Scheherazade de Iolanda Gomis Parada
Scheherazade Alta executiva de negócios desaparece no mar na passada noite. A hipótese que se maneja é a do suicídio, mas a investigação continua aberta. Este era o titular que estava a ler Ayhesa na secção de sucessos do Jornal da Noite quando o timbre da porta soou estrondosamente. -Bom dia, é você Ayesha Dos Santos? -Sim, bom dia. Com quem falo, diz através do telefone que a comunicava com a porta da rua. -Sou Priyanka Gonçalves Pais do Jornal da Noite. Gostaria de manter uma conversa com você sobre o fatal caso da senhora Collete Nunes Altesor. -Mas eu não sei em que posso ajudar… suba de todas as maneiras. Priyanka Gonçalves era uma conhecida repórter dedicada por inteiro à sua carreira profissional. Entre as suas dedicações estava a de esclarecer casos de assassínios de mulheres para uma publicação um tanto polémica, Scheherazade. A publicação Scheherazade costumava fazer seguimento dos feitos mais escuros ao redor da morte de mulheres a mãos de máfias organizadas de exploração, jogo, narcotráfico e prostituição. Ayesha não acreditava na visita deste destacada mulher, mas o que a descolocava até limites insospeitados era o feito de que desejasse entrevistá-la para falar de Collete Nunes, mulher que Ayesha não conhecera em toda a sua vida. Ao longo dos minutos que corriam enquanto Priynaka subia no elevador, Ayesha teve tempo a reparar nos milhões de motivos que poderiam trazer a esta reputada jornalista à sua casa. Pensava noutros tempos, na sua chegada a Brasil desde a China. Trasladava-se ás máfias que ela mesma conhecera, aos seus tempos como prostituta, quando teve que fazer pagamento da sua viagem fechada em Bordéis para luxuosos executivos. Mas aqueles tempos já foram lá, agora Ayhesa dirigia uma casa de jogo e espetáculo na outra ponta da grande cidade, justo no extremo contrário no qual Collete Nunes desaparecera. Era impossível que aquele caso tivesse relação
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alguma com ela, com a sua história, com a sua escura história. Collette Nunes era também de origem chinês, mas a sua vida tinha transcorrido quase inteiramente no Brasil, na mesma cidade na que agora aparecera morta, Brasépole. Collette era uma mulher conhecida em toda a cidade, e mesmo muito conhecida nos círculos industriais do país inteiro. Filha de um grande industrial das infraestruturas convertera-se numa engenheira informática muito relevante que levou da mão da tecnologia ao negócio das comunicações terrestres no Brasil, desde a sua consolidação como máxima dirigente da empresa. Collette foi adotada pelo pai e a mãe diante da impossibilidade de terem filhos próprios nos anos 70. Ayhesa conhecia todos estes dados porque eram de domínio público. Gostaba daquela mulher, sentia com ela uma proximidade especial quando aparecia em entrevistas televisivas ou radiofónicas. Sentia aquela sensação de achegamento a ela, pela procedência comum das duas, pela dureza da vida que projetavam também os olhos dela. Não sabia de certo qual era a causa mas algo a unia a aquela mulher, o sofrimento num mundo agressivo que as tinha recebido ás duas. Ela, Ayhesa, que vivera desde o mais baixo e degradante até a situação atual de certa liberdade e esperança, Collete, demonstrando com o trabalho que podia integrar-se nesse mundo competitivo e hostil da grande indústria familiar. A jornalista, Priynaka Gonçalves Pais, golpeou levemente a porta entreaberta ao tempo que falava. -Ayhesa, posso entrar, está você disponível?
-Sim, adiante! Priynaka saudou a Ayhesa com muito agarimo, como se se alegrasse de encontra-la bem. Ayhesa estava sobre passada pela situação, se calhar aturdida, não chegava a interpretar o sentido de todo aquilo que estava a acontecer. Não sabia qual era o papel dela naquela história, quais as relações, quais os motivos. -Suponho que lhe surpreenderá esta visita, tenho muito que lhe explicar Ayhesa. Ao
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começo você não vai acreditar mesmo no que lhe tenho que relatar, mas o importante é que você tenha conhecimento desde agora mesmo de que a sua vida corre sério perigo. Temos já dois vigiantes na porta principal, e ademais em questão de minutos um vigiante chegará ao apartamento para ficar com você até que o caso se esclareça nos próximos dias. Ayhesa sentiu que a cabeça lhe dava voltas, sentiu-se esvaecer, chegou por trás dela um sopro geado de vento horrível, um golpe no ventre numa noite escura, um aturdimento geral. Enquanto Priyanka falava a vida de Ayhesa passava diante dos seus olhos, sem explicações, sem ordem, sem sentido, sem tino. Por que? Pensava ao tempo que intentava compreender todo o que a admirada jornalista lhe começava a relatar... Que relação podia ter ela com o casso daquela mulher, simplesmente não acreditava, não reagia. Os seus pensamentos vinham desordenados à cabeça lembrando os muitos sujeitos perigosos que conhecera noutros tempos, mas que relação podia ter ela com Collete. -Ainda que seja difícil acreditar Collete Nunes era colaboradora habitual da nossa revista. A ninguém se lhe escapa o enorme acesso à informação que tinha esta mulher. Eram bem conhecidas as suas habilidades com os computadores. E não entendemos o porque ao longo da sua vida sempre se cuidou de aplicar os seus conhecimentos a tarefas de duvidosa legalidade. Seguia muito de perto a grande número de empresários da nação, conhecia segredos do mais escuro de muitos dos seus parceiros de negócios. Não é difícil imaginar que estes segredos eram questões escuras e feias, questões que lhe eram úteis para conhecer ás pessoas com as que trabalhava. Em muitas ocasiões tem ajudado a esclarecer casos de tráfico de mulheres relacionados com alguns industriais relevantes do Brasil. Mas como poderás imaginar Ayhesa... Era muito importante que a sua colaboração não fosse conhecida publicamente. De ter-se conhecido esta atividade de Collete, todo o seu círculo de relação fugiria dela e a colaboração com Scheherazade fracassaria.
-Então, Priynaka, sigo sem compreender. Não encontro a relação. Entendo que a pudessem assassinar pela atividade que ela desenvolvia. Se calhar alguém descobriu
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a sua atividade oculta, alguém com motivos para cometer tal delito. Mas eu continuo sem representar nenhum papel nesta história. Não é? -Tem um papel e não é precisamente secundário Ayhesa. Ainda estou investigando pistas que a própria Collete deixou nos seus trabalhos e nas suas investigações. Não posso dizer-lhe qual é a relação exata que você tem em toda esta trama, mas tem alguma, de certo, porque Collete tinha fotografias suas, notas incompressíveis onde aparece seu nome... E Collete Nunes, asseguro-lhe que não atuava de jeito fortuito nem desorganizado, cada nome anotado, cada informação e cada fotografia tinham um significado claro em cada uma das suas investigações. Quando Priynaka estava relatando todo isto, com a atenção de Ayhesa posta em cada palavra que a jornalista pronunciava soou um celular. Era o telefone de Priynaka. Ayhesa escutou uma conversação que semelhava ter relação com o casso. A jornalista parecia alterada e preocupada, semelhava não acreditar na informação que alguém ao outro lado do telefone estava comunicando. Quando desligou olhou serenamente para Ayhesa. Depois duns segundos nos que semelhava retomar o ritmo normal da sua respiração disse: -Tenho que sair, tão só será um momento. Isto é algo urgentíssimo que poderia deitar luz sobre a situação. Você fique no apartamento. Nestes momentos está subindo o seu anjo da guarda no elevador. Quando ele chegue eu marcharei para volver num breve espaço de tempo. Ayhesa ficou novamente paralisada. Um homem muito forte e musculado atravessou a porta do apartamento nesse mesmo instante. Sim, era alguém que podia ser descrito como um agente especial para a própria seguridade dela. Mas Ayhesa não sentia que precisasse proteção, já tinha vivido muitas situações de violência e perigo mas sempre se amanhara bastante bem soa. Ou isso quis crer ela toda a sua vida porque a sua autodefesa tinha sido imprescindível para sobreviver. Nesse mesmo instante Ayhesa caminhou cara a janela, algo fazia que a sua
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curiosidade crescesse a cada passo. Desde ali viu como Priynaka saia do edifício e caminhava cara ao pequeno parque situado fronte à sua própria vivenda. Na esquina direita do parque estacionou um veículo com cristais escuros. Dele desceu uma mulher com sombreiro e lentes de sol. Um pano enorme rodeava o seu pescoço. De longe semelhava que a jornalista estava muito surpreendida e abraçava à mulher envolta em sombreiro, pano e óculos. Era impossível poder ver o rosto da mulher com todos aqueles enfeites. Priynaka mirou de jeito nervoso ao redor e rapidamente
outros dois agentes, como o que se atopava no apartamento de Ayhesa, dirigiram-se às duas mulheres. Depois caminhavam todos juntos fora do campo de visão de Ayhesa. Isto provocou ainda mais nervosismo e desesperação para ela. Algo a atraia cara a rua, de não estar ali o seu anjo da guarda teria baixado imediatamente. Sem tempo para reaccionar Ayhesa ouviu de novo o timbre da porta do edifício. O agente atendeu ao telefone e premeu para abrir. Os minutos em que o elevador subiu de novo ao apartamento fizeram-se eternos. Estava totalmente paralisada e não chegava a compreender. De costas à porta seguia na janela mirando ao infinito quando escutou a voz de Priynaka que parecia relaxada e aliviada. -Ayhesa, quero que conheças a … Olhou cara atrás e pareceu-lhe ver ali mesmo a Collete Nunes, a mulher desaparecida da que estavam a falar havia apenas 15 minutos. Ayhesa, desculpe que a enredasse em todo isto, não compreenderá mas vai compreender. Priynaka não sabia decerto o que estava acontecendo, e era lógico que pensa-se que você corria perigo. O que vou contar-lhe não a vai deixar indiferente, assim que rogo-lhe paciência e compreensão, ainda que penso que a tem sem quase conhece-la. O mais importante que tem que saber é que você me salvou a vida. Graças a uma curiosa coincidência descobri que meu pai tinha usado os seus serviços – já me compreende-. Uma coincidência ou uma curiosidade inata pela minha parte. Como meu pai também me tinha Livro Noturno. Ed. AG. Sao Paulo. Brasil Scheherazade
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vigiada soube que eu descobrira os seus segredos mais escuros e descobriu no mesmo tempo a minha colaboração com Scheherazade. Ele ia colocar toda a informação nos médios e arruinar toda a minha reputação, era a sua especial chantagem para não ficar afetado pelos meus descobrimentos. Então eu segui investigando porque o seu parecido comigo fazia que o meu ódio ao meu pai se fizesse cada vez mais grande. Sentia-me violada por ela sem ter acontecido nada, mas algo de verdade havia... Você Ayhesa é a minha irmã, de aí o nosso parecido, vindas da China em vagões diferentes corremos diferentes sortes. Este descobrimento levou-me a mudar em todos os meus pensamentos. Já não queria formar parte do mundo em que vivia. Tinha medo também por você porque meu pai a intentasse eliminar por medo a que eu sacasse á luz pública as informações. Só sei que a única saída que se me ocorreu foi volver a nascer e desfazer-me de toda a vida inventada que tinha ás minhas costas. Busquei uma identidade nova, criei um cenário para o suicídio num lugar onde fosse impossível encontrar o cadáver e aqui estou. Espero que possa você perdoar-me. Ayhesa sentia muitas emoções a um tempo. Sentia alívio porque aquela mulher não morresse, sentia pena e melancolia, acumulada ao longo da vida a aflorar naquele momento. Mas sentia sobre tudo desejos de abraçar a Collete, não sabia muito os motivos, mas sentia. Collete semelhava sentir o mesmo. Achegaram-se aos poucos e fundiram-se num longo abraço enquanto Priynaka as olhava com a maior cara de reconforto que Ayhesa jamais tinha visto.
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