tfg_anacarolnicolay_ movimentos de moradia de são paulo. a poesia que poderia ter sido

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TFG FAUUSP 05.08.2016 ANA CAROLINA JULIANO NICOLAY ORIENTADOR REGINALDO RONCONI


Agradeço ao falecido seu Olímpio, pelas conversas; à dona Elita, pela hospitalidade de mãe; ao Reginaldo Ronconi, meu orientador, pela sensibilidade, pelo acolhimento ao projeto e por me dar a confiança e tranquilidade para concluí-lo; ao Ro, querido amigo, cuja parceria foi fundamental ao longo deste trabalho, da graduação e pra vida; ao coro, por ter me apresentado à alegria dos que não sabem e descobrem; aos amigos de formação da FAU, em especial à Ti, Gin e à Ale, que dividiram comigo os piores momentos de militância no grêmio e os momentos de maior aprendizado na faculdade; aos amigos que não desistiram de mim nesses meses de loucura do tfg; aos companheiros de lutas, que compartilham comigo de perspectivas de vida e de futuro; aos meus pais e família, por me incentivarem a cada novo projeto; à gabi, amiga e cúmplice para a vida.


índice _ apresentação _ introdução _ referências bibliográficas 1. a questão da moradia 1.1 escassez de moradias 1.2 a falsa questão da habitação 1.3 soluções ao problema da habitação 2. luta e movimentos sociais urbanos em são paulo 2.1 a luta organizada desde os anos1970 2.2 a luta organizada a partir dos anos 80 - origem dos movimentos por moradia 2.3 zona sul organizada - encontros do movimento e associações 3. experiências pioneiras dos mutirões autogeridos 3.1 AMORA - Recanto da Alegria 3.2 AMAI - Vila Arco íris 4. perspectivas 4.1 perspectivas institucionalizadas 4.2 perspectivas dos movimetnos 4.3 apontamentos 5. anexos _ entrevistas _ registros

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_ apresentação Este trabalho parte de conversas com Olímpio e Elita no Recanto da Alegria. Antes de falecer, Olímpio me falava da necessidade de contar a história dos movimentos pela versão de quem havia construído de fato as mobilizações; contar a história real dos movimentos, para além dos discursos oficias e das aparências. Após seu falecimento, Elita me contou sobre seu projeto de escrever uma história do Recanto da Alegria e do movimento por moradia da Zona Sul, contando a trajetória de luta do falecido Olímpio. Esse registro, esses pedidos não expressos, ficaram gravados. Pensei em alguns modos de fazer este projeto se concretizar e ainda não encontrei uma forma acabada para tal. O trabalho final de graduação aqui apresentado tem apontamentos para cumprir este devir, mas está muito aquém do projeto original que o motivou. No presente trabalho, procurei trazer um registro dos movimentos de moradia de São Paulo, traçando um histórico dos mutirões do Recanto e da Vila Arco Íris, experiências

pioneiras e modelo dentro deste processo de lutas. Para a discussão dos movimentos e da luta por moradia, foi necessária uma introdução à discussão da questão da moradia, que abre o trabalho e possibilita um olhar crítico mais determinado sobre os processos e perspectivas apontadas. Abrindo caminho para uma pesquisa futura, penso que este trabalho é um prólogo de um projeto de resgate da memória deste mutirão e do movimento por moradia. Este resgate se faz fundamental, não só por uma homenagem ou para evitar o esquecimento deste momento dos movimentos, mas por assistir a um apagamento destes, que era o que apontava Olímpio quando falava de contar as verdades de cada processo e quando me relata as suas verdades, suas experiências dos processos de luta. Retirar este processo do esquecimento é apontar um horizonte possível. O caminho aberto pelos movimentos em 70 e 80 apontava a um futuro que não foi construído. É preciso resgatar este projeto de futuro. 01



_ introdução O movimento de moradia é um dos mais amplos e organizados movimentos sociais que atuam em São Paulo hoje. Ao estudar sua origem junto à reorganização dos movimentos sindicais e das lutas urbanas, no processo de redemocratização do país, percebe-se que muitos de seus métodos e formas de organização e luta estão por vezes aquém e caminham em sentido oposto do que estava sendo construído nas décadas de 1970 e 80. O movimento hoje se aproxima mais das políticas e disputas institucionais do que da luta autônoma dos trabalhadores. Se antes era um movimento articulado organizativamente ao movimento sindical, decorrente da auto-organização de moradores de bairros, hoje essa articulação se dá como elemento pontual para a construção de pautas específicas, externas a estas esferas de organização popular. Percebe-se uma organização muito avançada, mas que também avança para sua burocratização - com hierarquias irrevogáveis e baixa participação da base do movimento, distanciada de suas esferas decisórias. Os principais movimentos atuando em São Paulo hoje – movimentos centrais e

MTST - são compostos pelas camadas mais precarizadas de trabalhadores - com empregos informais, em situação de semiescravidão ou imigrantes - e desempregados. Apesar das especificidades de composição e de problemas por que esta população passa, isto não se reflete em uma diversidade de demandas e estratégias do movimento, dado que estas são guiadas pelas políticas habitacionais já definidas à revelia da conformação desta base, por um calendário estabelecido junto ao poder público e não por uma construção de novas propostas junto a estas bases. Esta percepção sobre os movimentos atuais e o exercício de reflexão crítica sobre estes em relação com os movimentos que os originaram pode ajudar a situá-los no cenário político atual e compreender melhor o que são estes movimentos e como atuam sobre as políticas habitacionais (ou como atuam com elas), que potencial tem de travar uma luta neste âmbito e de articular esta luta ao movimento social que volta a emergir, principalmente após 2013, com um número crescente de greves e paralisações da classe trabalhadora em seus locais de trabalho, como apontam os últimos dados de balanço de 03


greves lançados pelo DIEESE lançado em dezembro de 2015. As análises e caracterizações do desenvolvimento dos movimentos da década de 70 e 80 constatam seu viés transformador e, de fato, sua estrutura de articulação dos movimentos para tensionamento com o Estado fez com que muitas propostas formuladas a partir de práticas de luta fossem testadas, mesmo em meio a governos fortemente repressivos, e constituíssem experiências formadoras e inspiradoras de novas práticas e políticas para a habitação e também para os movimentos sociais. Dois movimentos paradigmáticos da década de 80 serão estudados. O movimento do Recanto da Alegria e da Vila Arco Íris, ambos movimentos pioneiros na prática da autogestão e na formulação de uma nova política habitacional onde o controle de todas as etapas da produção de moradia é dos moradores. Este momento de experimentação e de tensionamento com o Estado, apesar de não chegar aos limites da força da população organizada, foram o ápice dos movimentos, pois estão aí suas maiores conquistas, é neste momento que chegam mais perto de realizar suas propostas e perspectivas e desenvolvêlas ao seu limite político e técnico. Maria da Glória Gohn, pesquisadora que escreveu sobre os movimentos de moradia deste período e que usaremos como referência 04

para o trabalho, considera o Movimento das Associações Comunitárias para construção em autogestão, que começam a se organizar na década de 80, como “forma mais desenvolvida de luta popular, pois incorpora vários movimentos e várias etapas do processo”. Estes se enquadrariam num momento posterior de desenvolvimento das lutas por moradia em sua concepção, sendo o primeiro o das lutas isoladas por água e luz, posse da terra, direito de uso etc e o segundo das invasões coletivas às ações organizadas das associações comunitárias. É possível mesmo pensar que o ponto de maior avanço da luta por moradia tenha se dado ainda na década de 80 com estas experiências de invasão e associação organizada dos moradores de favelas que chegaram a construir experiências de maior contraposição ao Estado, às políticas habitacionais vigentes e à situação de precariedade da população pobre de São Paulo. Ambos os movimentos estudados passam por este desenvolvimento à medida que, de uma articulação inicial aos movimentos de escala regional da Zona Sul, começam a se organizar localmente de maneira a superar as questões específicas mas sem deixar de se ancorar nas discussões em nível regional e municipal. A partir dos dois exemplos da luta por


moradia em sua reorganização na década de 80, pretendemos traçar em linhas gerais as potencialidades e construções que foram condicionadas pela conjuntura histórica, o contexto político e econômico, mas definidas pela forma organizativa e as táticas de luta adotadas pelos movimentos e assim poder analisar este projeto de movimento e os projetos de política que dele derivam e como influenciaram na criação e nas práticas dos movimentos atuais. Toda esta discussão sobre a construção dos movimentos e de sua política de atuação não poderia ser feita sem uma fundamentação teórica para discutir a questão da moradia, associada à discussão do Estado na sociedade capitalista. Esta será, portanto, a discussão inicial do trabalho, de forma a estabelecermos as bases de análise crítica das políticas adotadas pelos movimentos em sua luta, entendendo as aproximações e contraposições às políticas oficias e o impacto desta postura sobre os encaminhamentos de suas pautas.

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_ referências bibliográficas sobre os movimentos por moradia de são paulo BAVA. Silvio Caccia. Práticas cotidianas e movimentos sociais: elementos para reconstituição de um objeto de estudo. Dissertação de Mestrado, FFLCH USP, São Paulo, 1983 BAVA. Silvio Caccia. A luta nos bairros e a luta sindical. In: As lutas sociais e a cidade. São Paulo: passado e presente Lúcio Kowarick, coordenador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. BONDUKI, N. G. Arquitetura e Habitação Social em São Paulo. São Carlos: EESC – USP. 1993. BONDUKI, N.G. Construindo territórios de utopia. A luta pela gestão popular em projetos habitacionais, Dissertação de Mestrado, FAU USP, São Paulo, 1986 BONDUKI, N. G. Habitação & autogestão: construindo territórios de utopia. São Paulo: FASE, 1992 06

BONDUKI, N. G. Habitar São Paulo: reflexões sobre a gestão urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2000 BONDUKI, N. G. Origens da Habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998 BOULOS, Guilherme. De que lado você está?: reflexões sobre a conjuntura política e urbana no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2015 BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos?: uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012 GOHN, Maria da Glória Marcondes. Movimentos Sociais e lutas por moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. NEGRELOS, Eulália. Remodelação de bairros populares em São Paulo e Madrid 1976-1992: Projeto e Participação Popular, Dissertação de Mestrado, FAU USP, São Paulo, 1998. POMPEIA, R. A. Os Laboratórios de Habitação no ensino da arquitetura. Uma contribuição ao processo de formação do arquiteto, Tese de Doutorado, FAU USP, São Paulo, 2006


RONCONI, Reginaldo. Habitações construídas com gerenciamento pelos suarios, com organização da força de trabalho em regime de mutirão: o programa FUNAPS comunitário, Dissertação de Mestrado, FAU USP, São Paulo,1995. TELLES, Vera da Silva. Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos. In: As lutas sociais e a cidade. São Paulo: passado e presente Lúcio Kowarick, coordenador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. sobre a questão da moradia BENEVOLO. L. História da cidade. São Paulo: Perspectiva. 2009 BENOIT, A. H. Morte do urbanismo petista. In: Contravento 4.São Paulo: GFAU, 2004

moradia; tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2015 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na inglaterra. tradução: B. A. Schumann; supervisão, apresentação e notas José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo, 2010 LENIN, V.I. O Estado e A Revolução. Campinas: Unicamp, 2011 MARICATO, Ermínia. A questão da habitação popular no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Habitação e Poupança, 1982 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. - 3. ed – São Paulo: Nova Cultural, 1988. v.I e v.II

BOLAFFI, Gabriel. A casa das ilusões perdidas: aspectos sócio-econômicos do Plano Nacional de Habitação. São Paulo: Brasiliense, 1984 BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema.” Comunicação apresentada para o Simpósio de Habitação da XXVII Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. 1975 ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da 07




1. a questão da moradia A moradia é condição de sobrevivência – de reprodução das forças produtivas1, e por esta condição adquiriu o caráter de direito inalienável do homem, constando na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Porém, observa-se não só hoje, mas na história urbana, que há sempre uma classe alijada deste direito, há uma camada da população a quem este direito não é acessível. Antes então de buscar as análises e variadas explicações das causas da questão da moradia, é preciso entendê-la para além de uma questão técnica, como necessidade concreta da população, mas em específico da classe trabalhadora. A moradia é fator limitante para sobrevivência e reprodução desta e a questão da moradia se coloca primeiramente para esta classe; a ausência de moradias é sentida e enfrentada por ela de forma autônoma, organizada ou não, antes de fotos do acervo pessoal de Dona Elita. vistas internas de casa recém inaugurada do Recanto da Alegria. anos 80

As condições básicas de sobrevivência como alimentação, vestuário e moradia são elementos fundamentais para viabilizar a vida dos homens enquanto força de trabalho. Seguimos aqui a caracterização clássica do marxismo que divide as forças produtivas em objetos de trabalho, meios de trabalho e forças de trabalho. 1

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ser reconhecida pelo Estado. Numa sociedade economicamente desigual, há questões que não impactam toda a sociedade do mesmo modo e a carência de moradia só vai interessar ao Estado quando começar a interferir nos interesses das classes dominantes, na lucratividade da cidade e no controle do espaço urbano (surgimento de favelas, proliferação de doenças em espaços adensados sem infraestrutura, ocupação de áreas públicas). A ação da classe precede e prescinde do Estado, que, como veremos, organiza sua atuação não em resposta ao problema concreto da carência de moradia, mas à própria organização dos trabalhadores e a fatores econômicos relacionados à produção de casas. A questão da moradia que nos interessa estudar é, portanto, a questão posta do ponto de vista da classe em sua fundamentação objetiva na estrutura social do capitalismo, como exclusão do acesso à moradia das classes que não possuem capital. São os fundamentos desta exclusão que pretendemos compreender, já que queremos analisar os movimentos e propostas que se contrapõem a este problema, que mobiliza os trabalhadores a se organizarem. A questão da moradia olhada em abstrato pode nos levar a outras 09

tantas distintas análises e nenhuma ação. “Essa escassez de moradia não é peculiar da época atual; ela não é nem mesmo um dos sofrimentos peculiares do proletariado moderno em comparação com todas as classes oprimidas anteriores; pelo contrário, ela atingiu todas as classes oprimidas de todos os tempos de modo bastante homogêneo. Para pôr um fim a essa escassez de moradia só existe um meio: eliminar totalmente a espoliação e a opressão da classe trabalhadora pela classe dominante. – O que hoje se entende por escassez de moradia é o peculiar agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores em razão da repentina afluência da população às metrópoles; é o aumento colossal dos preços do aluguel; é a aglomeração ainda maior de trabalhadores nas casas particulares; e, para alguns, é a total impossibilidade de encontrar alojamento. E a única razão pela qual essa escassez de moradia passou a ser tema frequente é que ela não se limitou à classe trabalhadora, mas acabou atingindo também a pequena burguesia.” (ENGELS, 2015, p. 38)


A questão da moradia é, geralmente, apresentada como este agravamento decorrente do processo de urbanização desorganizado, da falta de planejamento para o crescimento urbano e capacidade de absorver o afluxo de trabalhadores para as cidades já desde o início do processo de industrialização e até hoje, em especial em países em que a urbanização e crescimento das cidades ainda não estabilizou, como no Brasil. Esse processo inicial em que o afluxo de trabalhadores em função da industrialização ocorre sem planejamento é relatado por Bonduki para introduzir a discussão sobre a produção da habitação social na São Paulo na passagem para o século XX: “Segundo a Sociedade Promotora de Imigração (MORSE 1970:18), apenas dois quintos dos imigrantes que desembarcavam no Estado seguiam para a agricultura. Já PESTANA (1918) informa que, dos 104 mil imigrantes que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes em 1985, quase 40% (39 mil) permaneceram na capital. É nesse período de 1886 a 1900 que “São Paulo explode” (ROLNIK 1981), desencadeando-se sua primeira crise habitacional. (...) A carência de habitações tornou-se

notória, havendo indícios de que era um obstáculo a um crescimento ainda maior: “diz-se que muita gente se retira da capital paulista por falta de habitações”, afirmava Raffard (1977:15) em 1980.” (BONDUKI, 1998, p.18) Este processo de crescimento urbano tornou necessárias, para o poder público, a estruturação da cidade de São Paulo feita de modo centralizado (e não mais apenas pela iniciativa privada) e estratégias para suprir a demanda por moradia, que se tornou muito maior do que a disponibilidade de casas no mercado já neste período. Em contraposição, o crescimento da cidade e da população, submetido apenas à lei de mercado, de oferta e demanda, levaria ao aumento do preço dos aluguéis e venda das casas. É verdade que esse processo de crescimento e carência de habitação ainda ocorre e justificou, na história recente do país, a intervenção do Estado para garantir a produção de casas a um valor acessível à população pobre. Esta é a forma como o problema e as soluções dos governos tem sido colocadas até hoje e como desde a Era Vargas, a produção de habitações tem sido entendida como função do Estado. “Na verdade, estas três facetas da intervenção estatal no problema habitacional que se desenvolvem a 10


partir de Vargas – a produção direta ou financiamento de moradias, a regulamentação do mercado de locações e a complementação urbana da periferia – representam uma clara interferência do poder público num setor que até então era produzido e comercializado pela iniciativa privada, com restrições apenas de ordem sanitária.” (BONDUKI, 1998, p. 14) Porém, podemos notar que no período anterior, no início do século XX, a produção de habitações era alta devido à rentabilidade do capital oriundo da cafeicultura e ausência de uma indústria consolidada em que aplicar o capital para gerar lucros. E isto não causou aumentos dos valores do aluguel mas, pelo contrário, entre 1900 e 1914, houve até deflação dos preços dos alugueis. “Por isso, o ritmo de acumulação industrial era não só lento como intermitente, mantendo-se em níveis bastante medíocres (CANO 1979). E, pelo menos até meados da década de 1920, a indústria limitava-se a produzir bens de consumo para a classe trabalhadora (sobretudo têxteis e alimentos), o que também restringia sua capacidade de expansão. Desse modo, a existência de excedentes econômicos nas mãos de investidores de diversos portes, a restrita capacidade de 11

aplicação no setor industrial, a expansão e retração cíclica da cafeicultura, a valorização imobiliária e a grande demanda por habitações em São Paulo, os incentivos fiscais e a inexistência de controles estatais dos valores dos aluguéis – tudo isso tornou o investimento em moradias de aluguel bastante atraente durante a Primeira República. Neste sentido econômico, as soluções habitacionais de aluguel produzidas em série para os operários e para a classe média – cortiços, vilas, conjunto de casas geminadas, minipalacetes de edificação seriada etc. - tinham o mesmo significado e representavam agenciamentos específicos do mesmo movimento financeiro, ou seja, capitais buscando aplicação rentável através da exploração da locação habitacional.” (BONDUKI, 1998, p.45) Por outro lado, enquanto garantiam a rentabilidade do capital, seguidos modelos de política habitacional não foram capazes de garantir nem a quantidade de moradias necessárias e nem o acesso de setores mais pobres ao mercado de casas. Antes de uma primeira ação centralizada do Estado no Brasil (segundo a análise de Bonduki, a primeira interferência se deu quando o Estado passou a intervir no mercado imobiliário em nível nacional com a Lei do Inquilinato), os fundos


de pensão geridos por este passaram a tratar de políticas de habitação, fugindo de sua função mas numa conjugação que se repetiria por várias outras políticas de aliar a política social e econômica nas ações fomentadas por fundos monetários alimentados com contribuições dos trabalhadores. “Permitindo a consecução de vários objetivos econômicos e sociais estratégicos do Estado, sempre no contexto da “proteção aos trabalhadores”, não surpreende que Vargas considerasse as Caixas de Aposentadoria e Pensões como uma “solução mágica”, que beneficiaria as classes trabalhadoras sem acarretar “sacrifícios” às “classes conservadoras”. O uso dos recursos previdenciários, contudo, sempre foi polêmico, e este é o aspecto primordial para se detectar o papel que a habitação desempenhava nas políticas sociais.” (BONDUKI, 1998, p.103) Ainda, sobre o desvio de função das políticas habitacionais e da aplicação dos fundos monetários mantidos pelos trabalhadores, Nabil avalia já numa fase posterior desta política ainda incipiente que não se trata apenas de linha auxiliar das políticas econômicas mas também de política de controle da insatisfação e revolta popular:

“Essa ênfase na habitação social durante o pós-guerra explica-se pela necessidade do governo Dutra se contrapor ao avanço do Partido Comunista do Brasil (PCB) nos grandes centros, temendo-se que a insatisfação gerada pela crise de habitação e de abastecimento em geral pudesse causar perigosas rebeliões.” (BONDUKI, 1998, p.106) Essa característica da política habitacional não se revela apenas no Brasil mas concretiza a análise de que as políticas para habitação social do Estado respondem antes à sua necessidade de controle econômico e social do que à solução do “problema da habitação”. Observe-se o duplo papel que a Lei de Inquilinato cumpriu, servindo à política de industrialização e aumentando a escassez de moradias, ocasionando a primeira crise de moradia em São Paulo. “Vivia-se, portanto, uma situação contraditória: para financiar a montagem do parque industrial era preciso reduzir a forte atração que a propriedade imobiliária exercia como campo de investimento, mas a industrialização requeria condições básicas de sobrevivência nas cidades, como o alojamento dos trabalhadores. A crise de moradia dos anos 40 é consequência, portanto, desse dilema. A 12


Lei do Inquilinato desestimulou a produção habitacional privada, ao passo que as iniciativas estatais no setor sempre foram insuficientes. A construção de casas, pelos próprios trabalhadores, nas favelas e loteamentos periféricos, apenas começava a se tornar uma prática corrente e somente a médio prazo pôde arrefecer a crise.” (BONDUKI, 1998, p. 248) À sequência desta crise de produção habitacional se iniciou a ocupação periférica e a prática da autoconstrução. As favelas centrais, assim como os cortiços mais antigos são removidos para dar lugar a novas avenidas e à renovação urbana. A produção individual da casa só começou a ser alvo de preocupação do Estado a partir da necessidade de urbanização desta periferia, mas principalmente a partir do esgotamento das terras disponíveis para esta ocupação irregular e exigência da população do direito à terra e financiamento para a construção de casas. Mas, olhando de maneira mais global para a carência de moradias vinculada ao processo inicial de urbanização decorrente da industrialização e consolidação do capitalismo, podemos estabelecer relações com este momento e os elementos de modificação de diferentes cidades e abrir nova análise sobre a intervenção estatal que se estabeleceu universalizando algumas destas 13

questões colocadas. Esta universalidade nos aponta que seu combate não se restringe a um período ou local, mas se vincula a questões estruturais. Benevolo, no livro “História da Cidade” discute o momento de passagem ao que denomina a cidade “pós-liberal”, cidade em que se afirma determinantemente o poder da burguesia. Esta seria a cidade decorrente do fracasso de tomada de poder em 1848 pelos socialistas e, ao mesmo tempo, pela incapacidade de um setor mais liberal da burguesia de governar. “Ao contrário, as direitas que saíram vitoriosas das lutas de 1848 – o regime de Napoleão III na França, o regime de Bismarck na Alemanha, os novos conservadores ingleses dirigidos por Disraeli – abandonam a tese liberal de não-intervenção do Estado nos mecanismos setoriais, e usam os métodos elaborados na primeira metade do século (pelos reformadores e pelos socialistas utopistas) como instrumentos para controlar as transformações em curso. A burguesia vitoriosa estabelece, assim, um novo modelo de cidade, no qual os interesses dos vários grupos dominantes – empresários e proprietários – estão parcialmente coordenados entre si, e as contradições produzidas pela presença das classes subalternas são parcialmente


corretas. A liberdade completa, concedida às iniciativas privadas, é limitada pela intervenção da administração – que estabelece os regulamentos e executa as obras públicas – mas é garantida claramente dentro destes limites mais restritos. Da cidade liberal se passa assim para a cidade pós-liberal.” (BENEVOLO, 2009, p. 573) Nesta leitura dos processos históricos, temos uma análise mais determinada do interesse que rege a atuação reguladora do Estado, conforme apontamos. Isto se dá justamente num momento em que a burguesia tem que abrir mão de sua versão mais liberal e mesmo progressista (como na implementação da república democrática francesa, que dá lugar ao império de Bonaparte) em favor de manter a ordem através de ação autoritária do poder executivo, sobreposto aos demais poderes assim como se sobrepõe determinado setor da burguesia sobre os demais. O Estado, por esta avaliação de Benevolo, se torna explícitamente um aparato a serviço da burguesia, pois é esta a classe vitoriosa nas lutas de 1848 na Europa. Assim, a cidade resultante seria reflexo desta dominação de classe, deste apoderamento sobre o Estado. Portanto, a intervenção do Estado desde então, antes de se colocar a serviço da garantia de qualquer direito ou de amenizar as carências sociais, se colocava como

necessidade para controle dos processos urbanos e manutenção do poder – forma de garantir os interesses gerais da classe e os interesses particulares de cada setor da burguesia. Este padrão de atuação se mantém e é justamente esta garantia de controle sobre os processos urbanos e sobre a economia que, vimos, foi guia da política habitacional em São Paulo no momento de consolidação da cidade urbana, favorecendo o setor produtivo da burguesia com o direcionamento dos investimentos para a industrialização, mas também os arrendatários da terra com a renovação urbana e valorização dos terrenos centrais. “Nesta combinação, os interesses da propriedade imobiliária – parasitários e contrastantes com os interesses do capital produtivo – são claramente privilegiados. A forma da cidade é a que torna máxima a renda imobiliária urbana, isto é, a mais rica de diferenças (um centro mais denso e uma periferia mais rala, dividida em setores de caráter diverso), mesmo que resulte em ser ineficiente e dispendiosa. O mecanismo urbano está sempre congestionado, porque os aparelhamentos públicos – ruas, instalações, serviços – são sempre insuficientes, ao passo que a exploração dos terrenos particulares alcança 14


ou supera os máximos fixados pelos regulamentos. Mas estes inconvenientes técnicos e econômicos são compensadas por uma vantagem política decisiva: de fato, as dificuldades da vida urbana oneram de modo mais pesado as classes mais fracas, e a cidade se torna um grande aparato discriminante, que confirma o domínio das classes mais fortes. A burguesia toda tem interesse em privilegiar seu setor afastado, para tornar automático este seu aparato, cuidando de seus interesses a propriedade imobiliária defende os interesses gerais da classe dominante.” (BENEVOLO, 2009, p. 589) Numa ação coordenadora da cidade, o Estado pauta o lucro e repartição de capital entre setores da burguesia, em específico da burguesia produtora e arrendatária de terras. A ordenação da cidade e produção do espaço construído não atendem de modo racional às demandas da população, mas serve a esses setores. Isto não significa a produção de uma cidade organizada e produtiva do ponto de vista global, pelo contrário, significa uma produção irracional para o uso, para a sobrevivência e atendimento às necessidades humanas, em específico das classes mais precarizadas. “4) A periferia a ser organizada faz aumentar o custo das moradias e obriga a 15

conservar um certo número de habitações precárias para as classes mais pobres; tende a tornar-se compacta, e não deixa lugar aos manufaturados por demais embaraçadores ou que crescem depressa demais (estabelecimentos industriais, armazéns, etc.) Todos estes elementos – necessários ao funcionamento da cidade, mas incompatíveis com o desenho até agora descrito – são rechaçados para uma terceira faixa concêntrica, o subúrbio, que é um misto da cidade com o campo e que é impelida sempre para mais longe, à medida que a cidade cresce. 5) Alguns defeitos mais evidentes da cidade pós-liberal – a densidade excessiva no centro, a falta de moradias baratas – são atenuados por alguns corretivos: os parques públicos (que oferecem uma amostra artificial do campo, agora inalcançável) e as “casas populares” construídas com o dinheiro público (compostas de blocos na linha da rua ou de pequenas villas afastadas). Mas estes remédios permanecem insuficientes, o congestionamento e a crise das moradias continuam ou pioram.” (BENEVOLO, 2009, p. 581) Esta configuração, segundo o autor, está exemplificada na Paris do Segundo Império, na transformação operada por Haussmann. Porém, o processo de transformação da


cidade e este uso do espaço urbano que favorece apenas a classe dominante é um processo que, como ele mesmo avalia, acompanha o desenvolvimento do capitalismo e consolidação do Estado burguês. Se olhamos ainda para outras cidades neste mesmo período, podemos observar que esta política tem aspectos universais. Isto tornaria os problemas que afligem a classe trabalhadora problemas que vão além da questão da moradia, do transporte, da marginalização espacial, mas problemas da configuração da cidade – problemas que refletem a configuração social. São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras passaram por renovações tão autoritárias quanto a Paris de Haussman. No Rio, a reforma foi implementada por Pereira Passos, nomeado prefeito com carta branca para agir até mesmo com a Câmara Municipal fechada. Em São Paulo esta transformação fica a cargo de Prestes Maia: “O cenário da cidade nos anos 40 é contraditório e ambíguo, de crise e progresso: enquanto os trabalhadores sofrem com a falta de moradia, São Paulo é renovada por novas avenidas e “embelezada” por arranha-céus, num contexto de opulência, especulação imobiliária e industrialização.” (BONDUKI, 1998, p. 249)

Na Inglaterra, país exemplar do estabelecimento do capitalismo, a Coroa, desde a Era Vitoriana (1837-1901), destinou recursos à habitação, garantindo não só a destinação de terras e planejamento urbano, mas a destinação de recursos ao setor da habitação, que tornava a acumulação capitalista independente (direta) do rendimento dos trabalhadores. A partir da reconstrução pós-primeira guerra, o governo passa a controlar os aluguéis, e, desde 1924, o Partido Trabalhista interfere em favor dos trabalhadores na produção de casas, sendo sucedido por outros governos, mesmo os de coalizão, que priorizam a construção de casas. Mas é justamente neste país, no qual o problema de falta da habitação é alvo de políticas do Estado desde muito cedo no processo de urbanização, que Engels centra sua análise e crítica às condições de moradia da classe trabalhadora e, depois na década de 1930, George Orwell faz uma viagem pelas cidades mineradoras relatando condições tão precárias de habitação quanto tínhamos relatadas no século XIX.2 Há nesta realidade, no reconhecimento de que até hoje não há garantia de habitação Falamos dos livros “Situação da classe trabalhadora na Inglaterra” de Friederich Engels e “O caminho para Wigan Pier” de George Orwell. 2

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para toda a população (ocasionando o surgimento de movimentos como o Focus E15 Mothers), apesar da sucessão de políticas adotadas, também a expressão da incapacidade de garantir a habitação através da produção subsidiada pelo Estado. A escassez de moradias pareceria assim, problema insolúvel, pois mesmo com uma produção ininterrupta e políticas de controle de aluguel e subsídios da moradia, não foi possível eliminar o problema da falta de moradia. Neste sentido, observamos que, mesmo onde o Estado agiu com políticas aparentemente consequentes, não conseguiu contornar o aumento excessivo dos preços subsidiando as casas para uma classe que, pelo contrário, tem cada vez menos poder de compra. A questão não está resolvida e há população que permanece sem acesso à moradia, enquanto, por outro lado, o setor da construção civil e o setor rentista, que lucram com a produção e o mercado de casas, estão bem atendidos por tais políticas. Isto nos retorna à análise de que o problema é mais estrutural e não pode ser pensado apenas do aspecto mais aparente. O problema não pode se resumir apenas à quantidade de casas disponíveis e seu preço, pois a contradição não está resolvida apenas pelo controle da produção de casas pelo mercado ou pelo Estado, na oferta e produção de casas, mas reside no próprio fato de que 17

a casa só é acessível mediante a compra e que seu valor agrega o valor da terra, da infraestrutura e da produção. A decomposição do valor da casa revela em si a ligação entre a realização da venda da casa e da obtenção de renda da terra, de juros em cima da posse da terra e não apenas a obtenção de lucro na produção da casa. O rebaixamento de seu valor para se adequar aos baixos salários dos trabalhadores é uma manobra irracional, que não pode se concretizar, tendo em vista que os altos valores são o que torna a produção da casa viável para a burguesia e que as condições de vida da classe trabalhadora são progressivamente rebaixadas – seu salário é rebaixado, pois equivale justamente aos custos de sua manutenção e reprodução, que estão sendo reduzidos no gasto direto do trabalhador. Assim, sucessivos rebaixamentos no custo da moradia reverberariam em sucessivos rebaixamentos de salários levando ao ciclo de políticas de habitação que nunca atingem as camadas mais pobres. Percebemos que não se pode manter a moradia como mercadoria e chegar a um valor adequado para o acesso de todos os trabalhadores. Mas não é o rebaixamento do preço da moradia para torná-la acessível a camadas de trabalhadores (ou mesmo o aluguel social) que retiraria dela seu caráter de mercadoria, pois apenas repassa seu custo,


de modo socializado, para o Estado; isso jamais significaria zerar seu custo para os trabalhadores (que alimentam as reservas dos governos) e, ainda assim, é irrealizável numa economia de mercado, em que o Estado precisa garantir a taxa de lucros. O que pode ser realizado e vemos implementado nessas políticas públicas é o subsídio à compra das casas ou o empréstimo de dinheiro, que são formas de facilitar o acesso à moradia de camadas mais bem remuneradas dos trabalhadores. Essa política atende parcela da população, mantendo outra parcela cada vez em condições mais precárias, mas principalmente atende às necessidades da burguesia de distribuição de capital desde o setor produtivo Entendemos, então, que a falta de acesso à moradia, esta violação dos direitos humanos, se dá porque a moradia não é propriamente um direito, mas uma mercadoria e, assim, o acesso a esta não se dá apenas pelo reconhecimento do homem enquanto cidadão, mas mediante pagamento, através das mesmas regulamentações das relações de troca que organizam a sociedade capitalista, não podendo, portanto, se contrapor apenas pontualmente a uma das expressões desta estrutura. Ainda assim, a questão da moradia foi apresentada com uma formulação errônea

que se desdobra em várias propostas de solução também errôneas, que inclusive dão origem às políticas habitacionais aplicadas até hoje. É importante analisar este modo de apresentação e os fundamentos desta questão para poder pensar os meios de estruturar uma solução real ao problema concreto que origina estas diversas questões e soluções. Partiremos desta sua apresentação, o problema da moradia como déficit ou escassez de moradia.

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1.1 escassez de moradias Já no século XIX, no texto “Sobre a questão da moradia”, Engels apontava no reconhecimento da questão da moradia como problema fruto da escassez um erro de avaliação da origem da situação e do problema da moradia. Mesmo mantendo a análise baseada nesta aparência, da falta de moradia, ainda que não se avance para além da expressão pontual do problema, ainda que não se aponte sua origem estrutural, já é possível encontrar contradições nesta formulação. É o que faz Boulos, coordenador do MTST e talvez figura pública de maior evidência dos movimentos de moradia hoje, em sua apresentação à reedição do texto, identificando o problema de esta formulação tornar a questão meramente quantitativa. “Engels mostra como a formação de grandes aglomerados urbanos provoca aumento de aluguéis, concentração de famílias em uma única moradia e, no limite, desabrigados. Explica que o problema não é de falta quantitativa de moradias, mas de distribuição: “já existem 19

conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda a real ‘’escassez de moradia’’. Era a Europa do século XIX, mas poderia ser o Brasil do XXI, com mais de 5 milhões de imóveis ociosos – pouco menos do que o necessário para resolver o deficit habitacional do país, em torno de 5,8 milhões de famílias.” (BOULOS, 2015) Mas, apontando a limitação desta formulação do problema e a desmistificação que Engels fazia, Boulos não aponta a questão estrutural de fundo; sua citação de Engels fica incompleta, incapaz de apontar a superação da “escassez de moradia” e esta escassez permanece sendo o problema. Em suas avaliações da realidade concreta de São Paulo, a questão permanece como desafio que deve ser motor das políticas públicas. “O desafio da moradia popular também foi enfrentado. E que desafio! São Paulo tem um déficit habitacional de mais de 700 mil


famílias; cerca de 1,3 milhão de pessoas vivendo em favelas; e outras 2,5 milhões que moram em loteamentos irregulares. Se somarmos, quase metade da população paulistana é afetada pelo problema da moradia precária ou irregular.”(BOULOS, 2015, p. 20) Se há tantas famílias desabrigadas ou morando de maneira precária, sem conseguir acessar a moradia através da compra ou do aluguel, mesmo com imóveis ociosos, concluise que falta oferta adequada à sua demanda e que a postura correta de intervenção do poder público é garantir a destinação de produção voltada a esta demanda ou destinar recursos à distribuição dos imóveis ociosos. Toda a ação para resolver a questão da moradia se volta, ainda, a resolver a escassez. É com esta lógica que aquela afirmação de Boulos refere-se à aprovação do PDE (Plano Diretor Estratégico) de São Paulo em 2014. A partir de sua análise, o Plano aponta para a superação do problema da moradia popular pois: definiu que 60% das habitações construídas nas ZEIS fossem destinadas a famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos (ele aponta que mais de 70% do déficit habitacional brasileiro referese a esta faixa); fortaleceu as “regras de

aplicação da função social da propriedade” com mecanismos como IPTU progressivo e desapropriação sanção; instituiu a Cota de Solidariedade. Mas, seguindo na apresentação de Boulos à questão da moradia, podemos apontar a partir de suas próprias conclusões, a limitação da lógica de superação pontual da escassez de moradia que prevalece em suas análises mais cotidianas e na lógica militante do MTST. Neste trecho, ele aponta que, mesmo com novas políticas, políticas que ele defende, a escassez de moradias aumenta. Isto não se dá só pela ineficiência dos programas ou por outras dificuldades como necessidade de elevados subsídios do governo na lógica de produção para venda da “casa própria”, mas pela lógica social. “Talvez o Brasil atual seja um exemplo forte dessa limitação estrutural. Vivemos um ciclo de crescimento econômico e a política habitacional teve um investimento público inédito, mas mesmo os milhões de casas construídas pelo governo não estancaram a falta de moradia. Ao contrário, a escassez aumentou nas grandes metrópoles. A velocidade com que a especulação imobiliária e as remodelações urbanas criam novos sem20


teto é maior que o ritmo de produção de novas casas. O ressurgimento de legiões de trabalhadores sem-teto, após 2008, nos Estados Unidos e na Europa, além da explosão de ocupações urbanas no Brasil, mostram que o prognóstico de Engels estava certo. O problema não é de construção de casas, mas da lógica social.” (BOULOS, 2015) Nesta frase final está sintetizada a questão da moradia, que, na verdade, não é de sua escassez e não se combate com a produção de casas. Isto está demonstrado de forma pragmática pela constatação de que há habitação suficiente para toda a população urbana, e não só há habitação construída suficiente para abrigar a população, mas há capacidade técnica e produtiva para tanto. “Estima-se em 400 mil o número de imóveis desocupados na cidade de São Paulo. No Brasil, segundo o IBGE, são 6.052.000 imóveis nessas condições. Praticamente a mesma proporção do número de famílias sem moradia. Estão ali servindo à especulação imobiliária, esperando por alguma operação urbana ou Parceria Público-Privada (PPP) que lhes 21

agregue valor com investimento público.” (BOULOS, 2015, p.39) Mas isso está colocado principalmente à medida que chegamos aos agentes construtores da cidade que são dois principais, o Estado e a burguesia arrendatária, os agentes envolvidos na construção excludente da cidade (historicamente como vimos de início no período Prestes Maia em São Paulo e até hoje nas renovações e remodelações urbanas, na aprovação de particularidades no PDE de São Paulo favorecendo a especulação etc.), mas que também são os agentes da produção da habitação social, através das políticas sociais do Estado que se destinam, mais de 95% das vezes, às empreiteiras. É incongruente pensar que dois agentes que ganham com a produção de casas e da cidade atuariam em desfavor a seus ganhos seja pelo fim à especulação imobiliária e processos de valorização na cidade, seja pelo fim à produção da habitação social. Mas a questão para a classe trabalhadora é ainda anterior à produção, que vimos, não atende à principal carência que é do setor que recebe menos de 3 salários mínimos por mês e que não seria atendido por praticamente nenhuma política implementada até hoje.


A questão da moradia é uma questão social, é uma questão da estrutura capitalista, pois é primeiro uma questão do acesso à terra e, neste sentido, decorre da estrutura social que determina a propriedade privada da terra. A escassez de moradia é, então, uma expressão do problema estrutural da sociedade capitalista, e apenas uma destas expressões. A falta de moradia que atinge a classe trabalhadora, sendo um problema de origem estrutural, se torna inerente à existência da moradia enquanto mercadoria e à apropriação privada da terra e de todos os outros meios de produção - a escassez de moradia deixa de ser o problema e se revela apenas a aparência deste que é o problema fundamental da sociedade capitalista. Sobre a escassez de moradia no capitalismo, Engels afirma: “é um produto necessário da forma burguesa de sociedade, que sem escassez de moradia não há como subsistir uma sociedade na qual a grande massa trabalhadora depende exclusivamente do salário e, portanto, da soma dos mantimentos necessária para garantir sua existência e reprodução; na qual melhoramentos contínuos da maquinaria

etc. deixam massas de trabalhadores; na qual violentas oscilações industriais recorrentes condicionam a existência de um numeroso exército de reserva de trabalhadores desocupados, por um lado, e, por outro, jogam temporariamente na rua uma grande massa de trabalhadores; na qual grandes massas de trabalhadores são concentradas nas metrópoles, e isso mais rapidamente do que, nas condições vigentes, surgem moradias para eles; na qual, portanto, encontramse necessariamente locatários até para os chiqueiros mais infames; na qual, por fim, o dono da casa, na qualidade de capitalista, tem não só direito, mas também de certo modo, em virtude da concorrência, o dever de obter para sua casa, sem nenhum escrúpulo, os aluguéis mais altos possíveis. Numa sociedade desse tipo, a escassez de moradia não é um acaso; é uma instituição necessária, que só pode ser eliminada, com repercussão sobre a saúde etc., quando a ordem social da qual ela se origina for revolucionada desde a base.” (ENGELS, 2015, p.71) 22


1.2 falsa questão da moradia Tendo em vista a estruturação real da questão da moradia e expostos os modos como ela é apresentada até hoje, percebemos que não está exposta em sua formulação mais correta, acarretando erros de encaminhamento que postergam sua resolução. Mas esta má formulação serve aos interesses de quem? Pensamos que só podem favorecer os que tiram proveitos de seus encaminhamentos, o setor da sociedade que detém o poder tanto de nomear as questões nacionais quanto de aprovar os encaminhamentos oficiais para estes problemas. “Como ensinava Florestan Fernandes no tempo em que ainda lhe era permitido ensinar, constituem problemas Nacionais aqueles desajustamentos que em um momento histórico determinado são identificados e reconhecidos pela sociedade como um todo, ou seja, por aqueles grupos que possuem o poder de decisão para falar em nome dela. Ora, se essa definição for correta, podemos 23

concluir que a essência e a natureza dos problemas que a Nação formula para si mesma ou, pelo menos, a importância e a prioridade que lhes atribui, varia em função da estratégia daqueles que em cada momento constituem o poder e detém a capacidade de decisão. Mas a referida estratégia não é arbitrária e muito menos desvinculada dos movimentos do real. Os governos e os grupos no poder enfrentam problemas reais, particulares e determinados, de cuja solução depende a sua possibilidade de manter-se enquanto poder. Porém, o caráter particular e não universal, desses problemas reais, exige que a sua verdadeira natureza seja transfigurada para que possam assumir um significado compatível com a vontade popular.” (BOLAFFI, 1975, p. 02) Gabriel Bolaffi introduz desta maneira em sua crítica ao “problema da habitação” essa noção de que um problema real e de escala universal pode ser tomado pelo seu aspecto particular em favor de parcela governante da


da população. Esta particularização, no entanto, não apaga o lastro da questão na realidade e isto lhe garante a identificação por setores mais amplos da população. A ‘transfiguração de sua natureza’ modifica o plano de enfrentamento da questão, mas não altera a sua forma mais aparente. Com relação à moradia, podemos pensar que a particularização do problema refere-se ao recorte que restringe-o à falta de acesso à habitação, mas o recorte feito é maior. Se mantemos a análise de Engels presente em nossa avaliação, podemos estabelecer que o problema da habitação é uma parte ou uma particularidade dentro da questão universal que aflige a classe trabalhadora que é a expropriação dos meios de produção e transfiguração da terra em propriedade privada, inacessível a esta classe expropriada. A questão particular da moradia, como já vimos, não pode ser enfrentada sem que se extingua o problema universal da propriedade privada. Neste sentido, cabe entender quais os interesses do Estado e da burguesia por ele representada na formulação da questão da moradia como uma questão quantitativa, da escassez de moradias – a serem produzidas pelo (ou com subsídios) do poder público. Bolaffi trabalhou longamente em apresentar a falsa formulação do problema da moradia

e os favorecimentos reais que as políticas habitacionais estabelecidas com o Sistema de Financiamento da Habitação e o Banco Nacional de Habitação geraram. “Entre os muitos problemas e necessidades que sempre afligiram a população dos maiores centros urbanos do Brasil, falta de alimentação adequada, falta de atendimento médico, falta de transportes satisfatórios entre a morada e o trabalho, falta de oportunidades educacionais, falta de condições satisfatórias de habitação e de serviços públicos, e principalmente, falta de renda para adquirir bens e serviços acima referidos; em 1964, o Governo Federal elege a habitação popular como “problema fundamental”. Que se tratou de uma decisão importante não o demonstram os decretos, os discursos, os relatórios ou outras manifestações oficiais daqueles anos, mas o fato de que o Banco criado naquela época com o objetivo manifesto de solucionar o problema da habitação recebe em 1967 a gestão dos depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Em consequência da soma de recursos que para ele foram canalizados, a partir de 1969, o BNH tornar-se-ia o segundo 24


banco do país em termos da magnitude de recursos disponíveis, precedido apenas pelo Banco do Brasil.” (BOLAFFI, 1975, p.05) Pela forma de estruturar a produção de moradias, voltada a estabelecer um forte sistema de financiamento, começa a ficar clara a função econômica desta política, prioritária em relação à sua função social. A ligação da política habitacional à política econômica na verdade já aponta a subordinação daquela a esta: sua estrutura é principalmente uma estrutura bancária e o plano de habitação é vinculado ao investimento no setor da construção civil, utilizando os fundos dos trabalhadores para o giro de capital na produção de casas. Bolaffi deixará mais clara esta vinculação ao longo de sua análise do SFH: “Tudo indica portanto, que o “problema da habitação popular”, formulado há mais de 10 anos e até agora não resolvido e, como veremos mais adiante, consideravelmente agravado, apesar dos fartos recursos que supostamente foram destinados para a sua solução, não passou de um artifício político formulado para enfrentar um problema econômico conjuntural(...) o 25

que os fatos demonstram é que a partir de 1967, quando a conjuntura econômica tende a se inverter, as preocupações para com as condições habitacionais das camadas populares vão sendo paulatinamente esquecidas.” (BOLAFFI, 1975, p. 10) “A partir de 1967, quando a política de contenção à inflação, ainda que sem evitar um período de estagnação, criou condições para reativar a economia, o principal pedal do acelerador não foi a construção civil e muito menos a habitação popular, mas a indústria de bens de consumo durável e especialmente a automobilística.” (BOLAFFI, 1975, p.12) A observação dos fatos não deixa dúvidas de que o BNH servia para financiar a construção civil, como motor da economia, em momento de recessão em que a indústria não podia investir ou aumentar a produção. Como em outros momentos de crise do capitalismo, a produção pública ou bancada pelo setor público funciona como motor da economia até que os investimentos privados possam se reestabelecer nos setores mais lucrativos da produção privada.


“Nos períodos de expansão econômica, como ocorreu antes da recessão de 1964/67, a habitação popular, necessariamente subsidiada, ou pelo menos financiada, é obviamente uma “prioridade secundária” porque toda a poupança disponível, pública ou privada é rapidamente drenada para os investimentos lucrativos. No Brasil, aliás, a habitação popular jamais recebeu qualquer prioridade além daquela que lhe pareciam dar os discursos eleitorais” (BOLAFFI, 1975, p.13) A mesma questão foi colocada no início de nossa análise, quando falamos do período de industrialização de São Paulo, ou seja, de crescimento econômico, o Estado limita a construção de casas por meio da legislação a fim de incentivar o investimento de capital oriundo da cafeicultura na indústria ainda incipiente. Na prática se subordina não só a política de habitação à política econômica, mas novamente a intervenção do Estado ao interesse do setor produtivo da burguesia. “Mas se todos os fatos e argumentos apresentados até agora não são suficientes para demonstrar o caracter ideológico e falso do problema da

habitação popular tal como foi formulado, nada é mais esclarecedor do que a análise do desempenho do BNH. (…) Desde sua constituição a orientação que inspirou todas as operações do BNH foi a de transmitir todas as suas funções para a iniciativa privada. O Banco limita-se a arrecadar os recursos financeiros para em seguida transferi-los a uma variedade de agentes privados intermediários.” (BOLAFFI, 1975, p. 17) Bolaffi aponta a inocuidade do Plano de Habitação Popular, citando o relatório do BNH de 1970 que afirma que os recursos utilizados só foram capazes de atender 24% da demanda populacional urbana. A falência do BNH na década de 80 abriu espaço para a intervenção dos movimentos de moradia por novas políticas de habitação, buscando por soluções pontuais para os problemas mais urgentes da população urbana em São Paulo. Talvez aqui coubesse retomar os apontamentos de Boulos, em 2014, sobre as vitórias que as medidas aprovadas no Plano Diretor Estratégico de São Paulo representam, à medida que atacam com impostos progressivos e legislação sobre o uso do solo a especulação imobiliária, procurando juridicamente resguardar a terra 26


de seu uso para valorização e giro de capital. Mas essas medidas jurídicas se complementam com o projeto de ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). zonas destinadas à produção de casas pelo setor privado; inclusive, muitas vezes esta produção é uma contrapartida que justifica a renovação e remodelação urbana, ou seja, inserida nas mesmas lógicas de serviço ao giro do capital e não à resolução da restrição de acesso à moradia, como não poderia deixar de ser numa política que não enfrenta as estruturas sociais do problema. Refutada a possibilidade de contornar o déficit habitacional e resolver questão da moradia de maneira definitiva e global por uma política de produção de casas, cabe procurar entender como a questão se resolve.

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1.3 soluções para o problema da moradia Desde o início da urbanização no Brasil e em São Paulo alguns planos ou políticas trataram da questão da moradia, como propostas de garantia de acesso à população desprovida de casas. Como vimos, Bonduki considera a primeira ação centralizada do Estado, em nível nacional, a Lei do Inquilinato, mas algumas ações pontuais a precederam. Trata-se do início do reconhecimento do papel do Estado na “produção direta ou financiamento de moradias, a regulamentação do mercado de locações e a complementação urbana da periferia”. Dentro desta perspectiva estão as políticas econômicas de produção que se sucederam no nível federal desde então; primeiro bancada pelos fundos de pensão na Era Vargas, depois a produção estruturada pelo BNH com recursos do FGTS durante a ditadura militar, o Projeto Moradia a partir do governo Lula, com a criação do Ministério das Cidades ainda em 2003 e, por fim, seu desdobramento no Plano Nacional de Habitação originou e fundamentou, ainda que com modificações significativas, o projeto Minha Casa Minha Vida (ainda com

financiamento do FGTS e do Orçamento Geral da União). O projeto do SFH é bastante emblemático por sua falência e os estudos sobre este projeto dão conta de suas falhas. A principal delas, no entanto, é a falha principal dos projetos vigentes hoje. Como apontado por Boulos, o financiamento não atinge a faixa da população com menores condições, a população que recebe menos de 3 salários mínimos e que corresponde a 70% do déficit habitacional. Mas isso não aponta apenas uma falha na concepção do financiamento do ponto de vista social (do ponto de vista econômico é uma garantia de menores riscos e maior rentabilidade aos programas). “Com relação à habitação popular, já faz algum tempo que o BNH admite publicamente que não se pode construí-la porque em que pese o caracter de subsídio que os seus empréstimos vêm assumindo de alguns anos para cá, ainda assim é mínima a parcela da população que dispõe de renda para comprá-la.” (BOLAFFI, 28


1975, p.03) Mas, por trás desta falha em garantir o subsídio à população que mais necessita, está a lógica da posse da casa própria. Já questionamos a problematização da questão da moradia pelo viés quantitativo, pela nominação da escassez de moradia enquanto foco de combate e toda esta política tem seu fundamento na difusão da casa própria como objetivo das políticas públicas e como perspectiva individual. As soluções projetadas e implementadas pelo Estado não são incapazes de romper com a lógica da casa como mercadoria e da propriedade privada da terra apenas por não atacarem as estruturas sociais do capitalismo, mas, servindo aos interesses da classe dominante, servem também justamente para que estas estruturas sejam reforçadas. Não há possibilidade de uma política estatal dentro do capitalismo servir a ambas classes sociais. Não há perspectivas de reformas ou de conciliação de classes por meio do Estado no capitalismo. A este respeito, consolidando a posição marxista embasada nos processos de luta e tomada do poder pelo proletariado em 1871 principalmente, Lenin escreve no livro “O Estado e A Revolução”: 29

“O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.” (LENIN, 2011, p. 37) Esta noção marxista está expressa já por Engels em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Retomando a análise de Engels sobre a habitação que nos aponta que a questão da moradia não está resolvida na regulação da venda de casas ou no equilíbrio da oferta e da procura, mas é uma questão de classe, está na resolução da luta de classes sua resolução, e não em políticas estatais, encontramos um sentido político universal em sua obra em consonância com esta visão política do Estado frente a sociedade divida em classes sociais. Engels afirma isto de maneira muito consciente, a partir também da experiência da classe operária francesa na Comuna em 1871. Retomamos passagem fundamental de sua obra, para que possamos chegar às conclusões que antes não estavam postas em toda a análise feita, ainda que fossem


pressupostas para tal. “Como resolver o problema da habitação? Na sociedade atual, ele se resolve absolutamente da mesma maneira que qualquer outra questão social, isto é, pelo equilíbrio econômico que pouco a pouco se estabelece entre a oferta e a procura, solução esta que adia perpetuamente o problema e é o contrário de uma solução. A maneira pela qual a revolução social resolverá essa questão não depende somente das circunstâncias de tempo e de lugar; liga-se, também, a questões que vão muito mais longe sendo uma das principais a supressão do antagonismo entre a cidade e o campo. Como não temos que fantasiar sistemas utópicos de organização da sociedade futura, seria pelo menos ocioso determo-nos sobre o assunto. Uma coisa é incontestável: que atualmente, nas grandes cidades, há imóveis bastantes para satisfazer as necessidades reais de todos, sob a condição de serem utilizados racionalmente. Essa medida só é realizável, bem entendido, sob a condição de expropriar os proprietários atuais e de instalar em seus imóveis os trabalhadores sem habitação ou vivendo atualmente em

habitações superlotadas. Conquistado o poder político pelo proletariado, essa medida, ditada pelo interesse público, será tão facilmente realizável como as expropriações e sequestros de imóveis levados a efeitos atualmente pelo Estado.” (ENGELS, 2015. p. ) Mas se não é possível contar com a ação do Estado enquanto este representa os interesses privados da classe dominante e não o interesse público, só é possível sua defesa pela organização popular. A luta por moradia se iniciou em período de mobilização da classe trabalhadora num processo de organização nos bairros e nas fábricas, sem se desvincular de pautas mais gerais. As ações e estruturas organizativas que surgem vinculadas à pauta são decorrência da urgência de ação neste âmbito. Conforme avança a estruturação dos movimentos e sua relação com os partidos que disputam o poder por dentro do Estado, vemos a lógica de atuação dos movimentos por moradia se alterar também, ocasionando sua fragmentação e adaptação às políticas postas. Este processo não é simples e nem homogêneo; por isso, cabe nos determos sobre este processo e a conformação dos movimentos para um entendimento mais 30


aprofundado das questões que imprimem à política habitacional e das que são inseridas nestes.

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2. luta e movimentos sociais urbanos em são paulo “A luta pela moradia popular em São Paulo é tão antiga quanto o próprio processo de urbanização da cidade.” Com esta frase, Gohn abre o capítulo sobre lutas pela moradia popular em São Paulo. Cabe ressaltar, como apontado no item anterior, que a luta por moradia é mesmo mais antiga do que a sociedade capitalista (dado que a moradia é uma necessidade básica que não pode ser garantida a toda a população numa sociedade desigual em que existam classes opressoras e oprimidas). Tratando do processo constituído na cidade de São Paulo, Bonduki relata, em seu livro “Origens da Habitação social” a organização de movimentos na década de 1940, mas mesmo as ocupações irregulares que dão origens a bairros ilegais, a favelas e cortiços desde o processo de urbanização ao final do século XIX são movimentos de resistência à exclusão que o desenvolvimento do capitalismo gera aos trabalhadores, ainda que uma resistência não organizada. Antes da ditadura iniciada em 64, havia já organizações populares de lutas

sociais urbanas. Os movimentos de reivindicações no âmbito da moradia são, como outros movimentos sociais, reprimidos e desarticulados pelas forças militares. A partir da década de 70, inicia-se sua rearticulação a partir de novos movimentos ou da ativação das antigas estruturas. Gohn identifica como motivo importante para esta rearticulação os motivos de ordem econômica – arrocho salarial, pauperização da população trabalhadora e a “construção das identidades através das semelhanças pelas carências, o desejo de ter acesso aos direitos mínimos e básicos dos indivíduos e grupos enquanto cidadãos e fundamentalmente a luta contra o status quo predominante: o regime militar.” O movimento de moradores de bairros, vinculado às Sociedades de Amigos do Bairro é desestruturado pela ditadura (pois se estruturava com apoio em políticos e com a política de barganha de votos). O novo movimento surge na década de 70 estimulado pelo apoio da Igreja Católica que lançou programas de Pastorais às Favelas 32


em algumas capitais, pelo “ressurgimento da vida associativa no país”, pela rearticulação partidária e a formulação de novas políticas estatais voltadas para a reurbanização de favelas, em lugar de seu extermínio. À medida que novos movimentos urbanos se formam em nível local, desvinculam-se da Igreja. Conforme adentrarmos o histórico dos movimentos por moradia, veremos o desenvolvimento desta articulação dos movimentos, em nível local com mais apoiadores, às vezes conflitantes com a Igreja, e em nível regional e mesmo nacional, conforme se estruturam pautas únicas dos movimentos. É interessante notar que Gohn coloca como um estímulo ao ressurgimento do movimento de favelados o fato de o Estado contemplar suas demandas em políticas públicas, ainda que estas tratem apenas de questões pontuais colocadas pelos movimentos. Como ela mesma aponta, trata-se de uma política que assegura a sobrevivência de setor significativo dos trabalhadores do país em condições mínimas, mas não ideais. Estes novos movimentos se articulam em conjunto passando por estágios organizativos, etapas de desenvolvimento que não são separáveis cronologicamente, mas são 33

caracterizadas pela determinação das demandas, táticas e estrutura organizativa de cada um dos movimentos. Na leitura de Gohn, a luta por moradia pode ser entendida em dois momentos, em uma evolução fragmentada e contraditória. Seriam um primeiro momento as lutas isoladas por água e luz, por reivindicações básicas como posse da terra, o direito real de uso etc.; e um segundo momento das invasões coletivas às ações organizadas das associações comunitárias reivindicando participação, autonomia nas negociações, controle das etapas construtivas e autogestão das cooperativas a serem criadas por elas. As duas frentes de luta identificadas por Gohn – pela posse da terra e pela participação e controle na construção da casa – organizam a população por categorias distintas, a primeira frente abarca a população já assentada, os moradores de loteamentos clandestinos etc; a segunda, a população de inquilinos de cortiços de periferia, barracos e casas de favelas. Consideramos que se pode fazer certa categorização dos estágios de reivindicação da população urbana das questões ligadas à moradia. Mas entendemos que há necessidade de um aprofundamento destes momentos que a autora propõe, pois existe uma diferença


que se faz estrutural para a compreensão da evolução destas reivindicações e de seu papel político. Esta se dá quanto aos níveis de organização – estrutura dos movimentos, clareza das pautas, estratégia de luta e articulações políticas - que se expressam nas formas das lutas espontâneas e dos movimentos organizados. Estes aspectos serão bastante destacados em nossa caracterização destes movimentos nos pontos seguintes do trabalho, e principalmente quanto aos movimentos que são objeto deste estudo. A princípio, trabalharemos com a estruturação destes entre lutas espontâneas e movimentos organizados. O despontar da reivindicação por moradia, após a década de 70, se deu a partir das lutas espontâneas por água e luz nas favelas, pela regulação das taxas de água e luz nos cortiços, pela posse da terra, transporte, creches. As lutas começaram a se articular e engendrar movimentos mais organizados no nível local e regional com pautas unificadas, no entanto, estas primeiras pautas não deixaram de ser importantes e elementos fundadores da participação de grande parte da população marginalizada. Os movimentos por moradia (res)surgem a partir da articulação e fortalecimento das lutas pontuais e espontâneas de moradores e

de trabalhadores em condições precarizadas de sobrevivência. São um resultado da organização e desenvolvimento das lutas, mas também não são formas acabadas ou que prescindam deste modo mais espontâneo de ação das massas. Pode-se perceber um desenvolvimento organizativo no sentido de que a população abria mais espaços para se colocar e elaborar tanto sua linha política quanto a tática do movimento. Esta organização se deu por assembleias, estabelecimento de coordenações reconhecidas pelas bases, articulação regional e nacional e, a partir daí, elaboração de planos de ação e de políticas habitacionais articuladas nacionalmente. Este processo de organização e formação dos movimentos leva muitos a uma elaboração teórica e política que dá abertura a novas perspectivas e formas de intervenção e construção de suas pautas. Sua associação e vinculação a partidos, assessorias e à Igreja, no entanto, limita o horizonte de pesquisa e exploração destas alternativas ainda em fase de experimentação e consolidação pelos movimentos, principalmente após 1982, momento em que esta articulação os vincula também à institucionalidade. Os processos que se iniciam e desdobram em formas cada vez mais organizadas têm 34


seu auge nas experiências de mutirões autogeridos. Após este período de proposta de gestão popular ainda num nível particular e embrionário, os movimentos voltam-se a proposição de políticas públicas, tendo em vista a possibilidade de ascensão de partidos parceiros ao poder, após a redemocratização. É sobre este processo que iremos nos dedicar ao longo deste item.

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2.1 a luta organizada desde os anos 1970 “O fato é que temos um hiato na história dos movimentos sociais no Brasil entre a edição do Ato Institucional no 5, em dezembro de 68, e as grandes mobilizações de massa que começam a ocorrer a partir de 74 e ganhar maior expressão de 78 em diante. A partir desta data reativa-se o interesse pela análise do conflito social, começa-se novamente a estudar as manifestações de resistência dos trabalhadores. Mas permanece no limbo o período anterior, que só recentemente passa a ser desvendado por pesquisas que, juntamente com a minha, centram sua atenção na “rebelião do coro”.” (Bava, 1983, p.12) A este trabalho, interessa estudar o processo de reorganização dos trabalhadores desde seu período de menor expressão e determinação, justamente para entender a conformação dos movimentos de moradia. Os anos 70 são momento de reorganização da classe trabalhadora nos locais de trabalho e isto reverbera na organização nos bairros e movimentos sociais, após sua desarticulação

forçada pela repressão da ditadura militar. Há muitas análises que citam o período de 1968 a 1978 como período de imobilismo, mas, apesar da repressão, há, já neste período, o embrião das grandes mobilizações que se iniciam após 1978. Utilizaremos a tese de Silvio Caccia Bava como referência para entender e analisar a organização social que passa a se consolidar ainda no início dos anos 70 pois justamente aponta para este processo de estruturação dos movimentos que se consolidam no período seguinte. Vera Telles faz uma lista que descreve a base social que conforma estes processos de reorganização da luta nos bairros e fábricas: “Nos relatos que se tem dos anos 70, há vários indícios da presença, nos bairros da periferia de São Paulo, de personagens diversos, portadores de experiências vividas em tempos e espaços diferenciados que se cruzavam e interagiam nos locais de moradia: militantes sindicais contemporâneos das grandes mobilizações do período pré-64 36


e que faziam a crítica do sindicalismo populista; operários católicos vinculados à Ação Católica Operária (ACO) e à Juventude Operária Católica (JOC) que enfatizavam o trabalho de base e a organização de grupos operários em seus locais de trabalho e moradia; padres, freiras, agentes pastorais inspirados pela Teologia da Libertação, articulando e organizando as comunidades eclesiais de base; operários que participaram da greve de 1968, que faziam oposição ao sindicalismo oficial defendendo a organização de comissões de fábrica como alternativa de uma prática operária independente do Estado; militantes com uma origem vinculada às organizações clandestinas de esquerda, que discutiam as razões de sua derrota nos anos que se seguiram a 1968, fazendo a crítica de suas práticas e orientações políticas; trabalhadores que passaram pelas experiências reivindicatórias dos bairros e pelas comunidades de base da Igreja, antes de se integrarem nos meios da militância fabril e sindical; moradores articulando movimentos em seus bairros e enfrentando um Estado muito pouco sensível às reivindicações populares.” (TELLES, 1988, p.252) 37

Esta junção de experiências e atores se faz possível pela necessária unidade no enfrentamento ao Estado, em defesa de suas condições de vida e direitos mínimos e pelo espaço de organização que se abre nos locais de moradia que possibilitará a articulação de lutas e de organismos de luta até então muito fragmentados por fábricas. Mas, antes de constituir-se uma organização com estruturas consolidadas e em torno de pautas bem estabelecidas, houve um momento de ações pontuais de questionamento da ordem e de resistência aos mecanismos de subordinação aplicados pelo Estado nas fábricas e fora delas. Nas fábricas – onde a exploração se ampliava através do arrocho salarial, horas extras, demissões - “rotatividade da mão de obra” - e uso da mão de obra feminina para rebaixamento de salários, as possibilidades de luta e mobilização estavam muito reduzidas pelo controle exercido pelo Estado através da repressão aos movimentos e aos sindicatos, que não eram espaços de articulação autônoma dos trabalhadores neste momento. “Para o trabalhador que se mobiliza na defesa de seus direitos o Estado não é uma abstração. É a polícia na porta da fábrica, o interventor no sindicato,


a justiça do trabalho que decreta a ilegalidade da greve, o índice oficial de reajuste salarial que todo mês come um pouco mais do poder de compra do seu salário. Essas são iniciativas que identificam a presença do Estado no campo do conflito industrial.” (Bava, 1983, p. 20) Mas, como apontado neste trecho, o Estado não só exercia controle das mobilizações de trabalhadores pela intervenção explícita com a repressão policial, mas controlava de maneira rígida o processo de acumulação do capital através de políticas econômicas que reduziam ainda mais os salários e aumentavam a parcela da produção retida pelos donos de fábricas e repassada ao governo. Duas medidas desta política econômica são a criação do FGTS e fixação do ajuste salarial conforme taxas falsas de inflação e aumento de produtividade na indústria. No caso do FGTS, além da retenção de parcela do salário para financiar políticas do Estado, era na prática uma facilitação da demissão de trabalhadores que até então estavam protegidos pelo tempo de trabalho numa mesma indústria:

objetivo de facilitar a demissão dos trabalhadores mais combativos que, escudados em seu tempo de trabalho que lhes garantia estabilidade no emprego, articulavam com seus companheiros de empresa movimentos reivindicatórios.” (BAVA, 1983, p.38) “A inflação não é considerada nos índices de reajustes salarial oficiais. Enquanto o aumento do custo de vida é da ordem de 25% no período 70/71 e chega a 30% no período 72/73, os índices oficiais permanecem inalterados em 12% 3.” (BAVA, 1983, p.36) Desta forma, o conflito entre patrões e trabalhadores passou da esfera privada para a esfera pública pela forte intervenção do Estado no processo de produção. De maneira objetiva, a resistência dos trabalhadores tinha que se dar contra os patrões e contra o governo, pois este se tornou explicitamente responsável pelos ataques empreendidos contra sua organização e pelas políticas de ampliação da exploração da classe trabalhadora. “Dez Anos de Política Salarial; Estudos básicos sócio-econômicos; DIEESE; São Paulo; agosto de 1975. 3

“A criação do FGTS teve também o

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Neste momento inicial de articulação dos trabalhadores, sua política foi independente, classista, e poderemos observar que a resistência à exploração e perda de condições de vida se expressou não só dentro das fábricas, mas aliada às mobilizações sociais. Estas apontaram e se ampliaram conforme a crise avançou e suas condições de vida foram cada vez mais corroídas – para além dos salários reduzidos e inflação, pela ausência de condições mínimas para sobrevivência. Bava explicita a repressão que desarticula o movimento operário e popular no cenário nacional e estadual: “Nada menos que 536 intervenções foram efetuadas em sindicatos de todo o país de 1964 a 1970. No Estado de São Paulo elas atingiram 115 sindicatos e 7 federações, sendo que a imensa maioria das entidades da capital estão aí incluídas.” No espaço urbano, a intervenção do Estado enquanto gestor dos serviços públicos se dava no sentido de favorecer as empresas através de concessões e da privatização ou mesmo de licitações para obras e não havia investimento em serviços que não garantissem lucro – o que significava que uma larga parcela da população pobre não tinha estrutura para seu estabelecimento na cidade. A população que reivindicava mínimas melhorias encontrava “na burocracia 39

do Estado uma barreira e na aliança Estado–Empresas um oponente”, afirma Caccia Bava. As representações locais do Estado (secretarias, órgãos públicos, prefeituras) eram as responsáveis por barrar a possibilidade de questionamento e reivindicação da população. A própria burocracia destas estruturas funcionava como barreira. A população começou então a se organizar contra ter suas condições de sobrevivência degradadas. Ao mesmo tempo em que aumentavam as demissões e os salários diminuíam diante da inflação e rebaixamentos constantes; aumentavam os aluguéis, os custos dos serviços básicos de água, luz e faltava estrutura para sua vida urbana – desde equipamentos públicos como escolas, postos de saúde, até itens básicos como infraestrutura de asfalto, esgotamento das casas, coleta de lixo. A luta econômica irá se desenvolver em lutas políticas contra o Estado, desenvolvendo novas formas de contraposição ao poder oficial – novas formas de organização e disputa do poder, pela racionalidade que a própria situação lhes coloca. Era indissociável o caráter político das lutas abertas já neste período inicial, ainda que não de maneira totalmente consciente


“A medida que as mobilizações populares abarcam um conjunto maior de reivindicações, se espraiam regionalmente, cruzam-se com os movimentos de fábrica, todo esse processo cria condições de politização dos trabalhadores mobilizados, permite uma maior visualização do conflito e cria o campo no qual pode ser entendido o caráter de classe do conflito.” (Bava, 1983, p.25) Como havia repressão aos movimentos e proibição das mobilizações apoiada pelos sindicatos, Bava coloca como pressuposto para a existência da organização de base, que passava a se instituir, a negação da ordem vigente. Neste processo de negação da ordem, Bava descreve este momento como de oposição ao “fechamento do espaço político para suas manifestações”. Mas a negação não é só com relação ao controle da classe e à ordem do capital, há também um movimento em oposição aos “antigos canais de representação” e à “instrumentalização direta de suas associações pelos mecanismos de clientelismo político” que abrem caminho para novas práticas, novos métodos de trabalho, para novas perspectivas de movimento que não

se restrinja às instituições e atue com mais autonomia, possibilitando as experiências pioneiras desenvolvidas neste período. Os movimentos têm de se construir “à margem das estruturas de poder que disciplinam o conflito social e canalizam as reivindicações seja pela via do parlamento, seja através dos canais burocráticos dos órgãos públicos” e assim levarão a resultados muito avançados em termos de organização popular, conquistas concretas e melhorias da qualidade de vida da população em comparação com os outros exemplos de movimentos que não romperam com esta lógica de organização e atuação. Todos estes pressupostos da realidade política e econômica devem ser entendidos para analisar o processo organizativo dos trabalhadores que resulta nos movimentos reivindicatórios organizados nas fábricas, por bairro e região a curto prazo e originam os movimentos coordenados em nível nacional em torno de pautas mínimas como a moradia. Outro elemento que contribuirá nesta leitura é a realidade cotidiana desta população em seus locais de moradia. A região sul de São Paulo tem processo de industrialização e urbanização intensivos a partir da década de 60. O aumento da industrialização, principalmente na área 40


automotiva e metalúrgica, gera afluxo de trabalhadores para as indústrias e integra vasta área da região sul, a partir de Santo Amaro, ao processo de urbanização da cidade. Ligado ao contexto de crise e rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores, este processo de urbanização e aumento da população se dá de maneira muito precária. Bava aponta que junto à industrialização da região de Santo Amaro desde a década de 60 conformaram-se bairros-dormitórios, ocupados também por trabalhadores que não podiam custear a vida mais próxima do centro. “Esta foi a área de maior crescimento populacional em toda São Paulo, com um crescimento inter-censitário de 481% de 1960 a 1970”. Seguindo este processo, como ocorreu nas demais periferias de São Paulo, regiões cada vez mais desestruturadas foram sendo ocupadas conforme os custos de vida aumentavam na região, inviabilizando o custeio de vida da população trabalhadora. “Apesar das 12 horas de trabalho diário e da incorporação de mais um membro da família ao mercado de trabalho, estudos demonstram que o rendimento familiar da 4

classe trabalhadora ainda assim caiu em cerca de 10%.”4 (BAVA, 1983, p.41) Os custos de vida envolviam principalmente transporte e mercado (e o isolamento destes bairros permite a cobrança de preços ainda mais altos do que no centro da cidade) e com o aumento do tempo de trabalho e ausência de espaços comunitários, não havia muita convivência além da familiar. Esta ausência de espaços públicos de encontro esvazia espaços de vivência política. Além disso, as sociedades de bairro e sindicato não são espaços com legitimidade e representativos. Como afirma Bava, a ausência destes espaços públicos de vivência dificulta a compreensão dos processos de articulação dos trabalhadores, pois torna pouco visíveis as formas de luta assumidas frente ao conflito social posto. Estas formas, segundo Bava, já se expressam em uma resistência individual em atos como demora nos banheiros, relaxo no controle de qualidade, enfrentamento de chefes de seção e encarregados e outras ações pontuais. Estas ações, enquanto manifestações individuais de inconformismo,

Família Assalariada; padrão e custo de vida; DIEESE; São Paulo; janeiro de 1974

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podem ser potentes atos de rebeldia e de quebra de submissão, mas a luta, ainda que espontânea, vem da resistência coletiva e aí sim indica algum nível de enfrentamento consequente à exploração do trabalhador. Neste sentido, é importante olhar para as formas clandestinas de organização que a oposição sindical fomentava desde 1968; as ações construídas dentro de cada fábrica pelos trabalhadores organizados por local de trabalho; as ações construídas pelos moradores em seus bairros. Esta organização local é o ponto de partida de toda a articulação que se dará posteriormente. Bava cita um depoimento de operário que dá o sentido desta estrutura de base: “... talvez não possamos perceber que hoje os trabalhadores vivem se sentindo num estado de guerra que lhes é muito desfavorável. Existe o risco do desemprego, o ambiente está muito carregado, a miséria chegou na casa de um número muito grande de companheiros. Existe o medo. É a consciência coletiva dos trabalhadores que mudou, de que a maré não está pra peixe. A vigilância nas fábricas se tornou mais intensa, os sindicatos sofreram intervenção, o arrocho salarial pega todo

mundo, o pau come nas manifestações públicas promovidas pelos trabalhadores. O trabalhador localiza todas essas coisas que a gente chama de opressão. E resiste a elas. É uma resistência individual. E é também uma resistência coletiva. A luta de classes não vem “de fora para dentro”, ela está exatamente dentro do local de trabalho. No plano das reivindicações de bairro a situação é a mesma. As ações diretas se tornam a cada dia mais frequentes e isso se dá também porque ninguém mais acredita que pedindo o Estado atende.” 5 A partir da Igreja, que é um dos poucos espaços de convívio que restaram, iniciou-se uma série de reuniões em que a população se agrupa por interesses ou, mais precisamente, por necessidades. Assim, a organização que desenvolveram atendia a esta população que constrói suas próprias formas de trabalho, sua democracia interna e uma experiência coletiva que pode se desdobrar em formas mais desenvolvidas de luta. O início deste processo em São Paulo se deu na zona sul com os Encontros de Reflexão “Movimento dos Trabalhadores: um debate”; Cadernos de Educação Popular 5; Co-edição Vozes/nova; Petrópolis; 1983; p.14 5

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da Igreja em 1971, um desdobramento de sua nova postura já expressa em missas e na organização comunitária para pequenas ações junto à igreja, quermesses etc. A importância destes encontros e da nova postura assumida pela Igreja a partir da posse de D. Paulo Evaristo Arns como Arcebispo de São Paulo em 1970 é muitas vezes trazida pela compreensão de se tratar de processo de conscientização política dos trabalhadores sobre temas como “justiça social”, mas se analisamos o cenário geral que está posto, a mobilização ainda incipiente nas fábricas (a exemplo do que o operário citado por Bava retrata como resistência individual e coletiva e mais frequentes à medida que desiludidas com relação ao Estado) percebese que o principal desentrave efetuado pela Igreja é o de garantir espaço à organização desta revolta, espaço de convívio que, como

relatado por Bava, não existia na vida de miséria nos bairros-dormitório. Ele mesmo traz elementos para esta avaliação, ainda que não abandone a visão equivocada de que cabe à igreja “despertar” a consciência do trabalhador.6 “É nesse sentido que se pode dizer que foram as experiências diferenciadas dos trabalhadores, expressas nesses espaços, que definiram as formas de participação que mais os sensibilizaram e mais os interessavam. A Igreja coube o papel de criar os espaços de encontro nos quais foi possível essas experiências se traduzirem em iniciativas coletivas. E coube também despertar uma noção de dignidade e de direitos sociais que o regime político se incumbira de destruir em meio aos trabalhadores.”(BAVA, 1983, p.64)

Cabe pequena consideração sobre a posição de Maria da Glória Gohn a este respeito: A avaliação de Maria da Glória Gohn sobre este período das lutas corrobora esta linha de análise de que há um processo externo de conscientização das massas, chegando a seu extremo, que é não reconhecer a espontaneidade destes movimentos: 6

“A revitalização das manifestações da vontade popular nos anos 70 não foi um processo espontâneo, criado apenas por carências e necessidades não atendidas. Os novos atores políticos, como têm sido denominados, os protagonistas das lutas urbanas não atuaram sozinhos.” (Ghon, 1981, p. Colocar que não houve processo espontâneo dá a crer que a população não iniciou de maneira autônoma sua mobilização por suas próprias demandas e necessidades concretas, mas desde sempre esteve posta uma ação determinadora de sua mobilização. Pelos relatos da própria autora, de operários e de Caccia Bava (que já citamos), podemos apreender uma dinâmica

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Os grupos de trabalho originados desta estrutura foram o Clube de mães, a Pastoral operária e outros grupos de jovens e de fins litúrgicos. O clube de mães se reunia com regularidade para criar espaço de convívio entre as vizinhas, que começavam a debater os problemas vividos no bairro, com as escolas, saúde e falta de estrutura. Com trabalho de base de divulgação do Clube, suas reuniões se ampliaram. Com o crescimento dos questionamentos, inicia-se um processo de discussão mais ampla com a população, abaixo-assinados e organização de ações de cobrança do poder público. Este processo resulta na construção de escolas na zona sul, mas também em uma série de desenganos com a burocracia estatal. A pastoral tinha um caráter de classe e fundamento de trabalho mais claros e organizados. Por contar com operários que já se organizavam e militavam, sua fundação respondia a questões de estrutura que, sem

o apoio da Igreja, eram muito mais frágeis. A partir da pastoral, podiam atuar com maior número de companheiros “que se encontravam isolados pela falta de espaço para articularem-se” e também os militantes da oposição sindical participavam das reuniões da pastoral. Essas reuniões serviam para organizar a luta dentro das fábricas, socializar experiências e articular trabalhadores longe da repressão das fábricas. “Já a pastoral operária se forma de maneira distinta, os operários reúnemse em separado, são em sua maioria metalúrgicos, e através de encontros sucessivos definem-se como integrantes de um trabalho de Igreja que visa mudar a mentalidade do operário para que este descubra seu valor, seus direitos e sua tarefa na sociedade. Os objetivos da Pastoral Operária são

distinta, que se inicia com alguns processos de luta espontâneos que encontram estruturas nas quais se apoiar – a igreja, a atuação organizada dos partidos, de assistentes sociais nos bairros. Estas estruturas atuaram como parceiras, impulsionadoras e mesmo como fatores determinantes para a organização nos bairros, mas não como determinadoras destas organizações e nem mesmo das pautas das lutas. Ao contrário do que afirma neste trecho, os processos demonstram um claro ascenso espontâneo pautado por uma revolta legítima contra o aumento do nível de exploração e de miséria da população, ainda fraco e desorganizado, que se estrutura conforme passa a se determinar em termos de pauta, método organizativo e táticas de luta. Estes movimentos se iniciam como ações espontâneas que se determinam conforme acumulam experiência e encontram respaldo e espaço para se desenvolverem. A partir de então, temos o encaminhamento da luta e sua articulação a outras lutas e movimentos sociais.

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definidos aí como: “Formar militantes, a partir da ação, para organizar a classe trabalhadora e transformar a sociedade segundo os interesses dessa classe. Para isso, a fábrica foi considerada o local fundamental de intervenção. O objetivo era formar grupos de fábrica para atingir os companheiros de trabalho com discussões sobre a situação dos trabalhadores na sociedade.” (BAVA, 1983, p.67) Estas formas primeiras de organização de base ganham força e passam a se articular. Bava relata a criação, em 1972, de uma coordenação de quatro clubes de mães da região para organizar o trabalho. Isto não só impulsionou o trabalho, mas serviu para expandi-lo a outros bairros. Na pastoral operária articulam-se trabalhadores de diferentes fábricas e avança-se na experiência coletiva destes. Ainda que o trabalho nos grupos de fábrica seja prioritário para a luta operária, este espaço é importante para pensar a ação destes grupos de base das fábricas e aumentar a pressão exercida em ações mais fortes como a paralisação da produção para pressionar por aumento salarial. 45

“Os grupos de base se afirmam assim como pré-condição para a mobilização. Sem eles não é possível pensar no nascimento de movimentos sociais. São um novo tipo de organização popular que tende a romper com o imobilismo social através de uma proposta de participação que se pensa enquanto ação coletiva contra um estado de coisas que os mantém na miséria e calados, E a formação destes grupos de base atinge igualmente as fábricas e os bairros.”(BAVA, 1983, p.78) Em 1973 surgem as primeiras mobilizações das organizações de base. “O ano de 1973 é o marco do surgimento de movimentos reivindicatórios na periferia da zona sul de São Paulo. Os pequenos grupos de moradores que se formaram nos anos anteriores vão consolidando, aos poucos, um método de trabalho que convoca a população a participar.” Estas mobilizações, no entanto, tem caráter reivindicatório e se dão com comissões que vão aos órgãos públicos ou com a mobilização da população em assembleias acompanhadas pelas autoridades, ações que não levam a soluções, mas à desmobilização. Assim, institui-se uma prática de mudança de pautas para


manter a população mobilizada, já que a luta de exigências do Estado não consegue encaminhar suas demandas. “Isso faz com que todas as reivindicações sejam igualmente importantes “porque mantém o povo na luta”. Não se avaliam as correlações de força e as possibilidades de conquista efetiva, tampouco onde devem concentrar seus esforços. O importante é reivindicar. E com isso há lutas – como a de creches – que se inicia em 73 e chega a furar mais de 9 anos sem conseguir resultados positivos.” (BAVA, 1983, p.80) O empirismo predominante neste momento não permite ao movimento fazer balanços mais sérios e avaliar o papel do Estado frente às demandas apresentadas. A ação de apresentar demandas como política das organizações de base, com maior ou menor mobilização popular, permite ao Estado se organizar para aparelhar estas demandas e “neutraliza este tipo de enfrentamento criando formas burocráticas de encaminhamento destas demandas aos órgãos competentes e estabelecendo assim o controle político sobre os movimentos reivindicatórios.” Esse fácil controle que o

Estado exerce sobre os movimentos força-os a um novo nível de estruturação. Estabelece-se uma coordenação dos trabalhos na Vila Remo. São utilizados boletins e convocatórias e o trabalho cresce. A coordenação representa as várias comunidades de base e com um mapeamento feito por estas pode estabelecer prioridades para o trabalho regional. Este ganha amplitude também com encontros inter-setoriais da Igreja, que reúnem militantes de Santo Amaro, Cidade Dutra e Socorro. Nos bairros também começam a ocorrer reuniões inter-fábricas que discutem a preparação das campanhas salariais e uma maior articulação entre os grupos de fábricas. A partir da experiência de luta nas fábricas e nas reivindicações ao Estado, percebe-se que não há disposição para negociar as demandas apresentadas – são casos de demissão das comissões de fábrica inteiras e de burocracia que barra qualquer encaminhamento das reivindicações urbanas. Então, a força do movimento se centra na organização de base e na pressão de massa no embate contra Estado e empresários. “À medida que estas práticas populares vão ganhando uma dimensão mais política, elas vão construindo organismos que se 46


confrontam com o peso das instituições, com as tentativas de cooptação, com a repressão. Isso acontece, por exemplo, na relação com o sindicato, uma relação necessária para se negociar com a empresa, mas que solapa o exercício da democracia direta e a autonomia do movimento(...)” (BAVA, 1983, p.88) A este ascenso responderá forte repressão e vários militantes serão presos e torturados. Isto reflete em desmobilização e menor participação nos movimentos com exceção de M’Boi Mirim, onde o trabalho está mais organizado. O movimento é construído entre ascensos e refluxos, mas as experiências vão se consolidando em práticas e estruturas que articulam a força social dos trabalhadores, preparando os embates ainda mais massivos do final dos anos 70. Esta força da articulação pela base disputa e transforma as sociedades de amigos dos bairros que, desde sua criação, vinculadas ao janismo, serviam à instrumentalização das demandas da população pelos gabinetes de políticos para conquista de votos pela prática do clientelismo. Após o golpe de 1964 estas sociedades têm seu funcionamento comprometido, mas na zona sul continuam a centralizar reivindicações apresentadas em 47

cada SAB através do Plenário das Sociedades de Amigos do Bairro encaminhando-as ao executivo por intermédio de parlamentares. Em 1972, em Santo Amaro, o Plenário chega a reunir 7.000 pessoas e ter 110 SABs filiadas. O prestígio dos diretores das SABs se dava pela proximidade com políticos. Este processo de vinculação se explicita no ano de 1974, em que a articulação com os políticos se reflete no uso das comissões para defesa de candidaturas de vários vereadores. Esta estrutura viciada e não representativa da população será substituída pelas novas formas de organização e mobilização dos trabalhadores, mas também será ocupada e utilizada por eles. Bava relata que “uma série de SABs da região se aproximarão do trabalho de organização popular e participarão com grande empenho do desenrolar de movimentos reivindicatórios”. Isto se dá tanto pela mudança da direção destes organismos como pela pressão sobre a direção existente. O Plenário deixará de existir e será substituído pelos organismos de base fruto deste processo de mobilização. “No entanto, quando a população se mobiliza, quando estão dadas as condições


para a existência da ação coletiva, a pressão popular, dos organismos de base, dos moradores, dá novo sentido à entidade. Manter sua representatividade, sua legitimidade perante o bairro obriga as diretorias das SABs a se incorporarem aos movimentos.” (BAVA, 1983, p.97” Ainda que de modo muito inicial, a luta do início dos anos 70 começa a refletir nas formas de organização da população, fundando estruturas de base que possibilitarão a luta massiva que se seguirá. Se antes havia sindicatos e sociedades de amigos de bairro totalmente vinculados ao Estado, neste primeiro momento, a luta passa a ser de disputa com o poder oficial e não mais de associação a este. Ainda na forma de reivindicações e de exigência de políticas públicas, a população se organiza para demonstrar sua força organizada – por abaixoassinados, por manifestações, paralisações nas fábricas e articulação de greves. Dentro e fora das fábricas, a luta se mostra o único caminho para garantir as condições de vida da população. Bava sintetiza esta situação das lutas urbanas: “o quanto do produto social é destinado a atender as necessidades da classe trabalhadora se define pela capacidade

de organização e mobilização dos próprios trabalhadores.” Ao longo da década de 70, o passo seguinte na organização dos trabalhadores foi a articulação entre movimentos, não só entre bairros – o que vai originar em 80 as coordenações regionais, estaduais e nacionais – mas, principalmente, uma articulação mais sólida entre os movimentos sociais e os movimentos operários. Gohn relata sobre o processo de greves: “Os movimentos populares de bairro foram também importantes pontos de apoio na onda de greves ocorridas em 1978/1979. Este apoio se traduzia em mobilização, organização e apoio material, como a coleta de alimentos, que foi uma forma muito importante de articulação entre o movimento de bairro e o movimento sindical.” (GOHN, 1981, p.54) Além da composição social comum aos movimentos, havia uma articulação de métodos e objetivos. Como já apontamos, as condições de sobrevivência das famílias de trabalhadores estavam precarizadas pelas políticas econômicas, pela precarização das condições de trabalho e de vida. Não havia perspectivas de garantir condições mínimas 48


sem esta luta em duas instâncias simultâneas. A título de exemplo, os movimentos de favelados e de cortiços se articulam a princípio por itens básicos como água e luz – pelo fornecimento destes naquelas e pela cobrança justa de preços nestes. A compreensão da exclusão de condições básicas para sua sobrevivência reafirma a perspectiva classista que orienta a militância dos trabalhadores. Como relata Gohn, em Belo Horizonte, em 1977, “criou-se a União dos Trabalhadores da Periferia – UTP. O próprio nome já denota a luta contra a segregação existente. Procuram-se afirmar não pelo lado de moradores favelados, mas de trabalhadores. Aliás, o nome surgiu após acalorados debates.” Os encaminhamentos práticos da luta, no entanto, não garantem por si uma estratégia que sirva à classe. A tática de reivindicação ao Estado, que é adotada pelos movimentos sociais não abre novos caminhos ou perspectivas de garantia sequer do mínimo necessário à sobrevivência da população. Gohn aponta, se tratar de uma política que perpetua a sobrevivência de setor significativo dos trabalhadores do país em condições mínimas e não ideais: “Sem mudar o modelo de acumulação, é impossível mudar a situação econômica do favelado. O caminho 49

adotado foi criar condições de sobrevivência, dotar a favela de infra-estrutura urbana básica e mínima.” Estes movimentos irão se desenvolver, no entanto, ao longo da década de 80, com o acúmulo de experiências de luta e amadurecimento político e chegarão a questionamentos mais amplos e estruturais da sociedade capitalista. Fundamentalmente, tensionarão com o direito à propriedade da terra e com a autoridade do governo em determinar as políticas de habitação e controlar os processos de construção financiados com o dinheiro do FGTS. Mesmo sem nunca chegar a uma estrutura de disputa real com o Estado, reivindicam que o controle da produção da habitação seja dos trabalhadores, mantendo apenas o financiamento nas mãos do Estado e a posse da terra ocupada. A luta por estas pautas se articula em movimentos a partir de ações de ocupações de terrenos públicos e da discussão e conformação dos movimentos de mutirão autogerido. Neste sentido, podemos pensar se o movimento de favelados e de autoconstrução nas periferias são as duas vertentes que mais crescem dos movimentos ligados à questão da moradia (segundo Gohn) na década de 70 devido ao seu devir emergencial para as


famílias de trabalhadores ou também porque é possível ao Estado ceder, e ele cede, às reivindicações destes movimentos. Apesar de ser impossível fazer tal avaliação sem acesso a uma descrição mais detalhada destes movimentos, é uma reflexão fundamental e que se estende a todos os movimentos sociais, pois permite analisar mais a fundo sua construção política – se sua política está de fato alinhada a uma política de classe ou se trata-se de uma política de vinculação e ilusão no Estado. Entender se esta vinculação tão característica nos movimentos atuais está gestionária na sua origem é uma das questões que trataremos conforme entrarmos na descrição mais atenta destes.

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2.2 a luta organizada a partir dos anos 80 - origem dos movimentos por moradia Na década de 80 a estrutura e articulação das lutas consolidou movimentos de moradia a partir do estabelecimento de programas de luta. Identificamos como as principais linhas políticas para esta articulação as construídas pelos trabalhadores favelados – com a questão do direito e da posse da terra e, como desenvolvimento destas, a construção da moradia – e dos trabalhadores sem acesso à terra e à moradia – cuja principal questão a princípio é o acesso à terra mas que também se desdobrará em questões de posse e políticas para construção da moradia, articulando-se aos movimentos dos favelados. Com esta maior definição, o processo de lutas pontuais e locais, iniciado em 70, adquiriu maior amplitude em decorrência de sua determinação formal e política, o que garante o planejamento de ações a médio e longo prazo envolvendo vários bairros e regiões. Assim, a perspectiva destes se lançou além das lutas imediatas com a possibilidade de superar as limitações das lutas reivindicatórias. Porém, sem uma estratégia revolucionária, as propostas se mantiveram dentro da perspectiva já colocada pelas políticas habitacionais implementadas 51

até então, com pequenas reformas para ampliar a participação popular no processo. Importantes ações coletivas e organizadas começaram a tomar o lugar das ações individuais ou pontualmente articuladas e espontâneas que caracterizaram o período anterior. Um exemplo importante que trataremos são as invasões de terras (públicas e privadas) e conjuntos habitacionais, que começaram a ser feitas sistematicamente com o objetivo de abrir negociação e pressionar politicamente o governo para garantir acesso à terra demandada e ocupada definitivamente pelas famílias dos movimentos de moradia. Com base no modo de organização dos movimentos populares, Gohn os classifica em Lutas pelo acesso à terra e à habitação; Lutas pela posse da terra; Lutas no âmbito dos processos construtivos; Lutas dos inquilinos; Lutas de proprietários pobres: protesto contra a qualidade da moradia dos programas oficiais e legalização da propriedade da terra. Aqui, apresentaremos estas lutas a partir da tática de ação e método organizativo que as caracterizam, separando-as conforme apresentado de início


nos movimentos de invasão de terras, cuja perspectiva principal era a pressão para abrir negociação com os governos e garantir acesso à terra e os movimentos pela posse da terra e pela construção da moradia popular, cujas perspectivas se viabilizam a partir do financiamento e das políticas públicas do Estado. Há condições objetivas que determinam o encaminhamento dessas lutas para a generalização do que antes eram as práticas individuais. A crise capitalista, descontrolada com o fim do “Milagre Econômico” e a crise do Petróleo incidindo sobre o país, que já refletia no aumento do desemprego e rebaixamento das condições de vida da classe trabalhadora, se tornou explícita desde 1977 com o lançamento de dados do DIEESE desmentindo dados oficinas do governo. “o desemprego, o aumento dos aluguéis, a mudança de legislação na área do solo urbano dificultando a constituição de novos loteamentos populares, o aumento desproporcional do preço das tarifas de transportes, o esgotamento dos espaços disponíveis nas favelas etc levaram às invasões coletivas de áreas urbanas e à constituição de movimentos de luta pela moradia.” (GOHN, 1991, p.13) Este rebaixamento das condições de vida, junto à limitação espacial (diminuição

de áreas disponíveis para serem ocupadas espontaneamente) que a expansão periférica do tecido urbano contornava até então, são os principais motivos desta mudança de tática dos movimentos. Se antes era possível ocupar áreas grandes para iniciar novos bairros a serem consolidados com a autoconstrução, já não havia esta possibilidade de ocupação e mesmo os barracos e casas já construídos poderiam ser perdidos, pois não havia garantia de posse pelos moradores, mesmo nos casos dos loteamentos clandestinos. Este processo de crise foi profundo a ponto de atingir também as camadas médias da sociedade, que passaram a se organizar para combater o aumento do aluguel a partir de 1986. Os movimentos mais significativos, relatados por Gohn, são o Movimento dos Inquilinos Intranquilos, que se dizia apartidário, e o Movimento dos sem-casa, de caráter mais popular e que chegou a ter uma articulação nacional. Neste trabalho, não nos interessa olhar detidamente para estes movimentos, até porque não encontramos relação sólida entre estes e os movimentos de moradia de base popular que estão em processo de consolidação e mesmo com as lutas do período anterior. Nos movimentos que estudaremos, a resposta dos trabalhadores já conta com a estrutura de base articulada nos anos de repressão e apoio da sociedade civil organizada, além dos partidos que se 52


conformam na abertura democrática e que disputam essa base social. Já desde o início dos anos 80, e mesmo desde o fim dos anos 70, a nova conjuntura política é também mais favorável à manifestação dos movimentos e à adoção de práticas mais ousadas. Gohn identifica que o Estado consegue aproximar os movimentos, pois passa a lidar com a oposição através de parcerias e lutas na máquina estatal por sua democratização e não mais através do clientelismo, assistencialismo ou da repressão. Ao mesmo tempo em que os movimentos se unem na luta pela democratização do Estado, os agentes políticos dos partidos legalizados que estão à frente deste processo passam a se aproximar dos movimentos e aproximá-los das instituições. “No novo contexto, a sociedade organizada em associações e movimentos deixou de ser algo marginal ou alternativo; perdeu seu potencial exclusivamente contestador para ganhar um caráter legalista, ordenador e participante das novas regras estabelecidas para o convívio social. O liberalismo volta à cena através da reivindicação dos direitos de cidadania, não mais a cidadania individual, mas a cidadania coletiva, dos grupos organizados.”(GOHN, 1991, p.15) Muitos pesquisadores desta época avaliam 53

como positiva esta aproximação e empenho dos movimentos em construir propostas de políticas habitacionais do nível municipal até o federal. Assim, estas organizações de massa, com suas políticas apoiadas pelos intelectuais reformistas canalizavam as tentativas de oposição para ilusões reformistas, meramente sindicais, parlamentares e eleitorais. Gohn ainda relata que depois de 1986, a conjuntura política trouxe fatos novos. O Estado reelaborou sua política social em torno de negociação com os movimentos organizados, a participação se tornou fórmula para gerenciamento dos negócios do Estado. O Estado deixa de ser o inimigo aparente e começa uma confusão entre “ser movimento” e “ser governo”, “o espaço de produção do movimento é apropriado pela administração”. Há, segundo Gohn uma inversão, dado que na década de 70 os movimentos se apoiavam na sociedade civil, na década de 80, o apoio passa a ser transferido para a “sociedade política”. Relata, ainda, como este processo levou a uma perversão de garantir ao poder público todas as informações dos movimentos, suas intenções e estratégias, por ter pessoas dos movimentos em cargos do governo, mas não garantiu aos movimentos informações sobre a máquina estatal. Ocorreu certa paralisia nos movimentos que abrandam a ofensiva ao governo, com seus representantes recém


eleitos. Isto deu força aos movimentos de oposição, que se rearticularam, enquanto os movimentos apoiados na sociedade civil (nas comunidades eclesiais de base por exemplo) desaceleraram. Para compreender melhor este processo de institucionalização e as políticas definidas pelos movimentos, cabe avaliar os encaminhamentos das principais lutas que deram origem às coordenações e estruturas dos movimentos de moradia que existem até hoje. As invasões têm destaque pois passam a ser as ações mais comuns entre os favelados na década de 80 e a organização destes para essas ações planejadas depois se encaminha para pautas próprias decorrentes da discussão inicial sobre acesso e posse da terra. Um processo significativo foi a invasão da Fazenda Itupu, em 1981, envolvendo 3 mil pessoas. A invasão foi desdobramento de uma sequência de outras 3 invasões e em resposta à ausência de pronunciamento do governo e do BNH (Banco Nacional da Habitação) sobre uma carta de reivindicações do movimento Assembleia do Povo, que reunia associações de bairro de 27 bairros da região do Campo Limpo. Suas reivindicações eram: 1. a construção de um conjunto de casas populares na área da Fazenda Itupu, pertencente ao Iapas; 2. a construção de um hospital no mesmo terreno; 3. a construção de uma escola para

deficientes mentais. Esta invasão foi um marco pelo conflito que criou entre o movimento e o regime político vigente e pela divisão entre as lideranças do movimento popular (PT e igreja de um lado, PCdoB, PMDB de outro). A invasão acabou com a ação da polícia, mas houve um saldo organizativo que manteve este grupo em luta com novas invasões pressionando a prefeitura para aquisição de uma gleba. Os manifestantes foram encaminhados aos planos da Cohab. As invasões se tornaram forma de sobrevivência da população sem moradia, mas foram reprimidas e frustradas em sua maioria. Passaram a ser toleradas a partir de 1983, “diante da impossibilidade de atender às pressões e da necessidade de certa estabilidade para o novo governo”. Em 1984, uma nova invasão no Piqueri conseguiu negociar a venda de lotes do terreno da Santa Casa, atingindo seu objetivo de acesso à terra intermediado pelo poder público. Este processo chegou a dar origem a um movimento – o Filhos da Terra, ligado ao Movimento dos Sem-Terra, sobre os quais não trataremos a fundo, por estarem fora da área de interesse deste trabalho. Este processo é bastante representativo do momento ainda de ascenso da organização da classe. Gohn escreve: “O importante a se destacar é o fato de as invasões coletivas de terras dos anos 80 serem o início e, ao mesmo 54


tempo, as células básicas dos movimentos organizados pela moradia popular, criados em 1983/1984.”. Através das ocupações, a classe abria um espaço de disputa direta de poder com o Estado, ficando a cargo da repressão voltar a estabelecer a normalidade e o controle privado sobre a propriedade. Porém, esta via de disputa, para a qual a primeira ação do Piqueri apontava, foi menos explorada pelos movimentos, que passaram a organizar as ocupações como ações rápidas de pressão. O próprio paralelo que a autora estabelece com o movimento fabril se dá com as paralisações de setores e de máquinas e não com as ocupações de fábrica. Nesta perspectiva de pressão pontual, os movimentos iniciam mesmo a ocupação temporária de órgãos públicos como forma de pressionar o governo a atender exigências populares ou abrir negociação. Acampamentos - ocupações foram feitos na administração regional de São Miguel pelo movimento Filhos da Terra e na sede central da Sehab pelos movimentos da zona sul. O relato da ocupação do Piqueri mostra esta perspectiva, mesmo que muito inicial, de auto-organização do movimento e a capacidade organizativa que garantiria o encaminhamento da luta que segue, desde sua proposição até seu desfecho, em contradição com a crença no Estado como única garantia para conquista de suas demandas. A própria ocupação só foi feita como resposta a uma 55

série de negociações com a prefeitura e Fabes (Secretaria Municipal da Família e do Bem Estar Social), das quais não saiu nenhuma proposta ou encaminhamento, apesar do esforço do movimento em elaborar propostas e projetos viáveis para o poder público. O movimento já estava organizado para fazer esta negociação com o poder público e reverte sua organização para o processo de ocupação de maneira muito aprofundada. “A invasão da área da Santa Casa foi pensada em janeiro de 1984. A comissão do Movimento foi ampliada para trinta pessoas. Formaram-se equipes de orientação e subdividiram-se as tarefas: finanças, negociação, segurança, divisão dos terrenos etc. A comissão de finanças fez a arrecadação de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) de todas as famílias cadastradas, para a construção de um barracão comunitário, para servir de abrigo e sede da luta... A comissão de negociação fazia a parte de relações públicas com o poder público e com a imprensa. A comissão de segurança cuidou de um plano de autodefesa, para o dia e para a noite. Os instrumentos eram paus e pedras, e as táticas eram, a qualquer ataque, mulheres e crianças na frente. Era o chamado esquema de resistência que visava impedir a violência....


Dia 11 de fevereiro de 1984, após contato com a secretária da Fabes e a negativa de qualquer solução naquele momento, o Movimento decidiu, em assembleia, a invasão. Ao todo eram 1.027 famílias.” (GOHN, 1991, p. 89) Ao mesmo tempo em que o movimento avança organizativamente com ações de massa planejadas e concretizadas com eficácia, a política que é estabelecida leva à perda de autonomia cada vez mais expressiva, não só pela institucionalização das demandas e processos de disputa dos movimentos, mas pela vinculação à política partidária e às disputas partidárias de acesso ao Estado. As ações são pensadas a cada momento mais pela eficácia e influência na negociação com o poder público do que pelo avanço do próprio movimento, ou, em outras palavras, o avanço do movimento está vinculado ao avanço das negociações com o poder público – não há, ou ao menos não há registro de ações – que sejam planejadas e executadas sem vinculação ao Estado e às políticas habitacionais de que este dispõe. O processo descrito abaixo termina com uma disputa entre movimentos que são filiados a diferentes partidos e que tinham prometidas para si, áreas ocupadas por outros movimentos. A reação em cadeia saiu do controle das coordenações, dos partidos e foi controlada por meio da repressão.

“Em fevereiro de 1987, vários movimentos invadiram 238 áreas na zona leste, envolvendo 32.000 famílias e cerca de 100 mil pessoas. O que determinou uma mudança tão radical no comportamento do movimento e o fato de ter assumido características de um movimento de massa? A resposta é de natureza política. A administração Franco Montoro se caracterizou pela lentidão nas ações. O Movimento da Zona Leste estava cansado de promessas não-cumpridas, de dilatações de prazos etc. Mas, mesmo assim, os sem-terra continuavam apostando na eficácia dos processos de negociação. A decisão da invasão, no início, não coube aos sem-terra, mas a facções do movimento lideradas pelo PC do B. Este partido estava descontente com o processo de composição do secretariado do recém-empossado governador Orestes Quércia.” (GOHN, 1991, p.84) O outro movimento que exporemos neste ponto, o Movimento Unificado de Favelas, é fundado nas lutas e fundante dos movimentos de moradia da zona sul e das políticas dos movimentos subsequentes. Por representar esta transição de um momento de lutas defensivas para um momento de organização e consolidação dos movimentos, apresentamos o MUF apenas neste ponto do 56


trabalho – ele expressa a política e métodos de conformação dos movimentos de moradia, mais do que serve de exemplo dos ascensos espontâneos da década de 70. Apesar de se organizar ainda na década de 70, sua proposta surge a partir de uma articulação dos favelados da região sudeste de São Paulo, no Campo Limpo, para lutar contra decreto do então prefeito Olavo Setúbal mas se encaminha, a partir as assembleias populares, para o Congresso dos Favelados da Grande São Paulo e formas mais consolidadas de luta. “Na criação do Movimento das Favelas de São Paulo participaram cerca de 2000 pessoas e 70 favelas da região de Santo Amaro, Campo Limpo e Vila Mariana. No mês seguinte, 1000 favelados reivindicaram na Prefeitura o plano de água e luz prometido pelo prefeito. Nesse ínterim, a mobilização cresceu e atingiu a zona leste da capital. A luta inicial deu-se em pontos isolados. Depois passou a ser por regiões. O elemento unificador era a reivindicação por água e luz. A luta inicial deu-se em pontos isolados. Depois passou a ser por regiões. O elemento unificador era a reivindicação por água e luz.” (GOHN, 1991, p.98) A partir de 1982, com a ascensão ao poder de parte das oposições, as diferenças 57

de projetos político-ideológicos aos quais os movimentos se vinculavam se acentuam e dão origem a cisão e reorganização das estruturas destes movimentos. “A ala que expressava as articulações, apoiada pelo Partido dos Trabalhadores, por parcelas do clero católico e pela oposição dos metalúrgicos de São Paulo, organizou o Movimento Unificado de Favelas, Cortiços e Promorar.” “Entre 1978-1982 podemos afirmar que a quase totalidade dos trabalhos comunitários realizados com as populações periféricas e carentes era apoiada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Hoje, as divisões e fragmentações partidárias, aliadas ao avanço organizacional das outras forças políticas que lutam pela democracia e pela transformação social, tornam a questão nebulosa. Acrescenta-se ainda outro dado fundamental: a cisão que ocorreu nos movimentos populares a partir de 1983, entre os que ascenderam ao poder via oposição e os que se tornaram a oposição da oposição. Ou seja, simplificando, racha entre os simpatizantes do PMDB e do PT, basicamente.” (GOHN, 1991, p106) A articulação do movimento leva a reivindicação básica do Movimento de Luta pela Moradia ser a posse da terra pelo direito de cessão das áreas já ocupadas. Este


Movimento surgiu em 1983 com participação dos ex-invasores da fazenda Itupu. Este passo é expressão da reorientação da luta das questões isoladas para questões centrais, nas palavras de Gohn, ou questões estruturais para sermos mais precisos. Em 1984, o Movimento irá se articular definitivamente ao movimento operário, de moradores do Promorar e de cortiços. Suas reivindicações centrais eram: Fixação do favelado na terra; Financiamento de material para a construção de casas de alvenaria; Taxa mínima de água e luz, mas a demanda central do movimento era a posse da terra pelo Direito Real de Uso, que resvalava no uso social da terra e na possibilidade de desapropriação de terrenos por interesse social. O MUF defendia o direito à terra pelo trabalho realizado (aterro, construção, conquista de infraestrutura). Apesar de questionar a propriedade privada e posse da terra, o movimento não questionava de fato o capitalismo e sua organização social pois fazia a crítica mas não uma oposição consequente a esta forma de dominação, sempre se resvalando no Estado. Mesmo composto por representantes de favelas de toda São Paulo, com coordenadoria que contava com mais de 22 representantes, o MUF era fortemente vinculado ao PT e a Luiza Erundina, militante junto aos movimentos sociais, chegando a se desarticular quando ela assumiu cargo de

deputada estadual em 1986. Já apontamos este elemento de vinculação ao Estado como determinante no encaminhamento das lutas por moradia e, à medida que os partidos se legalizam e ampliam seu trabalho público com os movimentos, o enfraquecimento das lutas se reafirmará na mesma medida que se fortalecem os partidos no poder. Este movimento, mesmo com suas fraquezas condicionantes de suas práticas, dará base às coordenações municipais, regionais e nacionais dos movimentos de moradia. O Conselho Coordenador das Favelas de São Paulo surge em 1983, como resultado de ao menos 10 anos de lutas dos favelados e de processo anterior de definição de políticas concretizadas em propostas para os favelados a partir deste fórum. Gohn relata que a síntese do I Congresso de Moradores de Favelas (composto por 700 delegados), ocorrido em 1984, contém a base de suas propostas. Esta base foi construída anteriormente no projeto Novos Rumos, um plano de ação comunitária elaborado em 1983 por comissão composta por: “representantes de favelas de São Paulo; Comissão Especial de Melhoria de vida nas favelas, composta dos vereadores: Antonio Carlos Fernandes (PTB), Alberto Nobre e outros parlamentares; autoridades técnicas e estudiosos dos problemas das favelas, o Vice-Governador do Estado e 68 técnicos de diferentes órgão públicos.” 58


Percebe-se desta origem a forte ligação e mesmo condução dos movimentos pela institucionalidade, ao mesmo tempo em que se propõe a ser um conselho ancorado na base de trabalhadores que representa, tentando fazer o caminho inverso de se enraizar na base e não tenha sido formulado a partir desta base de favelados. Isto será determinante para que o Conselho se alinhe a políticas propostas pelo Estado e se mantenha pouco autônomo com relação a este. O Conselho, que cooperava com a prefeitura na gestão de Mário Covas (1983-1986), passa à oposição na gestão Jânio Quadros (1986-1989), que ignora todas as propostas dos favelados e aprova uma lei de desfavelização. Mesmo assim, e por sua baixa autonomia, em 1986 chega a defender políticas e projetos-piloto junto ao Secretário de Habitação. Ainda em 1986, atuando em 663 das 1700 favelas de São Paulo, o Conselho passa a denominar-se Corafasp. O Corafasp passa a participar de debates e reuniões. Encontros nacionais são realizados, apoiados pela Conam. Gohn destaca o Encontro de outubro de 1985 em Brasília e o Debate sobre a reformulação do SFH (Sistema Financeiro de Habitação) promovido pelo IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) e Ministério de Desenvolvimento Urbano. “Conforme já assinalamos em outro momento, as concepções básicas destes 59

grupos passam pela necessidade de lideranças fortes e expressivas para organizarem as bases, pela necessidade de elevar o nível de consciência destas bases. O agente externo desempenha um papel fundamental na organização do movimento popular, assim como a necessidade de se criar organismos centralizadores das ações. É importante destacar que o processo vivenciado pelos favelados, desembocando na criação de uma estrutura organizacional ampla, sem haver um processo disseminado de organização nas bases – nas favelas propriamente ditas – não lhes é peculiar. Ele ocorreu também em relação ao movimento das Associações de Moradores – dando origem à Conam - ...Trata-se de um grande avanço de uma ala da esquerda no país – composta principalmente por simpatizantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).” (GOHN, 1991, p106) Gohn relata como, a partir do momento em que se perde a unidade principal dos movimentos – a identidade de luta contra o PDS (Partido Democrático Social, partido de direita sucessor do ARENA, foi fundado em 1980), pela democracia – os movimentos passam a disputar entre si por posições nos órgãos, instituições e entre as bases. Ao


final de 1984, ocorre um racha no Conselho Coordenador, sendo fundado o Conselho Metropolitano de Favelas da Grande São Paulo. O racha deve-se à permanência na Câmara de setor que apoiava (e se apoiava) no vereador Antônio Carlos Fernandes, e saída de setor ligado ao PMDB, que se alia à Conam. Começa a se tornar explícita a questão de que a vinculação dos movimentos à institucionalidade torna sua linha de ação recuada – de ações diretas e espontâneas em defesa de seus direitos, passam a realizar reuniões, políticas negociadas com os órgãos públicos e o avanço organizativo dos movimentos serve para inseri-los de maneira organizada à institucionalidade e não a uma radicalização e maior consequência no enfrentamento ao Estado, mas maior subordinação a este à medida que suas lideranças, vinculadas a partidos da esquerda também disputam ascensão a cargos. Neste sentido, cabe observar o modo de organização deste Conselho Metropolitano, fundado pelo setor ligado ao vereador. Para cada favela, havia 3 representantes que deveriam expressar as demandas destas via petições escritas. Havia uma sala específica para atendimento às favelas onde havia registro de toda a mobilização das favelas – atas de assembleia, formação da diretoria, registro do estatuto de cada associação etc. Seu gabinete funcionava quase como uma agência de atendimento e nenhum modo de

pressão era admitido. “Teoricamente, todos os moradores de favelas eram seus sócios. Não havia filiação nem mensalidades, a exemplo das SABs. De 1983 a 1985 foram criados 300 centros comunitários de favelas.” (GOHN, 1991, p110) “Através da organização dos fichamentos e da política clientelista de distribuição de camisetas e calções nas favelas, o Conselho passou a ser, na gestão de Jânio, um dos grandes defensores de sua proposta “Favelado – Proprietário do Futuro”, pois, de imediato, a proposta do prefeito só garante a desfavelização e uma vaga promessa de casas construídas por empresários etc.” (GOHN, 1991, p111) Outro movimento de articulação dos favelados foi o Movimento de Defesa do Favelado (MDF), que trabalhava com os pressupostos inversos do Corafasp. Este movimento se organizou a partir de 70, a partir da resistência a despejos, reforçados pela política de Olavo Setúbal de 1977, que visava combater as favelas. Era um movimento que contava com apoio da Igreja católica e mantinha relativa autonomia em relação aos partidos. “A orientação básica do MDF era a de que o próprio favelado fizesse seu movimento.” Esta orientação organizativa, funcionava com um programa voltado para 60


a base, para formar e ampliar a base, mas também para garantir-lhes mais força de intervenção. “A organização dos favelados através do MDF, no final da década de 70, aliada à reorganização da sociedade civil e ao aparecimento de inúmeros outros movimentos populares, levou à reorientação do governo no sentido da proposta de urbanização das favelas. Esta foi a maior conquista do MDF. Urbanizar em vez de despejar. Reconhecer a experiência dos favelados e não apenas tentar eliminá-los do espaço geográfico.” (GOHN, 1991, p113) O MDF trabalhou com a constituição da autonomia do favelado, incentivando sua mobilização para reivindicar seus direitos sem intermediários. Chegaram até a bloquear a entrada de políticos nas favelas em 1980. A concepção do MDF sobre os direitos ia às consequências finais desta independência que se expressa não só na independência em relação à política parlamentar, mas na independência da política de classe do movimento. Não pautavam a propriedade privada da terra; diferente de outros movimentos seu fim último não era a propriedade, mas a posse coletiva da terra. A esse respeito Gohn relata um depoimento de Pe. Rubens Chasseraux acerca das políticas 61

do movimento. “Somos contra a posse exclusiva da terra, porque a terra é de quem precisa, de quem nela trabalha, de quem nela mora. Nós não podemos transformar o favelado, pretender defender o favelado numa mentalidade capitalista, individualista, que é a fonte de tudo isso. Devemos mudar essa mentalidade, senão compro um pedaço da terra, a mesma atitude que tem o latifundiário; e eu preciso quebrar isso daí. Isso não é fácil porque o favelado é vítima do sistema, da mesma mentalidade. É preciso reeducá-lo neste sentido. Para mim não tem sentido uma luta pela posse individual da terra.” ( Espaço e Debates, n.2, 1981, pp134-144) Estas são as organizações mais expressivas da luta dos favelados pela posse da terra, mas junto a estes movimentos organizados há também o movimento pela Construção por Auto-Ajuda. Gohn o qualifica como mais maduro e desenvolvido refletindo em sua maior independência da política partidária e no estabelecimento de uma assessoria técnica própria destes movimentos que ajuda a concretizar suas diretrizes. Cabe destacar, sobre esta diferenciação feita pela autora, que os movimentos se constroem e mobilizam uma mesma camada social que toma consciência e se organiza para efetivar


suas pautas e sua defesa, para além das lutas espontâneas travadas até então. Neste sentido, a organização destes movimentos se dá por maneiras muito similares nas assembleias de base, com coordenações bem estabelecidas e divisão do trabalho interna ao movimento. A principal diferença entre o movimento pela posse da terra e o movimento pela construção comunitária se dá, a uma visão ainda muito superficial, pela tática de atuação. O primeiro se pauta, na maioria dos casos, pela articulação ao poder público para viabilizar meios legais de garantir seus direitos; o segundo articula propostas e políticas internamente e pressiona o poder público para financiá-las de modo que a vinculação deste não lhe retira sua autonomia. Entendemos que é este fator de independência em relação ao poder do Estado que abre caminhos para o desenvolvimento de projetos e perspectivas avançados neste último movimento. O Movimento de Associações já oficializado em 1985 conta com ampla base de movimentos da zona sul e totaliza 12 movimentos da Grande São Paulo que serão reunidos e organizados, a partir dos encontros de moradia, por coordenações e secretarias. “O movimento das Associações Comunitárias é uma forma mais desenvolvida de luta popular, pois

incorpora vários movimentos e várias etapas do processo. Oficialmente surge em 1985 a partir da constituição de uma Coordenação Geral. A rigor ele iniciou-se na década de 70, nas várias lutas isoladas que foram, posteriormente, crescendo e articulando-se. Ele toma corpo, enquanto movimento, após as invasões coletivas de 1982/1983.” (GOHN, 1991, p. 122) As associações, estruturas básicas dos movimentos são criadas para solucionar o problema habitacional de um grupo de “sócios moradores que adquiriram o direito de morar na casa construída em mutirão”. Suas funções enumeradas eram, segundo Gohn: 1. construir moradias em alvenaria e outros materiais, através de mutirão, para seus associados; 2. comprar, em comum, materiais de construção e distribuí-los; 3. nas favelas, organizar a urbanização, saneamento, infraestrutura, planejamento urbanístico, divisão justa de lotes etc; 4. viabilizar serviços comunitários para seus associados; 5. adquirir e distribuir terrenos e imóveis; 6. assinar convênios com o poder público e outras instituições para adquirir financiamento e/ou prestar colaboração e auxílio a outras entidades que visem o bem da comunidade, assim como atuar como agente promotor em programas oficias. As associações eram compostas por três órgãos: a assembleia geral, o conselho diretivo e diretoria e os associados tinham 62


uma obrigação de ordem quantitativa de trabalho para poderem permanecer membros destas. Após etapa de consolidação, o movimento se descrevia da seguinte maneira: “Somos vários movimentos que lutam por moradia há vários anos, que lutam por condições mais humanas de moradia. Em 1981 iniciamos uma luta com propostas concretas de moradia porque favela não é a solução. Em 19-10-1982 entregamos à Prefeitura propostas para a solução para quem mora em favela e para quem paga aluguel. Desde essa época não paramos de lutar. De 1981 a 1983, os grupos que estavam juntos eram os núcleos da Vila Remo, Cidade Dutra e várias comissões de favelas das duas regiões. A partir de 11 e 12 de agosto de 1984 passamos a articular através da coordenação provisória dos movimentos de moradia tirada do Primeiro Encontro dos Movimentos de Moradia.”(“Jornal de InterAjuda”n.1, março de 1986)

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2.3 zona sul organizada - encontros do movimento e associações Neste período de meados de 80, a Zona Sul passa por momento de estruturação dos movimentos que parte do saldo organizativo dos processos de greve e mobilizações massivas de trabalhadores, ligados a fundo às associações de bairro, e dos movimentos de invasão programada de terras, ambos inaugurais de novas formas independentes de ação e organização popular. É significativo que em São Bernardo, onde se inicia a experiência dos mutirões, os primórdios da Cooperativa Habitacional de São Bernardo do Campo tenham sido nas comunidades eclesiais de base, no Comitê de Mulheres da Associação de Compras Comunitárias, que surgiu em 1978-79 junto às grandes greves do ABC. Este movimento foi pioneiro e motor de novas experiências na zona sul, pautadas por esta e pela experiência uruguaia. I Encontro O primeiro encontro de moradia contou com participantes do Grajaú, Vila Remo, Jardim Comercial, Parque Santo Antônio,

Jardim Santa Margarida, Recanto da Alegria, Jardim Macedônia e Associação de Construção Comunitária de São Bernardo. Reunidos em 1984, representantes destes movimentos da luta por moradia discutiram formas de articulação e apoio mútuos e definiram estratégias para solucionar o problema de moradia. Os movimentos pretendiam se unificar para mudar as políticas do BNH. O banco passaria a funcionar apenas como financiador de projetos, formulados e realizados pelos futuros moradores. Observando a inadequação da política nacional de habitação, propõem uma lista de medidas para viabilizar seus projetos: “1. as prestações fossem estabelecidas em 10% da renda familiar; 2. os reajustes ocorressem nos mesmos índices do aumento salarial; 3. o prazo do financiamento fosse predefinido para eliminar a figura do saldo devedor; 4. eliminação de restrições de financiamento aos trabalhadores desempregados e sem 64


condições de comprovação de renda. Esta reivindicação incide diretamente sobre a camada dos favelados; 5. linhas de financiamento direto a Cooperativas ou Associações de Moradores; 6. reconhecimento das Cooperativas de Moradores como habilitadas a promover a construção de moradias; 7. controle dos fundos do BNH pelos sindicatos dos trabalhadores, associações de mutuários e entidades de construção comunitária; 8. desvinculação do FGTS da estabilidade do emprego; 9. garantia de recursos ao BNH e subsídios às faixas de baixa renda; 10. alteração da política urbana, visando baratear o preço da terra urbana, combatendo-se a especulação imobiliária e a retenção de terras vazias.” (GOHN, 1991, p. 124) A relação entre políticas econômicas e para a habitação funcionam para o governo no sentido de garantir a circulação de capital e movimentar a economia, gerando lucros às construtoras. A proposta em desenvolvimento pelos trabalhadores condiciona a política habitacional e o uso do dinheiro de financiamento ao controle dos trabalhadores, excluindo esta etapa lucrativa da atividade e garantindo acesso à moradia às camadas mais 65

pobres, sem garantia de renda, e a qualidade do projeto que passa a atender diretamente às suas demandas. Há ainda um descompasso entre a proposta política do movimento e o estabelecimento de um poder dos trabalhadores que seja capaz de implementálo, mas pela via dos movimentos sociais e sindicais, estabelecem-se novas etapas de consolidação deste poder. II Encontro Se o primeiro encontro havia estabelecido diretrizes e uma coordenação provisória, o segundo vai criar esta Coordenação das Associações Comunitárias de Construção. A pauta foi mais determinada pela demanda concreta dos movimentos que já começavam a experimentar a via da construção por mutirão autogerido. Além da discussão dos problemas internos ao movimento, do próprio processo de mutirão, os estatutos da coordenação, a moradia, ajuda mútua e autogestão, discutem a relação do movimento com o Estado e as políticas habitacionais. Neste sentido, defendem que o BNH seja reformulado e passe a ser um instrumento operacional de repasse de dinheiro para os projetos das associações, deixando de definir a política


habitacional. “O documento da Coordenação ressalta ainda que “os movimentos e associações devem se relacionar com o Estado, visando obter recursos, mas mantendo sua autonomia e rejeitando a cooptação e privilégios individuais’. Destaca ainda que “os recursos obtidos junto ao Estado devem ser utilizados pela Associação, para o desenvolvimento de seus projetos, de acordo com os objetivos definidos pelo grupo nas suas instâncias democráticas de deliberação (comissões, diretoria, assembleia).” (GOHN, 1991, p. 131) Ainda assim, mesmo defendendo que os mutirões definam seu projeto e a aplicação do dinheiro financiado, defendem também que o “Ministério do Urbanismo e Meio Ambiente” trate da política habitacional. Ao mesmo tempo em que se determinam na conquista de autonomia para projeto e gestão da produção de moradia, suas propostas de política mais geral se resvalam no Estado para definição de políticas públicas. A superação da forma de controle estatal, o poder dos trabalhadores contraposto ao Estado, está ainda, neste momento, muitos passos além da capacidade organizativa

dos trabalhadores e, assim, suas propostas políticas que anteveem avanços não encontram caminho de efetivação. A independência material que defendiam é condicional para que os movimentos possam exercer oposição, mas é limitada, à medida que é posta no nível individual e de constituição do movimento mas não se refletem em suas políticas. Ao contrário, as políticas do movimento vinculam-no ao poder público pela dependência material de seu financiamento para concretizar suas propostas e também por apostar na efetivação destas através de estruturas institucionais. Isso, mesmo que estabelecido de maneira inconsciente, molda as propostas a conteúdos aceitáveis pelo Estado, condicionando sua forma aos moldes preexistentes em detrimento de avançar no caminho aberto pelas experiências dos mutirões. Podemos observar um exemplo desta situação que identificamos, da dependência criada pela vinculação às políticas estatais no início do funcionamento da coordenação, durante a gestão de Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo. A coordenação, mobilizada contra o decreto do prefeito do dia 2-4-1986, que abria licitação para empreiteiras construírem casas-embriões 66


na periferia – projeto que podia significar o fim dos mutirões - após algumas reuniões, decidiu fazer um debate na Câmara Municipal. Para o debate sobre os mutirões, haviam sido chamados vários políticos: “autoridades da Cohab, do BNH, Prefeitura, Sempla etc.”. Nenhum dos convidados compareceu e o debate não ocorreu. Na sequência de reuniões entre os movimentos da zona sul (exceto o vinculado ao PCdoB) e zona leste, decidiram fazer um ato em frente ao gabinete do prefeito. O ato se deu no dia 15 de maio e o prefeito recebeu uma comissão dos movimentos, garantiu a permanência dos mutirões pela suspensão do decreto antimutirão e promulgação de outro. O decreto n.22.215 de 15-5-1986 dizia: “Art. 1o – A Prefeitura, na sua atividade de cooperação com o plano de construção de moradias populares e econômicas, continuará adotando o sistema de mutirão, desde que os interessados apresentem engenheiro responsável pelo projeto e comprometam-se a observar as condições de higiene e segurança exigidas.” O Movimento de Moradia considerou o decreto, enquanto resultado do ato, uma grande vitória, ainda que integrantes 67

ponderassem sobre a grande abertura e indeterminação deste e necessidade de disputa de forças para sua efetivação. Mas frente a avaliação deste momento feita por Gohn, que reconhece a tentativa do Estado de representar o interesse comum ao mesmo tempo em que representa e tenta garantir o interesse privado de lucro das empreiteiras, preferimos identificar a luta de classes como motor da abertura da contradição na política da prefeitura, algo que se reforça na avaliação do professor de economia, Boaventura de Souza Santos7, da Universidade de Coimbra: “O impacto dessas pressões, que são sempre o resultado de lutas sociais, depende de muitos fatores e basicamente da correlação de forças entre as classes e grupos sociais em luta (…) é bem possível que a resposta estatal não consista no reforço das formas e categorias jurídicas clássicas (individualistas e atomizadoras), mas antes na promoção pelo próprio Estado da organização dos interesses populares e na repolitização controlada Boaventura de Souza Santos, O Estado, o direito e a questão urbana, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.9, junho de 1982, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, p. 27 7


dos conflitos e das lutas sociais daí decorrentes” (GOHN, 1991, p. 138) O evento, ainda que muito pontual, é demonstrativo de como o Estado pode fazer o movimento refém de suas políticas e de uma relação direta e muito controlada, perpetuando a lógica de disputa de forças com os movimentos, impondo também ao movimento um limite de rompimento das políticas e das negociações. Por outro lado, o movimento só pode romper com o Estado à medida que fortalecer um poder real de disputa com ele, o que não pode ocorrer simultaneamente com o processo de desenvolvimento conjunto das políticas habitacionais: ou o movimento trabalha as suas políticas e disputa com a política do Estado, ou se adapta aos limites impostos pelo Estado, que como já vimos trabalha com a política da classe dominante, por seus interesses privados e não pelos interesses universais da sociedade. Localmente, no âmbito de um projeto ou Associação, este tipo de interferência pode gerar apenas dificuldades de executar um projeto, mas de um ponto de vista mais geral, é um fator limitante dos horizontes políticos dos movimentos. Seriam muito diferentes os resultados deste processo de mobilização e

organização se o horizonte final não fosse de aprovação de políticas pelo poder do Estado mas de aprovação de suas políticas pela supressão do Estado. III Encontro O terceiro encontro se deu em meio à crise da Coordenação do Movimento, momento em que a assessoria técnica montada pelo Sindicato dos Arquitetos de São Paulo passou a participar também na organização dos movimentos. Neste encontro foi aprovado novo estatuto e eleita nova diretoria. Em 1988 houve orientação do governo federal de parar o repasse de recursos diretos às associações e movimentos, repassando verba apenas para empreiteiras e excluindo os movimentos do processo de produção da moradia. Em resposta, foi criada a UMM – União dos Movimentos de Moradia. Em agosto deste ano, foi feito o encontro dos Movimentos de Moradia. “A importância da assessoria técnica e do trabalho dos mutirões foi reafirmada como princípio básico. Entretanto a crise interna existente na coordenação não foi debelada. A fase II do projeto dos Adventistas rompeu com a assessoria da Unicamp, construindo apenas 42 casas 68


(...). Em 1989, o projeto dos mutirões do Adventista foi retomado na gestão do Partido dos Trabalhadores na Prefeitura Municipal.”(GOHN, 1991, p. 154) Deste ponto de vista, é fundamental ler com maior detalhe as propostas das Associações em sua formulação, os projetos executados e os encaminhamentos que levaram às conclusões do processo com a entrada de boa parte de seus militantes na gestão do PT na prefeitura de São Paulo com Erundina em 1989.

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3. experiências pioneiras dos mutirões autogeridos Origem Não podemos pensar sobre a proposta de mutirão autogerido como proposta pronta, inventada ou levada aos movimentos. Pelo contrário, ela advém da realidade das famílias dos moradores de favelas, invasores e de sem-teto, que viam na prática da autoconstrução e mutirão a forma de ajuda entre moradores que viabilizava seu acesso à moradia. Para contornar o problema da falta de moradia a primeira solução individual é a autoconstrução, com trabalho da família em questão; com a criação de laços de solidariedade entre famílias, abrem-se os processos de mutirão, ou ajuda mútua, em que famílias se ajudam para concretizar suas casas. Este processo de trabalho é incorporado pela organização da população na luta por moradia que, a princípio, pautava a resolução do impedimento imediato ao seu acesso à casa, a questão da terra e o financiamento de suas construções, sem estabelecer ainda políticas para a produção desta moradia. O processo de formulação de proposta dos movimentos foi feito em conjunto com as assessorias e outros profissionais que

acompanhavam os movimentos, como já relatado. Em depoimento sobre o processo de constituição do Laboratório de Habitação da FEBASP (Faculdade de Belas Artes), Nabil Bonduki relata o momento de aproximação dos professores e estudantes dos movimentos ainda em conformação e sem propostas fechadas para a questão da moradia: “O Sr. Olímpio era uma liderança e ele disse para mim “não, você precisa ir lá ajudar a gente, que nós estamos num movimento para construir casas e precisamos de arquitetos para ajudar” e eu disse “bom, mas nós estamos fazendo um laboratório que serve para isso”. Aí nós fomos na Vila Remo e eles estavam discutindo um projeto para construir em mutirão, em autoconstrução, na verdade, por que qual era a luta deles? Era a terra, eles reivindicavam a terra para autoconstruir, porque naquela época a crise de habitação era muito grande e não tinha mais terras e não dava para comprar lotes, não tinha mais lote disponível e eles não tinham condições de comprar. Então, eles queriam que o Estado desse 72


o lote para autoconstruir. Foi aí que nós chegamos e dissemos: ‘não, mas não é só autoconstruir, tem que ter um projeto de qualidade, nós temos que ter a assessoria técnica, reivindicar material de construção’. Então, o laboratório acabou atuando como uma assistência técnica, uma assessoria técnica para habitação num momento em que não tinha ainda assessoria técnica, que foram criadas lá para frente depois no governo da Erundina.” Os arquitetos do Sindicato de Arquitetos de São Paulo que participaram da experiência da Cooperativa montada por este sindicato e que estruturam o curso de arquitetura da Faculdade de Belas Artes e a estrutura dos laboratórios de extensão do curso, mas, particularmente os arquitetos que conformam o primeiro laboratório de habitação que se propõe a trabalhar com assessoria técnica de movimentos, o LabHab da FEBASP, trazem a experiência das Cooperativas Uruguaias: o laboratório participou de um encontro de cooperativas junto à FUCVAM – Federacion Uruguaya de Cooperativismo de Vivienda por Ayuda Mutua, e com o CCU – Centro Cooperativista Uruguayo em 1984 e 1985. Pompeia afirma sobre este intercâmbio: “Ainda, as conquistas dessas organizações, na direção de uma política 73

habitacional impulsionada pelo “BNV – Banco Nacional de la Vivienda”, deu referências muito concretas para a luta pela habitação popular de qualidade. A contribuição uruguaia estendeu-se até os projetos e tipologias habitacionais propostas pelo Laboratório.” (POMPEIA, 2006, p. 16) A Cooperativa Habitacional de São Bernardo do Campo, a primeira experiência feita com a produção autogerida, foi realizada com apoio da Igreja e com a assessoria técnica de um arquiteto uruguaio, que conhecia o projeto das Cooperativas Habitacionais Uruguaias. O processo de conformação da Associação se deu nos moldes das outras que surgiram na zona sul. A partir do Comitê de Mulheres da Associação de Compras Comunitárias, surgida na época das greves de 1978/79, iniciou-se a luta por habitação pela atuação na Favela Parque São Bernardo. “A ideia era obter moradias novas, não apenas retocar a miséria da favela.” A frase parece muito sintética, mas com ela Gohn expressa o norte político do movimento, de enfrentamento das normas vigentes, da naturalização do que era a casa para população pobre. Um dos caminhos abertos pela Cooperativa de São Bernardo e pelo Movimento das Associações de Construção Comunitária foi o de produzir moradias para os


trabalhadores, considerando-os clientes e não pobres favorecidos por projetos do governo. As casas produzidas eram boas, permitindo o teste de novas tecnologias, com projetos detalhados e discutidos com os moradores e feitos com controle da população de modo a retomar a qualidade sem alterar o custo das habitações. Organização “O Movimento dos Mutirões foi uma resposta do movimentos popular à situação estrutural criada pelo desenvolvimento das contradições do capitalismo brasileiro e, ao mesmo tempo, uma criação nova de articulação dos interesses populares no enfrentamento junto aos poderes públicos, intermediários diretos dos conflitos na questão da habitação popular.” (GOHN, 1991, p. 132) Gohn por várias vezes se refere ao movimento das Associações como o movimento mais avançado deste período. Para alguns pesquisadores que estudaram os movimentos sociais urbanos, inclusive a pesquisadora, o movimento de moradia era o mais organizado e politicamente estruturado deste período ao menos, o que permite concluir que o movimento das Associações foi o movimento social mais desenvolvido. Isto se dá pelo programa e estratégia desenvolvidos

pelo movimento numa estrutura que se consolidou a ponto de gerar as experiências pioneiras da zona sul e bases para novas propostas de políticas públicas. O programa dos mutirões não tinha como propósito somente a redução de custos, mas trazia como acúmulo político a proposta da autogestão, da organização e produção da moradia seguindo as deliberações do movimento em todas as etapas, pautadas pela prática da democracia direta construída até então nos movimentos de moradia e de trabalhadores. Esta proposta para a produção da habitação social se contrapunha ao modelo então vigente do BNH (que se tornou o segundo maior banco do país em termos de recursos), este sim de viés econômico – pensado para reduzir os custos da habitação, mas não no sentido de ampliar o acesso às camadas mais pobres da população e sim de movimentar a economia e favorecer a iniciativa privada das grandes incorporadoras. Somente com a falência do SFH e com a organização dos movimentos, articulados e estruturados para reivindicar suas pautas, o Estado passa a incorporar a proposta dos mutirões limitada ao uso da mão de obra para baratear os custos de produção. No entanto, os movimentos já estavam fortalecidos e foram a fundo em sua reivindicação pela autogestão, junto às assessorias, e conquistaram suas reivindicações. 74


“Não se trata, portanto, simplesmente de um mutirão, trabalho gratuito promovido pelo Estado para a construção de casas, nem de autoconstrução, onde cada morador “se vira” individualmente para levantar um abrigo. É o mutirão autogerido, organização autônoma da sociedade civil que, com o apoio e financiamento do poder público, equaciona a produção de moradias com a participação dos moradores e introdução de avanços tecnológicos e sociais que só o trabalho coletivo pode proporcionar. O resultado, como veremos, tem sido excepcional. Alta produtividade, excelente qualidade de construção, baixo custo, diversidade de soluções arquitetônicas e de tipologias, inclusive viabilizando a verticalização, e até mesmo rapidez – quando não se escasseiam os recursos públicos – caracterizam os mutirões autogeridos. Ao lado do grande avanço na organização e participação popular que o programa possibilita, estas características permitem colocar a autogestão como alternativa de grande alcance para equacionar o problema habitacional em nível nacional, além de se constituir numa opção para repensar as políticas públicas numa perspectiva nova, sem resposta à estatização e à privatização.” (BONDUKI, 2000, p.37) 75

Proposta embrionária Havia entre os mutirantes, associados na luta por moradia, e nos técnicos que assessoravam os movimentos expectativas que extrapolavam as perspectivas políticas imediatas. Cada conquista no movimento pela autogestão indicava a abertura para novos avanços – quer fosse pela abertura ou fraqueza demonstrada pelo Estado, quer fosse pelo avanço de consciência da população na proposição das políticas. “Percebe-se, claramente, no discurso introdutório da apresentação, uma certa empolgação, dada a certeza de que a experiência adquirida na Belas Artes, o exemplo das Cooperativas Habitacionais Uruguaias, o apoio do movimento popular organizado e a fabulosa técnica de painéis cerâmicos mudariam, radicalmente, os caminhos da moradia no país e, quem sabe, no mundo. Ao se contrapor à autoconstrução, cara, individualizada e sem suporte técnico, a nova proposta de construção por “ajuda mútua” deveria reunir as forças construtivas organizando-as num só conjunto...” (POMPEIA, 2006. p. 47) Mesmo em cada processo de mutirão predominava o otimismo motivado pelo encaminhamento de soluções para a falta de moradia – de maneira mais efetiva que até


então feita pelo Estado, pela congruência entre as vontades e projeções da população e o projeto concretizado e pelo domínio total do processo pelo movimento organizado permitindo não só o controle da produção mas a apropriação do processo, podendo estabelecer balanços e parâmetros para sua reprodução nas diferentes áreas. “quando você ia para um lugar de mutirão, na obra, as pessoas falavam de felicidade, alegria, ver os amigos, ao mesmo tempo em que estavam carregando saco de cimento, quebrando pedra, assentando tijolo. (…) O mutirão é uma organização muito complicada, sempre. A autogestão não implicaria apenas no mutirão. A gente tem, no Uruguai, exemplos de comunidades que autogeriram empreendimentos sem terem levantado um tijolo sequer, participaram do projeto, fizeram a licitação com a empreiteira que iam construir os prédios fiscalizados por eles, pagos por eles. A autogestão e o mutirão são coisas diferentes. A autogestão é uma postura administrativa que pode ser aplicada a diversas organizações de produção, o mutirão é uma organização, ou jeito de organizar, a produção, mas pode haver diversas e sempre a partir da autogestão.” O processo de mutirões se colocava

como abertura de um processo ainda maior de redefinição da participação política da população. Além de agentes da produção da casa própria, passam a agentes de possível nova política habitacional, agentes de uma possível saída para garantir melhores condições de vida para a classe trabalhadora – criadores da gestão popular. Esta era a perspectiva menos imediatista em que apostavam principalmente as assessorias e partidos que apoiavam estes movimentos. Os encaminhamentos, como sabemos, não concretizaram tais perspectivas, que se perderam nas concessões às novas políticas públicas.. “Nesse momento o mutirão coletivo popular é uma forma embrionária de gestão popular em nível de um fator individual: a moradia. Sem dúvida o passo seguinte será o entorno da casa – os equipamentos coletivos – que viabilizam o cotidiano (lavanderias, cooperativas de compras, abastecimento de água, coleta de lixo, etc.), assim como a reprodução atual e futura da mão de obra (transportes, escolas, creches, postos de saúde etc.)”(GOHN, 1991, p.139)

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3.1 AMORA recanto da alegria

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Origem A favela que deu lugar ao Recanto da Alegria tem sua ocupação iniciada em 1972. Negrelos a descreve, denotando a importante diferença quanto ao tipo de assentamento das favelas deste período, que se refletirá num modo de luta e demandas específicas – a princípio, a reivindicação por água e luz que dá início ao movimento por urbanização da favela: “Era uma favela com 37 famílias formada espontaneamente, em área pública de loteamento, segundo o esquema típico da formação de favelas, sem lotes nem sistema viário pré-definidos, com a ocupação das casas dando lugar aos caminhos que não seguem uma lógica preestabelecida e, dessa forma, assumem um traçado original em relação ao traçado dos bairros tradicionais. O terreno apresenta 4.500 m2 em declive ao fundo de vale com um córrego, com acesso pela parte superior por uma rua oficial, não asfaltada, rodeada por um loteamento de chácara dos dois lados, que já havia sido subdividido em lotes menores, contrariando a Lei de Proteção dos Mananciais que incide na área. O início da favela é da década de 70, momento em que predominava esse tipo de assentamento “marginal” ao contrário

do início da década de 80, quando se iniciam as ocupações organizadas de terrenos urbanos.” (NEGRELOS, p.178) A origem do Recanto da Alegria e, posteriormente, da Amora – Associação de Moradores do Recanto da Alegria – se dá a partir de 1982, quando as 37 famílias moradoras da favela, ainda não batizada, se inserem na luta pela urbanização de favelas a partir da participação de um morador e líder do Recanto no movimento de bairro. Conforme relata Negrelos, “A articulação desse líder com o movimento geral, com a luta pela questão da moradia na comunidade das paróquias de Vila Remo e Cidade Dutra, que reunia cerca de 500 famílias de sem teto e 29 favelas nos “Núcleos para a Conquista de Moradias de Vila Remo e Cidade Dutra”, originou a organização pela urbanização do Recanto.“ Em maior detalhamento, em sua tese de mestrado, Bonduki relata esta inserção: “As primeiras lutas dos moradores do Recanto da Alegria estão associadas à conjuntura de grande mobilização das favelas de São Paulo durante os anos de 1977/80, quando os favelados fortaleceram sua organização sobretudo na reivindicação da água e luz e na luta pelo reconhecimento do seu direito à moradia e à posse da terra. O Recanto 78


da Alegria esteve presente nessa luta, sobretudo através da participação de Olímpio, um dos mais antigos moradores - que é um importante líder do movimento de moradia e favela da Zona Sul. O fato de um morador e líder local estar em contato com as lutas dos favelados da zona sul influenciou muito o processo de trabalho político do Recanto da Alegria. (…) Estas lutas foram fundamentais para criar na favela um sentimento de confiança de sua própria força e da necessidade de união, organização e mobilização dos moradores para a conquista de melhorias para o local.” (BONDUKI, 1986, p.95) Em entrevista colhida por nós em 2011 Olímpio da Silva Matos nos relatou sua inserção no movimento a partir do movimento operário e, depois da articulação ao movimento da Vila Remo e Cidade Dutra, ao movimento por moradia, no qual se manteve a vida toda, até sua morte em 2012. “Eu morava lá, já tinha um pessoal lá na época e eu não tinha casa, tinha três crianças pequenas em casa na época. Eu estava morando pagando aluguel encostadinho lá [ao recanto] e o cara falou “você é um cara trabalhador, faz um barraco aqui para você”. E eu fui e fui lutar, participei da pastoral do operário, de 79

sindicato, de tudo eu participei. Um dia chegou um padre para conversar comigo e disse “participa das reuniões na Cidade Dutra sobre favela. E você que tem consciência política da situação, vai lá e cresce” Eu entrei no meio. Começou dentro da ditadura e era muito difícil, quando foi para 78 a gente começou a fazer manifestação. E a gente foi batalhando, batalhando e quando chegou aos anos 80, final dos 70, começou-se a fazer ligação de luz nas favelas. Conforme a gente foi batalhando teve água, luz, direito a moradia [reconhecido]. Até que nós conseguimos, com muita pressão, que liberassem a urbanização do Recanto da Alegria e mais três favelas. Mas onde a gente estava batalhando, acabou dando certo.” Articulação “Em decorrência da ligação que Olímpio tinha com a comunidade de Vila Remo – grande núcleo de organização popular ligado à Igreja progressista na Zona Sul – a favela Recanto da Alegria começou formalmente a participar da articulação que se formou durante 1981/2 em torno da questão da moradia, nucleado pelas paróquias da Vila Remo e Cidade Dutra (...)” (BONDUKI, 1986, p. 96)


A articulação destas famílias se inicia, então, por iniciativa de uma liderança local e de sua inserção no cenário político da Zona Sul que se caracterizava pelo movimento sindical forte do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, tão forte quanto o do ABC, e um movimento de bairro bem estruturado apoiado e construído junto à igreja com as comunidades eclesiais de base. As lutas se constituíram em torno de transporte, creches, contra o aumento do custo de vida e pela urbanização das favelas. Nesta região atuavam assistentes sociais, organizações não governamentais e isto foi fundamental para a articulação destes movimentos com assistências profissionais. Essa relação é fundamental para a resolução da falta de moradia num nível superior ao já falido projeto do BNH, na medida em que debatia o projeto da casa, mas pela relação de vizinhança e permanência local, também permitia resgatar o projeto dos espaços coletivos e a inserção da moradia em seu entorno. O projeto de urbanização do Recanto foi um projeto-piloto dentro da formulação inicial do programa habitacional defendido por esta articulação de 500 famílias e 29 favelas da Zona Sul, dos “Núcleos para a conquista de moradias”, dentro da proposta de regularização da posse da terra para os favelados.

“(...) a comissão coordenadora da articulação propôs escolher duas favelas para realizar, como experiências – piloto, projetos de urbanização – contando com a participação dos moradores que deveriam ser encaminhados ao poder público, em conjunto com as diretrizes gerais do programa. Objetivava-se concentrar os esforços para viabilizar a execução, a curto prazo, de, ao menos um deles, de modo a criar um efeito-demonstração capaz de estimular a mobilização e organização de outras favelas – que seriam sensibilizadas pela viabilidade da proposta – e de se constituir. A favela Recanto da Alegria acabou sedo escolhida como um destes projetos-piloto, pois dispunha das características necessárias: contava com alguma organização interna e um líder experiente, tinha situação física e dimensões compatíveis para um projeto de urbanização experimental no campo do processo de gestão e produção de sua execução não requeria grande investimento.” (BONDUKI, 1986, p. 97) Também a partir desta articulação aos técnicos e pelo caráter pioneiro e experimental do processo, o movimento passa das questões locais à projeção municipal, com a incorporação de práticas construídas pelos 80


movimentos à política institucional e em nível nacional dentro da construção da proposta da Reforma Urbana. “Desse trabalho junto aos movimentos saíram propostas de política urbana e de uma reforma urbana que, juntamente com a atuação do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo, as propostas do PT e da intensa atuação de entidades como a ANSUR - Articulação Nacional do Solo Urbano (hoje Associação), se pode elaborar a emenda popular da política urbana na Constituição, defendê-la no Congresso Constituinte de 19861988 e vê-la aplicá-la ao artigo 182 da Constituição Federal de 1988. Muitos dos movimentos de habitação que participaram ativamente da elaboração, execução e controle da política municipal de habitação da gestão 1989- 1992 trabalharam com a equipe do Lab-Hab, cujos membros, muitos deles, tiveram a oportunidade de pôr em prática essa política na prefeitura” (NEGRELOS, 1998,p.178) Composição social Bonduki descreve a favela como um povoado, estrutura social que, segundo ele, foi valiosa para a organização do mutirão. Quase todas as casas abriam-se diretamente para a 81

rua e os moradores dividiam-se em três grupos de amizades, parentesco ou conterraneidade. Parte das casas era servida por água encanada e todas tinham luz elétrica, fruto das primeiras lutas. Quase metade das casas era feita em pau-a-pique e apenas 20% em bloco. Negrelos descreve a composição social das famílias em sua tese da seguinte forma: “A população do Recanto da Alegria estava constituída por famílias de trabalhadores predominantemente da indústria, com renda aproximada de 2 a 3 salários mínimos, existindo, no entanto, pessoas sem emprego e incapacitadas, formando um grupo muito difícil de trabalhar pela falta total de possibilidades de disponibilizar algum recurso econômico ao projeto de sua casa.” Demandas O conjunto de moradores do Recanto tinha como demanda inicial a garantia e reconhecimento da posse da terra e garantia de água e luz pelo poder público, demandas que se antecipam à da moradia, mas visam à garantia de um morar minimamente estruturado. A demanda por moradia se formaliza com a indicação deste movimento pelo movimento de Vila Remo e Cidade Dutra para fazer a experiência junto ao LabHab da FEBASP.


A proposta a ser encaminhada ao poder público parte da impossibilidade das famílias pagarem o financiamento e se elegerem pelos critérios de escolha do BNH (que eram critérios econômicos e não sociais), e já aponta para uma demanda por política habitacional que não estava contemplada pelo projeto de caráter financeiro do BNH. “os padrões impostos pelo BNH e CEF a partir de 1964 consolidaram uma visão distorcida do problema da habitação que beneficiava a construção civil e se disseminou por todo o país, acumulando uma série de erros e equívocos: gestão centralizada e autoritária; não participação popular e do usuário na concepção dos projetos e programas; não utilização de recursos a fundo perdido; critérios de financiamento bancários e não sociais; adoção da casa própria como única forma de acesso à moradia; desprezo pelo projeto urbanístico e arquitetônico, com clara preferência por soluções uniformizadas e padronizadas; opção por grandes conjuntos localizados na periferia das cidades, estimulando a especulação imobiliária e absoluto distanciamento entre a produção habitacional pública e as práticas 8

informais, que garantem a produção da cidade real, onde a maior parte da população vive.”8 Em contraposição à “política habitacional” já falida do BNH, surgem novas propostas e novas demandas dos movimentos organizados. A demanda por definir o projeto da moradia, por controlar o processo de elaboração do projeto e da construção, por uso de materiais dignos, por uma casa que seja passível de ampliação e que atenda às demandas de cada família para além de ter um tamanho base parametrizado. Estas demandas são concretizadas pela proposta de uma construção autogerida com financiamento público, viabilizada com o mutirão das famílias para a construção. “A partir da tomada de consciência de que o problema da habitação em São Paulo não poderia mais ser enfrentado de forma individual, os movimentos começaram a utilizar uma forma tradicional de ajuda mútua do mundo rural adaptando-a para o trabalho de construção de moradias na cidade: o mutirão. O mutirão foi politizado e entendido pelos movimentos de moradia em todo o país como a única forma, no atual estágio do sistema sociopolítico e econômico, de

BONDUKI, Nabil G., Publicação Especial da SEHAB/ PMSP para a Revista PROJETO, s/n, São Paulo, 1991,

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conseguir moradia para as famílias de baixa renda. Este é um antecedente importante dos programas da política habitacional de 1989-1992 pois desde havia 15 anos os movimentos vinham trabalhando com esse expediente não somente como forma de construção senão como, e mais importante que isso, em nível político, como forma de aglutinar as pessoas em torno de um projeto coletivo de associativismo rumo ao cooperativismo de moradia dentro de uma concepção de transformação social.” (NEGRELOS, 1998,p.102) Organização O primeiro nível de organização destas famílias vem dos movimentos de bairros, como apontado acima. Internamente ao Recanto, a organização começa a se dar com as assembleias de discussão do projeto e a primeira construção a ser feita é do centro comunitário que vira espaço comum para sediar tais reuniões. Os moradores se organizam com apoio das assessorias técnicas mas sem deixar de posicionar-se frente a estas também. “O esquema de trabalho desenvolvido com os moradores, de acordo, com as diretrizes gerais do Movimento, comportava uma fase de informação e esclarecimento sobre o que se discutiria, 83

debates e tomada de decisão coletiva. Através desta sistemática, foi-se, aos poucos e ao longo dos anos e com muita dificuldade, superando uma apatia e a tradicional noção de que “quem manda são as autoridades e os doutores”. Chegou assim, a um contexto de participação e de interferência de muitos moradores na decisão sobre seu espaço de moradia e entorno urbano, colocando em prática uma parte dos objetivos mais gerais da articulação de Vila Remo e Cidade Dutra, de garantir a autonomia frente ao Estado e o crescimento da organização a nível local dos moradores.” (BONDUKI, 1986, p. 98) Junto das assessorias, que acompanham reuniões com o governo e, com a argumentação técnica, ajudam a pressionar pelo projeto, o movimento consegue se organizar com liberdade maior de gestão do projeto. O papel do poder público era o de financiar e fiscalizar o processo e o movimento tinha liberdade no planejamento da obra, na compra de materiais e determinação da prioridade de gastos. Esta relação cria um vínculo tão forte que Reginaldo Ronconi, que era estudante na época e participou como assessor no projeto, chega a dizer em entrevista que “trabalhar no Recanto e participar do Movimento de Moradia da Zona Sul era praticamente a


mesma coisa e não dava para fazer uma sem fazer a outra. Isso levou o laboratório a uma série de conexões, a gente participou do primeiro encontro de moradia na zona sul, praticamente organizou o encontro.” A partir do início do mutirão, há um novo nível de organização destas famílias, com a elaboração conjunta de regras para o mutirão, do cronograma de trabalho e divisão do trabalho total entre as famílias. Projeto e Construção A primeira etapa para elaboração do projeto foi o reconhecimento da favela com os moradores. A partir deste levantamento seria elaborado o Plano de Urbanização demandado pelos moradores com a função de reivindicar o financiamento junto ao poder público mas também como garantia de um planejamento da favela que reservasse áreas para lazer, uso comunitário e para as ruas, áreas comuns, frente ao adensamento que já se iniciava. Deste debate surgiu a proposta de impedir a entrada de novas famílias, o que resultou na divisão do terreno em lotes iguais de 85m2 por família com a opção de destinar cerca de mil metros quadrados para uso comunitário. Esta decisão reforçava o padrão tradicional de ocupação do solo da cidade, com a rígida demarcação dos lotes, mas também abria a perspectiva dos espaços coletivos, condizente com a vida coletiva já existente na favela.

O projeto feito com os moradores conservava o pré-existente e as relações que criaram aquele espaço, “(...) fruto da espontaneidade da ocupação do local e da não definição rígida entre o espaço privado e o coletivo. Os becos, os cantos e recantos, o estreitamento e alargamento das vielas configuradas pelas construções e a irregularidade dos alinhamentos criavam uma morfologia muito rica, que não devia desaparecer(...)” (BONDUKI, 1986, p.106) O projeto foi entregue à prefeitura em 1982 e até 1983 no “Período de Espera” tentou-se efetivar o plano com recursos próprios, o que, além das dificuldades técnicas, passou pela questão da construção e investimento sem garantias da posse. Após a entrada da nova prefeitura, cada órgão vinculado ao problema da moradia foi encarregado de implantar alguns dos doze programas habitacionais definidos no Plano Municipal de Habitação. Por ausência de uma política formulada, a FABES, que pretendia realizar urbanização de favelas com recursos da FUNAPS (Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação SubNormal), aceita o projeto do Recanto da Alegria como projeto-piloto da região de Santo Amaro e pode-se iniciar o processo de construção, mesmo sem a garantia da regularização da posse da terra. “Por determinação da FABES, a obtenção 84


do financiamento foi condicionada à elaboração de projeto-padrão completo da moradia a ser construída no Recanto da Alegria. Este devia prever, dentro do orçamento de 100 UPCs, todos os materiais necessários à confecção de uma casa com um mínimo de acabamento. Chegou-se, assim, a um projeto de embrião, de área construída de 25m2 elaborado pelo Laboratório de Habitação a partir de discussões com os moradores e aprovado por estes. (…) Na lógica geral estabeleicda pela FABES, cada morador construiria a casa-padrão independente dos demais, exatamente com os materiais pré-estabelecidos, (…) No Recanto da Alegria, entretanto, toda a sistemática foi modificada, tanto no que se refere à obediência ao projetopadrão quanto em relação ao processo de construção da casa, em função de uma série de propostas apresentadas pelos moradores e equipe de assessoria técnica do Laboratório de Habitação, que foram aceitas pela FABES- Santo Amaro” (BONDUKI, 1986, p. 124-125) Esta modificação no processo construtivo advinha da reivindicação de liberdade para construir não um embrião a ser inaugurado segundo o projeto-padrão (elaborado apenas para aprovação da obra), mas uma base para 85

a casa que pudesse ser concluída com o tempo e mais recursos do que o processo do mutirão tinha disponível. O próprio arquiteto relata que o consenso na aprovação do projeto-padrão advinha da noção de controle que os moradores tinham sobre o processo, interpretando o projeto como formalidade para aprovação nos órgãos públicos, passível de ser revisado na construção. É nesta etapa de rediscussão do projeto que iniciou-se o uso da maquete móvel para orientar as discussões. Chegou-se a soluções diferenciadas para cada família. Esta nova definição de projetos-padrão só ocorreu conforme as casas se tornaram objetos concretos, formas construídas e não mais apenas a discussão abstrata dos projetos. O financiamento passou a ser utilizado livremente pela Associação, sem os limites de materiais do projeto original, mas apenas com o limite de gastos com a obra. “A partir da definição dos primeiros projetos – representando um conjunto de soluções que expressavam uma boa parte das necessidades habitacionais diversificadas existentes na favela – a tendência foi os demais moradores compararem as soluções existentes em termos de desejo ou não de ampliação, possibilidade de mobilização de recursos adicionais ao financiamento, tamanho do embrião, aspecto formal, existência ou


não da varanda etc. - elementos básicos na definição dos projetos – e optarem por alguma delas como padrão para sua moradia.” (BONDUKI, 1986, p.127) Uma especificidade que causou certas dificuldades para o mutirão era a sua realização por famílias que já habitavam em seus próprios terrenos, não dependendo efetivamente deste processo, uma vez obtido o financiamento, para realizar suas casas. Mas, ao longo do processo, o mutirão se mostrou vantajoso pela coordenação do trabalho de maneira mais eficiente, pela economia com acordos no depósito de construção, o treinamento de equipes para tarefas da obra e mesmo a contratação de dois membros como encarregados da obra. Foram formadas comissões de obras que organizavam e fiscalizavam o trabalho.

mesmos. “Observando de perto este processo e acompanhando as planilhas de custo, logo os moradores e a equipe técnica que os assessorava foram percebendo que muita gente estava ganhando dinheiro naquele negócio sem trabalhar. Nestas circunstâncias, os moradores mais atuantes e presentes foram tomando consciência do que significava a existência de empreiteira neste tipo de obra: mera intermediação que suga lucro em cima da exploração do trabalho. Percebiam que a baixa remuneração que recebiam pelas empreitadas realizadas eram determinadas pela existência de vários agentes que se interpunham entre os recursos públicos e a mão de obre que realmente realizava o trabalho.” (BONDUKI, 1986, p.138)

“É interessante notar que estes moradores foram se tornando os novos líderes Neste processo, os moradores emergentes da favela, reduzindo a perceberam que, sob sua gerência e controle, predominância que até então gozava o não só podiam definir o projeto e processo líder principal.” (BONDUKI, 1986, p.136) de obra, mas poderiam remunerar melhor os trabalhadores garantindo o bom uso dos Com a experiência da implementação de recursos, a qualidade da obra e os salários. infra-estrutura por meio de uma empreiteira Este processo de reflexão é fundamental e e processo de licitação regular da prefeitura, só foi possível pela experiência concreta dos ficou claro aos moradores o superfaturamento mutirantes. das obras e os ganhos dos empresários pelo É neste processo de autogestão e trabalho realizado, no fim das contas, por eles reflexão sobre seu trabalho e organização

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que decidem criar a AMORA – Associação de Moradores do Recanto da Alegria. Como desdobramento do processo do mutirão, além da melhoria das condições habitacionais e qualificação dos espaços públicos com a quadra e infraestrutura, há um fortalecimento da organização local dos moradores com novas lideranças e uma nova estrutura de organização, que é a Associação.

Quadra do Recanto da Alegria - Acervo pessoal: Nabil Bonduki

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3.1 AMAI vila arco íris

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Origem O projeto de construção de moradias se iniciou conjuntamente no Grajaú, a partir de 1981, quando o Padre Luiz, da paróquia do Grajaú, incentiva os moradores de favelas a se organizarem para discutir a questão da moradia. Destas reuniões e do contato do padre com o LabHab da FEBASP foi feita uma primeira experiência com o Recanto da Alegria e aberto o caminho para mais experimentações. Ancorada nas assembleias das comunidades e na construção em regime de ajuda mútua, foi feita a proposta da Vila Arco Íris, seguindo o processo aberto pelo Recanto. O projeto não pode ser desenvolvido pela equipe da FEBASP pois sua estrutura de trabalho foi destruída pela direção da faculdade após a greve de professores e o LabHab foi extinto em 1985. Pompeia relata, no entanto, que o processo se iniciou apenas com a ocupação de área de propriedade do município em 1983, seguida do acampamento em frente à Sehab, que forçou a prefeitura à compra de um terreno definitivo para implantação do projeto. Depois da conquista do terreno, a comunidade conseguiu que a COHAB comprasse uma área de 162mil m2 destinada à moradia das famílias da região em janeiro de 1984. O convênio entre COHAB e FEBASP para desenvolvimento de projeto urbanístico e implantação das habitações foi, depois do 89

fechamento da FEBASP, transferido para a Unicamp. Articulação Pompeia relata que em dezembro de 1984 foi firmado outro convênio entre a Secretaria Executiva de Habitação do Estado de São Paulo que designava a CDH para ação conjunta com a FABES e FUNAPS para implantar o “projeto habitacional de Grajaú” em caráter experimental. Ainda em blocos de concreto e telhado em amianto foram feitas quatro casas, que abrigaram a creche e administração da AMAI. A AMAI era entidade participante da CMM, Coordenação dos Movimentos de Moradia, e com a articulação desta coordenação ao Laboratório de Habitação da Unicamp, coordenado por Joan Villáv- e articulação deste laboratório ao LabHab de FEBASP e seus projetos ainda inacabados foi possível o desenvolvimento do projeto de moradia a partir de 1986. O projeto partiu de pesquisa já realizada pelo arquiteto no LabHab da FEBASP sobre a produção de casas modulares a partir de pré-moldados em cerâmica. Demandas A demanda por moradia não estava isolada de toda a perspectiva de maior controle e qualidade nos projetos, reduzir os custos de


produção sem reduzir o tamanho e a qualidade técnica das construções. O processo de disputa com o governo por um processo de construção no sistema de ajuda mútua autogerido, passa pela demanda da moradia mas abre perspectivas para além. Pompeia relata que “O mutirão da AMAI começou com ideais socialistas e, em alguns momentos, até anarquistas, por influência dos professores do Laboratório de Habitação, da igreja e de intelectuais que apoiavam o movimento.” (POMPEIA, 2006, p.116) Já contando com a experiência acumulada desde as Cooperativas Uruguaias, no ProjetoPiloto de trabalho com as casas modulares do LabHab da Unicamp está uma concepção de uma solução para o problema de moradia que permitiria: “1. sua adoção por uma mão de obra não especializada...; Havia o claro desejo de formar uma mão de obra capaz de produzir, em usinas de componentes, peças pré-fabricadas em larga escala. 2. obter, nessas condições um produto final melhor; Com a construção e o controle das próprias associações de moradores, a qualidade da obra seria muito melhor do que a produzida pelas empreiteiras, a exemplo das Cooperativas Habitacionais do Uruguai.

3. eliminar as perdas de material, frequentemente observadas pela imperícia da mão de obra face aos procedimentos adotados, reduzindo significativamente os custos finais; Ao contrário das obras públicas, a fiscalização e o interesse das associações no uso e economia de materiais, reduziria substancialmente os desperdícios. 4. limitar, ao máximo possível, o esforço físico requerido na construção por processos convencionais; O sistema de peças industrializadas reduziria os esforços tradicionais da construção civil, tanto na confecção dos componentes (com equipamentos próprios), como na montagem das construções (com equipamentos para erguer e posicionar cada componente). 5. introduzir um modo de produção que organize a mão de obra e o canteiro, de modo compatível com o trabalho coletivo em escala.” (POMPEIA, 2006. p. 47) Organização A organização do movimento, como já relatamos, se deu desde 1981 com a formação primeiro do Movimento do Grajaú, que se torna a Associação de Moradores da Vila Arco Íris. O movimento se articula para efetivar a pressão à COHAB e conseguir o terreno; após a compra do terreno foi 90


necessário garantir a integridade de cerca de 150.000 m2 do terreno que teriam que ficar vazios por se tratar de área de manancial – tarefa que o movimento cumpriu por mais de 5 anos. Para a construção, além do sistema de ajuda mútua, com horas de trabalho por família, utilizaram o “Fundo de Ajuda Mútua” que consistia em doação de horas de trabalho de famílias para cobrir o trabalho dos impossibilitados por idade ou saúde. “Dos primeiros contatos, em 1982, à inauguração das casas, em 1990, a Associação passou por todas as etapas da luta pela moradia da década de 1980. Conseguiu a terra, o financiamento, a administração da obra e dos recursos, e a construção das moradias em regime de mutirão. Ainda hoje, mantém viva a estrutura da Associação dando sequência às obras do bairro como a Creche, o Centro da Juventude, salas para cursos e Centro de Atividades Comunitárias.” (POMPEIA, 2006, p. 88) O movimento decidiu encerrar o mutirão e entregar as casas sem acabamento em 1990. O desgaste do longo processo de lutas e construção pesou para a decisão. Muitas famílias, no entanto, não tinham pedreiros e nem podiam contratar profissionais, além de que o processo de trabalho sem a divisão 91

do trabalho dos mutirões dificulta a sua viabilização no cotidiano individual. Assim, parte das habitações permanecem até hoje sem acabamento. Projeto O projeto original do LabHab da FEBASP foi mantido e a própria terraplanagem já havia sido feita. O projeto urbanístico incluía espaços livres com perspectivas de construir espaços comunitários como o campo de futebol, centro de Juventude, escola infantil e centro comunitário. Estes espaços livres criados, além de espaços de convivência fundamentais na fundação de um bairro, eram também importantes no trabalho de adequação do bairro à legislação da área de mananciais – Pompeia coloca que “as praças – contornadas pelas casas – permitem o tratamento localizado dos esgotos”. Os lotes foram posicionados de maneira a exigir menor movimentação de terra. A implantação a 45o adaptava-os às curvas de nível da rua e, junto às áreas livres comuns, ajudavam na drenagem das águas da chuva. Porém, o posicionamento dos lotes e declividade dos terrenos dificultava a conjugação de coberturas das casas, fator limitante de projeto. Também em decorrência da declividade, além do desenho da casa, havia de se resolver as questões de insolação para implantação e da drenagem e


sustentação dos muros de contenção. As casas foram adaptadas ao sistema construtivo de pré-fabricados cerâmicos do LabHab da Unicamp. “O primeiro protótipo, conhecido como a “casinha da Unicamp”, foi desenvolvido pelo LabHab Unicamp para confirmar a eficácia do sistema construtivo. Até então, havia apenas os ensaios dos quatro painéis testados na FEBASP. O desenho dessa casinha, com os mais variados tipos de uso – comuns em uma casa de boa qualidade arquitetônica – contemplava o maior número possível de componentes: painéis de parede, laje e telha. Os componentes poderiam assumir diferentes funções. Por exemplo: os tijolos furados sendo usados como elementos vazados, os painéis de parede servindo de pilar e os painéis de laje fazendo o papel de banco. Desenvolveu-se ali todo um repertório suficiente para a construção dos mais variados tipos de casa. O segundo protótipo, o “sobradinho”, como era chamado na Unicamp, foi fruto de uma adaptação do projeto desenvolvido na FEBASP para a comunidade do Grajaú. Com esse protótipo, pôde-se confirmar a eficiência dos componentes numa construção em dois pavimentos e, ainda, explorou-se o uso dos painéis de laje para cobertura e em balanços dos volumes.”

(POMPEIA, 2006, p. Os dois projetos, já executados em teste pelo laboratório, foram rejeitados pelos moradores por discordarem da disposição dos ambientes. O projeto adaptado da “Casinha da Unicamp” foi recusado pela passagem externa dos quartos ao banheiro e o “Sobradinho” também não foi aprovado pelos moradores. “Em poucas reuniões chegou-se a um consenso sobre os tipos de casas: foram projetadas e executadas três tipos (casa de esquina, casa no sentido leste-oeste e casa no sentido norte-sul) com seis formas de implantação e oito possibilidades de agrupamento em blocos. A tipologia permitia uma certa variação que evitava a monotonia dos espaços. Com exceção das casas de esquina – que possuíam recuo lateral obrigatório ao longo de toda a casa – as demais eram geminadas integralmente na parte da frente e possuíam pátios internos que permitiam diferentes tipos de insolação.” (POMPEIA, 2006, p. 119) Este consenso e o projeto foram modificados ao longo da construção, quando os moradores perceberam a diferença concreta entre as casas construídas geminadas de todos os lados, em bloco, e as casas de esquina, que permitiam acesso 92


por um dos lados, bem como a construção de edículas. Houve um processo em que os técnicos argumentaram sobre a piora de projeto, os problemas de insolação, infiltração de água, encarecimento de obras de infraestrutura, dificuldades de aprovação na prefeitura e, assim possível paralisação nas obras. Mesmo assim, a assembleia apoiou a modificação. Havia um embate que ia além da técnica e desenho das casas, pois para os moradores era mais valoroso ter a possibilidade de abrigar parentes ou mesmo alugar a edícula dos fundos do que ter o projeto mais bem formulado pelos técnicos.

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4. perspectivas Vimos que, com o processo de consolidação dos movimentos por moradia, ao final da década de 80, se fortalecem suas formas de organização e atuação. De sua forte organização local com as associações de bairro surgem as estruturas de mobilização da base da população, através de assembleias e reuniões locais e de sua integração às lutas e ações do movimento geral. Este movimento de base alimenta de volta as articulações e coordenações regionais com novas lideranças e com a massificação das ações, a ponto de se formarem as coordenações nacionais dos movimentos. Este processo de mobilização foi, portanto, materialmente muito potente. As bases programáticas construídas por estes, desde os debates nas assembleias de moradores até os encontros por moradia, são as bases dos movimentos que até hoje atuam nesta luta. Mas, pudemos aferir que o movimento não chegou ao seu ápice. No momento de maior ascenso em que havia forte ligação dos movimentos por moradia aos movimentos sindicais, de radicalização de suas ações

com as ocupações de terrenos e mesmo de órgãos públicos e das primeiras experiências e testes de suas propostas para políticas habitacionais, começa a se desestabilizar a base com que trabalhavam. Retomando a colocação de Gohn, ocorre uma inversão no funcionamento dos movimentos, que passam a se apoiar na “sociedade política”. Este processo é delicado, pois não se dá por rupturas ou alterações de princípios programáticos, mas por alterações na sua prática, que, antes pautada na reivindicação ao Estado, se torna uma prática de apoio e construção conjunta ao Estado. Conforme se dá a aproximação entre os movimentos e o aparelho do Estado, com as eleições e nomeação de militantes dos movimentos para cargos públicos, o Estado passa a ter informações e um melhor planejamento para negociar e mesmo se apropriar dos movimentos, enquanto os movimentos ficam reféns do Estado, paralisados nesta nova relação de confiança. Mas seria incorreto afirmar que este processo é independente do programa 96


dos movimentos, de forma que, é preciso encontrar em seu programa o conteúdo que aponta para esta prática associativa ao Estado que, avaliamos, só não se deu no momento anterior por falta de mecanismos e interesse do Estado para tal (até a abertura democrática, ao Estado bastava reprimir os movimentos sem abrir espaço a qualquer diálogo). Está no programa e nas perspectivas construídas (ou não) pelos movimentos a chave para entender os encaminhamentos de seus programas até a concepção de novas políticas habitacionais implementadas pelos governos seguintes em nível municipal mas também nacional. Isto não significa, de todo modo, atribuir ao movimento de moradia um caráter reacionário, mas encontrar os elementos em seu programa que, por sua formulação abrem espaço para uma política que é contrária aos seus objetivos. Especialmente nestas décadas de sua reorganização, o movimento tem que determinar sua política pela experiência e, muitas vezes, a partir de uma análise empirista da realidade pode-se chegar a concepções totalmente contraditórias ao movimento. Gohn abre, ao final de seu relato sobre os movimentos de moradia, esta discussão sobre 97

os fundamentos e perspectivas de ação dos movimentos. Uma das questões que coloca trata do caráter progressista dos movimentos ou de seu papel na manutenção e reposição da ordem social. “A segunda questão surge a partir das posições teóricas de Touraine. Será que este autor não teria razão ao afirmar que os movimentos sociais nada mais são que repositores da ordem? Afinal, o que o Movimento quer obter são casas para resolver o problema de abrigo das camadas populares. Para isto eles se organizam, brigam, lutam, enfrentam as burocracias, os políticos etc. E acabam obtendo o principal que é o financiamento para a construção. Continuando o raciocínio na mesma ordem simplista, o Movimento estaria ajudando a reproduzir o modelo segregador, construindo casinhas na periferia, sem infraestrutura urbana, atendendo a reclamos de parcelas organizadas, que são minoritárias no conjunto dos necessitados. Não estaria inaugurando uma nova ordem, mas, ao contrário, reforçando a já existente, e co-participando da construção em seus desvios, em suma, repondo a ordem.” (GOHN, 1991, p. 143)


A autora discorda e refuta tal perspectiva logo na sequência de seu texto. Achamos, de nossa parte, que a avaliação de que o movimento é um repositor da ordem e aspira apenas à conquista da casa é precipitada e externa, não correspondendo ao movimento de moradia, pois, ao contrário do que estamos propondo em nossa pesquisa, esta afirmação não avalia seu programa de luta e linha política, que guia as diferentes formas de organização e ação dos movimentos, mas apenas os efeitos mais práticos e mais imediatos da luta. É certo, por outro lado, que se a perspectiva do movimento vai além do caráter pragmático de construir casas, essa é a perspectiva de boa parte da população que se mobiliza e reúne em torno das associações de moradores e núcleos mais locais de cada região e bairro. Por isso são fundamentais os espaços de debate político nas assembleias, espaços de formação desde a discussão do projeto das casas e do planejamento dos bairros até a discussão das táticas de ação para garantir esses projetos – são formadores no sentido de aprofundar a discussão do devir da luta por moradia e da organização da classe trabalhadora.

A necessidade de uma casa, de garantir a sobrevivência é movida por uma força conservadora, da conservação das condições de vida. Nem por isso é uma força que engendra politicas conservadoras. Por outro lado, uma prática recorrente nos momento atual, de disputa dos movimentos e entre os movimentos para “arrancar” dos governos o que ,na verdade já está posto como possibilidade, dentro das leis e da ordem social, corresponde mais a esta fórmula do autor em que os movimentos não atuam pela defesa da maioria, o que passaria pela quebra da ordem que a subjuga a estas condições, mas passa por interesses particulares a uma minoria (mesmo que esta minoria seja um grande movimento popular, em detrimento de outros) e reposição da ordem. Porém, em sua origem, os movimentos ainda não estão rendidos ao Estado, ainda que haja apontamentos neste sentido, como colocamos em sua análise. Pelo contrário, ainda que tenham brechas e permitam os desvios que observamos, as políticas dos movimentos apontam perspectivas de superação desta relação de submissão ao Estado.

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4. 1 perspectivas institucionalizadas Já apontamos a cooptação que o Estado faz dos movimentos ao final da década de 80, colocando suas lideranças dentro do aparelho estatal, a partir da eleição de militantes dos partidos que apoiavam a luta por moradia. Mas, não só das forças militantes o Estado se apropriou, mas também das propostas dos movimentos. Se está em seu programa a chave para entendermos esta institucionalização dos movimentos, é porque havia neste os elementos que puderam ser aplicados a favor da manutenção da ordem, contra as mudanças que se buscava efetivar. Os Planos de Habitação que são implementados a partir da experiência dos movimentos são justamente o elemento de apropriação e subversão da luta por moradia. Para compreender esta questão, basta vermos, através das experiências posteriores à eleição de Erundina à prefeitura de São Paulo em 1989 e após a elaboração do Estatuto da Cidade e mesmo da criação do Ministério da Cidade no governo Lula em 2003, que os movimentos passaram a colaborar com os governos, abrandando 99

sua cobrança e contraposição às propostas insuficientes que este propõe, ao passo que o déficit habitacional aumenta a cada ano e as condições de vida dos trabalhadores só se deterioram. Se os planos servem como promessas, os planos que se baseiam na experiência e nas vitórias parciais dos movimentos para se legitimarem frente ao povo, servem de ilusão e engodo para refrear a luta dos trabalhadores. “Disso também estamos acostumados em São Paulo. Os planos são a solução. Planos, projetos, levantamentos, dados estatísticos, “elementos para um grande diagnóstico, pois a cidade é um organismo vivo”. Planos que iludam o povo e deixem a impressão que alguma coisa se está fazendo.” (ARTIGAS, 1981, p. 66) Como diz Artigas nesta passagem, os planos são, muitas vezes, a garantia de que algo está sendo feito, mesmo que nada seja efetivado. E o mesmo setor de urbanistas


que critica a leitura de Engels do problema da habitação como análise que leva ao imobilismo é o setor que vai organizar uma sequência de planos que, se utilizam dos conteúdos construídos pelos movimentos de mutirões, mas o coloca a serviço do Estado, desmobilizando as lutas dos movimentos, colocando-os em alinhamento com processos que duram anos sem apontar nenhuma novidade e nenhuma saída para o problema da habitação a nível global. Assim, este setor faz suas propostas e se movimenta para girar em falso, ao se eximir de discutir o papel do Estado na conservação do poder da burguesia e de entender a vinculação entre o aparelho e a classe que o dirige. É neste sentido que uma parcela dos profissionais que participaram do processo de mutirões autogeridos, como Bonduki, defende a incorporação deste processo à prefeitura do PT de Luiza Erundina. A Funaps comunitária seria a proposta de solução ao problema da cidade e o fato de terem sido construídas mais de 10 mil unidades no início do programa seria uma expressão de sucesso deste projeto, segundo o arquiteto. Temos de discordar, apontando para o valor insignificante destes números em vista do déficit habitacional de São Paulo, mas mais do que isso, lembrando que mesmo

Boulos reconhece que a falta de habitação cresce em escala muito mais acelerada do que a produção de casas financiadas pelo Estado. Tomando sua causa e função estrutural na sociedade capitalista, podemos reafirmar que não há superação do déficit de habitação dentro da sociedade em seus moldes atuais. Assim, podemos concluir que a institucionalização dos movimentos e das propostas dos movimentos não pode apontar à superação do problema, justamente por retirar o potencial de embate e de superação desta forma de sociedade que se construía nos movimentos. A animação e forma como estes arquitetos se colocam na relação com o Estado passa pela ingenuidade de tentar achar resoluções mais imediatas e chegar às conclusões do processo aberto pelos movimentos antes que o processo pudesse levar a esta conclusão. Eulália Negrelos, em entrevista realizada em 2012, este “momento de vislumbre” com a política dos movimetnos sendo incorporada às prefeituras do PT pelo Brasil. “(...) a partir do Estado, se pudesse fazer coisas, mesmo sabendo que o Estado tem uma contradição intrínseca que é estar sempre vinculado ao capital. Mas, foi um momento de vislumbre maravilhoso que 100


a gente conseguia fazer coisas, construir muito, atuar muito, mesmo sabendo as dificuldades, lutando contra a máquina, conseguimos mudar um pouco a visão de que no Estado só se fazia coisa ruim - podia ter coisas interessantes a partir do Estado. Eu penso que foi uma experiência... para mim essa experiência foi uma experiência simbólica, tanto que se multiplicou pelo Brasil afora. Se multiplicou, então ao mesmo tempo tinha Diadema, tinha Santo André, tinha São Bernardo, Porto Alegre, Santos, todas eram coetâneas, vamos dizer. No período de 89-92 nós tivemos prefeituras importantíssimas do PT governando, então, era uma conquista do PT, era uma conquista dos técnicos, uma conquista dos movimentos.” Mas, mesmo nesta empolgação e recorte da experiência pelo viés positivo pelo vislumbre de novas resoluções ao problema da habitação, a contradição da ação proposta não pode ser escondida. Reginaldo Ronconi coloca uma crítica mais dura a este encaminhamento em entrevista realizada em 2011 para discutir os processos de mutirão e assessorias técnicas. 101

“ela retira poder do Estado e nós estamos falando da Construção Civil, que é uma área que movimenta muito dinheiro, muito dinheiro cinza que você não tem a menor ideia de para onde vai. Vai para campanha, vai para não sei o que. Então, falar ‘vou abrir mão de parte do meu poder sobre isso’ é difícil. Talvez seja até um sentimento meio utópico, no fundo, eu acho que seja essa a reconquista a ser feita. Acho que é mais difícil agora, porque à medida que eu vou absorvendo o seu esforço de construção do novo eu vou te envelhecendo envelhecendo no pior sentido da palavra, de enfraquecer - e eu acho que foi isso que aconteceu. Acho que foi isso que foi acontecendo com o movimento, na medida em que a instituição foi absorvendo esse esforço - e absorveu de diversos jeitos: pegou liderança, contratou liderança para trabalhar no governo, para defender os interesses do outro lado, enfim, acho que teve os processos de cooptação, teve os processos de alteração de objetivos, de redefinição de conceitos. Quando se falava em participação, não precisava adjetivar muito, nos mutirões em que a gente trabalhou, participação


era participar: participar da eleição da diretoria, participar da prestação de contas, participar da compra de materiais, participar do projeto, era participar, não tinha nenhum adjetivo para essa participação. E depois começou a ser adjetivado, na CDHU, participação era preencher um questionário, e foi enfraquecendo essa força do que era essa nossa bandeira de luta. Apesar dos avanços a gente tem esses desgastes e tem uma coisa que me incomoda muito, porque ainda sendo um desgaste, há setores do Movimento Popular que louvam isso como vitória, então o estrago é maior ainda. É uma derrota e a gente deveria entender que é um momento de rearticulação, mas, enfim, acho não está sendo.” Além deste aspecto da submissão ao Estado, já superado em nossa exposição, há uma questão de fundo que é do próprio programa e da lógica de financiamento de programas habitacionais pelo Estado. Bolaffi revelou, em sua análise sobre o BNH a forte vinculação dos programas de habitação aos programas econômicos dos governos e é fácil identificar essa vinculação até hoje, mesmo pela forma como os programas

são apresentados, como o projeto Minha Casa Minha Vida, que está contido no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Estão apontados aí dois problemas que já levantamos, mas que vale retomar, pois são decisivos para a compreensão da ineficiência destes programas, por mais que possam ser bem sucedidos. Um destes aspectos é que o financiamento, vinculado aos programas de crescimento econômico, tem de servir ao setor da construção civil; o outro é que o financiamento não pode resolver a questão do ponto de vista do trabalhador, posto que qualquer diminuição dos seus custos de vida rebate num rebaixamento de salários. Há dois trechos do texto de Benoit, que critica este projeto da Reforma Urbana, com os quais podemos sintetizar estas discussões e finalizar nosso posicionamento. Sobre a fundamentação destes projetos de moradia no financiamento e na força motriz do programa econômico: “É neste aspecto que se revela como o projeto moradia se assemelha aos programas habitacionais de Vargas e dos militares. Não há, como veremos a seguir, nenhuma originalidade no Projeto Moradia. O programa de Vargas se vinculava aos 102


fundos dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), já os governos da Ditadura Militar criaram um banco, o Banco Nacional de Habitação (BNH), baseado nos fundos de garantia por tempo de serviço (FGTS). (...) De fato, por um lado o urbanismo Petista se baseia na forma como os militares tentaram resolver a questão, ou seja, baseia-se na concessão de crédito e do financiamento através do mesmo FGTS da ditadura. Por outro lado, usa tal programa como peça midiática aos moldes de Getúlio Vargas (...)” E sobre a resolução do problema do ponto de vista do trabalhador, através do financiamento e mesmo dos mutirões: “Sobre as formas de mutualidade operária (cooperativas de construtores, mutirões etc.) Engels escreve que “eis aí, certamente, coisas muito boas e bonitas” mas que “são absolutamente incapazes de oferecer plena luz às trevas” em que se encontra a questão. De modo que o último recurso para se tentar resolver a questão no interior do modo de produção capitalista é através da ajuda do Estado. Esta ajuda nada mais significa que 103

“crédito gratuito ou a juros”; exatamente o que vimos ser tentado no Brasil desde 1930. Mas logo Engels comenta que “seja esse crédito gratuito ou a juros, seja usurário ou do tipo casa do penhor, que diferença pode haver para ele [o operário]?” Pois, a cada vez que o operário obtivesse algum tipo de “vantagem e, portanto, se reduzissem os gastos da produção da força de trabalho, não haveria igualmente de descer o preço da força de trabalho?” Explica, em seguida, que há muito interesse para setores da burguesia ou da pequena-burguesia em defender os subsídios em nome da salvação do operariado. Como se viu no Brasil, todas as formas de financiamento par a habitação “popular” acabaram se revertendo em linha de crédito para faixas de renda superiores. De forma que os financiamentos “não interessam essencialmente senão ao burguês e, sobretudo, ao pequeno burguês” Não vemos, com base nestas análises, saídas institucionais para o problema da moradia. Isso não quer dizer que a luta dos movimentos por moradia seja inútil, à medida que suas perspectivas não estão (ou não estavam) encerradas no Estado.


4. 2 perspectivas dos movimentos As perspectivas dos movimentos por moradia, num primeiro momento, são as mais simples: obtenção de casas e garantia das condições de vida da população. A luta por estas pequenas garantias de sobrevivência é que levou à construção de políticas mais amplas, na medida em que o Estado mostrava a impossibilidade de garantir-lhes estas condições, seja com a repressão da Ditadura, que destruía até as suas organizações, seja com a repressão da democracia, que combatia suas ações mais radicais. A partir da luta, a perspectiva dos movimentos se ampliou não no sentido de construir planos de habitação (essas políticas são consequência de suas experiências), mas no sentido de incluir como parte da sua luta a luta contra o Estado - tanto pela experiência do governo ditatorial (por este ser o responsável pela política econômica de arrocho e facilitação das demissões e pela repressão aos trabalhadores), quanto pela experiência de ter o Estado, mesmo depois, como opositor aos movimentos pelos direitos dos trabalhadores. A luta contra o Estado não era ideológica, sendo bastante determinada pela necessidade

de avanço dos movimentos; se dava na ocupação de órgãos públicos, na disputa por terrenos para o movimento, para reverter decisões e aprovar o financiamento de construções. Essa luta já existia em potencial quando cada trabalhador resistia à expulsão da cidade e construía sua casa nas áreas periféricas da cidade e, com a organização desta resistência individual, se consolidou na ação coordenada das Associações e movimentos de bairro pela garantia de seu poder de decisão. Cada experiência dos movimentos de moradia, cada avanço de sua organização e construção de suas propostas é a negação do Estado e afirmação de seu próprio poder de decisão. O limite para isto está no não rompimento efetivo com o Estado, na manutenção das práticas de negociação e construção conjunta, o que impede sua efetiva superação. A colocação de Gohn, que compara os movimentos de ocupação de terrenos e órgãos como paralisações da produção das fábricas mas não ainda como sua ocupação efetiva, sintetiza esta situação e expressa sua imaturidade. Ainda em sua imaturidade, o movimento 104


avançou com as primeiras construções com a autogestão do processo. Esta proposta da autogestão se contrapõe diretamente ao controle estatal e, combinada ao processo construtivo do mutirão, ao lucro obtido na construção civil, ou seja, a um setor da burguesia que é bastante influente no Estado brasileiro. Em termos políticos, este foi o ápice de organização e da construção política dos movimentos porque o processo posterior de discussão e elaboração de projetos legais para a constituição apontam para uma crença e mesmo submissão ao Estado que retrocedem às conquistas de autonomia e defesa de seus interesses - abrindo mão da autonomia do Estado, os movimentos abrem mão da independência de classe e da conquista efetiva de seus direitos. Esta não era a única consequência possível para o processo de mobilização e luta que foi aberto, mas como dissemos, estava contido e tem origens no programa dos movimentos. O fato de nunca ter havido um rompimento efetivo com o Estado e as pressões dos movimentos se submeterem a negociar reivindicações, e não propriamente se aterem à disputa de projetos e forças para sua implementação, deixavam em aberto qual seria a relação destes com o governo. A sua contradição se expressava como contrariedade, abrindo a possibilidade deste rompimento não ocorrer e não haver espaço 105

efetivo para a participação, ou propriamente o poder popular. Em termos de projeto, o movimento também chega a um ponto alto da escalada com as experiências pioneiras de mutirão. Isso não significa que se chegou aos melhores projetos e soluções técnicas, mas foi momento de maior participação da população na definição de suas casas e, mais que isso, de sua cidade (no caso, o bairro). Mesmo com a limitação de materiais e recursos, as casas produzidas tinham melhor qualidade do que as casas produzidas até hoje por empreiteiras, seu projeto respeitava as especificidades da vida dos moradores – como vemos na quantidade de projetos individuais feitos no Recanto (32 projetos para 37 famílias) e na alteração de projeto feita na AMAI a partir da necessidade da edícula nas casas. Dois bairros organizados em Associações com a participação efetiva de todos os moradores através de fóruns de democracia direta, não só na consulta, mas na decisão e depois na implementação das políticas locais se formaram deste processo. O processo de discussão e de projeto em conjunto com os moradores organizados apontava, para além da garantia das vontades individuais, a garantia da vontade coletiva, ainda que de um pequeno coletivo. O espaço destinado às atividades comuns no Recanto da Alegria e o projeto da associação, creche e equipamentos públicos na Vila Arco Íris


foram possíveis porque havia uma assembleia discutindo o espaço de todos os moradores, em que todos tinham o poder de decisão. O espaço construído refletia então, mais do que a ausência de recursos permitia, mais do que as vontades individuais podem definir, a quadra do Recanto reflete (e permanece inalterada até hoje) aquela comunidade e organização da população, aponta para a construção política que estava sendo feita do poder popular, a poesia que poderia ter sido.

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4. 3 apontamentos Não só nesta experiência de movimentos sociais e nem só com os movimentos por moradia se abriram novas perspectivas para os trabalhadores. Os momentos de crise do capitalismo forçam um acirramento da luta de classes e nestes períodos de embate as posições se polarizam. É nestes momentos de polarização e radicalização das lutas, como foi a passagem de 1970 para 1980 no Brasil que a experiência de luta auxilia no avanço da sua conscientização e na escalada da luta da classe trabalhadora a novos patamares, possibilitando reais transformações. O processo de organização dos movimentos sociais junto aos movimentos sindicais de trabalhadores foi parte desta escalada, que não chegou ao topo. A responsabilidade recai sobre seu programa, mas principalmente sobre seu alinhamento ao governo e às políticas do Estado. Assim, mesmo com experiências pioneiras e a inauguração de práticas que fortaleciam a política autônoma dos movimentos, como a autogestão, a independência destes movimentos foi rasgada com os projetos de inserção e adequação de suas propostas para se tornarem políticas públicas. 107

O Estado não é espaço de conciliação de interesses de classe, mas só pode servir a uma classe dominante onde há contradição de interesses e, no caso da propriedade privada (do acesso e posse da casa), há uma clara contradição entre o interesse da classe trabalhadora em garantir suas condições de vida e os interesses da burguesia em manter seu lucro com rebaixamento de salários (sem cobrir os gastos todos com a moradia) e a renda da terra, realizando a distribuição do capital. Assim, inserir a política da classe e sua luta nos órgãos e políticas do Estado é colocá-las a serviço da burguesia. É um erro que se comprova conforme vemos que o encaminhamento dos movimentos de moradia é cada vez mais submisso às políticas estatais, menos combativo e menos ramificado nos bairros, em organismos de organização popular de base. São estes aspectos de independência dos movimentos de 70 e 80 que possibilitaram o caminho percorrido por eles. São estes aspectos que precisam ser resgatados.




_ entrevistas Olímpio da Silva Matos -entrevista realizada em janeiro de 2012 A _ Como você participava, qual a sua ligação ao recanto da alegria e ao pessoal de lá? O _ Eu morava lá, já tinha um pessoal lá na época e eu não tinha casa, tinha três crianças pequenas em casa na época. Eu estava morando pagando aluguel encostadinho lá [ao recanto] e o cara falou “você é um cara trabalhador, faz um barraco aqui para você”. E eu fui e fui lutar, participei da pastoral do operário, de sindicato, de tudo eu participei. Um dia chegou um padre para conversar comigo e disse “participa das reuniões na cidade dutra sobre favela. e você que tem consciência política da situação, vai lá e cresce.” Eu entrei no meio. Começou dentro da ditadura e era muito difícil, quando foi para 78 a gente começou a fazer manifestação. E a gente foi batalhando, batalhando e quando chegou aos anos 80, final dos 70, começou-se a fazer ligação de luz nas favelas. Conforme a gente foi batalhando teve, água,

luz, direito a moradia [reconhecido]. Até que nós conseguimos, com muita pressão, que liberassem a urbanização do Recanto da Alegria e mais três favelas. Mas onde a gente estava batalhando, acabou dando certo. A _ E como você ficou sabendo do laboratório? Por que o laboratório que foi ajudar à realizar a urbanização? O _ Existia uma articulação, de uma forma geral na cidade, da qual eu participava. A igreja católica, o setor progressista, participava muito; e o bispo na época era Evaristo. Todo mundo participava, e ia fazendo as ligações e uma hora acertou, um conhece o outro que conhece o outro. ‘Como é que ia fazer?’, fomos atrás ‘Quem podia ajudar a gente? ‘. Surgiu o Nabil e outras pessoas, mas quem coordenou tecnicamente o grupo foi o Nabil no caso do Recanto da Alegria. A _ E por que vocês tiveram que ir atrás do laboratório ao invés de procurar o governo? O _ A gente procurou o governo, mas o governo, na ditadura não ia fazer nada. A gente fazia pressão no governo, mas não tinha brecha. A gente queria um plano nosso 108


para apresentar para o governo, para o governo liberar recursos para nós fazermos. O governo não ia fazer esta assistência para nós brigarmos com ele. A _ Você tinham alguma expectativa com o laboratório? O _ Não, a gente não conhecia esses laboratórios. A gente precisava de uma assistência técnica. A gente tinha os contatos e quando conhece um, conhece o outro e a gente era muito entrosado e tinha muita gente que participava, tinha engenheiro que participava do movimento, arquiteto, advogado, assistente social, freira, padre, bispo. Ficava fácil a comunicação e o pessoal começou. Não tinha dinheiro para pagar a assistência técnica e apareceu o laboratório da Belas Artes e foram ajudar. A _ Como foi o processo? Qual foi a participação do pessoal que morava lá? Você acha que a integração foi boa? O _ Já existia um trabalho interno e a gente fazia com o povo reuniões para ver o que ia fazer, como ia entrar a água, como ia entrar a luz. A gente já fazia esse trabalho. A _ A população do Recanto já era organizada? O _ Já. Eu saia já levava eles fora, para participar de reuniões fora. Eles vinham à SABESP, ELETROPAULO, juntavam com 109

outros movimentos, inclusive da região do Campo Limpo. A _ Quando foi para organizar o mutirão, como vocês fizeram? O _ O pessoal falou ‘precisa se organizar’. A primeira coisa foi ir à prefeitura para puxar a quantidade de terras que tinha, fez o cálculo de como fazia e começou. O Nabil coordenava mas tinha vários arquitetos, alunos de último ano de arquitetura que fizeram os cálculos das coisas e assim começou. O trabalho começou assim, formou-se os grupos. Não era muito grande mas foi muito bom. Não tinha palpite de órgãos públicos, quem decidia tudo éramos nós. A _ Vocês já tinham uma organização e um coletivo fortes? O _ E todo mundo participou, as mulheres, crianças. A _ Isso era mais localizado no Recanto? Você disse que havia articulação com o Campo Limpo, mas houve com a cidade como um todo? O _ Era, só que a organização local era nossa e as pessoas iam e apoiavam. A _ Até hoje, isso foi enfraquecendo um pouco? A organização da população pela cidade? O _ Em certo sentido, como favela, como habitação, não está nem perto do objetivo


da gente. A Luisa Erundina, quando entrou [na prefeitura], começou a botar ordem nas coisas, e você não pode pôr ordem. Depois o outro entrou, o Covas, e falou que era o ‘rei do mutirão’. Gabinete não manda em mutirão. Mutirão dá para fazer na hora que quiser, mas aquele grupo decide o que quer, aquele grupo que decide a forma de se organizar, não fica cumprindo ordens. No dia em que fui levantar minha casa, botar a laje de 60kg, eu não peguei numa pá, num caroço de areia para fazer nada, os vizinhos de fora vinham todos ajudar, enchia de gente. Tinha que coordenar aquelas coisas, porque nós tínhamos um grupo que fazia a comida, este nós não perdoávamos e o povo de fora gostava. A gente fazia o bingo, para quem não tinha dinheiro para ajudar a comprar as coisas. A gente fazia bingo até de pipoca. Isso que dava dinheiro, aí pagava o almoço. Tinha um grupo que fazia o almoço no sábado e um outro que fazia no domingo. A disputa era quem fazia a comida mais gostosa. Tinha uns caldeirões grandes da Vila Remo que deram para nós e nós fazíamos. O povo se juntava, tinha os vizinhos de perto e vinham ajudar no mutirão. Foi feito ta,bé, quando começou a construção, um convênio com o SENAI e o SENAI pagou, indicou um instrutor, um técnico, pedreiro e dava curso. O pessoal

participou, pegou certificado do SENAI. A _ Isso foi só no Recanto ou em outros lugares? O _ Começou lá e depois foi feito em outros lugares também. A _ Você participou de outros projetos? O _ Participei. A gente começou a trabalhar mais para os lados do Campo Limpo, na zona de Capela do Socorro, em Interlagos é uma zona de mananciais por causa das duas represas. Então para se conseguir terra que não fosse em zona de mananciais para fazer o projeto, você tinha que sair e na região do Campo Limpo é que tinha terra para isso. Nós chegamos até ao Embu das Artes. A _ Nas regiões em que você trabalhou depois do Recanto e até hoje, se consegue fazer este mesmo esquema do mutirão? O _ Não porque depois que este povo entrou, o PSDB, PMDB, pegou o dinheiro e seguiu dando ordem não tem mais graça. A _ Não tem nenhum grupo independente que ajude hoje, nenhuma ONG? Hoje são só vocês? O _ Não, nós que fizemos. Antes tinha uma facilidade, nós não criamos uma associação, tinha normas e cada família tinha uma pasta aconselhou com uma empresa grande, comprou todo o material e, cada dia que ia buscar material para fazer minha casa 110


e minha pasta. A prefeitura já tinha pago lá, só pegava o material. Não tinha encheção de saco. Você juntava as notas fiscais para provar que recebeu os materiais. Levava a nota fiscal para lá e o que a gente queria era nossa casa. Depois que começaram a enfiar o bico, virou muita burocracia. A _ O esquema do Recanto da Alegria ainda reflete um pouco hoje? O _ Sim, começou e muita gente sabe como foi. Então foi a primeira base para a gente partir para fazer projetos concretos, de comprar terra, fazer mutirões. A _ Se hoje houvesse outro laboratório, outro grupo de assistentes técnicos para ajudar, você acha que faria diferença? O _ O que nós conversamos, e eu até conversei com o Felipe, que foi prefeito de Diadema e trabalhou lá com a gente. A gente discutiu isso, e não sei se já chegou na Dilma, acho que ele ia encaminhar para lá, para o governo federal fazer um convênio com as faculdades e os professores pegavam os alunos e traziam para fazer projeto para a gente. Isto está em pauta, falta a gente conseguir terra para começar, mas está encaminhado. A gente não tem dinheiro para pagar arquiteto, então o governo federal faz o 111

convênio e eles pagam. Isto existe, a idéia., não foi feita mas está caminhando. Acho que vamos fazer o primeiro teste, é só a terra estar comprada, tem aquele projeto Minha Casa Minha Vida. Mas nós não vamos fazer mutirão, nem quero passar perto. Se fez mutirão na época da ditadura, hoje o governo que faça, paga para fazer, A _ Você acha melhor contratar? O _ Sim, sem dúvida. Quem inventa mutirão hoje é louco da cabeça. Quem já fez sabe. Você pega uma família que tem alguém estudando, uma senhora de idade ou um povo que vive trabalhando e que nunca entrou numa obra, imagina no que vai dar. Você pega uma senhora de 50, 60 anos e põe no mutirão para construir prédio? Cabeça de louco. A _ Mas quem faz a gestão de tudo é a população ainda? O _ Não, você não faz, você participa, encaminha as coisas junto ao técnico representante do governo. Você encaminha porque quem paga é o governo federal. Este dinheiro é liberado para eles através da Caixa Econômica Federal. Tem uma fiscalização toda em cima. A assistência técnica fiscaliza a obra e vai às assembleias do povo e vê como está. A _ É uma participação diferente. O _ É. A _ A gente foi pioneiro em São Paulo.


Começou que a gente tinha ligação com a favela do Butantã e fez também o projeto de Vila Nova Cachoeirinha, fez mutirão lá e tinha um engenheiro que fez assistência lá, então tinha um entrosamento com a gente. Começou com ele mesmo, depois, em 82 aconteceu um desastre com ele e nós ficamos sabendo quando já estava sendo sepultado. Na 23, sofreu um acidente e capotou o carro. Ele fez uma falta muito grande, ele ia atrás e fazia as coisas. O Felipe também é muito bom para essas coisas. Ele gosta, ajuda, da ideia. O mutirão era uma falta de opção naquela época. Hoje você tem o governo do PT, tem tudo, vai botar o povo naquela escravidão por todo aquele tempo? Não, tem prefeito que defende isso daí, mas se colocar para fazer ele mesmo não faz. Se começa tem que ser assistente até o final. A _ E os projetos? No recanto eles adaptavam para cada família. Você acha que isso é possível agora sem o sistema de mutirão, sem a autogestão? O _ É porque você não consegue mais terra dentro de São Paulo para fazer casa térrea. Tem que fazer 5 pavimentos. Não dá para fazer com mais de um lota, porque não tem mais, a casa é muito cara. E também tem uma coisa, eu acho, as casas que nós fizemos no mutirão, todas elas, tinha o material, o básico para fazer o térreo e o alicerce para fazer sobrado. Muitos dos que puderam fizeram. Quase todos fizeram. Levantou,

já que tinha estrutura para isso- fez um sobrado. E na época a moeda que regulava era UPC. UPC era unidade por não sei o que. Pegava-se a moeda como se fosse dólar, era x dólares. Então, o financiamento era baixo, depois que elas se abriram foi aumentando. E os preços foram aumentando e para, porque a obra encarece, tudo encarece, precisa ir reajustando, senão não funciona. Eu acho que avançou muito a moradia, só que não está concretizado não. Em São Paulo, na capital, é triste fazer isso. Primeiro que o prefeito não quer, o governador não quer. É só conversa. Não sai. Você tem terra já com asfalto e esgoto, desde quando a Marta saiu ele entrou e não fez nenhum barraco para a gente. Nenhum deles, isso é só conversa. O povo de fora que não participa acha que ele está fazendo, não está fazendo nada. Só quer por ordem. Vou falar ‘Quem é você para organizar o povo rapaz? O povo precisa de alguém que sabe como faz as coisas que está lá para ajudar. Vocês estão no Estado a não sei quantos anos e não organizam, imagina tu. Tão aí as conversas que sobram para nós. -entrevista realizada em julho de 2012 O _ Pois é, quando nós estávamos trabalhando aqui- isso não veio de mão beijada, precisava de um movimento organizado do povo, precisava de passeata, todas essas coisas foram feitas. E o governo Jânio Quadros tinha um defeito, mas também 112


tinha suas qualidades. Se você levar as coisas, tivesse um padre, um bispo, alguém que quisesse fazer as coisas, que fosse te apresentar junto com ele lá, ele conversava numa boa. Ele tinha autoridade, se ele autorizasse fazer... e tinha uma coisa- tudo o que ele decidia, no dia seguinte tava no diário oficial. Colocava, a COHAB tinha que colocar também, tinha que fazer um relatório, senão, se não fazia isso. nós tínhamos perdido esta terra aqui- o Maluf tinha tomado de nós. A _ Nessa época era só a iniciativa de vocês? Não tinha nenhum programa deles mesmos? O _ Não, não tinha nada, ninguém metia o bico não. Só tinha que liberar o dinheiro e fiscalizar a obra, se tava dentro do contrato. Era isso, e você tinha que se virar com o dinheiro que você tinha, era tanto para isso, tanto para aquilo. E o Felipe tinha uma capacidade muito grande para isso, nós fizemos isso aqui sem nenhum problema, depois veio para cá e nós não acertamos mais esse negócio de assessoria. Porque uma coisa, Ana, é você falar “Olímpio eu vou dar uma força para você, vou ajudar você” e você chega aqui, vai vendo o que tem para fazer, vai fazendo, vai ajudando, o que tiver problema nós vamos resolvendo- porque não tem instância nenhuma em que não tem problema nas coisas, né? Aí você vai resolvendo, vai batalhando, vai encaminhando as coisas e vai resolvendo. Se der um 113

problema, você está com vontade e acha um jeito de resolver. Agora você pôr pessoas para vir fantasiar e depois largar você na mão? Ah, não, quer fantasiar vai lá pro carnaval, lá pro samba. Tá cheio de gente assim, cheio, cheio. Isso é o que mais mata os movimentos populares, esse negócio de assessorias, de apoio que a gente não vê-o pior que tem. Eles querem chegar lá e ficar inventando coisas. Eu arrumei um engenheiro, ele chegou aqui, sentou na reunião. A primeira coisa que ele fez: disse que tinha que fazer os prédios já preparando o lugar das crianças brincar, como é que essas crianças iam brincar, como é que esse povo ia viver depois que juntasse. Eu falei “Vai caçar o que fazer, a gente não está chamando você aqui para isso não rapaz. Nós estamos aqui com pressa de fazer projeto e sair casa pro povo.” E no embalo o povo faz tudo, agora se você vai discutir como que esse povo vai viver com os filhos e junto um com o outro e vai viver aonde sem a casa?... Não, e que era melhor assim, que o povo pagasse, desse um dinheiro- Oxe, rapaz! se nós tivéssemos dinheiro ia sobrar casa e ia dar para você. A _ Agora, vocês continuam se organizando para fazer projeto? Eu tinha entendido que o projeto já era do governo e que vocês não tinham... O _ Não, não. É assim; hoje, você vem com a terra, e o trabalho de brigar por nossa terra que nós que conquistamos, foi todo um


bloco. Aí você organiza o povo e o governo, hoje, no caso- da Dilma não, que parece que tá liberando para contratar empresa, mas os outros não. Aí constrói a casa e a casa é daquele povo. A _ Mas o projeto é deles, é do governo? O _ É, mas você tá vendo, não tem outro, qual é o jeito? Vai fazer ali do mesmo jeito que fizeram aquele [referindo-se aos blocos de edifícios que já estavam construídos e edifícios em obras]. Pode até inventar um modelo, mas é o mesmo tamanho. E hoje eu não tenho discutido mais o que a gente discutiu muito, que tipo de casa que se queria, que não sei o quê. Hoje não precisa disso não. Você vai ver, aqui tem três modelos de casas aqui dentro- quatro com os prédios- você vai lá, qual é a que você vai ver? Não precisa tá fazendo casinha de papelão mais, a casa é daquele jeito, ou então assim ou então assim. E hoje eu descobri que, depois daquela experiência, onde nós colocamos 194 famílias dava para pôr 200 ou 200 e poucas famílias, quase 300. A _ Se fizesse prédio? O _ Não, com projeto de casa, como nós fizemos no Monet. No Monet é assim, 5x12. A _ Mas aí é muito pequeno. O _ Pequeno é o diabo! Vai lá para você ver. Doze metros, minha filha, é muita terra. Aqui é cinco, e é geminado. Você pega e levanta assim um sobrado e deixa um espaço e aí por cima você bate uma laje- por causa

dos doze metros você faz um casarão em cima e a garagem por baixo. Se fosse fazer daquele jeito lá essas daqui, tinha feito mais de 300. Entendeu? Aí depois de várias experiências que teve. Hoje, o povo vai fazer é prédio. Eu acho que o prédio, aliás, nós discutimos isso também- o prédio só ajuda se você fizer de 10 andares para cima, para baixo não ajuda, para baixo não tem sentido não. E você vai fazer um prédio e depois você deixa aquele montãoolha lá, olha os espaços que você deixa um atrás do outro. Entendeu? Aquele monte de terra, olha a distância de um para o outro. Se você for fazer um sobrado, o povo faz com mais rapidez e se deixar as praças direitinho o povo domina, não precisa estar pagando condomínio para ninguém, pagando não sei o quê, não sei o que lá- muito melhor. Agora, você fazer de 10 andares para cima, aí são outros quinhentos- mas esses outros não ajudam não. Foi feito um levantamento, discutiram a estrutura metálica, você só encaixava os blocos- a estrutura metálica é mais cara. É evidente que é mais rápido, se você já montou, o povo só fecha. Mas é ignorância você colocar o povo pra fazer mutirão em prédio, é uma ignorância da peste. Você pega o povo, mulher de 60 anos, de 50 anos, jovem, um monte de gente que nunca entrou numa obra e você vai pôr gente para construir um prédio? Fazer mutirão de prédio? Isso é coisa de cabra safado- querer botar o povo para enganar o povo: é assim, 114


você quer enganar o povo? é fácil: você diz assim- basta por exemplo aquele, o Haddad, diz:”Ó, vocês me elegem e eu vou liberar para todos os movimentos, a primeira coisa que eu vou fazer é liberar para fazerem mutirão. Aí você sai dali para o cara fazer cem unidades aqui, cinquenta ali, duzentas ali- ele sai do mandato e os caras não fez. Pode dar, não vai- não comigo, se cair na minha mão, dança, mas se botar na mão de outros aí, que ficam enrolando o povo, como eu ia dizendo... comigo não. Eu te dou você lá com o povo vai ver se vai fazer mutirão. Eu posso fazer? Pode. Então, vamos fazer e você vai ver quantos dias eu vou gastar para fazer. A _ Mas hoje ainda tem uma organização forte como tinha antes? O _ O pessoal...se intregraram. Assim não mobiliza mais ninguém. Vira esse negócio de política e fica falando falando. Tem sujeito que fica de cima abaixo falando de moradia e, se você colocar na mão dele, ele não faz. Se você colocar na mão do cara, ele nem sabe como é estar dentro da obra para fazer só para começar. Diz que tem sei lá quantas milhões de ideias, aquelas besteiras, diz: “Então olha, vai fazer.” Para você ver se fazfaz coisa nenhuma! E virou esta discussão política e o povo lá, mofando sem casa, esperando. Eu não dou muita bola não. Um dia eles chegam aqui e dizem assim: “Tem que fazer a reforma urbana, porque isso, por aquilo.”. Eu digo- engraçado, quer 115

dizer, você está com seus filhos na rua, não tem dinheiro para pagar o aluguel, o salário seu não dá para pagar o aluguel de uma casa que presta para botar sua família, e você vai falar pro outro que tem que esperar a reforma urbana? Isso é coisa que se fala para o povo? [risadas] A _ Quando tinha essa organização, quando o povo estava lutando unificado, tinha uma potencialidade de ter uma transformação maior né? Além de uma reforma e desses projetos que tem hoje né? O _ Olha, a reforma urbana é uma reforma política, você tem que discutir isso a nível nacional e fazer. Mas você ficar esperando fazer casa depois de reforma urbana, é coisa de doido, aí o cara já morreu... Na verdade, a reforma urbana é uma reforma política. Que os patrões não vão querer, porque é desvio da exploração. Reforma política, você acha que fazer uma reforma política com o Congresso e o Senado como hoje tá lá você vai conseguir? Vai nada. Você vai para uma discussão que, no fundo, dá brecha para o pessoal dizer a verdade – isso aqui tá errado por causa disso e disso e disso. Agora, quando foi para fazer a Constituição de 88 por exemplo, aquilo não funciona. Você tinha que tirar, eu sei... você pega as pessoas com capacidade, que você consegui, de todas as instituições e todas as áreas e vai fazer um planejamento para se tornar a lei para votar a constituição ser mãe


da nação. Mas o cara que já está no poder, ele vai derrubar um grau do que ele já tá la? Não vai, vai fazer um remendo. Você vai fazer as coisas direito, mas não funciona. Por exemplo, alguém precisa criar gado, criar vaca e criar boi. Você tem a possibilidade de criar 5 mil bois, então você tem a terra para aquilo, criar 5 mil vacas. E aí você vai de acordo com o que você precisa- aquilo é o que você tem que usar. Os outros trabalhos... se fizer isso com o Brasil, metade do Brasil não tem nada- é tudo para o governo. Você entendeu? É só você saber distribuir as coisas. Você acha que esse povo que tá aí vai aprovar a reforma agrária? Isso aí não é reforma agrária não, rapaz. Você tem que ó: chegou, mediu- você tem seu espaço para plantar, criar suas vacas de leite, normal: você precisa de um espaço para aquilo. Agora o cara chega aqui: ”De quem é essa terra?”- “De fulano de tal”. Some de vista... Para quê que ele quer aquilo? Para quê? Ele não vai usar - arrumou um jeito para dizer que ele é rico. Eu já tenho levantada uma briga, que só falta levantar a laje. O cara veio falar que ele defendia a ecologia, era ecologista. Aí ele falou todo metido, todo doutorzão. Tava eu e mais 5 pessoas. Ele falou, falou, falou e eu falei assim: “A terra foi feita para o homem, não foi o homem para ela- a primeira coisa. Você tem que agasalhar o povo, o povo tá agasalhado, então tem lugar para todo mundo. E vocês aí são muito ecologistas de asfalto. Eu, se mandar fazer

um projeto, só vou cortar as árvores que precisar cortar, não precisa que cortasse tudo. E você corta tudo e depois fica dando uma de ecologista aí.” Ele foi lá e pegou as mudinhas das sementinhas que ele plantava que era para reflorestar e não sei o que. Falei: “Rapaz, você cortou a árvore e depois fica querendo dar uma de... Sai fora disso, rapaz.”. Tem umas coisas assim que eu tenho discutido... E eu não dou muita volta não. Se for eleger um governo do PT, você não precisa estar discutindo mais o que vai fazer, porque isso já discutiu ó, anos. Não é essa música que a gente quer, vai só aplicar. Vai discutir o que quer, discutir o que quer, rapaz? [interrupção por questões da obra] Isso é uma das coisas que eu aprendi, você vai lá e diz “Eu quero um tábua de 30, tantos metros e não sei o quê.” Aí você corta tudo e joga fora, quando você vai ver, no fim das contas, não sei quantos metros de madeira jogados fora nos pedacinhos pequenos. Você via lá, já mediu direitinho, você já chega e compra a quantidade exata que você precisa. E aqui tem um desperdício fora de sério do povo nas obras. Primeiro, eles dizem que tem um monte de pedreiro, que nada, isso aí não é pedreiro, é quebra-bloco. No lugar onde tá trabalhando, de repente você vê aquela quebraceira. Porque já não compra do jeito? Compra canaleta, compra o bloco do canto, compra outro assim. Agora, quando chega aqui quebra, joga fora? Desperdício 116


doido. Você tem uma série de coisas que eu não aguento mais ouvir ninguém falar, porque a gente já sabe que é errado. Você compra a cabeça do bloco, é o suficiente, você não precisa quebrar. Aí o cara já chega lá... aí o que ele queria- cortar o caibro. Eu já comprei ele inteiro para tal coisa, se serrar, perdeu. Só para botar em cima de um pau para subir em cima. Mas por quê é que não pode ficar passando um pedaço? Depois você tira. Isso é uma das coisas, a outra coisa, é a organização do povo. O povo, realmente, se ele conhecer uma pessoa que quer que o povo vá para frente, vai. Mas tem gente que não quer, eles querem simplesmente usar- ficar conhecido para ser candidato, para fazer não sei o que lá, para fundar uma ONG, para não sei o que lá, ter seus carros, comprar carro novo, ter suas coisas, seu salário bom. Uma ONG para defender a ecologia, para defender não sei o que mais, uma tese não sei do que lá eo povo fica tudo... piora. Eu tenho uma colega, que participou, ela fala que é a mãe dos mutirões e eu sou o pai, porque fomos nós quem articulou para isso acontecer. Não tinha em São Paulo, nós andamos muito, batalhamos muito para isso acontecer. Aí ela pegou um dia, nós estávamos conversando, e disse: “Olímpio, nós estamos fazendo papel de besta.”- “Por quê?” Tinha uma coisa que era o negócio da favela. Você ia lá, o povo entrava num 117

pedacinho de favela, de terra, e a polícia tirava, ou ia lá para ver se aquelas famílias ficavam ali. Umas conseguiam ficar, outras eles despejavam, não tinha jeito. E aí, naquela época, tinha- a prefeitura aqui de São Paulotinha um negócio que chamava HAPIS, um negócio assim que você podia ir com a igreja, uma entidade filantrópica, com a igreja católica, uma paróquia, um negócio lá, e você fazia um projetinho de assistência para o povo pobre, que procurava, e aí vinha o dinheiropara você dar para o povo. O povo chegava “Não tenho gás”, “Preciso da passagem para ir embora”, “O barraco caiu”, e nós estávamos fazendo essas coisas e o dinheiro vindo. E ela cheia de dinheiro para ela, que era técnica, era freira e era assistente social, e eu mal mexia ali, para auxiliar. E ficou que esse negócio foi longe, só que, desde o início, nós não fazíamos o que eles mandavam- nós puxavamos o povo para reunião. Ajudava; mas ‘vem para cá’. Depois saiu um levantamento, não sei o que lá e saiu uns dados que tinha do IBGE, de sei lá quem, que aquela faixa de pobreza tava aumentando. Os dados que apareciam eram de que aquele serviço nosso não tava diminuindo a pobreza, tava era aumentando. Aí nós vimos que ia ter que mudar. Pegamos discutimos, discutimos, com o povo, com os padres, bispo da região, com os arquitetos- o Nabil até ajudou- tinha advogado, engenheiro, um monte de gente. E para nós sair desse negócio de ficar correndo apagando o fogo,


correndo atrás de favela que o povo ocupava favela e a favela ia ser despejada, que quando nós chegávamos lá uns se seguravam e outros não. Aí nós fomos chamar o povo para comprar terra e fazer casa definitiva para ele morar. Aí começou a mudança, foi aí que começou e fomos eu e ela quem articulou essas ideias. Viu as estatísticas de que a pobreza e a miséria já tavam...Então o serviço que nós estávamos fazendo não tava servindo em nada. Precisava encarar isso. Quando nós começamos a encarar isso, que levou o povo na prefeitura para brigar lá para resolver o problema da luz e da água nas favelas- que não tinha, e você não podia por um bloco lá que eles quebravam, nós encaramos isso, levamos gente lá e em pouco tempo eles pegou que disse que – quem tava trabalhando na época era eu com ela – que eu tinha que marcar o meu... todo dia eu tinha que dar o relatório: onde eu fui e onde eu não fui, e ela também. E nós chutamos, some com isso daqui. Não fizemos não- “Você vai fazer Olímpio, se você quiser, eu arrumo uma assistente social para você.”- “Eu não!”, ela também não, então fecha. Aí teve uma repercussão terrível. O que tinha nessas igrejas de freira pelega e entidades por aí: “Nós querendo o dinheiro e vocês dispensando o dinheiro” – “Você quer o dinheiro para fazer o quê? Fica para você.”. Chamaram nós lá em São Miguel para dar uma

palestra, eu e ela, porque nós não queríamos o dinheiro. Ué, por causa disso, não tava servindo em nada pro nosso trabalho. Nós tavamos fazendo o quê? Nós não estávamos mudando nada. Eu não, fiscalizar a gente? Aí não ia poder fazer as reuniões e nas reuniões tudo era meter o pau, falar mesmo, contra... a exploração. Aí o cara vai dar dinheiro para você falar contra ele? Não, ele botou limite- onde que ia todo dia, onde que eu fui e onde eu não fui e ela também. Ah, vai... Mas desses pouquinhos que eu to te contando, foi começando do pouco assim. Foi assim, você tendo umas pessoas... por isso, esses negócios que eu to te contando de movimento, movimento- depende de direção. A _ Em que época foi isso, seu Olímpio? O _ Foi em 81, 82, 83. Em 84 já começou o mutirão lá no Recanto. Em 78 nós colocamos, parece que o Maluf, tava com 15 dias de governo e tinha indicado o Reinaldo de Barros para prefeito- era ditadura, não tinha eleição- tava com 15 dias e nós fomos lá, em mais de 3 mil pessoas. Nós articulamos e veio gente do Butantã, de todo lugar em que nós mexemos. Aí, meu ódio, que tem horas em que tenho vontade de mandar todo mundo ir à merda, é por causa disso: Aí, você está no caminho, o povo tá chegando e aí alguém quer puxar. Aí vem um tal, que acho que era até do PTB, que tinha um projeto novo e não sei que lá, que entrou nas favelas para acabar com o povo- o povo tava vindo! Só na região 118


lá tinha 40 núcleos de favela, se unindo para tirar representante para participar e para juntar gente era dois palitos. E aí vem os outros e um puxa para cá e outro puxa para acolá...e o Reinaldo de Barros tomou posse e aí o povo vai detonando e essas freiras frescas e padres frescos e bispos frescos apoiou ele e aí acabou desmobilizando e quando o Jânio Quadros entrou, pisou no pescoço. Aí nós fomos para cima, fomos para cima e nós estávamos organizados. Ele falou que ia acabar com o mutirão; foi quando nós conseguimos mais casas com o Jânio Quadros, que nós conseguimos esse terreno todinho aqui [no Valo Velho]. Se ele não tivesse morrido, nós tínhamos terminado isso aqui ó... nós queríamos terminar isso aqui em 92. Aí foi trocando e cada um vai fazendo uma merda. E quem mais lascou com nós aqui foi a Luiza Erundina. A Marta ainda conseguimos apoio para construir esta unidade aqui, mas deixou o resto lá sem fazer e estamos pastando até hoje. Você fala um monte de coisas, mas você tem que pegar as coisas e fazer. Você vai eleger um cara só para ficar conversando? A Marta não serve para isso, a Luiza Erundina também já foi. Aliás, por que a Luiza Erundina era boa? Porque dava comida, deixava o povo ficar de reunião em reunião e passa ano, passa ano e falando que o povo é que sabe, o povo é que sabe. Vai tomar banho! Eu falei para nós disputarmos, que era assim, 119

nós queríamos que fosse a Luiza Erundina, que tava disputando, o segundo mandato dela, e aí teve uma pedra, e antes eu e mais um rapaz do povo tava apoiando o Aloísio Mercadante, não sei se era para executivo. Eu sei que cada um tem seu lugar, por exemplo, se você colocar o Nabil, o Nabil só serve para o legislativo, o Suplicy, um monte de gente aí só serve para o legislativo. Para discutir, botar ideia, mas põe para executar que não executa, enrola todinho e fica aí anos e anos e não vai a lugar nenhum. Entendeu? A _ Mas aí, no fundo, pelo que você estava me falando, não fez muita diferença qual era o governo, se era o PT, o PSDB, se era na época da ditadura. O que fez diferença mesmo foi a organização de vocês, ou não? O _ Sim, mas depois que entrou o Covas, a igreja foi apoiar aquela porcaria. (Meu Deus, depois que a pessoa almoça...) Aí depois entrou a Luiza Erundina, aí ela não fez mutirão coisa nenhuma. Ninguém conhecia ela, quem trouxe o nome dela pra zona sul fui eu através dessas meninas que trabalhavam comigo e que conheciam ela. Era para eu ser candidato, e pelo visto eu ia ser eleito, na época, e eu não quis. Eu não quis, quando eu conversei com algumas pessoas disseram “Você vai eleito, mas quem vai ficar no meio do povo para agitar isso aí? Para organizar isso? E eles não vão te acompanhar, você vai para lá, você vai sozinho.” Eu falei se for para eu ficar falando besteira aí, ficar gravando coisa da minha


cabeça, não vou não. Não vou, eu não acredito nisso. A _ Acaba tendo uma separação da luta com a instituição? O _ Se você falar para mim que a Luiza Erundina está dando uma palestra em qualquer parte do mundo, eu falo que já sei o que ela está falando. Ela só fala a mesma coisa. Não tem assim “Olha gente, isso aqui tá errado.” Como nós, lembra que nós dispensamos o dinheiro? Falamos “nós não queremos isso não, que isso não vai a lugar nenhum, nós queremos outra coisa.”. Largamos para lá o que não tinha futuro. Então você tem uma pessoa que cria coisas. Sem ser de um jeito empurrado pelo muro. Esse Fernando Haddad, ele tem jeito de querer criar coisas novas. Você está com uma coisa a vida toda e não tá dando certo, vamos fazer outra! Muda a forma de fazer. É só mudar a forma de fazer! Você quer ir para determinado lugar, você quer ir para o centro da cidade, você pode ir de metrô, você pode ir de ônibus, você pode ir de táxi, você pode ir para o Embu e de lá você vai ou você pode ir para Santo Amaro e de lá você vai direto ali pela Francisco Morato e tudo vai indo. Agora tem gente que fica ali... sabe? Não funciona. Eu acho uma pena não aproveitar esse governo da menina aí para sair alguma coisa de diferente para a gente. Eu to batalhando para isso. Eu to com o povo aí, daqui a uns dias você vai ver, você vai chegar na

assembleia e eu vou estar com 2 mil pessoas aqui, como eu tinha. Agora, já tem mais de mil. A _ Mais de mil pessoas em assembleia? O _ Tem. E as reuniões às 7h da manhã, um domingo por mês. Esse agora de sábado, que é a festa julina nossa, era para eles virem que era para saber o que tinha de novo. Agora eu acho que não, porque esse negócio de festa, no meio do povo, tem muita frescura. Aliás, tem gente que até trabalha, mas dá para vir, mas tem aquele negócio de “não vou em festa porque sou da assembleia de não sei o quê”...no meio do povo tem isso, mas eu não to nem aí, vem, quem puder vir, vem. A _ Da última vez que eu falei com você, eu tinha perguntado, porque eu achava que hoje tava muito desorganizado o movimento, mas eu tava vendo e tem um pessoal da FAU que está acompanhando a ocupação da Mauá, no centro, o movimento de moradia de lá. Parece, na verdade, que eles estão começando a se reorganizar né? Eles fizeram um ato, na quarta-feira passada, que acho que tinha 500 pessoas, pouco né? Mas... O _ Para um começo tá bom. A _ Mas agora com você falando que faz assembleias com mil pessoas, talvez esteja começando a se reorganizar, né? O _ Não, aqui nós nunca tivemos crise com essas coisas. O que fez foi assim, você teve um governo no Estado, outro governo na prefeitura que não tem jeito. Todos os 120


governos que passaram por São Paulo, eu tive reunião com eles. Por incrível que pareça, eu não consegui com o Fleury, do Fleury para cá eu não consegui. Quer dizer, hoje com o PSDB aí, PMDB aí... Até o Quércia, eu consegui audiência com ele. Quércia, aí depois de prefeito eu tive até... Maluf não teve, Pitta não teve. Agora com o José Serra e esse povo dele, você não consegue nem uma assistente social para conversar na prefeitura. Ainda fui falar lá e o menino: “Não, você não fala isso não.”, eu falei: “Eu vou falar, que no tempo da ditadura, eles botavam um monte de polícia, mas tinha um técnico lá no meio e você conseguia algumas migalhas.” O que nós conseguimos foi assim, agora com esse povo você não consegue nada, não tem ninguém que atenda. Ninguém, ninguém, ninguém. E, se eles mandarem atender você, é uma pessoa lá da Guarda Metropolitana que não tem a ver com a assistente social e com o que você tá querendo. Um dia eu briguei com ela lá, ela disse “Eu te conheço.”, eu falei :”Conhece, mas não aprendeu. Menina, você tá discutindo coisa da década de 70 que já era.. Quer ensinar o pai nosso ao vigário, ficar discutindo negócio de terra; essas discussões nós fizemos nos anos 70. Você vem me falar disso hoje? Não tá com nada não. Você tá aí só para ganhar um pouco, eu não vou não. Deram um salário a mais para você poder fazer isso, ficar provocando os outros. Até terminar o mandato deles.”. Isso é serviço de mercenário, 121

vai ganhar o dinheiro de qualquer jeito... Sim, mas você sabe uma coisa, porque os movimentos não se juntam hoje? Você viu lá o ato com 500 pessoas tal. Não junta porque assim, você chega no movimento x, é ligado a um parlamentar aí, você chega no outro, é uma puxação de saco, que isso é coisa que eu não faço, nunca fiz, nem vou fazer. É por isso que não junta o povo, não é o povo que não quer. É isso: “Ah, é o Olímpio que tá lá, não ele não apoia o candidato fulano, não vou ajudar não.”, “Ah é o fulano que tá lá, não é para ajudar.”. É isso. Não, aí vamo lá. Aí você vai fazer um discurso x, beltrano x, a comissão x. Chega lá e leva aquele tantinho de gente de cada região e a união leva gente de todas as cidades do interior, eles trazem- só para chegar ali e fazer aquele povo ir embora para trás, que eles têm condições. Você não consegue nada. Chega na porta da COHAB, lá no meio da rua na São Bento,q ue já é cheia de gente e fica ali gritando com aquele sonzinho, fala uma coisinha ali, tá bom. Mas para falar com quem? “Nós vamos ser recebidos pelo diretor não sei do quê..” - “Quem te falou que diretor libera projeto?” Precisava o cara, a prefeitura. Ou o prefeito autoriza, ou não vai. O secretário não vai fazer sem a autorização do prefeito, vai? -que é a segunda pessoa do prefeito. Ele não faz, não faz. A gente luta, mas não sei não, é muito difícil.


Reginaldo Ronconi - entrevista realizada em dezembro de 2011 parte 1 A _ Por quanto tempo você participou do laboratório? R _ Eu participei, eu entrei, fui bolsista por um tempo regulamentar e aí a gente entrou naquela greve. Eu acho que eu continuei no laboratório sem ser bolsista, porque eu me vinculei tanto no projeto do Recanto da Alegria que não importava muito se eu era bolsista ou não e eu continuei trabalhando, mas daí estava no laboratório. Mas eu sei que talvez eu tenha saído formalmente antes, mas de fato na época da greve, em que fui assumir o papel de liderança. Eu fiquei até o final do projeto do Recanto, descrito na dissertação do Nabil. Eu entrei para este projeto no ínicio da discussão, o projeto saiu do TFG de um estudante, o Sérgio de Simone e este TFG que orientou o início do projeto, nasceu o laboratório lá, e depois, como lá no Recanto morava um líder do Movimento de Moradia da Zona Sul, o seu Olímpio, isto levou a gente a ter uma discussão com o movimento que era muito forte. Então, trabalhar no Recanto e participar do Movimento de Moradia da Zona Sul era praticamente a mesma coisa e não dava para fazer uma sem fazer a outra. Então isso levou o laboratório a uma

série de conexões, a gente participou do primeiro encontro de moradia na zona sul, praticamente organizou o encontro. Daí talvez esta questão mais formal da equipe no laboratório foi ficando de menor importância, tinha projetos que começaram que eu nem fiquei sabendo. Eu lembro que tinha vezes em que eu ia para o laboratório e perguntava ‘o que o Sant’Anna está fazendo naquela mesa?’ ‘o Sant’Anna está fazendo um projeto de habitação’. O Sant’Anna também participou. Então eu acho que teve uma efervescência com esta história do Recanto e quem participou ficou conhecido como recanteiro. E mudou muito o estagiário no Recanto da Alegria. Eu fiquei mais na obra, acompanhei a obra. Foi importante a entrada como laboratório mas depois de um tempo o laboratório virou quase uma referência. O nível de discussão inicial dentro do laboratório foi diminuindo. A _ Tinha alguma divisão de quem fazia projeto, quem acompanhava a execução ou todo mundo participava? R _ De fato não tinha, no projeto em que eu trabalhei, não. Agora, as circunstâncias do projeto determinavam um pouco essa dinâmica. Então o projeto de implantação, a gente teve que fazer, fizemos algumas coisas que são muito gozadas. Nós fizemos uma reunião com a Secretaria de Vias Públicas para aprovar o arruamento, e nós éramos eu e outro estagiário, e falamos com o secretário 122


da época. Ele olhou nosso projeto e disse ‘Esse porjeto de vocês, projeto de estudantes, eu não posso aprovar, se fosse o projeto de um órgão que tivesse o carimbo da prefeitura era mais fácil.’. Eu era, tinha entrado como estagiário, na FABES de Santo Amaro, com sede na prefeitura, e entrei para tomar conta do projeto do Recanto, a raposa tomando conta do galinheiro. A Nina, Nina Orlow, minha orientadora e uma grande amiga que trabalhou para o FUNAP. A gente foi até a prefeitura, pegou o papel vegetal com carimbo da prefeitura, pegou o projeto e chupamos o desenho e voltamos para a Secretaria de Vias Públicas dois dias depois. Falamos ‘Agora nós temos o projeto’ ‘Então, agora podemos aprovar.’.Foi assim que se aprovou o arruamento do Recanto. Isso permitiu que fizessem a licitação com a empreiteira. Então fizemos esta gambiarra de chupar o próprio projeto. Ao mesmo tempo, a obra derrubava. A obra toca, você tinha que ir todo dia e isso derrubava as pessoas por lá é... Longe? Difícil, né? Na época eu tinha uma motinho, pequenininha de 125 cilindradas. O Nabil tinha uma vespa, uma scooter. Quantas vezes a gente não fez isso, um na carona do outro. Então, eu me vinculei muito com a questão da obra, mas quando tinha alguma questão do projeto... É que o projeto era muito restrito porque tinha muito pouco dinheiro. A gente tinha dinheiro que dava para fazer 25m2, 5x5. Mas a gente estudou 123

a capacidade de endividamento de cada morador. Trabalhou com uma maquete, tinha o nome de maquetomóvel. Tinha uma placa, com uma malha ortogonal embaixo do relevo feita com serra e uma plaquinha de eucatex, bem fininha- de 3mm, que a gente conseguia encaixar nesse sulco. Algumas tinham a altura do pé direito, algumas a altura do peitoril. Então você consegui montar a parede e janela, fazer em 3D. Era uma linguagem mais fácil de compreensão para a discussão do que a planta. Com essa ferramenta a gente trabalhou, a partir de um quadrado de 25m2, a possibilidade de desejo do cara da casa, o que ele queria da casa, qual que era o projeto, e depois o quanto ele conseguia botar de dinheiro dele para somar com o financiamento para chegar Então eram 37 casas e a gente teve 32 projetos diferentes. 5 eram do pessoal que estava no nível mais miserável de pobreza e bebiam - era um problema sério dentro do problemasso que era sério. Então esses tiveram 5 projetos iguais, parecidos, mas os outros todos projetos foram diferentes. Então trabalho de projeto mesmo quase que era esse, de tentar fazer a adequação entre os recursos que se imaginavam seriam possíveis e o projeto. A _ Então o projeto era elaborado principalmente junto dos próprios moradores? Tinha um projeto pré-concebido, mas ele só se dava após estas conversas? R _ No fundo era assim, o que era o


projeto concebido? era o quanto de material a gente ia usar com esse dinheiro. Era um época terrível de inflação, o valor mudava toda hora, e isso fazia com que a gente tivesse que negociar com o depósito que entregava material. Isso foi um impasse, um grande problema e a gente conseguiu fazer uma compra única em um único depósito, chamava Rochel o depósito que ficava lá na (Avenida)Teotônio Vilela. A gente articulou com o vendedor do depósito que ia fazer a compra com a nota fiscal referente aos 25m2 por unidade, que era o que a gente tinha de projeto da prefeitura, mas que a gente ia trocar aquilo com a gente quisesse. Então se aquele projeto falava 1 janela, 1 veneziana, a gente podia tirar três, quatro, desde que a gente não gastasse o global de dinheiro. O cara topou. Então era o vendedor da Rochel, primeiro foi uma discussão com o diretor da Rochel que topou e designou um vendedor para acompanhar essa venda que era uma venda maluca. Cada fim de semana a gente ia lá e pedia um material, ele checava. Tinha duas listas que funcionavam em paralelo. Eu coordenava pelo laboratório e pela prefeitura porque eu era estagiário da prefeitura. Chegou um momento em que ninguém mais sabia o que estava acontecendo, eu era o único que sabia, que achava que sabia. O vendedor já não sabia e eu achava que sabia. Para a gente isso foi bom porque a gente teve o controle total. Isso foi uma exceção, isso nunca mais

se repetiu, mas era um princípio, eu acho, desse exercício da gestão. Ela não era uma gestão reconhecida pelo poder público, mas no fundo a gente estava gerindo esse empreendimento talvez com muita liberdade até com relação a como essa gestão foi reconhecida. Então, por exemplo, o morador achava que ele podia colocar a janela mais tarde, mais tarde ele compraria uma janela e o dinheiro da janela era melhor ele comprar em bloco porque ele conseguia ampliar o banheiro. Então, você vai ver, tem fotos do Recanto com um monte de janela com uma lona. Janela não, só tem uma abertura e uma lona no lugar do caixilho, e é isso, daí ‘quando sair o décimo terceiro, quando receber não sei o que de quem eu compro isso. Agora esse dinheiro aqui, 500 reais sei lá, 300 da janela eu quero em bloco’ Então esse era um trabalho importante de controle para a gente conseguir viabilizar esses materiais. Então o projeto e a administração eram coisas que aconteciam praticamente lá no canteiro. A _ E como eram escolhidas as comunidades? O Recanto da Alegria? R _ Foi escolhido pelo movimento da Zona Sul, pelo que eu me lembro Teve uma demanda, uma discussão com o MM da Zona Sul e, pelo que eu me lembro foi isso, a comunidade indicou o Recanto para fazer o projeto-piloto. A _ Mas então o laboratório já tinha contato com o movimento? 124


R _ Contato com o movimento, sim. Tinha o Movimento da ZS, da ZL. Tinha assim, dos movimentos organizados, a gente tinha discussão com vários. parte 2 A _ Dá para considerar o laboratório como um fundamento para formação dos assessores técnicos? R _ Eu acho que ele foi, sem dúvida, muito importante neste processo de formação. Eu não sei se a gente generalizaria que qualquer laboratório seria. Mas com as características que teve lá na BA, foi, tanto é que as pessoas que participaram do laboratório se envolveram na elaboração, implantação e coordenação de políticas públicas na área de habitação. Quase todo mundo, com exceções, se envolveram com isso. Eu, Margareth, Eulália, Nabil, Sant’Anna, Lotuffo, todos acabaram indo viver uma experiência municipal de habitação. Uns depois continuaram em outros municípios. Eu acho que foi muito importante. Acho que sempre tem que se considerar a conjuntura o que estava acontecendo. Quer dizer, o movimento social estava se organizando, existia uma forte percepção de possibilidade de mudança no país, a gente tinha uma Constituição recém-aprovada, estava retrabalhando o panorama democrático, então tinha um impulso transformador e acho que conquistador de novos espaços políticos muito grande. Então, acho que 125

nessa conjuntura que era nítida mais esses processos de participação, descoberta de processos participativos para a elaboração de gestão de políticas públicas, isso juntava uma oportunidade de formação e de ação e de formação da ação que era muito concreta. Então, eu acho que o laboratório teve essa contribuição que foi importantíssima, inclusive para o início da prática da política pública no governo da Luiza Erundina. A _ Enquanto laboratório, ele teve algum impacto nas políticas públicas ou foi só depois com a ação das pessoas que participaram do laboratório? R _ Eu acho que sim, por exemplo, na medida em que o primeiro encontro do Movimento de Moradia da zona sul foi articulado junto com o laboratório e essa organização dos movimentos foi prática de política, ela que forçou uma série de ações desde os projetos pilotos como Recanto da Alegria, AMAI (Associação de Moradores...) foi forçando a abertura de espaços e foi deixando mais clara a necessidade do trabalho de assessoria que fosse profissional mas cujo objetivo fosse menos capitalista da reprodução do capital empregado no escritório, mas sim de promover um trato profissional de qualidade para a habitação. Acho que essa conjunção de esforços de que o laboratório participou, foram fundantes para a prática e para ganhar espaço no panorama formal da politica publica, para


ganhar este espaço formal. Daí com a criação de programas, com a elaboração de políticas, com o estabelecimento dos conselho municipais, da lei nacional de habitação. Então, eu acho que teve um momento que a gente pode, o laboratório não esteve diretamente trabalhando na gestão municipal, acabou antes até, mas veio formando, ajudou a formar esforços para chegar nesse ponto e depois com a sua explosão as pessoas foram trabalhar nessa área. A _ O laboratório tinha esse caráter de reformular a forma como eram feitas as políticas de habitação, mas teve a principio o caráter de contraposição a essas políticas, um momento de quebra com o que era feito ou só esse sentido de reformular? R _ Reformular com o sentido de reformar? A _ Sim, porque na verdade, o que tinha, que era o BNH, tinha acabado de quebrar e, até hoje ainda não entendi direito o que acontecia. Não sei se teve um momento em que precisou que houvesse alguma coisa totalmente nova ou se foi mesmo pela reforma que se conseguiu chegar a uma nova política. R _ Esse momento era um momento de reconhecimento do movimento popular, da própria capacidade de organização e o conhecimento de uma força mais ampla, porque você tinha o movimento da zona sul, movimento da zona norte movimento da zona leste, movimento da zona oeste e eles

estavam começando a se compreender como movimentos na cidade, como movimento da cidade de São Paulo. Nunca se integraram formalmente como uma coisa só, mas passaram a agir a partir de 1981, acho, mais integradamente- trocaram experiências, não chegaram ao ponto de fazer uma articulação política para lançar um único candidato do Movimento de Moradia para disputar alguma eleição, sempre tinha um esvaziamento da capacidade de voto, porque tinha um candidato da zona sul, um da zona leste. Mas de qualquer forma, teve uma diferença a partir dessa década que acho que foi dessa compreensão de que era uma grande força. Daí, tinham as questões da insuficiência da habitação, não só do ponto de vista da quantidade, porque essa é uma questão muito exclusiva- não tinha habitação e continua não tendo- mas o processo de favelização transbordando, muito visível, as áreas de risco ocupadas e com problemas sérios. Era uma questão muito efervescente, procurando sair. Mas também tinha uma insuficiência que era do ponto de vista da qualidade do projeto, das construções. Então na gestão Jânio, chamaram a gente no sindicato para ver, ele fez um pequeno parque tecnológico acho que na Vila Remo, na zona sul. Ele juntou 25 empresas, foi um mini Narandiba, para fazer uma escolha de processos construtivos. A gente foi olhar isso, tinham casas com folha de madeirite, a junta de dilatação era 126


uma mangueira, se você segurava no batente das portas, você mexia a casa inteira. Era esse o nível de qualidade das casas, que era muito ruim. Então, pensávamos, precisase construir casas, mas precisa ser algo melhor. Daí os contatos que começaram a surgir com os movimentos Uruguaios traziam um outro patamar, um outro gradiente, na discussão de qualidade. Acho que essas coisas de diversas origens e focadas nos mesmos problemas foram dizendo, tem uma questão seríssima que é a gestão, tínhamos a experiência da gestão que foi meio forçada no Recanto da Alegria - então ia ficando cada vez mais claro, era importantíssima a participação nos projetos, não só para que se tivesse projetos melhores, mas para que se tivesse respaldo na luta por projetos melhores. Porque era muito comum, por exemplo, o Jânio Quadros retirou uma favela de cima da ponte Cidade Jardim e colocou num lugar lá perto do Adventista em primeira etapa, numas casas feitas com placas cimentícias com isopor, o poliestileno expandido como agregado graúdo. A gente foi chamado para verificar as patologias das casas: as crianças pequenas, com os dedos, retirava aquilo e furavam as placas. Então, era uma porcaria o negócio. Qualquer pessoa, não precisava ser técnico nem nada, olhava e dizia ‘como pode alguém morar aqui?’. Mas, as pessoas que estavam lá diziam ’pelo menos agora a gente tem o terreno’. Então, essa situação de, da 127

miséria total, você reduzir para uma miséria parcial pode parecer uma melhora, às vezes você pode perceber como uma melhora. Então, acho, que o fato de se discutir a qualidade do projeto, de se abrir a discussão sobre gestão no projeto, criava uma resistência também de falar ‘não, essa porcaria eu não quero. não quero ficar no barraco, mas também não quero trocar o barraco por outra coisa pior.’. Isso foi um sentimento que aos poucos foi sendo crescido e até acho que hoje ele não é totalmente completo. Mas, foi o momento de se reelaborar uma resistência pela qualidade de projeto de dizer ‘vamos esperar mais, vamos esperar mais um ano, vamos lutar mais para conseguir um projeto melhor’. Então todo este suporte, foi um suporte para as propostas de legislação que vieram. Hoje ainda não é bom, nós ainda não temos o entendimento adequado dessa questão, mas é muito melhor do que naquela época e, sem dúvida, esses avanços se dão pela organização do movimento popular que puxaram a organização de um setor técnico e que evidenciaram a necessidade política com capacidade de discussão. Essa fase que voê está estudando é uma fase muito de elaboração. Você está numa fase, fazendo uma analogia, de fundação do que aparece hoje de estruturas. A _ Isso ainda reflete hoje nas políticas do governo de habitação? Ou, se você quiser fazer uma análise das políticas do governo de


hoje. R _ Não sei, isso reflete hoje? Refletir, reflete. Mas tem uma coisa que vem acontecendo, isso é uma opinião minha, que é a assimilação de questões que eram de de princípios quase viscerais e que foram sendo amortizados e foram sendo meio que engolidos por um ligeiro movimentar de cadeiras em algumas instituições. Então, por exemplo, aquela mentira chamada CDHU fez o programa de mutirões que não tinha nada a ver com a experiência de autogestão, mas falavam em participação, falavam em assessoria técnica, era todo um jeito de falar mas com um jeito de fazer completamente diferente. Então, continuavam respeitando a equação financeira para formar um grupo. Muitas empreiteiras abriram uma diretoria linha para cuidar de mutirões, nunca deixaram de ser empreiteiras mas colocaram um lugar em que ‘a gente faz mutirão participativo’. Claro que a gente sempre tem um ou outro reflexo que é postiivo, mas no geral isso foi muito ruim. A CDHU, quando a gente ainda estava trabalhando com projeto na CDHU, eles ofereciam para a demanda ‘se vocês continuarem com a assessoria, provavelmente demora uns dois anos para aprovar o projeto, se vocês pegarem o projeto que a gente tem em estoque, mais uns 6 meses’, o que não era verdade e, mas aí a população... era uma sacanagem uma pressão dessas de ficar mais dois anos esperando. Isso não tem nada

a ver com o que se queria antes que era a gestão popular. No fundo, quando a gente fala de autogestão, tem que falar de poder de decisão, então o poder público tem que estar disposto a abrir mão de alguma ordem de decisão, alguma ordem de grandeza das suas decisões. Não dá para dizer ’você vai participar- tá bom, vou tomar café- café não, toma chá- tá bom, vou tomar chá com açúcar- com açúcar não, toma com adoçantetá bom, mas vou querer com adoçante em pedra- adoçante em pedra não, adoçante líquido- mas que porcaria de participação que eu estou tendo que eu não decido?’. Então, tem uma metamorfose que o poder público vai fazendo, e a gente vê isso acontecendo com muitas coisas, mas diferente na questão da habitação. Acho que isso foi enfraquecendo aquela força desta outra década, do final dos anos setenta, anos oitenta e início dos anos noventa, que era diferente. O movimento reconhecia e exercia uma força diferente do que faz hoje. Depois acabou entrando num plano de negociações para viabilizar projetos, para continuar tendo resultados, eu acho que foi avançando, a gente tem um Plano Nacional de Habitação, tem, por exemplo, a porcaria de programa que é o Minha Casa Minha Vida, mas teve o Minha Casa Minha Vida Entidades, um pedacinho do programa que não é quase nada, mas serve para garantir a participação de comunidades organizadas. Agora, eu acho que tinha que ser 128


tudo assim e um pedacinho para garantir as empreiteiras. No fundo a questão da gestão não era contrária às empreiteiras, então, ainda é a minha fantasia, a gente poderia ter grupos gestor de usuários que estariam gerindo o trabalho das empreiteiras. As empreiteiras ao invés de prestar contas só ao poder público prestariam contas também para a comissão dos futuros usuários. A gente viveu experiências assim na cidade de São Paulo, então essa capacidade é possível de ser contruiída,de ser estimulada. Agora, ela retira poder do Estado e nós estamos falando da Construção Civil, que é uma área que movimenta muito dinheiro, muito dinheiro cinza que você não tem a menor idéia de para onde vai. Vai para campanha, vai para não sei o que. Então, falar ‘vou abrir mão de parte do meu poder sobre isso’ é difícil. Talvez seja até um sentimento meio utópico, no fundo, eu acho que seja essa a reconquista a ser feita. Acho que é mais difícil agora, porque à medida que eu vou absorvendo o seu esforço de construção do novo eu vou te envelhecendo - envelhecendo no pior sentido da palavra, de enfraquecer - e eu acho que foi isso que aconteceu. Acho que foi isso que foi acontecendo com o movimento, na medida em que a instituição foi absorvendo esse esforço- e absorveu de diversos jeitos: pegou liderança, contratou liderança para trabalhar no governo, para defender os interesses do outro lado, enfim, 129

acho que teve os processos de cooptação, teve os processos de alteração de objetivos, de redefinição de conceitos. Quando se falava em participação, não precisava adjetivar muito, nos mutirões em que a gente trabalhou, participação era participar: participar da eleição da diretoria, participar da prestação de contas, participar da compra de materiais, participar do projeto, era participar, não tinha nenhum adjetivo para essa participação. E depois começou a ser adjetivado, na CDHU, participação era preencher um questionário, e foi enfraquecendo essa força do que era essa nossa bandeira de luta. Apesar dos avanços a gente tem esses desgastes e tem uma coisa que me incomoda muito, porque ainda sendo um desgaste, há setores do Movimento Popular que louvam isso como vitória, então o estrago é muito maior ainda. É uma derrota e a gente deveria estar entendendo que é um momento de rearticulação, mas, enfim, acho não está sendo. A _ A partir do momento em que o governo incorpora essas iniciativas como políticas do governo, o que se entende é que isso é uma vitória do movimento, mas que na verdade não é uma vitória, na medida em que isso vai enfraquecendo os movimentos? R _ É que a incorporação não se deu de forma verdadeira. Paulo Freire faz uma distinção entre inserção e adequação. Então, o movimento, nessa fase mais histórica, estava inserindo no poder público


uma forma de montar habitação, e quando você insere, você deforma o que está no entorno. Então a gente tinha, por exemplo, na prefeitura, um constante conflito com a contabilidade, porque ela não admitia aquilo que estava aparecendo no programa Funaps Comunitário, mas a gente foi tentando mudar os procedimentos de contabilidade, não era nem para torná-los mais fracos, nem menos fiscalizadores, mas falar ‘vocês tem que olhar agora a prestação de contas apresentada por notas fiscais que o movimento traz, o movimento não tem livro caixa, vai trazer as notas fiscais, vocês vão ter que trabalhar mais’. Isso, nesse momento, ainda era a inserção de uma nova forma. Depois, aparece a adequação, na adequação, quem se deforma é o objeto que tem que se espremer e pegar a forma do entorno para ficar adequado. O que aconteceu foi isso, existia a possibilidade de inserção de uma proposta, que era algo muito transformador, mas foi acontecendo uma adequação desta proposta. O que a CDHU fez em São Paulo, foi uma adequação da autogestão às normas da CDHU e não sobrou nada. Talvez o movimento popular não tenha acumulado força para continuar este trabalho de inserir uma proposta transformadora, foi meio que deixando de lado isso, então tem um pedaço do programa MCMV Entidades, então já tá bom. A _ Qual a importância da autogestão para os movimentos populares e

encaminhamento dos projetos? R _ A gente tinha na prefeitura uma discussão teórica entre autogestão e cogestão e para mim a discussão está entre abrir mão do poder ou não abrir mão do poder. A autogestão permitiria organizar a produção de qualquer maneira, fosse mutirão, fosse empreiteiras, fosse fazendo um sistema misto de empreiteira e mutirão. Autogestão é isso, assumir a organização deste processo. Existiam alguns colegas na prefeitura que diziam que, como eles faziam isso com o dinheiro do Estado, era co-gestão. E não era, porque o dinheiro do Estado também é o dinheiro da população, o dinheiro da população vai para o Estado, junta, forma um bolão e este bolão é aplicado. Quando o Estado repassa o dinheiro para uma empreiteira ele não diz que está fazendo uma co-gestão com a empreiteira, quem está fazendo a gestão é a empreiteira, mas é com o dinheiro do Estado que se faz o financiamento da empreiteira. Então no fundo é a autogestão, ela que permite que você abrisse caminhos para processos participativos, em alguns lugares mais participativos do que em outros. Isso não é dizer que a autogestão garantiria procedimentos sem erros, sem vícios, mas a autogestão permitiria a aproximação entre o desejo do usuário e o resultado obtido, permitiria um espectro de fiscalização muito maior do que o espectro formal existente no governo ou só no Estado. Evidente que 130


ela permitiria alguns desvios. Se tirar esse caráter da autogestão, entra naquela coisa que virou a CDHU e de outra empresas públicas que pegaram este canto do muitrão autogerido e começaram com isso a tentar uma reforma de visão. Sem a autogestão, estes processos não funcionam. Para se ter a autogestão, é preciso ter a população organizada, sem ter a população organizada a autogestão se torna uma proposta acima da possibilidade de digestão desta população. Então, precisa-se ter um elemento periférico de suporte e de preparo. Se o Estado tivesse educação suficiente, todo mundo tocava isso para frente, mas senão, precisa ter um trabalho de organização, imaginando os mais de 5 mil municípios que tem o Brasil, de alguma forma isso precisa ser estimulado. Daí eu acho que o Terceiro Setor tem um papel muito grande. Eu não acredito no Estado preparando a população para a autogestão, porque na hora de decidir sobre o dinheiro, ele diz ‘sou eu’. Precisaria terceiro setor, ainda setores organizados da sociedade civil, setores sem fins lucrativos, setores de interesse público que fossem trabalhar esta questão. Com esta base de organização popular, as propostas de autogestão e participação podem ser construídas, o que é razoável. As pessoas que trabalhavam em mutirões, na sua responsabilidade pessoal tem 1 salário, 3 salários, tem que levar as crianças para a escola, ir trabalhar e de repente se 131

vincula a um projeto cuja soma de recursos é de 200, 300, 400 salários, então é outro nível que o cara tem que alcançar de gestão. A gente teve um caso de uma comunidade em que o diretor que fugiu, uma das coisas mais ingênuas, fugiu com o dinheiro, foi para a cidade dele no nordeste, comprou um carro zero, foi pego, foi preso, mas isso em mais de cem mutirões. E todos os outros, a maioria fazia casas com mais de 60m2, a maioria fazia projetos com a implantação adequada, então o resultado da autogestão é muito positivo. A _ Mesmo com a autogestão, tinha problemas com a organização dos mutirões, ou com a autogestão esses problemas ficam minimizados? R _ Isso sempre teve, por definição. O que a gente não pode confundir é que a autogestão significa um céu de brigadeiro, mar almirante. Não é isso, ao contrário, é um lugar de problemas o tempo inteiro, de tensões expostas o tempo inteiro, porque este é o momento de transformação e essa transformação é tensa. A transformação em si é sair do seguro para ir para o desconhecido, é um momento de tensão o tempo inteiro, qualquer que seja o objeto da transformação. Então, quando a gente fala da autogestão, algumas pessoas ouvem isso romanticamente e falam ‘mas tinha problemas’ ‘mas fulano brigou com não sei quem’, mas é tudo isso e isso que motivava


e fazia acontecer as coisas com um caráter novo. A idéia do mutirão, academicamente é muito combatida, Chico de Oliveira fala da questão do sobretrabalho, mas quando você ia para um lugar de mutirão, na obra, as pessoas falavam de felicidade, alegria, ver os amigos, ao mesmo tempo em que estavam carregando saco de cimento, quebrando pedra, assentando tijolo. É difícil olhar de uma maneira simplista e achar que aquilo está de uma forma que não funciona. De fato, é um lugar em que o tecido está se esgarçando de um lado, mas se juntando de outro, é um processo de transformação para mudar de direção. O mutirão é uma organização muito complicada, sempre. A autogestão não implicaria apenas no mutirão. A gente tem, no Uruguai, exemplos de comunidades que autogeriram empreendimentos sem terem levantado um tijolo sequer, participaram do projeto, fizeram a licitação com a empreiteira que iam construir os prédios fiscalizados por eles, pagos por eles. A autogestão e o mutirão são coisas diferentes. A autogestão é uma postura administrativa que pode ser aplicada a diversas organziações de produção, o mutirão é uma organização, ou jeito de organizar, a produção, mas pode haver diversas e sempre a partir da autogestão. Quando há transformação, há tensão. A _ Eu vi que existia, em alguns mutirões, uma divisão de tarefas para homens e mulheres. Como se decidia quem ia participar

da administração, da construção? Como era feita a organização da população? R _ Nos mutirões dos quais eu participei não havia separação por gêneros. Então, a gente teve excelente pedreiras, excelentes almo-xarifes, péssimos administradores, excelentes mulheres que administraram em geral, lideranças femininas fortíssimas. Essa separação por gênero, eu nunca presenciei nos mutirões em que eu trabalhei. Tinha uma separação que era por condição física, isso acontecia. Às vezes, se a pessoa tinha algum problema de saúde, era dirigida para algum tipo de atividade. Especificamente no mutirão, eram pessoas que ou serviam água durante o trabalho, ou tinha, acho até que eu fotografei isso para a minha dissertação, tinham umas senhoras de idade mais avançada que ficavam preparando um aramezinho para prender a pastilha que ia ser o espaçador da armadura da laje. É fundamental ter este espaçador e estas senhoras ficavam lá fazendo milhares de pastilhas, dobrando o arame, sentadas na sombra, sem carregar peso. Alguém estava encarregado de fundir estas peças e trazia para elas e elas cortavam o arame, dobravam, quase como um bordado, só que o material não era tão flexível. Na administração, tinha tanto mulher como homem. A _ Mas como que se decidia isso? A princípio se fazia uma assembleia com todos os moradores? R _ É que normalmente isso vem 132


aparecendo na organização. Lideranças vão despontando, tem pessoas que na hora de organizar alguma coisa pragmática como mudar alguma coisa de lugar já começam a indicar trabalhos e designações. Certamente essa pessoa vai virar um líder de alguma atividade parecida. Tem gente que vai despontando na organização e vira um líder, indica ‘vamos votar de tal jeito’, ‘vamos escrever não sei o que na lousa’, essas lideranças vao aparecendo na organização do mutirão, do empreendimento, da associação. Na hora de fazer a diretoria, aparecem os candidatos e normalmente essas pessoas aparecem. Não existia nos mutirões isso que hoje existe nas empresas em que você precisa de 1/3 de mulheres nas direções ou nos cargos ou nas vagas. Isso nunca existiu. Talvez existisse uma predominância das mulheres porque as mulheres participavam mais desde o início da organização. Era muito comum a mulher ser o primeiro membro da família a participar das primeiras discussões sobre o projeto e depois ela trazia o homem meio desconfiado, achando que não ia dar certo. Então a gente teve fortes lideranças femininas, mas eu acho que nunca foi uma questão de gênero. Agora, o gênero feminino, a mulher é muito mais compromissada com a segurança da família e a manutenção da família. Isso eu posso afirmar quase com certeza, elas estava sempre nas primeiras reuniões que tinham maioria de presença 133

feminina. AC _ Como a sua experiência no laboratório influenciou a sua escolha profissional? RR _ Eu não tive muita escolha. Eu militava politicamente antes de entrar na arquitetura, fui fazer física antes na PUC. Comecei a participar do Movimento Estudantil quando fazia física e fui ser aluno de arquitetura mais velho, quando entrei, acho que já tinha uma direção política e um caminho para onde deveria trabalhar, não trabalhar no sentido profissional, deveria atuar. Coincidiu que na Belas Artes estava aquela coisa de formar laboratórios e trabalhar com a população, então foi meio natural me vincular a este caminho e as minhas atividades no período de formação foram só neste caminho. Então quando me formei, no sindicato fui formar a comissão de assessoria aos movimentos populares, organizar o primeiro encontro de habitação. Foi natural e eu fui ficando neste setor que tem muito trabalho, tem pouco mercado mas muita demanda, o tempo inteiro você está trabalhando de graça. Acho que foi muito importante este processo de formação para criar as possibilidades de atuação profissional. Atuando profissionalmente a gente percebia que não existia mercado, isso também nos fez discutir um pouco como estabelecer os limites, que continente a gente precisa alargar para que as pessoas possam


técnica, virou escritório de projetos. Tem que estar no limite do ‘não serão 37m2, serão 60m2’, do ‘não vai ser sem elevador, vai ser com elevador’, ‘vai ter varanda’, ‘a população decidiu em questionário que o projeto vai ter certa característica’, sempre puxando no sentido de poder, em algum momento, chamar a habitação de interesse social de habitação ou dizer que a habitação de interesse social é de interesse da sociedade sobre aquele encargo. Não dá para chamar de habitação popular e habitação não-popular, é habitação para todo mundo. O popular, nesse caso, é um rebaixamento de qualidade. As vezes o adjetivo popular faz a gente gostar de alguma coisa, a música popular é uma manifestação da arte e da cultura popular, quando você fala de habitação popular... A assessoria é um dos pontos para fazer essa alteração de imposição. Nunca será um lugar confortável para se trabalhar, nunca existirão muitos também. É uma tendência do mundo de negócios e da sobrevivência que isso vá diminuindo, você vai fazer consultoria para ganhar dinheiro para fazer projeto e por outro lado a remuneração de projeto nessa áreaé muito pequena, porque o trabalho investido para fazer um projeto de assessoria é muito diferente do trabalho investido para fazer um projeto convencional. Tem reunião de final de semana em todos os finais de semana, se trabalha como louco durante a semana para preparar material pro final de

semana. Se todo mundo constrói com bloco sical, você não vai, vai ter que procurar outro material, testar outro material. é um trabalho mais tensionado na própria execução do trabalho, se busca um padrão diferenciado de resultado e ele é tensionado nas relações, nas relações de contrato, nas relações de execução do trabalho. é uma opção difícil. Quando a gente tinha o programa do Funaps, tinha uma demanda por assessoria, algumas conseguiram desempenhar bem, outras foram aprendendo pelo caminho e outras desistiram. Sempre tem a ver com o processo de formação profissional, a escola pode te formar melhor ou não para isso, mas, enfim, eu acho isso das assessorias. Hoje tenho contato com umas que se tornam cada vez menos assessorias e outras que tentam ainda se manter com altos custos e as vezes aumentam tanto a velocidade deste discurso que acabam se equivocando em algum momento. Eu acho que a gente ainda está nesta posição de querer mudar num pulo e não acho que é suficiente para algumas coisas. AC _ Qual a principal troca que você acha que existe entre os assessores e a comunidade? O principal aprendizado para os assessores? RR _ Talvez seja o reconhecimento social da profissão e da importância do trabalho porque tem um impacto social muito diferente você trabalhar junto a uma comunidade para montar um conjunto habitacional, ou uma vila 134


viver deste trabalho. Minha vida profissional foi praticamente voltada para isso. Montei um escritório que depois tinha a ONG junto e se a gente pegava algum projeto que não era de habitação, era para pagar as despesas que a gente tinha na ONG. Com todo mundo foi assim, isso não foi nenhum mérito, era uma fase meio complicada. Depois, trabalhando no setor público, continuava a ser o mesmo objeto, de tentar abrir espaço para políticas de habitação, políticas participativas. Eu não trabalhei só com habitação, fui trabalhar em outros setores, trabalhei com a política de projeto em Santos, trabalhei na EMURB aqui em São Paulo, mas a postura era sempre essa de abrir espaços para práticas semelhantes. No fundo, não tive escolha, estava tão imerso nisso, não que tenha me feito falta ou talvez até agora sinta falta, sempre falo ‘vamos participar de um concurso’ e não é só falta, tem a desilusão com onde chegaram as coisas, mas eu acho que de uma forma geral as pessoas, com as quais eu convivi nesse período de formação, tiveram uma disposição muito forte para este lado do trabalho. Isto foi definitivo para muita gente. AC _ O que você acha da assessoria técnica enquanto profissão hoje, que é pouco fundamentada e estimulada, e enquanto profissão a ser seguida? RR _ Por definição é uma posição de luta, de frente de batalha, porque a assessoria 135

técnica é o ponto de transformação da condução daquele projeto e daquela construção, que é fora de padrão. Na hora que aquilo virar padrão, a gente não precisa chamar de outra coisa porque todo mundo fará fazendo igual. O fato dela ser uma posição de batalha, sem fantasias sobre a batalha, sempre será um sacrifício de trabalho, não que a nossa profissão tenha opções fáceis, mas esta sempre vai ser, porque você estará sempre discutindo com alguém do poder público que quer fazer mais barato, menor e você vai estar querendo mudar essas questões junto ao poder público, vai estar querendo fazer uma casa de melhor qualidade, maior área, participação da população. Daí você vai ter uma atividade profissional catalisadora de atritos, você vai ter atritos com a organização do movimento que hora ou outra quer manipular, os políticos que vão querer que você ajude uma certa pretensão política. Sempre será um lugar desses atritos, pode ter um lugar mais tranquilo para trabalhar. Por outro lado, a sensação de que o seu trabalho faz diferença, tem uma grande chance de você sentir isso na prática da assessoria. Se você for trabalhar numa grande empresa, com o poder público, nem sempre você consegue inserir a sua ideia, mas vai ter uma adequação. Eu acho que ela só se chama assessoria técnica para dizer que a gente está querendo avançar um pouco, se não estiver avançando, não é mais assessoria


de casas e você fazer um edifício isolado. O reconhecimento social é um refinamento da formação. Tem uma intensidade de troca que é importante e é difícil falar que isso é mais importante que aquilo. Você traz para você muitas lições que são diferentes para cada pessoa, dependendo jeito como você se relacionou, você deixa coisas que são diferentes também dependendo desta relação, você percebe simplificações possíveis na realização deste fazer, percebe complicações que ninguém nunca te falou que existiam, há um amadurecimento muito grande. Esse trabalho de assessoria te prepara para trabalhar questões cada vez mais complexas, por exemplo ser chamado para trabalhar com um processo de elaboração de política pública em que você não interage se não tiver feito esse trabalho de assessoria, não tem como dizer que vou te ensinar as coisas como acontecem na assessoria, não dá. Tem que se envolver ali. Claro, dá para formatar um curso de assessores e formar o cara para ir e não é que ele vá ter a sua vivência. Talvez isso, essa intensidade vá te preparando e de sorte, qualquer caminho profissional vai te preparar para ser um sênior na área que você escolheu. Então o reconhecimento social é isso, a gente precisa de seniors nessa área, precisamos de pessoas com experiência nessa área. Nessa área e desde esse ponto de vista e não nessa área com o ponto de vista convencional das grandes construtoras, do ponto de vista

do assessor que quer trabalhar o projeto participativo, quer a gestão. Então precisa formar gente sênior nessa área. Talvez essa seja uma forma de reconhecimento social, porque a questão vai ganhando densidade para a discussão. AC _ Hoje é possível trabalhar essas questões mesmo dentro dos programas de governo? RR _ Sempre é, sempre é o resultado de esforços individuais e ou você consegue convergir os esforços e aí você pode ter uma mudança. Existem os mitos, vou falar dela porque gosto de falar mal dessa coisa que é a CDHU. Sempre que você vai falar com alguém que trabalha na CDHU e as pessoas sempre te respondem que a companhia tem outras normas, e quem é a companhia, uma senhora que fica sentada ditando as normas? são as pessoas que estão lá. O Ministério da Educação são as pessoas que estão lá, o Ministério da Saúde são as pessoas que estão lá. Então, eu acho que é possível, as pessoas precisam ir para lá olhando que é possível. Com isso a gente volta para a questão da formação que é um pouco do porque eu vim parar na faculdade, que era onde eu achava que poderia contribuir de alguma forma para isso. Então é possível, agora se é provável, para essa probabilidade essas pessoas precisam se encontrar nas instituições, nos espaços em que eu vivi, institucionais, as coisas aconteciam assim, com pessoas que 136


enfrentavam a instituição. Tinha a companhia, a HABI, tinham coisas que eram impossíveis, mas você fazia. Por exemplo, na época em que a gente fazia mutirões, o dinheiro mudava todo dia e a gente tinha que pagar os mutirões por um período de trinta dias e se você pagar com o valor do primeiro dia, o seu trabalho do mês, do trigésimo dia não tem valor; se escolhesse o meio do para pagar qual você ia escolher de referência? Então era super complicado, a gente tinha a TRD que chamava taxa referencial diária que nos dava a UPF, unidade padrão de financiamento, que dava um valor mensal. O financiamento era dado em UPF, mensalmente. Se você pegava no dia primeiro de janeiro, no dia primeiro de fevereiro quando fosse pagar, você pagava 80% a menos, era um absurdo. Eu queria corrigir diariamente os pagamentos, se você fosse pegar o pagamento no dia 13 você ia pegar a TRD daquele dia para pagar. Mas, como nos contratos não aparecia a TRD, só aparecia a UPF, não podia fazer. Eu achava isso completamente absurdo. Pedi para o pessoal da prefeitura, do sistema de finanças, tentar achar um jeito e não acharam. Falei com a Caixa Econômica Federal e a Caixa pagava as empreiteiras em TRD, eles me falaram, mandaram uma carta. Passei a pagar em TRD- se a Caixa pagava. Então é possível, mas você precisa ter algumas articulações que permitam você descobrir um caminho. Tem que achar que pode melhorar. 137


Marta Gentha - entrevista realizada em janeiro de 2012 A _ Como você ficou sabendo do laboratório? G _ Então, eu acho que tinha um grupo que era mais preocupado com as questões sociais, e este grupo - e isso pode ser fantasia minha, o Buñuel disse que metade das coisas que ele escrevia das memórias dele eram coisas que ele tinha inventado, a fantasia dele do que ele queria que tivesse sido feito - bom, a ideia é que eu me lembro de várias reuniões para a formação do laboratório. Eu, Juan Villá, Nabil, Eulália, conversando como ia acontecer, como ele ia funcionar. Acho que Sérgio De Simone, não sei por que me lembro do Sérgio de Simone participando, de qualquer forma, a faculdade tinha uma conotação, um enfoque em habitação popular. Me lembro de reuniões e de negociações inclusive com o dono da escola, para ver qual sala ia ser; aí, me lembro do Villá arrumar um projeto de móveis feitos de sarrafos que a gente construiu. Tinha poltronas, estantes, mesas; tudo isso nós construímos, a equipe formadora do laboratório. Tinha Patrice, Malu e, quando o grupo se formou, tinha gente com bastante experiência em projeto, que era o caso do Vitor e do Juan Villa e tinha gente que tinha só experiência na teoria, que era o caso do Nabil. O Nabil era recém-formados. Eram crias da Ermínia Maricato e a Ermínia

era quem na FAU, naquele momento, falava de habitação popular, falava de design para população de baixa renda, como se podia fazer móveis para caber nos apartamentinhos do BNH, essas coisas e, o Nabil tinha a teoria, vinha com toda a justificativa teórica e o comprometimento político. O Nabil era amigo pessoal da Erundina, então eu fui com ele a várias reuniões que a Erundina fazia para a questão da habitação. Tinha também o Cândido Malta Campos, que tinha um trabalho na pastoral, na igreja católica. Então, a gente trabalhava todas as tardes. Eu tinha aula de manhã e à tarde era monitora do laboratório. Eu tinha um trabalho e, vamos dizer assim, era um estágio, não era assim 2 horas por semana. Os professores, eu não tenho certeza, mas eles tinham, pelo menos, duas tardes de dedicação e, então, tinha um rapaz chamado Durvile, que desenhava, e ainda desenha, perfeitamente. Ele fez estes cartazes. Não sei se o Nabil fala dele. Eram cartazes com desenhos muito legais para ir em cada favela discutir a urbanização da favela: o que precisava, que precisava se reunir, precisava discutir os problemas da favela, ‘levantar’ as coisas que precisavam ser feitas na favela. Então, naquele momento, tinha as comunidade eclesiais de base, que estavam muito envolvidas com o movimento de favelas. Eu me lembro de um cara, que chamava-se Olímpio. Ele era ex-metalúrgico da mesma 138


greve do Lula do ABC e, como ele era das comunidades eclesiais de base, passou a ser uma das lideranças da zona sul. Então, como ele, tinha nas outras áreas da cidade, grupos, como o MDF que eu falei, discutindo isso e indo em todas as favelas discutir a urbanização, canalização de córregos, todas as problemáticas da favela em si. Com isso, você ia, aos poucos, levantando lideranças, criando lideranças. Você conversa com um monte de gente apática sobre um problema que é deles: rato entrando nas casas, esgoto transbordando, e não tinha nem esgoto, córregos transbordando, os ratos na beira do córrego, jogando lixo em qualquer lugar. Aos poucos, vai levantando alguma liderança e essas lideranças vão assumindo papéis. Então, junto do Seu Olímpio, tinham que sair da reunião algumas pessoas que topassem ir lá pressionar o prefeito; então, dia tal, tem reunião com o prefeito, aí o prefeito não aparecia, mandava alguém, mas, mesmo assim, juntava gente na prefeitura para resolver aquele problema e saía no jornal. Eles diziam: mas vocês não têm proposta. Então, vieram no laboratório e a gente fez as propostas, a gente visitou as favelas e fez as propostas do que precisava fazer naquele momento. Acabou que, o cara tinha que se comprometer de algum jeito, porque juntou um montão de gente e causou uma certa visibilidade. A _ Havia alguma articulação dos 139

movimentos da zona sul e de outras áreas de São Paulo? G _ Tinha o início disso. Essas primeiras reuniões em que a gente foi levar propostas, estas primeiras manifestações à porta da prefeitura, com relação à moradia, no meu ver- mas de repente o Reginaldo e o Nabil podem ter teorizado muito mais a partir disso e eu não tenho a menor ideia, elas foram a primeira vez que as pessoas começaram a ver que não era um problema só dele, não era que o rato tinha entrado na casa dele, que era uma coisa que acontecia com 1 milhão de pessoas. Quando estive conversando com o Patrick há um tempo, eram 800 mil favelados, agora são dois milhões e 400 mil favelados. Todos eles com os mesmo problemas. Transborda o córrego, desmorona o barraco, rola pedra em cima do barraco, sempre foram áreas de risco, sempre foram os mesmos problemas. Então, a população, pressionando o Reinaldo de Barros (depois você procura em que época ele era o prefeito) acabou se fortalecendo como grupo, que a Marta Suplicy, por exemplo, acabou com os grupos. Porque ela falava: ‘você é meu amigo, meu colega de partido, não pode me pressionar’ e, eu vi várias lideranças murcharem e não pressionarem mais. Quando você ganha a prefeitura e alia o movimento ao governo, não dá, não pode. O movimento não pode ser da situação, ele é sempre o cliente da política e não a própria política. Então, quando


entram prefeitos petistas, esvazia-se o movimento, em vez de melhorar as coisas. E isso, mesmo com a Luiza Erundina aconteceu isso, apesar de que com a Luiza Erundina tinha uma característica diferente, de como estava todo mundo com muita vontade de que as coisas dessem acontecessem, ela acabou concedendo muito mais coisas do que um prefeito normalmente concede. Então acabou podendo acontecer um monte de coisas na época da Luiza Erundina, se bem que, depois, ela foi processada. Nabil, Vitor, todo mundo que esteve na administração teve processo no tribunal de contas, imagina. A _ Junto de vocês, tinha algum outro grupo? G _ Existiam outros grupos, por exemplo (já não sei mais as datas): tinha um grupo que se chamava Associação em Defesa da Moradia. Esse grupo também trabalhou com a gente desde o começo. Era um grupo de advogados que tinha na Leste, na Oeste, na Sul e que depois viraram os políticos do PT. Adriano Diogo, Henrique Pacheco, eram os caras da ADM daquele momento. Uma das coisas mais graves é o que está acontecendo hoje, com o despejo de mais de 5 mil famílias [Pinheirinho], e isso só se consegue deter com advogados. Hoje foi um cara na televisão falar que se eles fossem ao Tribunal Superior de Justiça, eles conseguiam embargar esta liminar de despejo. Então eles da ADM faziam isto, iam embargar o

prefeitos petistas, esvazia-se o movimento, em vez de melhorar as coisas. E isso, mesmo com a Luiza Erundina aconteceu isso, apesar de que com a Luiza Erundina tinha uma característica diferente, de como estava todo mundo com muita vontade de que as coisas dessem acontecessem, ela acabou concedendo muito mais coisas do que um prefeito normalmente concede. Então acabou podendo acontecer um monte de coisas na época da Luiza Erundina, se bem que, depois, ela foi processada. Nabil, Vitor, todo mundo que esteve na administração teve processo no tribunal de contas, imagina. A _ Junto de vocês, tinha algum outro grupo? G _ Existiam outros grupos, por exemplo (já não sei mais as datas): tinha um grupo que se chamava Associação em Defesa da Moradia. Esse grupo também trabalhou com a gente desde o começo. Era um grupo de advogados que tinha na Leste, na Oeste, na Sul e que depois viraram os políticos do PT. Adriano Diogo, Henrique Pacheco, eram os caras da ADM daquele momento. Uma das coisas mais graves é o que está acontecendo hoje, com o despejo de mais de 5 mil famílias [Pinheirinho], e isso só se consegue deter com advogados. Hoje foi um cara na televisão falar que se eles fossem ao Tribunal Superior de Justiça, eles conseguiam embargar esta liminar de despejo. Então eles da ADM faziam isto, iam embargar o 140


despejo e a gente entrava como o urbanizador, dizendo que nesta área dá para fazer algo decente- canalizar o córrego, arrumar dinheiro para a construção das casas, fazer o centro comunitário. Nossa proposta era fundiária, a resolução do problema físico, e a proposta da ADM era a proposta de legislação. Fundiária eu não sei o que quer dizer, às vezes é a legislação também.

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Eulália Negrelos - entrevista realizada em fevereiro de 2012 A _ Como era a relação entre os participantes do laboratório e os moradores e dos líderes do movimento? E _ O laboratório de habitação tinha o objetivo precípuo de trabalhar com a extensão universitária junto aos movimentos ou junto à cidadania, como a extensão. Mas, a escolha política foram os movimentos, porque era o momento dos novos atores entrarem em cena, como diz o Eder Sader. Então aquele momento era um momento de redemocratização, em que os movimentos já não eram clandestinos, como na época da Ermínia, porque o movimento de loteamento clandestino era clandestino e ela é heróica nesta história, heroína do ponto de vista político. Mas nós já estávamos com os movimentos, já tínhamos passado pela greve dos quarenta dias no ABC, então os movimentos já estavam fortalecidos, e nós tínhamos o papel de... nós íamos às reuniões, sempre com um colega professor, evidentemente, mas íamos a todas as reuniões- tenho fotos disto tambémdesenhávamos juntos, acompanhávamos obras. Então, estar com os movimentos era muito importante para a politização do próprio

estudante e a partir disto também uma troca com o movimento. A _ Era uma relação que ia além do período de projeto e de mutirão? E _ Era. Nós trabalhávamos bastante e inclusive não dava quatro horas por dia, dava mais, bastante mais. Até as reuniões eram noturnas, em geral, e eu cheguei a perder aulas porque, eu me lembro, eu saía às seis horas da tarde da Belas Artes, depois de quatro horas de prancheta (sem computador), pegava o ônibus das seis ali no Correio, na Luz e chegava às oito na reunião- duas horas de ônibus. Realmente, ia além e tinha uma relação política muito forte. A _ Dá para falar que teve uma articulação entre o laboratório e o movimento por moradia da cidade de São Paulo? E _ Dá para falar. A intensidade da articulação, teria que ser medida ou usar a bibliografia já concebida, o que o Nabil escreve. Eu tenho uma discussão sobre a relação movimento-técnicos-partido, mas já a partir da Luiza Erundina. Então eu não medi, eu trabalhei, a intensidade desta relação no Lab-Hab. Mas dá para falar sim, que realmente existia uma relação muito intensa e que, tanto o aluno nosso atendia a militância política com os movimentos, quanto os movimentos respeitavam o nosso 142


papel de estudantes e nos colocava desafios. Um parenteses importante nesta questão do ensino e dos movimentos são os limites do projeto. Então isto foi muito importante na minha formação. Então até quais os limites em que o meu saber é importante, diferente do saber do morador? Esta era uma grande discussão entre nós, dentro do Lab-Hab, porque nós víamos muitas vezes, por exemplo: densidades- depois apareceu de novo no Heliópolis, no meu mestrado você vai ver. Então, naquele momento, o movimento queria o lote de 100m2, 125m2, porque né... eles estão no aluguel, eles estão num cortiço, eles estão numa favela, então, o grande ideal de espaço era o lote de 5 por 25 e, em alguns lugares da cidade, este padrão de ocupação, este parcelamento, é adequado. Naquele momento, em 83 por aí, para se fazer um parcelamento na periferia, de 5 por 25 o lote, tudo bem, agora, se você está no centro, esse padrão começa a ser inadequado, dados os vários fatores, o preço da terra, a proximidade com a infra[estrutura], com os comércios, com os trabalhos, enfim. Então, eu me lembro bem, para a minha formação, o que significou esta calibragem entre a experiência técnica - que é fundamental, e como ela deveria estar sendo oferecida ao movimento que tem uma experiência cotidiana, da necessidade, 143

da dificuldade, também dos seus preços altíssimos da moradia, da sua ocupação dos mananciais, enfim. Então, esta calibragem, realmente, para mim, foi muito importante. Eu entrei, na metade da minha formação, nesta discussão, tanto que, depois, eu pude contribuir em outros lugares, na prefeitura e tal, porque a gente foi formado nisso. A _ Essa é uma discussão que você só faz na prática? E _ É uma discussão que fazer na prática é muito importante. Você faz na academia a partir da experiência de quem passou por isso. Não dá para fazer a partir do nada, porque mesmo se você fizer em cima de textos, é a partir de quem passou por isso. Não estou dizendo que você tem que ir para a favela para aprender alguma coisa- não; você tem que saber filtrar que bibliografia utilizar, que colegas chamar para dar aula, enfim...porque, essas coisas... um pesquisador que seja sensível, que passe um tempo no movimento, que entenda o movimento, que não vá preconceituoso para lá. E nós estávamos ali meio que como massa de modelar, né? Primeiro que eram os primeiros anos, eram os anos finais da ditadura e os primeiros de uma possibilidade de falar abertamente. Para os nossos professores era mais forte isto. Para mim não, porque em 80 eu


Joan Villa entrevista realizada em 2012 (realizada conjuntamente com Tomaz Lotuffo, parcialmente perdida) Villa _ Até me pediram um texto um pouco sobre a história e etc e perspectivas de futuro. É um tanto quanto recente o texto, e no texto, o que eu colocava como questão? Olha, ele só surgiu, na verdade, só surgiu porque, naquele momento, havia- antes daquele momento, porque o laboratório é criado em 82, bem antes, sei lá, uns 4, 5 anos antes, é onde na cidade de São Paulo começam a emergir movimentos sociais com focos em diversas questões, com foco na creche, em transporte, etc, etc e, no fundo, toda a luta contra a ditadura era uma luta por direitos e, obviamente, no pano da sociedade civil, o direito das pessoas era o direito de ter os filhos numa creche, o direito de transporte decente com horários regulares, etc, etc, inclusive habitação. Os movimentos de habitação não foram tão importantes quanto os de creche e de transporte, do ponto de vista da movimentação da gente, porém, também acabaram tendo uma importância, os movimentos por habitação- o que cabe distingui-los dos movimentos por terra, que foram uma forma anterior do movimento

por habitação, bastante mais primária, porque no fundo no fundo, era, digamos, uma reivindicação que tinha eco em segmentos da população de uma imigração razoavelmente recente, enfim, essa luta por terra é uma ideia que tem muito a ver com a luta no campo e até com a reforma agrária, em última análise. Mas o movimento por habitação já era mais sofisticado, quer dizer, ele é que acaba entrando e acaba depois questionando a política, as políticas públicas levadas a termo principalmente pela CDHU e pela COHAB e, neste questionamento- questionamento em todos os níveis: desde a localização da terra, à natureza dos projetos, à qualidade das construções e etc. Então, quando eles começam a reivindicar, estes movimentos, um grau de autonomia maior, para poder decidir aonde eles querem morar, como eles querem as casas e etc,é que eles acabam por reivindicar que venham a ter uma assessoria técnica própria. Então, o laboratório de habitação só foi possível de existir por uma conjunção de fatores muito especiais, muito. Havia uma escola que estava começando na cidade de São Paulo, FAU- Mackenzie, você tinha que outras escolas de arquitetura? a FAU-Santos em Santos, a PUC de Campinas, em Campinas e em Guarulhos. Mas, na cidade 144


de São Paulo, naquele momento, só tinha FAU e Mackenzie, então a Belas Artes, na cidade, era a terceira escola que surgira. Essa escola não era qualquer escola, era uma escola que, desde o primeiro dia, ou melhor, que o próprio projeto político pedagógico foi feito pelo Paulo Bastos- Paulo Bastos, não sei se vocês conhecem, enfim, foi um arquiteto formado pela FAU, com uma presença como arquiteto e como profissional importante, era um homem ligado ao Partido Comunista Brasileiro, foi preso político- mesmo tendo relações razoavelmente boas com segmentos da cúpula militar, porque ele por concurso ganhou, um concurso de arquitetura, a sede do segundo exército, que fica atrás do pavilhão do Ibirapuera, né. É um projeto notável, me lembro perfeitamente que ele foi apresentado numa bienal e só não ganhou o prëmio porque havia um outro projeto que era a FAU-USP e, evidentemente, a FAU-USP era um projeto muito especial. Mas enfim, o Paulo Bastos faleceu recentemente, ele, o Álvaro Puntoni, pai do atual Puntoni da Escola da Cidade, e um outro arquiteto, que era, que faleceu, que era o Jorge Carón. No final, dos três, Paulo Bastos, Puntoni e Jorge Carón, foi o Jorge Carón, dos três que redigiram o texto do projeto pedagógico, que foi encaminhado ao MEC para a aprovação desta nova escola145

dos três foi escolhido, pela mantenedora, o Jorge Carón para dirigir os primeiros anos da escola. E o Jorge Carón dirigiu os primeiros anos da escola até que teve aquela puta greve que mandou embora todo mundo e etc. O Jorge Carón tinha, eu era bastante amigo dele- a gente era bastante próximo, eu acho que ele transitava, quer dizer, era uma geração que transitou do Partido Comunista Brasileiro para a LIBELU. Este cenário político, mais ou menos, vocês conhecem alguma coisa? Então, agora, vou te contar a história dentro da Belas Artes, porque de um lado, fique claro de que é irrepetível porque não existem mais os movimentos sociaispelo menos não existem com o vigor e a importância com que existiram: viraram todos funcionários do PT, todos, quer dizer, a partir de um dado momento, todas as lideranças do movimento por habitação, por creche e por transporte enfim, viraram funcionários orgânicos do Partido dos Trabalhadores. A partir deste momento, o partido toma o poder, o poder na administração pública, porém, a sociedade, evidentemente, ficou extraordinariamente enfraquecida, não se fazem lideranças da noite para o dia. Na Belas Artes, qual é a história? Por quê na Belas Artes isso? Olha, eu, pelo menos, a história, a vejo de uma certa maneira.


1900- deixa eu ver- em 1900 e... não tenho muito claras estas datas, mas enfim, por volta de 5, 6 eu acabara de chegar da Espanha e recebo um telefone do Maitrejean, vocês ouviram falar do Maitrejean? Jon Andoni Vergareche Maitrejean, ele foi um dos três arquitetos aposentados compulsioriamente na FAU- Paulo Mendes da Rocha, Villanova Artigas e Maitrejean, se você pegar a história da FAU você vê isso, no próprio livro do Artigas tá lá, quando o Artigas faz a defesa do doutoramento dele, quando lhe é dado o título de doutoramento honoris causa, no livro do Artigas, aquele livro feito pela fundação Lina Bardi, naquele livro, de capa vermelha e tal, tá lá, você pode pelo menos ver, tá lá, várias vezes. Então, o Maitrejean, ele era presidente do sindicato. Um dia ele me liga e diz “Joan, eu soube que você, na Espanha -onde eu tinha estado alguns anos-, você chegou a participar de uma cooperativa de arquitetos, não é?” eu disse “É” - “ Pois bem, nós estamos tentando organizar uma cooperativa aqui no sindicato de arquitetos para trabalhar na periferia. Você topa vir aqui uma noite para relatar tua experiência?”. E nisso eu fui e acabei me envolvendo na montagem desta cooperativa. Neste momento, provavelmente, nós estávamos mergulhados numa crise razoável, pelo menos no âmbito da construção

civil tinha muitos arquitetos sem trabalho, e, lá no sindicato, nas primeiras reuniões em que eu fui, havia algo entre 200 e 250 arquitetos reunidos em assembleia e a primeira vez que eu vi eu assustei, porque era muita gentenaquela época, 200 era muito mais do que 200 hoje. Tomaz _ Quantas escolas de arquitetura existiam? Villa _ Não chegava a 80, no país todo. Hoje nós estamos com 200, né? Bom, dá-lhe reunião, enfim, a coisa... começou a cair gente fora, porque não se via um horizonte mais concreto- “ Trabalhar na periferia como, de que jeito, quem vai nos dar trabalho?”. Aí, eu dei um passo que... eu conhecia por outras razões vários padres da zona leste, na região de São Miguel. Por quê? Porque eles respondiam, era uma ordem, que não me lembro qual era, respondiam à diocese de Bilbao- eram espanhóis, portanto, além de bascos, os caras. E aí eu liguei para um deles, que era o padre Zé Maria, que, na hierarquia, era o capo. Eu falei “Olha, eu preciso arrumar trabalho para arquitetos que querem trabalhar na periferia. O que eu posso fazer? Como você pode me ajudar?”, ele falou “O que eu posso fazer... É gente boa, gente de confiança?”, eu falei “ É. Melhor gente.” e ele falou “ 146


Vou pedir aos padres, porque não é só São Miguel Paulista.”. Bom e aí o que aconteceu? Aconteceu que os padres, em missa de domingo, durante um mês, portanto, durante 4 domingos, eles foram avisando que no dia tal, no domingo, um grupo de arquitetos virá aqui e etc. Eu até tenho aqui materiais que eu levei para essa semana sobre o Laboratório que ocorreu na Belas Artes. O Nabil tem muito material desta época, eu tenho pouquíssimo. Mas, de qualquer maneira, só para vocês visualizarem esta história, isso ele não tem, porque o Nabil não fez parte disso. T _ Saiu na Módulo? V _ Do laboratório saiu, saiu de quando a gente foi a um congresso em Salvador. Saiu essa matéria na Módulo. T _ Vou pegar na biblioteca então. V _ E aqui também, vocês já viram esta matéria, da AU? Do caminho possível? T _ Não, você viu? A _ Sim. T _ Módulo 73. V _ Anota isso... e a AU é a número 3, acho. É, AU número 3. A biblioteca tem a coleção completa eu suponho, né? A _ Tem. V _ Eu não sei, estou relatando uma questão que para vocês tenha algum sentido. T _ Essa questão da igreja, é uma questão 147

em particular que me interessa bastante. V _ Mas tem uma foto... Olha, isso aqui é uma reunião em São Miguel Paulista antes de começar o trabalho. Esse era o salão da igreja, não havia poucos arquitetos aqui. Esse com muitos anos menos sou eu, e o Carón, deixa eu ver... olha, aqui eu o identifico direto, o Carón é este, com barba, cabelo longo. Bom, isso é em São Miguel Paulista. Aí num domingo combinado, dentro do salão, se montou uma cena, que era assim, um puta mesão, que era assim, uma espécie de... como é que chama isso em que as pessoas vão para tirar documento rápido e tal? A _ Poupa-tempo? V _ Poupa-tempo. Parecia um poupatempo aquilo com um monte de cadeiras. E evidentemente de um lado só arquitetos e do outro lado só moradores ali da região de São Miguel. “ Doutor!- e era sempre a mesma coisa- Olha eu tenho um terreno assim e assim...”, o outro: “Olha, eu tenho uma casa que tá meio que caindo, poderia fazer talvez um reforço de alicerce...”, “Uma filha vai casar e eu to querendo fazer um puxadinho...”. Quer dizer, aí ia pintando uma demanda concreta. Todo mundo feliz, né, porque já se via trabalhando. Veja que havia muito desemprego aí. Para muitos era um opção de vida, ideológica e etc e para outros era


uma possibilidade de simplesmente começar a exercer uma profissão. Muito bem, e esta cena durou, aproximadamente um ano e meio. Eu não acompanhei até o fim, porque chegou um ponto em que eu cheguei para o Jorge Carón e falei “Olha Jorge, o negócio é o seguinte, - a gente começou a fazer um balanço, os mais velhos, mais experientes um pouco e etc, começamos a fazer um balanço daquilo que a gente queria.- Olha, a gente vai ter que ter, não sei se isso vai ser possível um dia, um outro tipo de arquiteto, quer dizer, um cara com outra formação, quer dizer, porque... Bom, vou te dizer por onde a gente começou a pensar de que, enfim, que a gente- a gente arquitetos- não estávamos preparados para fazer isso. Um dia á noite -os projetos eram desenvolvidos (projetos, porque tinha coisas que eram requerimentos- a gente procurava dar apoio em todos os sentidos, das pessoas para a prefeitura...e,às noites, no sindicato, que era na rua Avanhandava, não era na Vila Inglesa não, era na rua Avanhandava no alto, num prédio alto lá, à noite se faziam estes projetos), numa noite, um arquiteto chega, me mostra um projeto e diz “ Vem cá, queria saber tua opinião.” Eu olhei o projeto, bom, o projeto era o mais classe média e burguês possível. Quer dizer, até... tinha suítes, tinha

closets, tinha os termos em inglês sempre. E, o que me chamou a atenção, eu achei muito engraçado, uma laje plana, com uma pequena laje abrigando, e ali era o solarium, em latim, tal qual solarium. É inimaginável, um cara que monta um programa, que ajuda a montar um programa desses para alguém, tá muito longe da cultura da periferia, daquilo que as pessoas podem efetivamente bancar. Porque não era um cliente excepcional, depois eu me interessei pelo caso e, aliás, já conhecia, quando eu vi para quem era, na hora eu me liguei. Quer dizer, era uma coisa completamente inadequada. O balanço que a gente fez com o Carón e outros foi o seguinte: Isso vai durar um certo tempo, mas os arquitetos vão sair queimados de São Miguel. Porque havia uma demanda também, que precisava ter um certo conhecimento técnico, não grande coisa, mas, por exemplo, um reforço de fundação- você não vai chegar para um cara cuja renda familiar é de 3 salários mínimos e dizer que ele precisa contratar o calculista de fundações, porque o vizinho de repente é um mestre ou um pedreiro e se ouvir vai cagar de rir e dizer: “Não, deixa que eu faço- pega essa viga, põe um macaco, levanta um pouco, faz um reforço por baixo.”, mas sei lá, eram 148


ditas estas coisas. Quer dizer, as maneiras de proceder, não eram as maneiras adequadas para o lugar onde estava-se trabalhando. Nem quando era um projeto novo e nem quando era, vamos dizer, remendos, porque, com a habitação, qualquer problema que tivesse na casa era um problema de habitação. Tinha gente que vinha dizer que a roupa apodrecia nos armários de tanta umidade, aí você ia no lugar e via que tinha um olho d’água no recuo e que, portanto, todo o chão tava encharcado e que a água chegava à casa. Era preciso um arquiteto com um conhecimento outro. Ela durou mais algum tempo, mas, enfim, as pessoas foram cansando. Tanto cansaram os arquitetos de ir sábado e domingo trabalhar, quanto cansaram as pessoas, porque muitas delas, talvez a maioria, viram que dali não sairia solução nenhuma. E um dia o Jorge Carón me liga e diz assim: “Olha, lembra das nossas conversas? Pois bem, a chance de poder vir a formar quadros técnicos para trabalhar na periferia talvez exista aí na Belas Artes que vai começar um curso assim e assim.”. Aí ele me convida para ser professor lá.

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Roberto Pompeia - entrevista realizada em julho de 2016 P _ A AMAI tinha essa coisa de casas geminadas e tinha essa questão de ter uma topografia mais complicada e a implantação foi feita em lotes que eram defasados. Havia uma geminação íngreme. Então era uma coisa complicada, você tinha que trabalhar com pequenos muros de arrimo, painéis embaixo, painéis em cima e resolver a questão de infiltração entre uma casa e outra. Porque uma coisa é quando você tem uma única parede e uma única cobertura, outra coisa é quando tem duas paredes e duas coberturas separadas. Aí entra água, enfim, tinha problemas técnicos. Mas, lá aconteceu uma coisa interessante que rolou com as casas de esquina. As casas de esquina eram casas que não ocupavam os cinco metros do lote, ocupavam menos, tinham duas frentes. Então era possível passar para o fundo. Então, quando eles viram que era possível passar para o fundo, decidiram em assembleia que fariam todas as casas de esquina, porque aí você tinha uma passagem entre uma casa e outra no fundo. E foi um desastre. E a culpa foi muito minha, de uma inexperiência. Porque a assembleia decidiu, eu defendi todas as questões, “não pode, é muito melhor assim,

porque assim não tem essa água que vai descendo...”. (Respondiam) “não, queremos, queremos, queremos”. A assembleia era soberana e decidiu. Nesse momento, eu devia ter ido embora, porque “eu não sou um técnico e eu não sirvo pra vocês”. Mas eu não tive essa coragem, porque aquilo envolvia toda a luta pela moradia, a gente tinha que fazer daquilo uma coisa exemplar e etc. Então eu fiquei quieto, e disse “vamos ver como eu resolvo”. Até hoje eu estou sofrendo com isso. Claro, faz uma coisa meio acochambrada, resolve, mas tecnicamente não é a melhor coisa. Ainda bem que é descida pra norte, então bate uma ensolação melhor, mas o recuo entre uma casa e outra fica ridículo. Mas o que você quer saber da AMAI? A _ No meu trabalho ,uma parte que eu não consegui fazer é discutir o projeto. Porque há uma diferença na qualidade de projeto dessa época para o que a gente tem hoje, mesmo com o Minha Casa Minha Vida, porque todo o movimento de moradia teve lá seu ápice. Mesmo que não idealmente, mas de conseguir fazer o projeto de habitação ter mais relação com o que era vontade dos moradores e necessidade. R _ Eu entrei no meio do caminho no projeto do Grajaú, que foi feito um projeto de habitação inicialmente da Belas Artes. Então 150


toda a parte de urbanização já estava pronta. Eu peguei o projeto de urbanização pronto e na época eu questionei, porque uma coisa é escalonar casa por casa, criando pequenos muros de arrimo, pequenas drenagens, criando enfim, aquela espinha de´peixe. Outra coisa é pegar uma curva de nível e colocar todas as casas. Eu questionei, mas não dava, estava pronto. Então eu fui o responsável, logo que entrei na UNICAMP, por pegar e desenvolver esse projeto. E quando eu fui sentar com a comunidade não era bem isso que eles queriam. Bom, aqui é o seguinte, o laboratório de habitação da Belas Artes, o começo de tudo, e aí o desenvolvimento dessa tecnologia que foi desenvolvida inspirada em técnicas desenvolvidas no Uruguai, de fazer aquela laje de tijolo maciço. Trouxeram pra cá e fizeram de tijolo baiano, o primeiro painel. Nesse momento todas as discussões de urbanização, desenvolvimento das casas eram feitas em comunidades, aqui é uma praça de São Miguel. Primeiro projeto, Recanto da Alegria, a única coisa que sobrou da favela foi o campo de futebol, a grande praça, o arraial, o lugar do encontro, o lugar da feira, do futebol, da missa, da briga... Aí entra a UNICAMP. Esse sobradinho tinha sido projetado para ser executado no Grajaú, no Grajaú era a AMAI. 151

O Recanto da Alegria é Grajaú, mas esse sobradinho foi pensado é o arquiteto Joan Villa, não foi viável, teve que fazer outro projeto. Essa casinha que foi a primeira do laboratório de habitação da UNICAMP também não foi executado no Grajaú, porque na AMAI, o lote não era esse, não tinha um lote de 10 de frente. Aí a gente desenvolveu essa tecnologia, que começou a ser feita na FEBASP, no laboratório da UNICAMP, em todos os níveis e se deu muito bem, foram milhares de casas construídas. Essa foto é o mutirão da AMAI. Ela é muito importante em vários sentidos. Nessa época o prefeito da cidade era o Jânio Quadros e a COHAB, assim como CDHU e etc, são fechadas com empreiteiras. Tem uma ação entre amigos e daí surge financiamento de campanha, de fiscal, todo tipo de erosão que pode acontecer em habitação popular acontece nessas grandes obras. E aí a gente queria um mutirão autogerido em que a comunidade fosse responsável. Mas essa época foi uma loucura, primeiro porque a COHAB não queria de jeito nenhum, porque tirava o filão deles. Nessa época o Jânio construía uma casa de 18m2, chamado Projeto Embrião, construído junto com o Adventista, outro projeto que a UNICAMP encampou. A UNICAMP, Joan Villa e equipe,


eu inclusive. Mas eu era responsável por essa obra, a primeira aprovada pela Prefeitura. Eu escrevi uma carta pro Jânio, denunciando o presidente da COHAB e o Jânio ficou emputecido, escreveu “o que é isso?” pro presidente da COHAB. Acontece que naquela época a inflação era mil por cento. O Brasil mudava de moeda a cada seis meses. Tinha outras moedas que seguiam a inflação, as chamadas ORTN, que eram corrigidas segundo a inflação. Aí o que o presidente da COHAB faz, ele soltava o financiamento da obra na véspera de soltar o ORTN. Então você recebia o dinheiro e não podia comprar nada, no dia seguinte a ORTN duplicou, triplicou... Então nessa época a gente tinha poucos recursos e quando eu comecei a gerenciar essa obra eu tinha que ter verbas para gabaritos de metal. E aí não tinha no cronograma financeiro nada que fosse equipamento. Porque eles financiavam só material e mão d obra. Então o dinheiro que ia para gabarito, por exemplo, eles não queriam pagar, porque como ele vai aferir isso na construção. Então, desesperadamente, eu precisava tocar a obra e resolvi comprar material de infraestrutura de esgoto. Eu resolvi montar os gabaritos de tubo de esgoto, e não era o ideal. Você montar o tijolo no gabarito tão grande de plástico, ele vai

abrindo, aí tinha que ter uma trava. Mas a gente conseguiu fazer os painéis. A ideia era muito boa, cheia de dificuldades. Mas aí o que aconteceu, mudou a Prefeitura, entrou a Erundina. A Secretária de Habitação era a Erminia Maricato o chefe o Nabil Bonduki e o cara de obras o Reginaldo. E o Reginaldo virou pra mim e disse, “como não tem dinheiro para equipamento, vamos ter, claro”. Aí a gente alugou uma grua, em vez de carregar na mão, carregamos na grua, óbvio. Isso eu devo ao Reginaldo, o Grajaú, a AMAI deve a ele. Aí a gente conseguiu, a obra ficou muito melhor do que tava indo. Imagine uma pessoa que trabalha 10, 12 horas por dia, fica na condução 2 a 3 horas, todos os dias da semana, chega no final de semana vai trabalhar e ainda tem que pegar o material e erguer os painéis. Aqui uma história curiosa, esse rapaz aqui, é o operador da grua. Quando acabou a obra, me ligou o dono da locadora da grua. E eu pensei, “caramba, será que foram as mulheres?”. Porque era um canteiro essencialmente de mulheres. Das 81 pessoas que trabalhavam na obra, a média era de 60 a 70 mulheres, homens eram 11, 15. Então a gente tava numa obra que não era só uma obra de habitação, era a ponta de lança do 152


movimento de moradia daquela época. O pessoal era calejado de acampar na frente da COHAB, lutar pelo movimento, pela coordenação dos movimentos que na época era junto, não tinha separado, e a liderança desse movimento era muito atuante, muito política. Então tudo rolava de forma muito política lá dentro e tinha que dar certo, porque se não tudo ia pra trás. Então eu peguei essa encrenca pra resolver. Minha vida tava lá. Aí aconteceu uma coisa engraçada com esse operador de grua. Quando acabou a obra, o cara da locadora me ligou e disse “eu tenho um problema”, “o que, as mulheres não pagaram?”. “Não, pagaram como nenhuma empreiteira paga tão bem como o movimento, Minha única queixa é que elas roubaram meu operador de grua. O cara se apaixonou e casou e nunca mais quis saber da grua. Tem algumas histórias engraçadas. Uma em que as mulheres do Grajaú, chamadas Mulheres da AMAI, que falavam que quando acabasse a obra iam montar um salão de beleza, para recuperar o que perderam na obra. Tinha outra história que, eu estava em plena obra e chegava gente do governo, para ver como era esse mutirão. E chegou a secretária e pediu para falar com uma das líderes, a Cleonice. E a Cleonice, louca pra trabalhar, tinha que ficar fazendo sala pra 153

mulher. E a secretária perguntou: “o que vocês fazem de bom aqui?”. Aí a Cleonice ficou meio P da vida, “não tá vendo, o que a gente faz de bom?, aí ela disse: “olha minha senhora, aqui a gente não é melhor em nada, mas a gente faz de tudo”. Eu achei isso genial. Era um pouco esse espírito da AMAI. E a AMAI tinha uma coisa legal, a questão de ter uma cozinha comunitária e uma creche no seu funcionamento. A creche começou com duas casas construídas pela FEBASP na época. Aí, o que era importante, não era cada um traz sua comida. A comida que um come, todos comem. Fazia parte do financiamento da obra. Aí aquelas mesas enormes e todo mundo comendo junto. Aí que eu pude presenciar uma coisa maravilhosa, a construção de uma identidade coletiva, calcada nas identidades individuais, na troca das identidades individuais. Chegava lá e todo mundo contava um causa. “Dona Maria, porque a senhora veio do Piauí pra São Paulo?”. Então ela, ao contar sua história, fortalecia sua identidade individual e podia se contrapor e se relacionar com as outras identidades. Isso era a construção de uma identidade coletiva muito forte, você não imagina o quanto. Aí veio a coisa que parece óbvia hoje, que ao fazer o processo de autogestão em mutirão você cria uma relação de vizinhança antecipadamente


à entrada das pessoas. Aí é uma coisa muito forte, uma coletividade de fato, ao contrário do que acontece num Minha Casa Minha Vida, em que sorteia-se, não se sabe quem vai entrar, não tem nenhuma relação com a vizinhança. Isso é um câncer urbano. Na AMAI era muito forte, tinha muita história. Qual é o objetivo do alpinista? Se fosse chegar no topo podia chegar de carro, de bicicleta, de helicóptero. O Objetivo dele é escalar. Nesse aspecto a AMAI, ela é a escalada. Ela não chegou no topo, que era ser um movimento emblemático, que fizesse o arquiteto resgatar sua honra, construir coisas boas para todo mundo, não só para uma classe privilegiada. Eu tive que experimentar essa dificuldade. Era o primeiro mutirão de fato com essa técnica da UNICAMP, tinha um monte de coisa errada, mas a gente aprendeu, era uma pesquisa aplicada. Então aprendi muito com a obra.

154


Vitor Lotuffo - entrevista realizada em junho de 2012 L _ Vale um pouco o que a gente estava conversando aqui, eu me formei em 67 e era uma época em que se falava de muitas coisas fora da escola, na escola não. Eram essas coisas de ecologia, habitação popular… Dentro da escola a habitação popular era vista como uma coisa assim…precisa fazer uma fábrica, porque a indústria consegue produzir milhares de coisas rapidamente, a baixo custo. Então, tinha uma visão de que a habitação popular passava por um problema industrial. Assim como pega uma máquina e faz um trequinho de plástico e faz milhões daquilo em um segundo e está todo mundo usando. Então assim, se olhar assim as coisas do Le Corbusier e desses arquitetos... Mas já rolava fora das escolas uma [discussão], que se misturava com o problema político, todo mundo já falava “ó, o problema não é industrial, é que as pessoas não ganham para isso” quer dizer, não ganham dinheiro, não tem... Então, assim, eu acho que o que mais me motivou foi uma ligação política, quer dizer, as pessoas não tem moradia porque não estão organizadas, estruturadas, né. Então, as pessoas trabalham em troca de um salário e esse salário não provê nem comida, quanto menos habitação - nem transporte nem nada, e, na verdade, este salário tinha que prover tudo isto. O cara tivesse que ter um tanto 155

que fosse possível de comer, de ter saúde, de estudar e morar. Então, eu acho assim, lá na Belas Artes, uma pessoa que eu curtia muito era o Nabil. O Nabil tinha este enfoque bem político e era alguém que estava começando a trazer para dentro da faculdade de arquitetura este assunto visto desta maneira. Aí eles fundaram este laboratório dentro da faculdade, e tinham visões diferentes, acho que a do Nabil não era a mesma do Juan Villá e de outros que estavam lá. Eles dois, eu acho assim, são caras que eu acho que tiveram uma importância muito grande em começar a trabalhar em imaginar que tinha um cliente que não tinha acesso ao arquiteto, então, começar a procurar este cliente. Então, daí, eu recebi um convite do Nabil para participar do laboratório. A _ Já fazia parte das suas preocupações estas questões políticas? L _ Sim, isso que mais me atraiu. Isto coincidiu com a época da fundação do PT, que, na época, todo mundo acreditava que era um projeto interessante. A _ Mas isso vinha da sua formação ou já depois de formado, da sua atuação? O que te levou a ter estas preocupações? L _ Mais depois de formado, mas eu acho que essas... a priori você falar o que a ecologia, estrutura e habitação popular, o que pode ter em comum nisso? Aparentemente não tem nada em comum nisso, mas eu acho


que faz parte de você começar a ver o mundo da arquitetura de maneira diferente. Quer dizer, eu acho o pensamento reinante, no modernista, era ele produzir um objeto que era a casa, que era o edifício, sem se envolver muito nas outras questões da vida humana. Mas na hora em que você vai ver uma obra, a construção de um prédio, o desperdício que tem de madeira para fazer aquela estrutura, é uma loucura. Quer dizer, eu assisti o extermínio do pinho no Brasil. Quando eu era moleque, a madeira custava um nada e hoje ela já começa a ficar escassa e a mostrar o seu preço. Então, estas questões todas, acho que vinham, estavam gravitando em volta do pensamento arquitetônico. Então como é que você está pensando numa casa, mas você olha a cidade e, inclusive, vai falar de urbanismo, mas você fala- a maior parte da cidade não está no... não tem urbanismo, não tem nada. E como é que é? Então, isso tudo fazia parte do cotidiano da gente, das conversas. A _ A ideia era pensar a arquitetura, a partir do seu impacto na cidade, mas numa ação direta? L _ E com os mutirões, eu acho bem isso, que possibilitava você agir diretamente, quer dizer, você ir lá, você ver a situação, ver o que seria possível fazer, procurar entender as pessoas. Essas coisas que a gente estava conversando [antes da entrevista] : qual é a casa que o cara quer ter? Meu pai era

arquiteto e eu já trabalhava com ele, então eu sentia muito essa coisa do arquiteto querer colocar uma casa para o cliente e o cliente não querer aquilo. Quando a gente começou a ter contato com a população, você começa a ver que a tua resposta pode não ser necessariamente a que ele quer. Por quê? Porque ele tem uma série de questões que não são as suas. Então assim, outra coisa em que a gente reparou é que as pessoas querem ascender à uma classe social, ele não quer estar no topo, quer estar próximo. Na época eles queriam caixilharia de alumínio, por quê? era o que eles viam de coisa boa na classe acima da dele. A _ Então tinha um retorno para vocês dessa atuação nos mutirões. L _ Acho assim, que dava um tremendo retorno em termos de conhecimento, porque aí a gente também foi construir e assim, eu antes tinha acompanhado algumas obras, mas onde você tinha recursos, tinha outro... quer dizer, normalmente você não estava tão envolvido como a gente tinha que ficar com os mutirões. Então, de repente, você tinha que fazer o orçamento, tinha de acompanhar a execução, e de todas as partes, de hidráulica, elétrica, a urbanização, coisa que a gente normalmente delegava para outros fazerem a gente passou a ter de fazer também. E isso, por exemplo, vendo os mutirões que a gente, lá perto de Pirituba, a gente foi pedir para a SABESP orientação do que fazer com 156


o esgoto e a recomendação deles era jogar nos córregos, num lugar que é a região mais alta de São Paulo. Então, a gente ia jogar esgoto onde estavam nascendo os pequenos cursos d´água de São Paulo. Daí surge aquele “Bom, mas então vamos fazer o quê, vamos fazer? Não, vamos tentar incluir tratamento do esgoto.”. Então em alguns mutirões a gente fez fossas sépticas e jogava só a água, em outro a gente fez o tratamento, inclusive, desta água que saía. A _ E a habitação popular, esta questão social já esteve desde o princípio abarcada pelo laboratório, ou o laboratório também tratava de outros projetos? L _ Não, tratava de outros projetos... No laboratório a ideia era não tratar com uma pessoa física, era tratar com um conjunto, mas... Eu acabei trabalhando mais com os mutirões e depois o laboratório também né. A _ De quais projetos você participou durante o laboratório? L _ No laboratório, eu acho que foi só do Recanto da Alegria, não me lembro se participei de algum outro... acho que foi esse. É que assim, através do laboratório, a gente acabou, na época, também começando a trabalhar- na verdade, foi a Martha que foi a trabalhar com o Patrick, que era um padre que fazia um trabalho na zona Leste e aí eu também acabava participando e foi, inclusive deu uma continuidade, depois que acabou o laboratório, depois, a gente acabou ainda 157

neste caminho. A _ Dentro do laboratório, acho que você estava comentando agora há pouco, não dava para explorar muito esta parte de pesquisa né? de materiais, de construção- dava para explorar mais, do ponto de vista de quem estava aprendendo, do ponto de vista de quem era arquiteto e estava participando. Mais qual é a atuação do arquiteto, mas não propriamente a prática, né? L _ Não, teve também assim... viu? Nesse... Por exemplo: no Recanto da Alegria, a gente, no começo, não tinha recurso nenhum para fazer nada. Então, a primeira... assim, a gente começou a construir uma casa de uma moradora que tinha o recurso próprio, então, a gente resolveu fazer uma casa em solo cimento, então, dessa casa, a gente chegou a fazer a fundação e acho que parou nisso, na fundação. Depois, veio recurso da prefeitura, então, deu para fazer as casas, mas, no inicio, a gente trabalhou- e para a gente era uma novidade, quer dizer, o solo cimento era uma coisa que a gente nunca tinha trabalhado, então, seria uma tentativa de fazer uma casa de custo mais baixo. Depois, o Nabil arrumou os tijolos, então, a gente resolveu construir um centro comunitário em forma de cúpula e agente demorou para perceber que aquilo não foi bem visto pela comunidade como forma- depois acabaram desmanchando, derrubando a cúpula, mas para a gente era uma motivação


de estar experimentando, de estar fazendo alguma coisa... A _ Isso influencia um pouco no que foi a sua linha de pesquisa depois? L _ Já era, quer dizer, ao mesmo tempo, eu sempre tive esses interesses assim, quer dizer, todo este leque assim, porque eu acho que para você construir mais barato, para você poupar material, aquilo precisa ter uma estrutura muito racional, muito lógica, então, acabei me envolvendo com estrutura, porque você tinha de conseguir construir usando menos coisas, menos material e fazendo alguma coisa mais fácil de fazer. Então, na época, eu já estava envolvido com geodésica, com essas outras coisas que levavam a isso. A _ Tinha um pouco de influência do Sérgio Ferro, do Rodrigo? L _ Bastante, bastante. Acho assim, o Sérgio Ferro começa a levantar essas questões da própria linguagem do projeto, quer dizer, você faz coisas que quem está fazendo não tem a menor ideia de para quê que serve aquilo. Quer dizer, o operário estaria aí sendo tratado como máquina e não como ser pensante. Então para que usar uma pessoa, usa uma máquina, se ela não vai pensar, não vai... e eu acho que o projeto vai ganhar com todo mundo tendo uma participação, tendo um interesse naquilo. Então, eu acho que o laboratório abriu para isso. A _ Para voltar a uma prática mais

artesanal do cara que faz e tem o domínio do seu produto. L _ O artesanal, às vezes a gente tem na cabeça quando se fala em artesanato, a gente pensa assim, do cara que vai ficar fazendo um trabalho besta que ele vai ficar 10 anos fazendo e que no fim não vale nada. E não, o artesanal é quando você precisa do cérebro da pessoa. A máquina não consegue fazer artesanato porque ela não consegue pensar. Então, o artesanato, nesse sentido, ele é superior ao produto da máquina, porque é alguém que está pensando, raciocinando, que tem um saber-fazer- ele vai usar isso. Isso, depois, vai acabar com essa atividade de, nessa atividade de canteiro de obras na faculdade, quer dizer, eu acho importante você saber que você vai levantar uma parede, é uma coisa difícil, não é uma coisa simples, quer dizer, que o pedreiro, ele tem um conhecimento. Eu outro dia tive uma prova disso, fui construir uma escada que eu projetei, já construí várias vezes, mas não eu construindo e achei que era muito fácil fazer e fomos fazer na casa do meu filho, e não deu certo, precisou de um pedreiro, porque é preciso ter um conhecimento. Então isso também serve para você valorizar a mão-de-obra, valorizar quem sabe fazer. E o mutirão têm isso, quer dizer, a gente também... nos mutirões que vieram depois, o Nabil já pensou em colocar um tanto de mão de obra remunerada, porque 158


você precisa de alguém realmente que sabe fazer as coisas, não é que... se você acha que não precisa, você está menosprezando o conhecimento específico de cada um.

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_ registros

_ publicações

estão inseridos neste anexo: publicações digitalizadas, parte do acervo de Joan Villá; notícias dos jornais Folha e Estado de São Paulo, parte do acervo da Hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade; registros fotográficos da Vila Arco Íris e Recanto da Alegria, parte do acervo pessoal de Nabil Bonduki e fotos do acervo pessoal de Dona Elita

1 O São Paulo - 1983

160


2e3 O São Paulo - 1983

161


Revista AU - 1985

162


Revista AU - 1985

163


Revista AU - 1985

164


1 O São Paulo - 1983

166


2 O São Paulo - 1983

167


3 O São Paulo - 1983

168


4 O São Paulo - 1983

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Jornal do IAB - 1982

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1 O Liberal - 1987

171


2 O Liberal - 1987

172


3 O Liberal - 1987

173


_ notĂ­cias

174


Folha de SĂŁo Paulo_ artigo de Nabil Bonduki 1987

175


Folha de SĂŁo Paulo_ artigo de Nabil Bonduki 1990

176


Folha de SĂŁo Paulo_ artigo de Nabil Bonduki 1987

177


sem identificação

178


sem identificação

179


O Estado de SĂŁo Paulo - 1980 assembleia do povo

180


Estado de São Paulo - 1989 sociedade pró-favelas Estado de São Paulo - 1983 ato central_Olímpio

Folha de São Paulo - 1985 Folha de São Paulo - 1984 Encontro de moradia no Recanto da Alegria

181


Estado de São Paulo - 1984 movimento filhos da terra ocupação e embate com a santa casa (p. 182 e 183)

182


183


Estado de SĂŁo Paulo - 1986 Sarney - plano naciona de mutirĂŁo

184


Estado de SĂŁo Paulo - 1989 invasĂľes de conjuntos da Cohab

185


_ fotos Vila Arco Íris

foto aérea

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Recanto da Alegria

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200


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