ARGENTINA
Forasteiros invadem vinhedos de Mendoza Famílias de diferentes partes do mundo deixam as grandes cidades para se realizarem com parreirais em San Rafael Texto e fotos Leonardo Blecher, de San Rafael (Argentina)
A
ARGENTINA
36 GLOBO RURAL | abril 2015
italiana Fulgida Truzzi, de 51 anos, entendia pouco da rotina do campo e menos ainda de vitivinicultura quando chegou a San Rafael, na província argentina de Mendoza. Hoje, ela é capaz de tirar todos os alimentos de sua dieta e um delicado vinho branco dos sete hectares que administra na região, seguindo preceitos da agroecologia. Um ano antes de levar ao mercado as primeiras garrafas do vinho Finca de la Vega, Fulgida se dedicava à gerência de piscinas públicas em Genova, no noroeste da Itália, e sua relação com a terra se limitava às memórias das viagens familiares na infância. Em um momento de insatisfação com a rotina urbana, foi convidada por uma família italiana para tomar conta da propriedade na Argentina. “Eu estava em um período sabático da minha vida. Havia deixado trabalho, namorado, tudo”, conta. “Recebi a proposta e disse ‘vamos descobrir o que é San Rafael, o que é a Argentina.’” Oito anos se passaram e agora Fulgida é responsável por fazer o vinho da uva semillón – cultivada principalmente na França e na Austrália – chegar às mesas de selecionados clientes em Buenos Aires e El Bolsón, na região patagônica. Solo arenoso, clima seco, sol abundante e água pura de desgelo da Cordilheira dos Andes são alguns dos elementos que fazem de Mendoza um lugar ideal para a vitivinicultura. A província concentra mais de 75% da produção de vinhos da Argentina e exerce forte poder de atração sobre pessoas interessadas em começar sua própria produção.
Se Fulgida Truzzi iniciou sua relação com a cidade de San Rafael por um motivo inusitado, o mesmo não pode ser dito sobre o restante dos estrangeiros que chegam à região para dedicar-se aos vinhos. A maioria estuda muito sobre os países que oferecem possibilidades nesta área antes de se decidir pela Argentina. “Pesquisamos em países como Austrália, Nova Zelândia e Chile, mas as propriedades rurais eram muito caras”, conta o inglês Malcolm Smith, de 57 anos. “A África do Sul também era uma possibilidade, mas ainda tem problemas políticos sérios e é um lugar inseguro. Após conversar com especialistas, chegamos à conclusão de que a Argentina era o lugar ideal, com um clima fantástico e um produto com alta demanda na Europa e nos Estados Unidos.” Malcolm conversou com a reportagem enquanto colhia amostras de suas uvas malbec para uma análise do nível de açúcar. Os frutos estariam no ponto certo em uma semana, quando seriam colhidos e enviados a uma bodega na região para serem transformados no vinho La Fracción. Com sua mulher, Sue, o britânico vendeu sua loja no Reino Unido, em 2008, para estabelecer-se em uma propriedade de 2,5 hectares em San Rafael e realizar o antigo sonho de iniciar-se no universo da vinicultura. “Eu havia estudado em uma escola de vinho, onde adquiri conhecimentos sobre produção e comercialização do produto, mas não tinha a possibilidade de fazer isso em meu país, pelos altos preços”, disse. O baixo valor da moeda argentina faz com que as propriedades no país sejam muito acessíveis a europeus e americanos. Um hectare em San Rafael pode ser encontrado por, em média, 80 mil pesos argentinos (cerca de R$ 22 mil).
O francês Guillaume de Kergorlay, de 44 anos, e a alemã Claudia Foetzsch, de 45, também encontraram em Mendoza a chance de produzir a bebida. O casal administrava duas boutiques de vinhos em Paris e queria iniciar sua produção na região francesa da Borgonha. “Mas não tínhamos fundos para fazer isso, nem poderíamos conseguir em um banco”, disse Guillaume. “Paris é linda, mas não queria que minhas filhas nascessem em uma grande cidade, onde teriam que ir até um parque para ver uma árvore”, disse Claudia. “Foi uma oportunidade de ir para o campo. Com 5 mil euros, pode-se fazer alguma coisa aqui, mas na Europa não.” As duas filhas do casal, Armene e Gabrielle, de 7 e 5 anos, nasceram em San Rafael, onde a família tem uma rotina típica das populações rurais da região, vivendo de sua produção agrícola e do trabalhos de trator que Guillaume faz para outros proprietários da região. “Os argentinos não entendem por que viemos. Pensam que estamos loucos por sair da Europa para vir à Argentina. Eles veem a Europa como se vê na televisão”, explica o francês.
Crise econômica
Apesar de a fragilidade do peso argentino ser favorável aos europeus no momento da compra de uma propriedade, a instabilidade econômica do país dificulta a relação comercial com os clientes estrangeiros. Por conta da alta inflação, que passa dos 20% anuais, os preços dos vinhos variam muito em curtos períodos de tempo. Malcolm e Sue Smith exportavam o vinho La
Fracción a uma churrascaria argentina no centro de Londres, o que dava visibilidade à marca em um mercado importante e garantia uma fonte de renda constante à família. Mas a inflação os forçou a aumentar o preço do produto. “Isso tirou nosso vinho do ponto em que eles podiam pagar. Eles já não podiam bancá-lo como o vinho da casa e deixaram de comprá-lo”, explica Sue. O casal encontra dificuldades para comercializar seu vinho, devido à alta competitividade do setor na região. “Fazemos tudo com o orçamento muito apertado, não temos dinheiro para investir em marketing e publicidade de nosso produto”, conta Malcolm. A inscrição da bebida em concursos é sua única forma de divulgação. Claudia e Guillaume culpam o governo de Cristina Kirchner pela crise vivida pelo setor vitivinicultor argentino. “O mundo inteiro quer o vinho da Argentina. Aqui se pode fazer um malbec de qualidade e vendê-lo a 70 pesos (R$ 25). Mas o governo dificulta a exportação”, diz Guillaume. Ainda assim, eles apostam na evolução econômica do país. “Para nós, o futuro da economia vai ser na América do Sul. Ainda falta um pouco de tempo para que os governos sejam menos corruptos e mais estáveis”, analisa Claudia. Representantes do setor vinicultor mendozino têm protestado por melhores condições para a exportação do vinho. Como resposta, o governo Kirchner anunciou no início deste ano um pacote de subsídios de 1 peso por quilo de uva vinificável para exportação (o quilo da uva custa de 1,60 a 1,85 pesos). Mas os produtores acham a medida insuficiente.
A italiana Fulgida e o casal francês Guillaume e Claudia com os filhos argentinos
No nosso site Veja como os produtores de vinhos conseguem mão de obra em Mendoza, na Argentina, no portal bit.ly/uvaargentina
abril 2015 | GLOBO RURAL 37