quieta

Meu neto, Sol do meu entardecer

Tristes são esses momentos em que o sol não brilha em ti

Vieste ao mundo cheio de bondade,

fica exposto ao sofrimento

dia de chuva, mas dia suspeito.

- deslizes que cometi?

Gentil, feliz, formoso, tão perfeito, e de viver foi toda a tua vontade.

Há tristeza na tua alma impede de acreditares

Trouxeste contigo a minha felicidade!

perdes quase toda a calma

Tens tanto amor e vida, meu eleito!

- quando deixas de pensar?

Melhor não poderia ser teu feito, maravilhoso, sim! Oh que vaidade!

Nuno Gomes Bonito o teu sorriso, cor do céu! O teu falar é sinfonia bela em tom de Sol Maior, amado meu.

Sublime ser saído de uma tela ganhando vida, a vida que Deus deu. Gentil presença! Santa! Que singela!

Maria de Fátima Moreira

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VERSO LIVRE

A tua imagem

Era capaz de jurar que eras tu naquele coreto de arco-íris

História

onde o vento pousa em câmara lenta

inacabada

o teu abraço ao mundo. Quis abandonar-me nos teus braços, E vejo-te na simplicidade da fotografia, com um sorriso geometricamente desenhado no espaço desconstruindo mil desejos...

parar o relógio da vida, e assim permanecer até à eternidade… De coração oprimido e trespassado, fecho o livro inacabado. Despeço-me desta história que não teve fim,

Artur Patrício

e entre lágrimas e desejos escondidos, a alma vazia entrega-se rendida, num grito silencioso, abafado… Conheço a escuridão, o frio e a cegueira, e o martírio dos dias, da vida que perdeu o norte, porque morreu e não se elevou, e assim permaneceu triste e só.

Sara Rodrigues

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À janela Diante dos meus olhos passa tanto movimento, luz e cor. vejo altos, velhos, loiros, uns apressados, outros a vaguear. Ao longe vislumbro navios, barcos, veleiros,

A Ostra (Pérola)

lá vão a navegar. há tanto bulício na praça! Absorta à janela, perco-me em pensamentos. Que sorte, ter este filme a passar! Graça Rebelo

Lá ao fundo… bem lá ao fundo, Brilha e cintila algo que extasia… Belo, revolto, areia à mistura, Chego mais perto, respiro, Ondas e mais ondas, o horizonte… Mas, ali está ela, indefesa… À sua volta, redes, muitas redes… Triste sina a sua… Foge, por ente as ondas, foge… Inquieta, sim, mas nunca desiste… Vai mais além, até que… desaparece, Quem sabe, ainda nos cruzaremos um dia, Na imensidão do mar…

Claudia Queirós

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Tejo eternamente Manhã cedo, nasce o Sol, e logo cumprimenta Lisboa! Espraia-se no nosso Tejo, mira o cais das colunas, dá mais cor aos cacilheiros, fita-nos da outra margem... Nós, que somos companheiros

Desejo

do amanhecer, em viagem, apressados e sem paragem ficamos apenas a olhar, por breves segundos apenas e se a lente o captar, ao passarmos numa margem, podemos então contemplar para sempre, esta paisagem.

Sinto a tua presença como fogo no meu corpo, és o fogo ardente que me consome a carne. Levas-me à loucura sem saber que o fazes. Submerges no meu mundo, entras no meu íntimo sem pedir licença. Não quero que saias, que voltes atrás. Quero que sintas e apenas sintas o fervilhar do meu sangue,

Fátima Camilo

o vibrar do meu corpo, o desespero anunciado num olhar. Fogem-me as palavras nos socalcos de angústia. Remeto-me à obrigatoriedade do silêncio.

Noémia Pereira

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Esmigalhada.... Sinto-me esmigalhada. O porquê eu sei. A palavra não uso. Esse direito? Não conheci. Amor, confiança, liberdade. Tudo me foi negado. É teimosia, De acreditar

Desconhecida

Que a razão existe, Que algures, no tempo,

Entraste devagar, devagarinho, na minha vida

A luz virá.

És a minha sombra, a minha dor, a minha alma

Sofrer não se vê, não se ouve

Provocas a dor e o sofrimento

O que sou é sofrido,

Eu luto por mim e tento agarrar a alegria da vida

Sofrer é sentido.

Quem és tu afinal? Se não és vida? És a dor e a doença

Maria Cristina

A invisibilidade dum mistério sem fim Só eu te sinto e não te vejo “companheira” Mas a luta fez-me habituar à tua sombra, vida!

Teresa Soares

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Aqui estou eu Aqui estou eu... Neste quarto de alvas paredes rodeado de /outros iguais a mim. Aqui estou eu... A reviver carinhos maternais que há muito /não sentia. Aqui estou eu... A recordar brincadeiras de uma infância /que já esqueci.

A dor

Aqui estou eu... A relembrar amores de outrora e amizades /já deixadas.

Amarga como a noite sombria que antecede a frígida madrugada

Aqui estou eu...

dormes tu aziaga amante castrada

A viver lembranças de sonhos havidos e

entre os lençóis já tingidos.

/há tanto dissipados.

A hemorragia é basta e perversa

Aqui estou eu...

nesta minha chaga funda e aberta

A lembrar divindades procuradas e nunca

onde a terapia já não atua

/encontradas.

e o tempo só a flagela.

Aqui estou eu...

Queria banir o carcinoma maldito

Deitado nesta cama de um asilo à espera

à quimioterapia me sujeitava

/da morte.

ou o próprio coração operava se isso me permitisse deixar de sofrer.

Carlos Serejo

Só que o meu espírito não consente que o paladar da traição esmoreça e que a minha dor desapareça.

Agostinho Silva

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Retrato da Alma Às vezes parece que sou feita de um simples nada, talvez um borrão numa tela em tom baço de pastel, escorrendo na encruzilhada onde o escuro sabe a fel e a minha saudade por ti lembra a angustia do desconhecido. Outras vezes lembro a lua em noites frias, outras, nuvem negra num belo dia, pedaços de tudo quando posso ser e por vezes nada de tanto querer. Oh, meu Deus, o quão já fui livro de poeta e melodia de canção! Outras tantas uma borboleta que voa para a imensidão, quiçá, apenas, para te encontrar de novo e poder abraçar-te, ou simplesmente dizer-te mais uma vez o quanto te desejei de verdade!

Sandra Isabel

Anunciação Nos teus olhos, refletido vejo-me. Na tua quente boca, provo-me. Dentro de ti, em êxtase, perpetuo-me. Ao teu lado, demorando-me, Fico.

Do bem que me dás, aproveitando-me. No sol dos dias aquecendo-me. Da finitude, a vida lembrando-me. Do teu lado, um dia, lamentando-me, Partirei.

José Nunes da Silva 17


PROSA HISTÓRIA RECONTADA

HISTÓRIA INICIAL: «O narrador encontra num autocarro um rapaz bonito, bem vestido, de chapéu na cabeça. O rapaz troca algumas palavras com outro passageiro e senta-se num lugar do autocarro. Mais tarde, o narrador volta a encontrar o mesmo rapaz em conversa amena com um amigo, que lhe aconselha a fechar a casa do botão superior do casaco.»

(Adaptado de Raymond Queneau, Exercices de style)

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O Distinto passageiro Olhei para o relógio e verifiquei que, se não apressasse o passo, também iria perder o autocarro das 13H. Saí mais tarde do que o previsto! Distraí-me com as horas e, logo hoje, que combinei almoçar com a minha prima. Cheguei rapidamente à paragem e, felizmente, o autocarro já lá vinha. Agora é um pulinho, pensei eu assim que entrei, não vou demorar mais do que 15 minutos a chegar à EXPO. Foi quando levantei os olhos que o vi. Era um rapaz bonito e bem vestido e o chapéu, que tinha na cabeça, dava-lhe um ar distinto que o fazia sobressair no meio dos passageiros. Percebi que perguntou as horas a um senhor de idade para confirmar se o seu relógio estaria certo e depois, afastando-se, sentou-se ao pé de outro rapaz, certamente um amigo. Ao sair reparei que os dois rapazes também se apearam e seguiram na mesma direcção, mas rapidamente perdi-os de vista. Depois do almoço e já de regresso, passei pelos dois rapazes que conversavam à porta de um dos restaurantes e ainda pude ouvir o amigo a aconselhá-lo a abotoar completamente o casaco, evitando assim que se visse a nódoa que lhe caíra na gravata. Sorrio, pensando no meu marido que, quantas e quantas vezes, chega a casa condecorado. Ana Paula Teixeira

Encruzilhada Lisboa, 17 de novembro de 1992, inverno, as pessoas em passos apressados esqueciam-se aos poucos da sua própria identidade: uma insólita fotografia de uma qualquer curta-metragem dos primeiros tempos do cinema retratava a chuva enraivecida a esfrangalhar o tejadilho de um Volvo. Tinha apanhado um autocarro e estava ansioso, lembro-me da eternidade do trajeto urbano que acentuava o embaciamento denso nas janelas velando o exterior caótico. Uma respiração ofegante de um rapaz impecavelmente bem vestido chamou-me à atenção, naquele autocarro pálido completamente preenchido de olhares indiscretos que, como eu, monitorizaram cada movimento do seu braço enquanto tirava o chapéu encharcado da cabeça: um elegante chapéu Homburg que igualava na perfeição o fato em tons cinza que vestia. Dá-me licença? Peço desculpa, preciso de espaço para tirar o casaco. – disse o rapaz a uma passageira já de idade generosa que lhe ofereceu o lugar dizendo: Sente-se aqui meu filho, eu vou sair na próxima paragem... a normalidade caótica das pessoas saindo a reclamar da chuva enraivecida, lembrou-me do quanto eu estaria atrasado. O relógio marcava as dezassete horas quando entrei no Centro de Arte Moderna, já com o Adalberto, coordenador do projeto, a chamar-me, quando vejo o rapaz do autocarro com um senhor mais velho a dizer-lhe: Aperta também o botão superior do casaco, esta entrevista é muito importante para ti… Artur Patrício

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O botão De manhã muito cedo, quando a cidade ainda está a acordar, ao percorrer de autocarro o trajecto que me leva até ao trabalho, tenho tempo e espaço para observar tudo o que me rodeia. Já conheço o caminho de cor, todas as paragens e cada curva, tal como alguns dos passageiros habituais, bem como os locais onde sobem e onde descem. Foi por isso que reparei naquele rapaz, jovem, atlético e de feições muito agradáveis. Simpático, era frequente trocar palavras amigáveis, embora casuais, com outros passageiros, quando se sentava ao lado deles. Vestia-se com elegância e usava acessórios curiosos a completar o figurino: para além do cachecol que não usava a agasalhar-se, mas simplesmente pendurado nos ombros, trazia na cabeça um invulgar chapéu de abas. E, o que me arrepiava no inverno, trazia sempre aberto o botão superior do casaco. Um dia deixou de aparecer no transporte à hora costumeira. Ao fim de uma semana sem voltar a vê-lo, desejei que nada de mal lhe tivesse acontecido e que apenas se tratasse de uma alteração de rotinas. Até que hoje, quando tomava um café, voltei a encontrá-lo, com o seu inconfundível chapéu, a conversar com um amigo. Estava muito frio e, quando a dupla se preparou para sair, não consegui evitar sorrir, ao ouvir o amigo dizer ao rapaz que devia, pelo menos, apertar o botão do casaco. Ana Maria Gonçalves

O fato azul-marinho Depois de mais uma viagem de comboio até Lisboa, entrei a cambalear no autocarro que me levou ao quartel. De repente, surgiu um rapaz aprumado, envergando um fato azul-marinho e uma branca camisa de linho, tendo sobre o cabelo loiro e comprido, um chapéu de galã, um andar de conquistador e de quem vinha para triunfar. O rapaz parou dois lugares à frente do meu e segredou ao ouvido de um militar, um cadete da Armada, Destroças-me o coração, mas foi sentar-se alguns lugares mais à frente. Estranho procedimento encheu-me de curiosidade e fez-me arregalar os olhos! Porém, nada de especial vi, além de uns efémeros olhares. Alguns anos mais tarde dirigi-me de novo a Lisboa para defender a minha tese. Aí encontrei um amigo que há muito tempo não via e que naquele momento ajustava alguma coisa na camisa do colega, para o qual nem olhei, tal era a minha ansiedade. No final do evento, o meu amigo convidou-me para o seu casamento que se realizaria logo a seguir, no cartório ali ao lado. Apanhado de surpresa, não tive como fugir! Porém, o meu pasmo foi maior quando, ao lado do meu amigo, vi a noiva a surgir. Não queria acreditar que ela pudesse ser o rapaz do fato azul-marinho. Agostinho Silva

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Um dia diferente Enquanto aguardava o autocarro compôs a echarpe. Naquele março as manhãs ainda se faziam sentir frescas. Entrou, sentou-se e, por verificar que o passageiro a seu lado lia um dos seus livros preferidos, acabou por trocar com ele algumas palavras; um diálogo breve pois aproximava-se a estação de destino. Ao sair, caminhou o mais seguramente possível, de forma a transmitir um ar decidido, responsável, promissor. Dirigiu-se ao funcionário do acolhimento e soube que a entrevista seria no terceiro andar. No espelho do elevador olhou-se e gostou da figura que vislumbrou: alto, bem vestido, chapéu cinza escuro na cabeça, sapatos impecavelmente engraxados. Ser executivo numa multinacional de elevada reputação no mercado imobiliário iria trazer-lhe outra estabilidade, permitindo-lhe antever o futuro de forma mais risonha. Ao sair do elevador identificou o passageiro com quem tinha falado. Reconheceu, igualmente, Lucas, um amigo de longa data. Ambos estabeleciam conversa amena. Ao cumprimentá-lo, João, viria a saber o seu nome mais tarde, sugeriu-lhe que abotoasse o botão superior do casaco. Ficaria com um ar mais distinto. Eugénia Baltazar

Um gajo mal-arranjado O autocarro seguia a boa velocidade. Apesar de sinuosa, a estrada permitia celeridade, tanto mais que a ligeira inclinação da subida dava bastante segurança à viagem. Uma manhã de domingo também não era um dia com muito trânsito… Numa zona com menos curvas, surge uma paragem de autocarro onde está, certamente a aguardar a sua chegada, um homem, vestindo um fato escuro e envergando um chapéu. A distância a reduzir-se revela as feições de um bonito jovem com bom prumo, uma imagem nada vulgar nos rostos das gentes daquelas serranias, endurecidos pela dureza do clima e do relevo. O jovem entrou e trocou umas palavras amáveis e languidas com outro passageiro do autocarro, por sinal um padre que viajava trajado a rigor, procurando de seguida um lugar mais afastado e reservado. Fim da linha. O autocarro pára e todos os passageiros descem. De repente, um outro jovem de imagem mais rude mas de gestos amigáveis acerca-se do jovem de fato escuro e diz-lhe: “Já não era sem tempo! Vê lá se apertas o botão do casaco. Não deixo a minha irmã casar-se com um gajo mal-arranjado”. O padre sorriu. Horácio Santos

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Segundas-feiras cinzentas Era mais uma segunda-feira nas segundas-feiras cinzentas da minha vida, daquelas em que acordamos e saímos para a rua, envoltos numa névoa de dormência, própria de quem não gosta do que faz, ou faz porque tem de ser. Esperei pelo autocarro ao frio e, por fim, escolhi um lugar à janela. Preparei-me para ver o mundo passar e foi então que o vi. Entrou, duas paragens depois da minha e, com aquele chapéu, parecia saído de um filme antigo ou se calhar de um sonho, mas, decididamente, não era deste meu mundo. Parecia desenquadrado, dentro de um autocarro abafado, num fato bem cortado. “Aposto que cheiras bem” Pensei. Observei-o, enquanto pedia a alguém licença para passar e escolheu um lugar vago, também perto da janela… Voltei a vê-lo, exactamente dois dias, oito horas e trinta e dois minutos depois, regressava eu do trabalho no mesmo autocarro abafado, mas que agora parecia o melhor lugar do mundo para se estar. Desta vez não estava só, conversava com outro homem mais velho que apontava para a roupa e lhe dizia que abotoasse o botão de cima do casaco…Quem és tu que agora passaste a atormentar os meus dias e vieste roubar a paz que eu nem sequer sabia que tinha? Sónia Aires Lima

O reflexo Narciso há muito que tinha uma felicidade incompleta e nem o seu espelho lhe conseguia explicar porquê! Devolvia-lhe apenas uma imagem perfeita, como sempre, desde que tinha consciência de si próprio. Entrou, absorto, no autocarro e encontrou um rapaz bonito, bem vestido, de chapéu na cabeça. O rapaz trocou algumas palavras com outro passageiro e sentou-se num lugar do autocarro, com um sorriso no rosto. Narciso perguntou-se se não teria sido o chapéu a provocar esta emoção… Desceram os dois, na paragem seguinte e, quando Narciso saiu para almoçar, passou perto deste rapaz que estava em conversa amena com um amigo. Este aconselhava-o a fechar a casa superior do botão do casaco. Naquele preciso instante, entendeu que a sua felicidade não podia estar apenas no reflexo perfeito, imaculado, do espelho falante que lhe alimentava o ego ao ponto de o manter fechado sobre si mesmo. Foi para casa, partiu o espelho, comprou um chapéu e deixou que os outros se refletissem nele. Florbela Ferreira

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Um rapaz misterioso Era uma manhã como as outras. Ou, pelo menos, pensava eu que era. Todas as manhãs era obrigada a apanhar o mesmo autocarro, à mesma hora, no mesmo local. Já conhecia a cara de todos os outros passageiros. Mas algo de diferente aconteceu naquela manhã. Um rapaz bonito, bem vestido e de chapéu na cabeça, entrou duas paragens depois da minha. Não consegui deixar de olhar para ele. Nunca o vira antes. Tinha olhos verdes e cabelo preto e devia ter mais ou menos a minha idade. A maneira como estava vestido tornava-o bastante mais velho. Talvez fora essa a sua intenção. Ele trocou algumas palavras com uma senhora e sentou-se ao seu lado, sem retirar aquele chapéu da cabeça. Parecia uma personagem de um filme antigo, tão fora de contexto naquele autocarro. Saiu ao mesmo tempo que eu mas, no meio da multidão, perdi-o de vista. Senti-me um pouco triste, sem perceber porquê. Mas voltei a descortinar o chapéu uns metros mais à frente. Ele parara a conversar com um amigo e sorria. Tinha um sorriso deslumbrante. Ao passar por eles, ouvi o amigo a aconselhá-lo a fechar a casa do botão superior do casaco, pois, assim, ficava com um ar ainda mais distinto. Sorri e pensei para mim: “Mas quem será este rapaz?” Paula Cunha

O senhor de preto Em Julho de 1995, no pleno auge do Verão, viajava eu no cacilheiro que faz o trajecto Cais-do-Sodré/ Cacilhas, sentada num banco, bem perto da porta de saída, já que gosto de estar sempre preparada para ser uma das primeiras pessoas a colocar os pés no cais mal o barco atraca. Chamem-lhe pressa, chamam-lhe medo ou ansiedade. Não gosto de me sentir fora de chão firme durante muito tempo. A dada altura, aproximou-se de mim um senhor muito idoso, magríssimo, talvez na casa dos 100 ou mais anos, que estava todo vestido de preto e trazia nos braços um objecto comprido e pontiagudo. Aproximou-se da passageira que ia sentada ao meu lado, segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido e foi sentar-se no banco da frente virado para nós. A minha vizinha passageira levantou-se a gritar e, dirigindo-se à porta do cacilheiro, abriu-a e atirou-se para a água. Ontem, no apeadeiro do Metropolitano de Lisboa, reencontrei o senhor idoso, agora mais velho, mais acabado (ainda vivo!?) a segredar ao ouvido de uma criança que estava ao colo da sua mãe. A criança chorou. A mãe mandou o velhote embora. Aguardei que o metro se aproximasse, e, logo de seguida, empurrei o senhor para a linha… Lúcia Lebre

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Nunca se Perde uma Paixão Quis namorar com a vida de outrora, ir de encontro ao passado que me fez tão feliz há 27 anos atrás…. Era lá que queria voltar a sentir o bálsamo da sensualidade, as fragrâncias da natureza, (re)lembrar a magia das palavras, das noites quentes de verão de céu estrelado, onde velávamos pelas estrelas cadentes para pedincharmos os nossos desejos … A existência daquele amor tão único, simples e sincero … No despertar das minhas lembranças, a minha visão recai sobre o passageiro da cadeira do autocarro paralela à minha, um jovem casualmente vestido, envergando um chapéu, sinal dos tempos modernos, que trauteava algumas palavras com o acompanhante, trouxe-me à memória o semblante daquela paixão de outro tempo …. Sorri e sorri-lhe quando, por coincidência ou não, nos apeámos naquele lugar verdejante de uma aldeia da Beira Interior… No retorno à realidade, ao aguardar pela chegada do autocarro, senti no ar aquele aroma do desabrochar da natureza, como se o Sol tivesse nascido resplandecente… Extraordinariamente, era ele, o Mário que dizia ao filho, de feição terna, o jovem do autocarro, imaculadamente vestido naquele traje da marinha. Oh Miguel, talvez mais um pouco de exercício físico, para que o botão da tua casaca não desaperte! Todo o amor é, de certo modo, o primeiro … não há nada como nos perdermos em alguém, para nos encontrarmos a nós. Cristina Miguel

A Cartola Não é todos os dias que se vê um dandy, que parece ter saltado das páginas de Eça de Queiroz, entrar no 202 com destino à Avenida dos Aliados e educadamente pedir licença para se sentar à senhora de aspecto cansado atirada para cima do banco de quatro lugares. Mas ali estava ele, bem vestido e aprumado, casaca comprida, relógio de bolso, bigode de pontas reviradas e cartola. Foi a cartola que me chamou a atenção: alta, negra e luzidia na sua elegância acetinada. Senti uma certa nostalgia pelo tempo em que os homens se aprimoravam no vestir. Depois, lembrei-me dos metrossexuais e passou-me. Mas continuei de olhos fixos na cartola, à espera que de lá saltasse um coelho. Horas depois, voltei a vê-lo na Rua das Flores, junto à porta vermelha de um edifício coberto de azulejos. O meu lugar na esplanada dava-me uma linha de visão perfeita. Num gesto repleto de intimidade, enquanto trocavam palavras que lhes despertavam sorrisos, um outro rapaz, igualmente bonito, igualmente dandy, igualmente de cartola, abotoava o primeiro botão da casaca do que antes vira no autocarro. Um sorriso subiu-me aos lábios perante a cena encantadora, perfeita para compor o ramalhete de um dia surpreendente. Marta Gama

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O Rapaz do Autocarro Estava uma manhã fria de novembro, mas, decidida a terminar o trabalho de fotografia, nem o frio me impediu de sair cedo de casa. Vesti o meu casaco preferido, forrado a pêlo sintético, enrolei um cachecol no pescoço, peguei nas luvas e na máquina fotográfica e saí apressadamente para tentar apanhar o autocarro que me levaria ao centro da cidade. Cheguei mesmo na hora e sorri satisfeita, pois adoro o meu trabalho e tinha a cabeça cheia de ideias para colocar em prática. Sentei-me no primeiro lugar que encontrei e quando olho para a frente vejo entrar um rapaz que me chama a atenção: tem um rosto bonito, está muito bem vestido e usa um chapéu na cabeça. Porém, são os seus olhos que me atraem, são grandes e expressivos, de um castanho mel luminoso mas muito tristes. Com uma voz um pouco rouca e hesitante, pergunta à pessoa que está sentada na minha frente se pode ocupar o lugar livre ao seu lado e, agradecendo, senta-se e fixa o olhar no exterior. Duas horas depois, e satisfeita com o meu trabalho, decido sentar-me numa esplanada para beber um café. Com curiosidade, olho em volta para os outros clientes, quando vejo o rapaz do autocarro que conversa com outro um pouco mais velho e este lhe sugere que feche a casa do botão superior do casaco para evitar que fique ainda mais doente. Dionísia Ribeiro

À prova de chuva Quando chove assim, ensurdecedoramente, e as pingas de água, adriças líquidas, ferem guarda-chuvas e os corpos dos mais incautos e desafortunados, as pessoas tornam-se mais carrancudas, azedas, como se a chuva violenta fosse a causa de todas as suas amarguras. Destoa dos semblantes cerrados naquela carreira o único passageiro que entrou no Rossio. Moreno, bonito, nos seus vintes, de barba farta e cuidada, fato de bombazine azul-marinho, camisa e chapéu de feltro cinzentos, tamborila com os dedos num ritmo que se supõe coincidente com o da música entregue pelos headphones discretos. Traz uma expressão de confiança, optimismo, talvez até felicidade. A chuva não lhe tocou, ainda que lhe tenha ensopado o casaco. Aproximando-se da traseira do autocarro, sorri para um velhote que cumprimenta ao sentar-se: Vizinho, como vai isso? Hoje vamos os dois para o mesmo sítio. O velho só assentiu. A lembrança do sorriso estival fez-me companhia umas quantas ocasiões nessa semana, em cada manhã chuvosa, até que ele se volta a materializar, radiante, ali a poucos metros de mim. Encurto o passo para melhor escutar a conversa. Um rapaz de jeans, ruivo e sardento, graceja com o jovem do autocarro, enquanto lhe sacode o casaco de forma cúmplice: Então, não tinhas uma gravata? Ao menos abotoa o casaco até acima, vá… Daqui a nada vais ser Doutor! Andreia Gomes Ferreira

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Uma rotina diferente Não é habitual apanhar um autocarro para ir trabalhar. Nunca o faço! Mas naquele dia, e porque conhecia bem o sitio para onde me dirigia, levar carro estava fora de questão. Assim, distraidamente sentada a apreciar a paisagem que se me deparava tão revelador e tão diferente do habitual, algo desviou a minha atenção. Um burburinho vindo de uma das portas do autocarro fez com que o meu olhar se “colasse” na figura de um rapaz muito bem-parecido e impecavelmente vestido e onde, um chapéu com classe, completava a sua indumentária, como se de um modelo se tratasse. O jovem, após ter trocado umas parcas palavras com outro passageiro, procurou um dos muitos lugares vagos no autocarro e sentou-se, sem mais nada dizer. No final da reunião, que me ocupou grande parte do dia, dirigi-me cansada a uma praça de táxis, apinhada de gente e, de novo, deparei-me com o mesmo rapaz que, naquela manhã, me tinha prendido o olhar. Conversava com um amigo que, a dada altura, o aconselhou a abotoar o botão superior do seu casaco. Já no táxi pensei porque motivo aquele “enigmático” rapaz continuava presente na minha mente cansada e ciosa de descanso. Anabela Lobão

Memórias de uma filha aos seus filhos Mantínhamos sempre o mesmo horário. Nem um minuto atrasadas, nunca. Uma precisão nas horas e no espaço que ocupávamos, que podíamos ocupar. Não falávamos com ninguém. De facto, não conhecíamos ninguém. Sempre só nós duas, a minha mãe e eu. Entrámos no autocarro, sempre o mesmo, nós mais pontuais do que ele. Sentei-me junto à janela. Queria chover. Estava frio. Via o Outono pela janela. A minha mãe falou e voltei-me, mas não falava comigo. Respondia qualquer coisa timidamente a um rapaz bonito, bem vestido, de chapéu na cabeça. O rubor invadiu-lhe as faces. Nunca a tinha visto assim. Foi a primeira vez que o vi. Ela também. Ele falou com outro passageiro e sentou-se atrás de nós. Não o vi durante alguns dias, mas reconheci-o imediatamente. Estávamos no auditório da escola. O Director apresentou-o como o novo Professor de Português. Ele estava em conversa amena com o Professor de Matemática que o aconselhou, pareceu-me, a fechar a casa do botão superior do casaco. Tomou a palavra e disse umas palavras voltadas para um futuro esperançoso, prometeu dedicação. Naquele dia soube-lhe o nome e o que fazia, mas não sabia, ainda, as voltas misteriosas que a vida dá. Chamemos-lhe destino. Foi nesse dia que conheci aquele que viria a ser o meu pai, o pai que até ali não tinha. E que mudou toda a minha vida. Vera António

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Adeus, avô O jovem rapaz que entrou no autocarro escondia a sua beleza por baixo de uma cartola, por certo herdada de algum antepassado e por trás de uma tristeza que se percebia a léguas. Cumprimentou uma das almas que levantou o olhar para ele e sentou-se no lugar que a precedia, permanecendo completamente imóvel até à paragem onde o destino o levava. Observei-o longamente e dei por mim a perguntar-me o que levaria uma criatura em tais preparos a exalar tremendo desgosto, num quase carpir. Em tantos anos, nunca o vira neste trajeto da carreira. Saí na paragem seguinte, a da Repartição onde a gente tem que ir uma vez por ano provar que está viva e deixar uma boa parte de suor transformado em dinheiro. E ainda nos castigam com a longa espera nas filas e os papéis que atestam o ato. Há tristezas viscosas que se apegam - pensava no jovem do autocarro. Um jovem não foi feito para andar triste, para isso já bastam os velhos. Por fim, já tardinha, fui à minha vida, metendo pela rua que dá para a sé. A meio, espante-se, revejo o jovem da manhã em conversa com um cavalheiro, à porta da capela. Reduzi o passo ao passar e ainda consegui escutá-lo em surdina: - Dá cá a cartola e aperta o botão de cima. Num funeral usam-se maneiras. Aposto que a cartola era do falecido. Victor Moreira

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PERSONAGEM Xavier Estonteado, seguia pelo passadiço quando esbarrei num velho conhecido. Acabara de reencontrar Xavier, rapazola de má fama lá da terra. Há mais de dois anos que não o via. Estava na mesma, um magrela de primeira com protuberante nariz. Vestia de preto, aquela que era a sua imagem de marca, como costumava falar. Que fazes cá na cidade? – Questionei. Tenho que me fazer à vida. – Devolveu. Xavier era inteligente. Pena aquele seu jeito de malandro sempre a ludibriar o próximo. Era por isso que se lhe conheciam poucos amigos. Um autêntico chico-esperto! Arranjaste emprego? – Quis saber, espicaçado pela curiosidade. Achas! Agora sou empresário – retorquiu. Vendo traquitanas – acrescentou. Puxou da carteira e com os seus compridos dedos retirou um cartão de visita para me entregar, onde podia ler-se: Xavier Silva – Compra e vende velharias. As pessoas mudam, pensei. Também aquele rapaz de origens humildes e pouca instrução pode mudar. Nuno Gomes

Joaquim Rosa Naquele entardecer dourado de Verão resolvemos visitar a quinta, depois do convite feito no café por aquele velhote de voz rouca. Então, de curiosidade aguçada, apressámos o passo pela estrada poeirenta. E eis que ali estava ele. Encostado ao seu cajado, de chapéu na cabeça, camisa larga aos quadrados e cigarro na boca, observava as ovelhas com o ar mais tranquilo do mundo. Moveu-se vagarosamente na nossa direcção e cumprimentou primeiramente o meu pai. Reparei nas suas mãos gastas, queimadas pelo sol e unhas cor de carvão. O seu olhar brilhante e azul contrastava com o rosto enrugado. Sorriu para mim e meus irmãos e só aí reparei que não tinha um único dente! Visitámos a quinta, os animais, corremos e brincámos, sempre sob o olhar atento do Sr. Joaquim Rosa, que, enrolando mais um cigarro, contava histórias a meu pai sobre a felicidade de viver no campo. Eva Gonçalves

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A velhinha Todos os dias, na minha volta do trabalho para casa, passo por um caminho que atravessa uma pequena floresta. Caminho lentamente e aprecio a natureza cheia de luz, saborosas amoras e morangos silvestres chamam a minha atenção. Passados quinze minutos, passo por um caminho que tem, tanto de um lado como de outro, plátanos tão altos que parecem guardiões gigantes de algum palácio. Na primeira curva, espreitam uns tijolos, de um vermelho apagado, por entre as folhas do último plátano. Depois aparece uma casinha com telhado vermelho cheio de musgo, pequenas janelas e um portão vermelho, que parece ter sido pintado pelo menos há um século atras. De facto, a casa parece ser muito antiga, até me admiro, com tantas fendas, como se aguenta de pé. Sentada num banco, por baixo do plátano, está uma figura curvada, de cabeça baixa, a olhar para nada, penso eu. Noto a cara enrugada, o olhar triste e uma boca pequena, que parece cantar sempre baixinho. No colo dela está um gatinho preto e ao lado dos pés está o fiel companheiro, um cão pequeno. Cada vez que passava, ela estava lá, sempre com a mesma postura. Um dia, parei e meti conversa com ela, fiquei a saber que vivia sozinha depois de ter perdido o marido e o filho e que estava sentada no banco para ver as pessoas a passar. Ao que me parece, eu sou uma das poucas pessoas que passam por ali. Fiquei comovida. Maria Buruian

O cadáver Entrei na sala. Nessa altura pude olhar mais de perto o cadáver. A boca era feita de uns lábios muito finos, impecavelmente desenhados, como se tivessem sido feitos pelas mãos de um brilhante escultor. Naquela obra de arte só destoava um pequeno defeito, quase imperceptível a um olho menos treinado; uma ligeira cicatriz no lábio superior. O nariz, aquilino, de recorte levemente quebrado, lembrava o semblante de um soldado trácio, sujeito às mais duras intempéries e lides de guerra. Mas o pormenor que mais me impressionou foi a sua estranha palidez. Não era a palidez natural da morte. Via-se nele uma tez de aspecto marmóreo, de um branco impenetrável, que se diluía com a luz toda que entrava pela janela. Era como se a sua cor e a luz fossem apenas e só uma cor e também ele pudesse estar em todo o lado. Imaginei-o naquele instante na minha casa, vagueando errante na solidão espartana do meu quarto, aparecendo-se em luz em todo o lado. Porque também ele era luz. Ao cadáver não lhe restava nada mais que permanecer ali, imóvel, à espera da eternidade. A mim, pelo contrário, ainda me faltava certificar o óbito de mais três desgraçados. Coisas de trabalho. E eu mortinho por chegar a casa. César Ribeiro

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A Joaninha Carlota Gosta de andar sempre bem vestida, a Carlota. A sua capa negra brilhante às pintas vermelhas e os seus sapatos castanhos, de veludo, não passam despercebidos. Vive num cogumelo e todos os dias de manhã sai de casa. Todos a vêm, sempre aperaltada, dirigir-se à horta do tio Joaquim e por lá anda de alface em alface a caçar os minúsculos vermes que a deliciam e lhe enchem a barriguinha. Quando volta, já satisfeita, senta-se no telhado da sua casa e, curiosa como é, observa tudo o que se passa à sua volta: as formigas que vivem atarefadas, as abelhas que fazem o doce mel, os passarinhos que cantam tão bem. Terão eles aprendido música? Podiam até compor uma sinfonia e os sons dos seus bicos ecoariam como uma grande e harmoniosa orquestra. Que ideia brilhante! Junta os animais do bosque, os passarinhos, os insectos que por ali vivem e em pouco tempo a grande sinfonia da amizade e da partilha se faz ouvir até ao horizonte. Todos os animais do bosque a admiram. Que grande professora! Maria de Fátima Moreira

Afonso Afonso vivia sozinho na grande casa de pedra que herdara após o falecimento da mãe, senhora nascida numa família muito antiga e estimada naquela região, da qual ele era o último descendente. Afonso também herdara da mãe um anel com brasão, que usava largo no dedo, e o daltonismo, doença que afectava alguns dos homens da família materna. Muito magro, com cabelo comprido ensebado, Afonso possuía um aspecto pouco agradável à vista, agravado pelo comprido nariz torto, consequência de um acidente. Na aldeia onde se situava a antiga casa senhorial mal estimada, Afonso não despertava simpatias. Obcecado por nobrezas e histórias antigas, comportava-se como se tivesse herdado também um título de morgado, falando a todos de forma altaneira e condescendente, como se de seres inferiores se tratassem. Alguns estavam certos de que a perda de bens familiares o perturbara e de que viveria com dificuldades, embora rejeitasse orgulhosamente quaisquer ofertas. Outros consideravam que ali só existia avareza, que o impedia até de se cuidar convenientemente, ou seria maldade pura aquilo que provocava uma existência tão solitária. Afonso pouco se importava com o que diziam de si. Muito simplesmente, ninguém estava à altura da sua inteligência. Ana Maria Gonçalves

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Sara Toca o despertador. É muito cedo. Sara acorda, olha para o relógio e decide ficar mais um minuto na cama. Levanta-se depois com muita calma, prepara o seu pequeno-almoço e a lancheira do almoço. Mais uma ida ao quarto de banho. Olha para o espelho, avista uns grandes olhos castanhos; cabelo castanho-claro, pelo ombro e ondulado. Não é muito alta, o seu namorado mede mais 25 centímetros do que ela. É muito magrinha, o seu corpo franzino esconde a idade adulta, aparenta ser mais nova, uma adolescente. Começa a maquilhar-se, só um pouco de base para cobrir as insignificantes imperfeições do rosto. Como sempre, não sabe o que vestir, tem muita roupa, é muito vaidosa. Foi sempre assim, desde pequenina que aprecia o mundo da moda. Escolhe um vestido azul-escuro com pequenas riscas brancas, em godé, pelo joelho. Já pronta, com sua lancheira do almoço, a máquina fotográfica a tira colo e a mala ao ombro, sai de casa. Tem sempre boleia do seu namorado. Prontos, seguem para mais um dia de estágio académico na redação do jornal online da faculdade das Ciências da Comunicação. O sonho da Sara é ser uma grande e prestigiada fotojornalista no mundo da cultura e da moda. Fernanda Ferreira

Patrícia Carteira ao ombro ou a tiracolo, enquanto o cabelo flutuava rebelde e desgovernado, a Patrícia galgava a calçada bem apressada. A paragem estava ali, teria de alcançá-la antes do autocarro chegar. A manhã estava murcha e a iniciar, pelo que teria de se alforriar, para que o dia fosse mais rentável do que o anterior! Mau, e, ainda assim, melhor do que o seu antecessor. Entrou no autocarro ainda a ofegar, onde todos pasmaram de estupefação, não havendo ninguém que a conseguisse ignorar. Olhos enormes e esverdeados, o cabelo era negro e despenteado, o que lhe conferia um ar de felino ainda não domado. Os lábios grossos, muito pintados, quase atropelavam a bela face levianamente rosada, mas bastante cuidada. A casaca preta de cabedal escondia quase por completo o corpete branco bem decotado, enquanto a saia exageradamente curta a denunciava e deixava a descoberto um par de membros bem torneados. Alguns passageiros apressadamente demoveram o olhar, enquanto outros, incrédulos, não conseguiam suster as emoções. O senhor Alberto ergueu-se de súbito, para lhe ceder o lugar, ele que, pela primeira vez, fazia aquele trajeto, e com embaraço ainda a questionou: - Será que a menina é mesmo o que eu estou a pensar? - É tão bonita, é uma pena … Agostinho Silva

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RESPOSTA A CAMILO «Entremos no coração de Calisto Elói. Cuidava o leitor que não tínhamos que entender com aquela entranha do homem? Estou que a julgaram inviolável às suspeitas da história em acto de tanto alcance na biografia deste personagem!» (Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo, Cap. X, p. 57)

Meu Caro Camilo, Wheathampstead, 12 de Abril de 2015 Permita-me que o trate assim. Desde que li o seu relato das aventuras de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, que me sinto mais próxima de si; tomei-lhe afeição! Quer, portanto, falar do coração de Calisto…Parece-me coisa de interesse! O morgado era um homem notável. Era inteligente. Tinha uma vida que lhe permitia fazer e dizer aquilo que se lhe aprazia e fazia-o de uma forma lúcida e consciente. Realizava os seus desejos. Os desejos são coisa visceral, não acha? Penso que sejam uma vontade incontrolável de obedecer aos anseios de um, qualquer, órgão. E muitos foram os desejos de Calisto Elói! Uns aprovados por vossa excelência, outros não. Peço-lhe que não julgue tão severamente o nosso Calisto. Este fez o que lhe deu nas ganas. Era sortudo. Possivelmente feliz. Parece-lhe mal? Despeço-me, com o desejo de o voltar a encontrar em breve. Apetece-me ler mais histórias suas. Com os melhores cumprimentos, A fã de Calisto Elói, Maria Longle

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Lusitaníssimo coração Meu caro Camilo, que Calisto era aquele? Na primeira fase da sua vida, era absolutista, defensor de rígida moral católica, mas depois converteu-se ao

liberalismo. Casou com sua prima Teodora não por amor, mas para, unidos os morgadios seu e dela, se

tornarem na família mais rica e próspera da aldeia. Para Teodora “tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo”. Naturalmente, aquele Calisto, era um homem ingénuo, puro e sincero, despertando assim, quando li a sua obra, uma certa simpatia. Por causa do amor mudou: mudou a aparência física, virou-se para o futuro, aberto à modernização, à literatura moderna. Aquele Calisto assumiu: “Quero-me português…o meu coração é lusitaníssimo”. Não seremos também todos assim, Camilo? Abraço do, Carlos Azevedo de Meneses Márcia Neto

Na defesa de Calisto A hora teria mesmo que chegar. Sondar as mais profundas entranhas de Calisto Elói era o fim inevitável. Aliás, será mais um princípio do que um fim, ou não se tivesse Calisto Elói transfigurado quando descobriu, precisamente, que tinha nas entranhas um órgão pulsante e capaz de tomar vida própria. Então, não foi com a visão de uma mulher sem bigode que Calisto descobriu que tinha coração? Dizem-me que foi, antes, a vida de Lisboa. Então e Lisboa não apaixona, pergunto? Quem, ainda mais com posses e posições, resiste aos encantos de Lisboa? É certo que não haverá muitas fazendas nem se ouvirão muitos cacarejos ou mugidos, mas há outras colinas que rapidamente fazem disparar o coração. Quem quer saber de bucolismos quando se abrem as portas do progresso e do amor? E o comboio que chegava de Paris? Não parava em Caçarelhos, mas parava em Lisboa e abria as suas portas para um mundo novo. E eis que das entranhas românticas, ante tão fortes motivos, surge uma alma pícara que, passados já os quarenta, há de voltar aos vinte. E não terá tudo isto transbordado do coração de Calisto Elói quando um novo mundo lhe desabou aos pés? Horácio Santos

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Resposta a Camilo Caro Camilo, entrar no coração de Calisto Elói não é tarefa difícil. Ou julgava que seria? Calisto era homem de valores tradicionais e leitor ferranho, que se casou por interesse, por não conhecer verdadeiramente o amor. Parte para Lisboa onde tudo muda, onde se deixa corromper pelo luxo, pela vida boémia, mudando os seus valores. Não existem dúvidas que o coração de Calisto mudou definitivamente quando ele se apaixonou. Não é o normal? O amor faz-nos crescer, faz-nos questionar, faz-nos mudar - para o bem ou para o mal. Foi o que se passou consigo, caro Camilo? Ao ler Calisto, sinto que o estou a descobrir a si. Seria um dos seus objetivos? Desviar a atenção de si através do Calisto, mas sem o fazer na totalidade? Será que usou Calisto para nos demonstrar como é fácil, para o ser humano, deixar-se influenciar e cair? Cair na modernice, nos luxos, na “boa vida” e esquecer os valores em que cresceu e se tornou homem? Acredita seriamente que Calisto era um anjo? Ele era apenas um homem, e como tal, influenciável pela vida à sua volta, pelo desgosto, pelos devaneios do seu coração. Paula Cunha

Carta a Camilo Castelo Branco Lisboa, 22 de Março de 2015 Exmo. Sr.º Camilo Castelo branco: Venho por este meio defender a sua personagem Calisto Elói. Na realidade, o Sr. Calisto soube bem aproveitar a sua posição como deputado na Assembleia, nesta linda cidade de Lisboa, bem frequentada por selectos senhores… e senhoras. Como sabe, a República tem necessidade de mostrar ao povo o quanto precisa dele. Tentaram tudo para apagar os vestígios da Monarquia, Miguelistas ou Liberais, tanto faz, é tudo igual… O Sr. Camilo foi muito bom narrador na sua tão ilustre obra. AFINAL, APESAR DE ESTAR NOUTRO SÉCULO, A SUA ILUSTRE PERSONAGEM CABE PERFEITAMENTE NO NOSSO e ASSENTA QUE NEM UMA LUVA AOS NOSSOS DEPUTADOS ACTUAIS. O Povo faz tudo para eles serem felizes, ganharem bem… a esposa perfeita aceita a amante, a corrupção é coisa normal. Calistos Elói não faltam por aqui…O seu Calisto é um Anjo, Sr. Camilo. Dou-lhe os meus sinceros parabéns por ter construído uma personagem anjo/demónio à imagem do nosso ilustre País. Despeço-me com os meus sinceros cumprimentos. Entretanto, vamos reler mais umas obras para conseguir “engolir” os modernos calistos… Teresa Ribeiro Soares

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O Barão Escreve-vos estas parcas letras, teorias e dogmas, o escritor Manoel Coco, na muito dedicada missão de opinar sobre as peripécias e as desventuras de Calisto Elói, estimado Barão, personagem ilustre do nosso Camilo. Letras sábias, teorias laudatórias dos lusos, que deleitam o plebeu, imerso nestas dissertações, abrem veredas no breu de noites escuras e mágicas. Para ler no Paço, no Solar, num qualquer terraço ou ficar regalado à luz do candil, num belo serão. Verterão lágrimas de sã emoção, revendo as memórias dos nossos heróis combatendo outros povos, estórias genuínas de heróis e heroínas dilatando os territórios e a fé, desbravando fronteiras, moldando a língua, derrotando figuras trágicas. Existe aqui a defesa da honra da pátria, contra detratores infames que pululam nos folhetos a cavalo num barbante, libertando impropérios impregnados de inveja num caminho errante pleno de comiseração e sempre contra a nação. A embriaguez intelectual do burguês da capital não belisca a reputação de Calisto Elói, o Barão, cuja honra perpassa o seu gibão. Que trapaças, devassas… envoltas em mil fumaças, de poetastros da capital versando em rimas ínvias, bocas desbragadas, tresloucadas, arquitectadas e manipuladas em botequins por gente nada sadia! Manoel Coco Paulo Galego

Teresa Teresa não tinha medo de ninguém. Ela falava sobre o que lhe vinha à cabeça. Era conhecida pela sua sinceridade. Às vezes, doía ouvir certas respostas dela, mas, mesmo assim, as pessoas do Bairro da Liberdade da cidade da Luta não deixavam de admirá-la. Ela era uma excelente jornalista, além de ser uma ótima advogada; tinha dois diplomas universitários de dar inveja à qualquer um - por isso a eloquência e a erudição no falar. Teresa tinha entrado na faculdade de jornalismo aos 16 anos; aos 24, entrou na faculdade de direito. A verdade é que Teresa era muito inteligente. Ela trabalhava para o jornal Gazeta da Verdade. E foi em resposta a um mísero leitor que criticava com veemência uma personagem de nome Calisto Elói que Teresa mudou os rumos da história da Luta. Ela escreveu: «Não, não quero criar nem culpados nem mártires, nem Judas nem Cristos. Quero somente despir a alma de Calisto, que tal como tu, leitor, e tal como eu, também somos corrompidos pelo meio. Só que a diferença está apenas em nossas mãos: deixar-se corromper pelo mal, ou deixar-se corromper pelo bem.» A partir de então os moradores daquela pacata cidade compreenderam que a luta era necessária para se ter liberdade e que o livre-arbítrio é um direito de todos. Mas que a liberdade é o começo para a luta. Por isso, Liberdade, o bairro, e Luta, a cidade. Luciana Haftner

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Um companheiro Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda! Como poderia esquecer-me de tão complexa e intrigante personagem? Conheço-o bem… a ele e às suas entranhas emaranhadas, qual quebra-cabeças que nos desorientam nas suas múltiplas ligações. Desculpe... Nem me apresentei... António José de Sousa Gusmão e Pinho, antigo deputado do nosso parlamento. Aliás, foi aí que conheci Calisto Elói, ilustre fidalgo transmontano que insistentemente defendia os mais rígidos valores morais e que se expressava de forma de tal maneira cómica que todo o parlamento se tornava uma grande gargalhada aquando das suas intervenções. Gabo-lhe a valentia... Sobretudo porque com o tempo soubemos que tão austera personagem, sempre a defender e a apregoar os bons costumes, mais não era do que um devasso camuflado, corrompido pelos prazeres da carne e da vida luxuosa da nossa ilustre capital. Mas quem o pode condenar? Até porque corria à boca pequena nos corredores do parlamento a nova de que a esposa, ao saber da vida devassa de seu esposo, decidira pagar-lhe na mesma moeda. Imagina o escândalo? Calisto Elói... Que será feito dele? Penso várias vezes nos tempos em que convivemos no Parlamento... por alguma razão tinha ar de anjo caído... Mas tantos anos depois, ou está velho e ultrapassado como eu ou, então, morto e enterrado. Se souber novas dele... Diga-lhe que mando saudações, A. J. S. G. P. Helena Pinto

A Vaidade Aquele homem vaidoso, que mal olhava os seus companheiros, quem era ele? Era um homem que veio ao mundo da forma como todos vieram. Então porquê tanta presunção? Sim, seria bafejado pela sorte e subiu para um patamar muito alto. Olhava com desdém para os do patamar abaixo, mas, como tudo na vida se modifica, momento a momento, esse patamar do seu orgulho desmoronou-se um dia. Então, eu, Calisto, vi-me mergulhado com os do patamar mais abaixo. Junto de vós eu caí, agora, aqui estou sem vaidade e de presunção perdida. Só tenho uma coisa a pedir: o meu perdão por não vos ter ajudado em vossas horas difíceis; envergonho-me de tanta mão que me deram para me ajudar, em vão. Sim, vivi num patamar alto, mas naquele horizonte nada vi, estava tudo em meu redor muito fechado. Nada compreendi. Hoje sou Nada, Nada como sempre fui. Calisto Elói Maria de Jesus Mouta

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Nuno Júdice Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória Nasceu a 29 Abril 1949 em Mexilhoeira Grande (Algarve).

Formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É Professor Associado do Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989 com uma tese sobre Literatura Medieval. No que diz respeito ao ensino, tem leccionado as áreas de Teoria Literária e da Literatura Portuguesa do Modernismo à contemporaneidade. Ao nível da investigação, tem desenvolvido trabalhos nas áreas da Crítica Literária e da Literatura Medieval, na qual co-dirige um projecto de colocação on-line dos Cancioneiros Medievais Portugueses. É membro do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da FCSH/NOVA.

Nuno Júdice, poeta, possui vasta obra publicada e foi galardoado com vários prémios, dos quais se destacam: - Prémio de Poesia Pablo Neruda, (1975), com a obra O Mecanismo Romântico da Fragmentação; - Prémio de poesia do Pen Club, (1985), por Lira de Líquen; - Prémio D. Dinis da Fundação Mateus (1990), com As Regras da Perspectiva; - Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, (1994), pela obra Meditação sobre Ruínas; - Prémio de Poesia Ana Hatherly, Funchal, (2003), por O Estado dos Campos; - Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia de Espanha (2013).

NUNO JÚDICE responde às questões que POLITÉCNICA 147 lhe colocou: 1.

Diz-se que escasseiam os leitores de poesia. É também essa

a sua opinião?

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Não estou de acordo com essa ideia. A poesia continua a ser lida de forma transversal às idades e às camadas sociais, embora haja muitas vezes lacunas graves na difusão da poesia. Hoje não será tanto através do livro e das livrarias mas da internet que a poesia é lida e transmitida, com os problemas daí decorrentes. 2.

Pode revelar-nos, em traços largos, a sua leitura da poesia que

hoje se faz e publica? A minha opinião decorre da primeira resposta: não havendo já uma edição regular de poesia por parte das grandes, e mesmo médias, editoras, esta é editada em plaquetes por editores com uma tiragem e uma distribuição reduzidas. Não é fácil o acesso a essas obras e os meios precários da sua impressão não permitem, quase sempre, que se tenha uma ideia objectiva do que é feito. É no entanto positivo ver que a edição de poesia continua a ser feita, mesmo por essa forma, e há um regresso de revistas de poesia que dão a conhecer novos poetas. 3.

Podem as redes sociais trazer algumas transformações ao modo

de encarar a poesia? Quais? Não tenho facebook, pelo que não posso dar uma opinião fundamentada. Mas sei que há autores que usam essa forma de comunicação do seu trabalho e tem sido esta uma forma que ganhou terreno aos blogues que, durante alguns anos, foram a forma principal de edição digital de poesia própria ou de outros.

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4. O poema na canção é um refúgio ou um modo da poesia atingir o grande público? Houve uma altura em que o uso de poesia pelos cantores de intervenção, nos anos 60 a 70, e também pelo fado, teve uma expressão criativa em que se destacaram poetas como José Carlos Ary dos Santos ou David Mourão-Ferreira. Refiro-me a poetas que escreviam directamente para a música. A situação hoje não é a mesma, embora continue a haver poetas que escrevem poemas para cantores ditos «populares», por iniciativa própria ou por solicitação. Mas é sempre uma utilização pontual: o mais normal é os cantores recorrerem a letristas, ou seja, autores que têm a vocação de escrever esse tipo de texto que não obedece aos mesmos critérios do poema a que se pode chamar «erudito».

(Junho de 2015)

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FOTOGRAFIAS CARLOS REVELES

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Três propósitos do (meu) ensino da escrita criativa Carlos Castilho Pais * 1. Num tempo em que a crise económica afecta todos os aspectos das nossas vidas, é imperioso lembrar (e começar por aí) que não é o ganho que motiva os protagonistas deste curso. Em tempo de crise, quem frequentar este curso gostará de saber que, também por aí, este curso se distingue de tantos outros, que por todos os lados surgem como cogumelos. Desde logo, o professor: a sua carga horária de componente lectiva está estabelecida há muito e a sua retribuição salarial também, que, de resto, é independente da componente lectiva que lhe é atribuída enquanto docente, como é sabido. O mesmo poderá dizer-se no que à instituição (Universidade Aberta) diz respeito. As propinas pagas por este curso terão um valor insignificante no seu orçamento. É, pois, o cumprimento de um dever de missão aquilo que nos motiva e orienta.

2. O (meu) ensino da escrita criativa em nada se assemelha -deles foge a quatro patas - àqueles ‘livros de auto-ajuda’ de que fala Mário de Carvalho na sua obra mais recente (Quem disser o contrário é porque tem razão). Não cria ilusões. Não sairá daí nenhum prémio Nobel. Este (meu) ensino não possui nenhuma matriz para escrever o bom romance ou o bom poema. Também não possui a caixa das verdades sobre aquilo que alguém deve fazer para se tornar em ‘grande escritor’. As verdades serão porventura imensas e faltarão sempre outras tantas. Consciente disto, quer para formandos quer para formador, este (meu) ensino será compreendido enquanto acto, de um conjunto de tantos outros, para CRESCER. Só nesse sentido este (meu) ensino terá a sua utilidade.

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3. Nada terei a ensinar com origem naquilo que escrevo. De resto, nunca aquilo que escrevo é coisa segura para a escrita do dia seguinte (a fazer). Sem metáfora, isto também me acontece com as minhas viagens, mesmo aquelas que faço a cidades muitas vezes visitadas: chego ao aeroporto e dirijo-me sempre em primeiro lugar ao Tourism Information. Como se aquilo que antes fora aprendido sobre a cidade de pouco ou nada me valesse. Mas, ao contrário, os textos de outros serão parte forte do (meu) ensino da escrita criativa. Mais enquanto reflexão, do que enquanto imitação. Mulheres e homens de palavra(s), falamos/escrevemos em perguntas e respostas. Não existe resposta se não houver conhecimento da pergunta. A isto chama-se dialogia. Faremos outra coisa de fundamental quando comunicamos? É por este caminho que introduzo no (meu) ensino da escrita criativa os textos dos outros. É um mundo que interroga, que nos interroga. Os meus alunos não me perdoariam se o (meu) ensino da escrita criativa se apresentasse desgarrado do mundo.

* Professor da Universidade Aberta, docente do Curso de Escrita Criativa

© Artur Patrício

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