Vilém Flusser, Livros? Livros!

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Vilém Flusser

Livros? Livros!

Como objetos, eles praticamente não têm valor. Têm um peso específico alto, e carregar somente alguns deles já pode ser uma tarefa incômoda. Na hora da mudança, a trasladação dos livros custa mais do que eles valem, e voltar a arrumá-los na casa nova é um pesadelo. Os livros são um fardo que pode ser medido em quilos, metros cúbicos e horas. Cedemos a eles como a um vício: parece que estamos sempre precisando de suas letras encadeadas, estamos sempre a abri-los para extrair deles algumas dessas letras. Os marcianos e outros analfabetos poderiam supor que livros são montes enormes, nos quais catamos letra por letra. A expressão literatura, que nada mais significa que muitas letras, só confirmaria essa opinião. Nós, os viciados, é que sabemos: os livros amontoam as letras somente por causa da informação contida em sua estrutura. Aí é que está seu valor: na informação ou software. Alguns livros contêm informações muito valiosas. Por isso é que os suportamos. No entanto isto é algo de excepcional. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, a natureza é um sistema que tende a perder informações. Os livros são, portanto, objetos desnaturais. Os seres vivos transmitem informações genéticas a seus descendentes, não porém informações adquiridas; os livros, que passam informações adquiridas de uma pessoa para outra, não correspondem portanto às leis da biologia. Os livros, todos os livros, no fundo são milagres; deveríamos cair de joelhos, quando os pegamos. De fato poucos entre nós fazem isso, embora ainda devam existir pessoas que prestem uma certa reverência ao ato de ler, mesmo na era dos computadores. Sabemos também que nossos livros acabam virando cinzas, exatamente como nós, estando sujeitos às leis da natureza da mesma forma que nossos corpos. O milagre é efêmero: a tentativa de resistir à natureza, à morte é condenada ao fracasso a longo prazo em tudo o que fazemos, tanto nos livros como na pintura, música, arquitetura, ciência e técnica. Estas energias todas serão com o tempo devoradas pelo tempo, pela entropia, caindo no esquecimento. Sob um aspecto os livros são mais tolos que os demais empenhos, pois as informações que contêm estão codificadas em forma de letras. As letras são sinais que representam os sons da língua falada. A informação contida em um livro precisa percorrer primeiramente a codificação através da língua, antes de poder ser escrita. E, para chegar até a informação em um livro, precisamos aprender dois códigos: o da língua e o das letras. A via indireta do pensamento ao livro através da língua é realmente desnecessária, e já dispomos de sistemas de sinais que permitem evitá-la. No mundo inteiro, por exemplo, as pessoas versadas em matemática entendem as fórmulas de outros matemáticos, sem conhecer sua língua. Além disso, as letras não correspondem somente aos sons; elas ainda precisam ser enfileiradas como as pérolas de um

colar. Os livros têm estrutura linear e unidimensional. Por isso contêm muitíssimo menos informações que as estruturas bidimensionais das superfícies, como os quadros, que por sua vez comportam muito menos informações que as estruturas tridimensionais, como os televisores. Por isso é que os livros são tão pesados: sendo estruturas unidimen-sionais, precisam armazenar as informações em uma miríade de linhas. Em suma: os livros são ineficientes. A maioria dos viciados em letras provavelmente não aceitará esta cçnclusão sensata. A via indireta através da língua no caminho que leva do pensamento ao livro é justamente o que esses maníacos mais amam; a informação em si pode mesmo ser menos importante que a maneira especial em que vem embalada em palavras, seqüências, eufonia. Quando abrimos um livro, participamos de uma conversa em que, quase desde o surgimento de nossa espécie, se transmitem e ampliam informações. Mais ainda - assumimos a responsabilidade por sua continuação. Quando contemplamos um quadro, nosso olhar circula pela superfície, e esse movimento circular impõe-nos uma repetição eterna. Num livro, pelo contrário, nossos olhos acompanham as linhas no texto, recolhendo continuamente informações; desta forma, cada linha leva-nos um pouco ao futuro. Cada sentença, cada argumento exige um prosseguimento. O livro concede-nos uma estrutura temporal em que cada momento é único e cada momento perdido significa uma possibilidade irreparavelmente desperdiçada. Ao ler um livro, experimentamos a urgência dramática da vida. A estrutura linear dos livros tem em si ainda algo de muito mais emocionante: cada fileira de letras aponta para algo que se encontra fora de si própria. A seqüência de letras está "chovendo" remete através da língua àquilo que vemos pela janela num dia cinzento. Mas as linhas apontam também para uma direção totalmente diversa: o livro todo é direcionado para o último ponto - isto é afinal a linearidade -, mas para além desse ponto, o livro aponta para seu leitor. Cada livro é como se alguém estendesse a mão para pegar a nossa, e quando jogamos um livro fora, ou quando o deixamos fechado, é como se tivéssemos amputado a mão estendida para nós. Aquele que nos seguir nesta leitura sem ter relação alguma com os livros vai agora franzir o nariz e entrar para a luta com o seguinte argumento: antes da invenção do alfabeto há três milênios e meio, havia dois tipos de cultura. A cultura da tradição oral (dos mitos) armazenava as informações na palavra falada, a cultura da tradição material (da magia) a armazenava em corpos sólidos. O som, o movimento do ar, era fluente e maleável - falar é quase um talento natural dos seres humanos -, mas também fugidio, e o fato de fluir tornava-o suscetível ao barulho, que deturpa as informações. Objetos como pedras e ossos prestavam-se melhor para armazenar

informações (uma faca do paleolítico contém até hoje a instrução cortar), porém eram necessários esforços consideráveis para gravá-las neles. Então chegou o alfabeto, que tornava o som visível. Ele juntava as tradições oral e material e superava ambas, abrindo o caminho para a cultura histórica. Foi uma invenção incrível. Hoje somos capazes de gravar sons em fitas ou discos e de imprimir algo em corpos sólidos com relativa facilidade. Descobrimos métodos altamente eficientes de armazenar e transmitir informações. Por que precisamos então do alfabeto? O fato de que o número de livros aumenta de maneira inflacionária, destruindo nossas florestas, mostra apenas como somos reacionários, incapazes de compreender a revolução na comunicação que está acontecendo a nossa volta. Sob este ângulo, o futuro será assim: uma elite de cientistas e técnicos usará números (algoritmos) para articular informações e comunicar-se. A maioria será informada (e manipulada) através de imagens - por exemplo através da televisão e da propaganda, que tendem a se tornar cada vez mais perfeitas. Alguns poucos continuarão viciados em letras, detestando tanto os números quanto as imagens. No que diz respeito à arte, os números dos cientistas e técnicos serão por fim convertidos em imagens, e estas imagens geradas dos números se constituirão em espaços virtuais alternativos, a partir dos quais os artistas do futuro poderão criar mundos novos. Nestes mundos não haverá lugar para as letras, e os livros desaparecerão. Nenhuma pessoa que ame os livros poderá aceitar uma visão como essa. Será que a corrente majestosa de letras, que veio rolando em nossa direção desde Homero, Dante e Shakespeare, ramificando-se em inúmeros braços laterais e alcançando-nos finalmente em seu esplendor maduro, vai estagnar em um delta de Iodo e lama? É para vocês, amantes da literatura, que escrevo este hino de louvor ao livro - em letras destituídas de qualquer sensatez.

Em: A Linguagem da Arte / Die Sprache der Kunst; catálogo da exposição realizada em Viena e Frankfurt; 1993-1994. Artigo publicado inicialmente em Artforum, 1991. Vilém Flusser (1920-1991): teórico tcheco da comunicação. Viveu durante muito tempo no Brasil.

Publicado na Revista Humboldt nº 70, ano 37. Bonn [Alemanha], 1995.


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