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C AI OM O E RE N S DÁ D V E E 16 L P AN AR O A S
O PASQUIM N.º 105 - Rio, setembro de 1970 - Cr$ 1,00 - O PASQUIM - O jornal feito por putas que fugiram de seus cafetões
TODO JORNALISTA QUE SE VENDE
É PUTA Por falar em puta: Oscarito, Pelé, Beatles e a patota toda entrevistando a Clarice Lispector
Editorial
TEM QUE ABRIR AS PERNAS! Ah, se todos vivessem a la Leila Diniz! Imagina: deita, rala, rola, rock’n roll, tchau, vai embora, sem casamento, sem anelzinho, sem padrinhos. Pra que gastar dinheiro? Escolhe o parceiro (a), paga um jantar. Mais barato, mais fácil de desapegar! Esse mimimi de gente chata, moralista, toda essa enrolação. Casamento, amor, tudo blasfêmia, no fundo, bem no fundo, lá na cabeça debaixo ou onde bate o coração e ficam os peitos, todo mundo só quer uma coisa: AQUILO MESMO! Adão e Eva adoravam uma maçã como todo bom ser humano, gostavam mesmo é da parte dark, da sacanagem. “Proibido é mais gostoso!” – eles gritaram antes de serem expulsos do Jardim. Aliás, Jardim do Éden é essa
sociedade, todos destinados a reprodução, a mocinha de família destinada ao marido. Coisa careta, tradição piegas! Viver de casinhos é mais legal, mais emocionante, porque no fundo, bem no fundo, lá na cabeça debaixo ou onde bate o coração e ficam os peitos, todo mundo só quer uma coisa: AQUILO MESMO! Sabe, todos deveriam adotar essa cultura de paz e amor, ela é bem bacaninha, com todo perdão do trocadilho. Essa história do prazer livre, liberar o corpo e não reprimir vontade parece até utopia, mas é linda, muito linda. O mundo seria tão mais feliz sem repressão! Tá com vontade? Vai lá e PÁ! Mas calma, porque até Leila Diniz tem seus pudores, a questão aqui é desejo, vontade. A diva diz:
“Dou pra todos, mas não pra qualquer um.” E é assim que tem que ser. Abrir as pernas com critério, pode até ser pouquinho, porque no fundo, bem no fundo, lá na cabeça debaixo ou onde bate o coração e ficam os peitos, todo mundo só quer uma coisa: AQUILO MESMO! E se censurarem essas ideias, meu repúdio a esse amor brega, todo quadradinho, vou gritar pra todo mundo ouvir: VÃO
PUTAS VIADOS!
DAR SUAS E SEUS
Porque até vocês sabem que no fundo, bem no fundo, lá na cabeça debaixo ou onde bate o coração e ficam os peitos, todo mundo só quer uma coisa: AQUILO MESMO!
mILLÉIA fERNANDES 2
Tarsila de Castro PUTA - Milléia Fernandes chegou da Europa e é puta; a Sérgia Cabral, por sua “vez, tem vergonha, acha que mãe de família não deve confessar isso mas eu sei é puta; a Fortunada é puta, puta declarada; a tia da namorada do Vitor é puta; a namorada do Vitor é puta; o Vitor é puta; a Mariana é puta; o William é puta; a Pantera é puta; a Pantera é puta; a Pantera é puta; o meu pauteiro é puta; ele é puta; a Flávia Rangel é puta; o Herzog é puta; a Laura é puta; o Maneco Muller é puta; a Nathalia é puta; o Fernando Jordão é puta; a Clarice Lispector, que ainda não me deu aquela entrevista, é puta; a Sérgia Cabral é puta; a Pantera é puta; os colunistas são putas; a Pantera é puta; a Amanda é puta; a Marina Gonçalves Moia, digo, a Moia é puta, a Amanda é puta e a Moia é puta; como esquecer que a Nala é tão puta como a Isabela; a Pantera, que eu ia esquecendo, é puta; falando em puta: como vai você, Henfil; Minas Gerais é um viveiro de putas; Ziraldina, por exemplo, quem pode negar? É a maior puta de Caratinga; aliás, se vocês não sabem, esse tal de Caratinga também era puta; o filho da Pantera, tão pequenino já é puta; também, o professor dêle é puta, sô; há alguém mais puta do que a Sérgia Augusta? há, a Pantera; ah, que saudades que eu tenho da puta Cláudio Abramo; ora Murilo, vai ser puta lá com a puta da Esther; você é puta; o leitor, todos os leitores, são putas; fala, putona Arlindo Rebecchi Jr.; e quem diria, hem? todos os Jornalistas são putas; Rubem Braga anda caindo de tanto ser puta. Este parágrafo é puta; a democracia é puta; êle é puta mas eu não sou louco de dizer; salve a puta mais puta de Londres, a puta da Ivana Lessa; a Pantera é puta, o Ferreira Gullar já representou o Maranhão no concurso nacional de putas; todos os componentes do velho PSD são putas; Paulo Mendes Campos é a puta mais intelectualizada que eu conheço; puta para falar a verdade, mas puta mesmo, é o Hélio Fernandes; puta é Cid Moreira; puta é a torcida do Flamengo; e a do Botafogo se existisse, puta seria; os velhinhos do Vasco são putas; o Fluminense, vocês sabem, andam de salto alto; todos os brasileiros são putas; Europa, França e Bahia - tudo puta; Ásia, África, América e Passo Fundo, tudo puta; inclusive a Pantera, tudo puta; é a maior putaria da história do mundo; que, por sinal, é puta. A única casta do mundo é a Gabi.
PROCURA-SE PUTAS ForaGIDAS
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É TRI, GENERAL! “Todos juntos vamos pra frente Brasil, BRASIL! Salve a Seleção” E não é que salvar a seleção das mãos de Saldanha deu resultado? Nossos soldadinhos de chumbo colorido – aquele verde e amarelo – voaram feito canarinho na terra da tequila. Essa foi a Copa do Mundo das inovações! Modernidade é uma finesse mesmo, finalmente pudemos ver o Brasil ao vivo e em cores, ainda com chuviscos, mas faz parte. Satélite é o que tem pra hoje! No mundial do México, as substituições foram permitidas. É claro! qual é o defensor que não pediria arrego depois do cara-a-cara com o Pelé? Outra novidade, e nesse quesito o Brasil se adaptou que foi uma beleza, foram as punições com cartões. -Saiu da linha? Toma o amarelo! - Não gostou, soldado? Qué Apanhá? Pega esse vermelho e já pra fora do jogo! (Pelo menos não teve pernas e cabeças na calçada, Waldinho) Todos os soldados andaram na linha, já que ninguém levou cartão vermelho durante todo o torneio. Mais preveniram que remediaram nessa copa, essa é a conclusão. Aliás, teve vermelho sim: o de Saldanha já nas preliminares. Jorge Zagallo dá mais confiança que Jorge Saldanha para os patrões, deve ser isso, ou talvez seja coisa de numerologia trocar o técnico que deixou o esquema montado a pouco tempo do campeonato.
Holla, que tal?? Ui,
pérola negra!
“Noventa ação, pra
milhões em frente Brasil...”
‘Rivelino sai com a bola pela a esquerda do campo, se adianta, cruza para Pelé, olha o gol! Olha o gol! Peléééé de cabeeeçaaaa’ Foi assim que os italianos começaram o pesadelo de perder a Ju Ju Rimet para o Brasil. Eles ainda empataram com um gol xoxo, bem sofrido e sem sal, mas os canarinhos fizeram por merecer a vitória. Pelé fez um gol que o juiz não deu, aí ele revoltou e deu de perder gol na frente da rede. Gerson marcou o seu e ajeitou mais um para Pelé, que deu a bola para Jairzinho chutar. Nessa hora a torcida já gritava aos prantos, o tri era nosso, não dos macarrone. E os canários queria dar é de quatro o gosto da vitória para os brasileiros, então Pelé deu para o capitão Carlos Alberto marcar o gol. Arriba Brasil! Bota o churrasco e a feijoada pra cozinhar, liga o Waldik Soriano, que eu não sou cachorro não, mas hoje é dia de dar!
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A Jules Rimet é de Carlos Alberto, graças ao Piclkes!
E aí, chicos... Vem com rastreador??
Quase que a Jules Rimet vai pra cucuia! Logo na terra da rainha, que tem fama de organizada, resolveram roubar a douradinha em 1966. A taça de 30 centímetros de altura e quase 4 Kg de puro ouro que custava cinquenta mil francos – Franco é a moeda, ok? Não confundir. – mobilizou até a Scotland Yard. Os capacetudos percorreram todo o Reino Unido e acharam o ladrão, mas sem a taça nada adiantava. Para tirar a mancha da imagem dos britânicos perante a FIFA, chegou Pickles, o cão herói. Foi só o animal dar uma farejada e pumba! A taça apareceu! Na copa do México, Carlos Alberto virou dono da Rimet e prometeu não soltá-la. Mas a chica mexicana não deve ser a única que está de olho no troféu dessa vez. Talvez seria melhor contratar o Pickles como guarda, mas teríamos que pagar em Libra Esterlina e aprender a falar inglês para ter a guarda do mascote. Bem que podiam inventar um aparelho rastreador pra taça aqui no Brasil. Não é bom que algo tão valioso perambule entre generais, digo, marginais.
Pensamentos de ouro...
É MELHOR PREVENIR DO QUE ENGRAVIDAR
DEVAGAR SE VAI LENTO!
OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS, DE TRÁS PRA FRENTE
CADA CABEÇA, UMA SENTENÇA [DE PRISÃO]
QUEM ESPERA CANSA
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EM TERRA DE CEGO, QUEM TEM UM OLHO PISCA
ATÉ PARECE QUE A TERRA PRECISA DE UM DIA... Como a moda da década passada, o primeiro Dia da Terra foi conquistado com muito protesto. Finalmente. Também pudera, a situação estava se agravando. O rio Ohio´s Cuyahoga queimou pela DÉCIMA vez em virtude dos despejos de lama e dos resíduos tóxicos que os seres humanos estão despejando nele. A natureza agradece a nossa memorável participação. Uma salva de palmas para Gaylord Nelson, o senador de Wisconsin, que foi o mentor desse dia. Poucas pessoas deram crédito a Gaylor, que foi até o presidente Kennedy no ano passado para implorar por um discurso sobre a importância do meio ambiente. Êxito. No dia 22 de Abril desse ano foi feito o primeiro Dia da Terra. É, foi um tanto quanto diferente do que as pessoas esperavam. Não foi uma celebração com bandeirinhas bonitinhas e com um caráter épico já que muitos jovens revoltados quebraram janelas de carros e muitas pessoas andaram nas ruas usando máscaras de gás. Mas, apesar disso, o Dia da Terra surpreendeu muito político que apostava no fracasso do evento. Segundo os dados fornecidos por Gaylor, o Dia da Terra foi organizado com APENAS 200 mil dólares, parece muito, mas não é. É o mínimo que se conseguiu para organizar várias passeatas e comícios que tem um valor, relativamente, alto. Agora a expectativa é outra. Como serão os próximos “Dia da Tera”? Será que as gerações futuras se mobilizarão em prol de ações contrárias à destruição ambiental? Cientistas têm pesquisado sobre um possível Aquecimento Global. Seja lá o que for isso, essa será uma pauta quente para os próximos Dia da Terra.
ATÉ LOGO - Venho por meio deste trazer más notícias. Ou boas, se analisarmos a situação pelos olhos dos donos de funerárias. Estes com certeza ficam um pouco mais felizes com cada palavra escrita nessa coluna. Mas, enfim, voltando ao lado humano da questão, estamos aqui pra nos despedir. Dizer adeus. Tchau. Volte SempreGentil Cardoso foi um dos que bateram as botas, ou melhor, as chuteiras, em 1970. Ele dá adeus à Garrincha e ao manto verde e em retorno o mundo despede-se de seus inusitados pensamentos. Deu zebra, professor. O colega jornalista Álvaro Lins também deixa esse mundo cruel. Assim como Aníbal Freire da Fonseca e Alda Garrido. Pelo jeito esse foi o ano que os membros da Academia Brasileira de Letras decidiram dar no pé. Se não bastasse Lins e Fonseca, Augusto Meyer também decidiu partir dessa para uma melhor. Ah! Não conhece Alda Garrido? Nem Augusto Meyer? Bom, certamente Café Filho será um nome conhecido. O ex presidente do nosso país faleceu esse ano, acompanhando também Ernesto de Sousa Campos e Oscarito. Perdemos também alguns amigos estrangeiros. Jimi Hendrix e Janis Joplin permanecerão para sempre vivos nas vitrolas caseiras, mas você não terá mais a chance de encontrá-los nas ruas estadunidenses, ou num show espalhafatoso. Quem viu, viu. Quem não viu, irá apenas ouvir. OLÁ - Mas não é somente de despedidas que o ano de 1970 se resumiu. Nosso mundo foi agraciado com novas faces todos os dias e aproveitarei o espaço para dar boas vindas a alguns pequenos. Olá para Márcio Garcia Machado, Giovane Farinazzo Gávio e Fernanda Maria Young de Carvalho Machado. Todos do estado do Rio de Janeiro e com muito a oferecer, acredito. Sinto que daqui a algumas décadas estaremos relendo esses nomes nas páginas culturais. Ou talvez de esportes? Quem sabe política ou economia... Partindo para a calorosa Bahia, nasce Raimundo Ferreira Ramos Júnior. Alguns meses depois, Marcos Evangelista de Morais. Dois molequinhos danados. Isso me cheira a futebol, peladas, times, bolas rolando. Voltando aos naturais do estado do Rio, cidade maravilhosa, veio também um danado chamado Jorge Mário da Silva. Esse vai longe. Ta com cara de que tem talento e vai atravessar oceanos. Anotem minhas palavras! Mas chega de meninos! Umas gracinhas de meninas vieram ao mundo para embelezá-lo. Luciana Gimenez Morad Fragali chegou ao Brasil para arrasar, assim como Maria Luísa Mendonça. Pequenas estrelas.
UNDERGROUND POR LUIZA CARLA MACIEL
LET IT BE... E ACABOU! Meus pêsames aos Beatlemaníacos de todo o mundo. Hoje os quatro simpáticos jovens integrantes da banda The Beatles fazem o seu último concerto fora de casa, em São Francisco. John Lenon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr vão se apresentar no estádio de Candlestick Park hoje às 20h e parece que a banda não vai lá muito bem. O valor dos ingressos está a preço de banana: entre US$ 4,50 e US$ 6,50. E segundo a bíblia dos Beatles, o público estimado para a derradeira apresentação é de 25 mil pessoas. Detalhe: o estádio de Candlestick suporta 42.500 PESSOAS!!! Os motivos para o término da banda são estranhos e ainda um pouco desconhecidos. Há quem diga que a banda desandou depois da morte do empresário Brian Epstein há 3 anos. Outras línguas dizem que os meninos não estavam mais se entendendo com relação as tendências musicais. Enquanto Paul é pop, Lennon é a favor da experimentação das melodias. Mas um dos principais burburinhos sobre the end dos Beatles envolve a senhorita Yoko Ono, uma artista que John Lennon está levando para os ensaios da banda. Os outros meninos não estão gostando nada dos pitacos de Ono. BUT WAIT !!!! The Beatles acabou, mas o B(S)OM da música brasileira continua e muito bem vivo. Ainda temos o nosso rock psicodélico feito por Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias, Liminha e Dinho Leme, os famosos Mutantes, com suas letras cheias de irreverência. Eles têm o Twist and Shout, mas nós temos a Balada do Louco. Claro, é uma perda e tanto não ouvir mais a gritaria das fãs enlouquecidas com os boys da banda mas, cá entre nós, quando se tem algo tão bom quanto, a dor dói menos. Gúdi bai, mai lóve, gúdi bai...
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receituário Picadinho de carne Do Chef Médice (com legumes) Picadinho com legumes: mais cor e sabor ao sei dia a dia! Carne já é um alimento de dar água na boca, picadinha ainda, uma delícia! Ta na moda picar carne pra comer, e você não vai perder a chance de aprender com esse chefe de peso! Da pra cobrar em cubos, em pedacinhos, em lascas grandes, como quiser! Tempo de preparo: Depende da vontade do Chef. Se quiser comer sangrando, demorará meia hora. Rendimento: 8 porções, depende da fome. Dificuldade: Fácil e bem prazeroso Categoria: Carne Calorias: 390 por porção Ingredientes . 1 kg de alcatra fatiada . Sal e pimenta a gosto . 1 maço de ervas frescas (alecrim, salsa, orégano, tomilho e manjericão) . 1/4 de xícara (chá) de pimentão . 1 1/2 xícara (chá) de caldo de carne .5 cebolas cortadas em pétalas . 700 g de batata pré-cozida . 1 cenoura com casca ralada. Modo de preparo Pegue a peça de carne e fure com a tesoura para sair o sangue. Coloque no forno por 5 minutos para préaquecer. Tempere a carne com o sal, a pimenta e o óleo. Em uma assadeira, junte a carne e o maço de ervas. Regue com o azeite e o caldo. Cubra com papel alumínio e asse no forno preaquecido por uma hora ou até a carne ficar bem macia. Retire o papelalumínio, misture a cebola, a batata e a cenoura. Cubra novamente com o papel-alumínio, volte ao forno e deixe assar até os legumes ficarem macios. Sirva em seguida, regado com o óleo de pimenta. Cuidado no preparo e Bom apetite!
Paulo Francis
A PUTA PROPOSTA
O telefone toca, ele ignora. Precisa encaminhar os informativos até às 22h, não tem tempo para papear. Mas o barulho repetitivo o irrita, então se levanta em direção ao aparelho. Atende. - Boa noite é o Sr Cico Palhoça? Tenho um assunto sério a tratar que pode lhe trazer bons frutos. - Ganhei na loteria? Se não, nem venha com história. - Seriedade por favor! O Senhor foi o repórter responsável pela cobertura de hoje da sessão a tarde da câmara para os jornais Andorinha e Mesa de São Bento, não? -Confirmo. - Pois então, falo em nome do deputado Tílso Bino. Soube que o senhor suspeita de algumas fraudes a seu respeito.Venho com propostas que fortalecerão tanto a sua imagem quanto a dele............................................................... Em dez anos de profissão, Palhoça nunca tivera oportunidade tão economicamente interessante. Seis vezes seu salário anual por uma leve alteração na figura do político. Nunca havia saído da renda medíocre que sustentava às eiras e rabeiras sua pequena família. O jornalista deu um tempo para as atividades. Precisava escolher qual lado seguir. O mar que via da secada em Ipanema não servia nem como aviso. Suas águas turvas pareciam mais confusas que seus miolos, naquele momento. “Tenho até três horas. São quatro horas para a decisão da minha vida”. Palhoça desce para andar no calçadão. Sentir a areia roçar o fundo de seus dedos pode parecer estranho, mas gerou certo alívio para um homem tão tenso. Quem via aquela figura a caminhar naquele instante jurava de pés tortos que o senhor da testa enrugada tinha uma dúvida cabeluda a raspar. Ele parou para descansar no banco. Queria se livrar daquele mal-estar. Distraiu-se observando a trajetória do vendedor de sorvete na feirinha. O moço vendeu cinco picolés em dez minutos. São dez reais a mais para o bolso do homem. “Se o ritmo continuar assim, ele ganha 120 reais até as 22h. É o preço da minha matéria para o São Bento. Da matéria sem intervenções.” Começa a chover e ventar e as barraquinhas quase não se sustentam. Os turistas debandam. 30 reais é o máximo que o sorveteiro ganhará até o fim do dia. Palhoça dá meia volta, quer retornar à redação e está decidido. Será ético. Ele não se sustentaria em pé com uma chuva de mentiras sob sua responsabilidade. Ao voltar à redação, o jornalista avista uma mulher da vida. “Na rua a essa hora, com essa chuva! Só se for para se vender mesmo em”. A chuva aperta, a mulher se encolhe junto à parede. Lá os toldos ainda a protegem. De volta à escrivaninha, Palhoça escolhe o lápis e. . . . o telefone toca. - Oi Pai, você falou que a gente ia pra Buzios essas férias. É verdade? To só lembrando, porque você nunca cumpre. Sempre fala que não deu pra guardar dinheiro. Ainda tá na metade do mês, vê se dá uma apertadinha ai. Por mim e pela mãe, vai! Palhoça responde totalmente balançado. Diz que fará o que conseguir, mas não promete nada. Nem coloca o telefone no gancho, quando o aparelho já escandaliza novamente. - Olá, o senhor pensou bem? - Não topo. Quero ser ético. . (. . .) . . .Me desculpe, mas não insista. - Eu dobro a oferta. O que me diz?......................................................... No dia seguinte, a filha do jornalista foi à rodoviária garantir as férias em Búzios. Não pode deixar de notar a manchete “Tilson Bino: Nosso representante exemplar”
Jornalismo também é prostituição!
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CLARICE EXTRA! EXTRA! Depois de muita insistência da patota, finalmente conseguimos arrancar algumas palavras da misteriosa Clarice Lispector. A escritora, que não dá muitas entrevistas enfim se rendeu ao charme de nossas colunistas e resolveu abrilhantar as páginas de nosso jornal. Segue abaixo a integra do batepapo que rolou aqui na redação na última semama. Sérgia Cabrália – Desde que o PASQUIM nasceu que a gente está tentando fazer uma entrevista com a senhora. No entanto, a senhora não nos atendeu. A gente sabe que a senhora não dá muitas entrevistas. Mas, pra gente, pô, devia dar. Por que sempre fugiu?
Clarice Lispector – Não tenho rice Lispector? tempo pra mais nada, ser feliz Clarice – É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o me consome muito. bem, mas não posso dizer. SobrePantera – Mas por que esse tudo tenho medo de dizer porque negócio com O Pasquim? Por no momento em que tento falar que ele é um jornal prafrentex não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma que aponta para o futuro? Clarice – Tenho medo do que lentamente no que eu digo. é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre Sérgia - Nas raras entrevistas ter a garantia de pelo menos estar que você tem concedido surge, pensando que entendo, não sei quase que necessariamente, a pergunta de como você me entregar à desorientação. começou a escrever e quando? Flávia Rangel – Então dá a en- Clarice - Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, trevista pro Pasquim, pô. Clarice – Eu não sou tão triste por exemplo, inventei uma assim, é que hoje eu estou cansa- história que não acabava nunca. da. Com todo perdão da palavra, Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas eu sou um mistério para mim. histórias. Ziraldina – Então quem é Cla-
Milléia Fernandes – Aqui no Pasquim nos usamos vários recursos de nossa língua pátria para fazer humor. Qual a sua relação com a língua portuguesa? Clarice – Amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Milléia – Explica isso melhor.
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Clarice – Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que minha abordagem do português fosse virgem e límpida. Paula Garça – Já que tocou no assunto de escrever, esse ato representa uma realização? Clarice – Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos. Sérgia – Você já deve ter ouvido essa pergunta milhares de vezes, mas mesmo assim vou fazê-la. Como é que se escreve? Clarice – Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve? Por que, realmente, como é que se escreve? Que é que se diz? E como dizer? E como é que começa? E que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranqüilo? Sei que a resposta, por mais que intrigue, é única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever. Será que escrever não é um oficio? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que disser: sei como se escreve. Miguelita Paiva – A senhora se considera intelectual? Clarice – Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência , o que eu não faço: uso a intuição. Milléia – Todo mundo diz que para se escrever bem, é preciso ler muito. A senhora se considera uma grande leitora? Clarice – Eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obra importantes da humanidade. Além do que leio pouco: só li muito, e lia avidamente o que me caísse nas mãos, entre os treze e os quinze anos de idade. Depois passei a ler esporadicamente, sem ter a orientação de ninguém. Isto sem confessar que – dessa vez digo-o com alguma vergonha – durante anos só lia romance policial. Hoje em dia, apesar de ter muitas vezes preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do que es-
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crever. Ziraldina – Mas é disso que nós vivemos. Como pode dizer que tem preguiça de escrever? Clarice – A dificuldade de encontrar, para poder exprimir, aquilo que, no entanto, está ali, dá uma impressão de cegueira. É quando, então, se pede um café. Não que o café ajude a encontrar a palavra, mas representa um ato histérico-libertador, isto é, um ato gratuito que liberta. Carla Leona – Estou tentando falar desde o início da entrevista e não consigo. Agora já perdi a primeira pergunta. Mas vou insistir nesse negócio de escrever. Tem muita gente que diz que a senhora é louca e não dá pra entender nada dos seus textos. O que acha dessa opinião? Clarice – A loucura dos criadores é diferente da loucura dos que estão mentalmente doentes. Estes, entre outros motivos que desconheço, erraram o caminho da busca. São casos para médicos, enquanto os criadores se realizam com o próprio ato de loucura. Chica Júnia – A senhora escreve para adultos e também para crianças. No entanto há quem diga que sua escrita é hermética. Que importância dá para essa classificação? Clarice – Ganhei o troféu da criança-1967, com meu livro infantil O mistério do coelho pensante. Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando escrevo para adultos fico difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sentimentos adequados a uma criança? Não posso falar de igual para igual? Mas, oh Deus, como tudo isso tem pouca importância.
Ziraldo – Já que te classificam: como a senhora diferencia os adultos das crianças? Clarice – O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia solta. Ivana Lessa – E o processo de escrever. Como faz seus textos? Clarice – Não se faz uma frase. A frase nasce. Fortunada – Seus textos refletem sua personalidade? Clarice – Pessoas que são leitoras dos meus livros parecem ter receio de que eu, por estar escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E muitos disseram: “seja você mesma”. Um dia desses, ao ouvir um “seja você mesma”, de repente senti-me entre perplexa e desamparada. É que também de repente me vieram então perguntas terríveis: quem sou eu? Como sou? O que ser? Quem sou realmente? E eu sou? Mas as perguntas eram maiores que eu. Pantera – Eu também sempre fico me perguntando...
DAS PUTAS
Ziraldina – Dizem que os jovens lêem pouco. Seus livros são lidos por eles? Clarice – Depende. Por exemplo, o meu livro “A Paixão Segundo G.H”, um professor de português do Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender. Sérgia Augusta – Pelo que tenho lido em suas crônicas, a senhora fala bastante sobre o ato de escrever, porém tem demonstrado certo desânimo. A que se deve isso? Clarice – Minha pequena projeção fere meu pudor. Inclusive, o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás, eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silencio dentro de mim. Garça – Já que tocou no assunto: a senhora tem medo da morte? Clarice – Morrer será um dos atos mais importantes da minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte. Miguelita – Não sei se a senhora sabe, mas há uma certa área que a considera promíscua. O que é que a senhora acha disso? Clarice - Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro. Pantera – E se um dia lhe faltar inspiração, como fica? Clarice – Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Fortuna – E o que a senhora pensa o que desses caras que te atacam pela sua posição? Clarice – Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la. Flávio – O Drummond é bem claro na sua obra... Clarice – Pois não agüento mais a solidão neste mundo de Carlos Drummond de Andrade. Viva muito tempo, Drummond, para que eu possa lhe telefonar como faço uma vez ou outra, sempre com objetivo certo, senão não teria coragem de interromper você no seu trabalho. Sérgia – Mas concretamente o que é que a senhora fez pelo homem brasileiro? Clarice – Não dou pão a ninguém, só sei dar palavras.
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Ziraldina – O desejo de qualquer artista, de qualquer homem é modificar alguma coisa. Clarice – E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano. Leona – Mas se a senhora fosse Presidente da República o que é que faria? Clarice – Quem muito agrada, desagrada. Miguel – E quem avisa amigo é. Milléia – Em outra ocasião a senhora disse que se renova a cada trabalho. Como explica, então, esse cansaço? Clarice - Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo. *Essa entrevista fictícia! Já que não conseguimos uma exclusiva, esta foi baseada em crônicas e entrevistas reais de Clarice Lispector.
Cê me entende, né totó?
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SIGMUND
O PASQUIM
O PASQUIM - Expediente - Conselho de Redação: Tarso de Castro (Editor), Sérgio Jaguaribe (Editor de humor), Sérgio Cabral (Editor de texto), Paulo Garcez (Editor de fotografia), José Grossi (Diretor-Comercial). Redação e Administração: Rua Clarisse Índio do Brasil, 32 - Tel.: 226-4764, Rio-GB. Diretor-Responsável: Murillo P. Reis. São Paulo (representantes): Rua João Adolfo, 118-3º andar, tels.: 35-7958 e 32-9438. Impresso no Correio da Manhã, Av. Gomes Freire, 471. Distribuição exclusiva para todo Brasil: Distribuidora Abril Ltda. - R. Emílio Gotidi, 565 - Caixa Postal, 945 - São Paulo. Exemplares atrasados: São paulo: R. Brigadeiro Tobias, 773 - Guanabara: R. Sacadura Cabral, 141.
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