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A Coleção Duda Miranda
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Carta a um jovem colecionador
Em princípios de 2006, atendi ao convite do Museu Mineiro para abrir à visitação pública a minha coleção. Como moro a dois quarteirões desse local (motivo este, inclusive, que me levou a conhecer Francisco Magalhães, diretor do Museu e freqüentador assíduo, como eu, do saboroso café da Molle Antonelliana), estivemos de acordo que o mais interessante seria deixar a coleção em seu “habitat natural”, ou seja, minha casa: o apartamento 11 do edifício Duval de Barros, na Rua Sergipe, 250, centro de Belo Horizonte. Tal decisão não foi tomada sem esforço. Ao mesmo tempo em que me encantava a idéia de torná-la acessível ao grande público, para que assim a coleção pudesse cumprir seu destino de contágio e alastramento, tornar pública a intimidade de minha casa e a ousadia de meu empreendimento me causava um certo transtorno. O leitor que não me conhece, e nem à minha coleção, deve estar se perguntando agora o que seria esse tal destino de contágio e alastramento, e que raios de ousadia seria essa. Explico-me: a coleção foi composta de obras de arte que um dia me afetaram, e, crendo eu que me era possível refazê-las – dado que adquiri-las estava fora de minhas reais perspectivas financeiras –, as refiz. E assim, desde 2003, fui povoando minha casa com estas obras que para mim tinham um valor inestimável, apesar de seu nulo valor de troca. Esta história já havia rendido muita conversa (ao leitor interessado, vide textos no final deste livro), por isso cheguei à conclusão de que valia a pena todo o transtorno causado por aceitar o convite. Pois bem: entreguei uma cópia de minhas chaves ao Museu Mineiro e parti para o Rio de Janeiro durante os meses de maio, junho, julho e agosto do
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referido ano, período em que esteve aberta a exposição A de Arte – A Coleção Duda Miranda. O motivo de tal fuga é que não me interessava estar exposto tal qual a coleção, que deveria ser desfrutada inteiramente em sua singeleza, separada de minha pessoa. Os longos meses que passei longe de casa tiveram sobre mim um efeito inesperado. Freqüentava diariamente a Biblioteca Nacional, meu antigo lugar de trabalho, ali onde outrora havia começado a acalentar a possibilidade de fazer minha coleção. E todos os dias, compartilhando com outros leitores aquele infindável arquivo de possibilidades, tentava imaginar o que estaria acontecendo com os visitantes de minha coleção. Desde o princípio, uma idéia me perseguia: a de que qualquer um poderia, se quisesse, iniciar uma coleção como aquela; que tudo dependia de desejar, como desejei, ser tomado por aquele devir. Este era o meu intuito ao resolver mostrar a coleção: o de que ela se multiplicasse, de que as pessoas saíssem de lá não deslumbradas com a coleção em si, mas contaminadas pelas possibilidades de multiplicação que ela trazia. Porém, à medida que passava o tempo, fui me dando conta de que nunca poderia saber se não teria a exposição gerado o efeito inverso. Foram meses de angústia – estaria a coleção se convertendo naquilo a que sempre foi contrária? Ao regressar a casa, me tomou o vazio de uma dúvida sem fim. Percebi, então, que deveria provocar a multiplicação de uma forma mais contundente: aquela não deveria mais ser a minha coleção. Decidi dar fim à Coleção Duda Miranda. Com as obras espalhadas, distribuídas a outras casas, e aqui neste livro reproduzidas, lançadas ao mundo, espero ter iniciado uma nova coleção. A Nossa Coleção.
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Obras da Coleção
1. Um Carvalho de Michael Craig-Martin, 1972, por Duda Miranda, 2006 Copo, água, prateleira de vidro com suporte de metal, texto impresso em papel sulfite sob vidro com suporte em metal
2. 4 lotes vagos de Thomas Hirschhorn, 1991, por Duda Miranda, 2006 Colocar sinais de madeira, papelão e fita adesiva em lotes vagos
3. 434-Como-é que eu-devo fazer um muro de Arthur Bispo do Rosário, por Duda Miranda, 2003 Madeira de caixote, cimento e cacos de vidro
4. Peça de canto com brita de Robert Smithson, 1968, por Duda Miranda, 2006 Espelhos e brita
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5. Doce céu de Belo Horizonte de Marepe, 2002, por Duda Miranda, 2006 Comer algodão doce sob as nuvens de Belo Horizonte
6. Um Sanduíche Muito Branco de Cildo Meireles, 1966, por Duda Miranda, 2003 Pão e algodão
7. Fragmentos de Paisagem de Carlos Zilio, por Duda Miranda, 2003 Frasco de vidro, pregos e rótulo impresso em papel sulfite
8. TV coberta por um lençol de Artur Barrio, por Duda Miranda, 2003 TV e lençol branco
9. BB52 Bólide Saco 4 “Teu amor eu guardo aqui” de Hélio Oiticica, 1966-1967, por Duda Miranda, 2003 Plástico costurado e letras em tecido
10. Sem título (Amantes Perfeitos) de Felix Gonzalez-Torres, 1991, por Duda Miranda, 2003 Dois relógios de parede
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11. Bólide Caixa 22, “Mergulho do Corpo” de Hélio Oiticica, 1966-1967, por Duda Miranda, 2006 Caixa d’água de amianto, letras em vinil preto, água e areia
12. Mal-entendido de Rivane Neuenschwander, 2000, por Duda Miranda, 2003 Copo de vidro, água, casca de ovo, pregos e silicone
13. Sem título De Mark Manders, por Duda Miranda, 2006 Palito de fósforos
14. Brincando com travesseiros enquanto eu andava pelo centro de Belo Horizonte e Campinas coloquei travesseiros nas molduras de janelas quebradas de Francis Alÿs, 1990, por Duda Miranda, 2003 Colocar travesseiros em janelas com vidros quebrados
15. Prato comum com elásticos de Waltercio Caldas, 1981, por Duda Miranda, 2003 Prato de porcelana branca com elásticos
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16. Continente de Rivane Neuenschwander, 2000, por Duda Miranda, 2003 Bacias de alumínio, chumbo, água e sabão de coco
17. Truísmos de Jenny Holzer, 1977-1979, por Duda Miranda, 2003 Camisetas de malha com impressão hot stamp
18. Apagador silencioso de Joseph Beuys, por Duda Miranda, 2005 Apagador de feltro
19. Dissonâncias de Lia Chaia, 2004-2005, por Duda Miranda, 2005 Mover o corpo sobre a seta do estacionamento
20. Caixa de fósforos arte total de Ben Vautier, 1965, por Duda Miranda, 2003 Caixa de fósforo e rótulos impressos em papel sulfite
21. Sem título de Mark Manders, por Duda Miranda, 2006 Palito de fósforos, xícara de porcelana branca e água
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22. Sem título de José Pedro Croft, 1995, por Duda Miranda, 2006 Cadeira de madeira cortada ao meio e espelho
23. Sem título De Francis Alÿs, por Duda Miranda, 2006 Isopor, caneta bic e vidro
24. Deslocamentos de espelhos em Paquetá de Robert Smithson, 1969, por Duda Miranda, 2005 Compor com espelhos outra paisagem
25. Cresci em solitude e silêncio de Olafur Eliasson, 1991, por Duda Miranda, 2006 Vela acesa e espelho
26. Telefone E---S de Joseph Beuys, 1974, por Duda Miranda, 2006 Latas de alumínio, barbante e tinta
27. Sem título de Mark Manders, por Duda Miranda, 2006 Ratoeira de metal e dado
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28. Zona de sensibilidade pictórica imaterial de Yves Klein, 1962, por Duda Miranda, 2005 Jogar folhas de ouro ao Sena
29. O três nominal (para Guilherme de Ockham) de Dan Flavin, 1963, por Duda Miranda, 2006 Lâmpadas fluorescentes e calhas
30. Para um jovem de brilhante futuro de Carlos Zilio, 1973, por Duda Miranda, 2003 Maleta, pregos de aço e carta envelopada
31. Matisse/Talco de Waltercio Caldas, 1987-1990, por Duda Miranda, 2003 Livro de matisse e talco
32. Sem título de Francis Alÿs, 1989, por Duda Miranda, 2006 Colher de metal, ímã e guardanapo
33. Sem título (5 de março) #1 de Felix Gonzalez-Torres, 1991, por Duda Miranda, 2003 Dois espelhos
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34. Carbono entre espelhos de Waltercio Caldas, 1981, por Duda Miranda, 2003 Papel carbono, espelhos e prendedor de metal e borracha
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P: Para começar, você poderia descrever este trabalho?
R: Eu diria que ela precipita a mudança.
R: Sim, claro. O que fiz foi transformar um copo d’água em um carvalho adulto sem alterar os acidentes do copo d’água.
P: Você não sabe como você a faz? R: Ela contradiz o que penso saber sobre causa e efeito.
P: Os acidentes? R: Sim. A cor, a textura, o peso, o tamanho… P: Você quer dizer que o copo d’água é um símbolo de um carvalho? R: Não. Isto não é um símbolo. Eu transformei a substância física do copo d’água naquela de um carvalho.
P: Me parece que você afirma ter feito um milagre. Não é este o caso? R: Fico lisonjeado que você ache isso. P: Mas você não é a única pessoa que pode fazer algo como isso? R: Como eu poderia saber?
P: Parece um copo d’água. P: Você poderia ensinar os outros a fazer isso? R: É claro que parece. Eu não mudei sua aparência. Mas isto não é um copo d’água, é um carvalho. P: Você pode provar o que afirma ter feito? R: Bem, sim e não. Eu afirmo ter mantido a forma física do copo d’água, e, como você pode ver, eu o fiz. No entanto, como normalmente se procura a evidência de mudança física em termos de forma alterada, tal prova não existe. P: Você não simplesmente chamou este copo d’água de carvalho?
R: Não, não é algo que se possa ensinar. P: Você considera que transformar o copo d’água em um carvalho constitui uma obra de arte? R: Sim. P: O que é precisamente a obra de arte? O copo d’água? R: Não há mais copo d’água. P: O processo da mudança?
R: De jeito nenhum. Isso não é mais um copo d’água. Eu mudei sua real substância. Seria impreciso chamá-lo de um copo d’água. Pode-se dar o nome que se quiser, mas isto não alteraria o fato de que é um carvalho…
R: Não há processo envolvido na mudança. P: O carvalho?
P: Não é só um caso como o das roupas novas do imperador?
R: Sim. O carvalho.
R: Não. No caso das roupas novas do imperador, as pessoas afirmavam ver algo que não estava lá porque sentiam que deveriam. Eu me surpreenderia muito se me dissessem ter visto um carvalho.
P: Mas o carvalho só existe na mente.
P: Foi difícil efetuar a mudança? R: Esforço algum. Mas antes de me dar conta de que poderia fazê-lo isto me tomou anos de trabalho. P: Exatamente quando o copo d’água se tornou um carvalho?
R: Não. O carvalho real está fisicamente presente, mas na forma do copo d’água. Como o copo d’água era um copo d’água particular, o carvalho também é um carvalho particular. Conceber a categoria “carvalho” ou imaginar um carvalho particular não é entender e experimentar o que parece ser um copo d’água como um carvalho. Assim como é imperceptível, é também inconcebível. P: O carvalho particular já existia em algum lugar antes de tomar a forma de um copo d’água?
R: Quando pus a água no copo. P: Isso acontece toda vez que você enche um copo com água?
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R: Não. Este carvalho particular não existia previamente. Eu deveria ainda apontar que ele não tem nem terá outra forma que não a de um copo d’água.
R: Não, claro que não. Só quando eu intenciono transformá-lo em um carvalho.
P: Por quanto tempo ele continuará a ser um carvalho?
P: Então a intenção causa a mudança?
R: Até que eu o mude.
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Belo Horizonte, 29 de março de 2006
Sr. Duda Miranda,
Que bom que o Sr. retomou o nosso contato e acenou positivamente ao convite de abrir à visitação pública a sua Coleção, tendo como agente de acesso à sua residência o Museu Mineiro da Superintendência de Museus da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. Um Museu que, como muitos outros, guarda obras de arte e objetos que foram reunidos por pessoas como o Sr., um colecionador. Posso chamá-lo assim? Desculpe-me, ainda tenho dúvidas de como deveria tratá-lo. Ontem, após seu telefonema, recebi a visita de sua amiga e, juntos, percorrendo a reserva técnica e nossos espaços expositivos, refletimos sobre o possível elo do nosso Museu com a coleção que o Sr. está criando de alguns anos para cá. Buscávamos algo que explicasse o conceito museológico de maneira a constituir um abrigo à nossa intenção de mostrar seus objetos, tratando-os como um acervo operacional do Museu. A Coleção mais recentemente incorporada ao acervo é muito diversificada e está organizada em uma ambientação que simula um gabinete. Um espaço privado, íntimo de uma residência aristocrática: a Sala do Colecionador. No ambiente, estão organizados armários, mesas e móveis de época e neles dispostos vasos chineses, alfaias, baixelas de prata, vidros e frascos de cristal, penas, tinteiros, caixinhas de prata, louças, faianças, tapetes, pinturas, oratórios e imagens sacras. A cena montada configura um território hipoteticamente habitado por um personagem imaginado, inventado. O personagem fictício imprime nela a imagem que mais comumente fazemos dos Colecionadores – tradição, riqueza, notoriedade e importância social. Esse retrato, contudo, não é o seu. Do pouco
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que o conheço, penso ser um homem comum. Uma pessoa que, como muitas outras, busca preencher um espaço que dificilmente será completado. Um vazio que, de maneira incongruente, é também a verve, o ânimo que conduz os Colecionadores... e talvez, o Sr. e a sua Coleção. Coincidentemente, foi nessa Sala impregnada da presença dos variados objetos que vislumbrei uma pequena imagem de Nossa Senhora da Conceição, em madeira talhada, policromada, peanha com douramento, datada do século XVIII. Não obstante as qualidades formais e estilísticas da parte superior da peça barroca, percebi algo que me causou certo estranhamento na peanha: a base que sustenta a imagem tem a forma de um capitel invertido, sólido e severo, contrapondo-se ao restante do objeto. Uma imagem de traços delicados, nitidamente orientais, não só nas feições, mas também no movimento dinâmico e alegre do panejamento. Tudo isso me levou a supor serem a base e a figura executadas por autores e períodos distintos. Causava-me prazer imaginar que, em um determinado momento, alguém, tendo encontrado os dois fragmentos, foi tomado pelo fascínio de ter um objeto inteiro, e, transfigurado artista, implantou a parte inferior da peça, uma prática comum entre Colecionadores de uma época e, talvez ainda, por agora. Ao fazê-lo, criou algo que, mais que um testemunho da arte e da história, poderia vir a ser, também, um signo, um “monstro” estético, uma estranha “arqueologia do afeto” – o desejo da posse de algo de alguém por um outro alguém. Aquela imagem, como uma pequena e delicada ruína – uma mínima parte da história, da cultura e da beleza –, fora recuperada pela vontade daquele que, de alguma maneira, toma a arte para si: os artistas criaram os objetos e o Colecionador, um dia, os “reencontra”. O que faço aqui são conjecturas e nada disso poderei provar. Como se estivesse voltando de uma história imaginada, surpreendo-me com a dúvida de como deveria chamá-lo: artista? Colecionador? Eu me aproximo
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um pouco das razões que o levaram a constituir a sua Coleção, razões que coincidem exatamente com as que me fizeram desejar ligar tais objetos ao nosso Museu. A sua amiga foi portadora de uma feliz notícia. Disse-me que o Sr. pretende executar um novo objeto, ampliando a Coleção. Revelou ser esse objeto uma obra do artista holandês Mark Manders, uma das muitas peças criadas por ele para compor o magnífico trabalho Auto-retrato como um Prédio. A idéia de que irá surgir mais um objeto em sua Coleção me deixa entusiasmado. Espero que o Sr. encontre a xícara e o palito de fósforo ideais para executá-lo, mas, caso não seja possível, execute com outros que o Sr. tem aí em sua casa. Acho que nada será alterado, se assim o fizer, mesmo porque penso que um dos procedimentos de Manders é tratar materiais e objetos que estão muito próximos dele, objetos banais. Percebo que a maioria das obras, pelas quais o Sr. se interessa e tenta executar, consiste exatamente naquelas em que o artista trabalhou com materiais e objetos que estão bem próximos. O mais importante é satisfazer a vontade que o Sr. sente em ter o objeto criado por ele. E, no mais, acho que o Sr. nunca deve ter visto a obra dele pessoalmente, o que, por isso, há de causar alguma diferença no objeto executado pelo Sr. Aliás, onde foi que o Sr. viu esse objeto? Em algum catálogo, em alguma revista, em alguma foto de jornal? Uma coleção, por maior e mais importante que seja, é, para aquele que a organiza, como um álbum incompleto que, ao ser preenchido, se torna uma lembrança, um troféu... Fechado em alguma gaveta, em alguma sala, em algum Museu, ali, cuidadosamente, está guardado, preservado. Ao contrário, uma coleção incompleta estará sempre viva e, sendo assim, nunca será percebida por inteiro. É algo parecido com a vida dos que criam os objetos de arte e, também, muitas vezes, com a daqueles que os colecionam. Considero a sua Coleção um exemplo notável do desejo na arte. Ao construir seus próprios objetos, o Sr., de alguma forma, se esgueira de questões
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que estariam sob a égide da arte, mas que, de fato, se localizam fora dela e são valores dados por aqueles que a comercializam, tornando-se algo importante, mas paralelo, não correspondendo, por isso, ao próprio cerne do nosso interesse. Maravilhosamente, a arte tem um valor em si mesma, nada mais. É neste ponto que se agasalha o interesse de sua Coleção. Quero imaginar que o Sr. não quer apenas possuir o objeto de arte, mas quer tentar compreendê-lo, aproximando-se do sentido mais profundo que a arte poderia vir a ter. Inaugura para si uma outra tradição que, aos poucos, destituirá o véu que o torna, entre tantos, apenas mais um personagem – o Colecionador. Fundada a tradição, esta lhe emprestará a imagem de pessoa incomum, cidadã respeitável, e sua Coleção será importante peça na compreensão do atual estado do objeto de arte. A sua amiga colocou as chaves de sua residência em minhas mãos. Fui até o endereço indicado. O lugar em que o Sr. guarda os seus objetos, a Coleção Duda Miranda, foi para mim uma grande surpresa: a pequena edificação da Rua Sergipe, número 250, esquina com Rua dos Timbiras, é um prédio de apartamentos, moradia de pessoas comuns. Um espaço privado, tombado e que faz parte do acervo arquitetônico da nossa cidade. Uma cidade nascida do desejo da invenção. Planejada e construída pedra sobre pedra, dentro de um plano ortogonal, quadriculado: um tabuleiro xadrez cortado por diagonais, desenhado por ruas com nomes de Estados, de Rios, de Tribos de Índios e de Homens livres – Inconfidentes, contornados. É a Belo Horizonte. Pelas janelas, lá fora, do outro lado da rua, pude apreciar o belo jardim da atual Igreja Matriz da Boa Viagem, um dos poucos que ainda restam na nossa cidade. Caminhei até lá para me aproximar do chafariz que existe naquele jardim. O objeto foi fundido em cimento no ano de 1986: o molde, a forma da qual originou o múltiplo, já se perdeu. A escultura, em estilo rococó, a matriz que lhe deu origem foi executada em pedra sabão no ano de 1793. Os artífices que
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trabalharam as obras, tanto a matriz quanto o molde e a cópia, tiveram seus nomes esquecidos, ocultados sob a sombra da grande árvore que se ergue no jardim construído pela memória. A escultura encontra-se, agora, dentro de uma das entradas laterais da igreja e, ao contrário do objeto exposto no jardim, está privada da chuva e do vento que, ao longo destes poucos anos, já imprimiu, também, na superfície calcária do duplo, a marca do tempo. Esse, desprotegido, desfruta do convívio dos passantes e, como o outro, já recebeu pequenas inscrições... Datas, palavras de variadas ordens, pequenas declarações de amor... Nomes de pessoas colocados lado a lado. As fissuras, os sulcos, as pequenas cicatrizes deram ao objeto uma aura que parece torná-lo permeável ao meu olhar, permitindo aproximar-me dele, de maneira suave. Sentei-me no banco localizado ao seu lado e, assim, fiquei ali, olhando. Vi que o objeto “grafado” em minha retina poderia conter a Obra inteira. Compreendi que, talvez, a Obra, de alguma maneira, estaria contida na escultura talhada em pedra, no molde de gesso, na réplica de cimento que, cingida pela luz, estava impressa na minha retina, ou até mesmo em uma possível descrição oral ou escrita, em uma narrativa que poderia vir a ser feita por alguém. Considerei que uma obra de arte poderia estender-se através de todas as possibilidades de ser reproduzida e, assim, em mais variadas formas, deixar suas impressões no mundo. Aquele objeto, mais que uma simples réplica de cimento de uma obra de arte maestra, esculpida em pedra, tocava-me como coisa desejável que, tangível, se tornou permeável à presença dos homens comuns – à minha presença. Sem mais para o momento e obrigado por atender ao nosso convite.
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Ocupações Raras: a Coleção Duda Miranda
Somos uma família rara. Neste país onde as coisas se fazem por obrigação ou fanfarronice, gostamos das ocupações livres, das tarefas porque sim, dos simulacros que não servem para nada. Cortázar I. No mês de maio de 2006, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, o Museu Mineiro anunciava a abertura de uma mostra que faria pública, pela primeira vez, a Coleção Duda Miranda. A exposição não estaria na sede do Museu, mas na residência do colecionador: um pequeno prédio na Rua Sergipe, número 70, esquina com Rua dos Timbiras, nas proximidades da Matriz de Boa Viagem. Os interessados em apreciar a coleção deveriam pegar emprestada uma chave na portaria do Museu Mineiro e ir até o apartamento onde eram recebidos por um monitor. Curiosos, os jornais e revistas da cidade inquiriram pela identidade do colecionador (ou seria uma colecionadora?) até então desconhecido no meio local. Duda Miranda é mineiro? A que família pertence? Nunca ouvi falar. Esquivo, o colecionador (a colecionadora?) não deu as caras, e ficou por isso mesmo. Um jornal importante publicou uma pequena resenha e outro, uma matéria mais extensa. O resto foi silêncio. Porém, nos vários cômodos da modesta vivenda estavam distribuídas, sem etiqueta nenhuma, obras de Arthur Barrio, Cildo Meireles, Francis Alÿs, Hélio Oiticica, Felix Gonzalez-Torres, Marepe, Michael Craig-Martin, Rivane Neuenschwander, Robert Smithson, Waltercio Caldas, Carlos Zílio e muitos outros.
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Como em qualquer casa, os trabalhos estavam na sala, mas também se espalhavam pelos quartos, corredores, cozinha, banheiros e área de serviço. O até então ignorado Duda Miranda demonstrava um talento incomum para colecionar obras importantes de artistas paradigmáticos da arte contemporânea. Seu olhar impecável parece provir, sem dúvida, de uma ilustre linhagem: ele é o filho espúrio de Marilá Dardot e Matheus Pita. Indagada sobre a natureza da criatura, Marilá afirma que ... é um heterônimo, uma gestalte e também um conhecido. É heterônimo porque tem personalidade, história e obra própria, independente de nós. Mas também é uma gestalte, ou seja, só aparece quando eu e Matheus nos juntamos, mesmo que não fisicamente. Explicando melhor: o Duda pode aparecer para mim sozinha, mas sempre traz junto com ele o “espírito” do Matheus.1
Por outro lado: Não é exatamente um amigo, mas um conhecido admirável e respeitado.2 Coisa parecida tinha acontecido com Jorge Luis Borges: Eu tinha inventado algo que pensamos que se podia converter num bom argumento para um romance policial. Falei com Bioy e, alguns dias depois, me disse que tínhamos que fazer alguma coisa com esse material. Eu não estava muito convencido, mas começamos a trabalhar e imediatamente fez sua aparição um terceiro homem, que passou a dominar a situação; seu nome era Honorio Bustos Domecq.3
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Esse terceiro homem era, talvez, aquilo que Borges e Bioy Casares nunca se permitiram ser: alguém com todos os preconceitos, a esperteza, as deslealdades, as pobrezas e também as ternuras do portenho.
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Duda é também um terceiro homem. Sua simplicidade lhe permite fazer operações que seriam conflitivas se realizadas por Marilá ou Matheus, artistas inseridos no sistema. Nesse sentido, ele desempenha uma função mediadora cujo objetivo é revelar e potenciar uma das mais evidentes características da arte contemporânea: a produção de objetos facilmente replicáveis por qualquer um. Porém, o que mais surpreende nesse ser conjectural é sua encantadora mistura de simplicidade e sofisticação. Entendamo-nos, Duda demonstra-se conhecedor e impecável apreciador da arte contemporânea. Ele entende o quanto há nela de ironia, de humor, de argúcia, de provocação. E a isso responde criando uma coleção com – apenas e por enquanto – valor de uso pessoal. Às exposições, confessa, primeiro eu ia para beber mesmo até que, um dia, decide olhar as obras. Era uma exposição de Hélio Oiticica.5 Saiu de lá atordoado. Voltou dia após dia, experimentando, cada vez, novas sensações. É então que percebe que tem que ter as obras perto de si. Para adquirilas, consegue o emprego de funcionário público numa biblioteca. O dinheiro, porém, continua escasso, mas ao ler “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Borges, Duda percebe que a mediação do Capital podia ser desnecessária.6 Dos parangolés a Pierre Menard corre um veio subterrâneo que não teria desagradado a Borges nem a Bustos Domecq, também às voltas com a arte contemporânea. É bom lembrar que nas Crônicas de Bustos Domecq (1963), no capítulo “Naturalismo em dia”, narra-se a proposta do artista patagão Colombres que envia para o XLI Salão Nacional de Arte uma caixa de madeira com um vigoroso carneiro7 vivo. (Afinal, o Porco Empalhado, de Nelson Leirner, um porco empalhado em engradado de madeira, foi somente apresentado ao público em 1966.) No mesmo livro, revela-se a obra de César Paladión, um herdeiro de Pierre
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Menard, cujo método consistia em apropriar um opus completo.8 Bustos Domecq afirma: Em nossa época, um copioso fragmento da Odisséia inaugura um dos Cantos de Pound e é bem conhecido que a obra de T.S. Elliot consente versos de Goldsmith, de Baudelaire e de Verlaine. Paladión, em 1909, já havia ido mais longe.9
Pois é: Duda Miranda, como Paladión, faz (deveríamos dizer re-faz?) as obras que mais lhe interessam: as que pode fazer com seus escassos proventos e sua imperícia técnica. Mas as refaz para ele mesmo, para seu próprio e único deleite, para compartilhar com amigos e conhecidos a experiência do refazer e de ver o refeito. A Coleção Duda Miranda nasce da obsessão de um curioso que atravessa, desavisadamente, os caminhos de Oiticica e de Borges e que, a partir desse entre, começa um labor ímpar. Agora acaba sua existência secreta. Claro que depois de hoje nada será igual, mas, apesar de tudo, bem-vindo Duda, alma gêmea, enormíssimo cronópio, a desmantelar, nem que seja por um instante, as tramas do mercado, da originalidade, da autoria e, por que não, das boas maneiras da cultura oficial.
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II. ... para o colecionador [...] a posse é a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas. Benjamin
Walter Benjamin entende de coleções. Localizada no arquivo “H” do Passagen-Werk, a frase enigmática “Animais (pássaros, formigas), crianças e homens velhos como colecionadores”10 parece sugerir certo biologismo, um impulso primordial de colecionar que é logo desmentido. Porque para Benjamin – colecionador ele mesmo – todo simples objeto dentro da coleção é tão pleno de sentidos que se transforma numa soma enciclopédica do conhecimento de sua época.11 O colecionador, afirma, é um ser que mantém uma relação muito misteriosa com os objetos dos quais não prioriza a serventia, mas que os estuda e os ama como o palco, como o cenário de seu destino.12 Intérpretes do acaso, os colecionadores olham, através das coisas, para um lugar remoto e retêm o poder de se apossar de algo sem valor e transformá-lo numa peça valiosa, pelo menos para eles. Essa operação lhes possibilitaria desvelar o significado secreto dos objetos. Colecionar, desse ponto de vista, seria uma forma de exercer a memória prática e ativa e a mais convincente das manifestações profanas de proximidade e presença.13 Duda Miranda revela-se nessas palavras. Seu critério de escolha é pessoal, toda vez que me deparo com um trabalho e sou afetado por ele, possuoo ou sou possuído.14 Sem valor de troca, os objetos se acumulam de acordo com seu desejo ou suas possibilidades de execução. Ao re-fazer obras de arte de
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autores reconhecidos para seu próprio prazer, Duda afirma, mais uma vez, a esquecida capacidade da arte para gerar conhecimento, a postergada possibilidade de estender redes entre os humanos. Como cada objeto fabricado e reproduzido está ligado a um lugar, a um artista, a um sentimento e a um desejo – os que motivaram sua incorporação na coleção –, a Coleção é também um diário de experiências e de estados de ânimo. Ante a Coleção Duda Miranda, duvidamos, soçobramos, perdemos pé, nos sentimos ameaçados porque sentimos, subitamente, sombras que aparecem e se ocultam. A do autor, espectro ou ectoplasma, que teima em subsistir nas margens da obra. A do valor, que nunca mais se fixa, que flui apenas entre o que reconhecemos e o que não podemos identificar. Duda, confessa, tem pouca memória e faz os objetos para salvá-los do (seu próprio) esquecimento. Nesse sentido a Coleção se constitui como o inventário da obscura pulsão que o leva a organizar o fluir da vida através de uma série de objetos que, porque o afetaram tão profundamente, não quer entregar ao olvido.15
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III. Em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, Jorge Luis Borges postula a existência de um universo paralelo cujos pensadores não concebem que o espacial perdure no tempo. Por isso, nesse mundo não existem relações de causa-efeito, e os índices (os indícios) são inconcebíveis. Para eles o presente é indefinido, o futuro não tem realidade senão como esperança e o passado só existe como recordação presente.16 Séculos e séculos de idealismo, continua Borges, não puderam senão influenciar a realidade. Nas regiões mais longínquas de Tlön, é freqüente a duplicação de objetos perdidos. Duas pessoas procuram um lápis; uma o encontra, mas não diz nada, a segunda encontra um segundo lápis, também real, que corresponde melhor às suas expectativas.17 Esses objetos secundários chamam-se hrönir, e foram, até certo momento, filhos casuais da distração ou do esquecimento. De acordo com a Enciclopédia apócrifa, cem anos atrás começou uma produção metódica. Depois de várias tentativas falidas, os arqueólogos de Tlön conseguiram que seus discípulos exumassem – ou produzissem – uma máscara de ouro, uma espada arcaica, e o verdoengo e mutilado torso de um rei.18 Essa metódica elaboração permitiu interrogar ou modificar o passado, que, agora, é não menos plástico nem menos dócil que o porvir. Penso que se fôssemos classificar de alguma maneira — cópias, réplicas, falsificações, apropriações —, as obras feitas e colecionadas por Duda Miranda seriam similares a esses hrönir: artefatos nascidos de uma tensão extrema entre o desejo e o esquecimento. Ready-mades tupiniquins, produtos militantes que postulam e potencializam sentidos. Objetos charneiras nos quais as palavras (o autor, a origem) e as coisas unem-se e separam-se. Dobradiças que permitem diversas aparições do mesmo.
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Precisão e determinação; leveza e agilidade; consistência e alegria. Qual seria, então, a diferença entre a obra “autêntica” e a obra construída por Duda? Talvez nenhuma, talvez uma separação infra-leve, pois, de acordo com Duchamp: Todos os idênticos por mais idênticos que sejam, (e / quanto mais idênticos são) / aproximam-se a essa diferença separativa infra- / leve.19
Uma ínfima diferença, como a que existe em dois objetos extraídos do mesmo molde ou entre os tons de uma seda furta-cor. Um deslocamento no tempo e no espaço que estende uma ponte entre a grande arte e a vida ordinária. Distantes do espaço sagrado da modernidade, afastados do cubo branco e espalhados pelos cômodos, entre as coisas de uso cotidiano de um apartamento de estudante, esses objetos – cópias, réplicas, simulacros, hrönir – ganham uma outra vida. Sua aparência discreta, silenciosa, lhes permite escamotear-se, quase desaparecer dentro desses cômodos despretensiosos, quase austeros. A mirada treinada os reconhece (nem sempre) com um sorriso cúmplice nos olhares desacostumados ao discurso da arte contemporânea, a Coleção produz uma curiosa euforia. Talvez isso seja o mais importante da Coleção Duda Miranda e de sua exposição: a estranha alegria pela qual todos são contaminados. Alívio por perceber que tudo é muito mais simples do que se pensa e, ao mesmo tempo, muito mais complexo? Satisfação por entender que, muitas vezes, a mera justaposição de alguns objetos permite percorrer mundos distantes e aproximá-los numa pirueta leve e graciosa? Não se sabe o que quer dizer, mas, com certeza, quer dizer muito.
Maria Angélica Melendi UFMG, CNPq
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NOTAS
1 Declaração de Marilá Dardot à autora, janeiro de 2007. 2 Idem. 3 Disponível em: <http://elbroli.free.fr/escritores/bustosdomecq/bustosdomecq.html>. Acesso em: 17 abr. 2007.Tradução da autora. 4 SALLAS, Renee. CAb: Gente, Buenos Aires, 11 ago. 1977. Entrevista concedida a Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Disponível em: <http://www.literatura.org/Bioy/Bustos_Domecq.html>. Acesso em: 17 abr. 2007. 5 MIRANDA, Duda. E-mail recebido por Rodrigo Moura em 01 de maio 2003. 6 Idem. 7 BORGES, Jorge Luis; BIOY CASARES, Adolfo. Crônicas de Bustos Domecq. Buenos Aires: Losada, 1992. p. 43. 8 Ibidem, p. 19. 9 Idem. 10 Cf. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 246. 11 Ibidem, p. 237-246. 12 BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. In: BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 228. v. 2. 13 BENJAMIN, Walter. apud CRIMP, Douglas. In the museum ruins. Cambridge: The MIT Press, 1995. p. 202. 14 MIRANDA, Duda. A coleção Duda Miranda. 15 Cf. CALVINO, Italo. Colección de Arena. Madrid: Alianza Editorial, 1987. p. 13 et seq. 16 BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Losada, 1976. p. 437. 17 Ibidem, p. 438. 18 Ibidem, p. 437. 19 DUCHAMP, Marcel. Notas.Barcelona: Troquel, 1989. p. 35
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Entrevista
Assistimos a muitos artistas se apropriarem da obra de outros artistas. Esse procedimento já é um lugar-comum, já podemos até falar de apropriação de segunda ou terceira geração. As obras que você refaz não sofrem nenhuma interpretação e/ou intervenção. No máximo são repetidas e exibidas como tal. Como você vê a sua coleção dentro dessa “tradição” da arte de apropriação?
Duda Miranda – O termo “apropriação” vem sendo usado por críticos para descrever a obra de artistas que retomam obras de outros artistas e, interferindo ou não sobre os “originais”, operam um deslocamento contextual que muda o sentido da obra, acrescentando ou apagando níveis de significação. Vou contar um caso curioso sobre uma artista a quem, equivocadamente, tenho sido comparado: em uma entrevista a Sherrie Levine, Jeanne Siegel diz que “o trabalho apropriacionista tem sido criticado por sua falta de convicção”, ao que a artista responde afirmando que isto seria uma virtude. Mais adiante, Siegel pergunta por que ela teria se recusado a participar da exposição Production Re: Production, que reunia explicitamente trabalhos de apropriação. Levine responde que nunca aspirou a participar de uma escola de apropriadores, que “apropriação” seria um termo que significa uma polêmica, e que ela, como artista, não gosta de se pensar como polemizadora. Voltando à minha coleção, insisto em afirmar que não se trata de uma apropriação pelo simples motivo de que eu não sou e nem pretendo ser artista, simplesmente refaço para meu próprio prazer estético obras de outros artistas; e, diferentemente
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da artista Sherrie Levine, não as assino como se fossem minhas e não as concebo como “novos” trabalhos (aprés, after fulano), bem como não as reinsiro no mercado de arte. Os trabalhos de minha coleção não têm nem aspiram a ter valor de troca, seu valor é puramente de uso. Ao contrário de Levine, eu tenho convicção, e assumo que minha coleção é polêmica.
Como começou sua coleção e como é o seu processo de escolha?
D. M. – A minha coleção começou quando percebi que alguns trabalhos que me afetavam profundamente poderiam ser refeitos por mim mesmo. E percebi que, para mim, isso era uma grande virtude da concepção do trabalho. Afetado por eles, eu já os possuía de alguma forma. Mas eles me possibilitavam transformar essa potência numa existência física e real. E, pensando agora, vejo que essa vontade de ter o objeto tem a ver com a sua aura (prazer estético que emana do objeto, mas que se perde em sua reprodução impressa), e não com o fetiche (valor de troca, assinatura, fluidez no mercado). Meu processo de escolha, assim, parte de um afeto provocado em mim pela obra e de sua capacidade de ser refeita.
Uma pergunta cretina, Duda, me desculpe, mas não resisto. Que tipo de reação sua coleção encontrou com o público em geral, e, particularmente, com o nosso hipotético “sistema de arte”?
D. M. – A minha coleção ainda não foi exibida em público, portanto não posso responder efetivamente à pergunta. Mas, como as obras estão em minha casa, alguns amigos já tiveram contato com elas. Perfect Lovers, de Felix GonzalezTorres, encontra-se instalada em meu quarto, acima da cama. Uma amiga que me
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visitou um dia desses me confessou, ao telefone: “Voltei para casa pensando naqueles dois relógios emparelhados, e quis também tê-los em minha casa. Acho que vou comprar.” A amiga, leiga no campo restrito das artes, não identificou nos dois relógios uma “obra de arte de um tal autor específico”, mas foi certamente afetada por eles. Retirada do circuito institucional da arte, deslocada para o privado, sem etiqueta, sem lenço e sem documento, ou seja, sem legitimação, a obra pode até perder o seu estatuto de “obra de arte autêntica”, mas não perde nunca o seu poder de afetar. E o melhor: a tal amiga nunca pensaria que poderia ela mesma refazer uma obra que tivesse visto num museu ou numa galeria. Despida de sua origem, de sua marca, de sua grife, a obra trabalha sozinha, independe de seu autor, acontece. Dos nossos profissionais da arte eu não espero nenhum acolhimento. Eles estão demasiado ocupados em classificar, remeter, referir, nomear. Minha coleção é destinada àqueles que têm uma relação com a arte sem mediação; gosto de dizer que são as próprias obras da coleção que cumprem o papel de “mediá-la”.
Você disse que, até o momento, sua coleção permanece inédita ao público em geral. Você tem a intenção de exibi-la? Se sua resposta for sim, por que motivo?
D. M. – Se minha coleção não chega ao público, ela perde parte de seu sentido. Não é somente uma idéia, são várias idéias encadeadas, há uma forte ressonância entre os trabalhos que não existe somente no papel. Mostrando a coleção, posso ampliar sua potência, que é a de afirmar uma relação de puro afeto com a arte. Quem sabe não surgirão assim outras coleções desse tipo? É uma semente que pretendo plantar. A coleção não foi mostrada porque ainda não consegui um lugar adequado para exibi-la, mas isso é só uma questão de tempo.
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Que conselhos você daria para um jovem colecionador?
D. M. – Não sou muito bom em dar conselhos… isso depende certamente do que se quer realmente com uma coleção de arte. Meu caso é muito específico: eu coleciono apenas o que me é caro, e sei muito bem que nada do que possuo tem um valor simbólico de status ou muito menos um valor de troca. Mas isso não quer dizer que eu ache que os colecionadores devam parar de comprar obras originais, assinadas, de forma alguma. Aliás, espero que os colecionadores desse tipo se multipliquem, pois têm grande importância no fomento da produção artística. Os artistas não vivem só de idéias…
O que vemos atualmente é que as grandes coleções de arte, em sua maioria, são montadas por curadores contratados, ficando o colecionador apenas com a tarefa de financiar a coleção que possui. Você tem a assistência de algum curador?
D. M. – O curador atua como uma espécie de poder legitimador da coleção, tem que justificar e defender suas escolhas segundo os critérios mais diversos. Como já disse, meu critério de escolha é afetivo, absolutamente pessoal, e não interesseiro. Assim, eu mesma escolho os trabalhos que desejo, não vendo nenhum sentido em ter um curador. Mas aceito todo e qualquer tipo de assistência. Se você quer me ajudar, ótimo, adoro trabalhar em grupo: veja minha coleção, é uma multiplicidade de pessoas. Apenas não estou interessado no status que, por exemplo, Patricia Cisneros possui. Não sou um mecenas, não acredito que se possa comprar arte. Arte não se compra, se vive. Se por acaso encontrar alguém que partilhe dessa crença comigo, seja curador, artista ou carpinteiro, poderemos trabalhar juntos.
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Você afirma que refaz somente obras que já contêm, em si, uma negação da idéia de autoria ou a capacidade de serem reproduzidas sem perda. Qual o sentido de refazê-las, se elas já teriam cumprido esse papel no momento em que foram concebidas?
D. M. – Apesar de os trabalhos conterem em si uma negação da idéia de autoria, eles circulam dentro de um sistema baseado na autoria. O que faço é somente afirmar, repetir mais uma vez esse aspecto da reprodutibilidade, que para mim não é apenas técnica. Quero abrir um campo onde se confundem as figuras do artista, a minha própria e a sua. Você também pode ser Duda Miranda.
Você insiste em afirmar que as obras de sua coleção não são falsificações. Gostaria que você explicasse isso melhor.
D. M. – Um falsificador produz uma cópia que quer se passar por original e, com isso, aspira ao lucro. Minhas cópias não têm “original”, pois os próprios artistas já criticaram essa idéia, portanto não são falsificações – porém são falsas no sentido mais positivo do termo. Não quero que olhem e digam: “Mas é exatamente igual!” Quero que olhem e digam: “Não precisa ser ‘autêntico’!” Sou uma falsa colecionadora, mas não sou uma falsificadora. Não pretendo enganar ninguém.
Duda Miranda foi entrevistado por Marilá Dardot e Matheus Rocha Pitta
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Correspondências
Clarisse Alvarenga É documentarista, Mestre em Multimeios – Unicamp, 2004 – e pesquisadora do Cinema Documentário. Coordena o grupo de estudos da Associação Imagem Comunitária e integra o grupo Poéticas Audiovisuais, vinculado ao Centro de Experimentação da Imagem e do Som (CEIS, PUC-Minas). Lisette Lagnado É doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curadora geral da 27a Bienal de São Paulo. Coordenou os arquivos de Hélio Oiticica para o site do artista no Itaú Cultural. É co-editora da revista eletrônica Trópico e autora de Leonilson - São tantas as verdades, entre outras publicações. Marilá Dardot É artista e mestre em Linguagens Visuais – PPGAV UFRJ, 2003. Escreveu sua dissertação sobre a Coleção Duda Miranda.
Milton Machado É artista plástico, professor da EBA-UFRJ e pesquisador do CNPq. Participa de exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior, desde 1970. Publicou textos em diversos meios. Foi orientador de mestrado de Marilá Dardot. Rodrigo Moura É curador de Inhotim Centro de Arte Contemporânea, crítico de arte e jornalista cultural.
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De: rodrigo moura Para: marilá dardot Assunto: A/C Duda Miranda Data: Seg, 23 Dez 2002 18:24:23
Grande Duda, Em primeiro lugar, receba todo o meu apreço pela sua iniciativa no campo do colecionismo. Foram-me também de grande auxílio suas considerações gerais sobre sua coleção. Em um país com pouco acesso à arte por parte da maioria da população, me parece um bom princípio este da autofagia do fazer, devolvendo a todos a propriedade da obra de arte – um termo que a meu ver extrapola o mero pedigree. Então, a dar início à nossa conversa que espero frutífera, lhe incito a refletir sobre as relações da sua coleção com o meio social do qual ela advém. Ainda, você tem registro de outras ações de caráter semelhante? Alhures? E, por fim, comigo, a pensar o que significaria a idéia de propriedade da obra de arte neste contexto. Espero em breve sua resposta, bem como que possamos nos comunicar em outras oportunidades e sobre outros temas.
Com o meu cordial abraço, Rodrigo Moura
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De: duda miranda Para: rodrigo moura Assunto: Re: A/C Duda Miranda Data: Ter, 24 Dez 2002 15:55:19
Caro Rodrigo, Devo dizer que fiquei contente por você se interessar pelo aspecto mais político de minha coleção – fato até então inédito –, pois é esta uma questão que considero das mais importantes suscitadas pelas minhas ações. Há nas obras que escolho uma generosidade que já existe – a possibilidade de serem feitas por qualquer pessoa, possibilidade aberta pelos próprios artistas que as conceberam. O que eu faço não é mais que efetuar essa possibilidade de fato. Se eu vivesse no séc. XIX, provavelmente minha coleção não poderia existir, pois a arte nessa época dependia de uma extrema habilidade e especialização para ser executada, coisas que não possuo, amador que sou. Mas, voltando aos nossos tempos: o que chamamos de arte contemporânea só parece ser acessível a uma elite econômica muito restrita – fato que considero extremamente curioso, visto que depois de Duchamp insistir que o valor da arte é mais mental que estético, e de Beuys dizer que todo homem é um artista, valores muito importantes para a noção de contemporâneo, o objeto de arte se torna cada vez mais caro. Me diga, sinceramente: quantos colecionadores de arte você conhece? Quantos deles você encontra andando a pé, pegando um ônibus? Quantos deles de vez em quando atrasam a conta de luz? Eu sou uma pessoa comum, classe média, não teria como gastar dinheiro no que alguns chamariam de “supérfluo”. Só que pra mim a arte não é supérflua, é vital. Então percebi que eu não precisava ter todo aquele dinheiro para ter uma coleção, pois justamente o que me interessavam eram trabalhos que independiam da mão do artista, que eu podia fazer eu mesmo, gastando
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quase nada. E mostrar a minha coleção é para mim um ato extremamente político, porque acho que não se trata exatamente de uma coleção privada, já que eu ignoro as instâncias que garantem essa demarcação entre público e privado. Você me fala de devolver a todos a propriedade da obra de arte, eu penso que essa propriedade é antes uma propriedade de afetar, de criar, é assim que começa minha coleção. Fico pensando que nem mesmo poderia dizer que essa coleção é minha, já que os objetos não têm valor de troca, se um dia um ladrão entrar na minha casa e roubar o Amantes Perfeitos estará levando apenas dois relógios de quinze reais do camelô, basta a mim repor com outros novos, e nada mudou. Da mesma maneira que o ladrão não me rouba eu não estou roubando de ninguém, pois parto do princípio de que quando sou afetada por um trabalho, de uma certa maneira possuo-o ou sou possuído, pois quando rememoro-o sou afetado novamente, dessa vez sem precisar estar diante do objeto artístico. Como não tenho uma memória muito boa, resolvi então fazer todos esses trabalhos que guardo comigo, devolvendo ao mundo aquilo que antes o mundo me deu. Mas acho que esse intervalo introduz algo de diferente aos trabalhos, meu Prato Comum com Elásticos foi feito seguindo exatamente o do Waltercio, eles são iguais e, no entanto, diferentes, eu não acrescentei nada além, a diferença já estava contida no prato do Waltercio, quando refaço apenas acentuo um lado que talvez passe desapercebido a muita gente, inclusive aos próprios artistas. Por enquanto não tenho registro de ações similares. Na verdade, desde que comecei a montar minha coleção vários amigos gostaram da idéia e fizeram para si alguns trabalhos. O que mais gosto é de saber que eles simplesmente gostaram e fizeram, a maioria é leiga em arte contemporânea. Eu também me considero leiga e acho que, num certo sentido, minha coleção tem uma orientação para obras leigas, simples. Talvez alguém já tenha feito uma coleção similar, como disse, sou leiga e não conheço tudo. Mas adoraria que mais e mais pessoas fizessem para si mesmas, aliás estou ansioso para mostrar o mais rápido possível minha coleção, quero dizer, nossa coleção.
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Termino aqui esperando que nossas conversas rendam ainda muitas trocas. Com um abraรงo, Duda Miranda
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De: rodrigo moura Para: duda miranda Assunto: Re: A/C Duda Miranda Data: Seg, 30 Dez 2002 15:39:47
Duda, Queira desculpar-me a pressa, mas esta destina-se apenas a acusar recebimento da correspondência anexa. Com o ano novo aí, deixo para 2003 novos diálogos sobre suas mais recentes declarações, que me impressionam pelo sentido de especificidade que, me parece, você conseguiu imprimir à sua prática. Por mais que você se diferencie dos colecionadores que conheço, todos de carro importado e atrasando contas bem mais gordas, continuo achando que o seu projeto se relaciona de maneira mais frutífera com o colecionismo do que com o falso. Gostaria de incluí-lo, em minhas pesquisas e arquivo, dentro da perspectiva do colecionismo contemporâneo brasileiro, articulando-o com outras práticas neste campo, não obstante o seu alegado laicismo. E, discordo, acho que esta coleção é sua, dependendo intrinsecamente dos seus atos e identidade. De todo modo considero como um grande acerto a diferenciação do manual-mental (na melhor tradição da investigação antropológica acerca do objeto empreendida por Duchamp). O que cultuamos? Aproveito a ocasião festiva para lhe recomendar urgência na leitura da entrevista do pintor alemão Anselm Kiefer, feita pela revista alemã Art em 1989 e republicada no Brasil pela Gávea nº 9, cujo acesso posso lhe facilitar pela nossa amiga em comum, Marilá. Sendo tudo, despeço-me desejando-lhe tudo o de melhor no próximo ano. Seu, Rodrigo Moura
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De: Lisette Lagnado Para: Duda Miranda Assunto: Para Duda Data: Sex, 27 Dez 2002 20:21:18
- Faz algum sentido, para você, reunir um conjunto “coerente” de obras?
- Você compra um trabalho (uma proposição, por exemplo) ou uma assinatura?
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De: Duda Miranda Para: Lisette Lagnado Assunto: Re: Para Duda Data: Sab, 28 Dez 2002 14:19:02
Cara Lisette, Quando comecei a fazer os trabalhos não estava muito preocupada com uma coerência. Dando uma olhada em minhas escolhas, acho que existe sim uma coerência que está mais relacionada ao meu ato de colecionar do que exatamente ao conjunto das obras. Mas prefiro ignorar essa coerência e me concentrar em cada trabalho, se eu me detiver demais em construir uma coleção coerente vou paralisá-la e certamente terei que excluir alguma coisa. O que quero dizer é que fui construindo a coleção parte por parte, ao sabor de cada instante, sem pensar muito no todo. Há, é claro, a questão da reprodutibilidade das obras como fio de coerência, sua generosidade inerente, mas sobre esse assunto creio já ter falado o bastante. Conversando com um amigo, outro dia, percebemos uma outra coisa curiosa sobre a coleção: em sua maioria, os trabalhos que escolho são meio marginais dentro da obra do artista, trabalhos que não estão no centro de sua produção, mas nas bordas. São talvez trabalhos menos pretensiosos, menos cobiçados, nunca uma “obra-prima”. Por exemplo: o trabalho de Cildo, Um Sanduíche Muito Branco, acho que provavelmente não entraria numa retrospectiva sua, mas cá está. E devo confessar que esse foi um critério intuitivo, mas rigoroso em sua inconsciência, pois reflete a minha própria condição de colecionador marginal. Um bom exemplo é o trabalho do Bispo que fiz, 434-Como-é que eu-devo fazer um muro. Se lermos a coleção como um todo, a presença do Bispo parece incongruente, pois trata-se de um artista muito específico e que trabalhou num contexto totalmente diferente daquilo que inadvertidamente
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chamamos de “sistema da arte”. É inegável a carga aurática que sua obra possui. No entanto o trabalho que escolhi é simples: um pedaço de muro com cacos de vidro e a inscrição “434-Como-é que eu-devo fazer um muro no fundo da minha casa”. Na hora em que vi a reprodução no livro pensei: “como devo eu também construir o muro?”, e então construí. Aceitei o trabalho como uma proposição e acho que na construção do muro do Bispo ocorreu também uma demolição do muro que criamos para marcar territórios, propriedades. Você imagina, Lisette, que um dia um crítico de arte me disse que o Bispo não era artista?! Será que ele vai dizer que o Bispo que eu fiz é arte, e o que o Bispo fez não é arte? Tenho certeza que ele estará totalmente coerente quando afirmar isso. Respondendo à sua segunda pergunta, se eu compro um trabalho ou uma assinatura: primeiro, eu não compro. Ou melhor, eu compro objetos ou materiais. Se eu fosse fazer um trabalho como o de Jac Leirner, minhas sacolas seriam de supermercado, meus cinzeiros seriam de boteco, meus cartões seriam de lojas de construção, de vidraceiros, de papelarias, de armarinhos; são estes o meu amplo e desglamourizado “mercado de arte”. Também não me importo muito com assinaturas, eu mesma sou péssima pra assinar, nem tenho talão de cheque por causa disso, nunca consegui ter uma assinatura fixa. Os trabalhos são em sua maioria propositivos e carregam duas assinaturas, uma do artista (que concebeu) e uma minha (que executei), e essa última pode ser a sua também. Penso que a minha operação é como a de um instrumentista qualquer, um intérprete, ou alguém que canta no chuveiro ou enquanto dirige na estrada; não precisa ser profissional. Basta gostar de uma música para cantá-la, não se importando muito com o tom desafinado – a música será sempre de seu compositor, e estará aí saindo da memória e retornando à vida, efetuando toda a sua potência.
Com um abraço, Duda
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De: Lisette Lagnado Para: Duda Miranda Assunto: 2 ou 3 palavras sobre Bispo Data: Qua, 01 Jan 2003 10:38:18 Anexo: Bispo (74k)
Espero que seja de alguma utilidade à coleção Duda Miranda. Com meus beijos de sempre,
LL
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De: Lisette Lagnado Para: Duda Miranda Assunto: de lisette lagnado Data: Dom, 03 Jan 2003 12:49:51
Alô Duda, Eu queria saber qual o destino de tua coleção. Você pensa abrir uma fundação, com endereço, equipe técnica etc.? E quando você morrer? A coleção vai para herdeiros ou para o Estado? Por quê? Você vai deixar um executor testamentário para cuidar da coleção? Ela poderá ser ampliada sem a tua existência? Terá vida própria ou você considera a coleção encerrada?
LL
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De: Duda Miranda Para: Lisette Lagnado Assunto: Re: de lisette lagnado Data: Seg, 05 Jan 2003 17:11:37
208. O livro quase tornado gente. Para todo escritor é sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando se desprende dele; é como se parte de um inseto se destacasse e tomasse um caminho próprio. Talvez ele se esqueça do livro quase totalmente, talvez se eleve acima das opiniões que nele registrou, talvez até não o compreenda mais, e tenha perdido as asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro busca seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras, torna-se a alma de projetos e ações em suma: vive como um ser dotado de espírito e alma, e contudo não é humano. A sorte maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. Se considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma vez se moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe, como um inseto no âmbar. Nietzsche, Humano Demasiadamente Humano
Cara Lisette, Uma vez ouvi uma história sobre um colecionador japonês que queria ser enterrado com seu quadro de Van Gogh, o que me deixou estupefato. A que níveis pode
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chegar o fetiche! Fiquei bastante aterrorizada com a mesquinharia de tal atitude narcísica ao extremo, imagine só, um maravilhoso quadro de Van Gogh apodrecendo embaixo da terra só porque foi comprado por algum ricaço mal amado. Sim, penso que devia ser mal amado, pois nem pra deixar o quadro de herança! Aí fiquei pensando em como é complicada essa questão da propriedade: quando alguém vai lá e compra uma obra de arte, o que verdadeiramente está comprando? Uma coisa, digamos: quadro, escultura, objeto, assinatura, instrução, desenho, gravura, vídeo, o que for. Mas não, insisto que há algo mais, que uma obra de arte nunca é só uma coisa. Quero dizer, há, em certos casos, a coisa; mas há além (e acho que acima) dela um pensamento. Então, quando se compra uma obra de arte, há algo que se possui – a coisa – e algo impossuível, somente compartilhável – a idéia. Ficamos assim: o colecionador japonês possui, sozinho, só-pra-ele, a coisa-quadro-de-Van Gogh, mas não pode possuí-lo sozinho por inteiro, pois o que emana desta coisa insiste em ser público, em ser do mundo. Destruído o quadro, perderemos aquela pintura de Van Gogh? Aqui caio numa sinuca inevitável, eu sei. Se espera talvez que eu respondesse: não, a idéia de Van Gogh permanece viva na memória de quem a viu, nas suas reproduções, nas suas falsificações. Mas eu respondo que sim, que destruir o quadro de Van Gogh é destruir a idéia na medida em que as pessoas que o viram também morrerão, e o que restará nunca será o que tinha sido. Por isso não tenho pinturas em minha coleção, por achar que elas não me autorizam a executá-las. Talvez se eu fosse um exímio falsificador eu as teria, mas mesmo assim acho que há algo na pintura que reclama o original, a mão do artista, as decisões a cada pincelada, as camadas sobrepostas, os erros, as veladuras; há algo que mesmo o falsificador não consegue reproduzir. Talvez seja um pudor meu, uma incoerência. Enfim, todo esse preâmbulo era pra que eu mesma conseguisse pensar nas suas perguntas. Respondendo-as, então: Como todo colecionador, não posso negar meu fetichismo. Se refaço as obras de que gosto, é porque quero tê-las, porque não me contento com sua existência imaterial na memória. MAS insisto: a Coleção Duda Miranda só inclui obras que, a
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meu ver, não reclamam um original. Assim que, se fossem destruídas, queimadas, roubadas ou carregadas pela enchente (como chove nesta terra!), não estaríamos perdendo nada. Mas não se preocupe, nem por isso quero ser enterrado com elas. Enquanto estou viva, vivíssimo, as quero por perto, ao meu alcance, e quero também exibi-las para que se desperte em outros uma similar vontade produtiva de tê-las. Que venham outras tantas coleções similares, Coleção José da Silva, Coleção Maria Soares, Coleção Fulano de Tal. Não quero que minha coleção cresça e se torne um corpo grande. Prefiro que ela contagie as pessoas e que as pessoas façam suas coleções e assinem os trabalhos com seu nome como eu faço. Eu prefiro pensar a coleção como um vírus: invisível, mutante, contagioso. A forma de vida do vírus me parece mais adequada do que a hereditariedade para traçar uma analogia. Quando eu morrer a coleção não será herdada, as obras são meramente coisas, como uma escova de dentes. Eu não serei enterrada com as obras, porém também não faz sentido algum querer deixar isso de herança, pois qualquer um pode ter essas obras. Mas a morte não está em meu horizonte, estou bem viva e me preocupo em viver e espalhar minhas idéias para os outros. Um vírus nunca morre, dizem alguns biólogos, pois não se trata de um organismo autônomo, com limites, partes, começo, meio e fim, um vírus nunca é um indivíduo, só existe enquanto multiplicidade. Assim respondo a tua pergunta, a coleção será encerrada com minha morte mas continuará a ter vida, não exatamente própria (não é um organismo). Eu mesmo, Duda Miranda, não sou própria, minha coleção tampouco, e, no fundo, acredito, ninguém é próprio de ninguém, inclusive de si mesmo. Não quero com isso me eximir de quaisquer responsabilidades perante o mundo, pelo contrário, mas acho que somente assim eu quero a Coleção Duda Miranda depois de minha morte, pelas mãos dos outros. Mas, Lisette, não precisa esperar que eu morra, você já pode começar a fazer a sua. Seu, Duda
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De: clarisse castro alvarenga Para: duda miranda Assunto: sobre a experiência Data: Seg, 27 Jan 2003 11:35:24
Oi, Duda Pensei o seguinte: Quando você está lá com a mão na massa, refazendo uma obra, não pode ser possuído pelo desejo de mudar um pouco – nem que seja um pouquinho só – o que pretende copiar? Como assegurar que você vai chegar no mesmo lugar que o artista – responsável pela autoria – chegou, já que você, Duda, estaria tomado pela experiência? Acho interessante esse seu impulso de copiar, mas onde ficam as marcas da sua trajetória em cada obra, se a gente lida com trajetórias singulares no nível de abertura à experiência? Essa pergunta me passou justamente porque foi o que achei mais interessante na sua proposta. Acho que você se coloca de forma meio contraditória ao assumir, simultaneamente, a experiência e o compromisso, que passa a ser meio formal, de ter a coleção pronta de novo – se é que terá. Não sei se é uma contradição exatamente, mas são dois níveis diferentes de atuação que eu gostaria de saber melhor como articulam.
Beijos e BOA SORTE, Caia
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De : duda miranda Para : clarisse castro alvarenga Assunto : Re: sobre a experiência Data : Ter, 28 Jan 2003 03:12:48
Cara Clarisse, Quando refaço um trabalho, não sinto essa vontade de mudá-lo, mas sei bem que mudanças se introduzem no processo. O que eu altero é pelo simples fato de executar o trabalho exatamente igual ao original, ou melhor, às reproduções que tenho dos “originais”, já que a maioria das minhas fontes são os livros. Fazendo igual, acho que faço surgir uma diferença: o trabalho se liberta um pouco de seu autor, ou pelo menos tem sua independência afirmada. Mudo o trabalho nesse sentido, mas não existe uma traição aí, já que o critério da minha coleção é justamente a possibilidade de se refazer os trabalhos sem perda. Quando realizo os trabalhos, o que mais quero é vê-los iguais, indiscerníveis daqueles que vemos nos livros e exposições, esse é meu desejo. A experiência pela qual passo e a qual acredito propor a todos é essa, faça você mesmo. Mas gosto do termo que você usou: POSSUÍDO. Então digo que não sou possuído por essa vontade de mudar o trabalho, mas sou possuído PELO TRABALHO. A mudança, inerente a qualquer experiência singular, como você mesma colocou bem, se dá em mim, eu é que me transformo: e então concordo perfeitamente com você, não é possível chegar no mesmo lugar que o artista chegou, pois isso se dá em mim e depende de uma relação entre mim e a coisa. Posso chegar em O QUE o artista chegou. Não entendi muito o que você coloca como uma contradição, a abertura à experiência versus um compromisso formal com a coleção pronta. Quero dizer, para mim a experiência pela qual passo ao realizar um trabalho tem várias etapas: primeiro, algo me afeta – um trabalho qualquer. Depois, sinto que posso tê-lo – e esse TER
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é que acho que para mim é diferente do sentimento de posse mais comum aos colecionadores, que, em última instância, tem a ver com a propriedade de um bem, de uma mercadoria – esse TER é para mim indissociável de um passar pela experiência do fazer. É que acho que sou meio invejosa, quero ter uma cumplicidade com a coisa como a tem o artista, quero passar pela experiência de ver a transformação de uma matéria qualquer em algo que de repente ganha um monte de outros sentidos, de outras potências. É muito gostoso para mim participar dessa transformação, que sempre me transforma. E a coleção vai se constituindo a partir das experiências acumuladas, uma leva à outra, sou sempre um novo Duda a cada recomeço. Será que respondi a sua pergunta?
Um beijo, Duda
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De: rodrigo moura Para: duda miranda Assunto: De Rodrigo para Duda Data: Qua, 30 Abr 2003 16:57:04
Então, Duda, aí vai mais uma pergunta para a nossa entrevista: como você começou a colecionar suas obras? Quais são os critérios para inclusão de obras? Marilá me disse que vc é autodidata, assim como eu. E mesmo os autodidatas dispõem de formação de vida: qual é a sua? Como surgiu a idéia de fazer uma coleção de obras refeitas e apropriadas e como esta idéia se conecta a sua história pessoal? Bom, por ora seria isto. Muito obrigado pela sua resposta, antecipadamente, e desculpe-me o risco de ser inconveniente, o que espero não estar sendo.
Grande abraço, Rodrigo Moura
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De: Duda Miranda Para: rodrigo moura Assunto: Bio duda Data : Sex, 01 Mai 2003 23:36:09
Caro Rodrigo, Por favor não se acanhe em me fazer perguntas, pois ao respondê-las também me constituo. A minha biografia realmente ainda não foi bem esclarecida, nem mesmo para mim. Desde pequena fui assim, nunca lembrava a data do meu aniversário. Eu adorava, pois era sempre uma surpresa quando esse dia chegava e meus pais e irmãos faziam uma festa. Mas também tenho problemas por conta dessa falta de memória. Eu queria fazer filosofia, mas não tinha nem conseguido terminar o segundo grau. Acabei assistindo a uma aula aqui e outra lá, passando tardes em bibliotecas, fuçando as prateleiras meio às cegas, uma coisa ia me levando à outra, as referências sempre vieram assim aos pedaços, como peças de quebracabeças. Às exposições, confesso, primeiro eu ia para beber mesmo. Nessa época eu vivia de bicos, e nunca sobrava dinheiro para gastar num bar ou ir ao teatro. Nas aberturas de exposições eu tinha tudo de graça: o vinho barato, os canapés e o teatro da vida. Me divertia observando as pessoas e bebendo. Até que, numa noite qualquer, quis prestar atenção no que estava ao fundo, e não só nos garçons apressados ou nas comédias encenadas: resolvi olhar as obras. Era uma exposição de Hélio Oiticica. Saí de lá atordoado. Quis voltar no segundo dia, e no outro, e no outro mais uma vez. A cada dia experimentava uma sensação nova. Passei a ir às exposições sempre nos dias de semana, quando estavam às moscas. Eu podia assim experimentar o que estava lá com mais tempo, mais atenção, com mais cuidado. Chegava em casa e sentia falta. Fui tomando gosto pela coisa.
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Minha coleção é de certa forma uma tentativa de juntar algumas peças que me tocaram, de tê-las sempre como potências de afetos novos, de novas combinações. E nesse ajuntamento eu mesma vou me construindo, percebendo algumas constantes e experimentando contradições. Acho que assim uma conexão entre minha vida e minha coleção se faz essencial: no momento em que experimento e me afeto, de alguma maneira, a coleção me acrescenta muito mais do que eu acredito acrescentar à coleção. O fato de eu não ser uma pessoa rica determinou, a princípio, o meu modo de colecionar: eu precisava fazer este ajuntamento, mas não bastava tê-lo apenas pela memória de coisas vistas. Então, como me era impossível comprar, resolvi arrumar um emprego. Fui ser funcionário público numa biblioteca. Pensei que assim eu poderia economizar e me tornar um colecionador de arte. Mas fui percebendo que quanto mais eu trabalhava, menos meu dinheiro valia. Em contrapartida, mais caros iam ficando os trabalhos que eu queria. Achava isso tudo uma loucura. Até que um dia, em meu emprego, estava lendo um livro de Borges em que havia um conto chamado “Pierre Menard, autor de Quixote”. Era a história de um cara que resolvia reescrever o Dom Quixote de Cervantes, exatamente igual, palavra por palavra. Quase pulei de alegria, pois nesse momento percebi que a mediação do capital podia ser desnecessária (eu estava lendo Marx também, até então sem entender muito). Lembrei de um trabalho que eu tinha visto naquela exposição do Hélio, uma capa de plástico que tinha escrito na barra “teu amor eu guardo aqui”, lembrei também que aquele trabalho parecia tão novinho que não devia ser exatamente o mesmo feito pelo Hélio, eles deviam tê-lo refeito: e disse, puxa, eu também posso fazer um igual! Vi que eu mesma poderia, como Menard, refazer as obras que me tinham afetado. Aí, neste fazer, percebi que eu ganhava ainda mais, pois, além da coisa pronta que compram os colecionadores, eu experimentava também a delícia do processo, de ver uma coisa banal, que eu podia comprar, se transformar naquela obra até então acessível para mim somente nos museus ou nos livros.
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Abraços pra vc também, Duda
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De: clarisse castro alvarenga Para: duda miranda Assunto: matéria Data: Seg, 26 Mai 2003 11:40:14
Olá Duda! É que de repente sua resposta assumiu outros sentidos antes impensados. Resolvi te reescrever. Confesso que não sou guiada tanto pela sua resposta anterior, mas por ter visto ontem as obras que você fez, abrigadas em sua casa. Fui “tomada” quando vi as obras prontas e juntas. Tive a impressão de que o formalismo que cerca a existência dos falsários se apresentava ali cheio de uma matéria intensiva, que percorria cada um dos trabalhos e o conjunto deles. Peço desculpas por minha incapacidade de imaginar, visualizar e mesmo pensar essa articulação quando recebi o seu texto. Mas quero compartilhar com você a riqueza da experiência que tive ao ser forçada a pensar pelo contato com a materialidade de seu pensamento, Duda. Enfim, creio que realmente foi preciso que você fizesse aquelas obras que escolheu, ao invés de comprá-las prontas, falar delas ou mostrá-las.
Beijos, Caia
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De: Marilá Dardot Para: Duda Miranda Assunto: A dissertação Data: Ter, 20 May 2003 18:23:31 Anexo: A de Arte – A Coleção Duda Miranda.doc (376k)
Caríssimo Duda, Estou enviando em anexo a dissertação que escrevi sobre a sua coleção e seus procedimentos. Tenho certeza de que você não se divertirá tanto quanto eu me diverti ao ler suas correspondências e ao fazer a entrevista com você, por isso te peço um pouco de paciência.
Um beijo, Marilá
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De: Duda Miranda Para: Marilá Dardot Assunto: Re: A dissertação Data: Sex, 23 Mai 2003 10:17:29
Oi, Marilá. Dei uma lida na sua dissertação, e não sei bem como comentá-la. Bom, começo dizendo que foi a partir daquela entrevista que você e o Matheus fizeram comigo que comecei a pensar melhor na coleção, que até então eu acreditava não ter maior importância que a satisfação dos meus desejos. Hoje penso que o sentido da minha coleção está além das obras que refaço, por isso incluí no meu catálogo a entrevista e as correspondências. Sinto que nos alimentamos mutuamente um do outro, trocamos neste processo, e isso é bom. Foi isso que entendi quando você me chama de “personagem conceitual”: que eu fui me constituindo a partir da nossa troca, e que a partir dessa troca você pôde pensar na arte de uma outra maneira. Não saberia avaliar sua dissertação como deverá fazer a sua banca, pois não tenho muitos parâmetros (para dizer a verdade, é a primeira dissertação que leio na vida, prefiro literatura), mas arrisco apontar alguns problemas: Achei que faltou uma pesquisa com outros colecionadores, os “normais”, para que houvesse um confronto entre as maneiras de colecionar. E também com os artistas que estão na minha coleção (morro de curiosidade de saber o que eles acham). Sei que agora não deve haver tempo para isso, mas quem sabe você não continua sua pesquisa? Pessoalmente, ao ler a sua dissertação confesso que me senti meio desconfortada. Ainda estou colecionando, mas isso não é todo o meu projeto de vida, ou melhor, não tenho tantas ambições quanto parece, ou talvez, pensando melhor,
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acho que prefiro não assumi-las. Talvez seja uma estratégia do silêncio, pois realmente não quero ser tomada como artista. Começo a entender muita coisa a partir do que você escreveu, mas não sei, tanta teoria me embaralha a cabeça, me sinto confusa. Acho que é porque estou dentro desse processo todo que ainda não terminou, nem sei se vai terminar. Por outro lado me sinto imensamente grata a vocês, pois pela primeira vez estou abrindo minha coleção ao público; aliás, achei tão engraçado, eu sempre fui tão discreta e agora me dá um certo calafrio. É isso, na montagem nos encontramos, Beijos.
Sempre sua, Duda
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De: Duda Miranda Para: Milton Machado Assunto: Um Homem muito Abrangente Data: Sab, 17 Fev 2007 16:29:14
Prezado Milton, Durante o período em que abri a minha casa à visitação pública, durante três meses no ano passado, passei uma temporada no Rio de Janeiro, cidade na qual morei, descobri a arte e comecei minha coleção. Enquanto esperava que uma amiga se aprontasse para sairmos, investigava suas estantes, e me deparei assim com um catálogo de uma exposição de que você participou no Instituto Tomie Ohtake. Transcrevo aqui o seu texto, que de imediato me surpreendeu como se, sem esperar, me confrontasse com a minha própria imagem no espelho:
“Homem Muito Abrangente. Tão abrangente que quase total. Mas falta-lhe um quê de si mesmo. Procura-se, mas sempre em vão (o Homem Muito Abrangente ocupa todos os vãos). E, no entanto, é sem volta. Sua perda é de origem, origem tão abrangente que nada nele é final (já se disse que o seu fim não é um fim em si mesmo). Como todo homem digno (a quem Pico dedicou uma oração), tem algo de camaleão. Carece de individualidade, não tem uma vocação, nem sequer uma aparência. Parece-se, ao que parece. Singular, é plural. Pode ser todas as coisas, fazendo tudo que quer. No entanto, lhe é vetada uma única ocupação: a própria. Sua única propriedade é não ter nada de próprio. Principalmente interior. Daí que é híbrido, impuro. Sempre além dos limites, o Homem Muito Abrangente é o mais puro exterior.” Milton Machado, catálogo Territórios, ITO, São Paulo, 2002
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Fiquei matutando este texto por muito tempo, até que tomei coragem para te escrever e tentar, assim, entender-me através de uma conversa com alguém que, descrevendo um outro (ou será que a si mesmo?), me descrevia tão bem. Será possível, humano, Um Homem Muito Abrangente?
Com um abraço cordial, Duda Miranda
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De: Milton Machado Para: Duda Miranda Assunto: Um Homem Muito Abrangente Data: Sab, 17 Fev 2007 21:37:22 Anexo: TodoPoros.doc (881k)
Prezado Duda Miranda, Obrigado por seu interesse pelo Homem Muito Abrangente – alguém que, como você, vive por conta do excesso, portanto sempre em falta. Esse trabalho, exposto na coletiva “Territórios”, no ITO, em 2002, foi mostrado na Galeria do Lago, Museu da República, no Rio de Janeiro, em 2006, dessa vez uma individual. Chamar de individual algo que envolve tantas pessoas em franca exposição (expostos até o perigo do corte afiado das lâminas e das penetrações) é uma imprecisão. Note, por exemplo, no texto que lhe envio, o empenho e o rigor com que 10 ilustres interlocutores se dedicaram (de corpo e alma!) à discussão de um tema que, a julgar pela pergunta que você me faz, despertou também seu interesse. Esse texto, registro de um encontro fortuito e um tanto improvisado ocorrido na casa de Mestre Jamelão, na Escola Nacional de Circo, aqui no Rio, acabou sendo reproduzido no folder da exposição, devido a suas incríveis densidade e intensidade. Não é sempre que podemos presenciar intelectuais desse gabarito entregues a um papo-furado (a propósito, o título do texto é “Este corpo é todo poros”). Com certeza, a sua participação e contribuição ao encontro teriam sido apreciadas, já que suas dúvidas e questões parecem coincidir com as dos demais. A continuidade de nossas conversas pode, assim espero, compensar a falta. Abraços, Milton Machado
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Ficha técnica Exposição A de Arte – A Coleção Duda Miranda
A exposição foi realizada no período de 14 de maio a 21 de agosto de 2006 no apartamento 11 do edifício Duval de Barros, Rua Sergipe, 250, centro de Belo Horizonte.
Bruna Finellis e Rafael Perpétuo foram monitores da exposição.
Contou com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, da Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, do Museu Mineiro e da Associação dos Amigos do Museu Mineiro.
Foi realizada com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.
Agradecimentos Maria Letícia Nelson de Senna, Francisco Magalhães, Marilá Dardot, Matheus Rocha Pitta, Clarisse Alvarenga, Guga Barros, Cinthia Marcelle, Sara Ramo, Cristiano Rennó, Laís Myrrha, Leonardo Dutra, Fabio Morais, Santana Dardot.
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Ficha técnica Livro A Coleção Duda Miranda Este livro foi editado, desenhado e produzido por Duda Miranda, que também fez as fotografias. Publica textos de Duda Miranda, Francisco Magalhães e Maria Angélica Melendi, uma entrevista com Duda Miranda realizada por Marilá Dardot e Matheus Rocha Pitta, e as correspondências entre Duda Miranda, Lisette Lagnado, Rodrigo Moura, Clarisse Alvarenga, Marilá Dardot e Milton Machado. Foi revisado por Maria do Rosário Alves Pereira. Foi impresso em maio de 2007 pela Rona Editora. Contou com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, da Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, do Museu Mineiro e da Associação dos Amigos do Museu Mineiro.
Foi realizado com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Agradecimentos Clarisse Alvarenga, Francisco Magalhães, Jochen Volz, Lisette Lagnado, Maria Angélica Melendi, Marilá Dardot, Matheus Rocha Pitta, Milton Machado, Rodrigo Moura.
Livro DudaPBPg61a132
5/3/07
12:37 PM
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