Sonho escrito na tinta de Brasil

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Sonho escrito na tinta de Brasil


Sonho escrito na tinta de Brasil, detalhe A dream written in Brasil-wood ink


Logo que retornei à França, mostrando as memórias que tinha, a maior parte escritas na tinta de Brasil … Jean de Léry, in História de uma viagem feita à terra do Brasil.


Tinta de Brasil era o nome dado ao corante extraído da árvore de Pau-Brasil. Para se atestar a veracidade das cartas escritas em terras brasileiras, a grafia devia apresentar o vermelho verdadeiro da planta, confirmando que o remetente esteve nesta terra e, por consequência, seriam verdadeiras as maravilhas relatadas. A artista Ana Miguel apresenta-nos a exposição Sonho escrito na tinta de Brasil que parte de uma pesquisa sobre as impressões da terra brasileira em narrativas históricas. Vemos, então, páginas escritas em tinta de Brasil, imagens, esculturas, bordados, objetos, brinquedos criarem uma certa compreensão vertiginosa dos relatos de viajantes estrangeiros ao se depararem com características do Novo Mundo. Com isso, livros de Jean de Léry, Mário de Andrade, Alexandre D’Aphrodise ambientam a crônica fantasiosa sobre o Eldorado, repleto de ritos, e cuja natureza relatada só poderia advir do encantamento. Na exposição, são utilizados fios de lã que costuram páginas nas quais aparecem palavras que evidenciam as sensações, a condição dos sujeitos, os modos de qualificar a experiência do narrador. E a viagem se inicia. Ana Miguel cria gestos nômades de pontuar, anotar, fichar, editar trechos onde as palavras “viagem”, “sonho”, “viajante”, “naufrágio”, “rir” são recorrentes. Dos fios da trama que

Sonho escrito na tinta de Brasil, 2012 livro de Mario de Andrade, livro de Jean de Léry, fios de algodão, 693 etiquetas, bordadas com a palavra selvagem, 346 etiquetas, bordadas com a palavra herói dimensões variáveis até 21 x 35 x 500 cm A dream written in Brazil-wood ink, 2012 book by Mario de Andrade, book by Jean de Léry, cotton yarn, 693 labels embroidered with the word savage, 346 labels, embroidered with the word hero


ligam as narrativas de “História de uma viagem feita à terra do Brasil”, de Jean de Léry, e o “Macunaíma”, de Mário de Andrade, pendem etiquetas bordadas, usadas comumente para identificar roupas infantis, apresentando-nos apenas as palavras “selvagem” e “herói”. De fato, como se ligando mares distintos, a distância em tramas de lã (o enredo) que separa os dois autores é muito mais ideológica. O Brasil precisou construir seu herói, ou anti-herói, revertendo os tabus, descritos em tintas carregadas pelos relatos dos viajantes, em totem, como o herói sem caráter, nascido das penas do escritor paulistano. Diante de hábitos dos habitantes da terra, toda a crônica aqui apresentada lança mão de um certo torpor da narrativa, sonhando, inventando seres impossíveis, desenhando quimeras. Ana Miguel, ao mesmo tempo, procura ativar estas sensações acentuando a transversalidade do tempo. Estamos no quarto de uma criança ou nas clareiras da mata, onde os indígenas praticavam rituais antropofágicos, alimentando-se da força do outro? A mala aproxima-se de cartões postais de templos da antiguidade. Como viajar ao passado? Os totens de adoração, agora, exibem cabeças de bichos de pelúcia. Ainda assim, cria-se um gabinete de experiências lúdicas e cruéis. É bastante curioso pensar os modos como Jean de Léry observa as cerimônias de aprisionamento e morte dos prisioneiros de guerra, fonte das imagens sobre os ritos antropofágicos, e compará-los aos modos como uma criança brinca. Walter Benjamin estudou a criança e o brinquedo, percebendo a vontade infantil de desfazer, quebrar, destruir seus brinquedos. Logo depois, com o mesmo ímpeto, a criança quer juntar, reagrupar os pedaços, numa tentativa de inventar seres impossíveis. Ao adentramos esta exposição de Ana Miguel esta vontade quimérica sobrevêm. O tabu se torna totem, como já intuía o manifesto de Oswald.


Estes ritos de desfazimentos do corpo, de outro modo, colocam a artista em tempos ainda mais pretéritos, observando os rituais dionisíacos. E este próprio personagem, presente, aqui, em registros de cerâmicas greco-romanas, é o ícone de um corpo que se desfaz para, em pedaços, renascer, nas pernas de seu próprio pai. O sentido trágico se apresenta como interpretação sobre as grelhas que cozinhavam partes do corpo dos prisioneiros, tão alaranjadas quanto nas cerâmicas da antiguidade. Dioniso renasce em tintas de Brasil. A partir destas pequenas mortes, o culto se faz para obter o invisível da força dos guerreiros. Conquistar a grandeza do outro, ser o Outro. Tanto o culto de Dioniso quanto a trajetória de Macunaíma evidenciam que a festa, o ritual possibilitam “violar o proibido, transgredi-lo”. Nesta exposição, Ana Miguel trama uma complexa narrativa, dando a ver imagens e suas porções fantasiosas, relatos e suas pulsões infantis, ativados por sujeitos que diante da alteridade regrediam ou se deixavam invadir pela vontade de quimerizar, bagunçar, desorganizar, quase numa insanidade, as cenas que estavam diante de seus/nossos olhos. Como visitantes inesperados, podemos flagrar o que acontece quando entramos, sem sermos percebidos, no quarto das crianças. Marcelo Campos, Dezembro de 2012 Tempestade para redesenhar o mundo, 2012 guardanapo de papel, fios de metal, fios de algodão, bordado, agulhas de tricô 21 x 10 x 15 cm Storm to redesign the world, 2012 paper napkin, metal thread, cotton thread, embroidery, knitting needles



Tantas mortes pequenas, o tabu e o totem, 2012 Fragmentos de brinquedos, forquilhas de pau-brasil, agulhas de crochê, massa plástica, fios de algodão 110 x 140 x 42 cm So many little deaths, taboo and totem, 2012 Fragments of toys, forks of Brazil-wood, crochet needles, modelling clay, cotton yarn


notas para Dioniso na tinta de Brasil, 2012 Textos escritos a bico de pena com tinta de pau-brasil, iconografias hist贸ricas, folhas de caderno 44 folhas com 10 x 15 cm cada notes to Dionysus in Brazil ink, 2012. Texts written in Brazil ink, historical iconography, notebook paper


Vista da exposição no CCBNB, Fortaleza, CE, Dezembro de 2012 Installation view, CCBNB, Fortaleza, CE, December 2012



Tantas mortes pequenas, o tabu e o totem, detalhe, 2012 Fragmentos de brinquedos, forquilhas de pau-brasil, agulhas de crochê, massa plástica, fios de algodão So many little deaths, taboo and totem, detail, 2012 Fragments of toys, forks of Brazil-wood, crochet needles, modelling clay, cotton yarn



Brazil-wood ink was the name given to the dye extracted from the Pau-Brasil tree. To attest to the veracity of the letters written on Brazilian soil, the writing had to exhibit the true red of the plant as proof that the sender of the missive was in the country; hence the marvels related in the letter were authentic. Artist Ana Miguel presents us with her exhibit Sonho escrito na tinta do Brasil (A dream written in Brazilwood ink), based on her research into the impressions of the Brazilian territory registered in historical narratives. We see pages written in Brazil-wood ink, images, sculptures, embroidery, objects and toys creating a somewhat vertiginous understanding of the reports made by foreign travelers confronted by the peculiar features of the New World. Books written by Jean de Léry, Mário de Andrade and Alexandre D’Aphrodise set the atmosphere for the fantasyfilled chronicle of the Eldorado, rife with rites performed in surroundings that could only be described as enthralling. The exhibit displays yarns of wool that sew together pages on which words appear that define the sensations and condition of the subjects, the ways in which the narrator presents his experience. And so the journey begins. Ana Miguel creates nomadic gestures that punctuate, annotate, file and edit sections where the words “journey”, “dream”, “traveler”, “shipwreck” and “laugh” are recurrent. From the threads of the plot that tie together the narratives of History of a voyage made to the land of Brazil, by Jean de Léry, and Macunaíma, by Mário de Andrade, we see tags hanging, like those used to identify children’s clothes, embroidered with only two words: “savage” and “hero”. The distance in weaves of wool (the script), as if connecting the different seas that separate the two authors, is actually far more ideological: Brazil had to construct its hero, or ant-hero,




by converting the taboos described so vividly in the travelers’ chronicles, into totems such as the amoral rascal-hero portrayed by the writer from São Paulo. The whole chronicle presented here of the customs of the inhabitants adopts a certain narrative torpor that dreams, invents impossible beings and draws chimeras. At the same time, Ana Miguel tries to activate these sensations by emphasizing the transversality of time. Are we in a child’s room or in the clearing of a forest where the Indians practiced anthropophagic rituals, feeding on the strength of others? The suitcase resembles postcards of ancient temples. How do we travel back to the past? The totems for adoration now exhibit heads of plush toy animals. A room is created of playful and cruel experiences. It is interesting to think of how Jean de Léry observed the ceremonies accompanying the capture and death of prisoners of war - the source of the images on anthropophagic rites – and compare them with how a child plays. Studying children and toys, Walter Benjamin noticed the infantile wish to undo, break and destroy their toys. Then, immediately afterwards, and with the same impetus, they want to join together and re-assemble the pieces in an attempt to invent impossible beings. This chimerical wish strikes us immediately on entering this exhibit of Ana Miguel’s work. Taboo becomes totem, just as Oswald’s Manifesto fancied. In another light, these rites of undoing the body situate the artist even farther in the past, observing Dionysian comes undone and is then reborn in parts, in his father’s legs. The tragic sense is presented as an interpretation of the grills that cooked parts of the bodies of prisoners, as orange-colored as the ceramics of yore. Dionysius is reborn in Brazil-wood ink. Following these small deaths, the cult proceeds to obtain the invisible strength of warriors, eager to conquer the grandeur of the other, to be the Other. Both the cult of Dionysius and the trajectory of Macunaíma show that feast and ritual enable “violating and transgressing the forbidden”. In this exhibit, Ana Miguel knits a complex narrative by showing us images and their fantasy-filled parts, stories and infantile impulses, activated by subjects that, faced with otherness, regressed or let themselves be invaded by the almost insane desire to chimerize, upset and disorganize the scenes before their/our eyes. Like unexpected visitors, we can catch what happens when – unnoticed - we enter the children’s room. Marcelo Campos, December 2012

Costurinhas efésicas, 2012 Brinquedo antigo, foto de iconografia clássica, fios de lã, palavras bordadas, escultura em crochê, agulha e botões, 110 x 70 x 30 cm Ephesian sewing, 2012. Vintage toy, classical iconography, wool yarn, embroidered words, knitted sculpture, needle and buttons


Vista da exposição no CCBNB, Fortaleza, CE, Dezembro de 2012 Installation view, CCBNB, Fortaleza, CE, December 2012


Hoje todos devem amar: um sonho do Léry, 2012 Pau-brasil, esculturas em crochê, trecho do filme Andrei Rublev de Tarkovsky, 250 x 270 x 71 cm Today everyone should love: a dream of Léry, 2012 Brazil-wood, knitted sculptures, extract from Tarkovsky’s film Andrei Rublev



Stills do filme Andrei Rublev de Tarkovsky com intervenções Stills from Tarkovsky’s film Andrei Rublev with intervenctions


Hoje todos devem amar: um sonho do LĂŠry, 2012, detalhe Today everyone should love: a dream of LĂŠry, 2012, detail


notas para Dioniso na tinta de Brasil, 2012 Textos escritos a bico de pena com tinta de pau-brasil, iconografias hist贸ricas, folhas de caderno 44 folhas com 10 x 15 cm cada notes to Dionysus in Brazil ink, 2012 Texts written in Brazil ink, historical iconography, notebook paper


antigas histórias..., 2012 maleta em tecido, livros de Alexandre d’Aphrodise, cartões postais, carta do jogo mico preto, terra de Afrodísia, fios de algodão, palavras bordadas, 110 x 100 x 32 cm ancient stories ... 2012 small luggage, books by Alexandre d’Aphrodise, postcards, mico preto game card, earth from Aphrodisias, cotton yarn, embroidered words



fotografia: Leo Ayres: 1 Rodrigo Patrocinio: 8, 15 Wilton Montenegro: todas as outras fotos

www.anamiguel.com


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