Retratos de resistência

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Amanda Areias



Dedico este livro a todos os tibetanos que morreram nas mãos dos chineses, aos que ainda sofrem dentro do Tibete, e aos que abandonaram tudo o que conheciam para viver no exílio. Quero também expressar a minha gratidão a todos que compartilharam suas histórias de vida comigo, peço desculpas pelas lágrimas que as minhas perguntas causaram, e espero que o meu trabalho ajude de alguma forma a causa tibetana. Não consigo expressar o tamanho da minha admiração à luta de vocês





Reportagem, fotografia e design

AMANDA AREIAS



“Não falo com um sentimento de raiva ou ódio contra aqueles que são os responsáveis pelos imensos sofrimentos do nosso povo e pela destruição de nossa terra, das nossas casas e da nossa cultura. Eles também são seres humanos que lutam para encontrar a felicidade e merecem a nossa compaixão. Falo para informá-los da triste situação atual do meu país e das aspirações do meu povo porque, em nossa luta pela liberdade, a verdade é a única arma que possuímos.” - Dalai-lama, 1989



I NTRO DU ÇÃO

Em 2015 eu li um livro chamado “As Montanhas de Buda” de Javier Moro, o livro conta a história do Tibete, a qual até então eu conhecia muito pouco. Quanto mais eu avançava no livro, mais incrédula eu ficava com esse país, me lembro de pensar o tempo inteiro: “Como eu nunca havia ouvido sobre tudo isso até agora?”. Realmente, a história do Tibete é muito pouco conhecida mundialmente, talvez o fato do país estar rodeado das maiores montanhas do mundo fez com que sua trajetória chegasse ao ouvido de poucas pessoas, o que é uma tristeza enorme, pois nós temos muito o que aprender com eles; e sua história merece a atenção e a incredulidade de genocídios como, por exemplo, o Holocausto. O Tibete foi um país independente por mais de dois mil anos, tinha seu próprio governo, religião, idioma, constituição, moeda e exército. Ele está situado no coração da Ásia e é conhecido como “teto do mundo”, por abrigar as maiores montanhas do Himalaia. Sua

capital é a cidade de Lhasa e sua religião oficial é o budismo, o que desempenha um grande papel em sua identidade. O país sempre esteve afastado do resto do mundo, sempre foi subdesenvolvido, com grande parte de seus habitantes sendo fazendeiros nômades. Porém os tibetanos nunca pareceram se importar muito com isso; sendo um país budista, sua filosofia de vida nunca foi voltada ao desenvolvimento material ou à busca do poder, algo que o mundo ocidental busca ferozmente. O budismo sempre esteve impregnado no dia-a-dia dos tibetanos e, para eles, isso era suficiente. Mas tudo começou a mudar na vida dos tibetanos em 1949, quando o exército chinês de Mao Tse Tung invadiu o país e instaurou ali uma ditadura que os aterroriza até os dias de hoje. Atualmente, existem mais chineses do que tibetanos no Tibete, o que coloca em risco sua cultura e seus costumes tradicionais. Chineses são incentivados a se mudarem para lá, 70% dos negócios em Lhasa são conduzidos por chineses,


nas escolas as aulas são dadas em chinês e chineses ganham salários maiores por cargos iguais aos dos tibetanos. Desde a ocupação, um dos principais objetivos da China tem sido destruir sistematicamente a identidade tibetana, proibindo-os de praticar livremente sua religião e seus costumes, obrigando-os a hastear a bandeira chinesa em suas janelas e fazendo-os participar de sessões de re-educação, onde eles têm aulas sobre o partido comunista e prometem lealdade à ele. A China controla tudo o que está ao seu alcance na vida dos tibetanos: jornalistas estrangeiros, organizações de direitos humanos e diplomatas raramente podem entrar no país e ligações e conversas por redes sociais são monitoradas o tempo todo. Desde a invasão, mais de um milhão de tibetanos já morreram nas mãos do exército, vítimas de torturas, execuções, fome e campos de trabalho. Pessoas são presas e torturadas por simples atitudes como carregar uma foto do dalai-lama consigo ou hastear a bandeira tibetana. Os chineses fecharam 99% dos monastérios do país, sendo muitos deles arruinados. Florestas inteiras foram derrubadas, seus recursos naturais estão sendo usados para abastecer a economia chinesa e a poluição no país aumentou drasticamente. Escrituras religiosas antigas

foram roubadas, queimadas e destruídas e hoje o Tibete é um dos dez países mais reprimidos do mundo. Infelizmente, o resto do mundo reconhece o Tibete como sendo parte da China, mesmo que o país tenha um idioma e uma cultura próprios, que estão desaparecendo sem que seu povo possa fazer nada. É de fato difícil de acreditar que em pleno século XXI uma colonização como essa aconteça tão descaradamente, e que nenhum outro país esteja fazendo algo para reverter a situação. No entanto, a China hoje representa uma das economias mais fortes do mundo, além de ser um dos países de maior poder nas Nações Unidas, esclarecendo assim o porque de não haver interferências internacionais em seu regime. Esse fato gera uma grande desilusão em relação ao futuro do Tibete. Para fugir das mãos dos chineses, muitos tibetanos buscam asilo político em outros países; a maioria deles está concentrada na Índia, Nepal e Butão, mas comunidades menores também podem ser encontradas nos Estados Unidos, Suíça, Canadá, Austrália, entre outros países. A cidade de Dharamsala, situada no extremo norte da Índia, se tornou o governo oficial do exílio tibetano quando, em 1959, o 14o dalai-lama fugiu para lá. Até hoje milhares de refugiados se instalam nessa cidade.


O senso de ajuda comunitária dos refugiados é algo admirável. Em Dharamsala, por exemplo, diversas ONGs foram criadas para oferecer ajuda aos tibetanos: escolas de idiomas, centros de apoio a tibetanos desempregados, a antigos prisioneiros políticos e a mulheres, além de escolas exclusivamente tibetanas, monastérios, centros de recepção a refugiados e por aí vai. Porém, a trajetória não é nem um pouco fácil e extremamente arriscada, em alguns casos chega a durar meses. O principal trajeto feito por eles passa primeiramente pelo Nepal, pois a fronteira indiana é mais arriscada. Os refugiados têm que atravessar o Himalaia a pé, durante a noite, levando muito pouco além de suas lembranças e muitos já morreram de fome, frio ou foram pegos pela polícia. Neste exato momento, enquanto você lê esse livro, mais tibetanos estão caminhando pelas montanhas em direção ao exílio. Os que conseguem atravessar a fronteira costumam chegar do outro lado em péssimo estado, precisando de cuidados médicos imediatos. Mas então por que arriscar tudo dessa forma? Longe do exército chinês, os refugiados podem continuar praticando sua cultura sem o medo de serem torturados e/ou assassinados em consequência. Em Dharamsala, eles praticam o budismo, estudam tibetano e além disso ainda estão perto do dalai-lama.

Acredito que seja injusto reduzir o Tibete a números de mortos e refugiados. Não são somente os números - por mais assombrosos que eles sejam - que vão nos fazer apoiar sua luta. Para que a sua dor seja entendida é necessário conhecer as vivências pessoais desses tibetanos. Para falar do Tibete, é necessário conhecer seu povo, ouvir sua voz. Não somente os números de mortes, mas também as histórias que os sobreviventes têm para contar. Os tibetanos impressionam, acima de tudo, pela força de superação e compaixão que eles carregam diariamente. E nós, ocidentais, temos muito o que aprender com eles. “As Montanhas de Buda” foi o livro que me fez ir até Dharamsala ouvir dos próprios refugiados as histórias que eles têm sobre o Tibete. Voltei para contar, pela voz deles, a história de um povo que é minoria oprimida em seu próprio país e que teve que deixar tudo para trás pela busca da liberdade.



Principal rota de fuga



DAL A I-L AMA

É impossível entender o Tibete sem entender o grupo religioso e político dalai-lama. Os tibetanos têm um respeito e uma admiração enormes por esse lama e eu não lembro de ter entrado em nenhum estabelecimento ou casa em Dharamsala que não tivesse pelo menos uma foto dele pendurada na parede. Inúmeras vezes me disseram que a maioria dos tibetanos morreria em paz se visse o dalai-lama ao vivo uma única vez, que esse é seu maior sonho. Os dalai-lamas são os líderes políticos e espirituais do Tibete, e acredita-se que sejam a reencarnação do Buda da Compaixão. O dalai-lama que conhecemos hoje é a 14a reencarnação. No dia 17 de dezembro de 1933 morreu Thupten Gyatso, o 13o dalai-lama e, enquanto o 14o não pudesse assumir seu posto de líder, um regente foi escolhido para ocupar seu lugar. Logo após a morte de Thupten Gyatso, foi descoberto que sua cabeça havia girado em direção ao nordeste, esse seria o primeiro sinal de onde os monges deveriam encontrar o próximo dalai-lama.

Diversos sonhos, premonições e consultas aos oráculos depois, o lama KeTsang e os monges do Monastério de Sera compreenderam que a reencarnação do dalai-lama estaria no vilarejo de Taktser, perto da fronteira chinesa. Se disfarçaram então de comerciantes e começaram a viagem em direção a Taktser. Chegando no vilarejo encontraram uma casa com o telhado turquesa. Ao ver o telhado souberam que estavam muito próximos de quem procuravam, pois o regente havia sonhado com uma casa igual àquela. Bateram então na porta e perguntaram se poderiam passar a noite ali. A família que morava nessa casa era grande. Sem acreditar no que viam, os monges começaram a reconhecer na casa diversos detalhes das visões do regente; foi quando apareceu um menino que tinha cerca de dois anos. Ke-Tsang se sentou e o menino veio apressado sentar-se em seu colo pegar o rosário preto que o lama usava pendurado no pescoço, o qual pertencia ao 13o dalai-lama. Ke-Tsang lhe disse que


ele poderia ficar com o rosário se lhe dissesse quem ele realmente era, e o menino respondeu: - Você é um lama do Monastério de Sera. Ke-Tsang então voltou a Lhasa o mais rápido possível, para avisar ao restante dos monges que havia encontrado a nova reencarnação do dalai-lama. Alguns meses depois eles voltaram à casa de teto turquesa, dessa vez oficialmente, para submeter aquela criança a testes que provariam quem ele realmente era. Foram colocados diversos objetos na frente do menino, alguns pertencendo ao antigo dalai-lama, e outros falsos; a criança pegou, sem titubear, todos os objetos pertencentes a Thupten Gyatso. Não restava dúvidas de que haviam encontrado a 14a reencarnação do dalai-lama. A partir desse dia a vida do menino, que agora se chamaria Tenzin Gyatso, mudou completamente. Ele se mudou com sua família para o Palácio de Potala, em Lhasa, e começou seus estudos, tanto religiosos quanto teóricos. Ele estudaria até completar seus 18 anos, quando poderia assumir o poder político no Tibete. Em 1949 os chineses invadiram o país, e então a vida de todos mudou, de Tenzin Gyatso especialmente. Aos 15 anos o 14o dalai-lama se viu na

obrigação de assumir o poder no Tibete, algo que deveria fazer somente aos 18. Tenzin Gyatso, sem nenhuma experiência, teve que começar a governar um país do tamanho da Europa ocidental; um país onde as pessoas estavam desesperadas, todas contando com ele. Utilizar a violência para expulsar os chineses de seu país nunca foi uma opção para o dalai-lama, além de ir contra suas crenças, ele sabia que o Tibete não tinha chances contra o exército chinês, uma guerra só traria mais mortes e as principais vítimas seriam os tibetanos. Tenzin decidiu então demitir seus ministros para poupar-lhes a vida, enquanto sua família fugia do Tibete, para procurar ajuda internacional. Aos 16 anos o dalai-lama se via sozinho diante dos invasores. O tempo passava e a situação só piorava, a economia estava desabando, seu povo estava passando fome e sangue estava sendo derramado. Tenzin Gyatso não sabia mais o que fazer para aliviar a dor de seu país Em 1959, dez anos após a invasão, dois oficiais chineses convidaram Tenzin Gyatso para assistir uma ópera chinesa que o general do exército apresentaria em seu quartel, e lhe pediram que escolhesse uma data. Ele escolheu o dia 10 de março. Porém, na véspera da ópera, o dalai-lama foi avisado que a visita deveria ser mantida em


segredo, e que ele deveria comparecer ao quartel sozinho. Rumores de que a ópera era na verdade uma emboscada, e que Tenzin Gyatso seria sequestrado pelos chineses, se espalharam. No dia 10 de março de 1959, 300 mil tibetanos se reuniram na frente de Norbulingka, a casa de veraneio do dalai-lama, para protestar e proteger seu líder. O Tibete nunca havia visto uma revolta deste tamanho, foi nesse dia que a resistência nacional contra a ocupação atingiu seu auge, e isso foi suficiente para que o dalai-lama informasse aos chineses que não iria à ópera. Porém a reação chinesa à revolta foi violenta, nesse dia e nos dias que se seguiram, milhares de tibetanos foram mortos ou presos, por haverem comparecido ao levante. A revolta, entretanto, não terminou por aí; o levante tomou proporções imensas, virando uma verdadeira guerra contra os chineses. Tenzin Gyatso não sabia o que fazer para conter a multidão, e o governo chinês tampouco dava trégua. No dia 16 de março o general chinês anunciou que atacaria Norbulingka, e perguntou ao dalai-lama qual era o lugar exato em que estava para que essa parte do palácio fosse preservada. Mas será que era realmente isso que o exército faria? Ou o general queria saber onde o dalai-lama estava para que este fosse o primeiro local a ser atacado?

Tenzin Gyatso, desesperado, consultou seu oráculo, o qual lhe aconselhou que partisse naquele mesmo dia, e lhe deu as instruções exatas de como fazê-lo (40 anos depois, o dalai-lama descobriu que o oráculo era na verdade um agente da CIA infiltrado, salvando sua vida). Tenzin Gyatso então percebeu que sua única chance de continuar vivo era fugindo. Trocou seu hábito de monge por roupas comuns e foi ao encontro de sua mãe, seus irmãos e o resto de sua escolta. Três semanas depois, o grupo chegaria à fronteira indiana. O governo indiano já havia concordado em fornecer asilo ao dalai-lama; e na cidade de Mussoorie ele se encontrou com o primeiro-ministro Nehru para conversar sobre a possibilidade de amparar os demais refugiados tibetanos. Nehru lhe concedeu então a cidade de Dharamsala, no norte da Índia, situada ao lado do Himalaia. Desde então, Tenzin Gyatso mora com outros milhares de tibetanos em Dharamsala. Em 1989 ganhou o Nobel da Paz, pela sua resistência em empregar a violência na luta de seu povo pela liberdade.


Demton Khang Photographic Archive


Pai e filha cruzando uma passagem de 5700 metros, 1996.


“Os meus pais sempre me ensinaram a defender o que eu acredito. A minha família não era do tipo que sentaria quieta vendo seu país ser destruído sem fazer nada a respeito. A minha mãe morreu, o meu pai morreu e os meus três irmãos morreram. E quando eu me vi sozinha, eu sabia que eu teria que fugir, ou eu acabaria igual a eles.”



“Eu tinha 12 anos quando vim pra Índia, estávamos no grupo eu, meus pais, minha irmã de sete anos e meu irmão de quatro, e mesmo com quatro anos ele teve que carregar sua mala durante os dois meses que levamos para chegar. Você não imagina o quanto foi difícil, dormíamos o dia inteiro e andávamos durante a noite, sem nem poder usar tochas, tínhamos que andar de mãos dadas pois não conseguíamos ver quase nada. Eu era apenas uma criança, eu não entendia o que estava acontecendo com o meu país, lá a única coisa que eu fazia era brincar. A minha família era fazendeira no Tibete, e antes da ocupação chinesa eles tinham muita comida, tudo o que eles precisavam eles tinham, e tudo era de graça, mas depois da invasão eles passavam dias sem comer, porque os chineses costumavam roubar seus animais e tudo o que eles plantavam. Meus pais sentem muita falta dos meus avós, eles estão sempre me contando como era a vida no Tibete. Eu me lembro da minha avó me contando que, quando ela tinha 15 anos os chineses invadiram o país, e que eles fizeram a situação da minha família ficar muito ruim, mas eu era muito pequeno para entender o que ela estava dizendo.”




“Quando eu estava no Tibete, eu era totalmente ignorante em relação à nossa história e ao resto do mundo. Naquela época a maioria das pessoas era analfabeta, nós estávamos muito atrás do nível de educação global e não tínhamos uma boa infra-estrutura. Eu não tive a oportunidade de ir à escola lá, e a nossa vida era muito simples, éramos semi-nômades, no inverno nós cuidávamos do gado, e no verão nós cuidávamos da plantação. A maioria das pessoas no Tibete é assim, e os chineses se aproveitaram disso.”





“O meu país foi roubado, e não há nada que a gente possa fazer a respeito.”


“Existem dois caminhos principais para ir do Tibete ao Nepal, mas várias pessoas morrem ou são pegas. Eu vim de Gala, éramos em um grupo de 42 pessoas e levamos 24 dias para chegar ao Nepal. Eu tinha 20 anos na época e haviam muitas crianças sozinhas no nosso grupo. Nós tínhamos muito medo, pois muitas pessoas morrem no caminho, e muitas pessoas são pegas e mandadas à prisão. É tão difícil para as pessoas chegarem aqui, mas é pior ainda para as mulheres, é muito perigoso, pois o exército é composto apenas de homens, então se elas são pegas existem grandes chances de serem estupradas, além de toda a tortura que já é comum.”



“Em 1989 eu participei de um protesto pacífico em Lhasa com outras 17 monjas do meu monastério. Depois de apenas alguns minutos protestando fomos presas e levadas à delegacia. Eu fui interrogada por quatro meses. Eles me penduravam pelo teto para me espancar e apagavam cigarros no meu rosto. Por um lado eu tive sorte, pois algumas das prisioneiras eram estupradas com bastões elétricos e eu não fui. Me disseram então que eu ficaria três anos na prisão. As condições eram horríveis, não havia comida suficiente e dormíamos todas apertadas em uma pequena cela. Não podíamos praticar a nossa religião, o simples fato de sentar com as pernas cruzadas, da mesma forma que sentamos ao meditar, já era considerado anti-revolucionário, e apanhávamos por isso. Hoje eu sou feliz aqui, sinto falta do meu país mas sou feliz. Eles podem destruir o meu corpo, mas nunca vão destruir a minha alma.”





“Praticamente todos os tibetanos vêm pra Índia por dois motivos principais: o primeiro é ver o dalai-lama, e o segundo é ter a oportunidade de estudar a nossa história, idioma e os nossos costumes. Eu saí do Tibete aos cinco anos, então lembro muito pouco de lá, tenho algumas memórias das montanhas, alguns animais, coisas assim.”




“Eu vim para cá pela primeira vez em 1994, eu tinha 13 anos. Em 2012 eu voltei ao Tibete para dar aula em um monastério, e ano que vem eu quero voltar para lá de vez. Em 1994 eu vim a pé pelo Himalaia, a minha família me mandou pois eles sabiam que se eu ficasse no Tibete eu não teria uma boa educação. Eu era muito novo, não tinha idéia do que estava acontecendo. A minha família tinha um amigo que na época tinha seus 20 e poucos anos. Ele era um monge e ele morava com o meu tio no monastério. Esse monge trouxe eu e meu irmão, que era um ano mais velho que eu. Ele nos colocou dentro de um caminhão e nos levou à Lhasa para que encontrássemos um guia para atravessar a fronteira. Encontramos um guia que organizava grupos de 26 pessoas. Pagamos algo por volta de 200 dólares cada, o que na época, e para nós, era muito dinheiro. Então começamos a viagem de Lhasa para o Nepal. Nós tínhamos que carregar as nossas próprias roupas, comidas, e utensílios para cozinhar. Eu e meu irmão éramos os mais novos do grupo e o mais velho tinha em torno de 60 anos, o resto tinha uma média de 30 anos. Nós estávamos todos com muito medo, havia muita tensão no grupo, pois muitas pessoas são pegas pelos chineses, e depois ninguém sabe o que acontece com elas, muitos são presos ou assassinados, e sofrem muito. Nós não podíamos andar durante o dia, tínhamos que começar nossa jornada as 18h e durante o dia descansávamos. E também não podíamos usar tochas, pois se usássemos qualquer coisa que emitisse luz os policiais nos veriam facilmente. Então era muito escuro, não conseguíamos ver nada; éramos somente nós e as montanhas.”


Demton Khang Photographic Archive


Grupo de tibetanos cruzando montanhas para fugir do Tibete, 1993


“Nós temos que aprender a perdoar os outros, mesmo que eles não mereçam o nosso perdão. Somente assim podemos estar em paz com nós mesmos.”




“Eu tenho 25 anos e vim pra Índia em 2006. Quando eu cheguei aqui eu estudei na escola por quatro anos, depois disso eu fiz um curso de confeitaria por um ano, depois eu fiz um curso de massagem tibetana e agora estou fazendo esse de costura. Eu vim para poder estudar, mas eu não gosto muito daqui, eu sinto falta do Tibete. Morar aqui é difícil porque nós temos que pagar por tudo: comida, casa, roupas. Eu era nômade no Tibete, então estávamos sempre nos mudando, nos mudávamos duas vezes por ano; e não tínhamos que pagar por nada, nós produzíamos tudo o que precisávamos.”





“No dia 10 de março de 1959 eu e mais dez monges fomos mandados à capital. No caminho para lá, um homem veio na nossa direção e nos disse que havia sido enviado para convocar todos os monges a ir para Lhasa e falou, com a voz tremendo, que as pessoas estavam se reunindo fora da casa de verão do dalai-lama, pois aparentemente os chineses queriam levá-lo para a China. Nós corremos para ver o que estava acontecendo e quando chegamos lá, nos deparamos com uma multidão fora de controle, todos estavam gritando ‘Chineses saiam do Tibete!’. Alguns meses depois, soldados chineses vieram procurar por mim no monastério que eu morava. Me levaram a uma sala de interrogação e começaram a me acusar de estar envolvido com um agente infiltrado indiano e de ter participado do protesto do dia 10. Neguei e, depois de continuar negando diversas vezes, o interrogador me deu um tapa na cara que me jogou para trás e os dois guardas que estavam na sala conosco começaram a me chutar. Depois de um tempo eu perdi meus sentidos e comecei a urinar incontrolavelmente, eu não conseguia ouvir mais nada além nos meus próprios gritos. Essa interrogação continuou por muitos outros dias e depois eu fui levado à prisão. Na prisão nós não tínhamos comida suficiente, estávamos tão fracos que não conseguíamos nem aguentar o peso dos nossos próprios corpos, vi vários amigos literalmente morrendo de fome, nós íamos dormir sem saber se acordaríamos no dia seguinte. Nossos sapatos eram feitos de pele de iaque, e chegamos ao ponto de ter que comer os nossos próprios sapatos. Comíamos os ratos e gatos que apareciam na prisão e, quando companheiros nossos morriam, tínhamos que comer a carne deles também. Essa época foi muito difícil para nós, especialmente porque nós somos budistas, não podemos comer animais, mas não tínhamos escolha.


Nós também tínhamos que trabalhar para os chineses, e nos campos de trabalho fazíamos as tarefas que normalmente animais fariam, tínhamos que carregar objetos extremamente pesados. Isso tudo somado ao fato de que não tínhamos comida, então muitas pessoas ficavam doentes, não conseguiam mais se movimentar de tão fracas, caiam no chão, e os policiais enterravam essas pessoas vivas. Eu ficava desesperado, todos conseguiam ver que eles não tinham morrido mas não podíamos fazer nada! Eu via meus amigos sendo enterrados vivos e não podia ajudar. Ao longo dos anos eu mudei algumas vezes de prisão, tentei fugir certa vez, consegui sair da prisão mas fui encontrado depois de alguns dias, o que aumentou a minha sentença para um total de 15 anos. Por ter tentado fugir, os policiais deixaram minhas mãos e pés algemados por meses, eu não tirava as algemas nem para comer ou dormir. Sete meses depois retiraram as algemas dos meus punhos, meus braços estavam paralisados, meu coração disparou ao pensar que talvez eu nunca mais poderia mexer as minhas mãos; os movimentos começaram a voltar depois de duas semanas. As correntes dos meus pés foram retiradas somente após dois anos, demorei para voltar a andar normalmente, o simples ato de caminhar demandava que eu usasse toda a minha concentração. Em 1975 minha sentença de 15 anos deveria terminar. Quando me chamaram para supostamente ser liberado, me disseram que eu iria para Nyethang Zhuanwa Chang. “Zhuanwa Chang!” eu falei, quase que rindo. Esse era um campo de trabalho, os guardas até costumavam colocar medo em nós dizendo que seríamos mandados para Zhuanwa Chang. Na teoria esses campos de reforma eram centros reeducacionais, mas na prática eles simplesmente providenciavam


mão de obra barata ao partido. Os prisioneiros que eram mandados para campos de trabalho sabiam que provavelmente morreriam lá. A minha única consolação era que eu poderia ir para Lhasa aos fins de semana. Então, em fevereiro de 1982, eu decidi colocar um pôster em Lhasa. Era uma manhã fria, eu fui rápido à cidade antes que o sol nascesse, meu pôster pedia às pessoas que acordassem e lutassem contra seus opressores, eu voltei ao campo justo a tempo que ninguém me visse. Dois anos se passariam até que os chineses descobrissem que eu fui o responsável pelo pôster. Em 1984 fui então preso novamente. No primeiro interrogatório me perguntaram ‘Por que você está aqui?’, mas não esperaram uma resposta: 0 interrogador pegou um bastão elétrico e o usou para me empurrar. Depois, aos gritos, ele enfiou o bastão na minha boca, tirou, e colocou novamente. Eu sentia meu corpo rasgando de dor, um dos guardas teve que sair da sala pois não aguentou assistir. Eu me lembro como se fosse ontem como os choques faziam meu corpo tremer. Eu desmaiei e depois acordei rodeado de urina e vômito, não sabia quanto tempo havia ficado lá. Todos os meus dentes caíram ao longo dos dias seguintes. Meu pedido para ir ao médico foi negado e no dia seguinte me colocaram para trabalhar na cozinha. Na manhã de 25 de agosto de 1992, depois de 33 anos preso, eu fui solto de vez. No dia 7 de setembro eu fugi do Tibete. Nesse mesmo ano eu fui para Genebra depor na Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Me levaram a uma enorme sala e me sentei com dois tibetanos que seriam meus tradutores. Respirei fundo e comecei a ler meu testemunho “Meu nome é Palden Gyatso. Eu me tornei um monge aos dez anos…”. Foi só


quando terminei e olhei para cima que vi que a delegação chinesa estava sentada bem na minha frente, ouvindo. Eles estavam ouvindo! Isso me deu uma sensação de liberdade tão grande! Eu queria que os meus amigos prisioneiros estivessem lá para testemunhar, pois todos nós sonhávamos em enfrentar nossos opressores e sermos ouvidos. Eu fui o primeiro tibetano a ter a oportunidade de falar com as Nações Unidas, então eu sabia que não estava falando somente por mim, mas por todos nós. Os representantes ouviram apenas a minha voz, mas atrás da minha voz estava o sofrimento de milhares de prisioneiros que não haviam sobrevivido para testemunhar o que eu havia manifestado. O meu confinamento foi apenas uma versão menor do aprisionamento do Tibete como um todo. Milhares de prisioneiros inocentes são torturados e morrem de fome. Nosso país foi ocupado e nós, seus habitantes, colocados na prisão. O Partido havia declarado que servia aos pobres mas manda milhares à morte. Eles não têm o menor respeito pela vida.”

Trechos retirados do livro “Fire Under the Snow” de Palden Gyatso



“Eu tenho saúde. Tenho uma casa. Os meus filhos estão na escola. Tenho o que comer. Eu posso reclamar? Não posso reclamar.”


“Eu acredito que a maioria das pessoas são boas. O problema é que as más são as que estão sempre nas notícias.”





“Eu vim para cá em 1993, quando tinha oito anos. Todos que fogem do Tibete quando são ainda crianças não fazem idéia do porquê eles estão fugindo, eles não pensam ‘o Tibete não é um país livre, eu tenho que fugir’; são os nossos pais que nos mandam. Eu via tantos chineses quando morava lá, mas para mim era normal, eu não conheci o Tibete antes dos chineses chegarem. Os mais velhos conhecem melhor a situação, mas eles evitam falar sobre isso com as crianças, para protegê-los. Eles têm medo. E não é que os pais queiram se separar de seus filhos, é muito difícil para eles, mas eles fazem isso porque eles estão pensando no seu país. Foi por isso que meus pais mandaram eu e meu irmão pra cá, meu irmão veio em 1992 e eu em 1993. Eles queriam que seus filhos crescessem como tibetanos, com a pura identidade tibetana. Esse é o maior motivo. Eu me lembro de tudo, foi muito difícil. Eu fiquei cego no meio do caminho por causa da neve, a cegueira durou cerca de 12 horas e eu tive que ser carregado no colo; eu tinha só oito anos, você entende, né? Eu até tinha os óculos de proteção mas não achei que fosse perigoso tirá-los, você não liga para nada quando é criança, então nós tiramos nossos óculos pra brincar na neve e tal; mas depois de mais ou menos uma hora tudo ficou embaçado, e eu não conseguia ver mais nada, tudo ficou escuro e eu comecei a chorar. Então eu pedi ajuda para o guia, porque todo grupo tem um guia; aliás isso é um novo jeito de fazer dinheiro no Tibete, e eles ganham muito dinheiro; eles vão passando de casa em casa perguntando quem quer ir pra Índia, dizendo que nos deixarão a salvo lá, mas nem sempre é assim, tantas coisas podem acontecer. Um outro dia no caminho, quase na fronteira, nós chegamos a uma área cheia de montanhas, e haviam cerca de três ou quatro casas lá, mas não eram casas de verdade, era um lugar que os animais


ficavam, essas casas não tinham nem teto, e estavam abandonadas, e quando estávamos passando por elas nós ouvimos um choro de bebê vindo daquela direção, fomos ver o que estava acontecendo e encontramos um bebê, sozinho, abandonado naquela casa. No nosso grupo havia uma mulher com seus dois filhos, um de oito anos e o outro devia ter um ano, então ela estava amamentando na época e disse que poderia cuidar do bebê, nós não podíamos deixá-lo lá, mas depois de três dias ele não aguentou e morreu. Então nós fizemos nossos rituais habituais quando alguém morre e, como havia um monge conosco, ele rezou pela alma do bebê, e nós seguimos adiante. Quando eu cheguei aqui na Índia eu estava muito perdido, pois tinha apenas oito anos e não sabia nada sobre a Índia. Mas como havia chegado em Dharamsala a salvo, tive que começar a procurar pelo meu irmão, tudo o que eu sabia era seu nome, mas teriam quantas pessoas com o mesmo nome na cidade? Por sorte, eu encontrei uma amiga da minha mãe, que era nove anos mais velha do que eu, ela chegou aqui em 1991. Eu estava andando pelo centro de Dharamsala, e eu vi ela perto do Restaurante Yak. Quando ela me viu, ela ficou me encarando por alguns segundos, ela não se lembrava de mim pois não havíamos nos visto há mais de dois anos, e eu estava com uma aparência estranha por causa da viagem nas montanhas, meu rosto estava preto, com varias manchas, mas eu a reconheci, e quando ela percebeu quem eu era nós nos abraçamos e começamos a chorar, todos que passavam por nós pararam para ver o quanto estávamos felizes. Então eu lhe perguntei sobre o meu irmão, e ela me disse que me levaria até ele. No dia seguinte ela foi comigo até a escola que ele estudava, e me levou ao quarto 32, que era o dele. Eu estava tão animado por vê-lo de novo, meu irmão sempre foi meu melhor amigo, minha


mãe nem queria que eu viesse para a Índia, eu que pedi que ela me mandasse para cá, porque eu queria ficar perto do meu irmão. Então chegamos ao quarto 32, eu não me lembro de ter ficado tão ansioso nenhuma outra vez na vida, ele abriu a porta, e a amiga da minha mãe disse ‘Lobsang, olha quem está aqui!’, mas ele não me reconheceu! Eu fiquei tão triste! Comecei a chorar muito. Nós não havíamos nos visto por um pouco mais de um ano, mas ambos estávamos muito diferentes. Depois de alguns minutos ele me reconheceu e também começou a chorar, então nos abraçamos e choramos juntos. A maior mudança que eu vi em mim foi no meu comportamento; quando eu morava no Tibete eu era muito mal-comportado, eu sempre entrava em brigas, fugia de casa, matava pássaros, quebrava as luzes das ruas. Eu costumava ficar dias sem voltar pra casa e sem avisar ninguém. Isso era tudo causado pela influência chinesa; porque, primeiramente nós não podíamos ir à escola, e como o exército sempre estava nas ruas nós sentíamos que estávamos em guerra. Você acredita que aos oito anos eu fugi de casa e fiquei um mês fora sem avisar ninguém? E eu só tinha oito anos! Mas tudo mudou aqui na Índia, por causa da educação, da liberdade e por causa da influência do dalai-lama. Se alguém me pedisse para entrar em alguma briga hoje, eu não conseguiria, hoje eu sou um homem pacífico. E olha que eu tinha só oito anos, imagina para quem vem aos 20, muitos deles costumavam ser das maiores gangues do Tibete, para eles tanta coisa muda, eles se tornam pessoas completamente diferentes; eles chegam aqui e podem estudar, eles começam a aprender sobre seu próprio país. Então, esse é o sistema, essa é a minha historia.”



“Nós criamos uma comunidade aqui na Índia, mas continua sendo muito difícil, pois não nos sentimos em casa. Mesmo eu, que nasci aqui, sempre sinto que tem alguma coisa faltando. Os tibetanos têm uma vida boa aqui como refugiados, mas nós estamos perdendo a nossa cultura, e a cultura de uma nação é tão importante, nós sentimos que estamos perdendo a nossa essência, a nossa identidade. Hoje em dia é tudo meio misturado, sabe? Eu como mais comida indiana do que tibetana, se estivéssemos no Tibete nós comeríamos somente comida tibetana, e usaríamos nossas roupas típicas, e falaríamos apenas o nosso idioma. Mas a situação ainda não está tão ruim, pois ainda temos os nossos pais para nos passarem suas tradições; mas conforme as gerações vão mudando, isso só vai piorando. Se eu nunca estive no Tibete, como eu vou ensinar para os meus futuros filhos sobre sua cultura? Mas nós não perdemos a fé, a minha esperança está nos futuros políticos chineses, quando a geração mais jovem chegar ao poder, talvez eles tenham ideais diferentes dos políticos atuais.”



“O meu medo nunca foi ser torturado. O meu maior medo era descobrir, enquanto me torturavam, que eu era um covarde. Mas ser forte era a minha única opção, e eu não denunciei nenhuma das pessoas que estavam comigo no dia do protesto.”


Demton Khang Photographic Archive


RuĂ­nas do MonastĂŠrio Side Samtenling, aproximadamente 1980.



“Eu vim pra Índia em 2010. Consegui uma licença que me autorizava a viajar por dentro do Tibete, então fui de carro até a fronteira, e atravessei a pé, o que durou apenas uma noite. Mas para os que não têm essa licença, o que é a maioria, é muito difícil. Os tibetanos não podem viajar livremente para outras cidades dentro do Tibete. Você tem que conhecer pessoas influentes pra conseguir o visto, e ele é válido somente dentro do país; na hora de atravessar a fronteira você está por sua conta. Eu estava sozinho com o meu guia, e lá conhecemos um outro guia que estava levando mais uma pessoa; ou seja, estávamos em quatro. Eu não sei quem esse outro homem era, mas ele foi pego no caminho. Uma hora os soldados nos viram, gritaram ‘Não se mexam!’ e começaram a atirar. Eu e os outros dois guias corremos e conseguimos escapar, mas esse outro homem travou, ficou parado e se rendeu. Os guardas o pegaram e eu não sei o que aconteceu com ele. Eles são tão cruéis, você nem imagina. Os tibetanos precisam de uma autorização chinesa para fazer tudo. Eles não podem se reunir em grupos também; se estivéssemos no Tibete agora, nós quatro como estamos aqui, sentados, conversando, nós seríamos pegos pela polícia chinesa. E em qualquer lugar você vê soldados, eles estão por toda parte. Toda esquina, eles estão lá, especialmente em Lhasa. A cidade que eu morava é uma cidade pequena, e até lá tinham vários soldados. Depois de 2008 piorou ainda mais. Nesse ano houve uma revolta, e os tibetanos fizeram vários protestos em diversas cidades diferentes; muitos tibetanos foram assassinados nessa época, muitas pessoas apenas desapareceram, ninguém sabe onde eles estão. Então desde 2008 o exército ficou ainda mais forte e as fronteiras também foram reforçadas.”



“Basicamente o que nós fazemos aqui no Centro de Recepção é ajudar os recém-chegados a construir uma nova vida. A primeira coisa que fazemos é convocar uma audiência com o dalai-lama, pois ele é um dos motivos principais de tantos tibetanos quererem vir para a Índia; depois nós fazemos um check up médico, para ver se eles estão saudáveis, pois muitos deles chegam aqui em estados deploráveis; depois nós arranjamos para eles documentos indianos e um lugar para morar e estudar. Nós temos quase 600 dormitórios, e enquanto eles ficam aqui eles recebem comida e roupas, tudo de graça. Desde 2008 o número de recém chegados caiu muito. Hoje em dia temos cerca de 10 ou 15 pessoas chegando todo mês, hoje por exemplo temos apenas duas; antes de 2008 essas instalações ficavam cheias, tinha gente por todos os lados, olha agora como está vazio, isso é muito triste.”


“Eu vim para cá em um grupo de 32 pessoas, então nunca estávamos sozinhos. Quando chegamos ao Nepal, ficamos no Centro de Recepção, onde também havia bastante gente na mesma situação que eu. Quando cheguei aqui em Dharamsala fui ao Centro de Recepção daqui, que estava cheio. Mas quando eu já estava bem de saúde, com os meus documentos na mão, pronto para começar a viver a minha vida na Índia, foi nessa hora que bateu o desespero. Eu percebi que nunca havia me sentido tão sozinho na vida”




“O principal motivo de eu...


... ter vindo para a Índia foi para ver o dalai-lama, e também porque eu queria estudar mais sobre a história do Tibete. No Tibete as pessoas não podem estudar a verdadeira historia do país, os livros de história permitidos foram escritos pelos chineses e não contam o que realmente aconteceu lá. Eu tinha 18 anos quando vim pra cá, eu vim com alguns amigos, éramos em 20 pessoas, somente uma mulher. Fomos de carro até a fronteira e depois cruzamos a pé, a fronteira que nós cruzamos não era a que a maioria das pessoas cruza, então não haviam tantos policiais. Depois da fronteira, havia uma montanha muito grande, e antes de escalá-la nós teríamos que nos desfazer de todas as nossas coisas, para que pudéssemos correr caso alguém nos visse, então ficamos três dias sem comida. Quando chegamos ao Nepal, a polícia nepalesa nos encontrou o nos prendeu. Nós ficamos na prisão por um mês, não conseguíamos nos comunicar com ninguém, pois falávamos apenas tibetano, mas não foi tão ruim. A menina que estava conosco ficou em uma prisão feminina, o que foi muito pior pois ela estava sozinha, nós pelo menos tínhamos uns aos outros. Então, depois de um mês uma pessoa, que nós até hoje não sabemos quem é, pagou a nossa fiança. Eu gosto de morar aqui, mas só consigo falar com a minha família de vez em quando, pois os chineses controlam tudo. No Tibete as pessoas se comunicam por um aplicativo que se chama WeChat, mas poucos sabem que esse aplicativo é controlado pelos chineses. Um dos meus irmãos foi preso por causa do WeChat, a policia suspeitou de algo que ele disse, então o prenderam por mais de seis meses. Uns quatro meses atrás a mulher desse meu irmão ficou doente e teve que ir para Lhasa ser operada, então eu pude falar com ele pelo telefone. Nós estávamos conversando por uns 20


minutos quando a ligação caiu, então eu liguei novamente e ele disse que havia recebido uma mensagem dizendo ‘Não mantenha contato com o exterior’, desde então nós não nos falamos mais, pois não sabemos quem pode estar ouvindo. A vida no Tibete não é tão difícil se você não fizer nada relacionado à política. Meus pais e meus avós não me contavam muito sobre os chineses, eles tinham medo que eu soubesse demais. Um dos meus tios foi assassinado pelos chineses por ter protestado, em 1969, contra a ocupação. Nós, como tibetanos, sempre vamos perder, os chineses têm muito mais poder do que nós, o exército deles é enorme e eles têm muita influência perante o resto do mundo.”




“Eu vim para cá quando tinha oito anos, vim andando, o que levou uns 15 ou 20 dias. Durante o dia nós tínhamos que nos esconder e andávamos durante as noites. A minha família me mandou pelos dois motivos que toda família manda seus filhos: para estudar e para ver o dalai-lama. Eu ainda falo com eles pelo WeChat, mas temos que ser muito cuidadosos, não podemos falar sobre política, pois o WeChat é controlado pelos chineses. Eu gosto de morar aqui, mas eu tenho muita vontade de voltar ao Tibete, eu tentei algumas vezes conseguir o visto, mas é tão difícil; e mesmo que eu conseguisse o visto, eu não poderia andar livremente por lá, todo mundo que vai visitar o Tibete, sendo tibetano ou não, tem que contratar um guia chinês que fica com você o tempo inteiro, até turistas de países ocidentais precisam fazer isso, então eu não poderia reencontrar a minha família e conversar com eles abertamente. E os meus pais também não querem que eu volte de vez, pois como eu já morei na India, seria muito perigoso voltar a morar no Tibete.”




“Eu tinha 20 anos quando vim pra Índia, foi em 1988. Nessa época eu estava participando de uma peregrinação até o monte Kailash, que é uma montanha sagrada no Tibete. Nós estávamos em um grupo grande, e havíamos ido conhecer alguns lugares sagrados, e dentro do grupo algumas pessoas começaram a conversar sobre um lugar chamado Índia, eles diziam que nós poderíamos fugir para esse lugar, que a vida era melhor lá, e até que o dalai-lama estava lá e nós poderíamos vê -lo; então eles começaram a encorajar outras pessoas do grupo a irem para esse lugar chamado Índia. Nós éramos em 30 pessoas, eu não conhecia ninguém, mas decidi ir junto. Levamos três meses para chegar no Nepal, foi uma jornada muito difícil, as vezes não tínhamos comida, e as vezes tínhamos que nos esconder no mesmo lugar durante dias. Tiveram muitas avalanches nesse meio tempo, era muito perigoso. Hoje faz quase 30 anos que eu não vejo a minha família, ano passado eu tentei conseguir um visto para visitar o Tibete, mas não me deixaram. Também tentei em 2004 e 2006, mas é muito complicado. E é muito difícil conseguir falar com eles daqui, além de nunca ter sinal, é muito perigoso para eles. A vida no Tibete era muito difícil, especialmente nos aspectos religiosos; os chineses não nos deixavam praticar a nossa religião livremente, e isso é muito importante para nós, somos um povo muito religioso. Eu tenho dois tios que foram presos, um por 25 anos e o outro por 30 anos, e ambos foram assassinados dentro da prisão. Meus pais já morreram, meus cinco irmãos continuam lá dentro, sempre que conseguimos nos falar a gente chora; e eles sempre me pedem para ir visitá-los, e isso me deixa mais triste ainda porque se eu pudesse ir eu com certeza iria.”




“Meus pais me mandaram para a Índia quando eu tinha oito anos. Eu não me lembro muito deles, e eu não me lembro muito da minha vida no Tibete. Mas eu me lembro que, logo antes de eu ir embora, a minha mãe me disse: ‘Estude o máximo que você puder e continue lutando pelo seu país. Para que um dia a gente consiga se ver de novo.’ ”



“Antes dos chineses chegarem no Tibete tudo era muito pacífico, todos nós vivíamos em paz; mas quando os chineses chegaram toda essa paz foi perdida. Eu perdi tantos amigos, alguns foram assassinados, outros presos. Por causa da opressão chinesa eu não pude ficar no Tibete, vim pra Índia em 1959. Levei em torno de 20 dias pra chegar ao Nepal, andando; nessa época nós não tínhamos sapatos, então foi muito mais difícil. Eu fui o primeiro monge a chegar nesse monastério, que hoje é onde o dalai-lama mora; quando eu cheguei aqui trabalhei muito para juntar dinheiro; viajei por toda a Índia para conseguir a maior quantidade de dinheiro possível, eu fazia todo tipo de trabalho, qualquer coisa que aparecesse. Eu não sinto falta do Tibete, todos que eu conhecia lá já morreram.”




“Eu fui estuprada diversas vezes dentro da prisão. Os guardas tiravam todas as minhas roupas, abriam as minhas pernas e enfiavam seus bastões elétricos em mim. Eles pareciam estar se divertindo enquanto faziam isso. Sabe quando a dor é tão forte que você para de senti-la? Eu não sentia mais nada, só ouvia meus gritos e sentia o cheiro da minha pele sendo queimada. Quando eu estava prestes a desmaiar os guardas jogavam um balde de urina na minha cara e esperavam que eu ganhasse forças de novo, para que então continuassem. Mas eu estava disposta a morrer pelo meu país se fosse necessário.”


“Eu não consigo acreditar como que os chineses não se importam com os tibetanos, sabe? Com as pessoas. Eles só se interessam pelo poder e pelo dinheiro, esse é o problema. Quando os chineses chegaram ao Tibete pela primeira vez, eles chegaram de mansinho, foram muito educados, chegaram oferecendo ajuda; e o povo tibetano foi muito gentil, e muito aberto, como sempre. Os chineses convocavam reuniões e faziam longos discursos dizendo que o presidente Mao havia mandado suas tropas para ajudar os tibetanos e que, assim que terminassem, eles voltariam à China. Mas o meu povo perdeu seu país. Até o Obama disse ano passado: ‘O Tibete faz parte da China’. É tudo sobre o poder, é assim que a política funciona”.




“Eu vim para cá há um ano. A situação atual no Tibete é muito complicada, cada esquina lá dentro tem dezenas de soldados, parece que estamos em uma guerra, eles vêm tudo o que você faz. É especialmente difícil se você é um ex-prisioneiro, depois que você é solto você não tem o direito de fazer quase nada, toda semana você tem que ir em uma estação policial e assinar um formulário provando que você continua na cidade. Eu fui preso em junho de 2008 e me soltaram em 2010, no total fiquei dois anos e seis meses preso. Fui preso porque estava protestando pela nossa liberdade. Os tibetanos não têm o direito de fazer nada, e o dalai-lama, que é o pai da nossa nação, não pode voltar para lá. Tudo a que nós somos submetidos não é justo, então eu senti que também tinha que protestar. Então eu e meu amigo fomos as ruas, pacificamente, gritando ‘Deixem o dalai-lama retornar ao Tibete’ e ‘Liberdade ao Tibete’. Depois de apenas quatro minutos que havíamos começado, já haviam cerca de 80 soldados ao nosso redor; nós fomos algemados e espancados com cassetetes, armas de fogo e chutes por 20 minutos, antes de nos colocarem em uma viatura e nos levarem para a delegacia. Nós agimos pacificamente o tempo inteiro, até quando estávamos apanhando nós não reagimos. Ficamos por seis meses em uma prisão chamada Kare sendo interrogados e torturados. Sempre nos perguntavam as mesmas coisas, eles queriam saber quem havia organizado o protesto e nos ajudado, tanto financeira quanto moralmente; mas ninguém havia nos ajudado, nós tínhamos feito tudo sozinhos. Mas fomos torturados mesmo assim, tapas na cara eram regulares; além disso, eles me penduravam no teto pelas mãos, sem que meus pés tocassem o chão e me batiam por horas, eles também nos molhavam com água gelada nos meses de inverno,


enquanto na prisão não havia sistema de calefação e a temperatura lá fora estava abaixo de zero; eles jogavam água fervendo em nós também, era tão quente que o nosso cabelo caia quase inteiro sem que nós puxássemos. Eu também era frequentemente eletrocutado com bastões elétricos, as vezes na minha língua. A situação dentro da prisão também era muito precária, você não imagina, éramos mais de dez pessoas em uma pequena cela, era comum ficarmos dias sem comida alguma, então nós ficávamos tão fracos que mal conseguíamos ficar em pé. Depois de seis meses sendo torturado em Karze, eu fui mandado a uma prisão chinesa, onde éramos somente 45 tibetanos, todos prisioneiros políticos, e eles se tornaram uma família para mim. Em dezembro de 2010 eu fui solto, mas eu ainda me sentia como um prisioneiro; como eu disse, uma vez por semana eu tinha que provar que continuava na cidade, eu tive que desistir da vida de monge pois, devido à chantagens dos chineses, não me aceitavam mais no meu monastério. Então, em 2014, eu fugi pra Índia, um parente distante me ajudou financeiramente, e eu consegui um passaporte falso. Eu não posso te dizer exatamente como eu fugi, pois poucas pessoas conhecem esse caminho, e eu não posso arriscar que os chineses descubram, mas te digo que eu não tive que cruzar o Himalaia a pé, esse meu parente era muito influente e, graças a ele, eu pude vir de carro. Minha mãe e meu irmão ainda estão no Tibete, eu consegui falar com eles apenas duas vezes desde que cheguei. Mas o que eu mais sinto falta no Tibete são os outros prisioneiros que eu conheci na cadeia, nós éramos como uma família, e alguns deles vão passar o resto da vida na prisão, por terem feito basicamente nada; eu fui o único deles que conseguiu fugir do Tibete.”






“Fui em um pequeno protesto na minha cidade, éramos somente algumas pessoas gritando frases de apoio ao Tibete, tudo totalmente pacífico. O sentimento era unicamente de alegria, todos nós nos sentíamos unidos e, de certo modo, livres. Mas não demorou muito para os policiais chegarem. Fui submetido a interrogatórios e torturas durante meses para depois ser sentenciado a dois anos de prisão. Por ter gritado algumas frases na rua. Isso não me parece justo. Depois que fui solto, muitos familiares e amigos meus deixaram de falar comigo por medo. Então decidi vir pra Índia. Hoje em dia eu sempre tenho crises de ansiedade, mesmo sabendo que estou seguro aqui. Eu tenho medo das pessoas, mas ao mesmo tempo eu tenho medo de ficar sozinho. Eu tenho muito medo de ficar sozinho.”


“Basicamente nós ensinamos todas as matérias aqui, mas o nosso foco é no Tibete, pois os chineses estão destruindo o nosso idioma e a nossa cultura. As crianças dessa escola sabem que o país deles foi ocupado, mas nós não queremos transmitir para elas a dor que nós sentimos, pois é um sentimento muito forte e nós não queremos que elas tenham essa negatividade em suas vidas. Então nós os ensinamos sobre o que aconteceu e sobre o que ainda acontece, mas também ensinamos a eles sobre o poder do perdão. As pessoas da China não são pessoas más, nós não sentimos raiva deles, existem muitos chineses brilhantes e nós sabemos reconhecer isso, Liu Xiaobo por exemplo, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2010. E mesmo ele sendo chinês, ele foi torturado pelas pessoas do seu próprio país. E em 1989 quando centenas de cidadãos chineses foram assassinados pelo exército chinês na Praça da Paz Celestial. Se o governo chinês mata tantas pessoas de seu próprio país, então como eles não poderiam fazer o que eles fazem com o nosso povo? Como um todo, o que eu posso dizer é que os tibetanos estão sofrendo. Nós precisamos de uma identidade e esse é o maior problema. Aqui na Índia, para mim pessoalmente, eu não me sinto como uma tibetana, eu não sinto que o Tibete seja o meu país; mas também não me sinto indiana. Pois mesmo que eu tenha nascido aqui, nós somos apenas turistas. Do fundo do meu coração, estou me abrindo com você, esse é o nosso maior problema. Sim, o governo indiano tem sido muito bom para nós, mas eles têm os problemas deles, isso é muito óbvio, e nós não temos a nossa própria identidade, nós não nos sentimos em casa; esse é o meu maior sofrimento. ‘Quem somos nós?’, ‘Quem sou eu?’, essas são as perguntas que eu mais me faço, nós não temos essa identidade.”



Demton Khang Photographic Archive


Crianรงas tibetanas com uniformes chineses, aproximadamente 1980



“Para mim foi especialmente difícil cruzar a fronteira, porque uma das minhas pernas não funciona direito. Quando eu era criança eu fiquei doente, então meus pais me levaram ao médico pra ver o que eu tinha; o médico, que era chinês, me deu uma injeção na perna, não sei se ele fez de propósito ou não, mas desde esse dia a minha perna direita não funciona mais tão bem.”


“Na minha vila eu vi uma menina de 14 anos ser obrigada a matar seu pai, pois a polícia disse que ele era um anti-revolucionário. Eu nunca vou me esquecer a expressão de desespero no rosto da menina. Ainda lembro dessa cena toda noite antes de dormir, e acho que vou continuar lembrando até o dia que eu morrer.”






“Eu sou chinesa e vim para Dharamsala há dois anos. Você quer saber porque eu vim pra Índia? Por causa do dalai-lama, lógico! O dalai-lama é um homem bom, com um coração muito, muito grande, mas o governo chinês não gosta dele. A primeira vez que eu vi o dalai-lama eu chorei, e eu não sabia porque eu estava chorando, ele não havia falado nada, ele só ficou sentado, sorrindo. Mas hoje eu entendo que eu chorei porque muitas pessoas sentem toda essa bondade e choram só de olhar para ele. O governo chinês fez muitas coisas ruins ao dalai-lama. Antes de eu vir para cá, quando eu estava na China, eu escutava as notícias chinesas, e eles diziam as piores coisas sobre o dalai-lama, então o país inteiro acha que ele é um homem ruim. Os chineses não entendem, porque o governo não mostra para o povo a verdade. As notícias que eles ouvem são só as de emissoras chinesas, a internet é bloqueada. Eu fui para o Tibete três anos atrás para ensinar chinês e aprender mais sobre o budismo, e eu fui para lá achando que o dalai-lama era uma pessoa ruim, mas quando eu cheguei lá, as pessoas viviam falando sobre ele, dizendo o quanto ele era bom, o quanto o coração dele era grande. Um dia um dos meus alunos me disse ‘Professora, o dalai-lama é uma pessoa boa’ e eu estranhei, e perguntei se ele realmente achava isso, foi aí que eu comecei a entender. Mas eu sou chinesa, e eu gosto da China. Temos muitas coisas ruins mas eu gosto de lá.”


“Meu pai saiu um dia para protestar e nunca mais voltou. A gente esperou por dias ele voltar mas a cada dia que passava a nossa esperança ficava menor. Até que um dia um amigo dele nos contou que os chineses o haviam matado. Depois disso a minha mãe ficou tão triste que não falava mais com ninguém, eu e meus irmãos tivemos que tomar conta da casa pois ela não saia da cama. Ela ficou melhor com o passar do tempo, mas ela nunca mais falou sobre o meu pai, nunca mais mencionou seu nome. Não porque ela havia se esquecido dele, mas eu acho que ela não queria encarar o fato de que ele não estava mais conosco, e que não voltaria mais.”





“No começo era muito difícil. Se mudar para um novo país não é uma tarefa fácil. Se mudar para um novo país sabendo que você nunca mais vai poder voltar para casa ou ver seus familiares ou seus amigos é ainda mais difícil. Mas com o tempo você se acostuma, a gente formou uma nova família aqui, todos nós enfrentamos os mesmos problemas e todos nós sabemos o que é ter que fugir do seu próprio país, que você ama, porque ele foi invadido. É bom ter gente do seu lado que passou pelos mesmos problemas que você, parece que você não está mais tão sozinho.”



“Uma das idéias do budismo é o carma. Nessa vida, se você faz algo bom hoje, você receberá coisas boas no futuro. Se nessa vida você for bom com as pessoas, a sua próxima vida será boa. Se você pratica o mal hoje, você receberá o mal amanhã. Não devemos apressar nada, cada um terá o que merece.”




“Eu nasci na China mas moro aqui em Dharamsala. Eu já sou velha, tenho 47 anos. Mas o meu coração é novo. Meus pais já morreram; quando eu era mais nova meu pai e a minha mãe me deram em casamento, eles me apresentaram pra um menino, eu tinha 23 anos nessa época e ele 24. Mas eu realmente não queria me casar, eu não gostava dele, eu falava isso para os meus pais, mas a minha mãe sempre respondia: ‘vai ser bom para você’ então eu tive que aceitar. Não queria, não gostava, mas disse ‘ok’. Depois de dois anos eu falei de novo ‘Pai, mãe, eu realmente não quero continuar casada, talvez vocês não me aceitem mais, mas eu quero me separar, eu quero me converter ao budismo’. Meus pais me falaram ‘Se você virar monja, nós não vamos mais te considerar nossa filha’, mas a minha vontade de me separar foi maior. Desde que eu sai da China e me converti ao budismo a minha vida mudou. O budismo e os tibetanos me ensinaram muitas coisas, e hoje eu preciso de menos do que eu precisava antigamente para ser feliz. Aqui ninguém me trata mal por eu ser chinesa, eles sabem que não são todos os chineses que concordam com a ocupação. E os que concordam é porque eles provavelmente não conhecem a verdade. Pelo menos é nisso que eu preciso acreditar.”





“Achar um guia para te levar até o Nepal não é uma tarefa fácil. Existem guias que fazem acordos com a polícia. Eles recebem dinheiro dos tibetanos que pagaram para atravessar a fronteira e entregam os refugiados para os policiais. Os policiais também pagam os guias por esse acordo e eles acabam ganhando o dobro do dinheiro.”



“O mais inacreditável é que por mais que isso tudo isso esteja acontecendo no Tibete, nós não somos pessoas irritadas, rancorosas. Acho que você consegue perceber isso, não? O dalai-lama nos ensina a compaixão. O Tibete é um país budista, então nós aprendemos a respeitar e a amar o próximo, apesar do que ele tenha feito conosco; essa é uma tradição nossa, isso é quem nós somos. Quer dizer, é claro que nós estamos furiosos, não estou dizendo que não, mas guerra e violência são coisas que nós simplesmente não fazemos; é algo cultural.”


AUTO-I MO L AÇÕ ES

A idéia de pegar em armas e enfrentar os chineses não se adequa à cultura tibetana. O Tibete sempre foi conhecido por ser um país pacífico e, fazer mal ao próximo, mesmo que merecido, simplesmente não é uma opção para a maioria deles. Uma das formas que os tibetanos encontraram de chamar a atenção do resto do mundo para a sua causa foram as auto-imolações. Desde 2009, mais de 140 pessoas se suicidaram ateando fogo em seus próprios corpos, dentro e fora do país, como forma de protesto contra a ocupação chinesa. Tibetanos, em sua maioria jovens e saudáveis, se encharcam com líquidos in-

flamáveis e gritam frases de apoio ao Tibete enquanto as chamas os consomem. Os chineses vêm as auto-imolações como um crime anti-revolucionário e suas famílias e pessoas que tenham assistido ou encorajado a ação são punidas. O restante do corpo do protestante é cremado para que não seja possível realizar um funeral tradicional e amigos dos familiares são ameaçados caso ofereçam ajuda à família. Já aconteceram casos em que os chineses chegam a tempo de impedir que a pessoa morra, então ela vai presa ou simplesmente desaparece, como já aconteceram muitas vezes.

“Nós somos um povo com uma cultura e tradição espiritual únicas. Nós temos compaixão e tratamos os outros com respeito. Entretanto, depois da ocupação chinesa, nós estamos sofrendo sem nossos direitos básicos. É por esse motivo, para que a paz prevaleça no mundo, que nós oferecemos nossas vidas e nos queimamos vivos. O sofrimento dos tibetanos sem direitos básicos é muito pior que o sofrimento que sentimos ao atear fogo em nossos corpos.” - Últimas palavras de Sonam, 24 anos


AP Photo/Manish





“Em 2012 na minha cidade um homem se auto-imolou; por causa disso houve um enorme protesto contra os chineses e todos os protestantes foram presos. O meu cunhado era um desses protestantes e ele ficou preso por dois anos. Ele me contou que dentro da prisão ele não comia direito, e que ele era espancado e torturado; sempre que iam machucar ele os torturadores cobriam os rostos.”



“Meu avô era tibetano, então...


...eu cresci ouvindo as histórias dele sobre o Tibete, foi ele que me trouxe essa conexão com o meu país, pois meus pais nasceram aqui. Ele era nômade; e eu acho que se você perguntar para as pessoas a primeira coisa que vem na cabeça quando elas pensam no Tibete, com certeza a maioria delas vai dizer algo relacionado à natureza, como campo, neve ou montanhas. E isso é porque nós crescemos com essas histórias. Meu avô sempre me contava historias da vida de nômade, da alegria de estar sempre indo de um lugar ao outro, dependendo das estações do ano e do clima. Ele sempre dizia ‘Quando se é um nômade, você é dono de si mesmo, não tem ninguém acima de você pra te dizer o que você deve fazer, você come o que a natureza te dá, e você não depende de ninguém’. Ele me contava que andava a cavalo por horas nos campos. Mas ele sempre terminava suas histórias dizendo ‘então os chineses chegaram’. O sonho dele sempre foi voltar ao Tibete, mas ele morreu cinco anos atrás, e ele nunca teve a chance de voltar ao seu país. Sua morte foi um grande tapa na cara pra mim, pois eu tenho certeza que, como ele, existem outros milhares de outros avós que ainda estão esperando pelo dia de voltarem ao Tibete. Quando nascemos em um país livre nós não damos valor às coisas, nós deveríamos ter mais responsabilidade em fazer algo, em ajudar os outros de alguma maneira.”




“Em 2012, depois de 12 anos de ter fugido, eu voltei ao Tibete para visitar a minha família, isso me deixou muito feliz. A vida no Tibete, principalmente se você mora em Lhasa, é muito tensa, você está sempre apreensivo. Há muita fiscalização, você precisa mostrar seus documentos toda hora, e os policiais estão sempre revistando todo mundo, a cada 100 passos você passa por uma fiscalização nova. Isso é tão estressante, tão estressante. Quando eu vim do Tibete pela primeira vez o clima não era tão tenso assim, eu pude facilmente ver a diferença da época que eu morava lá e da época que eu fui visitar. Tudo piorou depois de 2008 e depois de todas as auto-imolações que aconteceram lá; mas eu estou apenas contando o que eu vi. Cada dia é diferente e cada lugar é diferente. Tudo depende do que você faz e de como você vê as coisas. Se você faz qualquer coisa que seja levemente provocativa, em termos de liberdade de expressão sobre a independência tibetana ou em relação à verdade sobre o nosso passado, então a história muda. Se você não faz nenhuma dessas coisas, então você está bem, você pode continuar com o seu dia-a-dia. Também tem o problema dos programas re-educacionais nos monastérios. Muitos oficiais chineses ficam nos monastérios, e te obrigam a ir para as aulas de leitura, onde eles lêem esses livros enormes sobre quão bom o partido comunista é, sobre quão gratos os cidadãos chineses são por eles, sobre como nós devemos respeitá-los, dizendo que sem o governo comunista teríamos mais problemas, esse tipo de coisa. Mas ninguém acredita nisso, e provavelmente o governo também sabe que ninguém acredita, mas eles continuam fazendo mesmo assim. E o medo é real, ele está sempre lá; mesmo que você esteja em situações legais, quando você volta para lá você percebe o


quão pequeno você é, quão vulnerável você é, você não é nada. Se você desaparecer, não há ninguém que possa te ajudar, você sente isso. Esse medo está sempre com você. Quero dizer, se você não tem sorte, e se alguém do governo pensa que você possa ser uma ameaça para o que eles chamam de estabilidade social, então você está encrencado. Depende totalmente da percepção deles, não tem nada a ver com a lei, nada a ver com o que você faz. Você fica tão vulnerável, você está nas mãos deles; se eles não estão felizes, se eles não estão de bom humor, eles podem acabar com você a qualquer momento. Esse não é um bom sentimento, não é? Não tem problema falar com os seus familiares sobre esses assuntos, com seus irmãos e com seus pais, com as pessoas que você confia, você pode falar sobre o que quiser; mas ao mesmo tempo, fora desse pequeno círculo você tem que ser muito cuidadoso, você tem que estar sempre tomando cuidado com o que você vai dizer, você está sempre pensando ‘Isso está certo?’, ‘Posso dizer isso aqui?’, subconscientemente você está sempre se controlando, e isso é tão exaustivo, tudo o que você diz você tem que parar para pensar antes. Nós, como tibetanos, estamos enfrentando muitos desafios, nós estamos perdendo a luta, e junto com isso estamos perdendo a nossa identidade. Não é que você não possa aprender tibetano dentro do Tibete, se você quiser, você pode aprender tibetano, mas você não pode ter outras matérias em tibetano, e isso está sentenciando o nosso idioma à morte. Os chineses não chamam o que eles fazem de invasão, eles tem outro nome para isso, eles chamam de liberação, o que é um absurdo.”



Demton Khang Photographic Archive


Tibetanos observam tanque de guerra dentro do Tibete


“Eu vim em 1959 com o dalai-lama, muitos tibetanos vieram pra Índia nessa época. O meu marido morreu alguns dias antes de eu vir. Meus pais morreram quando eu era pequena, mas eles nunca cuidaram de mim, eu conseguia facilmente perceber que eles não se importavam comigo. Hoje eu moro nesse asilo, mas eu fico muito sozinha, muito entediada, então todo dia eu limpo ele inteiro.”




“A medicina tibetana é completamente natural, é muito vasta e complicada. Os tibetanos sempre tiveram uma mente muito aberta, nós sempre tentamos trazer muito conhecimento de outros países, o que fez a nossa medicina ser muito completa. Com a invasão chinesa no meu país, muitos estudos importantes foram queimados, e hoje em dia existem muitas restrições; não podemos praticar a nossa medicina livremente. Mas eu acredito que o aspecto mais importante foi na educação; após a invasão nós tivemos que começar a estudar apenas os princípios medicinais chineses, então a medicina tibetana foi sendo deixada para trás. Os chineses são mais focados no tratamento físico, e não tanto nos aspectos mentais. A medicina tibetana é boa para tudo, desde cuidados comuns até para o tratamento de câncer. A pior parte da medicina ocidental são os efeitos colaterais.”



“Eu vim pra Índia com os meus pais em 1959, um mês depois do dalai-lama vir. Eu tinha seis anos. Eu não me lembro muito do Tibete, eu era muito novo, mas eu me lembro que quando eu cheguei na Índia era inverno, e haviam muitas famílias vindo conosco. Nós tivemos que caminhar durante a noite. Eu me lembro de um dia estar dentro de uma caverna, e nossos pais saiam de vez em quando para conferir se o caminho estava livre para que continuássemos andando; então quando eles viram que estava livre e que podíamos seguir em frente, nós fomos, e na manhã seguinte nós chegamos na fronteira. Eu também me lembro que estava frio, muito frio. Quando cruzamos a fronteira, tivemos que andar por mais uma semana pra chegar na Índia. E era perigoso também, muito perigoso. Nós tivemos que andar por florestas muito fechadas, com vários animais selvagens, e haviam muitas crianças no nosso grupo.”


Demton Khang Photographic Archive


Refugiados recĂŠm chegados, aproximadamente 1960


“Eu era monja no Tibete, e em 2008 eu e outras 52 monjas fomos às ruas protestar. Me prenderam por quatro meses. Eu sofri muito na prisão, tenho cicatrizes no meu corpo inteiro. Eles costumavam tirar toda a minha roupa e me bater por tanto tempo. Mas quando eu fui protestar naquele dia, eu já sabia que isso iria acontecer, já sabia que eu seria presa e torturada; então, enquanto eles me batiam eu só conseguia pensar ‘Eu fiz isso pelo meu país, eu fiz isso pelo dalai-lama, eu sabia que isso ia acontecer’ e isso me confortava. Durante as torturas eles me perguntavam ‘Por que você estava protestando?’ ‘Por que você gosta do dalai-lama? Ele não fez nada por esse país!’. Eu conheci meu marido depois que eu fui solta, éramos vizinhos e eu comecei a trabalhar nos negócios da família dele. Era muito difícil viver no Tibete, especialmente se você já foi uma prisioneira política, o exército chinês tem que saber de tudo o que você faz o tempo todo. Eu já estava querendo fugir de lá há um tempo, mas aí eu fiquei grávida. Depois que nosso filho nasceu nós fugimos. Nós tivemos que deixar nosso bebê de dois meses com a minha mãe. Dois meses e 19 dias. O fato de termos um filho facilitou a nossa autorização para viajar para outras cidades, os chineses viram nosso filho como uma garantia de que não fugiríamos. Dissemos que teríamos que viajar por dentro do Tibete a trabalho e com a autorização nós fomos de carro até uma cidade perto da fronteira. Levamos alguns dias para cruzar a fronteira, e chegamos ao Nepal 21 dias atrás. Nós estamos felizes aqui, não temos medo o tempo todo, mas sentimos muita falta do nosso filho, não sabemos se vamos vê-lo de novo, mas temos que ter fé.”




“Meus pais são refugiados e eu nasci aqui na Índia, mas eu me sinto como se fosse tibetana, todos os meus amigos são tibetanos, todos nós falamos tibetano, eu nem falo hindi tão bem. Eu estudei aqui em uma escola tibetana, e nós conseguimos facilmente ver como as crianças que haviam nascido no Tibete davam mais valor à educação do que nós, que havíamos nascido aqui. Eles sabem o que é a vida sem educação, então eles têm muita vontade de aprender, eles chegavam na escola uma hora mais cedo para poderem estudar antes das aulas começarem, e eles passavam todas as tardes na escola estudando. Nós que nascemos aqui na Índia não damos tanto valor às coisas, pois não conhecemos a vida sem essas coisas. Eu acredito que um dos nossos erros como uma nação foi nos isolarmos do resto do mundo; então quando a invasão aconteceu, ninguém deu a mínima. O que está acontecendo no Tibete hoje, é o que aconteceu na América séculos atrás, estamos sendo colonizados; e os chineses têm coragem de dizer que estão nos fazendo um favor.”





“Já se passaram mais de sete décadas desde que os chineses chegaram no Tibete. Mais de 70 anos de roubos, torturas, prisões, assassinatos. E a situação só piora ao longo dos anos.”


“Eu fugi do Tibete em um grupo do qual eu conhecia apenas três pessoas. No último dia faltava só uma montanha para que chegássemos ao Nepal, mas logo após essa montanha tinha uma estação policial. E os meus únicos três amigos foram pegos. Depois que eu perdi os meus amigos, eu comecei a me sentir muito sozinho e comecei a achar que eu deveria voltar ao Tibete. Eu não sei o que aconteceu com eles, nunca mais nos falamos, mas já ouvi falar que quando pessoas são pegas na fronteira, a polícia manda eles para campos de trabalho. E esses meus amigos já estavam muito doentes, quase não conseguiam mais andar de tão fracos; os pés deles estavam literalmente congelando. Então nós tivemos que deixar eles para trás se não todos nós seriamos pegos. Era muito perigoso viver dentro do Tibete. Eu nasci na parte ocidental e o governo chinês estava construindo estradas no país inteiro, eles também construíram escolas, mas somente escolas chinesas, para que eles pudessem fazer lavagem cerebral nas pessoas, e extinguir a nossa cultura cada vez mais. Nós costumamos dizer que os chineses são como dente de elefante, sabe? Porque os elefantes têm dentes muito bonitos, mas por dentro eles são sujos. E a política chinesa é assim. Eles mostram só as coisas boas pro resto do mundo; por exemplo, se o presidente de algum outro país quer ir conhecer o Tibete, mostram pra ele somente o lado positivo do país, eles fazem um teatrinho pra ele, desse modo não é possível ver a realidade, que mostra as pessoas morrendo de fome, sendo torturadas e assassinadas. Você não pode confiar em ninguém lá dentro, muitos policiais chineses se infiltram no dia-a-dia dos tibetanos, eles colocam câmeras dentro dos monastérios, para que eles possam ver com quem e sobre o que os monges conversam. Eles também têm acesso às redes sociais das pessoas, então eles controlam tudo e todos dentro do Tibete. Mas tem algo que eles não podem controlar, e isso é a mente de cada um.”






“Você já disse adeus para alguém sabendo que seria para sempre?”



“Eu vim pra Índia em 1957, dois anos antes do dalai-lama fugir para cá. Vim fazer uma peregrinação e fiquei aqui por dois anos, então, quando o dalai-lama chegou na Índia como refugiado, eu já estava aqui, mas não como fugitiva, a minha intenção era voltar ao Tibete. Em 1959 eu segui o dalai-lama até a cidade de Varanasi, e quando chegamos lá ele nos disse ‘A situação no Tibete está muito instável, não é uma boa ideia voltar para lá agora, esperem de um a dois anos aqui na Índia, até a situação melhorar.’ Mas, como você já sabe, isso nunca aconteceu, a situação no Tibete só piorou com o passar do tempo, então eu fiquei presa aqui e nunca pude voltar. Já estou há 58 anos aqui, isso tudo já faz tanto tempo que eu nem tenho mais ninguém esperando por mim no Tibete.”



“Nos anos 87, 88 e 89 houve enormes protestos no Tibete, eu participei e por sorte não fui pego pelos policiais, pois esses protestos eram muito grandes para que eles conseguissem punir todo mundo de uma só vez. Mas de pouco em pouco, depois que os protestos terminaram, eles começaram a ir de casa em casa interrogando as pessoas, então eles foram descobrindo quem havia participado e estavam pegando um por um. Eles já tinham o meu nome, então era só uma questão de tempo até eles me encontrarem; todas as pessoas que me conheciam me falavam que eu deveria fugir o mais rápido possível, pois não era um risco somente para mim, mas para a minha família também, e por isso eu tive que vir. Vim em 1993 pra Índia, éramos somente eu e um amigo no começo, fomos um dia comprar as roupas e o restante das coisas que precisaríamos e conhecemos dois outros homens que se juntaram a nós. Nós não conseguimos contratar um guia, isso não é algo que você pode perguntar abertamente às pessoas onde encontrar, então decidimos ir sozinhos, íamos atravessar a fronteira direto pela Índia, e não pelo Nepal. Da nossa vila até à cidade que fica perto da fronteira levamos cerca de 20 dias, e planejamos que íamos demorar mais uns quatro ou cinco dias para cruzar a fronteira, então no 21o dia nós subimos uma montanha, mas quando estávamos lá em cima começou uma enorme nevasca que bloqueou tudo, nós conseguimos continuar andando mas muito mais devagar do que o planejado, e a nevasca não parou por mais quatro dias. Então, no 25o dia nós conhecemos alguns nômades que dividiram suas comidas e camas conosco; eles eram tibetanos mas sua casa era logo após a fronteira. Agora é onde começa a parte ruim da historia, foi nessa noite que nós quatro paramos de sentir nossas pernas, não conseguía-


mos mais nem ficar em pé, foi desesperador. Então, como aquela era uma área militar, chamamos o exército indiano. Os soldados chegaram à casa e nos levaram ao acampamento deles, tiveram que nos levar em cima de iaques pois não conseguíamos nos mexer. No acampamento eles nos deram comida e remédios, para que melhorássemos. No dia seguinte fomos levados de helicóptero a outro acampamento, esse com uma estrutura melhor e alguns médicos, depois disso fomos levados a um hospital de verdade. Mas a nossa condição estava muito ruim e após 17 dias eles tiveram que nos levar a um outro hospital, com instalações melhores, e nós ficamos nesse hospital por sete meses; nesse meio tempo o exército que estava tomando conta de nós, e eles haviam sido muito bons conosco, mas havia sempre pelo menos dois policiais com a gente o tempo todo. Assim que melhoramos um pouco, eles tiveram que nos entregar à polícia, porque apesar de tudo, continuávamos sendo refugiados. Então os policiais começaram a nos interrogar, até esse ponto nós não estávamos em condições nem de falar, eles nos perguntavam coisas como ‘Por que vocês cruzaram a fronteira?’ e ‘De onde vocês estão vindo?’. No hospital eles tiveram que amputar uma das minhas pernas, as duas pernas do meu amigo, e os dedos dos dois outros homens que estavam conosco, e depois eles nos prenderam. Nós ficamos oito meses na prisão indiana, pois não tínhamos nenhum documento ou visto. Oito meses se passaram e eles nos disseram que seríamos levados de volta ao Tibete. Nós não podíamos acreditar que isso estava acontecendo, havíamos passado por tanta coisa, não podíamos voltar, então eles decidiram mandar de volta apenas dois de nós, um deles foi o meu amigo que já havia perdido ambas as pernas, eu nunca vou saber porque eu não fui escolhido.


Eu tinha 19 anos quando decidi fugir de lá; eu era casado no Tibete e tinha uma filha, mas eu tive que deixá-las para trás. Hoje a minha filha está na escola, mas quando eu fugi de lá ela tinha apenas um dia, eu esperei ela nascer para que eu a pudesse ver antes de fugir, nunca mais nos vimos desde então. Eu ainda falo com a minha ex-mulher e com a minha filha as vezes. Quando eu fugi, a minha mulher estava esperando que a situação no Tibete fosse melhorar e que eu pudesse voltar, ela esperou cinco anos por mim, mas depois ela se casou de novo, e eles estão bem hoje em dia, eu ainda me preocupo com elas e ainda sinto a falta delas, mesmo depois de tantos anos.”





“Os meus filhos estão na idade de começar a fazer perguntas. Eles nasceram aqui na Índia, mas eles ouvem as pessoas falando sobre o Tibete. Eu sempre tento explicar a situação, mas eu não acho que eles entendam, porque eles continuam perguntando”



“Eu vim pra Índia em 1959, no mesmo ano que o dalai-lama, todos os meus filhos nasceram aqui. Eles tiveram a oportunidade de estudar e hoje nós moramos em um país livre, perto do dalai-lama. Sou muito feliz aqui.”


“Alguns anos atrás um homem fugiu do Tibete e trouxe sacos de areia de lá para cá. Ele chegou aqui, jogou a areia no chão e deixou todos andarem em cima, as pessoas ficaram tão felizes, os mais velhos até choraram, eles nunca pensaram que iriam pisar em terra tibetana novamente, e esse foi o jeito que eles encontraram de fazer isso.”




“Nosso filho foi preso. Dezoito meses depois nos disseram que ele morreu de um ataque do coração, mas eu sei que não foi isso que aconteceu. Nunca me deixaram ver o corpo dele. Me desculpa, posso parar? Eu acho que não consigo fazer isso.”




“A Tibetan Women’s Association (Associação das Mulheres Tibetanas) foi criada para ajudar mulheres tibetanas vivendo no exílio, nós as ajudamos para que depois elas consigam se virar por conta própria, é um modo de empoderá-las. As mulheres que nós ajudamos aqui, elas são muito sozinhas, grande parte delas não tem família nem amigos. Nós normalmente não vemos mulheres no poder, então primeiro devemos dar as oportunidades para elas. Nessa organização também só trabalham mulheres, e nós cuidamos de tantos projetos grandes, isso nos mostra que podemos fazer o que quisermos, e temos que mostrar isso para o mundo inteiro.”




“Faz dez anos que eu vim pra Índia, eu vim com a minha mãe e a minha irmã. Foi muito difícil chegar aqui, pois nós tivemos que andar na neve subindo e descendo montanhas por dois meses, sempre durante a noite para os guardas não nos verem, e durante os dias a gente descansava. A minha mãe foi muito corajosa, porque eu tinha só dez anos na época, e a minha irmã tinha só dois anos, então a minha mãe veio o caminho inteiro carregando ela no colo, e quando ela ficava muito cansada eu tinha que ajudar a carregar também. As vezes a gente chegava a passar dias sem água e sem comida. Mas aqui nós somos livres e podemos estudar; além das matérias da escola eu também faço aula de inglês e de francês, então valeu a pena. Ano passado eu fiquei muito doente e tive que deixar a escola, tive que ser operada e fiquei com muito medo, mas eu estou bem hoje. Eu não me lembro muito do Tibete, eu me lembro que havia muita natureza e muitos animais em todo lugar, e toda a comida que nós comíamos era natural; aqui a comida tem muita química e não faz bem pro corpo; talvez tenha sido isso que me deixou doente ano passado.”



“Eu vim pra Índia aos 16 anos com um grupo de 28 pessoas e um guia, levamos 36 dias para chegar ao Nepal. No caminho, duas pessoas do meu grupo sumiram e uma morreu. Nós tínhamos que andar somente durante a noite, e durante o dia tínhamos que encontrar algum lugar para nos esconder e dormir. Passamos por muitas vilas durante o caminho, mas muitas pessoas dessas vilas são pagas pelo governo para nos entregarem caso eles vejam refugiados, pessoas do nosso próprio país! Então temos que ser muito cuidadosos. Também temos que carregar muitas coisas nas nossas mochilas, no meu grupo haviam sete crianças, todas com menos de dez anos, e as mochilas eram muito pesadas para eles carregarem, então tínhamos que levá-las para eles também. Quando estávamos perto da fronteira, o guia nos disse ‘Essa é a nossa última noite antes de cruzar, vamos ter que andar muito hoje, e temos que chegar ao outro lado antes que o sol nasça, se não os guardas vão nos ver; nós não vamos poder parar por um bom tempo, será muito difícil’. Então começamos a andar rápido, e depois de um tempo começamos a ficar muito cansados; uma hora achamos um lugar com umas poças no chão, então paramos para beber um pouco de água. Não levamos mais de um minuto, mas nossos olhos já estavam se fechando sozinhos, de tanto cansaço, eu quase peguei no sono. As quatro da manhã o guia parou para fazer a contagem do grupo, e uma pessoa havia desaparecido, então nós pensamos que talvez ele tivesse pegado no sono na hora que paramos para beber água nas poças. Não sabíamos o que fazer, algumas pessoas sugeriram que voltássemos para achar o homem, e outras pessoas queriam seguir em frente, pois poderíamos todos sermos presos por causa de uma pessoa. Então um dos amigos des-


se homem disse que voltaria para tentar encontrá-lo, o guia lhe deu toda a informação necessária para que ele conseguisse nos encontrar novamente depois, e nós continuamos andando. Nunca mais vimos esses dois homens. O guia havia nos dito que ele conhecia uma família nepalesa que morava logo após a fronteira, e que poderia nos acomodar por alguns dias se chegássemos lá a tempo. Então começamos a andar rápido para chegar nesse lugar; os homens e as crianças eram rápidos, mas nessa noite uma mulher do nosso grupo ficou muito doente e estava muito fraca para conseguir nos acompanhar, então três homens se juntaram a ela para acompanhá-la mais devagar. Nós não conseguimos chegar na casa a tempo e tivemos que encontrar um bom lugar para nos esconder, montar acampamento e dormir, descansamos por um tempo, depois continuamos andando e chegamos à casa da familia. Foi tão aliviante chegar naquela casa, havia muita comida e várias camas para nós. No dia seguinte, um dos homens que ficou para trás com a moça chegou na casa sozinho, ele disse que um dos outros homens tinha ficado muito doente, e eles tiveram que ficar para trás, então nós tínhamos que voltar e encontrá-los. Formamos um grupo de oito pessoas, pegamos nossos pertences e comida e fomos procurá-los. No caminho de volta vimos a mulher e apenas um dos homens vindo na nossa direção, e o que estava doente estava sentado atrás deles, então o pegamos e começamos a andar em direção à casa, tivemos que revezar quem o carregaria nas costas, mas após alguns quilômetros ele começou a vomitar, fechou os olhos e morreu. Eu tinha apenas 16 anos na época e não podia acreditar que estava vendo uma pessoa morrer na minha frente, eu estava com tanto medo. O guia também estava chorando, porque ele conhecia esse homem desde antes da trajetória. Então o enterramos e fizemos algumas preces, ele deveria ter uns 29, 30 anos.


Eu vim pra Índia porque quis, quando eu estava no Tibete eu era um mau elemento. Eu bebia muito, fumava, brigava, roubava. Eu fazia parte de uma gangue, a minha vida não estava boa. O meu irmão tinha um amigo indiano que estava trabalhando como guia turístico em Lhasa, e ele era muito inteligente, ele falava hindi, tibetano, inglês e chinês, talvez até mais línguas, e eu fiquei muito impressionado com isso, eu o admirava muito, decidi que também queria ser guia turístico. Quando cheguei aqui, eu aprendi inglês, hindi e agora eu sou um guia turístico como sempre quis. A minha família está financeiramente bem no Tibete, eles têm alguns negócios lá e estão sempre me mandando dinheiro; mas eu não me sinto bem de ser o único que conseguiu fugir do Tibete, e ter que continuar dependendo deles. Eu quero voltar para lá e ajudá-los nos negócios, e eles também querem que eu volte. Mas eu não posso voltar, não é fácil assim.”





“Mesmo depois de todos esses anos eu ainda sinto falta de casa. Mas eu tenho que lembrar que o Tibete de hoje não é mais o meu Tibete.”


“Tulku Tenzin Delek foi um prisioneiro político no Tibete, ele construiu uma escola na minha cidade e eu estudava lá, mas os chineses destruiram a minha escola e a transformaram num matadouro. Depois disso, eles construíram uma escola chinesa e disseram que todas as crianças tinham que estudar lá, se não seus pais seriam presos; o meu pai ficou três dias na prisão por causa disso, então eu fui obrigado a me matricular nessa escola. Mas era muito cara, a minha familia não podia pagar tanto, e por isso eu tive que fugir do Tibete. Eu morava em uma cidade muito pequena, e as pessoas de lá não conhecem nada do mundo além da cidade que a gente morava, eles não sabem o que está acontecendo no Tibete, os chineses dizem que eles os estão protegendo e educando, e que eles estão dando ao povo tibetano o que nós precisamos. Eles acham que os chineses os estão ajudando, as pessoas realmente acreditam nisso. Mas quando eu cheguei aqui eu percebi que os chineses não são nem um pouco bons, eles não querem o bem dos tibetanos. Eu sou feliz aqui, porque estou perto do dalai-lama e estou aprendendo muitas coisas novas, aqui eu tenho direitos.”



“Nós já vimos a morte muito de perto.”



“As pessoas estão sempre brigando pelas religiões e pelo poder, mas nós somos todos seres humanos, somos todos uma grande família, devemos sempre ajudar uns aos outros e estar em paz.”






“Eu consegui vir para o Tibete depois de três tentativas que não deram certo. Na primeira vez estávamos em um grupo de 30 pessoas, fomos todos pegos e nos colocaram na prisão por um mês, todas as 30 pessoas na mesma cela. Eu tinha apenas 11 anos, mas os chineses não ligam para a sua idade. Eu era muito novo quando morava no Tibete então não entendia muito a situação, eu apenas lembro de estar sempre com medo. Eu tremia sempre que via um policial por exemplo; policiais deveriam nos passar segurança, mas eu ficava aterrorizado cada vez que via um.”


“Eu vim pra Índia em 1988, quando eu tinha 24 anos. O maior motivo de eu ter vindo foi o dalai-lama, eu coloquei na minha cabeça que eu ia vê-lo, e decidi vir. A minha família era composta por mim, a minha mãe e mais nove irmãos, eu sou a única que está fora do Tibete, e não vejo a minha mãe há mais de 20 anos. Eu gosto de viver aqui mas sinto falta da minha família, infelizmente não há nada que eu possa fazer a respeito.”



“A minha professora foi presa quando eu era pequeno. Ela foi sentenciada a três anos por ter nos ensinado o hino nacional do Tibete em uma aula.”




“Se eu pudesse falar com todos os tibetanos que ainda estão no Tibete eu diria: Não desistam, sejam fortes. Vocês são mais fortes do que pensam que são.”




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parte deste livro poderá ser reproduzida por

meios eletrônicos, incluindo bancos de dados

ou sistemas de armazenamento de informação, sem a autorização escrita da autora.

Areias, Amanda

Retratos de Resistência / Fotos por Amanda

Areias ; Design por Amanda Areias ; Introdução

por Amanda Areias - São Paulo, 2016 Relatos de vários autores.

Reportagem, fotografia, edição, diagramação e fechamento: Amanda Areias



“Você já disse adeus para alguém sabendo que seria para sempre?”


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