Entrevista Michel Butor Marcos Ferreira Sampaio e Len Berg Guia das Artes, 1989 – pp. 31-36
A imagem gerada pelo homem — uma inscrição rupestre ou um xerox colorido tirado de um computador — sempre se relacionou com a escritura, mesmo que em épocas e situações diversas, uma tenha tido mais relevância que a outra. De seu convívio e sua colaboração, como num livro que revele a fusão de textos poéticos e imagens, gravadas ou desenhadas, ou num compêndio de geometria, emergem questões provocantes sobre as relações entre a imagem e a escritura, e a riqueza que desfecham, indo agir diretamente sobre o significado, a plasticidade e a potencialidade dos objetos. A colaboração entre imagem e escritura, e a experimentação entre essas linguagens, estão na essência da produção do escritor e ensaísta francês Michel Butor, de 66 anos, que nas décadas de 50, 60 e 70 tumultuou as letras francesas com obras como A Modificação (1957), Móbile (1962), Matéria de Sonhos 1-4 (1975/81) e Ensaios sobre os Ensaios (1968). Butor concedeu esta entrevista exclusiva a Marcos Ferreira Sampaio e Len Berg, do Guia das Artes, em sua recente passagem pelo Brasil, para conferências e a inauguração de uma mostra de seus trabalhos, realizados com a colaboração de Pierre Alechinsky, Jacques Monory, André Villiers e outros. Guia - Que aspectos envolve a colaboração entre as artes plásticas e a literatura? Butor - No plano de minha atuação, existem três níveis de relação entre a pintura e o texto. Prefiro tratar da pintura por enquanto, mas talvez pudéssemos falar da arquitetura, por exemplo... Mas ficando com a pintura, há primeiramente a crítica de arte, fala-se de um quadro, ou de um pintor, então o texto vai convidar a olhar; vai comentar o que se vê etc. Isso leva, em geral, a publicações onde existem o texto e reproduções fotográficas. Isso é o que existe de mais evidente, a história da arte, a crítica de arte, as conferencias sobre pintura, as visitas guiadas nos museus, todo discurso que gira em tomo da pintura. Em segundo, os livros ilustrados, o livro de artista, quer dizer, é o desenvolvimento da ilustração de que já falei no caso da crítica de arte. Em vez de se ter
simplesmente dentro de uma revista, por exemplo, fotografias de quadros, preparam-se especialmente gravuras, serigrafias, e se põe um texto diante delas. Aqui há uma diferença, é que se vêem duas coisas ao mesmo tempo, o texto e a imagem, enquanto que na crítica de arte se está livre, pode-se olhar a imagem, ler o texto em outra página; a ligação é muito menos íntima. Na crítica há uma interação, mas ela é mais sutil. Quando você tem as duas obras, uma diante da outra, há uma interação diferente porque, se há um texto na página da esquerda e uma gravura na página da direita, o olho vai obrigatoriamente pegar alguma coisa da imagem e a imagem pega alguma coisa da palavra. E há um terceiro nível, quando o texto intervém no interior mesmo da imagem e aqui existe uma diferença porque o texto funciona também como uma imagem. Ele funciona realmente como um desenho. Fala-se frequentemente de imagens que estão dentro dos textos, mas isso é uma metáfora, enquanto que, quando se coloca um texto no interior mesmo do quadro da imagem, somos obrigados a admitir o fato que o texto é um desenho. Isto é, as linhas do texto são linhas que atuam junto com as outras linhas da imagem. Eu escrevi, há muito tempo, um ensaio chamado Les mots dans Ia peinture, no qual estudei rapidamente um certo número de inscrições na pintura ocidental. Unicamente na pintura ocidental, porque na do Extremo Oriente, sabe-se que o texto está presente. Mas na pintura ocidental, crê-se que não. Mostrei então que é falso, que existem muitos textos e que isto produz fenomenos muito importantes. E quis eu mesmo trabalhar sobre esses fenómenos. Existe um mundo no interior da escritura. Cada língua tem características plásticas diferentes. Por exemplo, mesmo escrituras que se parecem muito, por exemplo o português e o francês, são feitas com as mesmas letras, mas não completamente; existem acentos diferentes, é quase o mesmo conjunto de signos, mas existem diferenças que fazem mesmo que não se saiba ler, se veja que é uma outra língua. Os encontros de letras não são os mesmos. Por exemplo, em português o encontro “ao” é muito frequente, enquanto que em francês isso só acontece muito raramente, existem poucas palavras onde se produz esse encontro “ao”. Você vê que, plasticamente, uma página em português e uma em francês não têm as mesmas qualidades, não é o mesmo desenho.