"Resitindo ao desastre: entre exaustão e criação", Barbara Glowczewski

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resistindo ao desastre: entre exaustão e criação

barbara glowczewsi


resistindo ao desastre: entre exaustão e criação barbara glowczewski


“As mudanças climáticas colocam a questão de uma comunidade humana, de um nós, apontam para uma figura de universalidade que escapa nossa capacidade de experimentar o mundo. Ao invés, essa universalidade decorre do senso partilhado de catástrofe. Essa exige uma aproximação global da política, mas sem o mito da identidade global, já que, diferentemente do universo Hegeliano, não pode compreender particularidades. Podemos nos referir a isso temporariamente como “‘história universal negativa’”.2

Assim termina um texto de Dispesh Chakrabaty em resposta à tese do ganhador do Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen3. Em 2000, este propôs considerar que as transformações no planeta e no clima induzidas pelos humanos desde a revolução industrial consistiam em uma nova era à qual ele chama de “antropoceno”, quando a humanidade enquanto “espécie” se tornou uma força geofísica. A consequência para as ciências humanas implicaria em revisar não apenas a separação entre o humano e a história natural, mas também as noções relacionadas com o problema clássico da liberdade. De maneira semelhante, o autor de A hipótese de Gaia quem, vinte anos atrás, clamava pela consideração da terra como um organismo vivo autorregulado, vêm insistindo em seu último livro (Lovelock, 2009), na responsabilidade da humanidade e 3

suas escolhas econômicas para o futuro da biosfera.4 Esses debates estão estimulando todas as disciplinas, mas parecem esquecer que o poder da ação humana (agência), mesmo em relação a fenômenos geofísicos, não é uma invenção

1. Esse artigo é a versão brasileira da revisão traduzida para o inglês publicada em Spheres de: Barbara Glowczewski, “Résister au Désastre: Entre Épuisement et Création”, em Barbara Glowczewski e Alexandre Soucaille (eds.), Désastres, Paris, L’Herne, 2011, pp. 23-40. Notas e referências foram atualizadas e adaptadas para a versão em inglês e quando existentes, referidas a material disponível em português. A versão ao português foi feita por Amilcar Packer e revisada pela autora. Os links de internet foram todos acessados em 20 de outubro de 2016. A versão inglesa do artigo está disponível em: http://spheres-journal.org/resisting-the-disasterbetween-exhaustion-and-creation/ 2. Dipesh Chakrabarty, “The Climate of History; Four Theses”, Critical Inquiry 35(2), 2009, pp. 197-222. Disponível em: http://www.law.uvic.ca/ demcon/2013%20readings/Chakrabarty%20 -%20Climate%20of%20History.pdf 3. Ibid., p. 199; O famoso autor de Provincializing

Europe toma aqui o conceito de história universal negativa proposto por Antonio Y. Vasquez-Arroyo e especifica que: “Como a crise ganhou ímpeto nos últimos anos, percebi que todas as minhas leituras de teorias da globalização, análises Marxistas do capital, estudos subalternos, e crítica pós-colonial, não me prepararam realmente para essa conjuntura planetária na qual a humanidade se encontra hoje.” Vasquez-Arroyo, “Universal History Disavowed: On Critical Theory and Postcolonialism”, Postcolonial Studies, 11(4), 2008, pp. 451-473. 4. James Lovelock, The Vanishing Face of Gaia: A Final Warning, New York, NY, Basic Books, 2009; tendo aprimorado o valor da biosfera, a hipótese de Lovelock foi criticada por um lado por ter servido como álibi para aqueles que consideram que políticas ambientalistas ativas são inúteis, e por outro lado, por seu panteísmo New Age, abusivamente assimilado a diferentes formas de holismo ou de conexionismo de alguns povos indígenas.


desse século. Mesmo se a história Ocidental pensou a humanidade como “prisioneira do clima”5, a antropologia nos mostra que ao redor do planeta as percepções do mundo segundo as quais humanos podem agir nas forças da natureza parecem existir desde o início dos tempos. Um grande número de sociedades tradicionais reconhece, de um lado, um conjunto de obrigações – como rituais para trazer a chuva ou assegurar que vulcões irão se manter adormecidos -, e por outro, um conjunto de proibições: se esses protocolos não são respeitados e se as regras sociais que garantem o suposto balanço entre tudo que existe são transgredidas, então várias catástrofes poderão ocorrer, como secas, inundações, pragas e penúria. Nesse momento, em que enfrentamos alertas globais e apelos para decrescimento que invocam a responsabilidade humana nos desastres naturais, socioeconômicos e técnicos, alguns meios de comunicação e instituições governamentais, e não-governamentais estão enredadas em diversos processos políticos e financeiros que reduzem os humanos a um estatuto de vítimas das forças naturais e de fluxos incontroláveis (bolsa de valores, mercados, conflitos, etc.) sem conceder-lhes qualquer meio de intervenção nessas situações, de serem, eles 4

mesmos, criadores de alternativas sociais. Contudo, essas respostas de sobrevivências existem em todos os lugares e a inteligência coletiva que leva a experimentos micro-sociais é uma onda de esperança para o mundo. RESPOSTAS PARA A ARMADILHA DE VITIMIZAÇÃO DO MUNDO HUMANITÁRIO E SUAS MEDIATIZAÇÕES Pensar a atual responsabilidade humana pelo desastre do clima global e do meio ambiente, e no perigo da extinção que ameaça a humanidade, nos convida a refletir sobre o desenvolvimento técnico, político e econômico por meio de um colaborativo “bom uso da lentidão” 6 buscando “circuitos longos”7 para apreender todas as formas de interação e agênciamentos de enunciação coletiva que emergem em situações de emergência e globalizada aceleração8 capitalista. Em O Inconsciente Maquínico, o psicanalista e filósofo Félix Guattari define a noção de ritornelo (ritournelle) como um “sonoro marcador de um

5. Fernand Braudel, On History, Chicago IL, University of Chicago Press, 1980 [1969], p. 31. 6. Thanh Nghiem, Des Abeilles et des Hommes. Passerelles pour un Monde Libre et Durable, Paris, Bayard, 2010, p. 149; citando Pierre Sansot, Du Bon Usage de la Lenteur, Paris, Payot & Rivages, 2000.

7. Berbard Stiegler, What Makes Life Worth Living. On Pharmacology, Cambridge, Malden MA, Polity Press, 2013 [2010], p.25. 8. Hartmut Rosa, Social Acceleration, A New Theory of Modernity, New York NY, Columbia University Press, 2010.


agênciamento local de desejo”.9 Após seu trabalho com Gilles Deleuze, este desenvolveu em seus últimos livros a noção de ritornelos existenciais como podem ser encontrados em diferentes formas de arte e outras mobilizações sensoriais e semióticas (rituais, tatuagens, comportamento automático, etc.), como meio de criar novos sistemas10 de valor. “Esses territórios de ritornelo se servem de novas produções individuais e coletivas que nos permitem sobreviver entre fluxos11 desterritorializantes”. Como uma extensão de Steps to an Ecology of Mind de Gregory Bateson, Guattari articulou os ritornelos e os territórios em uma cartografia “esquizoanalítica” e propôs relacionar três ecologias (ambiental, mental e social) sob o nome ecosofía.12

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“Eu concebo o objeto ecosófico como articulado em quatro dimensões: as do fluxo, máquina, valor e território existencial. […] O da máquina está aí para dar a dimensão de retração cibernética, de autopoiesis, significando uma autoafirmação ontológica, sem cair em mitos animistas ou vitalistas como as hipóteses de Gaia de Lovelock e Margulis; pois é precisamente sobre vincular as máquinas dos ecossistemas dos fluxos materiais às dos ecossistemas de fluxos semióticos. Portanto eu tento ampliar a noção de autopoiesis sem limitá-la, como Varela faz, exclusivamente aos sistemas vivos, e considero que há protoautopoiesis em todos os outros sistemas: etnológicos, sociais, etc.”13

9. Anne Querrien, “Maps and Refrains of a Rainbow Panther”, em Éric Alliez e Andrew Goffrey (eds.), The Guattari Effect, London, New York NY, Continuum, 2011 [2008], pp. 84-98, p.94; cp. Félix Guattari, O Inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizo-análise, São Paulo, Editora Papirus, 1988 [1979]; na versão inglesa, ritournelle foi traduzida por refrain, que não é a melhor escolha: alguns preferem a escolha do italiano ritornello (pequeno retorno em música barroca), em português a opção de tradução correntemente utilizada é de ‘ritornelo’. Nos trabalhos posteriores de Guattari ritournelle é também utilizado nas artes visuais e outros campos da criatividade. 10. Félix Guattari, Cartographies Schizoanalitiques, Éditions Galilée, Paris, 1989; Ibid., Caosmose: um novo paradigma estético, Editora 34, 1992-2012 [1992]. 11. Querrien, p. 94; Guattari começou da Sonata Venteuil, que desperta diversas sensações perceptivas e baseadas na memória em Em Busca do Tempo Perdido. Na relação de Guattari com a antropologia, o uso do ritornelo para Indígenas

Australianos, ver: Guattari e Glowczewski, “Espaços dos Sonhares Warlpiri 1983 e 1985”, em Glowczewski, Devires Totêmicos, Cosmpolítica do Sonho, Helsinki, São Paulo: n-1 publicações, 2015 [1986] (publicação bilíngue inglês e português), p. 44-74; Glowczewski, “Guattari and Antropologia”, em Alliez e Goffrey, pp. 99-111. 12. Guattari, As Três Ecologias, Papirus, Campinas, 1990-2011, [1989]; também disponível em: http://escolanomade.org/wp-content/ downloads/guattari-as-tres-ecologias.pdf 13. Traduzido a partir de http://1libertaire.free.fr/ Guattari19.html; “Qu’est ce que l’Écosophie”, Paris, Éditions Lignes, 2014: Segundo o biólogo, neurologista e filósofo chileno Francisco Varela, a autopoiesis é um modelo para a analise dos sistemas vivos que ele desenvolveu com Humberto Maturana de modo a opor à noção de caixa preta na qual a informação entra e sai, com a de um sistema em desenvolvimento evoluindo de maneira autônoma enquanto interage com o ambiente: ele pensava vincular ação e conhecimento juntos na noção de ‘enação’. Sobre Lovelock, ver a nota 2.


O projeto ecosófico de Guattari deve ser entendido em relação aos agênciamentos individuais e coletivos em transformação (agencements), matriz que ele construiu em Cartographies Schizoanalytitiques (Cartografias Eszquizo-analítcas), na qual estão distribuídos seus conceitos de dimensão entre quatro polos transversal e temporalmente inter-relacionados: a economia dos fluxos (libido, significante, capital, trabalho) corresponde ao “atual real”, o phylum maquínico corresponde ao “atual possível”, os universos do valor incorpóreo ao “virtual possível” e os territórios existenciais, ao “virtual real.” A relação entre os dois primeiros polos gera processos de desterritorialização objetiva, enquanto entre os outros dois, uma enunciação (ou desterritorialização subjetiva) pode emergir e permitir a (re-)criação do virtual possível com novos conteúdos, promessa de novos agênciamentos contra o capitalismo mundial integrado, entre outros. Esse modelo, comentado por diversos pensadores desde a morte de Guattari é uma proposição muito frutífera para analisar respostas criativas a desastres em nosso mundo: ecosofía é ao mesmo tempo uma paradigma14 ética, politica e estética.

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A descoberta por Guattari de escritos ecológicos noruegueses e alemães, mais especificamente The Imperative of Responsibility de Hans Jonas, moderou suas crenças numa era pós-midiática na qual a miniaturização e a colocação em rede de dispositivos informáticos permitiria o desenvolvimento de uma nova criatividade.”15

A lição que podemos tirar dos povos que nas mais antigas tradições postulavam a responsabilidade das ações humanas sobre o restante da vida é que suas ontologias e “territórios existenciais” (como Guattari diria) não estão necessariamente contidos em um Sistema de dependência divina, mas ao invés disso, são uma maneira transversal de pensar a interação entre coisas.16 Muitas sociedades como a do indígenas Australianos, Polinésios, Nativo-americanos ou outros grupos que viveram por séculos em constante negociação com a agência do mundo cósmico – chuva, vento, fogo, tsunamis, excesso climático, etc. – consideram que toda ação humana impacta não somente a sociedade mas também as forças 14. Ibid Cartographies Schizoanalitiques; Brian Holmes, “Guattari’s Schizoanalytic Cartographies. Or the Pathic Core at the Heart of Cybernetics”, 2009, disponível em: https://brianholmes.wordpress.com/2009/02/27/ guattaris-schizoanalytic-cartographies/ 15. Querrien, p. 93; Hans Jonas, The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, Chicago IL, University of Chicago Press, 1985.

16. Para exemplos de Indígenas Australianos ver Devires Totêmicos e para exemplos de Indígenas da América do Sul ver Eduardo Viveiros de Castro, “A Floresta de Cristal: Notas sobre a Ontologia dos Espíritos Amazônicos”, disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/ search?q=cache:VT5PknYODFIJ:www.periodicos. usp.br/cadernosdecampo/article/download/501205


que o mundo Ocidental considera como ‘natureza’ enquanto oposta a ‘cultura’: por exemplo a quebra de um tabu – como a colonização destruindo sítios sagrados para mineração – pode provocar a doença das pessoas assim como seca ou um ciclone. Semelhantemente, toda catástrofe pode ser rastreada ao excesso humano. Trata-se de um dinamismo imanente onde a reticularidade das interações (como as conexões entre os diferentes aspectos dos seres vivos, o conhecimento transmitido e atualizado por meio de rituais) é simultaneamente uma fonte de vínculos e rupturas, de solidariedades e conflitos, de fusões e clivagens, de segmentação e alianças, de atrações e esquivas entre outros povos e agentes, animais, minerais, etc. Como nas relações entre os indígenas Zoque, grupo de Chiapas com o vulcão Chichonal, aos pés do qual vivem17, os aldeões de Bebekan em Java recusaram a ajuda de grandes agências humanitárias que os exortaram a abandonar o seu vilarejo. Esse havia sido completamente destruído pela atividade sísmica do vulcão Merapi em 2006, seguindo o tsunami que havia atingido a ilha dois anos antes. Os aldeões assumiram a responsabilidade 7

caso ocorresse outro terremoto ou erupção vulcânica, já que pensavam isso poderia ser prevenido se continuassem fazendo oferendas ao vulcão e morando em sua base. Eles reconstruíram completamente seu vilarejo usando sistemas herdados de solidariedade coletiva (tradicionalmente mobilizada para irrigar os campos) assim como reinventando modos de trabalhar juntos. Essa iniciativa de trabalho coletivo renovou o interesse dos mais jovens por um movimento ritual de comunicação com os espíritos por meio de técnicas ancestrais de transe. O que está aqui em jogo, é a recriação de uma força de vida, como Phoenix ressurgindo das cinzas. A experiência comum de constante coabitação com a morte e a destruição trouxe cada um de volta para a solidão de ser um sobrevivente, mas também para a possibilidade de um novo agênciamento coletivo implementado por meio da memória de um processo de construção que reestabelece uma esperança compartilhada. A erupção do vulcão em 2010, que destruiu outro vilarejo tirando muitas vidas e deslocando centenas de pessoas ameaçadas por nuvens de cinza quente, recentemente trouxe novamente a questão. A escritora Elisabeth Inandiak que acompanhou a experiência de Bebekan em 2006 escreveu no diário no qual guarda os rastros do desastre do Merapi desde Outubro de 2010, que as

17. Garcia-Acosta, “Historical Disaster Research”, em Susanna M. Hoffman e Anthony Oliver-Smith (eds.), Catastrophe and Culture. The Anthropology of Disaster, Santa Fé NM, School of American Research Press, 2002, pp. 49–66.


centenas de paredes erigidas no vulcão atuaram como um trampolim para as nuvens de cinza, agravando o impacto da catástrofe: outra ilustração da necessidade em se pensar tecnologias em sintonia com os fluxos da terra e dos homens, que procurem precisamente a maneira correta de se comportar em relação ao vulcão.18 Outro tipo de resposta econômica e artística à catástrofe nos é fornecida pela cidade brasileira de Goiânia. Em 1987, em um cubo de concreto em um lixão, comerciantes de sucata de metal encontraram um cilindro emitindo um brilho azul. No dia seguinte, apesar de sentirem náuseas, cortaram o material liberando a fonte de brilho azul e venderam alguns pedaços para outros comerciantes. Muitos habitantes do bairro tocaram a poeira brilhante e até se cobriram com ela, enquanto crianças a utilizaram para desenhar nas ruas. Alguns dias depois, centenas de pessoas inundavam o hospital, com mãos e corpos queimando, pois, a poeira era césio 137, uma substância altamente radioativa, que era utilizada pelo equipamento radiológico de uma clínica e que fora abandonado dois anos antes. Mas tal diagnóstico não foi feito imediatamente, mas somente após quatro mortes, incluindo a de 8

uma criança. A catástrofe, agravada pela ignorância, levou o governo a adotar uma medida extrema: os moradores foram reunidos em um estádio para isolar os que haviam sido irradiados. 110.000 pessoas foram examinadas. A cidade que à época crescia rapidamente, foi temporariamente removida das listas de destinação turística alastrando pânico por todo o país. 85 casas contaminadas foram destruídas, a população foi evacuada e a área foi limpa pela remoção de 3.500 m3 de entulho que foram estocadas a 30 quilômetros de distância. Anos depois, o lugar foi convertido em centro de armazenamento de lixo radioativo. Foi enterrado debaixo de montículos de grama e um pequeno museu foi erguido para contar a história que traumatizou uma geração. Em junho de 2006, o simpósio anual da Associação Brasileira de Antropologia reuniu 4.000 antropólogos brasileiros em Goiânia e organizou uma visita ao lugar de armazenamento de lixo, e para o bairro onde o acidente ocorrera, onde alguns sobreviventes com grandes papos deformados seguravam uma faixa protestando

18. Cf. trechos do jornal sobre a erupção do Merapi que a escritora e jornalista Elisabeth D. Inandiak enviou a seus amigos por e-mail: Elisabeth D. Inandiak, “Journal de l’Éruption du Volcan Merapi” (26 de outubro de 201012 de junho de 2011)”, em Glowczewski e Soucaille, pp. 41-60; Inandiak, “The actions of Java Bebekan Village Destroyed by the May 2006 Earthquake”, no seminário “Perception

Anthropology” (coordenado por Barbara Glowczewski e Alexandre Soucaille), Museu do Quai Branly, 28 de Março de 2007; e a entrevista de Inandiak feita por Elisabeth de Pablo, 28 de março de 2007; disponível em: http://www. archivesaudiovisuelles.fr/949_3277_en/


contra a ausência de compensação à vítimas.19 Durante a Bienal do Mercosul que ocorreu em Porto Alegre em 2005, o artista internacionalmente renomado Siron Franco expôs uma instalação com camas de hospital feitas de concreto azul, cada uma gravada com o corpo ou com um objeto significando a personalidade das vítimas da radioatividade.20 Nesses traços individuais, ele cristalizou a memoria coletiva de sua cidade, que fora remodelada pelo desastroso episódio. Na França, de modo semelhante, Ariane Mnouchkine coletou centenas de histórias de refugiados de Sangatte – Afegãos, Chechenos ou Iraquianos –buscando reconstruir seu percurso pelo mundo, em exílio ou muitas vezes sendo forçados a voltar para casa, para criar uma performance em 2004. The Last Caranvanserei (A Última Caravana) reuniu em torno de 200 cenas performadas em várias línguas com legendas projetadas em diferentes elementos do cenário e cuja ordem e duração podia mudar a cada apresentação.21 As sequências do tratamento burocrático e técnico infligido aos refugiados foi de notável veracidade tornando essa verdadeira tortura mental perceptível. O espetáculo também 9

reencenava os interrogatórios performados em pessoas em busca de asilo abandonadas no norte da Austrália, por funcionários do governo do sul do país, por meio de videoconferências. O fato do grupo de atores incluir refugiados, estes que participaram da elaboração de várias cenas, atuando mais ou menos em suas próprias personagens, colocou imediatamente em prática a hipótese de redimir pela criação face ao desastre. Para alguns deles o processo teatral quase se tornou uma transferência terapêutica.22 A moral humanitária e suas máquinas técnicas e burocráticas de intervenção emergencial tende 19. Uma antropóloga brasileira vem estudando o impacto desse desastre incluindo o não reconhecimento da contaminação dos trabalhadores que limparam o lugar e cujo sobreviventes, ou seus filhos, ainda sofrem de doenças sérias; cp. Telma Camargo da Silva “La Catastrophe Radioactive de Goiânia au Brésil. Conflit sur l’Interpretation d’un Désastre, comment Vivre après”, Multitudes, 58, 2015, pp. 161-166. 20. O pigmento azul da Prússia é utilizado para descontaminação. 21. Lançado em DVD em 2006. 22. Sobre Sangatte ver Henri Courau, Ethnologie de la Forme-camp de Sangatte. De l’Éxception à la Régulation, Paris, Éditions des Archives Contemporains, 2007; e a resenha feita por

Jean- François Baré, L’Homme, 189, 2009, pp. 303–304, http://lhomme.revues.org/21239: “esse livro está repleto de compaixão real em relação a seres submetidos aos aparatos administrativos do “supérfluo” como definido por Hannah Arendt, quem ele cita diversas vezes; se move constantemente por entre éticas críticas a respeito de seu ‘entrincheiramento na lógica do assistencialismo’, já que, como especificado por Henri Coureau, ‘há grandes interesses no reconhecimento de maior liberdade para essas novas coletividades’.” [Traduzido pelos editores]. Ver também Henri Coureau, “En Quête d’Asile”, Le Croquant, 51/52, 2006, pp. 99–106, disponível em: http://barthes.enssib.fr/TERRA/article665.html


a forçar os refugiados nas restritivas normas da ajuda, sem direito a reciprocidade nem permitindo a introdução pelos refugiados de novas regras, independente do fato de, como consequência disso, esses poderem com isso perder sua humanidade como seres sociais e atores de uma nova comunidade. Para alguns, a ajuda humanitária se tornou um verdadeiro “negócio”, algo como uma lógica financeira “inumana”, sobretudo dirigida para os meios de comunicação que decidem cobrir uma emergência ao invés de outra; para gerar a mobilização do público é preciso uma vítima passiva e não humanos tentando parar em seus próprios pés. Há claro jornalistas que defendem intervenções em campo e que lançam alertas muito úteis, mas o risco de que as boas intenções para aqueles prontos a ajudar sejam mal utilizadas para o benefício de uns poucos, permanece. Há vinte anos, o antropólogo Jonathan Benthall vêm criticando o poder deturpador dos meios de comunicação em relação à prioridade das atividades humanitárias e reivindica a responsabilidade da antropologia em transformar criticamente situações de desastre e o trabalho interno, e o poder da ajuda humanitária dentre a sociedade civil.23 Em relação às 10

críticas formuladas pelos próprios atores humanitários – vítimas, voluntários, funcionários ou consultores de agências – através dos meios de comunicação e das instituições que limitam seu alcance de ação, a antropologia enquanto disciplina que busca entender como humanos se comportam em sociedade, é desafiada a se dirigir a públicos diversos (como contraponto à máquina dos meios de comunicação), por meio de análises comparativas e argumentos translocais que valorizem a liberdade ou a agência do homem quando reduzida, em diversas situações, a um estatuto de vítima sem o direito de falar ou agir. NATUREZA E CULTURA DOS DESASTRES Seja primeiramente natural, social ou técnico, um desastre sempre acaba envolvendo os três níveis que continuam se entrelaçando historicamente. A escravidão, que pode ser vista como um desastre social para as populações deportadas, se tornou um desastre natural e técnico para africanos continentais que tiveram que reinventar suas economias de sobrevivência enquanto faziam o luto daqueles que haviam sido levados. Ao passo que os lugares de onde essas mulheres e homens partiram foram profundamente afetados economicamente por diversas vezes desde a colonização, que primeiramente

23. Jonathan Benthall, Disasters, Reliefand the Media, Wantage, Sean Kingston Publishing, 2010 [1993].


forçou o deslocamento daqueles caçados por mercadores de escravos provocando uma série de conflitos. Os lugares por onde os deportados passaram, e aqueles nos quais seus descendentes eventualmente se estabeleceram, ainda carregam as impressões das transformações técnicas, naturais e sociais criadas pelo novo sistema laboral colonial. 24 Tal é o caso da Ilha de Gorée que, por mais de um século, foi o ponto de embarque em direção às Américas para mais de 9 milhões de futuros trabalhadores nas plantações, uma vez sua resistência física drenada nas estreitas celas das senzalas, frequentemente geridas pelas signare, as amantes africanas ou crioulas dos negociantes e cuja irmãos eram encarregados do transporte humano. Muitos morreriam ali mesmo, como os guias de Gorée hoje explicam aos africanos em diáspora do mundo todo que passam o dia (raras vezes a noite) visitando as senzalas que hoje são museus, no que se tornou hoje um destino turístico. Em alguns edifícios, restaurados com financiamento internacional, simpósios especializados são organizados - sobre a Guerra na África, por exemplo. Os guias e as exposições mostram uma história da colonização que foi reescrita pelos 11

africanos, com notável distância crítica e afiado contraste com a história escondida dos ancestrais de escravos que circundam as vidas de algumas ilhas do Caribe e do Oceano Índico. 25 Se Gorée, graças à recente comercialização da história colonial se tornou aparentemente uma ilha próspera tendo um competitivo colégio interno para jovens garotas estudantes senegalesas assim como a casa do famoso escultor senegalês Ousmane Sow, é também admirável ver tantas casas abandonadas cujos donos não são mais capazes de manter. Gorée também atrai mulheres de Dakar que cruzam de barco todos os dias para dar as boas vindas aos turistas com os braços cheios de joias para venda, ao lado das telas expostas por jovens artistas de todo o país que sobrevivem precariamente, ocupando os abrigos conectados por uma rede de túneis cavados por debaixo das falésias. Pinturas a óleo de padrões repetidos, desenhos em areia colorida e esculturas feitas de

24. Diouf, M., “Entre l’Afrique et l’Inde, sur les questions coloniales et nationales. Écritures de l’histoire et recherches historiques”, em M. Diouf, éd., L’Historiographie indienne en débat. Colonialisme, nationalisme et sociétés postcoloniales, Paris, Kartala, 1999, pp. 5–35. Ver também Mamadou Diouf & Ifeoma Kiddoe Nwankwo (eds), Rhythms of afro-Atlantic world: Rituals and Remembrances, Ann Arbor, The University of Michigan press, 2010.

25. Françoise Vergès, La Mémoire Enchaînée. Questions sur l’Esclavage, Paris, Albin Michel, 2006; Vergès, “The African Slave Trade and Slavery. Blind Spots in French Thought”, Transversal, dezembro de 2006. Disponível em: http://eipcp.net/transversal/1206/verges/en; ver também os textos de Boubacar Joseph Ndiaye em “The House of Slaves”, Virtual Visit of Gorée Island. Disponíveis em: http://webworld.unesco. org/goree/en/screens/25.shtml


baterias usadas, antigos celulares ou tampas de garrafas: a arte de reciclar o lixo que cobre as praias tornou-se a assinatura da ilha. 26 Na África, romances, teatro e cinema, vêm sendo há tempos, úteis ferramentas para mudar o olhar das pessoas sobre o mundo e propor atuar nele diferentemente. Em 2009, La Tempête (A tempestade) em Vincennes recebeu Serge Limbvani, instruído em Brazzaville, quem havia reunido um grupo de atores de diversas diásporas para encenar God’s Bits of Wood (Os Pedaços de Madeira de Deus), romance de Ousmane Sembène, um ex-atirador de elite, que virou ator e diretor de cinema. Por meio de um trabalho etnográfico meticuloso e dramático, o livro e a peça contam a história dos trabalhadores da Estrada de ferro da linha Dakar-Niger em 1947-48, quem por cinco meses e dez dias reuniram famílias famintas, despertaram um espírito de emancipação da colonização27 e modificaram relações tradicionais de gênero. Um texto para a preparação do diploma do Baccalauréat (herdado do sistema colonial Francês) publicado em Africa.web28 explicava que através dos 70km de marcha do Thiès a Dakar “as mulheres dos trabalhadores da ferrovia da cidade de trabalhadores de Thiès levou 12

a uma ampla mobilização em massa para fazer pressão na administração colonial e exigir a satisfação das demandas dos trabalhadores” tais como levantadas, subsídio das famílias, férias anuais, aposentadoria e o direito de organizar seu próprio sindicato. Após o tiroteio da marcha das mulheres os grevistas conseguiram parte de suas demandas: “Sua camaradagem com a máquina era profunda e forte; mais forte que as barreiras que os separavam de seus empregadores, mais fortes ainda que a barreira que até hoje têm sido intransponível – a cor de suas peles.”29

Após Mali e Senegal terem conquistado a independência, a linha Bamako-Dakar fundou os tours de música Malinesa e Senegalesa, tornando-se assim uma plataforma para lançar

26. Especialmente encarnado por Djibril Sagna, artista de Casamance, que vive em Gorée em um prédio abandonado que utiliza como atelier, e que as vezes expõe em galerias Europeias de arte. 27. A partir de 1902, Dakar se tornou a capital da federação da África Ocidental Francesa: no dia 25 de novembro de 1958, a República do Sudão conquistou sua autonomia dentro da comunidade Francesa. Criada no 4 de abril de 1959, a Federação do Mali incluía o Senegal e o Sudão Francês, mas se partiu no dia 20 de agosto de 1960, devido ao desacordo entre

lideres de partidos. Pouco tempo depois, dois estados independentes foram criados, cada um com sua própria capital: Dakar na Republica do Senegal (presidida por Léopold Sédar Senghor) e Bamako, na República do Mali (presidida por Modibo Këita). 28. O site não existe mais e o domínio está à venda. 29. Ousmane Sembène, God’s Bits of Wood, (Les bouts de bois de dieux ou Os pedaços de madeira de deus, expressão sengalesa para se referir aos humanos), Oxford, Heinemann, 1995 [1960], p. 77.


futuras estrelas do mundo do palco. Salik Keita e Mory Kanté tocaram pela primeira vez na mítica Rail Band (Banda dos trilhos) no hotel e restaurante da estação de trens de Bamako, que em 1970 misturou a inspiração dos griôs Mandinka com música popular eletroacústica. A ferrovia era também utilizada para comércio da colheita de alimentos e artesanato entre estações, e servia para acessar diversos serviços ao longo da linha, como escolas e clínicas.30 Mas no começo dos anos 2000, a Estrada de ferro foi privatizada e 24 de 36 estações foram fechadas, deixando os trabalhadores ferroviários desempregados, assim como muita gente que vivia em vilarejos que haviam sido criados ao longo dos trilhos. De um dia para o outro, a população foi cortada do mundo: sem acesso a vias decentes ao longo dos trilhos, os aldeões ficaram paralisados. Pela iniciativa de Tiécoura Traoré, o representante do sindicato que havia sido demitido, COCIDIRAIL, Collectif citoyen du rail (Coletivo cidadão para a recuperação e o desenvolvimento integrado da ferrovia), foi estabelecido em 2003 e adotou o conceito de marcha da greve de 1947. Mais uma vez as mulheres estiveram na linha de frente fazendo turnês com uma peça de teatro itinerante que contava os problemas dos vilarejos e 13

convidava as pessoas a se mobilizar. Tiécoura Traoré documentou a turnê mostrando objetos como peneiras de grãos empilhadas nos vilarejos pela falta de acesso aos mercados.31 Não somente a privatização destruiu seus modos de vida, mas também acabou se tornando um desastre econômico e tecnológico para o Mali, o Senegal e a própria multinacional. Cortar paradas na linha levou à redução da manutenção dos trilhos e à sua decadência, chegando até mesmo a causar descarrilamentos. Uma auditoria feita pelo governo Malinês confirmou a catástrofe econômica, mas a corrupção tem levado a seu aprofundamento.32 Uma lição histórica permanece: a ameaça da destruição de uma adaptação tecnológica como a ferrovia, um fator de comunicação e um catalizador para vínculos sociais, desencadeia a emergência de outras redes; aldeões unidos em um coletivo, mas também associações e sindicatos na Europa

30. Jérôme Lombard, “Croître ou Dépérir. Lieux Intégrés, Lieux Oubliés sur l’Axe Dakar-Mali”, em Jean-Louis Chaléard et al. (eds.), Le Chemin de Fer en Afrique, Paris, Karthala, 2006, pp. 69–86. 31. Tal situação é também evocada no filme Bamako (2006) de Abderrahman Sissako, no qual critica com humor a ineficiência e os abusos do Banco Mundial, e no qual Tiécoura Traoré participa em um dos papéis principais. 32. A Declaração do Collectif citoyen du rail (Coletivo Cidadão da ferrovia) de 24 de abril de 2009, criticava a administração da

companhia Transrail: “COCIDIRAIL também denúncia a totalidade dos assim chamados ‘planos de resgate’ (incluindo a descontinuação da administração do trânsito dos usuários, um presente de 14 bilhões à Transrail, 376 demissões (180 no Mali e 196 no Senegal), recapitalizando a companhia em 3,6 bilhões por meio de investimentos de ambos países e uma nova revisão dos acordos de concessão de modo a forçar o Mali e o Senegal a começar a financiar maciçamente a ferrovia que até o momento era uma responsabilidade da companhia.”


apoiaram a resistência, financiando agricultura sustentável e projetos de educação popular, convidando Tiécoura Traoré para se dirigir ao Parlamento Europeu e organizando protestos em apoio ao redor da França.33 Em 2010, COCIDIRAIL estabeleceu redes de solidariedade com diversos sindicatos Africanos e Europeus. Todos esses exemplos mostram diferentes criações em meio ao desastre, entendidas como a reinvenção de formas para redefinir a posição de cada um em um lugar ou rede de lugares, uma rota, ambas individuais e coletivas, e gerar conexões com o mundo exterior. Reviver o passado como característica cultural é uma opção que pode ser apoiada pela re-emergência de rituais sagrados ancestrais gerados pelo transe, como no vilarejo do Bebekan, ou gerando turismo ao redor de um sítio de herança histórica, embora essa possa ser penosa como em Gorée. O que está aqui em jogo é encontrar a força de vida que será fagulha para a resposta em respeito à força mortífera da destruição que ameaça o grupo. Juntamente com formas estruturadas, condições para a reativação ou renovadas potencialidades de emergência, criando assim um contexto para o trabalho artístico e trazendo a criatividade das jovens gerações, que irão 14

reconstruir a herança cultural baseadas em sua própria experiência comum. Por sua vez, essa experiência poderá se tornar um novo mito fundacional para o grupo, especialmente quando for baseado na partilha de emoções, na redenção da sobrevivência, ou ainda mais no reviver, em um renascimento que oferece mais que somente sobrevida ao risco da morte, um risco muito real já que muitos morreram durante os incidentes. A garantia de viver repousa no fato de não ser o único a ter escapado à morte: sobreviventes se reúnem, formando um “juntos” que irá se desdobrar em uma ou inúmeras comunidades ou se dividir em grupos de famílias e unidades individuais, dependendo das respostas do grupo e das interações com todos os outros envolvidos na emergência. A resposta desses agênciamentos coletivos pode destruir a cultura herdada, ainda mais considerando a impossibilidade em permanecer vivendo da mesma maneira se o ambiente foi destruído. Contudo, é dentro de uma continuidade reconstruída que a “cultura” se redesenha como uma nova fundação dos sobreviventes em um lugar, seja no lugar da catástrofe ou para onde os refugiados foram deslocados. Mas quando a instalação coletiva do lugar de

33. A edição polonesa do Le Monde Diplomatique 4 (38) de abril de 2009 dedicou mais de uma página ao caso (pp. 18–19): Joanna Z. Kubiakowska “Zachodnia Afrykanska Bitwa o Szyny”, [“The Battle of the Rail in West Africa”], em Le Monde Diplomatique, 4, 38, abril, 2009,

pp. 18–19. Ver também a entrevista de Traoré’s disponível em: http://survie.org/billets-d-%20 afrique/2007/160-juillet-aout-2007/article/ interview-tiecoura-traore


reviver é interrompida, a transmissão começa a desmoronar, a cultura se perde e mais do que isso, a vida coletiva se vê ameaçada mais uma vez, particularmente em seu aspecto ético. O poder da ação não tem mais um campo coletivo de expressão e nenhuma criação é possível. Entretanto, é precisamente quando essa exaustão atinge o fundo do poço, que se torna a fonte de uma nova esperança. Não foi no meio da melancolia do século XX que lindos textos Franceses e Russos nasceram? Não foi o sofrimento dos colonizados, dos deportados e os soldados de tantas guerras que geraram incontáveis romances e filmes no século XX? Quanto à abundância de histórias de ficção científica e filmes produzidos desde 1984 de Orwell, esses convidam novas gerações a pensar utopias para o futuro. Se romancistas e diretores de cinema podem retratar a resistência humana tão bem, eles podem também nos fazer enfrentar a responsabilidade do projeto antropológico: encontrar novas maneiras de pensar esses terrenos onde sofrimento e desastres questionam constantemente a memória e as possibilidades que podem redimir a condição humana. COMBINAÇÕES DESASTROSAS: RACISMO E EXCLUSÃO 15

Quando o furacão Katrina devastou Nova Orléans em 2005, os meios de comunicação e os tratamentos humanitários dados às vítimas da catástrofe foram diferentemente negados, baseados ambos em critérios sociais e raciais. Os mais pobres não podiam retornar à cidade de modo a habitá-la após a sua destruição e a maioria da população preta fora excluída. Durante as inundações, uma foto feita pela Agence France Presse mostrava um homem de pele clara e uma jovem mulher andando com água até o peito e carregando um saco de pão. O casal fora descrito como “encontrando pão e refrigerante em uma mercearia local”. Outra foto da Associated Press mostrou um jovem homem preto na mesma situação e foi descrito como “saqueando uma mercearia”34. Essas duas imagens circulam na Internet e foram postadas por um professor aborígene do departamento de Estudos Aborígenes da Universidade de James Cook na Austrália: o sinal de uma nova forma de solidariedade contra a discriminação baseada na cor da pele afeta igualmente os habitantes de países colonizados na África ou Ásia e os descendentes de escravos e

34. Tania Ralli, “Who’s a Looter? In Storm’s Aftermath, Pictures Kick Up a Different Kind of Tempest“, The New York Times, 5 de setembro de 2005. Disponível em: http://www.nytimes. com/2005/09/05/business/whos-a-looter-instorms-aftermath-pictures-kick-up-a-different.html


trabalhadores deportados dispersos pelos três oceanos e até muitas populações indígenas que se tornaram minorias nos Estados que as colonizaram. 35 Durante o ano de 2005 na corte de Townsville, Austrália, eu participei das investigações sobre um grupo de vinte pessoas Aborígenes de Palm Island acusados de ter incentivado uma revolta após a morte de um homem Aborígene enquanto estava em custódia, uma hora após a sua prisão por estar bêbado em público. Devo admitir que nem os meus vinte e cinco anos de trabalho com rituais, mitos e conflitos de identidade em outras regiões da Austrália me haviam preparado para a desilusão das pessoas Indígenas envolvidas nesses eventos. Eu fiquei impressionada pela capacidade de resistir às adversidades mostradas pelos habitantes que haviam sido ora deportados para a ilha ou que eram descendentes dos 3.000 Aborígenes deportados entre 1918 e os anos 1970, das respectivas terras de algo como 40 grupos de línguas diferentes que se espalharam pelo estado de Queensland.36 Indígenas Australianos chamam seus povos deslocados e desalojados de “povo histórico”. Sua ancoragem colonial a lugares de deportação é desse modo distinguida da herança ancestral dos “donos 16

tradicionais”: mesmo se ambos grupos se opõem na reivindicação de terras baseada no princípio da prioridade dos títulos nativos, parte de sua história é, no entanto, comum, já que é construída no mesmo lugar de pertencimento social e vida. Tratados como não-humanos durante a colonização da Austrália pelos ingleses, os povos Aborígenes foram vítimas de uma forma de etnocídio e de uma forma de apartheid: massacres, envenenamentos de suas provisões de água, deportações para lugares afastados de seus territórios, acampamentos forçados em reservas, sequestro de crianças de descendência mista (entre 1905 e os anos 1970, uma em cada 5 crianças foi abduzida de sua família Aborígene, fenômeno chamado de geração roubada) ou mesmo o confisco de salários pelo estado que era pago por fazendeiros ou outros empregadores (salários roubados). Essas décadas de história traumática contribuíram para moldar a situação desastrosa que – a despeito do entusiasmo do Movimento pelos Direitos à Terra dos anos 1970 e do sucesso da arte Aborígene desde

35. A solidariedade de ativistas indígenas em denunciar situações acontecendo em outros países não é algo novo: em 1938, William Cooper levou um grupo de pessoas Aborígenes de Footscrary ao consulado alemão para protestar contra a destruição de casas e sinagogas judias ocorrida em 9 de novembro (o chamado Progromnacht): seus descendentes Aborígenes foram convidados a Israel para uma cerimônia em sua honra e memória.

36. Lise Garond, “Il y a beaucoup d’Histoire ici”: Histoire, Mémoire et Subjectivité chez les Habitants Aborigènes de Palm Island (Australie), PhD Thesis (JCU Australie/EHESS France); Garond, “The meaningful difference of ‘Aboriginal Dysfunction’ and the Neoliberal ‘Mainstream’”, disponível em: https://journals.jcu.edu.au/etropic/ article/view/3310, etropic, 13(2), 2014.


seu apoio político e social para reivindicações37 de justiça – desencadeou desespero frente à discriminação, comportamentos suicidas e crescente raiva contra o constante mal-entendido político em relação a essas sociedades que se organizavam sem a existência do Estado antes da colonização Inglesa.38 No entanto, o ano de 2010 terminou com a criação do primeiro Partido Aborígene (First Nations Party ou Partido das Primeiras Nações). A recente evolução da política Australiana em relação aos povos Aborígenes agravou essa lógica catastrófica em várias regiões do continente, especialmente no Território do Norte, cujas 73 comunidades Aborígenes foram postas sob ‘intervenção’ do governo federal (Northern Territory Response ou Resposta aos Territórios do Norte) e um novo sistema centralizado de condados nas cidades do Território Norte que suprimiu os conselhos comunitários eletivos. Em setembro de 2010, após um um conflito de vingança opondo dois grupos numa comunidade do deserto, um colega Australiano escreveu: “Yuendumu agora estabeleceu uma comunidade de desastre administrada pelo Departamento de Educação do Território Norte. Vemos agora o novo passo da intervenção: a ‘honestidade’ solta das novas 17

relações de poder entre o Estado Australiano e comunidades remotas. A dicotomia do ‘nós e eles’ está em funcionamento. Até o momento, o Estado vem tratando os povos indígenas como crianças, administrando suas receitas e destruindo suas ferramentas de governança”. De fato, os conselhos comunitários eletivos foram substituídos por administradores regionais, que decidem as despesas municipais e individuais. Os povos Aborígenes receberam cartões de débito para acessar seus salários e subsídios, mas eles somente podem utilizá-lo para comprar comida em algumas lojas e devem pedir autorização para qualquer outra despesa, como comprar um ônibus ou um bilhete de avião, por exemplo. Essa medida buscava banir o consumo de álcool e os jogos de cartas. “Agora o Estado quer proteger o Brancos dos Pretos. Não apenas as comunidades se tornam espaços segregados, mas também lugares perigosos para pessoas brancas. Precisamos de um plano de gerenciamento de desastres para proteger os Brancos dos Pretos”. Esse testemunho irônico de Peter Stewart, quem presenciou o entusiasmo criativo dos

37. Chris Cunneen, “Framing the Crimes of Colonialism: Critical Images of Aboriginal Art and Law”, em Keith J. Hayward and Mike Presdee (eds.), Framing Crime. Cultural Criminology and the Image, London, Routledge, 2010, pp. 115–137. 38. Glowczewski, Guerriers Pour la Paix. La condition Politique des Aborigènes Vue de Palm Island, Montpellier, Indigène Éditions, 2008; e a tradução atualizada: Glowczewski e Lex Wotton,

Warriors for Peace. The Political Condition of the Aboriginal People as Viewed from Palm Island, 2010. Disponível em: http://researchonline.jcu. edu.au/7286/2/7286_Glowczewski_2008_ translation.pdf Marc Abélès e Glowczewski, “Aborigènes: Anthropologie d’une Exigence de Justice”, Vacarme 51, abril de 2010. Disponível em: http:// www.vacarme.org/article1891.html


anos 1980 como administrador contratado pelo conselho de uma outra comunidade do deserto (e não imposto ao conselho), assinala a perigosa reviravolta nas relações raciais. Devemos notar que algo como uma centena de Warlpiri, alarmados pela escalada dos conflitos locais e pelos desdobramentos da segurança, decidiram deixar temporariamente Yuendumu para a casa de parentes em Adelaide (1.000 km ao sul). Mas o que chocou os meios de comunicação e os políticos foi que os povos Aborígenes se atrevessem a deixar suas comunidades para “invadir” a cidade e não a incapacidade do Estado de controlar a violência local. Essa reação ilustra o malestar Australiano em relação aos povos indígenas quem, como venho descrevendo há tempos, são percebidos como “refugiados de dentro”.39 Os debates gerados pelos estudos subalternos e pós-coloniais40 vêm crescentemente posicionando-os nessas questões indígenas (de acordo com a definição da Declaration on the Rights of Indigenous Peoples ou Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, adotado em 13 de setembro de 2007 pela Assembleia Geral das Nações Unidas41). Eles herdaram um violento passado colonial que destruiu seu ambiente natural, social e econômico de sobrevivência e 18

que continua estigmatizando as vítimas caracterizando-as como as “outras”. Esses debates se referem à questão do poder e da capacidade de agir – desses grupos que se tornaram minoria dentro do Estado. Seja entre os Maori ou outros povos da Oceania que não conquistaram sua independência, entre os indígenas do Norte e do Sul das Américas, Berberes Marroquinos, Tuaregues e Peuls nos estados subsaarianos, povos nômades da Ásia Central, em toda parte

39. Glowczewski, “Survivre au Désastre. ‘We Got to Move on’ dizem os Aborigènes de Palm Island”, Multitudes, 30, 2007, p. 58; Glowczewski, “From Academic Heritage to Aboriginal Priorities: Anthropological Responsibilities”, Australian Aboriginal Anthropology Today: Critical Perspectives from Europe, 13 de junho de 2014, p. 18. Disponível em: http://actesbranly.revues.org/526. Em 2015 o Governo da Austrália Ocidental e da Austrália do Sul anunciou a intenção de fechar muitas comunidades remotas. Um protesto em apoio surgiu como uma tempestade em toda a Austrália e professores universitários franceses trabalhando na Austrália o apoiaram: Martin Préaud e Glowczewski, “Aboriginal Communities Should Not Be Closed”, The World Post, July 21. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/martin-preaud/

australian-aboriginal-communities-should-not-beclosed_b_7161392.html 40. Em relação aos comentários feitos sobre esses debates na França, ver os arquivos online da revista Multitudes e em La Revue Internationale des Livres et des Idées: http://www.multitudes.net/ http://revuedeslivres.blogspot.fr/ 41. Com 143 estados participantes, incluindo onze abstenções (Azerbaijão, Bangladesh, Butão, Colômbia, Geórgia, Quénia, Rússia, Samoa e Ucrânia) e quatro rejeições: Austrália e Nova Zelândia (que aceitou a Declaração um ano depois), Canadá (que prometeu ratificar em setembro de 2010) e os Estados Unidos. Os 46 artigos da Declaração afetam mais de 370 milhões de pessoas ao redor do mundo: http://revuedeslivres.blogspot.fr/ http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/fr/drip.html


lideranças indígenas analisam sua situação propondo “subalternizar a política indígena” e “indigenisar a política subalterna”.42 Ameaçados em suas terras pela silvicultura e pela mineração assim como em seu êxodo urbano, povos indígenas frequentemente se confrontam com estruturas sociais hierárquicas que tendem a diminuir e até mesmo a estrangular suas vozes dentro do Estado-Nação que os circunda. Nos anos 1980, a dificuldade em fazerem ouvir suas vozes a nível nacional encorajou alguns deles a contatar organismos internacionais para ampliar suas redes de modo transnacional, frequentemente recorrendo a sua relação privilegiada com a natureza.43 A rejeição das singularidades indígenas e a mobilização de redes transnacionais ecoa a situação dos Roma e Ciganos os quais tiveram mais de 900 acampamentos desmontados na França no verão de 2010. Podemos também considerar isso como sendo um desastre? Podemos se isso for incluído na história das perseguições por meio das quais – assim como com os Pogroms e a Shoah – ciganos vem sendo caçados, dos campos de concentração onde foram torturados e postos em câmaras de gás, aos abusos que muitas famílias sofrem hoje na 19

Romênia e em outros lugares, tanto por não-Roma quanto por máfias Ciganas. Contudo, eles têm o direito ao asilo: como muitos são tradicionalmente nômades, suas viagens para fora de seus países de origem são suspeitas. Alguns líderes políticos, meios de comunicação e uma porção do público os percebem como parasitas que devem ser mandados para casa, como um risco para a segurança do qual é preciso se ver livre, mesmo se isso implica em trancafiá-los em cidades-dormitório e daí em cadeias caso cometam outra ofensa no retorno a casa. O Direito ao Asilo e os Direitos dos Refugiados não são algo claro para povos deslocados de países devastados por desastres naturais. Após o terremoto que devastou o Haiti em 12 de janeiro de 2010, um jornalista do Le Monde relembrou que: “Considerando o aumento do número de desastres induzidos pelas mudanças climáticas, a IOM (Organização para Migração Internacional) sugeriu a criação de um estatuto internacional para as vítimas de desastres naturais, incluindo terremotos. Em vão. O estatuto de refugiado está restrito a vítimas de conflitos e perseguições, mesmo se o Alto Comissariado para Refugiados (HCR) reconhece a necessidade na evolução do mecanismo e providenciou 42. Marisol de la Cadena e Orin Starn, “Introduction”, em Cadena e Starn (eds.), Indigenous Experience Today, Oxford, Berg, 2007, pp. 1–30. 43. Natacha Gagné et al. (eds), Autochtones. Vues de France et du Québec, Montréal: Presses de l’Université de Laval, 2009; Bastien Bosa e Èric Wittersheim (eds), Luttes Autochtones,

Trajectoires Postcoloniales (Amérique, Pacifique), Paris, Karthala, 2009; Glowczewski e Rosita Henry (eds), The Challenge of Indigenous Peoples. Spectacle or Politics?, Oxford, Bardwell Press, 2011 [2007]; ver também Glowczewski et al. (eds.), Les Sciences Humaines et Sociales dans le Pacifique Sud: Terrains, Questions et Méthodes, Marseille, CREDO éditions, 2014.


apoio ao Haiti. ‘Provemos equipamento e nossa expertise em gestão de acampamentos e na proteção de populações deslocadas’, explica sua porta-voz, Melissa Fleming.44

As palavras-chave da lógica do “cuidado” humanitário: administrar e proteger. Em ambos os casos, esses conceitos se tornaram as armas de uma ideologia protecionista e de assistência interessada que não é nova – estava operacional em sistemas coloniais, notadamente nas reservas impostas aos povos indígenas de modo a deslocá-los de suas terras – e consiste em introduzir doações como sendo uma dívida não reembolsável. A lógica do “assistencialismo” que engendra a dependência por meio de ajuda imposta, conhecida pelos Aborígenes Australianos como “dinheiro senta aí”, é desumanizador. Todas as vítimas de desastres assim como toda população que seja crescentemente percebida pelos Estados como fluxos de mercadoria em potencial são transformados em recursos para “cuidar e proteger” e deixam de ser considerados como cidadãos e seres singulares agindo em nome próprio. Em troca, populações tornam-se de desconfiança e revoltas estouram. Um exemplo disso aconteceu no último outono no Haiti quando, enquanto a epidemia de cólera afetava as vítimas do 20

terremoto e do furacão, no meio das tensões eleitorais, espalharam-se rumores sobre envenenamento de água por um pacificador das Nações Unidas e sua propagação involuntária por meio dos sistemas de distribuição de água.45

44. Grégoire Allix, “Le Séisme Repose la Question du Statut des Réfugiés de l’Environnement”, Le Monde, 21 de janeiro de 2010. Disponível em: http://www.lemonde.fr/ameriques/ article/2010/01/21/le-seisme-reposela- question-du-statut-des-refugies-de-lenvironnement_1294629_3222.html: “Durante a violência causada pelo exílio do presidente Jean-Bertrand Aristide, a HCR exortou a comunidade internacional a conceder asilo a haitianos. Nada disso aconteceu até hoje. ‘A situação não requer que a HCR adote uma posição oficial, especialmente já que Santo Domingo abriu suas fronteiras por razões humanitárias’, considerou A Sra. Fleming. [...] Os Estados Unidos decidiram conceder um estatuto temporário de proteção a haitianos presentes em seu território até a data o 12 de janeiro, mas advertiram que não receberiam nenhum barco com pessoas. Na Europa, conceder um estatuto temporário de proteção é responsabilidade do

Conselho Europeu. Conceder isso às vítimas do terremoto não está na agenda. ‘Todo país deveria ao menos conceder visto de trabalho aos imigrantes haitianos para que eles possam enviar dinheiro para casa’, analisa Jemini Pandya. Segundo o Banco Mundial, a diáspora transfere todo ano algo como 1,2 bilhões de euros ao Haiti.” Ver também os testemunhos depois do terremoto arquivados por Etonnants Voyageurs festival internacional de literatura e cinema de Saint-Malo, ver: http://www.etonnantsvoyageurs.com/spip.php?rubrique318 45. Estimação de 24 de novembro de 2010: 2.000 mortos, 70.000 contaminados, Segundo o Coordenador das Nações Unidas no Haiti, Nigel Fisher. Cp. Réseau Alternatif Haïtien d’Information, AlterPresse, 24 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.alterpresse.org/ spip.php?article10290


DESDOBRAMENTOS POSSIVEIS Éric Fassin escreveu (em 2010) a propósito da França: “As populações que representam um problema, em outras palavras, que são construídas como ‘problemáticas’, não são mais tanto as dos estrangeiros, mas aquelas cuja situação coloca questões em relação à distribuição entre o ‘nós’ e o ‘eles’, supostamente algo tão simples quanto o nome do novo Ministério Francês que colocou imigração e identidade nacional em oposição. [...] O mesmo ocorre para pessoas pretas: algumas, vindo de territórios franceses ultramar, são francesas há gerações; outras são filhas das mais recentes ondas de migração subsaariana. A estigmatização de pessoas pretas está baseada nessa dupla posição, simultaneamente interna e externa.”46

Como acima mencionado, essa observação pode ser aplicada a muitos países nas Américas, Oceania e Oceano Índico. Junto a descendentes de populações Melanésias ou Asiáticas utilizadas como trabalho contratado na Austrália ou nas Ilhas Mascarenhas, migrantes voluntários são estigmatizados devido à cor de sua pele, as populações indígenas (sejam estas pretas ou não) que são nativas de países colonizados (Indígenas Australianos, Ameríndios, 21

Kanaks da Ilha de Nova Caledônia, polinésios do Taiti e de outras ilhas francesas do Pacífico) são também considerados “externos” à nação que pretende assimilá-los enquanto os rejeita. A estigmatização da indigesta alteridade repousa no fato de que eles são vistos por alguns poderes como sendo não “administráveis” por outros meios se não por medidas de segurança, que substituem a noção de estrangeiro em termos de identidade nacional pela de “exterioridade” supostamente em termos raciais. Essa mudança em direção a uma “natureza” fantasiada (cor da pele, étnica, religiosa ou história ideológica, etc.) de culturas essencializadas (denegando totalmente a história da colonização, da perseguição dos povos seminômades e Ciganos, mas também do evolucionismo biologizante de nossas disciplinas, etc.) nos trazem de volta à escuridão dos tempos do nascimento da criminologia que, ecoando as teses raciais do início da antropologia, intencionava definir a tipologia dos nascidos naturalmente criminosos. A corrente tendência em criminalizar todas as vítimas em potencial de segregação racial ou social vêm sendo denunciada por muitos pesquisadores em antropologia e criminologia.47 Isso

46. Eric Fassin, “Pourquoi les Roms?”, Mediapart, 2010. Disponível em: https://blogs.mediapart.fr/ eric-fassin/blog/120910/pourquoi-les-roms 47. Harry Blagg, Crime, Aboriginality and the Decolonisaiton of Justice, Sydney, Hawkins Press, 2008; Chris Cunneen, “Riot, Resistance and Moral Panic: Demonising the Colonial Order”, em S. Ponyting e G. Morgan (eds.), Outrageous, Moral

Panics in Australia, University of Tasmania, ACYS Publishing, 2007; Cunneen, “Framing the Crimes of Colonialism: Critical Images of Aboriginal Art and Law”, in K. J. Hayward e M. Presdee (eds.), Framing Crime. Cultural Criminology and the Image, London: Routledge, 2010; David Garland, The Culture of Control. Crime and Social Order in Contemporary Society, Oxford, Oxford University Press, 2001.


não significa que o crime não esteja presente em todos os segmentos da população, mas que o exercício da justiça não é o mesmo para todas, especialmente em Estados liberais, que escondem suas práticas discriminatórias por detrás da Declaração dos Direitos Humanos. Por meio da cada vez mais rápida substituição do estado social pelo estado penal,48 o Estado não somente se volta para ONGs humanitárias de emergência e organizações de caridade para a provisão de cuidado social, mas também se esforça para se livrar das vítimas e pessoas excluídas, isolando-as como criminosas em potencial, que devem ser encarceradas ou proscritas. Na França, quando os Roma foram mandados embora para a Romênia após seus acampamentos terem sido desmantelados, intelectuais Europeus incluindo o francês Étienne Balibar, Tzvetan Todorov, Michel Agier e Françoise Vergès lançaram o Manifesto para uma outra Europa. “Vamos juntos nos opor à cultura da administração da emergência baseada na vigilância obsessiva, controle e vilipêndio do estranho e do diferente. Vamos criar, ao invés disso, uma cultura de solidariedade e propósitos comuns além de nossas diferenças. Declaremos nossa repulsa à sociedade injusta e desigual que acusa suas próprias vítimas, mortos e feridos.”49

22

Na atual evolução do mundo, parece indispensável perguntar pelo significado de nossas disciplinas à luz das injustiças sociais e dos mecanismos globais que as geram, assim como as respostas geradas por populações que as sofrem e dos ativistas, intelectuais ou não, que respondem via manifestos. A tradicional recomendação académica a respeito da necessidade de uma distância científica de modo a se manter “objetivo”, abriu nas ciências sociais curiosas linhas de filiação em disciplinas onde o engajamento cívico e até mesmo político, assim como o espírito utópico que prevalecia em seus inícios,50 mas recebe olhares franzidos de muitos colegas na França e em outros lugares. Como aqui tento mostrar que não se pode separar catástrofes naturais de desastres sociais, políticas emergenciais das de longo prazo, conhecimentos do presente das memórias históricas, as respostas humanitárias da agência das vítimas, eu acredito que a antropologia esteja sendo particularmente convocada a se engajar em análises que considerem todas essas relações de maneira crítica, de modo a desencadear reflexões locais e globais em direção a novas alternativas sociais.

48. Loic Wacquant, Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity, Durham, Duke University Press, 2009, pp. 113ff. 49. Ash Amin et al., “A Manifesto for a New Europe”, The Guardian, July 14, 2010.
Disponível em: http://www.theguardian.

com/commentisfree/2010/jul/14/manifesto-neweurope-politics-hope 50. Cp. David Graber, Fragments of an Anarchist Anthropology, Chicago IL, Prickly Paradigm Press, 2004.



#Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32a Bienal de São Paulo - Incerteza Viva.

#Publication commissioned by Fundação Bienal de São Paulo on the occasion of the 32a Bienal of São Paulo - Incerteza Viva.


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lugar de agência e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar intervenção nos sistemas de (re-)produção e invenção de mundos implicação ética nas contradições e paradoxos das coletividades OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos de pesquisa, leituras públicas, apresentações, oficinas, intervenções, instalações, escrita, tradução e produção de publicações como esta. no contexto da 32a bienal de são paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboração entre jota mombaça, rita natálio, thiago de paula, valentina desideri, diego ribeiro e amilcar packer.

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FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS


Barbara Glowczewski é antropóloga francesa, diretora de pesquisas do Centro Nacional para a Pesquisa Científica da França (CNRS), membro do Laboratório de Antropologia Social do College de France e professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).


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