modos de atravessar o deserto
Fire Alarm, 2012 livro de Michael Löwy comentando as teses sobre o conceito de história de W. Benjamin, papel de arroz, carimbos e fios de algodão. Fire Alarm, 2012 book by Michael Löwy on Walter Benjamin’s thesis on the concept of history, rice paper, stamps and cotton thread.
O ato de pensar se fundamenta não só no seu movimento, mas também no seu bloqueio. Suponhamos o movimento do pensamento bruscamente bloqueado – uma constelação saturada de tensões se produz no choque. Uma sacudida de tensões que conduzirá a imagem, a constelação, a se reordenar no inesperado, a se cristalizar em mônada. Só podemos falar em progresso quando o desenrolar histórico desliza entre os dedos do historiador, qual um fio liso. Mas trata-se de uma corda muito esfiapada e desfeita em mil mechas, que tombam como tranças desfeitas. Nenhuma dessas mechas tem seu lugar determinado antes de ser outra vez penteada em tranças. O método histórico é um método filológico, cujo fundamento é o livro da vida. Em Hofmannsthal anotamos: ler o que jamais foi escrito. O leitor em quem pensamos aqui é o verdadeiro historiador. A imagem autêntica do passado só aparece num fulgor. Imagem que surge só para se eclipsar no momento seguinte. W. Benjamin, Sobre o conceito de história
vista da instala巽達o na galeria Moura Marsiaj, S達o Paulo, SP installation view at Moura Marsiaj Gallery, S達o Paulo, SP
1… 2… 3…, 2002 lã, talco, plástico, cristal. 5,5 x 100 x 26 cm 1… 2… 3…, 2002 wool, talc powder, plastic, crystal.
organismo enigmático h, 2012 paina, fio de nylon, fio metálico, cristal, agulha de crochet. 6 x 12 x 6 cm enigmatic organism h, 2012 kapok, nylon thread, crystal beads, crochet needle.
organismo enigmático g, 2012 paina em seu ramo, fio de nylon, fio metálico, cristal. 15 x 11 x 15 cm enigmatic organism g, 2012 kapok in its branch, nylon thread, wire, crystal beads.
organismo enigmático f, 2012 paina em seu ramo, fio de nylon, fio metálico. 18 x 13 x 20 cm enigmatic organism f, 2012 kapok in its branch, nylon thread, metallic thread.
aparelho, 2002 tule elĂĄstico, fita de veludo, lĂŁ, botĂľes antigos, estrutura em metal, bordado. 38 x 30 x 35 cm device, 2002 elastic tulle, velvet ribbon, wool, vintage buttons, metallic structure, embroidery.
qual de vocês sabe brincar de gato e rato ?, 2012 foto e desenho sobre ilustração de livro infantil antigo. which one of you know how to play cat and mouse?, 2012 photo and drawing on children’s vintage book illustration.
Silenciosamente, 2012 madeira balsa, agulhas de ouro, dado de plรกstico, fio metรกlico, seda, bordado, fotos de Port Bou em 1940. 9 x 52 x 27 cm Silently, 2012 balsa wood, gold needles, plastic dice, wire, silk, embroidery, pictures of Port Bou in 1940.
O deserto nos conta histórias em silêncio. Diante da paisagem ou mentalmente instigado pela imaginação, o deserto existe mais forte numa visão obscura da alma. Lá encontramo-nos com nós mesmos. A ausência, condição fundamental, cria inúmeras possibilidades metafóricas. Seria a finitude ou o começo das coisas, do mundo? Uma simples linha, um simples traço podem servir de vetores, setas a seguir. Vetorizar é construir estradas, perspectivas, linhas de fuga. Assim, construiu-se a própria ilusão na arte, abrindo janelas em panos de linho. Portanto, ilusão, vontade construtiva, autorreflexão parecem indissociáveis dos modos de atravessar o deserto. (...) Inicia-se, então, a jornada. Falamos em jornada e incluímos, inicialmente o tempo da travessia. O tempo é uma segunda natureza, dirá Norbert Elias. A viagem desestabiliza o sujeito que precisa assumir um personagem. Olhar o deserto é negociar seu estatuto de outro, de estrangeiro. Mas a arte quer, em alguns casos, negar seu estatuto de extraterritorialidade, quer chegar mais perto, mais perto, até sentir, de forma confusa, a imagem internalizada, atravessada. A tal ponto que a partir dali não sabemos se estamos projetando sobre a paisagem uma miragem, imagem interna, ou se ainda podemos ter algum grau de distanciamento para nos socorrermos, rapidamente, e em busca do alívio sacarmos a máquina fotográfica. Pronto, transformamos o deserto em suvenir, guardamo-lo. A experiência vivida não se contentará em residir no fundo escuro invisível, inaudível do pensamento. Ela, como imagem, objeto, sensação de corpo retornará. Descrever e escrever a viagem são dois estados de alma, “entre um texto a vir e um texto advindo”, dirá Marc Auge, propondo uma antropologia da mobilidade. E a arte, aqui, se faz desta maneira, metaforizando sensações, descrevendo paisagens, oferecendo-nos fios de conexão e desalinho, lançando palavras e imagens aos ventos que a tudo fazem erodir. (...) Silenciosamente, detalhe, 2012 Silently, detail, 2012
Per te, 2012 metal, seda, fios de algod達o. 6,5 x 6,5 x 6 cm Per te, 2012 metal, silk, cotton thread.
Por serem secos, os desertos são ideais para conservação de fósseis, o brilho das pedras preciosas, por exemplo, necessita de certa fossilização para alcançar a plenitude, a total transparência. Desertificação, silêncio, tempo acumulado são modos de abordar o trabalho de Ana Miguel. Pensando a história como imanente, onde cada momento vivido seria uma citação à ordem do dia, Ana busca o sentido benjaminiano de presente. Ali misturam-se realidades, relatos, descrições e crônicas internas, sonhadas, intuídas, verbalizadas depois de uma longa pausa de silêncio. O silêncio. O passado, dirá Benjamin, só se deixa fixar como uma imagem que relampeja. E Ana Miguel faz destes momentos luminosos uma troca quase confessional como quem abre caixas, guardados e o mundo já não mais obedecera a lógica ordinária das arrumações. Do fundo escuro das caixinhas acolchoadas, forradas em padronagens decorativas, surgem a alegria de pequenos pedaços de vidros, a cintilância de pérolas falsas. Como quando guardamos por tempo excessivo legumes em gavetas, brotam bordados que pareciam naturalmente ligados às estampas de tecidos floridos. Assim, a artista elabora camas, cujos bordados são estendidos por fios, como uma continuidade do desenho. Os pés substituídos por agulhas de ouro. Da almofada da cadeira em miniatura, fios criam capilaridades, aveludando o toque. Labirinto. Deserto. Silenciosamente. Bruscamente bloqueado. Estas são palavras e frases que vamos tropeçando pelo caminho. Fio de voz. Nome. Boca. Ela. Lábio. Fluxo. No relato dos sonhos o citado filósofo afirma que “a linguagem dos sonhos não está nas palavras, mas sob elas”. Ana Miguel parece interessada no que poderia surgir, brotar, grudar das coisas. Ali revelam-se em brilho fugidio, visões da parte obscura da alma. Para atravessar o deserto, Ana Miguel nos oferece sapatos tricotados, talcos que desconectam o tempo presente para convidarmos ao tempo vivencial, mais do que relacional.
Viver ultrapassa relações. O que precisamos é aceitar o convite ao jogo. Enquanto a artista vai nos oferecendo fios, fios, fios, como cordialidade, troca. A partir de casulos, a artista apresenta-nos livros, novelos de lã com palavras penduradas, ovinhos, ninhos feitos, todos, de acumulação. Nesta estratégia o tempo novamente cria a erosão que o deserto espera para mudar a sua geografia. Na espera, podemos ler algumas frases e palavras. As escalas são diminutas, mas ao mesmo tempo, o brotamento é infinito. Se desfeitos, os emaranhados podem ocupar todo o espaço. Enquanto isso, a artista elabora mutações. A paina, fibra natural semelhante ao algodão, mantém-se como no cacho, presa por galhos, mas com seu bojo acrescido de pedras, linhas, fios, tramas criadas pelo tempo da arte. Estimulando a metáfora, a paina também é comumente usada para preenchimento de travesseiros, colchões. E agora já não estamos mais na territorialidade da floresta, mas, sim, sob as palavras, com a luz do quarto apagada, antes da pequena morte diária, quando, alimentados pelo sono, nosso corpo parece existir em escala errada. Em tempos de recorrentes práticas espaciais de viagem na arte, a escritura que propomos aqui excede a representação de uma tradução da experiência. Ao acreditarmos no deserto, sabemos, antes de tudo, da existência de um imenso hiato que transcende a experiência da linguagem, da viagem, mas sobrevive de maneira cintilante, transitória, cuja exposição será sempre uma troca de segredos.
Marcelo Campos, janeiro de 2012.
Você viu o que eu vi? 1999/2012 Vídeo-objeto You saw what I saw? 1999/2012 Video-object
Merzouga, 1996/2012 foto, talco, madeira, gesso, alabastro, fóssil, ovo de avestruz, ovo, camelinho de plástico. 22 x 80 x 30 cm Merzouga, 1996/2012 photo, talc, wood, gypsum, alabaster, fóssil, ostrich egg shell, small plastic camel.
gitanes, 1994 8 gravuras, ponta seca sobre papel de cigarros gitane com roteiros de viagens. 7 x 2,5 cada gitanes, 1994 8 engravings, dry point on Gitanes cigarettes paper with travel paths.
Lรกgrimas vermelhas, 2012 lรฃ, fios de seda, contas de cristal, metal, elรกstico. 40 x 21 x 6 cm Red tears, 2012 wool, silk, crystal beads, metal, rubber band.
(…), 2002 tecido elástico, botões de caftan. 7 x 34 x 2,5 cm (...), 2002 elastic fabric, caftan buttons.
Rapunzel, 2003 longa trança vermelha fininha com palavras, lã, fita e bordado. Rapunzel, 2003 long thin red braid with words, wool, ribbon and embroidery.
Viagem no Rio Mekong: Marguerite, 2011 tríptico em vídeo, 2’28’’ Along the Mekong River: Marguerite, 2011
A memória Foi depois de um longo e aventureiro dia de viagem, entre Phnom Penh e Saigon, que entrei naquela balsa que cruza um dos braços do rio Mekong. Senti uma forte familiaridade, apesar de ser minha primeira vez no Vietnam. Saquei a câmera da bolsa e tomei a única seqüencia que conservo dessa viagem. Algum tempo depois, de volta a casa, rondava a biblioteca em busca de algum pressentimento. Me deparei com Marguerite Duras, e relendo sua obra entendi várias das formas que a vida assume tanto no Cambodja quanto no Vietnam. E o mistério da balsa que me parecia tão familiar se esclareceu. Através da literatura eu possuía aquela experiência. Naquela balsa Marguerite ainda menina conheceu o chinês que se tornaria seu primeiro amante. Experiência marcante em sua vida e escrita. Leitura marcante em minha vida. A literatura encarna em memória e imagem na vida. O relato de viagem A narrativa de viagem conta a experiência particular dentro da história, mônada transformadora, se pensamos com Walter Benjamin. Hoje penso a história do Vietnam e do Sudeste Asiático a partir da minha releitura de Marguerite Duras, a menina que relata sua viagem através do sexo e da descoberta dos mecanismos sócio-econômicos na Indochina francesa. A memória da viagem literária se soma à experiência física da viagem. O livro é uma paisagem tão concreta quanto um rio a ser atravessado. O tempo e o som Durante a edição do tríptico, dei especial atenção ao som. Sons que saem de um negro noturno, é importante a sincronização das três partes para que a delicadeza do som dos passos , das hesitações no caminhar e o jogo das alianças se alterne com o ruído das máquinas e motores na balsa. “ O historiador materialista, nessa ocasião, fará explodir a continuidade histórica para dela extrair uma época precisa; também explodirá a continuidade de uma época para dela extrair uma vida individual; enfim explodirá essa vida individual para extrair um fato ou obra. Assim conseguirá mostrar como a vida inteira de um individuo cabe dentro de uma obra ou de um fato; e como nessa vida cabe uma época inteira; e como uma época pode conter o conjunto da história humana. Os frutos nutritivos da árvore do conhecimento conservam em sua polpa, qual semente preciosa mas insípida, o tempo histórico.” Walter Benjamin, Sobre o conceito de história.
fotografia: Leo Ayres: 1, 3, 7, 12, 13, 15, 18, 20, 22b, 23a, 25 Filipe Berndt: 2, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 14, 16, 17, 19, 21, 22a, 23b
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