A construção de um deserto

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A construção de um deserto


A brasiliense Ana Miguel oferece-nos Construção de um deserto. Contrapondo-se à massa edificada das cidades, à ausência de linha de horizonte a interromper o espraiamento dos olhos e da imaginação, a artista nos coloca diante de uma paisagem baixa, um campo leve de areia e vento a alterar incessantemente seus contornos, fazendo variar a localização de suas dunas, estancado entre parede e parede, como o cenário de um pequeno teatro, um lugar fora do tempo e do espaço. Em uma das dunas, a artista colocou uma casa de crochê vermelho, uma construção insólita, que traz a marca do tempo já na tessitura das linhas e que dentro abriga minúsculos artefatos, instrumentos de perfuração, como agulhas ou pequenos brinquedos, simulacros com os quais invade-se e compromete-se o imaginário infantil. Ainda dentro da casa, a projeção de imagens de seres extravagantes, quando não a ação constante do vento perpetuamente desfazendo o gume das dunas de areia. Agnaldo Farias, In: catálogo da 25ª Bienal Internacional de São Paulo.


A Construção de um Deserto, 2002, detalhe The Construction of a Desert, 2002, detail


A Construção de um Deserto, 2002 vídeo, audio, lã, areia rosa, agulhas, fragmentos de louças, fragmentos de brinquedos, vista da instalação na 25ª Bienal Internacional de São Paulo The Construction of a Desert, 2002 video, audio, wool, pink sand, needles, dices, fragments of china, fragments of toys, installation view at the 25ª São Paulo International Biennial


A Construção de um deserto, 2002, detalhe do interior da casinha The Construction of a Desert, 2002, detail with view of the interior of the small house


A construção de um deserto, 2002, detalhe com máquina desertificadora The Construction of a Desert, 2002, detail of the desertification machine



Ana Miguel, from Brasilia, offers us Construção de um deserto (Construction of a Desert). As a counteraction to the cities’ built-up masses and the absence of a horizon line to check the wandering of the eyes and the imagination, the artist places us in front of a low-lying landscape, a light field of sand with the wind continuously changing its contours and shifting the location of the dunes, firmly fixed in between the walls, like the setting of a small theatre, a place out of time and space. On one of her dunes the artist placed a house done up in red crochet, a bizarre construction that houses in its interior minute artifacts, drilling instruments such as needles, or small toys, simulacra used to invade and damage the children’s imagination. Yet inside the house, images of extravagant beings are projected, followed by the continuous actions of the wind that constantly unravels the edges of the sand dunes. Agnaldo Farias, In: catálogo da 25ª Bienal Internacional de São Paulo.


A Construção de um Deserto, 2002, detalhe com vídeo duna The Construction of a Desert, 2002, detail with video dune


A Construção de um Deserto, 2002 vista da instalação na 25ª Bienal Internacional de São Paulo The Construction of a Desert, 2002 installation view at the 25ª São Paulo International Biennial


A construção de um deserto, imagens dos vídeos fanstasmas, 2002 The Construction of a Desert, ghosts, video stills, 2002


PROJETO Narrativas, Iluminações, Sonhos e Miragens Lúcidas Quando Claire tenta prevenir o Dr. Silverman de que seu marido está sendo assassinado por um psicopata no quarto de um decadente hotel na beira do lago, e lhe pede desesperadamente para avisar a polícia e tentar evitar uma tragédia, este lhe responde com toda a certeza de um discurso científico: ‘ – Claire, quem sonhou essa cena foi você, logo esse seu relato corresponde a uma manifestação do seu desejo.’ No entanto, no filme A Premonição, (In dreams), de Neil Jordan, os sonhos são tratados de maneira mais complexa do que a leitura normalizadora que o personagem do Dr. Silverman gostaria de manter para a teoria Freudiana. O sentido do ‘sonho como manifestação do desejo de um sujeito’, com que Freud reescreveu nossa apreensão da realidade onírica no final do século XIX, torna-se incapaz de solucionar a tragédia narrada por Jordan em seu filme, ao ser repetido de maneira estéril pelo personagem Dr. Silverman. Enquanto os personagens não despertam para o entrecruzamento de recordações e memórias contidas nas revelações/premonições de Claire, o cenário se torna cada vez mais cruel e dominado pelo crime e pela morte. Sabemos que Claire, além de sofrer as alucinações/premonições, se dedica a reescrever e ilustrar antigos contos de fadas. Poderíamos dizer que o conto de outro desejo, o do personagem /psicopata Vivian, faz chegar uma iluminação telepática aos sonhos do personagem Claire. Quem sabe numa tentativa de, ao introduzir uma recorrente instabilidade na ordem de conhecimentos da comunidade onde Claire habita, sublinhar que todo efeito de sentido revela-se eternamente submetido a sua reescritura, que toda estabilização do sentido se evidencia efêmera, transitória, fio pronto a soltar-se de um tecido para ir bordar em outra malha, tessitura interminável. ‘O labirinto é a pátria de quem duvida. O caminho daquele que tenta chegar ao final desenhará facilmente um labirinto’ Walter Benjamin, 1938. Manter o olhar desautorizado, inocente, flâneur, pronto a captar o nômade fio de um sentido em sua interminável tessitura. Ou mesmo habitar a dor do sem-sentido. Viver um não-acabamento essencial. Duvidar das inteligentes e bem construídas proposições nihilistas. Estar perfeitamente consciente de que o sonho positivista de nomear adequadamente o mundo fornece o instrumental adequado para seu submetimento, domesticação e mercantilização, criando um constante espetáculo de novidades bem definidas, multiformes modas a serem consumidas… Saber que se fracassa sempre ao se tentar dizer aquilo que se ama… E seguir tentando identificar os deslizamentos, a rota nômade dos sentidos possíveis. Penso que essas são as minhas principais tarefas como artista.


Proponho a construção de uma paisagem/deserto, onde três dunas concentrariam três experiências ligeiramente diferentes e similares entre si. Duas dunas conteriam vídeos, pequenas narrativas áudio visuais. A terceira duna seria constituída por uma alegoria da casa como mundo, contendo um áudio e fragmentos de objetos preciosos.

A paisagem é aqui pensada e construída como um lugar onde o ser humano direciona seu olhar à natureza e pensa sua ação nela. O deserto é a paisagem onde a mais mínima ação repercute. Onde nossas experiências são necessariamente redimensionadas. Uma mosca ao caminhar sobre as finas areias deixa seu rastro, que é lentamente apagado pelo perene movimento da duna sob o vento. Os minerais parecem adquirir vida. Caminhar à noite pelo deserto é como perder-se em um bosque de estrelas e corpos celestes, denso labirinto sem paredes. O deserto também é o território privilegiado das iluminações, onde nosso desejo produz as mais lúcidas miragens. No deserto, os diferentes povos nômades teceram um mar de histórias: a forma narrativa entendida como acervo de experiências da vida. O narrador, segundo Walter Benjamin, ‘… pode recorrer ao acervo de toda uma vida, uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia.’ Jeanne Marie Gagnebin, em comentários sobre a obra de Benjamin, destaca que a narrativa teria o caráter de obra de arte aberta, o que apontaria para uma ‘profusão ilimitada de sentidos’. Seguindo com Walter Benjamim, podemos recorrer ao conto de fadas para liberar-nos do ‘pesadelo mítico’, dos dogmas que podem paralisar nosso pensamento e nossa ação. Pois ’… o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância.’


Na construção da paisagem do deserto, recobriremos todo o chão da sala (ou espaço a ser ocupado) com saibro e areia rosa, conformando um solo vermelho rosado, macio e irregular. As três dunas, com os dois vídeos e a casa, serão pequenos, medindo no máximo 50 x 50 x 50 cm cada uma, para acentuar a experiência de vazio e solidão em relação ao espaço total da obra. A obra necessita de um espaço relativamente grande, para proporcionar uma experiência de solidão. Os dois aparelhos de TV, com vídeo incorporado, estarão acomodados em caixas plásticas para protegê-los do saibro e da areia. A aparelhagem estará conectada a estabilizadores de eletricidade. Também devemos prever canaletas plásticas para proteger a fiação elétrica, que estará escondida sob o ‘deserto’. As duas TVs estarão vestidas, sob capas executadas em crochet com lã, mesmo material a ser utilizado para execução dos personagens dos vídeos. Todo o maquinário e a fiação estarão escondidos.


A ‘casa como o mundo’ terá uma estrutura em metal cromado semelhante aos desenhos simples e populares de casinhas. Sobre a estrutura estará um tecido com a mesma forma, realizado em crochet. Esse crochet terá vários pontos de esgarçamento, de tecido desfeito, por onde poderemos visualizar o interior da casinha. No interior veremos fragmentos de coisas consideradas preciosas, tais como cristais e porcelanas quebrados, anéis desfeitos, com suas pedras caídas, pedacinhos de brinquedos antigos, materiais de costura e bordado, e verdadeira areia do Saara. Também se escutarão, com a voz de alguém que narra contos de fadas, fragmentos de discursos utópicos escolhidos entre diferentes autores. Os discursos utópicos estão sendo por mim escolhidos entre autores que se dedicaram a diferentes campos do saber, de diferentes nacionalidades. O aparelho de áudio estará cuidadosamente escondido.


fotografia/ photography: Juvenal Pereira

www.anamiguel.com


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