Je t’adore
Quando Ann Bernachin me propôs uma intervenção no Le Vivat, teatro da pequena cidade de Armentières, entre a França e a Bélgica, eu ainda não sabia que estava começando a trabalhar em uma trilogia. Nesse momento, eu tinha apenas um livro e uma caminha. E a vontade de nomear « Je t’adore » minha instalação… When Ann Bernachin asked me to do an intervention at Le Vivat, a theatre house in the small city of Armentières, situated between France and Belgium, I did not know that I was starting a trilogy. All I had was a book and a small bed. And the wish to name my installation as “Je t’adore”...
Escolhi trabalhar com os dois objetos em dois espaços do teatro : o grande hall onde as pessoas esperam antes do espetáculo e o pequeno camarim ao lado do palco, lugar secreto e vedado ao público. Eu desejava transformar o hall em cena, e nela incluir o público. Coloquei ali a caminha de bonecas, com um colchão transparente recheado de palavras bordadas como as fitas que identificam as roupas das crianças na escola. Ann encontrou uma cama semelhante, em dimensões humanas, para a qual preparei travesseiros que sussurravam palavras amorosas, « Je t’adore » et « Je t’écoute ». Afinal, na França, dizem « oreiller », lugar para colocar a orelha, ao designar um travesseiro. Com o material utilizado para forrar o palco do teatro, demarquei no hall um espaço branco onde situar meus objetos. Forneci grandes pantufas vermelhas para que os espectadores pudessem caminhar nesse espaço. E protegi as duas caminhas com tule, para que as pessoas pudessem descansar tranqüilas ao deitar-se. Ao chegar, o visitante recebia instruções relatando as diferentes possibilidades de interação. Ao vestir as pantufas, uma operação formal e cromática o incluía na cena preparada. I chose to work with the chosen objects in two of the spaces in the theatre: the large hall where people normally wait before a show, and a small dressing-room situated next to the stage, a secret and sheltered place. I wanted to use the hall as scene and include the audience as well. I placed the small doll’s bed there, the transparent mattress filled with embroidered words like the ribbons used to mark children’s clothes at school. Ann found a similar bed with human dimensions, for which I made pillows that could whisper loving words such as “je t’adore” and “je t’écoute. In France they say “oreiller” for pillow, referring to the place we rest our ears. I used the same material to cover the stage to indicate, in the hall, the place of the objects. I offered red slippers to the viewers so that they could walk through this white space. I covered the two small beds with tulle so that people could relax and lie on them. On their arrival, visitors would be instructed on how to engage in different interactions with the space. By wearing the red slippers they would start a formal and cromatic operation which included them in the scene previously set.
Seguindo o fio vermelho espalhado pelo chão, as pessoas podiam encontrar o pequeno camarim onde estava o Livro para Rapunzel. O espaço estava todo branco, recoberto com pó de talco e iluminado em rosa suave. Sobre a mesa normalmente destinada à maquiagem coloquei pequenos objetos, semelhantes a brinquedos, feitos em plástico, cartolina, fios de bordar, palavras e açúcar, fragmentos sugerindo memórias. Nesse espaço reduzido e fechado, as pessoas escutavam minha voz, gravada em áudio, repetindo meus comentários ao conto Rapunzel, dos irmãos Grimm. Following the red threads scattered on the floor, they could get to the small dressing-room, where the Book for Rapunzel had been placed. The room was covered with white talc and lit by a soft pink light. On the table where the actors make-up products are usually set, I laid small objects resembling toys made of plastic, cardboard, embroidery threads and words molded in sugar, fragments suggesting memories and recollections. In this intimate space people could listen to my voice, recorded in audio, comment on Rapunzel by the Grimm Brothers.
Em fevereiro Je t’adore seguiu caminho para Liège, na Bélgica. A curadoria da Bienal de Fotografia e Arte me propôs uma exposição no Espaço Flux. Eu não poderia estar presente, mas acertamos os detalhes da montagem trocando fotos e mensagens . O espaço da galeria, uma casa com dois andares, e o endereço « rue du paradis », me pareciam propícios à uma boa leitura do trabalho. Sei que nevou abundantemente durante a exposição, pelos relatos emocionados que me enviaram alguns visitantes. In February Je t’adore set off to Liège in Belgium, after a suggestion by the curator of the Photography and art Festival that I should show at the Espace Flux. I could not go in person, but we detailed the montage through an exchange of photos and e.mail messages. The gallery space, a two-storey house, and the address,” rue du paradis” seem to me conducive to a good reading of the work. Later, moving testimonies were sent to me by some visitors, and I learned that it had snowed copiously during the duration of the exhibition.
Outras propostas de exposição se confirmaram, para o Rio de Janeiro, na Galeria Anna Maria Niemeyer, e para Buenos Aires, na Galeria El Borde Arte Contemporáneo. Continuei desenvolvendo o trabalho entre os dois objetos iniciais, livro e caminha. Decidi construir diferentes camas para os diferentes espaços onde exporia. Eu ainda tinha duas caminhas de boneca, idênticas, interligadas por fios com as frases « L’enfant que tu étais » e « L’enfant que j’étais ». Encontrei um marceneiro que realizou uma cópia dessas caminhas, em tamanho infantil, com 80 x 160 cm. O visitante adulto, convidado a deitar-se, se acomodaria quase perfeitamente, num possível espelhamento da sua dimensão na infância, escala perdida no tempo. Offers for further exhibitions were at this point confirmed, one at Anna Maria Niemeyer Gallery, in Rio de Janeiro, and the other at the El Borde Arte Contemporáneo Gallery, in Buenos Aires. I kept thinking around the two initial objects, the book and the small bed. I decided to make different beds for each space. From the two identical small beds I had kept from the previous shows sprang red threads with labels that read “l’enfant que tu étais”e “l’enfant que j’étais”. I found a carpenter who made a life-sized copy of these toy beds. The visitors, invited to lie down on the bed, would fit almost perfectly and refer to their size as children, a scale lost in time.
A Galeria de Anna Maria foi projetada por seu pai, Oscar Niemeyer. Criada nos anos 70, contém um detalhe em forma de um olho, figura recorrente no trabalho do arquiteto, que sempre me interessou. Pedi para utilizá-lo. Editei um vídeo com imagem em zoom de um coração vermelho sobre a neve, em uma longa e contínua pulsação. Instalei o vídeo em retroprojeção no olho, como se fosse sua pupila, um olhar ideal e amoroso pairando sobre minha exposição. Anna Maria’s Gallery was designed by her father, the architect Oscar Niemeyer. Built in the 1970’s, it contains an eye-shaped feature, a recurring item in his work, which had always interested me and which I now wanted to make use of. For that purpose, I edited a video with a zoom image of a red heart throbbing in the snow in a long and changeable pulsation. I set the video in retroprojection inside the eye, where it acted like its pupil, like an ideal and loving gaze which floating over my show.
Passei o ano de 2005 entre diferentes livros e cidades. Livros trazidos de Bruxelas, livros recomendados por amigos, novas edições de antigas leituras. Espaço e tempo, memória e palavras, noções constantes no meu trabalho. Muitos desses livros continham cenas passadas em camas, relatos do momento de dormir, de despertar, alongar o corpo, amar e sonhar. Empreendi uma deliciosa e atenta leitura dos textos, anotando e selecionando as palavras em comum e suas repetições. No espaço da exposição, os fios vermelhos deviam conduzir uma palavra à sua igual nos diferentes livros. Entre as narrativas de Mowgli, l’enfant sauvage, a fronteira, a biblioteca, o sonho de uma noite de verão, o desenho dos fios vermelhos costurava o esboço de um transporte físico e mental. I spent 2005 between different books and cities. Some books, new editions of previous bindings, were brought from Brussels, others were recommended by various friends. I was dealing again with space and time, memory and words. A great deal of them had scenes happening in bed, narrations of sleeping, waking up, stretching the body, making love and dreaming. After a delightful and careful reading of these texts, during which I noted some common and recurring words, I chose a few. Finally, the red threads would connect each word to the same word found in another book. The narratives contained in Mowgli, l’enfant sauvage, the border, the library and the midsummer night’s dream are sown together and projected into the scope of a mental and physical transport.
As duas primeiras camas eram ampliações de brinquedos. Agora, eu queria receber uma cama real como modelo, desejava trabalhar a partir de uma cama verdadeira oferecida por outra pessoa. Contei meu projeto à Olga Martinez e Alina Tortosa, que me haviam convidado a expor em Buenos Aires. Na área que antecede a galeria El Borde, meu comentário em áudio do Livro para Rapunzel acolhia os visitantes. Funcionava como um prólogo à exposição, inversão especular da primeira instalação. The two first beds were modelled after toys. Now I wished to use as a model a real bed, offered by someone else. I discussed this idea with Olga Martinez and Alina Tortosa, who had invited me to do the show in Buenos Aires. In the convivial area prior to the actual space of the gallery, my audio comment of the Book for Rapunzel reached the visitors before they entered, acting as a prologue, in a specular inversion of the first setting.
A Galeria El Borde foi projetada em um antigo depósito. Painéis brancos e uma estrutura de iluminação foram sobrepostos à sua construção original de velhos e rústicos tijolos. De alguma maneira, eu queria trabalhar essa transformação, pensar o espaço entre suas características originais e o projeto contemporâneo. Os cabidezinhos de brinquedos com que Leonor Azevedo me presenteou sugeriram uma solução : extravagantes roupinhas de boneca, um guardaroupa completo, teria seu lugar entre o painel e o chão. The El Borde Gallery was projected in an old warehouse. White panels and lighting structure were added to its original construction, made of old and rustic bricks. I wished, somehow, to comment on this transformation, to think about the space that lay between its original characteristics and the contemporary project added to it. Leonor Azevedo had given little toy hangers which pointed me to a solution: I would set extravagant doll clothes, a full wardrobe, between the panel and the floor.
Outro detalhe do espaço me chamou a atenção. Através das fotos recebidas eu intuía um pé direito muito alto. Boa ocasião de lembrar a trança de Rapunzel, objeto de minhas preocupações iniciais na releitura do conto. Realizei uma longa trança de lã, com 10 metros, nela incluindo um fio vermelho com palavrinhas bordadas, estabelecendo um eixo vertical entre o teto e o chão da galeria. Another detail of the space occupied my thoughts. Through the photos received, I could sense a very tall ceiling which gave the opportunity to think about Rapunzel’s tresses, which were the object of my initial concern as I re-read the tale. I decided to make a long tress of wool of about 10 metres in which there was emmeshed a red thead with embroided little words, creating thus a vertical axe between the gallery’s ceiling and its floor.
Alina me ofereceu a cama onde haviam dormido sua filha e, posteriormente, sua neta. Enviou fotos com as dimensões. À imagem dessa cama recebida, construí com açúcar uma caminha de bonecas. Assim fechei minha investigação sobre espelhamentos e transformações : uma trilogia de livros e camas. Alina offered me the bed where her daughter had slept as a child and, later on, her grandaughter. She sent me its photos and dimensions. To the image of this bed I built, with sugar, a small doll’s bed. So I closed my reflections on the themes of specularity and transformation: the bed and book trilogy was concluded.
fotografia/ photography: Lino Polegato: 12,14, 15 Wilton Montenegro: 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33 Perguntar: 39 Win ... : 43 versĂľes para o inglĂŞs/ english versions: Ana Teresa Jardim Reynaud
www.anamiguel.com