A Bolsa de Valores das Ideias

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LEITURAS

CONTEMPORÂNEAS V.1 – N.2 – 2003

HUMANIDADES



ISSN - 1678-1716

Volume 1 – número 2 – jul./dez. 2003


Revista semestral das Faculdades Jorge Amado Conselho Editorial Nancy Rita Vieira Fontes, Paloma Modesto, Walter Takemoto, Maria Ester Pacheco Soub, Joaquim Jorge Martins Galo, Miriam Alice Weiss, Ana Beatriz Simon. Editor Augusto Sá Co-Edição e Coordenação Goli Guerreiro Revisão Sérgio Rivero e Klebson Oliveira (Núcleo de Revisão - Curso de Letras) Projeto Gráfico e Diagramação PROCRIADesign Ilustração da capa Iansã Negrão Ficha Catalográfica Silvia Luciana de Jesus – CRB-5/1198 Faculdades Jorge Amado Associação Baiana de Educação e Cultura – Mantenedora Mantenedor José Eugenio Barreto da Silva Diretora Geral Viviane Brito de Lucca e Silva Diretor Acadêmico das Faculdades Jorge Amado Walter Takemoto Diretora Acadêmica do Instituto Superior de Educação Maria Ester Pacheco Soub Núcleo Humanidades - NUH Ana Dumas André Stangl Cláudio Manoel Cristiane Nova Francisco Formigli Giovana Dantas Goli Guerreiro (coordenação) Sérgio Rivero Leituras Contemporâneas: Revista das Faculdades Jorge Amado. V 1, n. 2, 2003 - Salvador: FJA, 2003. Semestral ISSN - 1678-1716 1. Generalidades - Periódicos 2. Conhecimento - Periódicos 3. Humanidades I. Faculdades Jorge Amado. CDU 001 (05) Faculdades Jorge Amado Av. Luís Viana Filho (Paralela) - 6775 Salvador - Bahia CEP 41745-130 Telefone: 71 206-8000 www.fja.edu.br


Para Renato, Teca e Walter



7 Editorial

8 A Universidade num Ambiente de Mudanças Renato Janine Ribeiro

19 Projeto Humanidades

42 A Percepção do Eu nas Sociedades Contemporâneas Francisco Formigli

54 A Rede Mestiça: Notas sobre Cibermestiçagem e Hibridismo Digital André Stangl

71 História Hoje: Problematizando a Narrativa Histórica Cristiane Nova

85 Trânsito de Imagens no Cinema de Peter Greenaway: Cinema, Teatro e Artes Visuais Giovana Dantas

99 A Bolsa de Valores das Idéias Ana Dumas

115 O Supermercado da Música: Samba-reggae, Por Exemplo. Goli Guerreiro

130 Literatura e Cidade - Vizinhas Sem Fronteira Sérgio Rivero

151 Cidade, Homossexualidade e Música Eletrônica: do Espaço Urbano ao Espaço Virtual Cláudio Manoel Duarte e Gisele Marchiori Nussbaumer



Editorial É com grande satisfação que trazemos a público o segundo número da revista Leituras Contemporâneas, das Faculdades Jorge Amado. Vencido o desafio de construir uma publicação acadêmico-científica temos, a cada edição, a tarefa de escolher uma temática que permita a interlocução do ensino, da pesquisa e da extensão no ambiente da instituição. O primeiro número teve como temática a relação entre educação e formação profissional. A partir do trabalho do Núcleo Humanidades, criado este ano nas Faculdades Jorge Amado, a revista abre suas páginas para contribuir para a socialização das reflexões do Núcleo, adotando, desta vez, Humanidades como temática. O primeiro texto é um artigo do filósofo da Universidade de São Paulo, o professor Renato Janine Ribeiro, que parte da experiência de montar um curso de graduação experimental em Humanidades, na instituição que trabalha, para refletir sobre a relação entre a universidade e o mercado, a partir do enfrentamento pelo jovem de uma opção de carreira universitária em um ambiente social de constante mudança. Registramos nossos agradecimentos ao professor Renato Janine pela cessão do artigo, originalmente escrito para um encontro da ABMES em Brasília. O segundo artigo, o projeto do Núcleo Humanidades para as Faculdades Jorge Amado, inspirado no trabalho do professor Renato Janine, encontra na revista Leituras Contemporâneas a ferramenta adequada para a difusão, interna e externamente, de vários conceitos e idéias, possibilitando o debate e estimulando o espírito crítico de professores e alunos. Do terceiro ao décimo artigo, encontramos textos escritos pelos membros do Núcleo Humanidades, divididos em quatro eixos temáticos, a saber: identidades, narrativas, mercadorias e cidades. Para cada eixo temos duas abordagens distintas e igualmente interessantes. Por fim, uma palavra direta ao nosso leitor, seja aquele que desfiar a revista do primeiro ao último artigo ou o que pinçar um ou mais textos, ao sabor de sua subjetividade: queremos lhe desejar uma boa viagem pelas próximas páginas da revista Leituras Contemporâneas.

O editor


A universidade num ambiente de mudanças1

Torre de Babel: um signo de mĂşltiplas linguagens


Renato Janine Ribeiro*

Meus comentários sobre a universidade nos próximos anos – melhor dizendo, minhas reflexões sobre ela para o período que coincide com o próximo mandato presidencial – talvez sejam um pouco marginais em relação às discussões mais usuais que tenho ouvido. Não discutirei, embora a repute essencial, a questão do financiamento das universidades; o que pretendo é, partindo de uma experiência que estou montando há alguns anos, pensar o que significa um ambiente universitário em nossos dias. Daí decorrerão algumas sugestões e críticas. Começo assim da experiência de montar um curso de graduação experimental, interdisciplinar, em Humanidades, o que venho tentando na USP desde três ou quatro anos, infelizmente sem muita facilidade – curiosamente, este projeto, que tem tido amplo sucesso de crítica no país afora, parece até ter chances de ser implantado antes em outras universidades do que naquela em que trabalho. Remeto, para quem o queira conhecer no detalhe, ao livro e ao site que o contêm (os dados estão no fim do artigo); aqui me limito a delinear seus grandes traços. O propósito deste novo curso é dar uma boa base em filosofia, em artes (sobretudo visuais, mas também em música) e em literatura, a fim de formar futuros pesquisadores em ciências humanas e sociais de modo geral. A idéia é que não se forma um profissional pela reiteração dos temas de sua área, mas pelo confronto com linguagens à primeira vista diferentes da sua. Por exemplo, hoje muitos querem ser cineastas vendo filmes; mas um dos maiores diretores do século XX, Federico Fellini, certa vez disse que via pouquíssimos filmes, e que concebia os seus a partir basicamente de livros, ou de outras experiências que tivesse. Diria, seguindo o seu mote, que hoje as ciências humanas estão vendo cinema demais – isto é, que tendem a se confinar em sua área, a conhecer muitíssimo bem o que nela se faz ou discute, mas com isso perdem de vista a estranheza, a perplexidade, a indagação que vêm do confronto com o radicalmente outro. E é por isso que vamos, para formar em ciências humanas, investir nas humanidades, ou seja, no que não é ciência. Por ser um curso experimental, Humanidades não terá uma grade curricular fixa. Isso, por um lado, reduz o valor de seu diploma, pelo menos do ponto de vista imediatista de quem deseja ter uma reserva de mercado, mas por outro lado – e é o que conta para nós – confere enorme liberdade aos docentes e aos alunos. Poderemos mudar a progra-

* Professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo


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mação sempre que quisermos. Aliás, não teremos um corpo docente fixo, nem um departamento. Daí, também, que para esse curso não haja um vestibular como os habituais: a seleção será efetuada entre estudantes da USP que, desejando entrar nele e já tendo completado um mínimo de créditos em outro curso, prestem um exame especial, mais voltado para suas capacidades do que para seus conhecimentos. (A cabeça bem feita, mais que repleta, como pretendia Rabelais em sua escola ideal). Durante os dois primeiros anos do curso, os alunos de Humanidades terão acesso a diversos enfoques – diferentes entre si, opostos mesmos – em filosofia, em artes e em literatura, mas também nas ciências sociais, na história, em direito, economia, tudo isso podendo alterar-se de ano para ano. A partir do terceiro ano no curso, freqüentarão matérias da universidade como um todo, construindo – com o apoio de um professor tutor – um itinerário pessoal que leve a um trabalho de conclusão de curso, que por sua vez constituirá a base para uma futura pós-graduação. Eis as linhas gerais do projeto. Passo agora a expor quais idéias da universidade me vieram em função deste projeto. Algumas destas idéias existiam antes do projeto, e ele as aplica; outras, porém, nasceram dele. É delas que quero tratar, mais do que do curso em si. A idéia pela qual começo diz respeito à relação entre a universidade e o mercado. Com a possível exceção dos cursos seqüenciais, que me parecem idéia muito boa – e aos quais voltarei –, parece-me que os cursos propriamente universitários talvez devam emancipar-se da preocupação com o mercado de trabalho. Dizendo isso, é possível que eu vá a contrario sensu de uma das idéias mais enfatizadas dos últimos anos, inclusive por boa parte dos próprios alunos, receosos hoje de terem uma formação boa em termos acadêmicos, porém inútil na prática. Mas quero deixar claro que não sustento esta tese – de que a universidade não deva clonar o mercado – por defender um modelo antigo de universidade, afastada das lides cotidianas. Na verdade, o que me inspira é exatamente a percepção de que o mundo mudou tanto, e com ele o mercado, que é vão e ocioso a universidade tentar tomar o seu pulso e seguir o seu ritmo. Se não, vejamos. Espera-se que um jovem opte por uma carreira universitária em torno dos dezesseis ou dezessete anos, ao iniciar o último ano do segundo grau. Daí a um ano, ele estará começando um curso universitário de quatro ou cinco anos. Sua maturidade profissional é de se esperar que ocorra daí a quinze ou vinte anos. Seu apogeu, sua acme, como diriam os gregos, daí a vinte e cinco ou trinta. Tudo isso somado, quer dizer que esperamos o sucesso inicial – o que chamei de maturidade – vinte ou vinte e cinco anos depois do momento da escolha. Opto por uma carreira hoje, com dezessete anos, e espero ser um profissional reconhecido aos trinta e cinco, quarenta anos, entre 2020 e 2025, digamos. Ora, alguém que acompanhe o andar das coisas neste mundo pode considerar sensata alguma pretensão de prever como estará o LEITURASCONTEMPORÂNEAS 10


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mercado nessa data? Não será quase delirante esperar que um jovem possa realizar hoje uma escolha passível de ser bem sucedida daqui a duas décadas, e capaz de manter-se viável por três, quatro décadas, em suma, por toda a sua vida profissional, até uma aposentadoria que – tudo indica – será mais tardia do que hoje é? Não é completamente irrealista essa expectativa? Some-se a isso um fato, talvez peculiarmente brasileiro. Em nossa sociedade, os pais – especialmente de classe média – se tornaram bastante permissivos. Ou porque não dão importância à educação ética, à imposição de regras, ou porque está cada vez mais difícil decretar e manter limites (penso que há os dois lados neste fenômeno), os pais favorecem um certo hedonismo filial. A adolescência, antecipada já para os anos pré-teen e prolongada para depois dos vinte anos, desenha assim um período de busca de prazer e de pouca responsabilidade. Exemplar disso é o recurso à babá eletrônica para a pacificação dos filhos, emblemática de uma sistemática terceirização da relação com eles (até festas de aniversários são feitas em ambientes especializados: muito do que outrora era resolvido – ainda que mal – no âmbito da família vai agora para profissionais, uns ótimos, outros péssimos; ninguém, da classe média para cima, cresce sem fonoaudiólogo ou psicólogo). Mas num momento da vida, num só, quando se avizinha a escolha profissional, esses pais que até então apostaram – para usarmos a linguagem freudiana – no princípio de prazer para aplacar os desejos dos filhos, subitamente, invocam um princípio de realidade claro, implacável: a carreira profissional, o futuro financeiro. Valem-se de um argumento que cala fundo: meu filho, o seu nível de vida não se manterá se você não tiver uma boa profissão. Os prazeres que lhe proporcionei, a ausência de regra, tudo isso depende, para se manter, de você agora curvar-se a uma regra duríssima, a que lhe manda escolher uma profissão de futuro. Veja-se o contraste entre a omissão paterna, ao longo de vários anos, a demissão da Lei, a renúncia ao papel de impor limites, de fazer reconhecer a alteridade – e a súbita invocação de uma lei abstrata, intangível, impiedosa, a do mercado; veja-se, aliás, como isso é terrível para o próprio papel de pai, reduzido que ele se vê a portavoz acovardado de uma lei vaga e sem rosto, de uma mão invisível, tão invisível que nem face tem e assim priva o pai do que lhe poderia restar de nome, autoridade e voz, voz que ele perdeu porque carrega a do mercado. Pois bem, para além dos problemas que isso coloca para a psique de nossos jovens, o que quero salientar é que essa inesperada preocupação com o futuro deles é totalmente inútil. Não há condições, hoje, de prever qual carreira terá destaque em vinte anos. Nossa própria história, a dos aqui presentes que têm vinte, trinta ou quarenta anos de exercício profissional, pode ilustrar este ponto. Profissões que pareciam prometidas ao sucesso ou fadadas ao fracasso deram resultados opostos aos que se esperava. Provavelmente a FACULDADESJORGEAMADO 11


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maior parte dos presentes a esse seminário teve sucesso mesmo em carreiras das quais pouco se esperava, o que indica o alcance da autonomia individual, com o sucesso resultando da iniciativa pessoal e não só do escaninho escolhido no vestibular. Porém, mais importante ainda é que várias profissões simplesmente desaparecem. O avanço da informática foi impiedoso, e pode continuar a sê-lo. Certas profissões – o mais das vezes, as não criativas, burocráticas, mecânicas – deixaram ou deixarão de ter sentido. É verdade que isso pouco se aplica a carreiras que tenham formação universitária, mas não posso esquecer as páginas de Italo Svevo, na Consciência de Zeno, em que o personagem-título se gaba de sua capacidade para escriturar balanços em partidas dobradas. Hoje, certamente um programa de DOS, num daqueles disquetes flexíveis que já nem encontramos, daria conta de todo o saber que Zeno demorou anos para acumular. Treinamentos inteiros se tornaram dispensáveis. Então, para quê? Acrescento uma experiência pessoal: sou professor num curso de filosofia. Sabidamente, este não forma ninguém para uma carreira profissional bem paga. A única habilitação que damos permite lecionar no segundo grau – com salários baixos – ou na universidade, aí em condições melhores mas que não chegam a ser competitivas com as promovidas por outras carreiras. No entanto, nossos egressos têm tido êxito profissional às vezes admirável, em outras áreas, como o jornalismo, a edição, a empresa, e isso devido à formação que receberam. A inutilidade do ponto de vista burocrático (o diploma) ou linear (como naquelas perguntas em suplementos para vestibulandos: para que serve o curso?) resulta, na prática, razoavelmente útil. E isso porque, cada vez mais, os profissionais seguem, no mercado e na vida, uma trajetória em diagonal, que os leva de uma primeira formação escolhida com certa segurança – a partir de avaliações que se acreditam bastante realistas (o princípio de realidade, a pressão familiar, a ambição, a ilusão de que dá para escolher como vencer na vida) – para outros caminhos. A pergunta relevante é: o que determina essa evasão? O que faz muitos, dentre os mais brilhantes cérebros, mas não apenas, seguirem um itinerário profissional que acabará longe de seu diploma? *** Histórias de vida nesse rumo são das mais variadas. Há os que prestam seguidos vestibulares, não se formando em nenhum curso – ou pelo menos não no primeiro, nem no segundo –, mas acumulando primeiros lugares em concursos de seleção os mais diversos. Há os que se formam, mas não exercem a profissão, ou apenas a seguem por algum tempo. Há os que perdem o emprego, e por isso se vêem forçados a rever seu perfil e vida. Este último caso é mais triste, e aqui a mudança no trajeto é ditada por LEITURASCONTEMPORÂNEAS 12


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fatores externos, negativos; mas são inúmeros os casos em que as alterações vêm por assim dizer de dentro. Disso se segue, não mais uma pergunta, mas um questionamento mais complexo. Vamos a ele. Será que a evasão, tão denunciada pelos gestores das universidades, é mesmo o monstro que tanto se critica? Esforços notáveis foram envidados para reduzi-la, penso que com êxito a curto prazo. Mas penso também que a evasão não se explica apenas pelo ambiente interno à universidade, por uma dialética entre aluno e curso. Ela tem a ver com um mundo em mudança, que torna as escolhas – desse a quem chamamos de aluno, numa fase jovem de sua vida, mas que deveríamos considerar ao longo de toda ela, como alguém que não cessa de aprender – muito mais difíceis e precárias. É claro que nenhum de nós deseja currículos superados, professores desmotivados, bibliotecas desatualizadas – para mencionarmos alguns dos fatores que fazem os alunos se evadirem dos cursos. Mas minha pergunta é se a chamada evasão não tem a ver com fatores mais amplos, que dizem respeito à sociedade, à inclusão social do ser humano, jovem e depois adulto, e não apenas à instituição escolar e ao corpo-a-corpo que nela se trava entre os alunos e o estabelecimento. Se eu tiver razão, isso significa que numa sociedade em rápida mudança é ilusório acreditar que identidades profissionais sejam fixadas a partir de escolhas efetuadas antes ou em torno dos vinte anos de idade. Mesmo adiar a data da escolha, aliás, não adiantaria grande coisa, até porque certamente nossos jovens dispõem hoje de uma informação muito maior do que seus equivalentes em qualquer época do passado. O problema não está no jovem, está no mundo. Talvez eu devesse então radicalizar a frase com que comecei o parágrafo, e dizer que numa sociedade em rápida mudança é ilusório acreditar que identidades profissionais sejam fixadas, ponto – pouco importando as idades. Ora, isso significa nos prepararmos para mudanças mais freqüentes de profissão – no limite, para uma sociedade na qual as pessoas troquem de inserção profissional até com certa regularidade. Não sei se os presentes lembram um texto que aparecia nas primeiras páginas da carteira profissional, de lavra de algum administrador da era Getúlio Vargas, e que dizia que aquele documento permitiria ver se o trabalhador se tinha esforçado no seio da empresa, fiel à mesma – ou, ficava implícito, se teria saltado de emprego em emprego, o que seria menos nobre. Pois bem, é esse antigo vício da mudança que veio a constituir uma característica de nosso tempo. *** Seria preciso promovermos uma pesquisa de longo fôlego, que considerasse os egressos das instituições de ensino superior, e procurasse ver – passados cinco, dez, FACULDADESJORGEAMADO 13


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vinte anos – o que ficou para eles, o que passou a fazer parte do seu DNA, de que maneira foram incorporados o conhecimento e as vivências havidos ao longo de seus cursos. Certamente colheremos muitas surpresas. Lembro que, quando entrei no que então se chamava ginásio, costumava-se dizer que o aluno bom em latim saía-se bem igualmente em matemática; haveria afinidades eletivas, secretas, entre as matérias; no caso, o que unia o bom conhecimento das declinações e a capacidade de compreender os versos de Catulo à aritmética e à geometria era o domínio do pensamento lógico. Foi, depois, suprimido o latim porque seria inútil. Ninguém pensaria em excluir a matemática ou em dizê-la inútil, é claro. Mas, se havia mesmo algum parentesco entre as duas disciplinas, como então se murmurava, é claro que a incorporação do latim ao patrimônio mental dos alunos iria muito mais longe do que o simples conhecimento dos clássicos romanos: ela significaria uma agilidade maior no trato da frase como construção lógica. Ou seja, o latim seria tão bom quanto a matemática para desenvolver o pensamento científico. É possível, se fizermos a pesquisa que sugeri, que descubramos por que tantos engenheiros viraram suco (o nome de uma lanchonete na avenida Paulista, em São Paulo, no final dos anos 80), por que tantas pessoas passam por uma formação de primeira qualidade em carreiras disputadíssimas para, depois, tomarem outro rumo. Parece um enorme desperdício alguém estudar numa excelente faculdade de medicina ou de engenharia para, depois, escolher outra carreira. São numerosas essas pessoas, ou constituem exceção? Certamente elas são minoria, mas não quer dizer que sejam, em quantidade e em qualidade, insignificantes. Do que aprenderam, quanto lhes serviu? E lhes serviu como? Porque servir não quer dizer apenas ter um uso imediatista. Acabo de redigir um projeto de curso de ética para futuros empresários e economistas, na Faculdade Pitágoras, de Belo Horizonte, e nele proponho que a última aula – para essas pessoas que por profissão cultuam e hão de cultuar o sucesso – seja voltada para o sentido pedagógico e ético do fracasso. É fundamental que elas saibam, que todos saibamos, que em certas circunstâncias é melhor perder do que vencer. Há vitórias de Pirro. Há um êxito profissional que aniquila a pessoa. E da mesma forma há aprendizados inúteis, profissionalmente, mas que dão à pessoa em formação (isto é, potencialmente, a qualquer um de nós) uma profundidade de campo para lidar com uma vida em risco. Não se trata, então, de fazer esse follow-up dos nossos ex-alunos para descartar as (in)formações que não tiveram papel em sua vida. Às vezes, pode ser exatamente o contrário: notar o que lhes faltou, perceber o que truncou suas vidas pela falta. Alguns excelentes alunos que passaram por mim, na pós-graduação, não conseguiram terminar suas teses, não porque fossem fracos, mas porque aliavam a uma inteligência de priLEITURASCONTEMPORÂNEAS 14


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meira qualidade uma autocrítica tão severa que não chegavam a completar o trabalho; faltou, na formação que tiveram, talvez psicologia ou simplesmente humanidade. Ficaram amputados em sua capacidade de realização. Imagino que no mercado de trabalho possamos detectar multidões de egressos das IES a quem falta algo essencial, algo que os impede de se realizar melhor; e descobrir esse ponto truncado será quase fabuloso, de tão importante para pensarmos melhor os cursos, os currículos. *** Mas a questão é que a vida tornou-se extremamente arriscada. Podemos perder o emprego; uma profissão inteira pode ser substituída por um novo software; mesmo aqueles de nós que são efetivos, como os professores de universidades públicas, têm diante de si a perspectiva de uma aposentadoria muito pior do que esperavam; os casamentos se desfazem; os filhos somem. Todos os fatores de estabilidade que antes tornavam a vida segura, dos profissionais aos pessoais, dos mais secos aos mais quentes, do dinheiro ao amor, estão sendo postos em xeque. Isso requer, na formação da pessoa – e sobretudo na educação que culmina na universidade –, que se construa para cada um o que eu chamaria uma profundidade de campo, uma retaguarda. Não podemos viver sem este espaço de intimidade onde possamos retemperar nossas forças, assegurar uma nova dose de energia, ter a convicção de alguma paz. Antes, a cena pública – no caso, profissional – era mais segura, e a profundidade de campo, para o caso do desemprego ou do insucesso na profissão, era garantida pela família. O mundo público e o íntimo ou, se quiserem, a boca e o fundo do palco eram, ambos, seguros. Hoje, gostemos ou não, ambos os espaços, o da visibilidade profissional e o da invisibilidade afetiva, o da transparência exibida porém frágil e o do ocultamento tonificante, foram seriamente perturbados. A vantagem que situação tão adversa proporciona é somente uma: que ficamos mais livres para trilhar caminhos mais adequados às capacidades e desejos de cada qual. Não precisamos mais nos modelar segundo um rol escasso de possibilidades, tanto profissionais quanto pessoais. Mas esta vantagem tem de ser agarrada com todo o empenho, com paixão, porque ela é a única vantagem que se tem, num contexto tão caro e custoso. Estamos pagando um preço muito caro pela vida, hoje, em termos tanto profissionais quanto pessoais; então, que pelo menos aufiramos o bem que nos custa tanto. Como, então, formar esta profundidade de campo? Penso que a Universidade tem sua contribuição nisso. Antes de sugerir qual seja, porém, tenho de dizer que não é só ela que deve incumbir-se disso; este deve ser um empenho de todos nós, na medida mesma em que tomemos consciência desta crise generalizada das posições sociais, FACULDADESJORGEAMADO 15


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incluindo as profissões e os compromissos, que vem desde décadas e parece que continuará ainda por bastante tempo. Mas a universidade pode melhorar este quadro de duas formas. A primeira é alertando para esta instabilidade que tomou conta da vida atual. Ela tem condições de captar o que é um mundo de que desapareceu a solidez. Ela pode descrevê-lo, conhecê-lo, apresentá-lo. Fazê-lo é diminuir as ilusões de que se nutrem as pessoas, e isso é bom. E assim agindo a universidade pode – segundo ponto – reduzir a dor que esse chão ensaboado proporciona. É aqui que entra o que chamei profundidade de campo. Não é a universidade que construirá a profundidade de campo afetiva, o espaço formado por vínculos de amizade e de amor que é essencial para nossa subsistência e crescimento. Mas a academia pode elaborar uma outra profundidade de campo, numa associação entre conhecimento e ação, entre saber e sabedoria. Volto, aqui, ao projeto de curso de Humanidades, de que antes falei. Tradicionalmente, entendeu-se por muito tempo que, para sua boa formação ética, o homem – e mais ele, o varão, do que a mulher – deveria passar por uma boa leitura dos clássicos, de preferência os greco-romanos. Essa convicção nasce na Roma antiga, reaparece com a Renascença e está presente ainda nos inícios do século XX, em nossa República Velha, dessa feita com um forte viés conservador. Não é nada disso o que pretende o nosso curso de Humanidades. E isso pela simples razão de que o mundo atual não comporta, em absoluto, a idéia de obras clássicas como fiadoras da estabilidade dos valores essenciais, que era o que pretendia a convicção a que aludimos. A formação do homem de bem passava, então, pelo aprendizado de uma ética permanente, inconteste. Ora, tudo o que dissemos até aqui enfatiza, em nosso tempo, a mudança. Daí que um curso de Humanidades tenha hoje um sentido inteiramente distinto do que seria a formação ética estável de outros tempos. Seu sentido só poderá ser o de lidar com a mudança. Pode-se e deve-se trabalhar com os clássicos, sim, mas pela sua qualidade, por sua excelência filosófica, artística e literária, e não por valores morais que eles portariam no lugar de sua qualidade específica. O que se procurará estudando o cânone da cultura humana – ocidental mas também oriental – será acentuar as diferenças, ao invés portanto de uma ilusória homogeneidade e permanência. Um dos mais destacados críticos literários do século XX, Erich Auerbach, começa seu livro Mímesis distinguindo uma forma de narrar bíblica, e judaica, de uma homérica, e helênica. Essas diferenças, essas irredutibilidades são o que interessa ressaltar. Se educarmos pessoas que não partam da crença na existência de uma única teoria certa, mas que tenham sido formadas no confronto de linguagens, de teorias, enfoques e abordagens, sabendo que cada uma dessas ferramentas de pensar está dotada de LEITURASCONTEMPORÂNEAS 16


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qualidades mas também de limitações, teremos diante de nós uma geração de pessoas mais apta a lidar com o que é mutável no conhecimento e no mundo. Não as conformaremos a um único modo de conversar com o mundo; esse tipo de formação é, hoje, desastroso no mais alto grau, por deixar as pessoas inteiramente despreparadas para as crises que tenham em suas vidas, além de ser intelectualmente insuficiente, por vender-lhes como verdade definitiva o que, cientificamente, nunca pode ser mais que provisório. Uma última palavra: é evidente que um projeto de curso como o de Humanidades não pode servir de modelo para toda uma universidade, ou sequer para o seu setor de Humanas. É um curso experimental, antes de mais nada. Mas ele pelo menos permite marcar um ponto, a meu ver essencial, que é o de como podemos e devemos enfrentar um mundo em mudanças. Isso exige uma reflexão final sobre o mercado de trabalho. Penso que à universidade cabe promover sobretudo a formação dos alunos, enquanto o seu treinamento pode ser conduzido no ambiente das empresas. Obviamente, a formação é mais integral do que o treinamento. Este, por sua vez, é mais mutável, mais específico, mais nervoso, mais sujeito aos tempos: uma escola de jornalismo, por exemplo, que pretenda treinar para as redações terá na verdade que mudar a cada ano ou mesmo semestre suas rotinas – e o fará mal, enquanto num órgão de imprensa o recém-contratado poderá aprender, em bem poucos meses, as técnicas que porventura ainda lhe falte saber. A universidade não deve tentar fazer (mal) o que a empresa pode fazer melhor. O papel do ensino superior é o de fazer bem o que só ele pode fazer – no caso, formar pessoas para um ambiente de mudanças. Se dermos às pessoas a densidade intelectual, cultural e ética que depois as capacite a enfrentar – e mesmo a esposar – as mudanças que experimentarem ao longo de suas vidas profissional e pessoal, teremos dado a elas o melhor de nós. E os ambientes de trabalho em que elas depois se integrarem proporcionarão a sintonia fina dos meios pelos quais exercerão sua vida profissional. É claro que isso não significa dois compartimentos estanques, um a cargo da universidade, outro, da empresa (e, por que não, dos sindicatos, dos movimentos sociais). Um diálogo entre esses dois mundos é mais que desejável. O curso seqüencial pode ser um feliz exemplo disso, se articular bem disciplinas intelectuais distintas para preparar um bom profissional em áreas que, por sua própria natureza, são de fronteira. E quando se diz que hoje o aprendizado nunca cessa, e que vivemos numa sociedade do conhecimento, é importante que a empresa – a cliente por excelência que pode, inclusive, custear esse trabalho de informação e formação constantes – esteja articulada com o ambiente da pesquisa acadêmica. Nada do que eu disse, portanto, propõe um alheamento dos dois mundos. Mas não conseguiremos converter o que é assustador, FACULDADESJORGEAMADO 17


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neste mundo instável em que hoje estamos, em produtivo e promissor, se não soubermos proporcionar uma formação densa e rica que prepare as pessoas para as trajetórias tão díspares, tão imprevistas, que é cada vez mais freqüente que venham a ter.

REFERÊNCIAS RIBEIRO, R. J. (Org). Humanidades: um novo curso na USP. São Paulo: EDUSP, 2001.

NOTAS 1

Este artigo foi orginalmente escrito para um encontro da ABMES, em Brasília.

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Projeto Humanidades

O todo e o detalhe na mandala


NÚCLEOHUMANIDADES

I. APRESENTAÇÃO

Hoje a universidade se dá por satisfeita, considera que cumpriu o seu dever, ao formar um médico, sem que ele jamais tenha lido um romance sequer. Um engenheiro que nunca tenha ouvido uma sinfonia. Um advogado que nunca marejou os olhos com um soneto. Que médico é esse? Que advogado é esse ? Que homens são esses? Que universidade é essa? Que sociedade é essa?. Alcione Araújo, escritor e dramaturgo

No final de 2001, começou a circular, no meio acadêmico brasileiro, um livro organizado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro: Humanidades – um novo curso da USP. A obra expõe o projeto de implantação de um curso experimental de graduação. Sua proposta consiste em fazer dialogar as ciências humanas (psicologia, antropologia, sociologia, história, política, economia) e as humanidades (filosofia e artes). O filósofo Sérgio Rouanet propõe: ...chamar de humanidades as disciplinas que contribuam para a formação do homem independentemente de qualquer finalidade utilitária imediata, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paidéia, vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na tradição, ou simplesmente proporcionar um prazer lúdico (ROUANET, 1988, p. 309).

Janine Ribeiro acredita que o acesso às Humanidades “fecundará a pesquisa em ciências humanas”. Para isso interessa, não exatamente a assimilação quantitativa de conteúdos, mas sim, saber ler, saber escutar, experienciar a arte. Segundo ele, é importante desenvolver a sensibilidade estética, pois ela permite renovar o conhecimento. Na verdade, sabemos que tanto a ciência quanto a arte exigem sensibilidade e razão para se desenvolverem e significarem produtos. Os dois registros não atuam apenas numa relação de complementaridade; existe, sim, necessariamente, uma fusão entre essas duas formas de experiência, afinal, são partes da condição humana. Mas como pensar então de uma maneira sensível? Como professores, o que observamos, em nossa prática de sala de aula, é que existe, por parte do alunado, do professorado, das instituições, enfim, da sociedade contemporânea, um imediatismo pragmático, isto é, o conhecimento é visto como algo que deve servir a um único fim: o mercado. Vemos assim, no dia-a-dia, os programas das disciplinas, as cargas horárias, os anos de formação escolar reduzindo-se drastica-

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PROJETO HUMANIDADES

mente e os conteúdos programáticos dos cursos sofrerem um processo de superficialização. Tudo isso em função de liberar, o mais rápido possível, o profissional para o mercado de trabalho. Essa postura generalizada tem significado um desânimo crescente por parte dos alunos e dos professores que não vêem mais no conhecimento um campo de reflexão e experiência estética. Entendemos por estética, a experiência do sensível (do grego aisthetikê), uma experiência que toca nos sentidos: os instrumentos materiais e cognitivos de percepção. Essa percepção só é possível com as condições do gosto. Gostar é ser atraído por algo que faça sentido para o sujeito. Essa ausência do gosto e, portanto, do desejo pelo conhecimento, é notada não só no meio acadêmico. Se percebemos em sala de aula um desânimo quase crônico, ele nada mais é do que algo constatado na sociedade como um todo. Podemos encontrar essa idéia na teoria dos fractais de Benoit Mandelbrot:

Escola de Atenas: o prazer do saber

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NÚCLEOHUMANIDADES

Os fractais são formas geométricas que são igualmente complexas nos seus detalhes e na sua forma geral. Isto é, se um pedaço de fractal for devidamente aumentado para tornar-se do mesmo tamanho que o todo, deveria parecer-se com o todo, ainda que tivesse que sofrer algumas pequenas deformações. (MANDELBROT, apud PARENTE, 1996, p.197)

Portanto, ao colocarmos uma lente de aumento sobre a pessoa, sua identidade individual irá mostrar a ambiência cultural da qual faz parte. Somos todos alunos e professores, uma composição das forças em jogo – os programas culturais (família, escola, trabalho etc) e as coerções biológicas. Contemos as informações básicas do meio em que fomos forjados, como cada célula do corpo contém informações morfogenéticas do todo (MONOD, 1989). O modelo de sociedade em que vivemos e, por conseqüência, o modelo educacional vigente, desvincula o gosto do conhecimento. É bem provável que este processo tenha a ver com a supressão das humanidades dos currículos durante a ditadura militar, nos anos 60. Rouanet (1988, p. 307) aponta uma estreita relação “entre o fim das humanidades e o fortalecimento do regime autoritário”. Se considerarmos que a filosofia, as artes e a literatura desenvolvem a capacidade crítica e imaginativa fica fácil entender por que elas foram banidas, naqueles anos de repressão. A proposta de recolocar em pauta as humanidades busca motivar alunos e professores, através de um espaço para a imaginação, para a criatividade e para o prazer. Foi justamente com o intuito de resgatar a relação de prazer com o saber que as Faculdades Jorge Amado inauguraram um espaço de reflexão e ação – o Núcleo Humanidades. Ligado à Diretoria Acadêmica, formou-se para desenvolver um projeto que, inspirado na proposta de Janine Ribeiro, pudesse vir a se adequar ao contexto de uma faculdade privada na cidade do Salvador, Bahia. Os contatos estabelecidos com o autor foram estimulantes. Janine Ribeiro mostrou-se inteiramente aberto à possibilidade de ver seu curso se expandir pelo Brasil. Com o seu apoio para adaptar o projeto, o passo seguinte foi convidar professores afinados com a proposta e com formação em várias áreas do conhecimento (que passam pela filosofia, psicologia, antropologia, cibernética, história, arquitetura e artes) para compor o Núcleo. A composição multidisciplinar do Humanidades vem ao encontro do que Janine Ribeiro chama de “poliglotismo cultural”. Segundo ele, Um mundo complexo como o atual torna impossível dar conta de seus problemas mediante uma única linguagem. (...). Não é estranho, por isso mesmo, que em toda a parte surja o clamor por um trabalho que quebre as fronteiras das disciplinas, que procure ligá-las de alguma forma (RIBEIRO, 2001, p.32).

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PROJETO HUMANIDADES

A proposta não é sintetizar os vários olhares e narrativas sobre o mundo, mas justamente pluralizá-los. Portanto, o diálogo entre humanidades e ciências humanas não significa convergência, ao contrário, pode às vezes indicar contradições, impasses, refutações. O que está em jogo é despertar a sensibilidade e o senso crítico do estudante, e também do professor. O objetivo é resgatar as humanidades como elemento chave do debate intelectual e acadêmico. Atuando desde março de 2003, como um coletivo que busca construir uma experiência interdisciplinar concreta, o Núcleo Humanidades realizou, até junho, uma série de Seminários Internos, em que cada professor expôs aquilo que lhe movia, ocasionando confrontos entre teorias e práticas. A partir daí, surgiram quatro Eixos Temáticos que são a base deste projeto e temas dos artigos desta revista. As atividades deste Núcleo somam-se a várias outras atitudes institucionais no sentido de criar um ambiente acadêmico efervescente. As diretorias Acadêmica e Pedagógica entendem que a universidade deve ser um espaço aberto de reflexão, de criação e difusão do capital cultural do nosso e de todos os tempos históricos. Para isso, é preciso potencializar, não apenas o domínio de técnicas, mas principalmente a capacidade de fazer sinapse, articular conteúdos, conectar idéias de variadas fontes. Esse é o grande trunfo nos caminhos do conhecimento do século XXI. A seguir, apresentaremos os Eixos Temáticos, pilares das disciplinas propostas e dos artigos desta revista.

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NÚCLEOHUMANIDADES

E a cultura criou a humanidade...

II. EIXOS TEMÁTICOS Enquanto o projeto original parte da Filosofia, nossa reflexão parte da Cultura. Nossos eixos temáticos – Identidades – Narrativas – Mercadorias – Cidades – se organizam através de amplos processos culturalmente constituídos que atravessam todas as épocas históricas. Partimos do pressuposto de que nos tornamos humanos a partir da cultura. “Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem a cultura não haveria homens” (GEERTZ, 1978, p. 61). Buscamos os pilares da humanização ou eixos do processo civilizatório. Mas, antes de desenvolvê-los, é importante explicitar o que entendemos por cultura. A noção de cultura é multissignificada. Na concepção antropológica, pensa-se a cultura como toda e qualquer criação humana, como imaginação simbólica e como modo de vida. A cultura não é, portanto, uma abstração, ao contrário, sua concretude é onipresente pois se manifesta em todas as dimensões da existência: na esfera etnolinguística, política, econômica, religiosa, artística, sociocomportamental e fisiológica. O modo de vida de um povo é a interconexão de todas estas esferas, perpassado ainda pelos aspectos históricos e geográficos. A cultura é a própria estrutura do pensamento. Segundo Edgar Morin, A cultura, que caracteriza as sociedades humanas, é organizada / organizadora via o veículo cognitivo da linguagem, a partir do capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, das competências aprendidas, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade. Assim se manifestam ‘representações coletivas’, ‘consciência coletiva’, ‘imaginário coletivo’ (MORIN, 1998, p. 23).

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Morin (1998, p. 25) compara a cultura a um “megacomputador complexo” que registraria os dados da experiência; mas não só isso, ele memorizaria esses dados produzindo “quase-programas” que prescreveriam “normas, práticas, éticas, políticas” dessa existência. Segundo ele, podemos chamar de “programas” tudo aquilo que comanda/controla as chamadas operações cognitivas. Essas operações resultariam de uma interação entre “poliprogramas” de origem sócio-cultural, de “inter-retroações dialógicas” entre esses programas, cada um comportando “instâncias complementares, concorrentes e antagônicas”. A própria percepção do mundo ficaria na dependência da conjunção desses fatores culturais e inatos. São eles que vão permitir a configuração de formas e cores em símbolos. Enfim, “tudo que é linguagem, lógica, consciência, tudo o que é espírito e pensamento, constitui-se na encruzilhada desses dois poliprogramas, ou seja, no processo ininterrupto de um anel bio-antropo (-cérebro-psico)-cultural” (MORIN, 1998, p.26). A “hipercomplexa maquinaria sociocultural” comportaria não só um paradigma, segundo ele, “um núcleo organizacional profundo”, que comandaria/controlaria as formas possíveis e virtuais de “uso da lógica, articulação dos conceitos, a ordem dos discursos, mas também modelos, esquemas, princípios estratégicos, regras estratégicas, preconstruções intelectuais, estruturações doutrinárias” (idem). Então, é nesse meio de interações generalizadas (inclusive históricas), entre os programas culturais, que os cérebros/espíritos (as pessoas) encontram seu ambiente, ou melhor, como diria Maffesoli (1995), sua ambiência. O espírito conhece através da cultura, vive através dela, e esta sobrevive pelo espírito, está presente nos espíritos que a compõem – os indivíduos. As interações entre indivíduos e seus programas, então, constituiriam o “Grande Computador”, o “Grande Outro”, como diria Lacan (1978), ou a Cultura. Essa, segundo Morin, abre e fecha o conhecimento que a constitui. Abre, porque é através da abertura da experiência que torna-se possível captar recursos (através principalmente dos indivíduos) para um capital de saber acumulado. Fecha, por outro lado, porque há uma coerção acerca de como isso deve ser feito: regras, mitos, tabus, etnocentrismos etc. “Tudo isso nos sugere a existência de um tronco comum indistinto entre conhecimento, cultura e sociedade” (p.25). Para entendermos a cultura como experiência (COELHO, 2001), vamos trabalhar alguns eixos temáticos. Até agora, apenas a espécie humana desenvolveu um conjunto de características evolutivas que expandiram a organização biológica – o universo simbólico. Algumas dessas características estão contempladas em quatro eixos temáticos que se baseiam na própria linha evolutiva da nossa espécie, também pensados como disciplinas: Identidades – Narrativas – Mercadorias – Cidades. FACULDADESJORGEAMADO 25


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• IDENTIDADES O conceito e uso do termo “identidade” tem sido largamente empregado, mas pouco definido, ou pelo menos, apresenta um uso sem qualquer rigor científico em situações nas quais isso se torna necessário. É claro que nem sempre propomos uma abordagem científica do termo. Mas, podemos assegurar que, até o questionamento de Freud sobre isso, já no final do século XIX, a definição e a aplicação no cotidiano do conceito de identidade está profundamente arraigada numa espécie de ilusão que implica uma série de comportamentos (individuais e coletivos) de natureza basicamente egoísta. Portanto temos aqui, de imediato, uma questão ética. É claro que Freud teorizou sobre o assunto dentro de toda a precariedade conceitual e científica condicionada pelos valores da época. Como nós, ele também não podia fugir disso. Mas, que ilusão seria essa, tão básica, e que se apresenta como conseqüência nas ações individuais e coletivas?

O homem desvenda o universo e a si mesmo

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Seria a percepção do “eu” como a única dimensão subjetiva possível. Isso era tão estrutural na percepção de si e do mundo quanto o “fato” da Terra ser plana, até a Modernidade primeva, com Copérnico; ou o Homem como ser à parte, como imagem e semelhança de Deus, questionada por Charles Darwin. Paradigmas “egóicos” guiaram e, infelizmente, guiam muitas percepções e ações do humano no mundo, gerando seus efeitos altamente centralizados e centralizadores em egos (percepções e ações egoístas). É aqui que propomos levar, à discussão, as concepções dos alunos e professores sobre si, e conseqüentemente sobre o mundo. Essa deverá focar a posição do “eu” dentro de uma organização social fundamentalmente subjetiva. Discutiremos os pilares conceituais que sustentam o que chamaríamos aqui de “paradigmas do egocentrismo” em ciências humanas, nas humanidades e na sociedade como um todo. Reparem que usamos aqui a palavra subjetiva, e não individual. Vamos tirar qualquer identificação direta do termo “subjetividade” com a idéia de “individualidade”. Subjeto é sujeito. Segundo nossa concepção, nada indica que o sujeito seja o eu. Podemos depreender da Psicanálise e de algumas teorias bio-antropo-psicológicas (BATESON, 1986; CHARDIN, 2001) que o sujeito da ação, da cena, não pode ser reduzido ao “eu”. Simplesmente porque existem outros sujeitos em cena, como o “você”, o “ele”, o “nós”. Segundo Lacan (1978), o inconsciente se estrutura como uma linguagem. Isso quer dizer que, mesmo numa manifestação individual, as ações provêm de “vozes” (como em gramática) ou “comandos” (como em informática) das várias dimensões subjetivas. As funções subjetivas eu, tu e/ou ele (e seus plurais) se manifestariam, insistimos, mesmo num único indivíduo. Isso se demonstra numa frase qualquer, como “eu faço tal coisa e odeio fazer isso”. Mas, se eu odeio isso por que “eu” o faço? Talvez a idéia seja mais bem formulada assim: eu odeio isso (a consciência do eu), mas o tu, o ele e/ou o nós o fazem porque isso interessa a essas dimensões. Enfim, os pronomes seriam funções subjetivas e se manifestariam mesmo numa dimensão individual; muitas vezes à revelia da função “eu” do sujeito, da percepção de si do indivíduo. Portanto, a dimensão subjetiva seria eminentimente coletiva e virtual (não se situaria em nenhum centro fixo, só temporário, como diria Lévy, 1996). O indivíduo, por outro lado, seria, como o nome diz (o que não se divide), a dimensão ou a unidade material do sujeito. A personalidade, a persona, a pessoa, enfim, seria a composição final dos vários elementos subjetivos (inclusive as vozes ou comandos) sobre um indivíduo, grupo ou sociedade. O grupo de alunos, que é o nível onde vamos trabalhar, seria a dimensão intermediária entre o indivíduo e a sociedade global, um dos centros onde os processos de regulação cultural se passam. A cultura seria o programa geral de como a regulação vai se dar. FACULDADESJORGEAMADO 27


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E aqui entra a identidade e seus mecanismos. Para que o personagem se “identifique” (eu sou eu e não fulano; nós somos isso e não aquilo) e seja identificado pelo Grande Outro, como diria Lacan, os mecanismos de identidade ficam permanentemente ativos, expulsando da consciência da cena tudo que não seja “eu” ou “nós”. Essa atividade seria condicionada, como propõe a psicanálise, por uma economia subjetiva. Esta qualificaria, segundo Laplanche e Pontalis (1984, p. 167), “tudo o que se refere à hipótese segundo a qual os processos psíquicos consistem na repartição e circulação de

A identidade é a resultante de uma coletividade e não um produto individual

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uma energia quantificável (energia pulsional), isto é, suscetível de aumento, de diminuição, de equivalências”. Nela se distribuem os “investimentos” e “retiradas” de “valores” das representações e dos objetos. Nela se passam os conflitos de valores, a destinação dos investimentos afetivos e materiais, impedindo e favorecendo esses valores a ocuparem o centro ou a periferia da cena. “De um modo geral, todo o funcionamento do aparelho pode ser descrito em termos econômicos como atuação de investimentos, desinvestimentos, contra-investimentos, superinvestimentos” (LAPLANCHE; PONTALIS, op. cit., p. 169). Temos aqui, então, a base do preconceito, a exclusão de percepções, concepções, estéticas: a lógica exclusiva, por excessos de investimentos nos mecanismos de defesa identitários. Novamente uma questão ética provinda de questões econômicas. Aliás, os mecanismos que mantêm a minha/nossa singularidade são os mesmos que buscam excluir as diferenças. Assim como as defesas imunológicas de um organismo biológico são necessárias à integridade e estabilidade funcional do indivíduo, os mecanismos identitários também o são para manter a integridade e estabilidade da subjetividade numa pessoa (em “personagem”, ou melhor, em personalidade, seja individual, grupal ou social). Mas, assim como as defesas biológicas podem, pelo excesso, se degenerar em alergias e grandes inflamações, os mecanismos identitários podem, pelo excesso, se tornar paranóicos e atacar tudo que ameace o ego (individual e coletivo), suas percepções, suas concepções, seus gostos etc. Com isso, entramos também no plano epistemológico: a lógica exclusiva, por excessos nos mecanismos identitários de defesa. Propomos intervir aí, de maneira a levar as pessoas a perceberem que os seus conceitos mais “subjetivos” são tão “objetivos” quanto a realidade que os rodeia e são tão caóticos e harmônicos como esta. A combinação ou configuração das idéias – os paradigmas – são a base dos comportamentos individuais e/ou coletivos. A concepção de “eu” em que se baseia a concepção de mundo formata a relação com este: o egoísmo, a poluição, a opressão de outras espécies e etnias que não sejam a sua etc. Trata-se de considerar os mesmos fatos: subjetividade, identidade, personalidade e individualidade. Ementa Identidades e Identificações. Economia Subjetiva. Funções Subjetivas: Diversidade e Diferença. Construção de Identidade. Mestiçagens. Conteúdos Individualidade, Subjetividade, Personalidade e Identidade. Grupos e Individualismo. Preconceito e Tolerância. Ética.

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• NARRATIVAS O processo de narrativização ocupa um lugar central da comunicação humana e questiona as fronteiras entre ficção e realidade nas diversas possibilidades discursivas. A narrativa consiste na ação, processo ou efeito de narrar, de expor, de sugerir de forma oral, escrita, musical ou através da imagem (em movimento, plástica ou fotográfica), um acontecimento ou uma série de acontecimentos, mais ou menos encadeados, reais ou imaginários. O ato de narrar acompanha a própria trajetória humana, desde tempos imemoriais. Assim, as narrativas manifestam-se nas pinturas rupestres e nos mitos cosmogônicos, nas lendas e nas odes, nos discursos historiográficos e literários e, em certa medida, nos discursos científico e filosófico. Ao longo da história, a arte e a ciência tomaram as narrativas como objeto privilegiado, como um dos traços civilizacionais da nossa espécie. Desde os narradores e poetas primordiais, passando por Homero, Heródoto, Tucídides, Santo Agostinho, Galileu, Newton, os Irmãos Grimm, Baudelaire, Marx, Freud, Nietzsche, Proust, Foucault e Lyotard, as narrativas expressam, representam, traduzem, criam e reinventam os universos humanos. Paul Ricoeur (1994, p. 85) defende que a narratividade, na qual se encontram inseridas tanto a historiografia quanto a ficção e o mito, é a forma de expressão da própria historicidade. Sua hipótese de base é que “existe entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural”. Neste ponto, as idéias de Ricoeur se aproximam da de outros teóricos estudados que radicalizam sua hipótese defendendo que nossa estrutura de pensamento é articulada pelas narrativas: Todo señala que la sustancia psíquica es narrativa, tropezamos con narraciones, entramos y salimos todo el tiempo de narraciones, y no se puede suponer un pasado sin que haya en algún lado un paraíso perdido. (YERMAN, 2001, p. 52).

E ainda que Las fuentes de esta necesidad narrativa primordial residen tanto en la naturaleza del psiquismo, ya que la narración es un organizador central, como en la modulación cultural de la realidad. Ambas dimensiones, aunque son específicas, se entrelazan. Como se sabe, hay cierta homologación entre las historias personales y las sociales, entre los ideales del relato y la historia que traducen. (YERMAN, op. cit., p. 87).

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A arte como narrativa

Nesse sentido, as narrativas se configuram como eixo condutor das formas de interpretação dos seres humanos. Como uma estrutura discursiva que, historicamente, estava ligada aos discursos ficcionais, as discussões sobre a narratividade ensejam o questionamento dos limites entre a suposta verdade e ficção características da ciência e da arte, respectivamente. Nessa perspectiva, o olhar e a percepção, inclusive no universo científico, passam a ser revistos dentro de uma lógica que inclui a subjetividade e a relatividade de toda interpretação. A partir dessa lógica, a memória (que se manifesta a partir da oralidade, da escrita e da arte) passa a ser revisitada e revalorizada enquanto espaço de produção de saberes essencias para a construção do conhecimento, para a regulação das trocas sociais e simbólicas e a criação estética. As narrativas permitem a vivência que não seja apenas a da individuação. O contato com as histórias, a sua leitura, seja em que linguagem for, permite resgatar o sentido do coletivo. FACULDADESJORGEAMADO 31


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Dessa forma, estudar as narrativas se constitui num importante caminho para se conceber a filosofia, a ciência e a arte, cujas fronteiras passam a ser questionadas. Ementas Conceitos. Linguagens. Hermenêutica. Ficção e Realidade. Filosofia, Mito e Ciência. Memória, Oralidade e Escrita. Arte. Conteúdos Olhar, Percepção e Interpretação. Pensamento Mítico e Racional. Memória (cordel, repente etc). Literatura. Artes Plásticas.

Todas as culturas narram seus mitos e produzem seus ritos

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Pichação em muro da Feira de São Joaquim em Salvador, Bahia

• MERCADORIAS Compreendemos os mercados como espaços das trocas, da circulação de bens materiais e simbólicos (BOURDIEU, 1987) onde se transacionam genes, línguas, modos, vestes, fenótipos, saberes, valores, tecnologias etc. Neste contexto, tudo pode ser interpretado como mercadoria e o próprio mercado como lugar privilegiado para se observar a trajetória da civilização. Decodificar o significado das mercadorias representa, portanto, uma profunda ligação com a interpretação da vida social, da evolução da sociedade e dos rumos desta evolução. É que as mercadorias não retiram seu valor das relações das pessoas com a natureza, e sim das relações entre elas. As mercadorias existem apenas na coletividade. Como categoria, ela ganha na modernidade uma complexidade maior. Marx destaca que o modo capitalista de organizar e reproduzir a sociedade exacerba o poder das coisas sobre as pessoas, turvando as possibilidades de reconhecimento das relações sociais subjacentes à produção das mercadorias e transformando-as em fetiches. Para ele, o fetiche ou caráter ilusório das mercadorias não se deve ao seu valor de uso, que afinal satisfazem necessidades humanas, mas, sim, ao seu valor simbólico. A sociedade capitalista, por um lado generaliza o mercado, aumentando enormemente a quantidade de mercadorias e, por outro lado, diversifica, altera e multiplica os padrões de consumo, transformando indivíduos em consumidores pela grande ampliação da escala de suas necessidades (CANCLINI, 2001). FACULDADESJORGEAMADO 33


O espaço das trocas inclui bens materiais e simbólicos

Featherstone (1995) avalia o movimento de generalização dos mercados e de ampliação das necessidades e padrões de consumo da sociedade contemporânea como fundador da “cultura do consumo”, compreendida, primordialmente, como “consumo de signos”. Para ele, Usar a expressão ‘cultura de consumo’ significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea. Isso envolve (...), na dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso de bens materiais como “comunicadores”, não apenas como utilidades. (FEATHERSTONE, 1995, p. 121).

A polissemia da mercadoria tem se apresentando como elemento fundamental para definir gostos, estilos de vida e novos formatos identitários. no âmbito da cultura de consumo contemporânea ... o corpo, as roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias de uma pessoa são vistos como indicadores da individualidade do gosto e o senso de estilo do proprietário/consumidor. (FEATHERSTONE, op. cit., p. 119).

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A cultura do consumo torna-se, portanto, um instrumento teórico importante para entender os diferentes estilos de vida. Para Herschmann, os “estilos são produzidos e reelaborados pelos consumidores; são frutos de apropriações, de reagenciamento produzidos no jogo das relações com o mercado”. (HERSCHMANN, 2000, p.59). Isso porque as mercadorias possuem valor simbólico e esse valor é negociado para demarcar diferenças e posicionar os indivíduos e grupos nas relações sociais. Pensamos mercado também como metáfora da efervescência social. Para Maffesoli, o mercado é “animação global da vida social”. Nada escapa a essa colocação em forma, o produto industrial evidentemente, mas também o ‘produto’ literário, religioso ou cultural. O mesmo acontece com as cidades, regiões ou países que, dessa maneira, ‘são ilustrados’ e que, pelo ‘logo’, slogan, ou outro design interpostos, pretendem oferecer de si mesmos uma imagem que deixa marcas e que favorece sua dinamização externa e sua animação interna (MAFFESOLLI, 1995, p. 125).

A animação da vida social passa pela espetacularização do mundo. As guerras, a violência, a política, a copa do mundo, a música, a moda etc tornam-se objetos de desejo para platéias formadoras e formatadas por essa dimensão. O mercado se dinamiza na própria forma de circulação e de apresentação dos bens a serem consumidos. É aí que a forma de circulação ganha um caráter de espetáculo, explorando as características dos bens e acrescentado-lhes outros valores estéticos, morais etc. Uma notícia que revela um escândalo é espetacularizada através da circulação e não mais pelo fato em si. Essa característica do mercado revela que a forma de apresentação molda a percepção do objeto consumível, motiva a apropriação industrial do bem de consumo e estrutura formas diferenciadas de mercado. Essa discussão pretende problematizar as noções de produção, circulação e consumo para despertar no alunado uma postura ativa, tornando-o capaz de perceber as estratégias do marketing publicitário, por exemplo. Instrumentalizá–lo, portanto, para uma leitura crítica do consumo. Mais importante, porém é fazê-lo perceber que o conhecimento é uma mercadoria de alto valor material e simbólico e, portanto, extremamente desejável. Ementa: Produção, Circulação e Consumo. Mercado de Bens Simbólicos. Modas. Espetacularização e Fetiche. Estilos de Vida. Mercados Globais e Locais. Conteúdos Mercado e Conhecimento. Fenômenos Culturais e Indústria Cultural. Política. Tribos Urbanas. FACULDADESJORGEAMADO 35


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O tecido urbano da milenar Marrakesh

• CIDADES Desde os primórdios da civilização humana, as cidades têm sido o local por excelência da produção tecnológica, intelectual e artística das mais variadas sociedades do planeta. Seu papel, na gestação de culturas originais informadas por elementos de diversos povos e movimentadas por uma incessante circulação de idéias, permitiu às urbis uma posição privilegiada no campo da produção humana. Espaços de diversidade étnica, lingüística, comportamental e ideológica, as cidades são guardiãs do debate cultural em todas as épocas históricas e fontes inesgotáveis do imaginário coletivo. Babilônia, Alexandria, Constantinopla, Roma, Cairo, Marrakesh, Oyó, Bagdá, Jerusalém, Beijin, Tóquio, Calcutá, Bankoc, Nova Iorque, Londres, Paris, Veneza, São Petersburgo, Cidade do México, Cuzco, Havana, Salvador. As cidades, ícones de grandeza e miséria, visibilizam tanto as universalidades quanto as particularidades do espírito humano. Sua importância se manifesta também em estatísticas. Quase 50 % da população LEITURASCONTEMPORÂNEAS 36


T贸quio 茅 um dos centros multiculturais do planeta


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do planeta vivem hoje em cidades e esse fluxo não apresenta o menor sinal de retração, ao contrário, calcula-se que, em 2025, essa porcentagem pode alcançar um patamar ainda maior, cerca de 61% (www.oaprendiz.com.br). As cidades são o lugar do hibridismo, da miscigenação. Ao mesmo tempo em que são um espaço mestiço são também o lugar das multiculturalidades, que enfatiza a necessidade do reconhecimento legítimo da diferença. As cidades passam a ser entendidas enquanto caldeirões pluriétnicos e poliglotas. Segundo Andrea Semprini (1997), o processo exibe uma mestiçagem crescente e revela uma “sociedade pós-étnica”. Ela põe em debate a gestão de um espaço policêntrico, onde as noções de centro e periferia se diluem. Uma luta política se trava no campo da cultura em nome da diversidade. Cidades são a fragmentação e a síntese do capital cultural da humanidade. Como gigantescas arenas parabólicas, elas exibem o lixo e o luxo de todos os mundos culturais do planeta. O acesso ao imaginário do mundo judeu, do mundo ocidental, do mundo oriental, do mundo africano e do mundo indígena se materializa no espaço concreto das grandes cidades. As cidades sempre estiveram associadas às tecnologias de seu tempo. As tecnologias foram e são capazes, inclusive, de reconfigurar os espaços urbanos. O surgimento do automóvel, por exemplo, reprogramou vias de acesso, instaurou novas arquiteturas, criou e acelerou mercados urbanos; criou, enfim, outros espaços de fluxos (CASTELLS, 1999). Tecnologias moldam e são moldadas pelas cidades, num ciclo contínuo e interligado de transmutação. O espaço concreto das cidades é também formado por dígitos: novas tecnologias reconstroem o cotidiano das cidades, com seus bancos on line, conferências virtuais, serviços de cidadania à distância. As cidades, em tempos de fluxos binários, de redes telemáticas, tornam-se cada vez mais cidades digitais. Segundo Giddens (1991), ao mesmo tempo em que as relações sociais se tornam esticadas, através de uma rede de comunicação planetária, como parte do mesmo processo vemos o fortalecimento de pressões para autonomia cultural local. Nesse contexto, as fronteiras perdem densidade para dar lugar à experiência concreta do pertencimento a um espaço, um bairro, um território, uma cidade, a nossa cidade. O fascínio que a cidade exerce se manifesta também neste projeto enquanto objeto de investigação. A cidade do Salvador, por exemplo, em sua polissemia infinita desafia e inquieta os mais variados olhares e intervenções sejam eles científicos ou artísticos. Para Lynch (1999, p.2), “a cidade não é apenas um objeto percebido (e talvez desfrutado) por milhões de pessoas de classes sociais e características extremamente diversas, mas também o produto de muitos construtores”. E por que não adentrar os mundos, os meios, as arenas da Cidade da Bahia em toda a sua diversidade? Desvendar cenários urbanos, compreender seu bairrismo e saber lhe LEITURASCONTEMPORÂNEAS 38


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contrapor a sua face cosmopolita e então percebê-la mais densa, matizada, reconstruída, ressignificada. Jeudy (2003) afirma que o que o apaixona na cidade como sociólogo ou filósofo, é que ela é um objeto impossível de tocar. “Nós estamos próximos, fascinados por ela, mas não temos como tocá-la. Ela é enigmática. Há sempre um jogo entre o visível e invisível. Considero a cidade como um pensamento, ao mesmo tempo se constrói e se desconstrói. A cidade é a melhor metáfora do pensamento”. Eis o nosso desafio. Ementa Cidades e Civilização. História da Cidade. A Cidade Planetária. Cibercidades. Mundos, Meios e Arenas. Rede, Centro e Periferia. Multiculturalidades. Conteúdos Cidade da Bahia. Cenários Urbanos. Mídia Local e Poder. Bairrismo e Cosmopolitismo.

A cultura dos povos é a interconeção destas esferas

III. A PROPOSTA Estes eixos temáticos identidades – narrativas – mercadorias – cidades estão intimamente conectados, a aparente separação é puramente formal. Nossa proposta é confrontar esses eixos em vários níveis para daí produzir uma reflexão original, ou seja, que não está contida em nenhuma visão particular, mas é resultante desse cruzamento. O cruzamento implica tanto convergências como contrapontos e mesmo divergências. Isto porque o debate se dará entre os eixos; entre as várias linguagens: filosófica, literária, histórica, cinematográfica, sociológica, psicológica, musical; e no entrelaçamento dos eixos e linguagens. Os eixos não obedecem a uma linearidade, ou seja, podem ser deslocados. Pode-se partir de qualquer um deles para estabelecer diálogos. Algumas imagens poderiam traduzir esta idéia. Deleuze e Guattari (1995) exploraram a imagem do rizoma em “Mil FACULDADESJORGEAMADO 39


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Platôs”(1995) para desconstruir a hierarquia de informações na produção de conhecimento. Essa imagem conecta-se com a idéia de rede. Na rede, o fluxo das interações ganha significado e se movimenta em malhas naturalmente cambiantes, frouxas, até mesmo imprevisíveis, tecidas de real e de imaginário. As redes convergem para onde houver um eixo, uma situação-chave. O processo de interação que faz nascer as redes parece dar conta das novas formas de organização social. Autores como Castells, Hannerz e Eco já exploraram, em diferentes graus, essa idéia sedutora de que as coisas estão conectadas umas com as outras e que, no infinito, elas fazem sentido, ou fazem rede. Os diálogos aqui propostos estão articulados então em forma de rede. Nosso objetivo é relativizar alguns paradigmas. Uma idéia simples pode traduzir nossa questão: transitar entre o ou e o e. O princípio do processo é o movimento, que transforma o ponto em linha. Deleuze definiu assim essa condição: estar no meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as coisas e instaurar uma ‘lógica do e’. Conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre. Não se trata de uma simples relação entre duas coisas, mas do lugar onde elas ganham velocidade: ou ‘entre lugar’. Seu tecido é a conjunção ‘ e...e...e’. Algo que acontece entre os elementos mas que não se reduz aos seus termos”. (DELEUZE; GUATTARI, apud PEIXOTO, 1996, p.201).

O principal desafio da produção de conhecimento do novo século é justamente colocar em pauta esta mudança de paradigma. Nossa reflexão busca fazer parte desse processo. A educação modela o ser e o estar no mundo e não pode ser uma mera formatação do pensar no sentido tecnicista. Ela inclui necessariamente a formação humana. As Faculdades Jorge Amado apostam na lógica do e, para produzir um profissional de perfil diferenciado que possa articular informações capazes de criar novos parâmetros para o mercado. Mais do que especialistas, é preciso formar pensadores. A metodologia de projetos adequa-se a este contexto. Projetos servem pra aprender a pensar, a organizar o conhecimento ao longo de uma vida e não apenas para cumprir disciplinas. Eles partem do trânsito entre o conhecimento e o saber-fazer, rompem com a lógica binária e desafiam os sentidos do saber. • Formatos O Núcleo Humanidades considera interessante experimentar esta proposta através de vários formatos que poderão ir sendo implementados nas seguintes etapas: LEITURASCONTEMPORÂNEAS 40


PROJETO HUMANIDADES

1ª Etapa • Matérias optativas para os cursos de Graduação • Matérias obrigatórias para determinados bacharelados • Curso de extensão para professores • Curso de especialização 2ª Etapa • Bacharelado em Humanidades • Mestrado • Curso livre

IV. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Alcione. O pecado do capital. in: YUNES, Eliana; BINGEMER, M. C. L . (Org.). Pecados. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2001. p. 159-163. (Edições Loyola). BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. Rio de Janeiro: Ed.Francisco Alves, 1986. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais na globalização. 4 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. V.1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CHARDIN, Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 2001. COELHO, Teixeira. A cultura como experiência. in: Humanidades: um novo curso da USP. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 65-101. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1978 GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2001. HANNERZ, Ulf - Explorer la ville: éléments d’anthropologie urbaine. Paris: Ed. Minuit, 1980. JEUDY, H. P. Critique de la esthetique urbaine. Paris: Ed. Sens & Ponka, 2003. LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978. LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. P. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1984. LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, [1997]. MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Porto Alegre: Editora Artes e Ofícios, 1995. MONOT, Jacques. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1989. MORIN, Edgar. O método 4: as idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998. PARENTE, André (Org). Imagem - máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 1996. PEIXOTO, Nelson B. Paisagens urbanas. São Paulo: Senac/Fapesp/MarcaDágua, 1998. RIBEIRO, R. J. (org.). Humanidades: um novo curso na USP. São Paulo: EDUSP, 2001. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1. Campinas: Papirus, 1994. ROUANET, Sérgio. “Reinventando as humanidades”. In: As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 304-330. SEMPRINNI, Andrea. Le multiculturalisme. Paris: PUF, 1997. YERMAN,F. Historia y narracion en psicoanalisis. Topía revista, 2001, 33.

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A Percepção do Eu nas Sociedades Contemporâneas Francisco Formigli*

Resumo: Autores importantes da contemporaneidade questionam o conceito, o estatuto e o uso comum do sentido do eu. Este artigo discute os limites epistemológicos que o egocentrismo impõe aos atos de perceber, pensar, sentir e atuar no mundo e coloca uma proposta para o uso dos termos: subjetividade, personalidade, individualidade e identidade, entendidos como resultantes de uma economia subjetiva. Palavras-chaves: Subjetividade – Personalidade – Individualidade – Identidade

Desde o início dos tempos, os povos percebiam a terra como plana e fixa, como o centro do universo e da existência, idéias profundamente centralizadas e centralizadoras. A concepção de si mesmo não era diferente. O homem “civilizado”, centro da criação, fruto da conspiração de deuses, concebia-se, muitas vezes, como algo à parte do reino animal e mesmo da Natureza. É curioso notar que concepções análogas perduram até hoje com muita força, mesmo nos meios mais “informados”. Vamos acompanhar um pouco a história. Depois desse ponto máximo de fixidez, a própria experiência humana sobre a Terra levou a uma série de insights e observações que favoreciam o questionamento dessa verdade absoluta por alguns, como Galileu e Copérnico. Esta “insanidade” lhes custou caro na época. Entretanto, foi possível abalar as bases de uma construção tão sólida. Começou-se a admitir os fortes indícios de que a Terra talvez não fosse plana como se pensava e como de fato a evidência da visão mostrava. De qualquer forma, continuávamos a ser o centro do universo. Isso foi mudando, com o tempo, para o centro do sistema solar, onde o sol era mais um de nossos satélites. Daí, já não éramos mais o centro de tudo, mas o nosso sol, sim. Mais um pouco, nem mesmo o sol era o centro do universo e colocava-se a idéia de que poderia haver vários centros como aquele. Por fim, chegamos ao consenso de que o universo constitui um espaço e tempo de dimensões não bem determinadas e que, longe de constituirmos seu centro,

* Professor das Faculdades Jorge Amado (Núcleo de Comunicação e Instituto Superior de Ensino); formado em Psicologia e Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBa.


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não passamos de um dentre, talvez, seus trilhões de centros possíveis. É curioso também notar que a concepção de si mesmo ou de um “eu” ou de uma identidade fixa para o universo subjetivo, são baseados na evidência da visão da unidade biológica/material da existência em indivíduos (e aparente autonomia dessa unidade). A contemporaneidade traz um questionamento profundo dessa centralidade absoluta (em oposição a uma relatividade dessa centralidade, e não exatamente sua destruição). Dentre outros, parece que C. Darwin e S. Freud desferiram golpes mortais contra essa percepção de si. O primeiro, demonstrando a continuidade biológica e evolutiva do homem em relação às outras criações da natureza. Já não seríamos mais o centro da criação e da existência animal/material, mas um centro dentre vários que a biologia utiliza para realizar seus ensaios. Freud, por outro lado, levava adiante a possibilidade de que funcionasse dentro da psique algo para além de um “eu”. Esta entidade passaria a ser um centro importante dentro de uma organização subjetiva, mas estaria longe de ser o único. A maior parte funcionaria longe da evidência da consciência e constituiria vários centros irradiadores de comportamentos, sensibilidades, percepções, controles etc. Para que se dê subsídios ao pensamento, entretanto, não podemos deixar de levar em conta, antes de mais nada, idéias bastante frutíferas no que se refere à subjetividade e seu produto, a per- Eu, tu, nós, elas, eles... sonalidade. Pesquisadores das várias linhas estão de acordo em pelo menos um ponto: a personalidade é constituída, de uma maneira ou de outra, pelo conjunto das vivências do sujeito num contexto biológicosocial-histórico, e esse conjunto se inscreve como memória subjetiva. Freud, nesse caso, teve o insight de identificar de maneira explicita que há um fator econômico permeando intrinsecamente toda a questão da subjetividade. Aqui a economia é, digamos assim, a lógica de processamento e distribuição das quantidades de “energia psíquica”, dentro de esquemas qualitativos (sígnicos). Seria então a distribuição/configuFACULDADESJORGEAMADO 43


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ração dos investimentos que determinariam uma posição e uma função do eu, dentro de uma economia subjetiva individual e/ou coletiva. Independente das pretensões psicanalíticas de ser “a melhor maneira (e, talvez, a única)” (BOUGNOUX, 1994, p. 216) de fazer uma economia da subjetividade, o fato é que, sem levarmos em conta esse fator, estaremos correndo sério risco de interpretarmos o humano puramente como um computador. Isto não seria totalmente equivocado. De fato, é possível perceber no funcionamento da memória subjetiva algo da natureza de um computador: armazenar, processar e emitir dados, obedecendo a determinados programas (esquemas qualitativos). O problema é que o sujeito não processa simplesmente dados, sejam quantitativos ou qualitativos; ele processa as próprias quantidades (ou intensidades), destacando e vinculando qualidades (significações). O computador poderia trabalhar, por exemplo, com dados de tempo e de espaço; o sujeito trabalharia diretamente, além disso, a própria temporalização e espacialização (materialização). No processo de subjetivação - isto é, no processo de montagem dessa espécie de computador cósmico – estão implicados universos inteiramente heterogêneos e, no entanto, amplamente integrados. Esses universos, como propõe Guattari-Rolnik (1986) se expressam tanto num nível extra-individual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos, etológicos, de mídia etc.) como num nível imediatamente individual e antropológico (sistemas de percepção, de afeto, de desejo, de sensibilidade, de representação, de imagens, de valor, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, fisiológicos, biológicos etc.). Portanto, a subjetividade seria a resultante do cruzamento desses planos, desses níveis, dessas dimensões na realidade de um indivíduo ou coletividade. Estes seriam transpassados e constituídos por correntes ou fluxos semióticos/energéticos/materiais provindos das várias dimensões da existência, sofrendo inscrições delas e nelas se inscrevendo. Estes fluxos – como os fluxos de capital numa macroeconomia – seriam a própria dinâmica econômica da subjetividade. Além disso, seria interessante situarmos os termos correlacionados com a subjetividade como se, na verdade, se tratasse dos mesmos eventos. Personalidade, subjetividade e identidade são termos normalmente utilizados pelo senso comum de maneira aleatória e equivalente (um pelo outro). Mesmo na ciência psicológica podemos perceber uma igual falta de rigor e a mesma leitura profundamente preconceituosa (por ser também confusa e aleatória) desse fenômeno humano. É justamente aqui que aparece o grave equívoco de se confundir as dimensões subjetivas específicas com a subjetividade como um todo. Esses termos não se equivalem e designam dimensões distintas de ser humano. Cada um diz respeito a modos de funcionamento ou regimes na organização psíquica diferentes. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 44


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Personalidade se refere a uma captação histórica de uma experiência vivida por todo ser humano. A sensação de estar vivendo concretamente uma história. Se formos considerar a etimologia da palavra retomaremos suas origens no teatro. Per sonare: buraco das antigas máscaras utilizadas no teatro, através do qual passava o som da voz do ator (vejam, aquele que atua, terminal biológico da ação, diria) e sua fala provocaria seus efeitos na cena. Com o tempo esse fato passou a nomear o próprio ente ou individuo presente na história: a persona ou o personagem como dizemos hoje. Daí a se popularizar em pessoa, ou seja, quem nós somos, foi apenas em pulo. Sabemos que esse personagem é construído e, mais ou menos explicitamente, que ele ganha vida e atua. A sua aparência de unidade é só aparência: um ator sabe que o personagem vai sendo construído ao longo de um processo, antes de encarná-lo totalmente. Se prestarmos atenção, também percebemos que, não à toa, somos para nós mesmos e para outros uma personalidade. Como no teatro, somos construídos, só que não por um autor individual, mas por um coletivo chamado cultura. Ela fornece os elementos de construção ou montagem desse personagem (personalidade) através de seu acervo de figurinos, trejeitos, línguas e linguagens, costumes e tradições etc. O conjunto dinâmico desses elementos chama-se subjetividade. Sua unificação ou

As máscaras são construções de personalidades

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integração em um sistema funcional singular, chamaremos de personalidade. Para que ela filtre o excesso de informações disponíveis no acervo cultural e organize aquelas que forem necessárias ao personagem, existe um processo econômico (passagens, bloqueios, retiradas e investimentos, como vimos) chamado identidade. Esses mecanismos selecionam os elementos subjetivos: isso aqui, sim; isso, não, isso tem muito valor, já isso aqui é desprezível. Os elementos ou módulos subjetivos, portanto, não só vão construir o personagem, como vão mantê-lo estabilizado (e não fixo) numa determinada natureza de ser, digamos. Não vamos nos deter mais nessas teorizações. O fato é que, a partir daí, apontaremos para um deslocamento dessa centralidade como a única condição legítima para concebermos a existência e o funcionamento humanos. Com isso, queremos chegar a questionar a própria fixidez com que (ainda) se opera a idéia de subjetividade, individual e coletivamente. Não há a proposta de que abandonemos nossos referenciais mais caros da percepção cotidiana. Para todos os efeitos, a Terra continua plana e, até onde posso ver, eu sou eu… Num dos seus seminários, em 1954/1955, Lacan (1985) discute longamente a concepção e a aproximação “clínica” da entidade egóica. Ele começa com uma exposição das concepções de um eu por vários filósofos e estudiosos como Sócrates, Locke, Kant, até chegar a Freud, tentando demonstrar os desvios e vicissitudes na situação de um conceito como esse. Baseado em observações, ele conta, Freud elabora um conceito de dimensão inconsciente da subjetividade, começando com isso a deslocá-la de uma idéia basicamente consciente de sua constituição. A própria identidade eu = consciência, a uma certa altura da concatenação das observações, não parece mais se sustentar: “(…) quanto mais Freud avança em sua obra, menos consegue situar a consciência, e ele tem de acabar confessando que ela é, no final das contas, insituável” (LACAN, 1985, p. 15, grifo nosso). É um primeiro passo para um deslocamento das concepções em torno de uma subjetividade em que o ego centraliza não só as idéias como as ações (e, portanto, a economia subjetiva). Não que nada disso tenha sido pensado antes, mas nunca de maneira tão sistemática e objetivada. O sujeito não se confunde com o indivíduo: isso teve a força de uma revolução copernicana na visão de homem e de mundo que se formou na contemporaneidade. Lacan (1985, p.16) quer levar às últimas consequências a idéia de que “o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionando como sujeito, é diferente de um organismo que se adapta”. O organismo se regula em primeiro lugar pelas condições do ambiente material no qual está inserido, do qual faz parte. O sujeito, por outro lado, não fica submetido apenas o ambiente físico, mas a universos simbólicos e imaginários, isto é, ao universo das significações. Portanto, ele está deslocado do terminal biológico individual para univerLEITURASCONTEMPORÂNEAS 46


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sos de histórias, enredos, narrativas, estilos, estéticas etc., que são sempre universos coletivos (não existe um ego unitário no planeta; mesmo que se viva sozinho, está-se conectado a um coletivo pela língua e pela genética, por exemplo). O sujeito estaria em jogo através de uma série de forças para além do que a sua organização egóica, histórica (individual), poderia determinar. Dentro de uma organização psíquica identificada e estabelecida haveria uma outra que não partiria somente do princípio de um si mesmo = eu, mas de um si mesmo como outro; “… a sua conduta toda fala a partir de um outro lugar que não o deste eixo que podemos apreender quando o consideramos como função num indivíduo, ou seja, com certo número de interesses concebidos na areté individual” (AUTOR, ano, p. 16). Os interesses do sujeito podem ir muito além das necessidades do indivíduo, como mostra esta trecho da música dos Titãs, que estourou nos anos 80: Bebida é água / comida é pasto / você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida / a gente quer comida, diversão e arte (...) A gente não quer só comida / a gente quer saída para qualquer parte...” (Comida, in Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, 1987)

A obra de Lacan é toda dedicada ao desenvolvimento dessa idéia básica e à elaboração de vários conceitos do autor, como o Outro, objeto a, esquema Z etc., que serão utilizados então como operadores psicanalíticos e como argumentos também para dissolver a crença absoluta do eu em sua autonomia constitutiva. “Esta convicção (um autonomous ego) ultrapassa a ingenuidade individual do sujeito que acredita em si, que acredita que ele é ele - loucura bastante comum e que não é uma loucura total, pois faz parte da ordem das crenças”. Ibid., p. 20. Ou seja, a subjetividade é tão autenticamente percebida pelo ego quanto se percebe a Terra como plana. Então, se concebe o ego como se fosse a unidade individual, reduz-se o sujeito ao eu e este ao indivíduo e suas “necessidades”. Novamente, cremos na evidência da nossa percepção. Lacan diz, daí, que o problema de uma reificação do eu, do autonomous ego, se reflete num tipo manipulação de uma concepção da realidade em que se acaba legitimando que uns “existam” mais do que outros e corroborando um padrão egóico que se desenvolve dentro de uma “normalidade” esperada, formulada a partir de certas necessidades sempre de fundo orgânico e usando-se o parâmetro de “indivíduo”. Tudo isso daria uma discussão ampla e produziria um trabalho específico. Aqui basta-nos frisar que esse questionamento sistemático de um eu autônomo deu frutos, como uma nova visão do homem no mundo, sua identidade, e a visão do próprio mundo como suporte de uma existência inteligente. Podemos apontar a fixação da psicanálise em reificações dos seus próprios conceitos, caindo muitas vezes na armadilha de um FACULDADESJORGEAMADO 47


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reducionismo relativamente fácil. Uma visão de individualismo que fora questionada nas bases voltou depois pela entrada dos fundos, reduzindo sua análise do homem a uma eterna novela familiar (papai, mamãe e eu) onde um contexto cultural e antropológico ficou muitas vezes esquecido. Guattari (1986), contribui também para essa descentralização do eu como o centro de ação dos fenômenos subjetivos. Acredita que toda idéia de identidade passa sempre por um agenciamento de módulos subjetivos que se desenvolvem numa dimensão extra-individual, embora possa se singularizar em uma individualidade. Mas, não é aí que o processo nasce e provavelmente o grosso de sua constituição se passa em outro lugar. Sua idéia básica parte também da crítica ao procedimento cognitivo de se fazer a identidade coincidir e se restringir a um ego e seus processos individuais, sendo que qualquer fenômeno de ordem social, antropológica ou de ordem molar, enfim, seriam fatores de “influência” sobre a subjetividade considerada como um eu. Para ele não seria uma questão de influência de um contexto sobre um sujeito, mas esses dois elementos seriam coextensivos de uma mesma realidade; às vezes dotada de consciência individual e/ou coletiva, às vezes se manifestando de forma invisível e difusa e/ou fora de uma organização egóica, mas, igualmente subjetiva e passível de singularizar “identidades”. A psicanálise já teria aberto, em princípio, uma trilha com a idéia de que “haveria pontos de singularidade subjetiva aquém das estruturas do ego e das estruturas identificatórias. (…) Para aquém do discurso da identidade e do discurso do ego, modos de subjetivação podem se encarnar no corpo, em discursos de imagens, em discursos de relações sintomáticas, em relações sociais, etc”. Ibid., p. 67. Quer dizer, muitos comportamentos que se manifestam no indivíduo não fazem parte sequer da história pessoal reconhecida pelo ego. Muitas identificações acontecem sem que haja qualquer assistência de um eu. Mais ainda: antes da formação subjetiva que mais tarde será um eu os processos e mecanismos de identificação já estariam atuando. O autor quer ir além da psicanálise e propõe uma diferenciação de termos que são comum e indiferentemente utilizados. Identidade e singularidade seriam dois conceitos completamente distintos. “A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência (...)”. Ibid., p. 68. Isto quer dizer que a existência de cada um é necessariamente específica, particular: nenhum indivíduo pode “existir” pelo outro, nenhuma entidade material pode estar no mesmo lugar de outro ao mesmo tempo, já dizia a física clássica. Por isso que singularidade é um conceito existencial. Já identidade seria um conceito de referência porque, como a expressão diz, você se refere sempre a algo (significações, estilos, repertórios de comportamentos etc.) para demarcar a parte subjetiva a que você se reporta e/ou pertence. Não haveria nenhum problema em utilizar quadros LEITURASCONTEMPORÂNEAS 48


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A teatralidade é uma expressão flagrante da subjetividade

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de referência como guias de realidade, afinal, é assim que temos funcionado. O problema é que na prática há uma redução da singularidade a um determinado quadro de referência (como a identificação nos procedimentos policiais reduzindo o sujeito a uma carteira de identidade, a um registro identitário burocrático, ou ainda o processo de identificação situado pelos freudianos, reduzindo sua identidade a conceitos de referência, como “o” histérico, “o” sádico etc.). Ou seja, “a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referências identificável”. Ibid., p. 69. Guattari chega a afirmar que os conceitos (que frequentemente tornam-se pré-conceitos) de cultura e identidade cultural muitas vezes são profundamente reacionários: “a cada vez que os utilizamos, veiculamos, sem perceber, modos de representação da subjetividade que a reificam e com isso não nos permitem dar conta de seu caráter composto, elaborado, fabricado, da mesma forma que qualquer mercadoria no campo dos mercados capitalísticos”. Ibid., p. 71. Então, diferentemente do procedimento cognitivo e epistemológico de assimilar identidade e subjetividade, o autor propõe que “A identidade cultural constitui, a meu ver, um nível da subjetividade: o nível de territorialização subjetiva” (Ibid., p. 73), já que se trata de um processo de demarcação e não uma substância em si. Ele já sai mais da idéia de identidade circunscrita pela psicanálise a um processo psicológico principalmente individual, para planos existenciais mais amplos que extrapolam o individual. Com isto, o autor questiona enfim o próprio conceito de identidade cultural: “A noção de ‘identidade cultural’ tem implicações políticas e micropolíticas desastrosas, pois o que lhe escapa é justamente toda a riqueza da produção semiótica de uma etnia, de um grupo social ou de uma sociedade”. Ibid., p. 73. Portanto, para ele, cada vez que nos aproximássemos de determinado grupo ou evento social/existencial teríamos que chegar desarmados de um a priori, como a idéia de identidade (cultural, no caso) entificada, e apreendê-los como processo, como dinâmica. Maffesoli (1996) também é um autor que insiste sobre esse ponto. Para ele o individualismo seria um lugar comum que se tornaria delicado questionar. Entretanto, uma “lógica de identidade”, tão cara principalmente ao pensamento moderno, estaria dando claros sinais de saturação na própria estruturação cotidiana da contemporaneidade. Essa lógica se mostra como “algo inteiramente relativo, que não é, de modo algum, constante nas histórias humanas, e que se pode, portanto, considerar que assuma uma outra forma”. Ibid., p. 301. O que ele propõe chamar de “lógica de identificação” frisaria seu caráter mais processual e menos pontual. Mas, o que indica essa saturação de uma “identidade estável e garantida por si mesma”, tão presente no pensamento moderno? Seria a predominância do prazer dos sentidos, o reino da aparência, a barroquização do mundo social, a naturalização da cultura, a relevância da imagem. Ele LEITURASCONTEMPORÂNEAS 50


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desenvolve por toda a obra os pontos onde tudo isso determina essa deterioração da definição da individualidade como determinante de identidade. Aqui basta destacar o fato de que o próprio funcionamento da sociedade contemporânea não permitiria mais a sustentação da lógica de identidade: a indeterminação sexual, o ecletismo ideológico, a versatilidade política, a mestiçagem dos modos de vida demonstrariam bem essa dissolução, ou melhor, essa flutuação dinâmica. Uma certa fragilidade do eu, que estaria presente na literatura, por exemplo, agora assumiria contornos mais nítidos nas manifestações cotidianas, como os vários papéis existenciais que um mesmo indivíduo ou grupo poderia exercer, muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Isso demonstraria “o caráter movediço da individualidade humana”, sempre frisado na literatura em geral, levando-o a afirmar que “o eu é apenas uma ilusão, ou antes, é uma busca um pouco iniciática, não é nunca um dado, definitivamente, mas conta-se progressivamente, sem que haja, para ser exato, unidade de suas diversas expressões”. Ibid., p. 303. E completa: o que um poeta formularia desse modo, o homem contemporâneo vive no seu dia a dia. O eu torna-se uma frágil construção, circula entre vários modos de existir, ele não tem substância própria, mas constitui-se de uma propriedade humana de funcionar com centros de ação que se formam e se regulam pelas interferências do mundo circundante. Então, “(…) o que merece ser notado é que o sujeito é um ‘efeito de composição’, daí seu aspecto compósito e complexo”. Ibid., p. 305. Isso também não teria nada completamente novo. O próprio autor cita o exemplo de Heráclito, que promove uma abordagem segundo a qual o sujeito pode ser pensado a partir do outro, de uma alteridade. Em algumas épocas e ocasiões isso se tornaria mais evidente. É o que estaria acontecendo agora. Essa lógica podendo designar não só os outros em torno de mim, mas os outros em mim-mesmo. Cita então F. Jacques, “a existência do eu está, então, sem conceito”, para apontar que ela se constrói na relação, na lógica comunicacional (Ibid., p. 305) e não num ponto pré-estabelecido chamado conceito. É por isso que Maffesoli reafirma um processo ou lógica da identificação, antes de se falar em identidade. Na verdade o que ele parece querer denunciar e desmontar é a “visão jurídica e psicológica de um indivíduo senhor de si, associado contratualmente com outros indivíduos para construir a vida social”. Ibid., p. 306. O afeto, a economia, a religião, enfim, a vida comum, tal como atualmente estão organizados, tratariam de desmistificar essa visão e mostrar uma outra possibilidade de ligação entre as pessoas. O autor propõe a certa altura que façamos a distinção de indivíduo, que representaria a tendência a estabelecer uma identidade forte e particularizada, e pessoa (persona), que procederia por identificações sucessivas. “Ao indivíduo, oposto à pessoa, FACULDADESJORGEAMADO 51


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corresponderia a identidade, oposta à identificação”. Ibid., p. 309. Esta é a proposta dele, mas seria interessante notar que em relação à polaridade indivíduo (fechado) e pessoa (aberto) Maffesoli não propõe a forma correta, mas a que predomina de acordo com “l’air du temp”. Na contemporaneidade a pessoa parece se evidenciar e o indivíduo começa a se dissolver em multiplicidades de estilos de vida e jeitos de ser que constituem a maior parte das sociedades atuais. Enfim, a pessoa pode se manifestar por via de várias máscaras, que poderiam encarnar em um ou mais indivíduos, sem que isso tivesse necessariamente que estabelecer algo como “a identidade do indivíduo”. As pessoas são, além do mais, constituídas por um forte componente hedonista, isto é, “todas as potencialidades humanas: a imaginação, os sentidos, o afeto, e não apenas a razão, participam dessa construção”. Ibid., p. 310. Voltando a F. Jacques, Maffesoli pesca uma formulação daquele autor para afirmar a lógica dessa construção, uma lógica comunicacional: assim como haveria identificações sucessivas em diferentes momentos da comunicação, haveria também identificações de diversas facetas da própria pessoa. Poderia-se falar de uma relação triádica na comunicação com o si mesmo: “relação mais rica, visto que comporta três pólos em vez de dois: o eu constitui-se como um isso diante do ti interior” (F. Jaques). E Maffesoli discorre durante algumas dezenas de páginas em torno dessa argumentação básica, de forma muito interessante, diga-se. Mas vamos parar por aqui. Essa exposição poderia continuar indefinidamente. Fora o fato de que teríamos de pôr em jogo os argumento de autores que apontam para os exageros e distorções que esse questionamento pode favorecer. Mas isso fica para um outro momento. Talvez possamos adiantar agora que o que se passa seria análogo à discussão inicial em física: a luz é um fenômeno de partícula ou de onda? As maiores desavenças teóricas e os maiores esforços experimentais foram feitos no sentido de que cada lado “provasse” a sua posição. Até chegarmos a conclusão de que, dependendo do ponto de vista, dos métodos de análise e experimento, de um contexto enfim, o fenômeno da luz poderia ser corretamente interpretado como onda ou partícula. A luz passou a ser considerada então como um fenômeno de onda e partícula ao mesmo tempo. Nós ainda temos uma dificuldade quase que estrutural de operarmos com fenômenos que apresentem características mutuamente excludentes no plano racional. De qualquer forma, isso parece demonstrar a onipotência que a nossa organização racional expressa ao negar qualquer possibilidade que, em princípio, não siga parâmetros preestabelecidos ou que contradigam uma lógica binária exclusivista. Talvez seja uma questão de evolução do pensamento; não em seus conteúdos, pois os sistemas e teorias que temos atualmente são bastante complexos em termos de conteúdos. Mas, talvez o funcionamento operacional apresente ainda uma série de limitações que não permiLEITURASCONTEMPORÂNEAS 52


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tem um avanço na apreensão e na constituição de uma realidade. Os recortes de realidades acabam sendo até bastante coerentes, mas, um tanto “duros”. É interessante a articulação de nosso objeto a essa idéia de onda/partícula porque, se repararmos bem, trata-se da mesma problemática epistemológica em outro plano. Não é uma “mera” analogia. Poderíamos considerar que as modulações subjetivas mais especificamente identitárias, que não se atualizam diretamente em um corpo individual ou em comportamentos definidos, seriam consideradas onda (no sentido da física/matemática em que onda é antes uma equação de forças em jogo). Caso desejemos considerar um fenômeno subjetivo em sua especificidade fenomenológica, em sua singularidade fenomenológica, enfim, em sua forma particular, teríamos então que interpretar aquele fenômeno, dentro de um contexto, como partícula, como particularidade, isto é, como personalidade. Para concluir, darei um exemplo banal, que não se acha diretamente dentro da obra dos autores acima, mas que demonstra muito bem do que estamos falando. No período de aquisição da fala, em que a criança já começa a emitir idéias rústicas e formular de forma primária os desejos, é curioso o fato de não se referirem a si na primeira pessoa do singular. O que esse fato aparentemente banal quer dizer? Que elas não têm ainda um processamento e um registro de que função elas ocupam na língua. Elas não podem emitir “eu” simplesmente porque este não está ainda constituído. A função subjetiva “eu” ainda não foi elaborada, programada, situada. O “personagem” ainda não está construído, portanto, a personalidade ainda é rudimentar, precária. A criança se trata, se vocês prestarem atenção, sempre na terceira pessoa: “fulaninho quer beber água, fulaninho está com raiva, fulaninho quer brincar...”, referindo-se a si mesma. Ela é o outro. O que parece banal, o que ninguém presta atenção, o que não consta nem na obra de autores importantes como os que acabamos de acompanhar, é, parece, o fato mais fundamental na argumentação de todos que afirmam o eu como construído e não dado desde sempre. É complicado pensar isso. É ininteligível para a maior parte das pessoas. Mas, os fatos falam por si. Em algum momento eles farão as mentes darem “up grade” no processamento das informações do mundo e de si próprios. Verão, talvez, que elas e este mundo são a mesma coisa.

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A Rede Mestiça: Notas Sobre Cibermestiçagem e Hibridismo Digital André Stangl*

Resumo: Este artigo trata das transformações da identidade cultural contemporânea facilitadas com o advento das redes digitais. Este novo estágio da interconexão planetária está gestando uma nova mestiçagem, a cibermestiçagem. A mestiçagem tem uma lógica própria aos objetos híbridos, portanto, faz-se necessário uma revisão do modo como reconhecemos a relação entre sujeito e cultura. A malha de redes digitais que se espalha pelo planeta permite a troca e a transformação cultural numa velocidade nunca vista antes. O nosso esforço aqui é reunir alguns dos aspectos envolvidos nessa transformação do sujeito e de sua identidade. Palavras-chaves: Internet – Mestiçagem – Mundialização

Como uma corda vibrante que soa, o mestiço não cessa de oscilar – de cintilar – entre as boas notícias e as más, entre a vantagem e o desprezo, a indiferença e o interesse, a informação e a dor, a morte e a vida, o nascimento e a expulsão, o tudo e o nada, o zero e o infinito, o ponto do qual jamais se fala, entre os dois focos, solar e negro, e o universo que ele semeia. Michel Serres

INTRODUÇÃO Se Gilberto Freyre fosse vivo e conhecesse a internet, qual não seria seu espanto ao presenciar o surgimento de um novo tipo de mestiçagem, a cibermestiçagem. Agora a mistura de culturas se dá também no ambiente virtual. O que, aqui, nos propomos a chamar de cibermestiçagem, pode ser descrito como um lugar onde, no ciberespaço, as trocas culturais se dão de forma mais intensa. Pessoas de lugares e culturas das mais diversas podem hoje experimentar um novo tipo de convívio. O ciberespaço ainda é um fenômeno recente. Aos poucos, vamos incorporando em nossa rotina procedimentos que somente são possíveis graças ao advento da internet. Por exemplo, pagar contas, trocar piadas por e-mail, ler os jornais, fazer compras, sexo, copiar músicas e filmes, * Professor de Filosofia das Faculdades Jorge Amado, Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA) e Webdesigner.


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receitas e livros, entre outras coisas. Mas uma possibilidade tem sido particularmente sedutora: conhecer outras culturas. A metáfora da navegação é um dos principais símbolos da rede digital. Na frente de um computador conectado à rede, somos todos como Marco Polo. Um mundo a nossa frente a ser descoberto. Essa “e-topia”1 já é uma realidade, mas o mundo que descobrimos na internet não é o mundo que encontraríamos numa viagem que envolvesse o deslocamento de nosso corpo físico. Encontramos na internet um outro mundo que também é capaz de transformar nosso olhar. A mistura de culturas na internet muitas vezes se dá através de um acidente, pois é natural que todos nós tenhamos o hábito de navegar em busca do semelhante. Mas também podemos, nessa busca, encontrar algo que normalmente não buscaríamos. A comunicação em escala planetária, propiciada pela internet, transforma o sujeito das culturas tradicionais em um novo sujeito. As listas de discussão e as salas de bate-papo são espaços onde o sujeito se reinscreve na sociedade: sexo, idade, localização, etnia e classe social tornam-se abstrações. Podemos ser um código (como por exemplo, um nickname, uma URL ou um e-mail) de uma nova e temporária identidade. Ou então o sujeito pode recriar seu sexo, idade, localização, fenótipo e classe social num processo de negociação, visando algum interesse específico. Podemos também tentar assumir nossa velha identidade, anexando em nossos novos contatos alguma descrição sobre nós mesmos. Mas, mesmo assim, já não seremos os mesmos. Na possibilidade da configuração personalizada de perfis variados que os programas de troca de e-mails2 e arquivos oferecem, já se explicita a fluidez de nossa identidade no mundo digital. O sentido semântico torna-se a nossa nova identidade e o cimento de nossas novas relações. No caso de nossas antigas relações, surgem novas facetas, que antes, no contato face a face, não eram notadas. Suas posições, sua originalidade e seus gostos delimitam seu novo território e as relações construídas a partir daí estão unidas pela tentativa de compartilhar um sentido comum. O que pode ocorrer, mesmo quando os participantes desse encontro são oriundos de culturas diversas. Essa cibermestiçagem é oriunda da nova identidade que assumimos na rede e da transformação de nossa própria cultura, ante as possibilidades desse novo espaço. Segundo Alain Touraine3, o grande problema da convivência entre culturas diferentes não está na coexistência tolerante, pois esta é possível e até simples, estando inclusive garantida pela constituição da maioria dos países. O problema que fica sem solução é a comunicação entre os indivíduos de culturas diferentes que tendem a viver em guetos, sem maiores contatos com o diferente em sua rotina. A internet, então, pode ser uma alternativa para superar essa dificuldade, servindo como um espaço para a gestação de uma nova sociabilidade mestiça. Nesta nova sociabilidade emergente, na cibersociabilidade, não existem limites FACULDADESJORGEAMADO 55


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geográficos ou fronteiras. Assim, um dos aspectos implícitos a essa sociabilidade pode ser a multiculturalidade, sendo este um dos movimentos sociais mais presentes no mundo de hoje e uma espécie de reação à globalização desigual que está em processo. A principal reivindicação da multiculturalidade é a preservação de um espaço para culturas minoritárias em sociedades em que outras culturas são hegemônicas (Cf. GONÇALVES; SILVA, 1998). Como no caso dos negros norte-americanos que pleiteiam reformas curriculares sensíveis à sua perspectiva cultural, entre outras coisas. Acima de tudo, o multiculturalismo é a busca da convivência harmônica entre culturas diferentes. Segundo Canclini, existe uma diferença de perspectiva entre o mundo anglo-saxão e o mundo latino quanto à multiculturalidade, que pode ser assim caracterizada, pois, enquanto na América Latina o hibridismo faz parte do discurso de construção das identidades nacionais, no mundo anglo-saxão o multiculturalismo significa um respeitoso separatismo (Cf. CANCLINI, 1999, p. 22). Assim, entendendo o multiculturalismo como mais do que a simples convivência a distância, mas como interação, este se torna um dos aspectos centrais da cibermestiçagem. Claro que na internet também existem movimentos de reafirmação étnica, separatismos e racismo, no entanto, a mistura ainda parece ser uma tendência mais desejável. A figura ao lado nos dá uma idéia bem clara da distribuição da internet pelo mundo em 1999. A figura ilustra ainda uma grande concentração na América do Norte e na Europa, essas duas regiões juntas equivalem à metade dos usuários do planeta6. Mas já se pode notar efeitos da expansão da rede por países latinos, entre outros. Para citar apenas um exemplo, podemos obA internet no mundo5 servar que os chats, antes dominados pelas conversações em inglês, começam a adquirir novos sotaques, o spanglish7. A todo instante estão surgindo novas transformações nos espaços onde antes só quem dominava a língua inglesa conseguia interagir. Para se compreender o fenômeno da cibermestiçagem, temos que olhar para além da dicotomia local global, como na metáfora de Latour: Uma ferrovia é local ou global? Nem uma coisa nem outra. É local em cada ponto, já que há sempre travessias, ferroviários, algumas vezes estações e máquinas para venda de bilhetes. Mas também é global, uma vez que pode transportar as pessoas (LATOUR, 1994, p. 115).

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Latour chama a atenção para a nossa tendência a dicotomizar a realidade, ignorando os elementos híbridos. O hibridismo, segundo ele, está na própria forma do conhecer humano, enquanto o pensamento analítico separa e analisa para conhecer como dominar, um pensar híbrido conhece para transformar. Em busca de compreender melhor a especificidade do hibridismo cultural, iremos recorrer ao estudo desenvolvido por Serge Gruzinski sobre o pensamento mestiço. Isso nos levará a uma melhor compreensão do fenômeno da mestiçagem e dos aspectos envolvidos na interconexão planetária, apontada por Pierre Lévy.

Todas as diferenças são iguais

A LÓGICA MESTIÇA “Sou um tupi tangendo um alaúde”, dizia Macunaíma no antropofágico livro de Mário de Andrade. E é justamente esta frase que percorre o livro “Pensamento Mestiço”, de Serge Gruzinski, de uma ponta a outra, dando-lhe uma saborosa unidade. O livro de Gruzinski adquire uma importância especial com o advento da expansão das redes digitais por países periféricos. Segundo ele, o contato entre culturas diversas sempre gera hibridismos que dificilmente são notados pelos remanescentes das culturas originais. A FACULDADESJORGEAMADO 57


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identidade híbrida ou mestiça é multifacetada e fruto de uma racionalidade nova. Na internet, os frutos dessa diversidade de perspectivas culturais ainda são pouco perceptíveis ao nosso olhar que, ainda hoje, se perde ante uma aparente padronização. O livro de Gruzinski pode nos ajudar a enxergar nossa nova identidade virtual, global e mestiça. O francês Serge Gruzinski é essencialmente um historiador e seu livro é uma genealogia do processo da colonização espanhola no México. Perpassado por análises de filmes de Peter Greenaway e Wong Kar-wai, Gruzinski demonstra raro conhecimento da história das artes do novo e do velho mundo. Uma boa parte de seus argumentos se sustenta na interpretação imagética das pinturas do período colonial mexicano, mais especificamente, os murais da Igreja de Ixmiquilpan e da Casa del Deán, em Puebla; o mapa da cidade de Cholula e o códice8 de Bernardino de Sahagún. Além de grotescos9, cantares antigos e textos diversos. A sua questão central é entender de que forma as culturas se misturam e quais as conseqüências desse hibridismo. O termo Hibridismo vem do grego hybris que quer dizer destempero e excesso. É também um dos conceitos centrais para se entender o legado da tradição helenista; no Fedro, Platão descreve a hybris como a transgressão da justa medida, sendo por tanto uma expressão do caos com suas múltiplas faces e partes. O termo adquiriu ao longo da história um sentido de impureza e mistura. Consciente da dificuldade conceitual do hibridismo, Gruzinski opta por uma abordagem, a princípio fenomenológica: “aceitar em sua globalidade a realidade mesclada que temos diante dos olhos é um primeiro passo” (GRUZINSKI, 2001, p.26). Mas não há como evitar a ambigüidade e a ambivalência da mestiçagem – são elas características próprias dos híbridos – por isso, uma possibilidade de abordagem surge da descrição do fenômeno da mestiçagem e não de sua explicação. Citando Wittgenstein, Gruzinski afirma que “é difícil aceitar que ‘as leis da lógica, terceiro excluído e contradição, sejam arbitrárias’, que nossa racionalidade, ou nossa ‘lógica ordinária’, seja convencional, produto de uma história, de uma tradição e de um meio”. Ibid., p. 243. A frase de Mário de Andrade é um exemplo desse paradoxo lógico: “Sou um tupi tangendo um alaúde. Segundo Gruzinski, essa constatação choca nossos hábitos de pensamento, pois ainda hoje a presença de contradições é considerada uma marca irrecusável do irracional”. Ibid., p.243. Quando analisadas de perto, as relações entre colonizadores e colonizados demonstram complexas relações de troca. Para Gruzinski, o produto do choque entre duas culturas não será mais algo do campo de entendimento exclusivo de nenhuma das duas, será algo novo que só novos parâmetros de entendimento ajudam a compreender. Assim, quando Gruzinski cita o caso das pinturas nos murais da Igreja de Ixmiquilpan10, o que se relata é o surgimento de uma nova estética que ultrapassa os olhos do renascimento europeu e do entendimento dos povos pré-hispânicos. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 58


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Elementos europeus e índios formam uma trama estranha, fascinante e inextrincável. Atribuiremos ao Renascimento as guirlandas vegetais enfeitadas de acantos, os capitéis carregados de granadas (?), os rostos agressivos, apavorados ou angustiados dos combatentes, os perfis careteiros, grotescos e pontudos, a nudez dos jovens guerreiros exibindo nádegas carnudas, os centauros, os hipogrifos e as criaturas monstruosas de espécie fitomorfa. As poses dos guerreiros vencidos e agonizantes são inspiradas em modelos europeus, tal como a tensão dramática que marca as cenas e os personagens. (...) Em contrapartida, atribuiremos ao mundo ameríndio a ausência de profundidade, a cor uniforme do fundo (...), a figuração estereotipada dos atores – cabeças representadas de perfil, peito em visão frontal–, o cromatismo e os pigmentos. (...) O armamento e a roupa dos guerreiros são de origem ameríndia. (...) Esse inventário sumário valoriza a natureza heterogênea da obra. Mas de tanto separarmos as peças que a constituem, acabamos perdendo de vista a singularidade e a estranheza das combinações. Ibid., p. 122-124.

Mestiço sem %

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O entrelaçamento de símbolos cristãos e pagãos nessa pintura também nos ajudam a perceber a complexidade dos elementos híbridos. Segundo Gruzinski, o coração representado no emblema agostiniano tanto pode ser o símbolo fraternal do amor cristão quanto “uma referência ao sacrifício humano”, prática comum aos povos pré-hispânicos da região em questão. Temos a tendência de enxergar os elementos isoladamente, o que, no caso das obras híbridas, sempre revela uma incompletude, nem uma coisa nem outra. O desafio está justamente em perceber a obra híbrida como ela mesma é, ambivalente e ambígua. “O híbrido não é a marca deixada pela continuidade da criação. É o produto de um movimento, de uma instabilidade estrutural das coisas”. Ibid., p.179. Evitando restringir-lhe a polissemia, podemos com ela aprender uma nova forma de percepção. O termo ameríndio ixiptla traduzia para os monges o conceito de imagem, assim, o ixiptla de um santo era sua imagem. A tradução dessa noção trazia para os nativos a idéia de representação, uma concepção até então desconhecida para eles. Mas até que ponto essa tradução era efetiva? Gruzinski relata o conflito que surge da idolatria que os índios presumivelmente nutriam pelas imagens dos santos. Instruídos pela catequese a referenciar os santos pelas imagens, os nativos referenciavam as imagens que, segundo a perspectiva deles, eram os próprios santos e não suas representações. A linguagem também se transforma com o fenômeno da mestiçagem, surge um novo idioma planetário e este “é também a expressão de uma retórica mais elaborada que deseja ser pósmoderna e pós-colonial, e na qual o híbrido permitiria se emancipar de uma modernidade condenada por ser ocidental e unidimensional”. Ibid., p. 41. Para além dos estereótipos do exotismo, o hibridismo impõe uma nova mentalidade, da qual, segundo Grunziski, uma parte do chamado pensamento pós-moderno é filha. O fenômeno do hibridismo cultural atinge diversas sociedades das mais diversas formas. (...) mesmo reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as misturas datam das origens da história do homem, não podemos reduzir o fenômeno à formulação de uma nova ideologia nascida da globalização. O fenômeno é a um só tempo banal e complexo. Banal porque o encontramos em escalas diversas ao longo de toda a história da humanidade e porque, hoje, ele é onipresente. Complexo, porque parece impalpável quando pretendemos ir além dos efeitos da moda e da retórica que o cercam. Ibid., p. 41-42.

O fenômeno da miscigenação não é novo, sua memória se perde na história humana. Povos nômades foram os semeadores da espécie no planeta. A consolidação do estado-nação europeu se deu, pelo contrário, com a maturação do sedentarismo de alguns povos (Cf. HALL, 2001). Desta sedimentação nasceu uma revolução tecnológica: as grandes navegações. E novamente os nômades semearam outros portos, passados LEITURASCONTEMPORÂNEAS 60


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alguns anos, um pouco mais de 500, outra revolução tecnológica empurra os nômades em sua cíclica missão: a interconexão planetária. Mas, dessa vez, algo mudou, o semear agora se dá no campo simbólico da cultura. A mistura agora pode se dar apenas em nossas mentes, o mestiço de hoje é um novo olhar. Stuart Hall, analisando a chamada crise de identidade do mundo contemporâneo, afirma que: Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado (HALL, 2001, p. 88).

Para Hall, a complexidade do fenômeno da hibridação cultural está nas múltiplas implicações que estes cruzamentos podem ter, desde um reforço nas identidades locais, passando pela questão da “geometria do poder”, ou mesmo o impacto da compressão espaço-temporal. Cf. Ibid., p. 80. Sobre este último, Hall afirma que o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. (...) Assim, a narrativa traduz os eventos numa sequência temporal ‘começo-meio-fim’ (...). Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaçotempo. Ibdi., p. 70.

Sobre a questão do reforço das identidades locais ou nacionais, Hall nos lembra que cultura alguma é pura, sendo sua unidade fruto de um dispositivo discursivo que unifica a diversidade (Cf. HALL, op. cit., 62). A Inglaterra, por exemplo, unifica-se sobre os matizes diversos de indianos, africanos, germânicos etc. Hall reforça que o conceito de raça também é uma categoria discursiva, portanto, não há uma prevalência do biológico sobre o cultural. Falar de mestiçagem11, em um sentido mais amplo, é falar da vida em sua totalidade12, sem que nossa visão esteja direcionada por qualquer perspectiva cultural exclusiva. É olhar o caos e aceitá-lo como parte de nós. A idéia de mestiçagem quer romper a armadura da cultura, é a identidade sem entidade, é a origem de novo, é a invenção da tradição. O pensamento mestiço fala com sotaque, mas fala sem tristeza e sem melancolia, pois não perdeu nada de seu passado, toda sua experiência é reaproveitada, não há erro nem culpa.

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A NOVA ESTÉTICA DO HIBRIDISMO DIGITAL Dentro da nova conjuntura de inter-relações propiciada pela internet, está também o desenvolvimento de uma nova estética. Podemos falar de um novo modo de ser, essa nova estética traz consigo uma nova ética. Os padrões de consumo e produção estão cada vez mais sofrendo confluências múltiplas, o que pode ser notado em diversos suportes, como a moda, o cinema, a literatura, o design etc., mas seria exaustivo tentar mapeá-la em todos seus desdobramentos. Todas as possibilidades de mistura são potencializadas pelas tecnologias digitais. Há uma nova estética na arte digital (webart, flash), no cinema digital e na música eletrônica. A tecnologia atravessa fronteiras e é usada até por aqueles que recusam a ‘suposta’ ocidentalização do mundo, assim por exemplo, terroristas islâmicos usam a internet sem que este uso descaracterize sua identidade. Agora, vejamos o caso da música, pois: Seria praticamente impossível querer entender a popularidade do multiculturalismo, sobretudo entre os jovens sem considerar o papel da música em sua formação. Alguns estudos que analisam o assunto têm assinalado a emergência de uma nova estética musical com um pequeno detalhe: etnicamente elaborada. (...) O fenômeno musical do multiculturalismo é híbrido, ou se preferirmos, miscigenado (GONÇALVES; SILVA, 1998, p. 29).

A forma mais explícita da nova estética do hibridismo digital está na música eletrônica. Artistas como Nitin Sawhney, Thievery Corporation, Kruder & Dorfmeister, Amon Tobin, Jazzanova, Asian Dub Fundation, Rainer Trüby, Yonderboi, Almamegretta, Dj Dolores, entre outros, são exemplos desta estética híbrida. Quanto mais uma determinada cultura tem fome de tecnologia e de inovação, mais o resultado dessas apropriações é interessante. O exemplo jamaicano é incontestável: dos estúdios mais pobres de Kingston saíram, nos anos 60, técnicas de gravação e mixagem que ainda hoje são copiadas pela vanguarda da música ‘trance’ou ‘ambient’. Também foi no gueto negro das grandes cidades americanas (o Terceiro Mundo dentro do Primeiro Mundo) que apareceram as colagens rítmicas do hip hop, da house, do techno, renovando as concepções de composição musical e da relação música/tecnologia que dominavam a indústria fonográfica. E nos estúdios de Lagos, Nigéria, de Colombo, Sri Lanka, ou do Cairo, Egito, estão sendo produzidas outras novas maneiras de se fazer ou pensar a música que certamente irão ser reapropriadas por músicos do resto do mundo. E assim por diante. (VIANA, 2000) O sujeito dessa nova estética estaria numa espécie de TAZ13. Por isso, a comunidade que a representa é pós-étnica (Cf. SEMPRINI, 1999, p. 30). Esta nova estética LEITURASCONTEMPORÂNEAS 62


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Há milênios, Lao Tse já dizia: “Conheça o mundo sem sair de casa”

também estaria permeada pela influência das novas tecnologias de produção musical, como os softwares de edição, que permitem samplear e mixar loops de ritmos diversos. Assim, a música Raí pode ser misturada com a bossa nova, o reggae pode realçar mais suas ‘raízes’ asiáticas e a música italiana explicitar sua influência moura. As possibilidades são infinitas. Claro que o fenômeno de hibridismo cultural na música não é exclusivo dos dias de hoje, nem da música eletrônica; artistas como Beatles, Led Zepplin, John Coltrane, Gilberto Gil, Debussy, etc., por motivos diversos, fizeram esse crossover. A REDE POLISSÊMICA Segundo Pierre Lévy, estamos passando por uma crise do sentido, o que pode indicar uma transformação das clássicas culturas identitárias em uma “pós-cultura” planetária (Cf. LÉVY, 2000, p. 25). O sentido cultural é simbólico e contextualizado, assim, na interconexão da sociedade global interagindo em sistemas de redes telemáticas, o sentido torna-se polissêmico, em outras palavras, multicultural. FACULDADESJORGEAMADO 63


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Devemos compreender que as culturas identitárias, como tais, são impasses. Se conservamos dela apenas o aspecto identitário, uma cultura não é, então, nada além de um grupo de pessoas que se imitam. Mas, sobretudo, fechando-nos em culturas identitárias, nos separamos dos que são diferentes, e isso pela única e falsa razão de que eles nasceram (por acaso) em um meio que comportava outros modelos de identificação, diferentes dos nossos. A imitação não é um mal em si, pois ela é a base de todas as iniciações, de todas as aprendizagens. Mas a imitação deve ser ultrapassada pela criação, e a identidade pela abertura. As culturas identitárias nos dividem. Elas nos opõem. Elas tornam a alteridade, a diferença e a mudança ameaçadora para nós. Elas correm o risco de nós aprisionar no medo e no ódio. Ibid., 2001, p. 128.

Segundo Lévy, estamos substituindo o saber-estoque pelo saber-fluxo, pois no ciberespaço não há como se fixar um sentido exclusivo, referente a uma só matriz cultural; a internet reflete este momento da cultura global. Ibid., 2000, p. 25. Estamos todos buscando uma nova forma de dizer e ouvir, somos todos estrangeiros, pois estamos todos numa nova realidade. Uma realidade, por que não dizer, cibermestiça e glocal (global + local). A pós-cultura nada tem a ver com o pós-moderno, porque o pós-moderno nega encarniçadamente toda idéia de progresso e, ainda mais, de progresso universal. Ora, do ponto de vista da póscultura, o estado ao qual chegamos é melhor que o estado de cultura. A pós-cultura é um progresso, pois ela se desperta ao mesmo tempo para duas realidades que só se tornam figuras significantes uma tomando a outra como fundo: o caráter de criação contínua da cultura e a unidade da humanidade. Ibid., p. 29.

Tentativas14 como o projeto “MTV Coordinates” ainda parecem muito suscetíveis aos interesses da indústria cultural americana, mas inegavelmente já trazem consigo algo de um polissemismo multicultural. Neste projeto, que envolveu as 21 filiais da MTV15 no mundo, cada uma produziu cinco fotos sobre um dos 21 temas propostos16. Depois, cada filial criou uma vinheta usando as fotos produzidas sobre um tema, assim, por exemplo, a MTV Brasil fez uma vinheta sobre o tema ‘corpo’ usando algumas das 105 fotos geradas ao redor do mundo. Os resultados podem ser vistos no site da MTV Latina ou na programação da MTV local. Não deixa de ser curioso observar que experimentos como esse ainda são raros. Mesmo com os recursos hoje disponíveis de interconexão, as tentativas de integração ou interação entre culturas diversas parecem mais freqüentes nos esportes e no comércio do que no desenvolvimento de uma linguagem híbrida. A literatura, o cinema, a música, a culinária e a moda, entre outras expressões culturais, já refletem há muito tempo o intercâmbio cultural da humanidade. E no caso do “MTV LEITURASCONTEMPORÂNEAS 64


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Coordinates” foram justamente imagens e sons que formaram a base discursiva do projeto17. A internet parece ser o espaço propício para o desenvolvimento de uma miscigenação planetária, mas ainda parece prisioneira de uma comunicação essencialmente escrita. O ciberespaço, enquanto zona de interseção, funciona como um laboratório onde se engendra essa nova linguagem. Mas, para entender e reconhecer essa nova linguagem, será preciso reconfigurar a nossa relação com a linguagem. No ciberespaço, é como se estivéssemos em uma semiosfera, segundo André Semprini, um espaço da gramática desta nova linguagem (SEMPRINI, 1999, p. 121). E, ao que parece, entre as características gerais desta nova linguagem existe a possibilidade de uso dos recursos multimídia (flash, sons, gifs animados etc.). Assim, essa polifonia de formatos acaba sendo mais próxima e adequada ao sentido polissêmico do hibridismo cultural. O relativismo pode ser visto como um dos aspectos principais da polissemia no ciberespaço. No processo de construção do sentido multireferencial ou híbrido, toda verdade é contingente e contextual. Algo que parece absurdo, dentro dos parâmetros de uma epistemologia monocultural (Cf. SEMPRINI, 1999, p. 81). A INTERNET MESTIÇA Experiências como as dos sites Audiogalaxy18 e make-world19 e do evento Satellite Cabaret podem servir para nos demonstrar um pouco da importância que a internet assume no fomento da reconstrução da identidade contemporânea. O extinto Audiogalaxy20 reunia links para arquivos de mp3 do mundo inteiro (P2P). Em 13/04/2002 às Usuários conectados ao Audiogalaxy 03h42mim (horário de Brasília) a distribuição proporcional de internautas conectados ao audiogalaxy era a seguinte21: Recentemente ‘fechado’ pela Justiça com a vitória de uma ação movida pela RRAI, o site/ferramenta se organizava por estilos musicais, assim, na busca de um artista específico acabava-se por conhecer outros ‘semelhantes’. Nas páginas em que se encontravam os links para as músicas, também havia espaço para a inclusão de comentários sobre os artistas. Nestes espaços, curiosas misturas ocorreram, como, por exemplo, na página com músicas do grupo Jazzanova: FACULDADESJORGEAMADO 65


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Message board: jazzanova 03/29/02 robeerg - cool loco ..estos japoneses!!! desde cuando los japoneses cultivan el tecno con bossa...es mi pregunta???...los japoneses tienen onda con los brasileros en la musica ...no visiten brasil estuve hace poco por alla..y es peligroso sobre todo rio 03/30/02 RREEDDFFOOXX - re: cool loco ..estos japoneses!!! Desde quando os Jazzanova são japoneses??? Alemaes... 04/10/02 220363 - re: cool loco ..estos japoneses!!! brasil es posiblemente el mejor pais en sudamerica al menos en musica. y tu ignorancia te delata... 04/12/02 chatomil - re: cool loco ..estos japoneses!!! jazzanova no fusiona techno con bossa ademas de que son alemanes. 04/14/02 cub79 - re: cool loco ..estos japoneses!!! i think we in germany call it just kind of nujazz... it’s just, that they pick up everything that grooves your ass off, gotty see em live... you’ll love it 04/14/02 Iroel85 - re: cool loco ..estos japoneses!!! Jazzanova is from berlin....I love em! Uma estranha polifonia de sotaques: Japão, Espanha, Brasil ou EUA? O participantes deste pequeno fórum ficam aturdidos ante a estética híbrida da banda alemã. O que hoje, no caso, é chamado de nujazz, tem elementos dos ritmos brasileiros e africanos, somados ao jazz e à música eletrônica. No site make-world, Europeus, Latinos, Asiáticos e Africanos desconstroem juntos os limites de suas próprias culturas através de filmes, texto, música etc. A fórmula “0 YES border=0 Location=yes” simboliza a busca dessa nova subjetividade. A fronteira (border) é o zero, nulidade que nada significa e o local a afirmação do espaço sem que haja a fixação da cultura ao lugar. O site em sua página inicial proclama: Fazer o mundo é um comando único usado para atualizar completamente um sistema de operação. É desenhado para seguir os últimos desenvolvimentos uma vez que os recursos locais são sincronizados. Digitar “fazer o mundo” na linha de comando reconstrói e renova todo o sistema enquanto ele está rodando22.

Um convite à subversão cultural que através da sincronia entre todos elimina as diferenças e as fronteiras. O ponto é estar integrado à nova identidade, não importa onde todos juntos podem refazer o mundo. O site tem uma publicação em formato pdf que pode ser baixada gratuitamente. Nela se encontram textos dos participantes do LEITURASCONTEMPORÂNEAS 66


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festival que deu origem ao site. São textos das mais diversas partes do mundo, todos em inglês, mas tentando refletir a formação dessa nova identidade, prenunciada por Mcluhan e concretizada pela internet. Um outro exemplo das possibilidades de fusão oferecidas pela conexão em banda larga foi o show Satellite Cabaret, realizado simultaneamente em Salvador (Bahia) e Grenoble (França) no dia 7 de dezembro de 2002. O show consistiu na reunião de músicos de diferentes culturas para uma jam session via banda larga. O evento, que foi fruto da colaboração entre o 38o Festival Rugissants e o IV Mercado Cultural, impressionou a quem assistiu, via internet23, ou em um dos dois teatros. O que surpreendia era ver ali concretizada uma espécie de mestiçagem digital em tempo real. CONCLUSÃO As conseqüências da convivência entre culturas diferentes na internet ainda são pouco discutidas e suas manifestações mais características ainda são embrionárias. A rede, como um todo, é um híbrido digital de nós mesmos. A lógica da identidade digital não é como usualmente pensamos, uma simples tautologia, um arquivo não é igual a outro, mesmo que tenham conteúdos idênticos. Não estão no mesmo espaço, nem no mesmo tempo; cada arquivo tem seu próprio contexto, seja ele um disquete ou um diretório. Ele não está preso ao contexto, mas se seu contexto mudar ele também muda. A cópia não é o mesmo, é o outro em outro lugar. O mesmo se dá com a identidade cultural individual na rede digital, a existência de uma totalidade não elimina a presença individual, mas esta não é, nem nunca será determinada pela cultura no singular. A cultura digital é inderteminada, é híbrida, é misturada e remixada. Existe a possibilidade de uma nova sociabilidade com a internet, numa cibermestiçagem. Onde não-existem lugares (no border), existe uma totalidade de culturas. A identidade renasce como parte dessa nova totalidade, livre para migrar. As famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX – combinando informática e eletrônica, sobretudo – oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos, com a retomada da criatividade. (...) Desse modo, a técnica pode voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado da natureza – cada vez mais modificada –, permitindo que essa relação seja fundada nas virtudes do entorno geográfico e social, de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência (SANTOS, 2003, p. 165).

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Ainda segundo Milton Santos, estaríamos vivendo o início de uma nova história — uma história universal, de fato, estaria por começar agora. Não há hoje evento particular, seja uma guerra, uma gripe ou um conceito, que não seja universal. Esperamos que seja esse um universal plural, que seu sentido seja dinâmico como somente a vida pode ser. A construção da identidade plural é um dos elementos chaves desse processo. A internet contribui para a complexidade dos fatos contemporâneos, gerando sempre uma perspectiva concreta da diversidade de ângulos. Com a guerra do Iraque podemos constatar que mesmo a verdade já não importa tanto, ter acesso, hoje, é mais importante que ter a certeza do que sabemos. Se de fato queremos a Aldeia Global, devemos abrir mão de uma “verdade” em nome das múltiplas possibilidades da verdade. Onde se possa adotar uma epistemologia multicultural, que empurre o que for certeza para o virtual e o que for plural para o atual.

REFERÊNCIAS BEY, Hakin. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001. CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: ed. UFRJ, 1999. CHALIAND, Gérard. O ritmo das migrações.(Entrevistado por Betty Millan). Folha de S.Paulo, 30/08/1998. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. GONÇALVES, L.A.O.; SILVA, P.B.G. O Jogo das Diferenças: O multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LEÃO, Emmanuel Carneiro. Introdução. In: ANAXIMANDRO. Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. ___________. A Internet e a Crise do Sentido. In: PELLANDA, Nize Maria Campos; PELLANDA, Eduardo Campos. Ciberespaço: Um Hipertexto com Pierre Lévy. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000. ___________. A Conexão Planetária: O mercado, o ciberespaço, a cosnciência. São Paulo: Editora 34, 2001. MITCHELL, William, E-TOPIA: Urban life, Jim – but not as we know it. Mit Press, Cambridge, MA. 2000. PALÁCIO, Marcos. Por mares doravante navegados: panorama e perspectivas da presença lusófona na Internet. In: LEMOS, A.; PALÁCIOS, M. (orgs.). Janelas do Ciberespaço: Comunicação e Cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2000. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2003. SEMPRINI, André. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999. STAVANS, Ilan. As Vozes do Spanglish. (Entrevistado por Marcos Flamínio Peres). Folha de S.Paulo, 20/05/ 2001. TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e Diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999. VIANA, Hermano. Fome e Tecnologia. In: Nação Zumbi. Rádio S.A.M.B.A.: Serviço ambulante da Afrociberdelia. Rio de Janeiro, Ybrazil? Music, 2000. (Cd com encarte).

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A REDE MESTIÇA: NOTAS SOBRE CIBERMESTIÇAGEM E HIBRIDISMO DIGITAL

NOTAS 1

http://www.geocities.com/astangl.geo/ cf. MITCHELL, 2000. 3 No Outlook Express a opção “alterar identidade”, por exemplo. 4 cf. TOURAINE, 1999:16-7 5 Fonte: An Atlas of Cyberspaces. In: http://www.cybergeography.org/atlas/atlas.html (21/07/2002) 6 Os dados sobre a distribuição lingüística na internet ainda retratam uma predominância do inglês - 51,53% -, segundo dados da Global Reach, o que pode ser explicado por diversos fatores, como o uso de sites bilíngües e a hegemonia política e econômica dos EUA. Mas é fundamental perceber também que 48,47% dos usuários da rede falam outras línguas: Japonês 7,2%; Alemão 6,7%; Espanhol 6,5%; Chinês 5,2%; Francês 4,4%; Coreano 3,6%; Italiano 3,3%; Português 1,6% e Outros 1,6% (cf. PALÁCIOS, 2000:189). 7 Segundo Ilan Stavans, autor do “Dictionary of Spanglish”: “O spanglish não é uma forma homogênea e unificada de comunicação. Há diferenças agudas não só no spanglish falado por porto-riquenhos, cubanos, dominicanos e mexicanos, mas também no que é falado em Miami, San Antonio, Nova York ou Los Angeles. E também entre o spanglish urbano e rural. Do mesmo modo, o spanglish se modificou ao longo do tempo, e as formas usadas em um dado lugar no início do século 20 são diferentes das usadas hoje. (...) a mídia e a internet estão criando um certo tipo de síntese padronizada.” (STAVANS, 2001) 8 “Forma característica do manuscrito em pergaminho, semelhante à do livro moderno, e assim denominada por oposição à forma do rolo” (FERREIRA, 1999). 9 “Diz-se do estilo plástico que se originou na imitação de ruínas de edificações descobertas no séc. XIV, em Roma, e que foram tidas como grutas; nelas se encontraram pinturas que retratavam, sob forma de arabescos e linhas sinuosas, homens e animais” (FERREIRA, 1999). 10 Confira no site http://www.interamericaninstitute.org/mural_art.htm algumas imagens. 11 Para Gérard Chaliand “A mestiçagem é mais aparente do que real. Historicamente é um fenômeno involuntário. As duas grandes mestiçagens que o mundo conheceu são a dos negros - o Brasil é o grande exemplo - e a dos índios - de que o México se tornou o modelo. Nos dois casos, a mestiçagem de certo modo foi uma violação. O índio se tornava mestiço, submetendo-se às normas e à língua do branco. O negro produz mulato ou mulata, miscigenando-se com o branco, que em geral não se casa com ele. Não considerando que a massa multiétnica que vejo no metrô em Londres, Paris ou Nova York seja mestiça. Os casamentos inter-raciais são relativamente raros na França e excepcionais entre os ingleses. Que eu saiba, a mestiçagem não existe nos países da Ásia ou da África. Em suma, as únicas sociedades efetivamente acolhedoras são as ocidentais -embora a gente possa criticar o racismo delas. O futuro da mestiçagem parece longínquo.” (CHALIAND, 1998). Mas talvez, não esteja tão longínquo o futuro da cibermestiçagem. 12 Segundo Emmanuel Carneiro Leão, a totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno (LEÃO, 1991:11). 13 Temporary Autonomous Zone - zona autônoma temporária (cf. BEY, 2001). 14 O MIT tem um núcleo chamado sociable media group (cf. http://web.media.mit.edu ) que desenvolve ferramentas para novas formas de interação social na internet. Um de seus principais projetos é o chat circles (cf. http://web.media.mit.edu/~fviegas/chat-circles_CHI.html ) que seriam representações gráficas de comportamentos individuais em salas de bate-papo. Mas até o momento não se tem conhecimento de nenhum projeto que leve em conta a diversidade cultural da comunicação no ciberespaço. Tangenciando esta discussão, faz-se necessário notar o trabalho que tem sido desenvolvido pelo professor Howard Rheingold. Ele tem viajado pelo mundo observando como as pessoas, em diferentes lugares do planeta criam comunidades wireless (cf. http:/ /www.rheingold.com/smartmobs/ ). 15 EUA, Brasil, América Latina, Canadá, Coréia, Itália, Paises Nórdicos, Polônia, Alemanha, França, Espanha, 2

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Ásia, Inglaterra, Rússia, Taiwan, Austrália, Índia, Europa, China, Japão e Holanda. Alegria, amor, beijo, beleza, caos, casa, comunidade, corpo, dançar, futebol, identidades, música, olá, rir, ritmo, sexo, silêncio, sonhar, sorriso, tocar e vida. 17 Um passeio através das diferentes versões internacionais dos sites da MTV serve para constatarmos uma interessante característica da nova linguagem que está surgindo. Todas as versões têm mais ou menos a mesma configuração, algo semelhante ocorre com os portais (UOL, AOL, CNN, BBC, etc.). Essa padronização do formato permite que, mesmo sem entender o que está escrito, por analogia, o internauta reconheça a função dos links: uma coluna com propagandas à direita, ao centro noticias gerais, no rodapé informações sobre o site etc. (http://www.mtv.com ). 18 http://www.audiogalaxy.com 19 http://make-world.org 20 São mais conhecidas hoje as ferramentas de P2P: Soulseek e Kaaza 21 In: http://www.audiogalaxy.com/user/onlineUsersByCountry.php (13/04/2002). 22 “make world is a unix command used to completely update an operating system. It’s designed to follow the latest developments once the local sources are synchronized. Typing “make world” in the command line rebuilds and renews the whole system while it’s running” In: http://www.kein.org/makeworld/ (05/08/2003). Tradução Jan Alyne Barbosa. 23 http://www.38rugissants.com 16

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História Hoje: Problematizando a Narrativa Histórica Cristiane Nova*

Resumo: Este artigo pretende discutir as narrativas, como formas discursivas comuns à História, à Literatura e ao Cinema. Nessa discussão, são citados os pensamentos de autores contemporânes que estão refletindo sobre a natureza dos discursos produzidos socialmente, dentre os quais os históricos que figuram como um dos mais relevantes. Palavras-chaves: História – Narrativa – Cinema.

Nos três volumes de Tempo e Narrativa, Paul Ricoeur advoga que a escrita da história teria sempre a estrutura discursiva do relato (discurso seqüencial em que os acontecimentos se integram numa trama, em torno de uma sucessão temporal), dado que os acontecimentos históricos, pela sua natureza, acabariam por impor uma estrutura narrativa (e isso distinguiria a história das demais ciências humanas). Ele defende que a narratividade, na qual se encontram inseridas tanto a historiografia quanto a ficção e o mito, é a forma de expressão da própria historicidade. Sua hipótese de base é que “existe entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural”. (RICOEUR, 1994, p. 85) Para fundamentar sua hipótese, Ricoeur vai buscar, na tradição filosófica, reflexões sobre dois tipos de tempo, o cósmico, objeto da física e de pensadores como Aristóteles e Kant; e o vivido, íntimo, definido inicialmente por Agostinho e Husserl. Para os primeiros, o tempo é concebido como “movimento de um corpo”. Para os segundos, como “distensão da alma”. Tais tempos, pela sua própria natureza abstrata, seriam intangíveis. Corresponderiam ao que Ricoeur chama de tempo pré-figurado. Um tempo onde tudo está acontecendo, várias histórias ao mesmo tempo, emaranhadas num amplo tecido de vidas imbricadas sem uma lógica que as articule e lhes dê sentido. E então Ricoeur advoga a existência de um terceiro tempo, produzido nas intercessões

* Professora de Linguagens Audiovisuais e Coordenadora do NAU - Núcleo de Audiovisual das Faculdades Jorge Amado. Historiadora e Doutora em Cinema e Audiovisual pela Univerdade de Paris III (Nouvelle Sorbonne).


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dos dois primeiros, que seria o tempo construído pelos processos de narrativização. Um tempo humano por excelência, visto que o único por nós acessível, através da linguagem. Sua função é dar significado aos acontecimentos, retirá-los do caos absoluto em que se desdobram. Assim, o tempo pré-figurado só pode ser apreendido a partir da sua configuração, sob a forma de uma história narrada. E eis como “o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal”. O que está em jogo, portanto, é o poder da narrativa de desvendar o mundo, pois, ao “tomar a narrativa como guardiã do tempo ... não haveria tempo pensado que não fosse narrado” (DOSSE, 2001, p. 70). Ricoeur denomina essa racionalização que o homem faz do seu tempo de “inteligência narrativa”. Essas narrativas, estabelecendo um tipo específico e recortado de organização ao mundo, seriam todas, independentemente de serem puras fantasias ou baseadas em acontecimentos “reais”, recriações humanas. Assim, evidencia-se a ambição epistemológica de sua investida ao defender que toda narrativa é uma reconstrução do nosso “ser-no-tempo”, retomando algumas reflexões sobre a temporalidade em Heidegger. Dentre as diversas vias narrativas, Ricoeur identifica e classifica algumas que se tornaram importantes ao longo da história humana, dentre as quais destaca o mito (racionalizado pela primeira vez na Poética de Aristóteles), a ficção narrativa e a produção historiográfica, todas elas tendo na intriga sua estrutura de base. A primeira teria sido característica de uma fase na qual a distinção entre “real” e “imaginário” ainda não era fundamental para a vida social. As duas outras surgiram com a necessidade de racionalizar os processos humanos a partir da definição de um suposto saber verdadeiro que se contraporia às fantasias produzidas por nossas mentes. Ricoeur tenta demonstrar como esse processo de racionalização acabou impondo uma cisão quase absoluta entre ficção e história, impedindo que a produção científica pudesse se desenvolver plenamente. Na contramão dessa tendência, ele vai buscar refletir sobre os elos de ligação entre essas narrativas, assim como sobre as mediações destas com o “real” (o tempo pré-configurado). Dentro dessa perspectiva, ele defende que o tempo configurado não se contrapõe ao tempo pré-configurado, mas o humaniza, na medida em que o que é narrado é sempre a vida. “Narrar, seguir, compreender histórias é só a continuação dessas histórias não ditas”. (RICOEUR, op. cit., p. 115) Investigando as relações existentes entre o discurso narrativo e as noções de temporalidade, Ricoeur conclui que a chave de todo relato é sua trama ou intriga — a mediação entre os acontecimentos e certas experiências humanas universais da temporalidade, ou seja, aquilo que confere aos os acontecimentos sentido e inteligibilidade: “vejo nas intrigas que inventamos o meio privilegiado pelo qual LEITURASCONTEMPORÂNEAS 72


HISTÓRIA HOJE: PROBLEMATIZANDO A NARRATIVA HISTÓRICA

reconfiguramos nossa experiência temporal confusa” (RICOEUR, op. cit., p. 12). Numa próxima etapa de sua obra, Ricoeur tenta levantar as principais características das narrativas ficcionais e historiográficas para, então, estabelecer paralelos entre as mesmas. Ao estudar a configuração do tempo na narrativa de ficção, realiza uma análise da intriga no mito e sua superação pelas novas formas ficcionais. Faz também um balanço das contribuições da semiótica e da narratologia para a compreensão dessas narrativas. Por fim, analisa a experiência temporal de três obras literárias: Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, explorando a forma como essas obras, ao abordar diretamente a questão temporal, trabalham com níveis distintos de temporalidade, assim como sua relação com a morte e a eternidade. Para o autor, seriam às obras de ficção que devemos, em grande parte, a ampliação de nosso horizonte de existência. Pois a poesia, por seu mithos, teria o poder de redescrever o mundo. Essas obras analisadas comprovariam que a arte narrativa pode funcionar como a máxima expressão da interpretação do vivido, imortalizando o tempo fugidio, ultrapassando o conflito entre tempo e eternidade. Mas, do ponto de vista do historiador, o que mais interessa é o fato de que Ricoeur atribui às narrativas historiográficas a mesma estrutura das ficcionais, sendo que, nas primeiras, a configuração do tempo seria realizada através de conectores específicos, tais como o calendário, a noção de geração, o conceito de vestígio. Mas história e ficção compartilhariam da mesma base, embora não sejam idênticas. O que as diferenciaria, muito mais do que sua topologia, seria o fato de que a historiografia pretende ser, sobretudo, um discurso sobre a verdade, um discurso que representa algo que realmente existiu. Fala-se, portanto, de uma espécie de “contrato de verdade” que une o historiador a seu objeto, desde os mais remotos tempos da historiografia, e que fornece certa credibilidade ao discurso que este constrói. E que, como apontado pelo próprio Ricoeur, não se coloca como oposto nem contraditório com a perspectiva que aborda a história como prática discursiva. Ao abordar o discurso, portanto, Ricoeur não elimina o referente, remetendo-se, sempre, também ao que está fora do texto, à exterioridade da sua referência. Assim, sua análise da história está assentada “sob o signo da representância”, sublinhando ao mesmo tempo o duplo estatuto de realidade e ficção das narrativas históricas. Estaríamos diante, como afirma o historiador François Dosse, de uma abordagem “criacionista” da história, cujo eixo seria exatamente o questionamento da distância instituída pela maioria das tradições historiográficas entre um passado morto e um historiador encarregado de objetivá-lo. A história, assim, seria concebida enquanto recriação, e o historiador estaria na função de mediador entre o “real”, para sempre inacessível diretamente, e os discursos produzidos sobre o mesmo, sempre em FACULDADESJORGEAMADO 73


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Kama Sutra: Um império de sentidos

transformação. O passado, assim, coloca-se como entidade virtual sempre aberta para atualizações do presente. Assim, o passado presentifica-se e torna-se acessível apenas pela memória narrada. Nessa linha de pensamento, podemos também aludir as reflexões que se ocupam da arte, de uma forma mais ampla, e da história, a partir de enfoques “criacionistas”. Para Lúcia Santaella, trata-se de “um giro copérnico” no fazer da historiografia da arte, na medida em que LEITURASCONTEMPORÂNEAS 74


HISTÓRIA HOJE: PROBLEMATIZANDO A NARRATIVA HISTÓRICA

El pasado puede ser revivido bajo la perspectiva de un criterio estético-creativo.Si no se puede negar que el tiempo es irreversible del pasado, «fait-accomplit», no se puede tampoco negar que el presente vivo de la creación tiene el poder de subvertir el orden a través del cual el pasado fue embalsamado. Cada presente obliga a un reencuentro diferente con el pasado. La creación que late con vida en el presente atrae a la superficie de la historia capas sumergidas del pasado, produciendo reversiones en el orden constituido hasta entonces. (SANTAELLA, 1994)

E, ao constatar que “existe muito mais arte na história do que sonham nossas vãs desconfianças”, Santaella aponta para o fato de que essas considerações acabam gerando a necessidade de um “contínuo questionamento das múltiplas dimensões do tempo”, contribuindo, dessa forma, para uma abertura nas perspectivas historiográficas, aproximando-se das reflexões de Ricoeur. No entanto, para Ricoeur, as narrativas historiográficas permaneceram durante muito tempo encerradas num modelo de relato (tido como único) extremamente limitado, que se ancorava numa história factual de grandes personagens e, sobretudo, de temporalidade única e linear1. Apenas no século XX, estas despertaram para outras possibilidades temporais, num processo para o qual foram importantes as contribuições, tanto da historiografia francesa quanto da filosofia analítica inglesa e das correntes “narrativistas”. Assim, a historiografia estaria livre para configurar o tempo através de perspectivas tão ricas quanto as já experienciadas pela literatura, sem, todavia, negar sua especificidade, sem todavia se igualar à ficção, como defendem alguns historiadores mais radicais e relativistas que Ricoeur, a exemplo de Hayden White. É interessante aqui também evocar as idéias do filósofo Walter Benjamin, que em alguns pontos aproximam-se das de Ricoeur. Para Benjamin, a experiência é também partilhada através da narrativa. Dessa forma, no ensaio O Narrador, Benjamin defende que a base de qualquer narrativa, ficcional ou não, é a própria vivência, sendo a “arte de narrar” encarada como a “faculdade de trocar experiências”. Mas ele, diferentemente de Ricoeur, identifica esse compartilhamento com as narrativas orais que, preservando o contexto da comunicação, permitiria uma relação muito mais dinâmica, viva e aberta entre o narrador e o ouvinte. Isso faz com que ele, ao analisar a transformação histórico-social do Ocidente, pontue a existência de uma ruptura no processo de narrativização dessas experiências, que viriam progressivamente se extinguindo, à medida que a escrita se difundia, que o mundo se urbanizava e se acelerava. Estaria se perdendo, aos poucos, a relação entre vida e morte, entre tempo e eternidade, em função de uma incessante busca do novo, do efêmero, que os poemas de Baudelaire apontariam com lucidez. As palavras finais de O Narrador tentam sintetizar poeticamente esse processo: FACULDADESJORGEAMADO 75


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O tédio é o pássaro de sonho que choca o ovo da experiência. O restolhar nas folhagens afugenta-o. Os seus ninhos — aquelas atividades intimamente ligadas ao tédio — já desapareceram nas cidades, na província desmoronam-se também. Deste modo se perde o dom de escutar, e se vai extinguindo a comunidade dos que escutam. Contar histórias é sempre a arte de as contar de novo, que se vai perdendo quando as histórias já não são retidas (BENJAMIN, 1986, p. 102).

Trata-se aqui da alusão de uma problemática central para Benjamin, não apenas no que diz respeito a sua teorização literária, como também a sua reflexão sobre a história: a separação do narrador da palavra tecida na experiência comum e o conseqüente enfraquecimento da própria experiência e, assim, o empobrecimento das histórias. Todavia, a reflexão de Benjamin, apesar de um tom um pouco nostálgico, não defende um suposto retorno às narrativas orais (o que ele mesmo considera impossível), mas um resgate da contextualização do discurso narrativo. Assim, é a partir do reconhecimento dessa impossibilidade de narrar, característica de nossos tempos, que Benjamin vai defender a necessidade política e ética de rememoração do passado e, portanto, de uma ampliação da experiência do tempo. A volta ao passado surge assim como protesto contra a barbárie e como uma espécie de iluminação sobre o presente. É dentro dessa proposta que Benjamin iria desenvolver, tanto uma reflexão sobre a literatura, a partir da análise da obra de autores como Proust, Kafka e Baudelaire, como um pensamento sobre a história. Não é por acaso, então, que encontramos muitas semelhanças em sua defesa do poder criador da memória (mesmo que involuntária), como fonte e estímulo da experiência, numa obra como A la recherche du temps perdu, de Proust, e na idéia de uma história construída a partir de ruínas. Para Benjamin, a obra de Proust não representaria apenas um canto da memória e do passado reencontrados, mas a afirmação do desejo de conservar o passado do esquecimento, através das recordações que fazem os homens respirarem os mundos perdidos, refigurando-os e revivendo-os a partir de um outro lugar. Isso é visto na própria vida do personagem principal de Le Temps Retrouvé, onde suas imagens fantasiosas de um passado vão se transfigurando numa realidade muitas vezes decepcionante, com a conseqüente descoberta de que é através da arte, do próprio processo de narrar, recompondo a dispersão do sentido e do tempo, que nos aproximamos do eterno. Dessa forma, como mais tarde iria apontar Deleuze, Em busca do tempo perdido se transforma numa história de uma aprendizagem, do deciframento dos signos e de uma consecutiva desilusão... Dessa forma, a concepção da história, defendida por Benjamin, não estaria distante da perspectiva lida em Proust. Assim como o passado do personagem proustiano, a história também não pode ser revivida, a não ser pela mediação da memória, que faria LEITURASCONTEMPORÂNEAS 76


HISTÓRIA HOJE: PROBLEMATIZANDO A NARRATIVA HISTÓRICA

o passado esquecido ou recalcado surgir de novo, mas com uma perspectiva moldada no presente. A memória surge, assim, para Benjamin, como afirma Nelly Richard, como “um processo aberto de reinterpretação do passado que desfaz e refaz seus nós para que se ensaiem de novo sucessos e compreensões”. A rememoração do passado, assim, não implicaria numa restauração objetiva do que passou (como queria a historiografia tradicional), mas numa refiguração desse passado e ainda uma transformação do presente que, a partir do passado reencontrado, acaba modificando-se. O passado, dessa forma, se apresenta sempre num estado de inacabamento que o abre a possibilidades futuras. Obviamente que uma proposta dessa natureza passa também por uma recusa da ideologia de progresso, da linearidade do tempo e da causalidade mecanicista, defendidas pela historiografia tradicional. Assim, a busca é no sentido de resgatar o passado da sua insuficiência, colocando-o fora do tempo linear, visto que o passado nunca pode retornar, só se revelendo através da memória no próprio presente. E, dessa forma, “o passado é salvo no presente porque nele o escritor descobre os rastros de um futuro que a criança pressentia sem conhecê-lo”. (GAGNEBIN, 1994, p. 98) É dessa maneira que Benjamin propõe um princípio construtivo da história. E, para ele, esta é sempre construída a partir do ponto de vista do presente, a partir de ruínas, restos do que o passado poderia ter sido. Nesse sentido, o historiador é o criador do discurso histórico, aproximando-se do poeta. As idéias de Benjamin, portanto, mesmo tendo sido escritas há quase um século, estão em consonância direta com as reflexões contemporâneas acerca das narrativas e da história, colocando o processo de narrativização num lugar central da comunicação humana e questionando as fronteiras entre ficção e realidade nas diversas possibilidades discursivas. Fugindo, tanto de uma visão tradicional da história quanto de um relativismo niilista, Benjamin nos propõe uma alternativa interessante para pensar o lugar da historiografia hoje, assim como das demais narrativas que se ocupam da relação passado-presente-futuro. Mas, voltando às reflexões mais contemporâneas, localizamos, no restante da Europa, alguns outros autores que também fazem uma abordagem da história enquanto discurso: Hans Medick (antropologia histórica interpretativa) e Lüdke (história do cotidiano), na Alemanha; e Carlo Ginzburg (micro-história), na Itália. Mas o principal pólo (ao menos numérico) dessa démarche é, sem dúvida, os Estados Unidos. Dentro dessa linha, uma das principais correntes historiográficas norte-americanas intitulou-se, não por acaso, linguistic turn (expressão de autoria de Gustav Berman). Trata-se de um movimento heterogêneo que engloba, a rigor, quase todos os trabalhos recentes, em torno da história, que concedem uma importância decisiva para as questões da linguaFACULDADESJORGEAMADO 77


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Em todos os povos as narrativas estruturam o tempo

gem e do discurso. Criticando incisivamente a antiga história social que ingenuamente acreditava na existência de um real fora do discurso, e inspirados nos trabalhos de Clifford Geertz, autores como Baker, M. Jay, Dominick La Capra, Poster, Louis Mink, W. B. Gallie e Hans Kellner, dentre uma infinidade de outros, defendem que o discurso histórico não faz nenhuma referência a uma realidade que se encontre fora do texto. Nesse sentido, as formas da linguagem humana seriam as únicas definidoras da realidade. Dentro de uma linha um pouco distinta, tem-se também a obra do filósofo pragmatista Richard Rorty que defende que todo problema filosófico se resume a um problema de linguagem (herança do pensamento wittgensteiniano) e que toda epistemologia está impregnada de interesses práticos, não existindo nelas, portanto, nenhum valor ontológico. Há ainda uma série de outras pequenas variações desses movimentos. PodeLEITURASCONTEMPORÂNEAS 78


HISTÓRIA HOJE: PROBLEMATIZANDO A NARRATIVA HISTÓRICA

se citar, dentre outros, a historiografia feminista desconstrucionista, com trabalhos como os da historiadora Joan Scott, a ciência histórica sociocultural, cujo maior representante é Christopher Lloyd, ou ainda, a nova história cultural, da qual fazem parte autores como Robert Darnton, Lynn Hunt, Gabrielle Spiegel, etc. Todas essas correntes defendem que a escrita da história é um discurso e que o passado só pode ser compreendido a partir das mediações que se operam a partir do mundo das representações. Essas novas abordagens do estatuto da história, enquanto disciplina do conhecimento e da escrita da história ou enquanto discurso, acabam reintroduzindo na historiografia, sob outras roupagens, as eternas disputas filosóficas que vêm sendo travadas desde os escritos de Platão: objetividade x subjetividade, discurso x experiência, realidade x representação. Mas esse processo, longe de representar apenas o prolongamento de uma discussão estéril, tem o mérito de, pela primeira vez depois da elevação da História ao estatuto das ciências, no século XIX, no interior da própria historiografia, estabelecer uma série de questões epistemológicas que são, independentemente das respostas que a elas vão ser dadas, de extrema importância para a comprensão da história, da arte e do ofício do historiador e do artista, tais como: qual a natureza do discurso histórico e de outros tipos de discursos que se reportam ao passado? Quais as relações existentes entre os diversos tipos de discurso que se reportam ao passado (histórico, mitológico, ficcional etc.)? Qual a relação existente entre o discurso histórico e seus referentes? Existe uma história fora do discurso histórico? Como se estabelecem as categorias de verdade, ficção e verossimilhança dentro dos diferentes discursos sobre o passado? E são a partir dessas discussões que se iniciaram as reflexões que recentemente começaram a abordar os audiovisuais como modalidades do discurso histórico. NARRATIVAS HISTÓRICAS E NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS As reflexões sobre a escrita da história, resumidas acima, dão início, ainda, a perspectivas que buscam relacionar as narrativas históricas com as cinematográficas. Boa parte desses trabalhos também se origina dos Estados Unidos. Dentre os principais nomes de teóricos que se ocupam dessa problemática, podemos destacar os de Anton Kaes, Barbara Abrash, Daniel Walkowits. David Herling, Janet Sternberg, K. R. M. Short, Leslie Fishbein, Martin Jackson, Natalie Zamon Davis, Phil Rosen, R. J. Raack, Robert Brent Toplin, Robert Rosenstone, Shawn Rosenheim, Sumiko Higashi e Vivian Shobchack. Partindo de uma visão geral da história, enquanto discurso, a maior parte desses autores defende que os audiovisuais são também, formas discursivas capazes de representar o passado. Seus trabalhos, nesse sentido, caminham em algumas direções: valorizar FACULDADESJORGEAMADO 79


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“Entregar-se a esta vida de mentira tornou-se uma verdadeira paixão”

academicamente os discursos históricos áudio-imagéticos (incluindo o cinema, o vídeo e mais recentemente as imagens digitais); estudar as características dos discursos históricos audiovisuais e suas semelhanças e diferenças em relação a outros tipos de discursos históricos (historiografia escrita, literatura, mito, memória, história oral etc.); explorar as potencialidades introduzidas pelos discursos históricos áudio-imagéticos para a escrita da história e para os historiadores acadêmicos; refletir sobre a relação existente entre as representações históricas audiovisuais e a historiografia escrita; teorizar sobre as possibilidades dos historiadores de exporem seus conhecimentos através de dispositivos audiovisuais; investigar os componentes das narrativas históricas áudio-imagéticas; refletir sobre a questão do referencial e sobre o estatuto da ficção nos audiovisuais históricos; ou seja, sobre os tipos de realidade histórica representados em um audiovisual; analisar filmes ou conjunto de filmes como discursos históricos autônomos em relação à historiografia escrita; questionar os critérios de avaliação dos discursos históricos áudio-imagéticos. Esses autores, no geral, defendem a idéia de que o cinema e o vídeo constituem-se (assim como a escrita e a oralidade) formas válidas e necessárias para se representar o LEITURASCONTEMPORÂNEAS 80


HISTÓRIA HOJE: PROBLEMATIZANDO A NARRATIVA HISTÓRICA

passado, mas buscando, ao mesmo tempo, refletir sobre suas peculiaridades. Alguns, como Rosenstone e Raack, advogam que, assim como a escrita é mais adaptada a expressar melhor determinados elementos e aspectos da história, a exemplo das descrições, das elaborações teóricas, das narrações cronológicas, o audiovisual expressa melhor questões como a emoção, os dramas cotidianos, os costumes, o caráter processual e plurissignificativo da história. Para Raack, a escrita convencional seria tão linear e limitada que seria incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos. Só os filmes, capazes de mostrar imagens e sons, de acelerar e reduzir o tempo e de criar elipses, poderiam aproximar as pessoas da vida real, da experiência cotidiana das idéias, palavras, preocupações, distrações, ilusões, motivações conscientes, inconscientes e emocionais. Rosenstone, por seu lado, acentua a importância dos filmes apresentarem a história num ritmo processual que lhe é próprio: as películas mostram a história como um processo. O mundo audiovisual une elementos que a história escrita separa. Em geral, a história escrita não consegue proporcionar uma visão integral, mas fracionária. É necessário que o leitor faça um esforço para reconstruir as partes. No audiovisual, todos os aspectos do processo estão interligados, imbricados. (ROSENSTONE, 1997, p. 53)

Esses autores defendem também a necessidade dos filmes inventarem grande parte dos elementos que compõem sua diegese, sem no entanto serem a-históricos. Rosenstone acredita que isso se deva à “necessidade que a câmara tem de filmar o concreto ou de criar uma seqüência coerente e contínua que sempre implicará grandes doses de invenção nos filmes históricos”. Ibid., p. 57. Assim, continua ele: A invenção é inevitável para manter a intensidade do relato e simplificar a complexidade de uma estrutura dramática que se encaixe nos limites do tempo fílmico. Estes incluem os mecanismos narrativos tais como a condensação, a alteração de fatos e a metáfora. Ibid., p. 58

Para o autor, isso não significa que a verdade histórica deixaria de existir nos filmes, mas que, neles, seu lugar estaria deslocado: ao invés de estar localizada na “exatidão” dos fatos, ela estaria na sua argumentação global. Afirma-se ainda que a própria natureza dos meios audiovisuais acaba por levar a uma redefinição e ampliação do conceito e da idéia de história, questionando “verdades” até então tidas como absolutas. O audiovisual ainda traria elementos discursivos, novas formas de se pesquisar FACULDADESJORGEAMADO 81


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e construir a história que a historiografia tradicional desconheceria completamente, colocando em evidência as limitações desta forma de se escrever a história. Por outro lado, aceitar a idéia de que a ficção possui uma função chave na investigação e na reconstrução da história (no caso dos filmes), seria redefinir uma série de questões fundamentais para a teoria da história, mexendo com conceitos como o de “verdade” e “objetividade” ou com o fetichismo do documento escrito e de “evidências” empíricas. Assim, ainda afirma o autor que os filmes e os vídeos seriam (...) mais do que veículos de informação úteis para elaborar conclusões. São novas vias para “ver” o passado. Novos caminhos para enfrentar os materiais do passado, para interrogar o passado a partir do e para o presente. Sua implicações são difíceis de se estabelecer. Ibid., p. 175.

Ao se reivindicar de uma corrente historiográfica pós-modernista — cujos exemplos de investigação prática e de textos escritos seriam bastante escassos, limitando-se a alguns títulos como O queijo e os vermes, de Calor Ginzburg, O retorno de Martin Davis, de Natalie Davis e Montallou, de Emmanuel Le Roy Ladurie , a maior parte desses autores acaba por visualizar dois grandes tipos de discursos históricos audiovisuais: o tradicional e o pós-moderno. Os primeiros seriam aqueles mais ligados à estética hollywoodiana que, em muitos pontos, se assemelhariam, apesar de suas diferenças formais, à historiografia tradicional, na medida em que apresentariam o passado com uma roupagem ultra-realista, tomando por base os valores estéticos do romance do século XIX. Esses filmes acabariam, assim, por impor uma visão fechada do passado. Já os segundos seriam aqueles que rejeitariam a transparência como modelo de representação e construiriam uma história de múltiplos significados, deixando espaço para o aparecimento de várias possibilidades de interpretar os fatos e mostrando o passado em toda sua complexidade e indeterminação. Rosenstone sintetiza onze das principais características desses discursos audiovisuais pós-modernos, ao responder à questão “o que fazem realmente esses filmes com a história?”: 1) explicam o passado com consciência do que estão fazendo; 2) narram a história com uma multiplicidade de pontos de vista; 3) afastam-se da narrativa tradicional, com seu clássico “princípio, meio e fim”; 4) renunciam a um desenvolvimento cronológico da história ou, se narram história, se recusam a levar a sério a narração; 5) abordam o passado com o humor, a paródia, o absurdo, o surrealismo, o dadaísmo e outras atitudes irreverentes; 6) mesclam elementos contraditórios — passado e presente, ficção e documentário — e usam o anacronismo criativo; 7) aceitam e, inclusive, revelam sua parcialidade, partidarismo e retórica; 8) rejeitam analisar o passado de uma forma totalizadora; ao contrário, preferem LEITURASCONTEMPORÂNEAS 82


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um sentido aberto e parcial; 9) alteram e inventam personagens e fatos; 10) utilizam um conhecimento fragmentário ou poético; 11) nunca esquecem que o presente é o lugar de onde se representa e se conhece o passado. Enfim, essas idéias acabam, de certa forma, refletindo um movimento crescente de interesse e entusiasmo em relação à interface imagem/história nos Estados Unidos, englobando o cinema e, mais recentemente, a televisão e o vídeo. Mesmo que essa demanda ainda se encontre longe de tocar a maior parte dos historiadores, ela se manifesta, progressivamente, com mais intensidade, a ponto de já penetrar nos principais veículos de expressão da história acadêmica americana, a exemplo da American Historical Review e da American Historical Association, uma das revistas e associações (respectivamente) estadunidenses de maior tradição historiográfica. O número de historiadores que se aventuram na produção de vídeos e filmes independentes ou na assessoria de programas históricos televisivos também não é pequena. Nos principais veículos de divulgação desse movimento, proclama-se que o historiador do futuro será aquele que souber trabalhar com as imagens, principalmente, segundo os mesmos, se através do que chamam de perspectiva pós-moderna. Todavia, pode-se observar que o conjunto desses trabalhos — independente do fator positivo de introduzir o mundo dos discursos históricos audiovisuais na fortaleza acadêmica historiográfica, e de chamar os historiadores a refletirem sobre as especificidades e potencialidades dessas imagens — apresentam reflexões que ainda se encontram num estágio embrionário. A rigor, seu projeto (de investigar os elementos dos discursos históricos audiovisuais e de introduzi-los na prática do historiador) está em fase de gestação, num momento em que os trabalhos ainda possuem um tom de manifesto, demonstrando o desejo e a necessidade de se fazerem aceitos. Suas teorizações ainda beiram, muitas vezes, um certo superficialismo. Nos principais trabalhos dos autores citados, por exemplo, as questões epistemológicas por eles cunhadas (de importância indubitável para a reflexão desse novo campo interdisciplinar) não são exploradas em profundidade e não são acompanhadas de investigações e análises concretas dos discursos imagéticos. Apesar de se reivindicarem como filhos de uma história feita através do discurso, muitas das análises dos audiovisuais realizadas por esses autores centralizam-se no plano da trama diegética, ou do récit, como já havia acentuado Sorlin ainda nos anos 70, a respeito dos estudos sociológicos que se ocupavam do cinema (SORLIN, 1977). A definição de filme pós-moderno, adotada por alguns desses autores americanos, como manifestação de uma história pós-moderna que os livros não conseguiriam dar conta, parece ser, também, fluída e inconsistente. Às vezes, parece coincidir, simplesmente, com aqueles filmes que rompem com a transparência da representação. Mas é FACULDADESJORGEAMADO 83


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necessário que nos questionemos: se isto, de fato, seria característico de uma história pós-moderna? Em primeiro lugar, é preciso que destaquemos que o uso do próprio termo pós-modernismo é inadequado para esse tipo de reflexão, visto que sua conceituação tem se revelado extremamente fluida e confusa, designando projetos os mais diversos e que tem sido alvo de muitas polêmicas. O que caracterízaria de fato o pós-modernismo? A depender da escola de pensamento em que nos baseássemos ou do autor que seguíssemos, poderíamos ter respostas completamente diferentes uma das outras. Em segundo lugar, percebe-se que muitos dos filmes por eles citados como possuidores de um discurso histórico pós-moderno — a exemplo inclusive da obra de Glauber Rocha, citada por Rosenstone — encontram-se quase que completamente imersos num projeto de arte assumidamente modernista, o que torna ainda mais complicado compreendermos a lógica desta classificação. Por outro lado, alguns filmes quase que completamente produzidos num estilo transparente, a exemplo de JKF, de Oliver Stone, são também considerados como pósmodernos, apenas por romperem com alguns limites impostos pela historiografia escrita. Acreditamos, portanto, que a recorrência a uma denominação tão polêmica e de múltiplas acepções, como pós-modernismo, leva a crer que sua utilização tenha mais um objetivo de provocação e divulgação do que propriamente de esclarecimento teórico e epistemológico. Mas, não obstante os limites atuais desse movimento, os sinais indicam que ele está conseguindo impor sua presença no mundo acadêmico, o que, certamente, facilitará a sua entrada em uma nova fase de existência: de exploração dos flancos abertos, complexificada pela entrada em cena das tecnologias imagéticas digitais. Mas este tema fica para uma outra conversa.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vol. 3. DOSSE, F. A história à prova do tempo. São Paulo: UNESP, 2001. GAGNEBIN, J. M. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva / UNICAMP / FAPESB, 1994. RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Vol.1. ROSENSTONE, R. El pasado en imágenes: el desafío del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: Ariel, 1997. SANTAELLA, L. La historia del arte y el arte de la historia. Diálogos de la Comunicacíon. [S. l.: s. n.] 1997. Disponível em: < http//www.felafacs.org/dialogos/index.asp?eje=30&page=2 >.

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Trânsito de Imagens no Cinema de Peter Greenaway: Cinema, Teatro e Artes Visuais Giovana Dantas*

Resumo: Este trabalho pretende revelar o diálogo constante que Peter Greenaway estabelece entre o cinema, o teatro e as artes visuais, desde a tradição da pintura (renascimento, maneirismo e barroco) até a arte moderna, com forte influência do cubismo e das novas tecnologias, produzindo, assim, um cinema híbrido e de fronteiras expandidas. Palavras-chave: Hibridismo – Cinema – Arte Contemporânea.

Um bom cozinheiro mistura coisas estranhas. Peter Greenaway

Existe algo de incômodo nos filmes de Peter Greenaway, algo que escapa à compreensão objetiva, apesar de haver uma história a ser contada. O espectador confronta-se constantemente com o atrito provocado pelos vários princípios que neles são empregados, o que desencadeia o surgimento de um paradoxo formal e estético, capaz de criar uma identificação entre o filme e esse espectador e, ao mesmo tempo, causar-lhe a sensação de estranhamento, ou seja, ele sempre é alertado para o fato de que o filme é uma construção. A ilusão de realidade não é exatamente o que conduz a experiência daqueles que assistem aos filmes de Greenaway. Esse fenômeno, que vale a pena ser discutido mais de perto, marca uma das características próprias das manifestações chamadas “artes híbridas”, ou seja, produções contemporâneas que trabalham na interface ou interpenetração de várias linguagens, abordando princípios distintos na formação de um mesmo objeto. Essas manifestações, muitas vezes, se baseiam na estética do choque, também presente nas colagens cubistas de Picasso e Braque, que, juntando materiais de origens diversas, a partir de 1912, inserem na obra bidimensional uma multiplicidade de pontos de vista que geram perspectivas superpostas. Os pintores cubistas abalaram, por completo, o princípio que * Professora de História da Arte e Coordenadora do Núcleo de Produção Cultural das Faculdades Jorge Amado. Artista Plástica, Doutoranda em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas-UFBA.


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sustentou, por muitos séculos, a pintura como “janela transparente”, através da qual o sujeito, colocado em um determinado ponto fixo, observava o mundo e o reproduzia na tela como uma cópia fiel da natureza. Fica evidente, nos filmes de Greenaway, a presença de uma intenção que o distancia, nesses aspectos, do cinema tradicional, mas sem deixar de manter com este certa aproximação. Suas películas exibem uma narrativa ainda em moldes convencionais que também expõem a causalidade dos fatos. Existe, sim, uma história a ser contada, mas a mesma não se ajusta aos padrões da narrativa clássica, que sustenta a idéia do cinema como imitação da realidade. Nos filmes de Greenaway, toda ação se desenvolve através de imagens, que se justapõem, muitas vezes, sem compromisso com uma seqüência lógica dos acontecimentos. É difícil assistir a esses filmes sem deixar que uma série de interrogações apareçam durante e depois da sessão, porque o que se vê não é apenas cinema, pelo menos o cinema que está inserido no circuito comercial. Quase nada pode ser apreendido nessas películas quando se relatam as pequenas histórias de seus enredos que, de certa forma, têm ainda uma base narrativa causal clássica, espécie de linha de costura para o trabalho de enunciação da imagem que ele concebe. Greenaway não abre mão de contar histórias, mas faz questão de contá-las visualmente, através de imagens que trazem um forte potencial plástico. Greenaway começa o seu trajeto como pintor, experimentando técnicas e princípios da composição visual. Quando inicia o seu trabalho em cinema, não apenas agrega referências das artes plásticas nos seus primeiros curtas, mas também elabora o seu discurso fílmico dentro de um padrão de construção próprio do campo das artes visuais. Hoje, ele concebe e realiza projetos grandes e complexos – óperas, instalações, performances multimídia – e firma-se, cada vez mais, como um dos mais versáteis artistas da Europa na atualidade. Também é músico, escritor e teórico, sendo visto por muitos críticos como a síntese do artista contemporâneo por operar, em um mesmo objeto, vários campos de expressão. Peter Greenaway esteve no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1998, trazendo uma Instalação-Ópera intitulada Os 100 Objetos para Representar o Mundo1, espetáculo que agrega as mais diferentes linguagens e técnicas – vídeo, teatro, fotografia, pintura, performances – bem ao seu estilo. Esse trabalho, no qual elabora uma lista daquilo que julga capaz de representar a complexidade desse mundo em que vivemos, foi inicialmente configurado como uma exposição de grande porte que se realizou em Viena, no ano de 1992 – uma instalação que, posteriormente, ganha, com o formato de ópera, uma dimensão temporal inesperada. Em dezembro de 2000, estreou em Amsterdã uma outra ópera de sua autoria, que se baseia na vida e obra do pintor holandês Johannes LEITURASCONTEMPORÂNEAS 86


TRÂNSITO DE IMAGENS NO CINEMA DE PETER GREENAWAY: CINEMA, TEATRO E ARTES VISUAIS

Vermeer (1632-1675) – Writing to Vermeer2 – também uma construção que agrega arte e tecnologia. Como diretor de cinema, Peter Greenaway vem acumulando no seu currículo uma enorme lista de filmes, tanto de longa, quanto de curta duração. No seu último trabalho para o cinema, As Maletas de Tulse Luper3 (The Tulse Luper Suitcases), Greenaway toma o cubismo, mais uma vez, como princípio de criação, ao mostrar o ser humano de todos os ângulos, ao mesmo tempo. Tulse Luper é uma composição multimídia, que abrange a realização de três filmes de longa-metragem, uma série para TV, CD-ROMs, DVDs e livros. São 92 malas recheadas de objetos díspares, o que reforça o gosto pelos números e em listar objetos (Afogando em Números, Os 100 Objetos para Representar o Mundo e Os Livros de Próspero). O primeiro filme, intitulado “The Moab Story”, parte de uma trilogia que cobre 60 anos do século XX, foi apresentado no Festival de Cannes de 2003. Greenaway nunca abandonou a pintura e, como cineasta, ele volta às suas origens, descrevendo um percurso em voltas, quando ativa no cinema as suas experiências nas artes plásticas. É na atuação que exerce como artista contemporâneo que está assentada a base da criação de seus filmes. Essa maneira de conceber a imagem em movimento reflete-se também no cinema de outros diretores como Godard, Resnais, Tarkovski e Dreyer, por exemplo. No caso de Greenaway, no entanto, o conhecimento e a atuação constante no campo das “poéticas visuais” transformam seus filmes em um universo de uma imagística complexa, que não é exatamente aquela que reproduz a realidade inerente ao cinema, mas a que reproduz uma realidade composta de imagens citadas, emprestadas e justapostas de maneira inusitada. Elegendo temas bizarros e ousados como canibalismo e agressão física, com ênfase no excêntrico (O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante), decomposição (Um Z e Dois Zeros), homossexualidade (O Livro de Cabeceira), presença maciça do nu frontal masculino e feminino ( A Última Tempestade e Oito Mulheres e Meia), seus filmes chocam, incomodam. Por esse motivo, o cinema de Greenaway é visto, por alguns críticos, quase como pornográfico, embora isso não devesse servir de parâmetro para invalidar suas qualidades estéticas – existe a grande arte pornográfica. David Pascoe relata algumas referências retiradas diretamente da história da arte e usadas por Greenaway no cinema: O cinema de Greenaway investe de maneira incisiva em história da arte, e ele mesmo, invariavelmente, ancora seus filmes na pintura. Suas próprias telas e colagens determinam um de seus primeiros filmes experimentais – A Walk Through H; Georges de La Tour e Januarius Zick fornecem a chave para The Droughtsman’s Contract; Vermeer orienta Z&00, e Piero della Francesca, The Belly of na Architect, os Pré-Rafaelitas, Drawing by Numbers, Frans Hals e o gênero da natureza morta

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holandesa, The Cook, the Thief. Titian, Giorgione e Bellini, dentre muitos outros, participam da construção de Prospero’s Books; artistas desconhecidos como Crevalcore, Desiderio e Bellini são usados em The Baby of Mâncon; e mais recentemente The Pillow Book toma referências em Utamaro e Hokusai, para compor os dois amantes do “mundo flutuante”.4

Hibridismo e experimentação no espaço cênico de Greenaway

Além de citar imagens da tradição da pintura, ele insere, nas suas películas, temas que participam das artes contemporâneas como questões ligadas ao corpo5, também exploradas, na atualidade, por diversos campos do conhecimento. Ele transfere esses temas de um universo a outro, ou seja, transporta, para a sua criação cinematográfica, princípios oriundos das artes plásticas, da ciência, da literatura, da fotografia, do teatro, agregando a esse corpo fílmico o conhecimento sólido e refinado que detém sobre a história das artes. Greenaway opera a tradição pictórica ao lado da mais recente tecnologia da imagem. Ele se utiliza das novas possibilidades tecnológicas no seu vasto campo de investigação artística. No entanto, trabalha alterando, sim, a forma tradicional da narrativa cinematográfica, mas sem deixar que as possibilidades técnicas desses meios eletrônicos dominem a estética de seus filmes. A experiência que ele acumulou, durante sua carreira, nos mais diferentes meios artísticos o habilita a participar em todos os níveis da construção fílmica, atuando nas LEITURASCONTEMPORÂNEAS 88


TRÂNSITO DE IMAGENS NO CINEMA DE PETER GREENAWAY: CINEMA, TEATRO E ARTES VISUAIS

decisões sobre a trilha sonora, no figurino, no cenário, no roteiro e na montagem. Greenaway faz o teatro dialogar com o cinema, integra o cinema nas suas instalações e performances, que retornam às telas como fragmentos de imagens na composição dos planos nos filmes. Ele torna fluidos os limites entre diferentes territórios da criação como fotografia, música, pintura, desenho e arquitetura. Com isso, Greenaway amplia imensamente o seu universo de atuação e cria uma rede de significados que se deslocam em várias direções e níveis. A maneira radical e abrangente com a qual ele emprega as mais diversas técnicas e gêneros caracteriza a natureza de suas produções e dá aos seus filmes uma posição destacada no cinema contemporâneo. O cinema, para Greenaway, é uma forma de colocar o seu universo visual em “quadros em movimento”6. Constantes citações de obras de épocas passadas e referências a artistas do século XX, inclusão de suas pinturas como guia das decisões visuais que sustentam a construção de planos, formas capturadas tanto das tradicionais imagens da produção artística européia como referências a artistas contemporâneos do sistema das artes nos Estados Unidos, questões científicas e filosóficas como nascimento e morte, suscitadas em cenas que mais parecem performances filmadas em cenários concebidos como instalações, uso de uma tecnologia avançada na manipulação das imagens que envolvem vídeo e computação gráfica, fragmentos e simultaneidade de planos, composição em tableaux vivants7, fazendo referência a obras conhecidas da tradição artística ocidental, são apenas algumas das características desse cineasta, artista plástico na sua formação. Nos filmes de Greenaway, verifica-se a citação constante do universo da representação pictórica do renascimento, em que a simetria, a proporção e a perspectiva linear geralmente determinam o esquema da composição cênica do espaço. Essa concepção espacial convida o espectador a participar do filme, a adentrar a tela, como faz a pintura ilusionista. No entanto, ao mesmo tempo, esse espectador é levado a distanciar-se dessa natureza inerente ao cinema de simular o real, pois o filme mostra seus artifícios de construção. O espectador se perde no fascínio de uma realidade esteticamente nova que surpreende porque é construída meticulosamente dentro dos padrões de verossimilhança, ao mesmo tempo em que manifesta a sua natureza antilusionista, como mostra Magali Arriola: A metáfora da imagem pictórica nos filmes de Greenaway não somente se apresenta como encontro com diferentes momentos da história da arte ou referências a eles, mas também se manifesta na configuração própria da imagem, assentando novas bases para a estruturação da trama. Ao colocar em evidência os meios e artifícios da linguagem cinematográfica, Greenaway consegue desarticular seu vocabulário em termos de forma e conteúdo, de composição e enquadramento, despertando o olhar pictórico que proporciona uma aproximação reflexiva à

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imagem [...] Seus filmes não somente rendem homenagem à plástica renascentista, maneirista e barroca, ou a diferentes experiências da arte contemporânea, mas dão um novo significado aos valores e conceitos que presidiram a representação pictórica no ocidente.8

Do barroco vem o jogo dramático de luz e sombra, o movimento, os excessos, que causam fascinação no espectador, as deformações das imagens e os artifícios da ilusão e desilusão. Mas é importante ressaltar que quando Greenaway estabelece uma relação com o maneirismo, ele associa o seu cinema a um século de grande ebulição, a um momento de crise em que a pintura tentava se libertar da ditadura das regras clássicas que ainda dominava os princípios criativos dessa época. Arriola desenha uma analogia entre artista do maneirismo (período de transição entre o renascimento e o barroco) e o processo criativo de Greenaway: Artistas como Pontormo, Becafumi e Bronzino procuravam se definir frente a seus antecessores, recorrendo à citação, à referência e à exasperação das formas. Ao parafrasear o ecletismo e a multiplicação das alegorias e dos símbolos iconográficos, Greenaway estabelece uma comparação com os tempos atuais.9

Para Greenaway, o cinema, por excelência, movimenta-se constantemente em um território de experimentação, na busca de uma nova poética. Como nenhuma outra forma de arte, o cinema explora o legado das revoluções artísticas dos últimos cinco séculos. Explora e aproveita as conquistas das artes visuais. Fazer um filme implica em reinventar o cinema, e ele mesmo enfoca esse ponto de vista: Aproveito as épocas de insegurança cultural como os períodos ulteriores a Michelangelo, Rafael e Da Vinci..., e talvez agora, a época posterior a Picasso, Stravinsky e a Le Corbusier...visto que o conceito de maneirismo pode simplesmente significar uma mudança transitória de um conjunto de valores por outro; um período de procura e investigação que leva ocasionalmente a um impasse e a desencontros que talvez impliquem a auto-referência ou o pastiche, porém, finalmente, o maneirismo se resume em achar novos caminhos.10

No seu processo criativo, Greenaway constantemente enfatiza o princípio da multiplicidade. Essa multiplicidade alia-se à idéia de trânsito. Na paisagem contemporânea, são os territórios de passagens que recebem e acolhem a experiência estética e a praxis artística. Essas passagens se configuram entre pintura e fotografia, cinema e vídeo, entre todas as formas artísticas e a arquitetura, entre a música e o teatro, a computação e a LEITURASCONTEMPORÂNEAS 90


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cenografia, entre o real e o imaginário “[...] como um tecido que se divide em dobras, que se decompõe em movimentos curvos [...]. Tudo escoa e verte em outra coisa. O princípio da dobra é a curvatura: acrescentar sempre um rodeio, fazendo de todo intervalo o lugar de um novo desdobramento, apagando todo contorno, toda fronteira”11. Nelson Brissac descreve a idéia da obra de arte composta, o Gesamtkunstwerk, ou seja, a “Obra de Arte Total”, presente no barroco, em que pintura, escultura e arquitetura entram numa simbiose12. Brissac aponta uma acumulação infinita e saturada na visualidade contemporânea. Uma sobreposição que engloba todas as artes e se desdobra em um contínuo devir13. A essência da arte barroca reside no jogo de luz e sombra. Reside na coexistência e inter-relação dos volumes na arquitetura, na escultura e na pintura, onde se engendra um espaço dinâmico, sem ponto de vista fixo, que flui das dobras sobre dobras e vai definindo o “entre”, o intervalo. Nas pinturas de abóbada, realizadas no período barroco, para conseguir um efeito ilusionista total, foi prática constante prolongar, em forma de esculturas, as figuras bidimensionais que seriam cortadas pelo friso-limite. A representação de corpos pintados projetam, para além das margens do “quadro”, parte de uma perna ou de um braço, esculpida tridimensionalmente. Verifica-se, então, que a arte barroca opera em uma continuidade, um permanente devir, em um espaço constituído de acumulações e vizinhanças, em que se apagam todas as fronteiras. Mas a arte barroca também define o “estar entre as coisas”, estar nos intervalos que surgem entre a profusão de detalhes e entre as dobras, onde uma concepção do espaço e do tempo emerge da relação entre as imagens. Assim, a diferença entre pintura, escultura e arquitetura se torna ambígua e a ilusão, perfeita. Um ponto também a ser observado é que, ao eliminar os limites que separam os diferentes campos, o artista do barroco rompe com a fidelidade que mantinha cada técnica separada uma da outra. Na Idade Média, esse compromisso presidia a organização das Corporações de Ofício, em que o artesão desenvolvia seu trabalho, seguindo regras próprias de cada técnica. Nesse contexto de multiplicidade, também o vídeo se manifesta. Como arte que movimenta, ao mesmo tempo, pintura, fotografia e cinema, o vídeo opera na dimensão do que se poderia denominar entre-imagens14. A vídeo-arte produziu obras-primas, interativas e híbridas, como as de Nam June Paik, e chamou a atenção dos artistas para o vídeo, que revelou sua natureza plástica, permeável e capaz de transitar entre vários meios. A grande força do vídeo, como afirma Raymond Bellour, foi, é e será a de ter operado passagens. “O vídeo é, antes de mais nada, um atravessador [...]. Dessa forma, se produz entre foto, cinema e vídeo uma multiplicidade de sobreposições, de configurações pouco previsíveis” 15. FACULDADESJORGEAMADO 91


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O vídeo, e em especial a vídeo-arte, configurou passagens entre artes plásticas, fotografia, performance e cinema. É justamente essa capacidade do vídeo que o transforma em uma das inúmeras vias por onde se realiza o trânsito de imagens no cinema de Peter Greenaway, porque, em muitos dos seus filmes, o vídeo participa diretamente, não apenas como ferramenta no processo de criação, mas também como a própria linguagem na sua concepção cinematográfica. Ao ser transformado pelo vídeo, o cinema se aproxima, tal qual como jamais havia feito antes, do pictórico. A pintura é o agente de passagem entre imagem-cinema e imagem-vídeo. [...] O pictórico é a referência principal do cinema contemporâneo. O arcaico no presente, o artesanal na reprodução técnica, o matérico no cinético. Ela é que permite colocar a questão da unidade de imagem, do seu poder de possibilitar a presença.16

Nos filmes Prospero’s Books e O Livro de Cabeceira, Greenaway faz do vídeo um elemento mediador na construção do filme quando encontra seus meios expressivos numa tecnologia audiovisual de ponta, aplicada a uma inovadora linguagem de manipulação de imagem – ilhas de edição sofisticadas, desenvolvidas no Japão, para trabalhar com a HDTV (High Definition Television). Verifica-se, então, que seus filmes potencializam relações de trânsito entre arte e tecnologia, formas expressivas e multimeios, e levantam a instigante questão de como a praxis artística consegue incorporar todas essas possibilidades. Mas Greenaway insere, além disso, na poética das suas imagem, também novos padrões de formatividade17. Um misto de inovação e tradição permeia suas produções que, intencionalmente, agregam novos e velhos meios, como ele mesmo afirma numa entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo: O que faço é utilizar esse privilégio de que disponho para tentar forçar os limites de um meio de comunicação. Mexer com o imobilismo. Não sou o único a fazer isso, claro. Bill viola, para mim, vale mais que dez Scorceses. [...]. Não acredito que o cinema, hoje, esteja trabalhando para a expansão da imaginação humana. Ao contrário. [...]. Hoje deve-se tentar todas as possibilidades. Elas precisam ser bem acolhidas por quem faz arte e não rechaçadas. O artista autocrático está decadente. Pela primeira vez na história, todos podemos ser um pouco como Picasso, utilizando as novas tecnologias.18

Inevitavelmente, o que Greenaway propõe em sua poética vai requisitar uma determinada forma de recepção estética para o cinema, menos pautada na narrativa linear do que no conflitante contraste gerado pelas imagens, menos atrelada à cronologia LEITURASCONTEMPORÂNEAS 92


TRÂNSITO DE IMAGENS NO CINEMA DE PETER GREENAWAY: CINEMA, TEATRO E ARTES VISUAIS

tradicional do filme do que na presentificação de um tempo construído. Não se trata de fixar uma idéia exclusivamente em torno do nível abstrato do cinema, como propunham as vanguardas históricas, mas de permitir um diálogo entre narrativa e percepção. Nem tão pouco de um cinema experimental, e sim de um cinema investigativo, que busca suas fontes tanto em experiências passadas como num amplo leque de tendências contemporâneas. Greenaway persegue uma unidade na experiência fílmica em que o princípio narrativo não anula a dimensão plástica, e concebe um cinema em que a intensidade imagística consegue desencadear formas não convencionais de narrar, como ele mesmo afirma: “Muito do meu cinema tem tentado negar o texto, tem tentado negar a narrativa, mas isso é contraditório – eu também tenho um profundo desejo de contar estórias, então eu quero contar aquelas estórias visualmente”.19 Em Prospero’s Books (1991) ou A Última Tempestade, por exemplo, filme baseado na comédia A Tempestade, de Shakespeare, Greenaway reafirma sua marca contemporânea de trânsito e de investigação formal na concepção da montagem e na plasticidade narrativa, utilizando-se, na edição das imagens, de meios tecnológicos de última geração. Como contraponto, ele faz referências à pintura do renascimento através da utilização de uma imagística que recorre a este período; concebe o espaço plástico dentro dos moldes da pintura ilusionista do século XV como base para a composição de planos (princípio que também adota nas suas óperas multimídia), além de inserir os excessos visuais do barroco. Além da mencionada referência à pintura na composição de cena e a outras linguagens da arte contemporânea, como instalação e performance, fica clara a referência e a homenagem ao teatro, quando escolhe uma peça de Shakespeare para ser transformada em filme. Ele reafirma o fato de que o teatro esteve presente nos primórdios do cinema, tanto na escolha do texto de Shakespeare, como nas decisões estéticas da filmagem. A câmera parada, em Prospero´s Books, capta, em planos amplos, imagens que estariam nos olhos de um observador localizado na platéia. Cortinas se abrem e se fecham na busca de uma teatralidade que revoga a condição de ilusão plantada na narrativa tradicional do cinema. Os cenários claramente insistem na sua natureza não realista. O caráter teatral desse filme também está na estrutura narrativa e na interpretação dos atores. Em Prospero’s Books, John Gielgud, um dos grandes representantes do teatro shakespeareano do século XX, faz o papel de Prosperos. A sua técnica de interpretação, eminentemente teatral, enfatiza constantemente a presença do teatro no cinema. Greenaway insiste em aspectos predominantemente vindos do palco, como a marcação e o agrupamento dos atores em cena, os artifícios circenses e performáticos, tomadas em planos gerais, quase sempre com a câmera fixa, movimentação lateral dos atores que são acompanhados pela câmera em longos travellings. FACULDADESJORGEAMADO 93


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Esses aspectos caracterizam grande parte das seqüências de Prospero’s Books, que nem por isso deixa de ter uma completa autonomia poética, não apenas no nível da narrativa, mas também na sua construção, o que o afasta completamente de se constituir numa simples ilustração do texto original. Com uma transposição do teatro para o cinema rica em significados, Prospero’s mantém sua própria moldura cinemática. O Bebê Santo de Mâncon (1993) é uma película que também leva o cinema a dialogar com o teatro. O filme trata de uma encenação, com platéia, em que toda a ilusão é desmistificada no final, quando a câmera recua e vai inserindo os espectadores da peça no enquadramento. Enquanto isso, os atores agradecem os aplausos, ao tempo em que retiram seus adereços e a maquiagem. Apesar de utilizar uma composição de plano extremamente simétrica e ordenada, com uma perspectiva acentuada que enfatiza a ilusão espacial das pinturas renascentistas, ele desmonta essa mesma ilusão, ao se deter na natureza teatral do filme. Em O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante (1989), existem códigos cromáticos para cada espaço que fazem parte de um jogo metafórico e sinestésico: o refeitório vermelho, a cozinha verde, o banheiro branco, o estacionamento azul. A câmera desliza horizontalmente como se levasse o próprio espectador a experienciar o desloca-

A ilusão espacial da pintura renascentista no cinema contemporâneo LEITURASCONTEMPORÂNEAS 94


TRÂNSITO DE IMAGENS NO CINEMA DE PETER GREENAWAY: CINEMA, TEATRO E ARTES VISUAIS

No corpo, a marca da cultura

mento contínuo por esses espaços, suscitando em cada um que assiste ao filme uma materialidade paradoxal para o cinema. O espectador se comunica com o espaço do filme como se estivesse inserido numa instalação artística. Algumas cenas da cozinha são realizadas com o deslocamento lateral da câmera ao longo do cenário. Este comporta um acúmulo de objetos: panelas, vegetais, animais mortos, pratos de comida – uma referência direta ao gênero natureza morta. O Livro de Cabeceira (1995) leva o espectador a vivenciar uma multiplicidade de recortes espaciais que aparecem na tela do cinema simultaneamente. Como um pintor, Greenaway experimenta texturas, superposições e colagens através de tecnologia digital de alta definição. Também são ressaltados a plasticidade da caligrafia japonesa e o corpo como suporte da pintura. Nesse filme, Greenaway funde texto e imagem criando, assim, um deslumbrante espetáculo visual. O grafismo da escrita oriental torna-se um elemento plástico que aparece nesses recortes gráficos, manuscrita nos corpos dos personagens. Fragmentos e simultaneidade de imagens se deslocam entre presente e passado, superposições e perspectivas geométricas. Greenaway realiza montagens complexas em um mesmo plano, tomando a pintura cubista como referência estética, agregada a uma tecnologia digital, como ele mesmo afirma:

FACULDADESJORGEAMADO 95


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Estou seguro de que a revolução digital vai interferir na elaboração de imagens e dar aos cineastas a possibilidade de trabalhar como verdadeiros animadores. Quando se libertar da escravidão da fotografia o cinema entrará no domínio que lhe é próprio, o da invenção de imagens. [...] Estagnado há pelo menos duas décadas, o cinema se encontra diante de uma desesperada necessidade de reinvenção: ele precisa se reinventar para sobreviver.20

Peter Greenaway organiza no seu cinema uma operacionalidade poética em rede, e o trânsito de imagens, na paisagem artística contemporânea, potencializa uma intrigante construção multidirecional dos filmes que realiza. Desvinculando-se do compromisso de ser uma fiel cópia da vida, o cinema anti-realista expandiu seus limites estéticos, acompanhando, dessa forma, tendências das vanguardas artísticas, que desviam a pintura da sua função de “janela transparente do mundo”. Ao invés disso, tanto a arte como o cinema transitam por várias linguagens e técnicas e operam em diversos níveis de significação As artes plásticas na contemporaneidade, por sua vez, na medida em que superam os conceitos da “pintura sobre tela”, invadem o domínio de mídias cada vez mais sofisticadas, que favorecem a abertura de perspectivas mais amplas em relação à pintura tradicional. Pode-se verificar, então, tanto no cinema como nas artes visuais, fotografia, dança e teatro, uma forte tendência de quebra e expansão de seus antigos limites técnicos e estilísticos, favorecendo o surgimento de uma arte híbrida, ou seja, mista, “impura”. A coexistência de diferentes gêneros em um só texto ou num único filme gera forte impacto antilusionista porque expõe os códigos e dispositivos de sua construção. Greenaway realmente aposta nos princípios híbridos da visualidade contemporânea, nos embricamentos estéticos gerados por essas passagens. Ele investe na tradição da pintura e na tecnologia para engendrar a sua maneira de reapresentar o mundo: A pintura, por algum motivo, soube manter o fio condutor da cultura, mesmo quando organizada pelo Estado, mesmo a serviço da religião ou da burguesia. O conceito mesmo da pintura faz com que ela seja uma arte barata e a forma mais investigativa de tornar real um conteúdo filosófico sobre o mundo. Ela está sempre aí, na vanguarda. Basta lembrar os movimentos marcantes do século xx, sempre abertos pela pintura, o cubismo, o minimalismo e a pósmodernidade. Os outros artistas correram atrás. Pintores são profetas e os diretores de cinema deveriam se lembrar disso.21

Peter Greenaway busca extrapolar a narrativa clássica e expandir suas potencialidades criativas, através de experimentações que transformaram a prática do cinema. Ele reúLEITURASCONTEMPORÂNEAS 96


TRÂNSITO DE IMAGENS NO CINEMA DE PETER GREENAWAY: CINEMA, TEATRO E ARTES VISUAIS

ne e integra, de uma forma ou de outra, o legado dessas experimentações na autoria de seus filmes à sua experiência e conhecimento no campo das artes. Mostra ao espectador as marcas da construção de cada plano. Opera, de maneira sistemática, mesmo não abrindo mão de contar histórias, o constante “trânsito de imagens”. O que resulta disso é um cinema com alto potencial de “falso” e de uma natureza totalmente híbrida, que se identifica com as mais recentes tendências da arte contemporânea.

REFERÊNCIAS BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997. PARENTE, André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. PASCOE, David. Peter Grenaway: museums and moving images. London: Reaktion Books, 1997. PEIXOTO, Nelson B. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC/Marca D’ Água, 1996. PAREYSO. Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997. WOODS, Alan. Being naked playing dead: the art of Peter Greenaway. Londres: Manchester University Press, 1996.

NOTAS 1

Os 100 Objetos para Representar o Mundo; catálogo da ópera. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil: SESC São Paulo, 1998. p. 11. 2 CALIL, Ricardo. A elegância discreta das meninas: em Writing to Vermeer, o cineasta inglês Peter Greenaway compõe a intimidade das mulheres do pintor holandês. Gazeta Mercantil. São Paulo, 21, 22, 23 jul. 2000. Artes, p.16. 3 AMIGUET, Lluís (do La Vanguardia). Tudo ao mesmo tempo agora. Tradução de Sérgio Molina. Folha de São Paulo. São Paulo, 03 ago. 2003. Mais, p. 3. 4 PASCOE, David. Peter Grenaway: museums and moving images. London: Reaktion Books, 1997. p.22. Tradução da autora deste trabalho. Pascoe é professor de literatura inglesa na Universidade de Glasgow. 5 A revista Sexta-Feira traz um número dedicado à abordagem do corpo no contexto da arte e da sociedade contemporâneas, e também no cinema de Peter Greenaway. Ver SEXTA-FEIRA: antropologia, artes e humanidades. São Paulo: Pletora, 2000. N. 4. 6 Até hoje, costuma-se usar na América do Norte o termo motion pictures (quadros em movimento) ou simplesmente a forma curta picture quando se fala em cinema. 7 Gênero teatral medieval, que, nos desfiles das festas e mistérios (dramatizações de cenas bíblicas), usava cenários montados em cima de carroças, com atores colocados em arranjos de poses estáticas, que fixavam o ponto crucial da história. No século XIX, os quadros vivos se desenvolvem como gênero independente, ganham status de obra de arte e passam a se chamar tableaux vivants. Muitos desses arranjos reconstituem pinturas famosas. No filme “Caravaggio”, do diretor inglês Derek Jarman, as reconstituições das pinturas de Caravaggio são, ao mesmo tempo, tableaux vivants de seus quadros e, na ficção do filme, reconstruções meticulosas do arranjo que o pintor colocou no seu atelier como modelo. Artistas como Eleanor Antin, Valie Export, René Magritte, Pier Pablo Pasolini, Godard e Cindy Sherman desenvolveram experiências nesse gênero. 8 ARRIOLA, Magali. Peter Greenaway: cinema e pintura, ambigüidades e artifícios. In: Os 100 objetos para representar o mundo; catálogo da ópera. p.11. 9 Id., ibid., p.16-17. 10 Entrevista de Peter Greenaway concedida a Alan Woods, professor da Universidade de Dundee, e publicada no FACULDADESJORGEAMADO 97


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livro de Wood, Being naked playing dead: the art of Peter Greenaway. Londres: Manchester University Press, 1996. p.234. 11 PEIXOTO, Nelson Brissac. Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura. In: PARENTE, André (Org) Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. p.239. 12 A ópera barroca torna-se paradigma da idéia do “Gesamtkumstwerk” ou “Obra de Arte Integrada”, porque agrega, além da arquitetura, da pintura e da escultura, a poesia, a música, a dança, a pantomima e também o público. A platéia é um prolongamento do palco e vice-versa, sendo iluminada durante o espetáculo para também se integrar ao mesmo. Ia-se ao teatro para ver, mas também para ser visto. Nesse sentido, pode-se dizer que no Barroco se realizou, pela última vez, a idéia da “Obra de Arte Total”. 13 Sobre a recorrência do Barroco na arte contemporânea, ver DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. p.201-206. Ver também CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1993. 14 Termo usado por Raymond Bellour para designar o espaço das passagens das imagens, sendo o vídeo o principal agente dessa passagem. Ver BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997. p.14-15. 15 Id., loc. cit. 16 PEIXOTO, Nelson B. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC/Marca D’ Água, 1996. p.209. 17 PAREYSO. Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997. No seu pensamento sobre arte, Pareyson substitui a estética da contemplação pela estética da produção, ou seja, da formatividade. 18 Entrevista concedida por Greenaway ao jornalista Luiz Zanin. Oricchio, do jornal O Estado de S. Paulo, e publicada em 11de dezembro de1996. 19 Peter Greenaway, em entrevista concedida a Alan Woods, professor da Universidade de Dundee, e publicada no livro de Wood Being naked playing dead: the art of Peter Greenaway, Londres: Manchester University Press, 1996. p. 265. 20 GREENAWAY, Peter. Epígrafe inserida em folha de rosto. In: Cinemais: revista de cinema e outras questões audio-visuais. Rio de Janeiro, n.1, p.3, 1998. 21 ORICCHIO, Luiz Zanin. Seu próximo filme deve ser um suicídio artístico (entrevista concedida por Peter Greenaway). O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 dez. 1996.

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A Bolsa de Valores das Idéias Ana Dumas*

Resumo: Idéias valem e geram valor. Movimentam economias, finanças, investimentos e são tratados com uma corporeidade incomum na história da humanidade (incomum não é a corporeidade, mas o reconhecimento dela). Tudo isso começou, ao menos ocidentalmente, no momento em que a Grécia “inventou” a Filosofia, que por sua vez “inventou”, através de Platão, o Mundo das Idéias. Tratamos aqui da economia (subjetiva e financeira) em torno das idéias, valores, saberes, matérias-primas da Filosofia e das indústrias contemporâneas. Palavras-chaves: Filosofia – Idéias – Economia.

O que ontem eram as fábricas para a riqueza, hoje são as idéias. Seth Godin

INTRODUÇÃO Numa Bolsa de Valores, o pregão anuncia a primeira cotação do dia. Investidores nervosos gritam, negociam, compram, vendem. As ações com cotação em baixa perdem valor no mercado, ficam em segundo plano. Ainda assim, acham compradores, que investem porque sabem que muitas delas voltarão a ter valor algum dia. As ações em baixa não saem necessariamente de cena, apenas deixam de ocupar os papéis principais. Algumas voltarão ao palco com novas cotações, novos valores. Outras jamais voltarão à cena – os cemitérios serão seus destinos. As grandes estrelas são as ações em alta ou que indiquem, por menor que seja, um movimento ascendente nos pregões das Bolsas. É em torno delas que todos se movimentam. É em nome delas que investidores suam nervosos e, excitados, deslocam investimentos, investem valores, num fluxo interminável Essa movimentação é, quase sempre, imprevisível. Exige presença de espírito. Todo o tempo, real time, os pregões das Bolsas anunciam o eterno movimento de sobe e desce das ações.

* Acadêmica em Filosofia e publicitária.


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Cenas como essa são constantes no dia-a-dia das centenas de Bolsas de Valores Financeiros espalhadas pelo mundo. Mas aqui nossa Bolsa é de outra ordem e, embora envolva investimentos financeiros, está para além deles. Exceto por alguns detalhes, poderíamos estar falando, de forma análoga, desse mesmo movimento no mundo das idéias. Idéias e valores movem-se como ações financeiras: sobem, descem, vão, voltam. E não estamos aqui tomando emprestado uma imagem original do mercado financeiro para tratar dos movimentos das idéias e valores subjetivos. Pelo contrário, o mercado financeiro é que seria uma representação da movimentação incessante do que acontece no mundo das idéias. Queremos dizer com isso que a economia se dá em primeiro plano na subjetividade humana (não que se restrinja a ela, mas esse é o nosso recorte). É o mercado financeiro quem toma emprestado, da subjetividade, a idéia de economia, como veremos adiante. Falávamos que, exceto por alguns detalhes, poderíamos usar a imagem das Bolsas de Valores Financeiros para nos referirmos aos movimentos incessantes das idéias, pensamentos, sensações, enfim, dos vários elementos que compõem os campos da subjetividade humana. Uma dessas exceções é a velocidade com que os valores e ações se movimentam. Enquanto o financeiro obedece a um ritmo veloz, nervoso, com alto poder de rotatividade – o que faz com que uma mesma ação possa subir e descer várias vezes num único dia –, o movimento das idéias é lento, pesado, secular: “Faltam ao espírito de um indivíduo o tempo e o distanciamento para perceber a revolução em curso. Os grandes paradigmas têm uma vida multissecular e sua agonia pode demorar um século”1. Décadas são para humanos, a fita métrica das idéias é o século. As características que configuram o espírito de uma Era (paradigmas, crenças, ideologias etc) são programas pesados e, na maioria das vezes, levam séculos para “baixar”. Mas, embora o download das idéias seja lento, sua movimentação é incessante e sua cadência, como a de um samba, é “coletivamente” particular. Falávamos ainda de algumas semelhanças entre os mecanismos da economia financeira e os de uma outra economia, mais complexa e abrangente, a qual chamaremos, a partir de agora, de economia subjetiva2. Veremos que há muito mais pontos de interseção e tensão entre esses dois universos do que possamos imaginar. ECONOMIA SUBJETIVA Normalmente pensamos a economia como “uma ciência que trata dos fenômenos relativos à produção, distribuição, acumulação e consumo dos bens materiais3”. Talvez aí resida o nosso principal erro: resumir a noção de economia à de mercado financeiro e reduzir a idéia de mercado a algo exclusivamente vil. Mas podemos pensar em econoLEITURASCONTEMPORÂNEAS 100


A BOLSA DE VALORES DAS IDÉIAS

mia para nos referirmos aos “mecanismos identitários”4 que garantem uma certa estabilidade à personalidade do sujeito, conforme nos sugere a psicanálise: “De um modo geral, todo o funcionamento do aparelho pode ser descrito em termos econômicos como atuação de investimentos, desinvestimentos, contra-investimentos, superinvestimentos”5. Pensamos economia, portanto, como a regulação, distribuição, gerenciamento de elementos subjetivos (maneiras, modos, desejos etc). Sem querer ser redundante, insisto no fato de que a economia não se restringe e, principalmente, não se origina no universo financeiro. A lógica, como já pontuamos anteriormente, é inversa. Se olharmos atentamente, o aspecto financeiro apenas acompanha as áreas de movimentações, efervescências, ebulições, de situações que vibram. O carnaval baiano pode nos servir de ilustração para o que queremos pontuar: os investidores financeiros escolhem quais blocos patrocinar em função dos interesses que estes despertam no público. O público converge para a plasticidade a mais que diferencia um produto do outro. Os valores buscam sujeitos (para serem valorados) que buscam produtos (para satisfazer suas necessidades) que buscam sujeitos (para comprá-los). Em outras palavras, significa dizer o quanto economia e subjetividade estão impregnados um do outro. SAPIENS MARKET

Orixá que supervisiona os mercados dos reinos, Exu media o mundo divino e o humano

Era do Conhecimento, da Informação, das Comunicações, do Capital Intelectual ou ainda Era da Criação: seja qual for o nome que a posteridade dará ao nosso tempo, o que vale ressaltar aqui é o papel referencial que o conhecimento adquire na atualidade, seja no formato científico, artístico, educativo ou informativo. Todos esses nomes que cunham (provisoriamente) a atualidade remetem a uma movimentação sem precedentes em torno de idéias, conhecimento, valores – seja no sentido econômico, quer dizer, financeiro ou subjetivo. Não estamos afirmando aqui que o acesso ao conhecimento seja democrático, igual para todos. Também não queremos afirmar que o conhecimento não teve sua importância reconhecida em outros períodos históricos. Não é isso que estamos falando. Sabemos do papel fundamental que o conhecimento sempre exerceu na história da humanidade. Insisto, o que nos importa é o papel referencial do conhecimento em todas as áreas das atividades humanas. Dentre as diversas áreas das atividades humanas, uma em FACULDADESJORGEAMADO 101


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especial já percebeu o enorme potencial financeiro do conhecimento ou das idéias no mundo contemporâneo: o mercado econômico. “Houve a Revolução do Soft. Deu-se o reconhecimento de que os ‘ativos’ que designamos hoje na linguagem comum por ‘soft’ ou ‘intangíveis’ são os bens econômicos mais importantes. Antes, o que é que era a menina dos olhos dos economistas e dos políticos? Era a terra, o petróleo, o aço, as fábricas, as máquinas etc6”.

Os grandes investimentos financeiros hoje migram, primordialmente, para o campo das idéias – não por acaso, as maiores indústrias hoje são de turismo, entretenimento, pesquisas etc. Em outras palavras, falamos de uma indústria subjetiva: “Essa indústria é mais ‘de base’ do que as indústrias siderúrgicas, químicas etc; a indústria subjetiva seria, ao mesmo tempo, produtora e consumidora de objetos, constituiria a mão-deobra de base e o consumo, simultaneamente7”. Não poderíamos falar em indústria subjetiva sem tocarmos em um dos paradigmas estruturantes do capitalismo tradicional: a idéia de que o empregador – ou o capitalista – é quem detém os meios de produção. Ao assalariado restava apenas a alternativa de vender sua força de trabalho. Mas na economia dos bens intangíveis, esse paradigma começa a afrouxar suas bases: “Com o trabalho baseado no conhecimento, a questão da propriedade ficou muito mais complicada. O trabalhador do saber é proprietário do seu cérebro, dessa ferramenta incrível, e o empregador apenas o arrenda, se assim se pode dizer. O trabalho que faz é propriedade do empregador, mas também continua a residir dentro do próprio trabalhador, pela natureza da sua fonte que é intangível. Quando o resultado desse trabalho é vendido, o cliente fica com ele – nem sempre com a propriedade total -, mas o produtor e empregador ainda ficam com parte da sua propriedade”.8

Compreendemos como intangível não apenas “o que não é tangível; em que não pode tocar; que não se pode apalpar” (Dicionário Michaelis Uol), mas também como “tudo aquilo que lida com princípios e valores mais do que apenas com dólares e cêntimos”9. Não nos interessa discutir apenas a dicotomia entre princípios e dízimos, mas a convergência entre eles. A convergência nos é mostrada claramente pelo campo econômico financeiro: os dízimos, como já discutimos, apostam nos princípios, nas idéias, nos valores. Um comercial de um cartão de crédito, exibido nos principais veículos de comunicação do país, pode nos ajudar a ilustrar melhor: normalmente esses comerciais veiculam a idéia de que, com aquele cartão, tudo é comprável. Mas o Mastercard LEITURASCONTEMPORÂNEAS 102


A BOLSA DE VALORES DAS IDÉIAS

se diferenciou dos outros ao assumir como slogan a idéia de que “existem coisas que o dinheiro não compra”. Essas coisas que não têm preço seriam da ordem da subjetividade: afeto, férias, amor, pequenos prazeres cotidianos. Para todas as outras (compráveis), existe o cartão x. Vimos uma migração significativa da economia tradicional para mercados do saber, do conhecimento – é bom que se deixe claro que a indústria tradicional sempre foi movida pelo conhecimento; o que destacamos aqui é radicalização dessa relação. Vimos ainda a valoração que as grandes indústrias de ponta conferem às matériasprimas imateriais (conhecimento, idéias, valores): “O conhecimento, ao contrário de outras matérias-primas, é um recurso praticamente inesgotável”10. Não poderíamos falar de bens intangíveis sem nos referirmos a quem sempre trabalhou idéias e valores como matérias-primas: a Filosofia, ‘inventora’ e legisladora (ao menos ocidentalmente) do Mundo das Idéias. Quanto à divergência entre princípios e dízimos de que falávamos antes, é também na Filosofia que vamos encontrar a sua origem, como veremos. O PRINCÍPIO Grécia, aproximadamente séculos VI e V a.C. Algo de diferente e definitivo viria a acontecer ali, marcando para sempre a relação do homem ocidental com o conhecimento: o nascimento da Filosofia. A efervescência da civilização grega viria dar no que hoje conhecemos e vivemos como a Era do Conhecimento. Tomemos essa efervescência como o princípio do big-bang do universo das idéias. Ao afirmar que o princípio básico que regia o mundo era a água – Tudo é água –, o filósofo Tales de Mileto (cerca de 585 a.C.) transformou, irreversivelmente, a relação humana com o conhecimento. Pode-se pensar que foi aí que a Razão, tal como viríamos a concebê-la, começou a se formar. Para compreender a importância desse princípio, é preciso lembrar que antes dele, o conhecimento acerca do mundo nos chegava através de mitos e deuses – até descobrirmos depois que a Razão também não passaria de mais um mito. Com Tales, pela primeira vez o homem “enuncia algo sobre a origem das coisas e o faz sem imagem e fabulação”11. Temos, com Tales, uma idéia de unidade, de que todas as coisas se originam de uma única. Não era a água a realidade de todas as coisas, mas “Tudo é água” contém na sua fórmula o postulado “Tudo é um”. Embora não tenha superado o estado precário das noções físicas que se tinha na época, Tales, como nos sugere Nietzsche, salta sobre ele ao elaborar um “postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística”. Tudo é um é a pedra fundamental na compreensão racional do mundo. Um certo espírito de ciência começa a encarnar no que viria a se tornar o mundo ocidental. FACULDADESJORGEAMADO 103


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Começa também a se formar a aura do que viríamos a chamar, milênios depois, de Era do Conhecimento. A partir de Tales, mas ainda no seu tempo, outros pensadores saíram em busca do que seria o seu tudo é um. O que viria depois do tudo é (a água, o ar, o indeterminado) era o que menos importava. Importava sim, buscar razões – ainda que frágeis, às vezes risíveis, mas razões. Acontece que nem todos os princípios se mostraram tão frágeis assim. Pelo contrário. O de Anaximandro, também de Mileto, sucessor e discípulo de Tales, tem se mostrado “imortal e imperecível”12. Seu tudo é deixa de se originar de uma única coisa (como a água) para ter uma origem indeterminada. Diante da unidade sugerida pelo seu mestre e da diversidade real do mundo, ele se perguntava: “Mas, se há em geral uma unidade eterna, como é possível aquela pluralidade?”13. Disse então Anaximandro que o “ápeiron (ilimitado, indeterminado, infinito) era o princípio e o elemento das coisas existentes”. Diz também que “o princípio não é a água nem algum dos chamados elementos, mas alguma natureza diferente (grifo meu), ilimitada”. Ao buscar a origem das coisas não nos elementos (água, ar, fogo), mas em algo fora deles, o sucessor de Tales “já não mais tratou a pergunta pela origem deste mundo de maneira puramente física”14, mas como algo que vai além do físico. A natureza diferente desse mundo a que se refere Anaximandro talvez se aproxime do que hoje entendemos como imaginário e/ou subjetividade. Sua filosofia abre caminho para um mundo povoado de seres até então indeterminados, imateriais, indemonstráveis (idéias, valores, pensamentos, sensações). O homo sapiens começa a penetrar, objetivamente, no que Platão viria a chamar de Mundo das Idéias. O MUNDO DAS IDÉIAS Algum tempo depois, Platão (429-347 a.C.), outro filósofo grego, chegou à conclusão de que “deveria haver uma realidade por trás do mundo material”. A essa realidade outra, Platão chamou de Mundo das Idéias. “Tal mundo conteria os ‘padrões’ eternos e imutáveis que estariam por trás dos muitos fenômenos encontrados na Natureza”15. É a teoria das idéias ou formas. Para Platão, por trás do mundo físico haveria as idéias, seres divinos, imutáveis, das quais as coisas materiais seriam apenas pálidas sombras. A filosofia platônica dividiu o mundo em dois – o sensível (físico) e o das idéias (subjetivo) – e institui uma relação de hierarquia entre eles: “a apreensão das idéias (formas) constitui o conhecimento (noêsis), ao passo que a crença no mundo cotidiano e mutável, é na melhor das hipóteses, opinião (doxa)”16. Vamos nos deter agora em algumas questões significativas, que ainda fazem parte LEITURASCONTEMPORÂNEAS 104


A BOLSA DE VALORES DAS IDÉIAS

de nossa visão de mundo, por mais que não queiramos. Em outras palavras, questões que são paradigmas. Primeiro, como vimos, é com Platão que se funda uma lógica binária tão sólida, que atravessa séculos e milênios e perdura até os nossos dias. Um paradigma duradouro, do qual ainda não conseguimos nos desvencilhar; mudamos talvez os elementos que o compõem, mas é sempre a mesma velha equação: ou isso ou aquilo (Corpo x Espírito; Mito x Ciência; Razão x Sensibilidade; Sujeito x Objeto). Não queremos aqui eliminar a lógica binária do mundo do pensamento, não seríamos ingênuos a esse ponto. Sabemos o quanto, em diversos momentos, ela se faz necessária. A questão é: como uma única equação pode dar conta da pluralidade existente no mundo, tanto físico quanto imaterial? Segundo, a tensão existente entre conhecimento e mercado na efervescência da filosofia grega. Ou, como vimos anteriormente, entre dízimos e princípios. Tomemos como referência a clássica indisposição com que Sócrates e seus discípulos tratavam os sofistas, a ponto de termos destes, ainda hoje, uma visão pejorativa. Depois de Sócrates, sofista virou sinônimo de charlatão. Mas a palavra sofista tem sua origem no grego sophistés, que quer dizer sábio. Sabe-se que os sofistas desenvolveram, especialmente, a retórica, a eloqüência e a gramática e deixaram estudos dos fundamentos da moral e da epistemologia. Na verdade, a atitude geral dos sofistas não parece ter sido muito diferente da de Sócrates, mantendo ambos uma posição razoavelmente cética em relação às cosmologias especulativas17.

Diferenças ou semelhanças de conteúdo à parte, porque então seriam os sofistas charlatões? O que nos parece é que essa indisposição tem como uma das suas origens – digo uma para deixar claro que podem existir outras, inclusive de que é possível que muitos sofistas tenham sido mesmo charlatões – o fato de que os sofistas ganhavam dinheiro tendo o saber como matéria-prima, tal como fazem, na atualidade, educadores, consultores, pesquisadores etc. Essa tensão inicial entre conhecimento e mercado ficaria cravada para sempre na nossa história. E, como veremos adiante, viria a se intensificar nos dias atuais quando o conhecimento se tornaria uma das mercadorias mais valiosas nas bolsas de valores financeiros. E, por último, cabe-nos ressaltar que, se os filósofos gregos instauraram a lógica binária e a tensão entre saber e mercado, por sua vez, colocaram o “indemonstrável” na pauta do conhecimento. Com eles, o Mundo das Idéias começa a ganhar rudimentos de uma existência objetiva.

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ONDE A CIÊNCIA SE ENCONTRA COM O DIVINO O Mundo das Idéias de Platão seria reinterpretado, séculos depois, por Theillard Chardin como Noosfera (do grego nous:mente, pensamento, razão), no seu livro “O Fenômeno Humano” (finalizado em 1946 e publicado em 1955). A noosfera seria todo o conjunto do patrimônio simbólico humano, uma nova esfera planetária, acima da Biosfera, mais madura, em crescimento e definitiva, feita pelo conjunto do pensamento do Homo Sapiens18; ela abriga todo o conhecimento humano, todas as idéias e tecnologias cada vez mais complexas, ou seja, toda a consciência planetária19.

Coube a Chardin dissecar idéias com a mesma objetividade com que Da Vinci dissecava os cadáveres renascentistas e, possivelmente, com a mesma intenção: conhecer seus programas, mecânicas, fluxos, átomos. Resumindo, o funcionamento corpóreo dos seres imateriais. Essa corporeidade ganha, com Chardin, um radicalismo até então inédito. O pesquisador, que trazia dentro de si a ciência (era paleontólogo e filósofo) e o divino (era padre), injetou ciência num mundo considerado divino, imaterial, pois o tratou com objetividade científica. Da mesma forma, contaminou a ciência de divino ao tomar seres do espírito como alvo de suas lâminas. Diferentemente de Platão, em Chardin os mundos não se opõem, pelo contrário, um contém ou pode conter o outro. A lógica binária de Platão começa a mostrar rachaduras nos seus alicerces. Até porque se o filósofo grego dividiu o mundo em dois – o sensível (da ordem do material, do físico, do hardware) e o das idéias (da ordem do imaterial, do intangível, do software) –, tempos depois perceberíamos que “a noosfera não é totalmente imaterial, pois dispõe do suporte biofísico dos seres humanos. Observemos também que a matéria é, num certo sentido, quase imaterial, pois há 99% de vazio num átomo, e que as partículas, isoladamente, quase não são matérias”20. O Mundo das Idéias estremece. Temos aí dois paradigmas em mutação: primeiro, a quebra de hierarquia entre os mundos físico e espiritual: se um contém e está contido no outro, a tendência dessa hierarquia é se diluir. Segundo, a descentralização do paradigma do ou isso ou aquilo. Seja físico ou imaterial, um mundo já não existe sem o outro; um implica necessariamente no outro. A introdução do e onde antes reinava absoluta e excludente a conjunção21 ou talvez seja uma das mais significativas mudanças do século XXI. A existência objetiva do Mundo das Idéias foi levada ao extremo por outros pensadores como Edgard Morin (noosfera), Gilbert Durand (imaginário), Pierre Lèvy (consciência planetária, virtual), Popper (terceiro mundo). Guardada as devidas diferenças, LEITURASCONTEMPORÂNEAS 106


O exame de cadáveres por Da Vinci é análogo à dissecação de idéias pelo filósofo Chardin


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todos convergem para um tronco comum: trata-se de um mundo de “natureza diferente,” aquele mesmo a que se referiu Anaximandro alguns séculos antes de Cristo. Embora sua natureza seja diferente e indeterminada, é possível – e preciso – conhecê-la, investigá-la. Mas a Filosofia já não reina soberana no Mundo das Idéias: psicanalistas, antropólogos, economistas, comunicadores, também mergulham fundo nas estruturas edificantes do imaginário coletivo e das idéias. Navegam todos em busca de novas especiarias: conhecimentos, idéias, saberes. Floresce a Era do Conhecimento. O NÃO-SEI-O-QUÊ EM NÃO-SEI-QUEM Sabemos que o mundo das idéias, dos conceitos, valores, princípios são matériaprima da filosofia ocidental, desde o momento do seu big-bang na Grécia Antiga. Mas como a filosofia lida com a valoração financeira das idéias como matéria-prima? Bom, a princípio, parece-nos que ela vem, ao longo do tempo, trocando de matéria-prima. Ao acompanharmos uma parte significativa da filosofia acadêmica contemporânea, o que nos parece é que a filosofia abriu mão de tratar das questões do mundo para tratar, quase que com exclusividade, das questões do discurso – isso pode falar, isso não pode. Com freqüência, assim somos formatados nos cursos de filosofia. Os alunos, com raras exceções, não são estimulados a falar sobre o que os move, o que os espanta, e sim sobre o que moveu e causou espanto nos filósofos cânones. Quase sempre nos esquecemos de que esses filósofos se tornaram cânones porque, na sua época, ousaram falar sobre o espírito do seu tempo. Quanto aos alunos, que esqueçam as idéias e valores do seu tempo e se contentem apenas em reproduzir o conhecimento já produzido. Mais ainda, que se contentem em preencher, de acordo com sua criatividade, os espaços vazios de uma equação que vem se mantendo inalterável: O não-sei-o-quê em nãosei-quem (O Amor em Platão; A Política em Aristóteles; A Ética em Spinoza; O Existencialismo em Sartre). Se, como vimos anteriormente, a noosfera ou imaginário ou virtual são da ordem do pensamento, da abstração, das idéias, não seria esse um mundo para a filosofia mergulhar? Mas seu discurso já não explora o mundo e sim o próprio discurso. Ao invés de filósofos, forma-se juízes, legisladores. Ao invés de interpretar ou desvelar, ela legisla sobre o que pode ou não ser dito e, mais ainda, de que forma deve ser dito. Isso quer dizer que posso até falar sobre como falar sobre um fenômeno ou uma questão, mas não sobre a questão propriamente dita. A isso grande parte da filosofia se reduziu, a um como falar sobre, a um legislar, a um “reconhecer firma” do que se considera como saber oficial. Mas há muito mais vida além do saber oficial do que se imagina. E esses saberes paralelos e suas conseqüentes manifestações (artísticas, estéticas, sociais) são LEITURASCONTEMPORÂNEAS 108


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tão importantes quanto os legitimados e reconhecidos pelas instituições consideradas oficiais. A filosofia grega explorava o mundo e a credibilidade do discurso ao mesmo tempo. Com raros momentos de exceção, nós paramos aí, na investigação da credibilidade do discurso. Falávamos anteriormente de uma comercialização desenfreada do conhecimento. Não seria leviano, inclusive, pensar que o conhecimento hoje vem se afirmando como um produto de massa. Pode ser que resida aí a resistência que grande parte dos intelectuais têm em lidar com o conhecimento enquanto produto: porque produtos – principalmente os de massa – são acessíveis a todo e qualquer consumidor que se interesse e que tenha condições financeiras de consumi-los. Essa rejeição nos remete a um certo elitismo intelectual. Pensar o lado comercial do conhecimento como sinônimo de vil nos transporta à atitude dos que trancafiavam saberes nos mosteiros medievais. Trancafia-se o conhecimento não para protegê-lo (do quê?), mas para não circular. Recalca-se a circulação em nome da pureza, como um nazismo do saber. Talvez a resistência em aceitar o lado comercial do conhecimento não esteja no fato de se por à venda, e sim de aceitar o caráter de circulação que os produtos possuem. Mas foi justamente a circulação e a troca que permitiu o surgimento de diversas civilizações ao longo da história da humanidade. É esse intercâmbio de idéias, a movimentação, o sobe e desce de valores subjetivos que nos permite diferenciar a personalidade de uma Era da outra. O MUNDO FAZ UPGRADE De tempos em tempos, o mundo faz upgrade atualiza suas configurações, programas, valores, ações. Dentre os muitos programas/ valores que configuram o espírito do mundo contemporâneo, alguns se sobressaem nas bolsas de valores das idéias: miscigenação; comunicação (que a tudo abarca e opera em todas as esferas, seja estética, racional, econômica ou filosófica); formas multimídias de produção de conhecimento (escrita, oralidade, imagem); a não-linearidade do tempo; o espírito tribal; a valorização das matérias-primas intangíveis, como idéias, saberes, conhecimentos. No breve passeio pela origem ocidental do Mundo das Idéias, vimos com Tales de Mileto uma certa idéia de unidade; logo mais, com Anaximandro, nos deparamos com a noção de pluralidade; Platão nos traria, tempos depois, a imagem de uma lógica binária. Rememorar essa movimentação é importante para não esquecermos do caráter provisório, histórico e temporal das verdades. Seu caráter não é absoluto, universal e singular como até hoje acreditamos. Ainda torcemos por verdades com a mesma passionalidade com que torcemos por times de futebol. Veremos a seguir alguns valores/ações em alta no imaginário coletivo contemporâFACULDADESJORGEAMADO 109


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neo. Falaremos deles, não para defendê-los ou tomar partido, mas como uma constatação do quanto esses valores canalizam de investimentos subjetivos e financeiros por todo o mundo. Algumas dessas ações foram recortadas da bolsa de valores do inconsciente coletivo de Salvador, Bahia. AÇÕES EM ALTA NO INCONSCIENTE COLETIVO CONTEMPORÂNEO Imaterialidade - Com o avanço da informática, a ciência começa a perceber a existência de uma partícula até então desconhecida para ela: a alma, a desmaterialização, a condição virtual. Nunca se falou tanto em virtualização. Traduzindo, espírito, alma, soul. Não há novidade nenhuma nisso tudo, o virtual existe desde sempre, cyber não passa de alma em ancestral. A alma (ou a imaterialidade), ao lado das comunicações, da miscigenação, do tribalismo, será uma das marcas dessa Era. Quem sabe a posteridade nos nomeie, entre outras possibilidades, de século soul. Inteligência multimídia - A racionalidade já não é mais a dona absoluta da razão. Conceitos originais são criados para quebrar a supremacia da racionalidade e da escrita como fontes prioritárias de conhecimento. O músico Carlinhos Brown nos dá uma pista interessante ao explicar o que estaria por trás do conceito criado por ele para nomear seu primeiro álbum solo (1996): “Alfagamabetizado quer dizer rejeição ao analfabetismo, à falta de educação.O alfagamabetizado vê o mundo como uma grande sala de aula, se informa através de tudo, de todo tipo de informação”. É possível perceber também uma diminuição em relação à rejeição da imagem e oralidade como fontes de conhecimento. Em todo o mundo, cresce a produção e o consumo de documentários, gênero que mescla tecnologias básicas do conhecimento humano: texto, imagem, oralidade. Essa mescla de linguagens, por exemplo, é a forma básica de criação na publicidade, que se dá por duplas: um redator (texto escrito e/ou falado) e um diretor de arte (imagem). Tambor e Ritmo – O tambor é considerado o primeiro veículo de comunicação à distância na história da humanidade, foi o big-bang da Era das Comunicações. Com o tempo novos veículos foram inventados e o tambor se restringiu à função de instrumento musical. Mas em Salvador, em pleno século XXI, o tambor ressurge como um mix entre a forma ancestral (veículo de comunicação) e a forma contemporânea (instrumento musical). É isso que o tambor tem sido para as bandas percussivas das periferias de Salvador (Olodum, Ara Ketu, Timbalada etc): uma forma de se comunicar com outras periferias, com todo o resto da cidade, com o Brasil e com o mundo. E se na ancestralidade das comunicações a mensagem transmitida era, literalmente, a própria batida dos tambores, hoje é a cena que fala: a mensagem é estética, sensorial, gestual, adornada, corporal. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 110


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O ritmo é a linguagem do tambor. Tudo indica que o tambor vai se tornar para o século XXI o que foi a guitarra para a música do séc XX. O mercado sonoro contemporâneo é regido pelo ritmo, que rege também nossa irracionalidade. Talvez não tenha sido por coincidência que o ritmo tenha se tornado a trilha sonora do início deste século, seja no formato digital (drum’s bass, jungle, goa, techno) ou manufaturado (Timbalada, Olodum, Ilê Aiyê, Didá, Bagunssasso, para citar alguns dos inúmeros blocos percussivos de Salvador). Afinal, como vimos, vivemos numa era em que a racionalidade já não é a dona absoluta da razão e é nesse ponto que o ritmo toca: no chacra do que há de menos intelectual em nós.

Ritmo – o regente das almas

Perifa pop-center - A alta cultura começa a ceder espaço para a cultura de rua. Periferias do mundo inteiro começam a investir na própria cultura como produto. As periferias são hoje os grandes fornecedores da indústria cultural contemporânea, seja na música, na moda (street wear), no esporte, no comportamento etc. E periférico aqui se refere tanto à localização geográfica, quanto às distâncias de cada um em relação aos Meridianos de Greenwich oficiais. Ou seja, em relação ao que é tomado como padrão de referências, de coordenadas, para tudo o mais que existe à sua volta. Na verdade, o que as periferias fizeram foi criar seus próprios Meridianos de Greenwich, a quebrar as linhas de exclusão que as separavam dos centros. E aqui cabe nos perguntar: excluídos do quâ? Estamos sempre contidos em alguns conjuntos e, de fato, fora de outros. Mas no grande conjunto, que é o dos humanos, estamos todos contidos. E de onde se está FACULDADESJORGEAMADO 111


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contido, não se pode estar excluído. Miscigenação - conforme o Novo Dicionário Aurélio (1975) significa “misturar, cruzar; qualidade do que é miscível; cruzamento”. Fala-se hoje na miscigenação como uma marca incontestável do povo brasileiro (e do século XXI). Mas vamos esquecer aqui a miscigenação como proposta de identidade nacional; esqueçam também a miscigenação como um sinônimo de democracia racial; vamos falar dela aqui como uma convivência – nem sempre pacífica – entre diferenças culturais, sejam étnicas, simbólicas, genéticas, econômicas, como numa grande rede onde tudo se conecta. O que viabiliza essas conexões é a comunicação. Durante um determinado período, grande parte dos investimentos financeiros da indústria cultural baiana convergiu para as cenas comandadas pelo músico Carlinhos Brown. Talvez porque Brown assumisse como diferencial no contexto afro-baiano o discurso da miscigenação, a tal ponto que esta se colou à sua pele e a da Timbalada (grupo percussivo criado por Brown) como uma logomarca oficial. Mas porque o grupo da miscigenação teria, durante certo tempo, mais facilidade em conseguir patrocínios do que os grupos exclusivamente afros? É possível que essa cena nos ajude a responder. Nos shows do Candy All Guetho Square22, Brown, à frente do seu exército de timbaleiros, messianicamente anuncia: “nós, os miscigenados...”. Como miscigenado abarca tudo, a classe média presente (branca, em sua maioria) se sente incluída no nós, delira, agradece e volta no próximo domingo para mais um ritual dos miscigenados tribais do Candeal – ao contrário dos shows de alguns blocos afros, onde os brancos não se sentem incluídos no nós, os negros.... Ainda que você seja um simpatizante da causa, o pronome que designa a primeira pessoa do plural só inclui quem for negro. Nesse nós, negros, negros são os outros. Mas quando falamos nós, miscigenados, aí cabe todo mundo, branco, preto, índio, amarelo. E isso pode ser um problema para quem tem preconceitos étnicos, porque o nós, nesse caso, inclui e coloca você lado a lado com toda e qualquer tonalidade/fenótipo. Mais do que social, a miscigenação é uma movimentação de conexão existencial. É um conjunto universal. Uma tribo de miscigenados não é um conceito incompatível. Existe sim, só que é uma tribo aberta. Assim como na matemática existem conjuntos abertos e fechados, uma tribo de miscigenados é um conjunto aberto e seus elementos entram e saem, suas fronteiras não têm alfândegas. A BOLSA DE VALORES DAS IDÉIAS Como ações em bolsas de valores financeiros, as idéias vão e voltam. Elas se (re) configuram diferenciando assim o espírito de cada período histórico. Idéias desfilam e LEITURASCONTEMPORÂNEAS 112


A BOLSA DE VALORES DAS IDÉIAS

encarnam estilos, desejos, tendências e contra-tendências do seu tempo. E, assim como na indústria da moda, se renovam a cada estação. Formam e são formatadas pelo tempo. O que não muda é o fato de que, sejam quais forem as idéias regentes, elas estarão anunciadas nos pregões do inconsciente coletivo, assim como valores e ações nos pregões das bolsas financeiras. Essa é uma condição básica, vale para todo e qualquer mercado. O principal mercado do século XXI é o dos bens simbólicos e imaginários, ou seja, tudo que diz respeito à produção subjetiva. Compreendemos subjetividade como algo que decorre do processo entre sujeitos, o que demanda, para que se efetive, relação, comunicação. Assim como não existe mercado sem comunicação, não pode existir comunicação sem que se leve em conta os valores anunciados no pregão das bolsas das idéias. Para se comunicar e operar no mercado contemporâneo é preciso aprender a ler o imaginário coletivo, a olhar para as idéias e questões que formam o espírito do seu tempo, para as revoluções que estão em curso e que nem sempre se fazem visíveis. É preciso, portanto, conhecer o alfabeto da alma, ser orgânico, intuitivo, tanto quanto científico.

REFERÊNCIAS BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. DRUCKER, Peter [Entrevistado por Jorge Nascimento Rodrigues]. [S.l.: s.n.], [199-?] Disponível em: <http:// www.janelaweb.com>. Acesso em: 09 jan. 2003. FORMIGLI, Francisco. Miscigenação: o cruzamento dos signos – um exemplo no Candeal. 2002. Dissertação (Mestrado de Comunicação e Cultura Contemporânea) - Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Salvador: FACOM, 2002. _____. A percepção do eu nas sociedades contemporâneas. Salvador, 2003. Inédito. GLYCERIO, Maria Luiza e PAULSEN, Janice B. A Noogênese está progredindo. Artigo capturado no site www.richmond.edu/~jpaulsen/teilhard/anoogen.html LAPLANCHE, J. PONTALIS, J.B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1984. MORIN, Edgard. O Método 4: As Idéias – Habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Sulinas, 1998. PRÉ-SOCRÁTICOS, Vol. 1. São Paulo: Editora Abril, 1973. 376 p. (Coleção Os Pensadores) ROMER, Paul. A Revolução dos Softs. [Entrevistado por Jorge Nascimento Rodrigues]. [S. l.: s.n.], [199-?]. Disponível em: <http://www.janelaweb.com>. Acesso em: 01 jan. 2003. STEWART, Thomas A. O Ouro do Século XXI. [Entrevistado por Jorge Nascimento Rodrigues]. [S. l.: s.n.], [199?]. Disponível em: 01 jan. 2003.

NOTAS 1 2 3 4

MORIN, 1998. pág. 294 Formigli, 2003. Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. Formigli, 2003.

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5

LAPLANCHE e PONTALIS, 1984: 169. ROMER, 2003 7 FORMIGLI, 2002: 77 8 STEWART, 2003 9 DRUCKER, 2003 10 STEWART, 2003 11 NIETZSCHE apud Pré-Socráticos, 1973, p. 16. 12 ARISTÓTELES apud Pré-Socráticos, 1973, p. 21. 13 ANAXIMANDRO apud Pré-Socráticos, 1973, p. 25 14 NIETZSCHE apud Pré-Socráticos, 1973, p. 24. 15 Site Psicosaber.hpg.ig.com.br, link Os Pensadores. 16 Dicionário Oxford de Filosofia, 1997. 17 Dicionário Oxford de Filosofia, p. 366, 1997. 18 Embora não possamos afirmar que se restrinja a ele. 19 GLYCERIO e PAULSEN 20 MORIN, 1998, pág. 199, nota 4. 21 Na nossa gramática “ou” é considerado conjunção (ainda que excludente); conjunção é definida como união, ajuntamento; palavra que liga dois elementos da mesma natureza (Dicionário UOL Michaeles). 22 Casa de shows instalada no Candeal, bairro de origem de Carlinhos Brown. Durante o verão baiano, o local abriga os shows de Brown e da Timbalada, grupo de percussão criado pelo músico. 6

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O Supermercado da Música: Samba-Reggae, Por Exemplo1. Goli Guerreiro*

Resumo: Este artigo quer ilustrar o mercado de bens simbólicos a partir do exemplo de um estilo musical soteropolitano – o samba-reggae, para mostrar como um produto cultural nascido na periferia do mundo atlântico transforma-se em mercadoria internacional. Palavras-chaves: Estilo Musical – Mercado Fonográfico – World Music.

Pela música, misteriosa forma do tempo. Jorge Luis Borges

Nos anos 80, o meio musical de Salvador estava tramando um novo movimento. A música percussiva, produzida pelos blocos afro - o samba-reggae, cujas letras celebravam o universo negro, saía das periferias da cidade para ocupar um lugar de destaque na cena musical baiana e não tardaria a aparecer nos cadernos de cultura do país como um criativo pólo do mundo da música no Brasil. A força da linguagem dos tambores influenciou diretamente a musicalidade dos trios elétricos – uma das trilhas carnavalescas do Brasil. As bandas de trio, atentas ao interesse que a percussão despertava, rapidamente incorporaram o samba-reggae e não demoraram a alcançar projeção nacional com um repertório basicamente montado a partir das composições dos blocos afro mais famosos da Bahia, como Ilê Aiyê, Olodum, Muzenza, Ara Ketu e Malê Debalê. Imprimindo um aparato pop ao samba-reggae, as bandas de trio eletrizaram as canções produzidas nos “guetos” negros de Salvador, sem dispensar a percussão de tambor que as identifica. A mídia batizou a nova música produzida em Salvador de axé-music. Axé é um termo iorubá oriundo do candomblé, espaço sagrado de tambores e ritmos. Esta etiqueta cabia tanto para a música dos blocos afro, que utilizavam somente percussão para fazer samba-reggae, quanto para a música executada em instrumentos harmônicos,

*Doutora em antropologia pela USP e coordenadora do Núcleo Humanidades das Faculdades Jorge Amado.


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feita pelas bandas de trio e, ainda, para a mescla entre os dois estilos. A partir desta mestiçagem estética, que fazia a fusão entre a nova musicalidade percussiva e o frevo trieletrizado, a música que balançava as periferias de Salvador, alcançou os consumidores de classe média que, desde os anos 70, já corriam atrás do trio elétrico. Em 1987, o Ara Ketu e o Olodum colocam seus tambores dentro dos estúdios WR, em Salvador, e gravam seus primeiros Lps. A penetração no circuito eletrônico se deu através do desenvolvimento de uma tecnologia capaz de “capturar a percussão” em estúdios de gravação. Os blocos afro passam a fazer parte do elenco das gravadoras majors, atingindo visibilidade no cenário das mídias. No final da década, incorporaram instrumentos harmônicos às suas baterias. Com isso, o samba-reggae sofre transformações estéticas e se consolida enquanto estilo musical. A musicalidade afro-baiana, aparentemente regionalizada, se espalha pelo mapa do Brasil. Os artistas locais começam a alcançar as melhores vendagens de discos e a disputar o mercado de shows com os maiores nomes da MPB. E mais: a chamada “música baiana” se insere no mundo da world music, a fatia do mercado fonográfico internacional que trabalha com expressões musicais “exóticas” nas mais variadas partes do planeta e alimenta os mercados mais importantes do mundo como o dos EUA, França e Inglaterra. Esse fluxo global que coloca a percussão em posição de destaque no mundo da música em escala internacional, repercute fortemente em Salvador, que, a partir dos anos 90, passa a ser um centro exportador de musicalidade extra-ocidental. Este artigo quer ilustrar o mercado de bens simbólicos a partir do exemplo do samba-reggae, para mostrar como um produto cultural, nascido na periferia do mundo atlântico, transforma-se em mercadoria internacional. A CRIAÇÃO RÍTMICA O samba-reggae é produto dos blocos afro-carnavalescos da Bahia originados nos populosos bairros negro-mestiços da cidade, tais como Liberdade, Pelourinho, Itapuã, Periperi, etc, onde uma estética negra ganhou forma. O jeito de vestir, os modos de usar os cabelos, a forma de fazer música e de dançar encontram nos ensaios destes blocos um espaço privilegiado de construção de uma estética afro-baiana que serve de referência para o grande contingente negro de Salvador. Durante os ensaios dos blocos afro, ao longo do ano, as músicas são continuamente tocadas e, rapidamente, tornam-se conhecidas. Mas, até 87, esta produção musical era praticamente ignorada. As rádios não as veiculavam, a imprensa não lhes dava espaço e a TV sequer mencionava os fluxos culturais dos bairros periféricos da velha cidade, embebidos de musicalidade negra. A popularidade destas canções nascia da informação passada de boca em boca, o “correio nagô”, na gíria local. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 116


A estética e o estilo de uma cidade

Musicalmente falando, o samba-reggae é um estilo percussivo que se caracteriza, em termos conceituais, pela apologia do negro e, em termos musicais, pela recriação de sonoridades afro-americanas. A nova rítmica foi elaborada a partir do diálogo entre instrumentos de percussão e dos vocais. Diferentemente do reggae, que é feito a partir de instrumentos harmônicos como a guitarra e um baixo que se impõe, o samba-reggae encontra em tambores, como surdos, taróis e repiques, a sua forma privilegiada de expressão. O ritmo foi concebido tendo como elementos de base: uma banda (ou bateria) formada por vários tipos de tambores, onde cada executante realça seu instrumento; a coreografia dos percussionistas; os temas das canções, que mergulham no universo da comunidade; e as danças permanentemente inventadas, que desenham sua corporalidade. Antes de penetrar no mercado fonográfico e ganhar visibilidade midiática, os blocos afro estavam acostumados a tocar o ano inteiro nos ensaios sem ganhar cachê e era comum a prática de permutas. Segundo o ex-conselheiro do Olodum, Zulu Araújo, “norFACULDADESJORGEAMADO 117


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malmente o que se fazia com essas entidades era permuta por instrumentos. Os caras iam tocar por prazer, os produtores davam hospedagem, alimentação, crachá, botavam uma graninha na mão do presidente e tava feito”2. De fato, a não remuneração de percussionistas, os acertos verbais para a realização de eventos e a ausência de registros sonoros eram características do mundo da percussão afro-baiana. A partir de 87, os blocos afro começam a investir numa nova estratégia: a penetração nos estúdios de gravação, que foi viabilizada não só pela sua popularidade, para além dos espaços musicais negros, mas também pelo desenvolvimento de uma tecnologia capaz de registrar o som dos tambores. Essa tecnologia foi desenvolvida pela WR, a única gravadora de Salvador cujos estúdios confeccionaram cerca de 90% de toda a produção fonográfica que, naquela época, saiu da Bahia para o mercado nacional. Além de ter sido peça-chave na configuração de um mercado fonográfico local, ela é responsável pelo aperfeiçoamento da técnica que permite gravar, em estúdio, a percussão como elemento sonoro central. Até então, o mercado fonográfico baiano estava dominado pela música carnavalesca produzida pelas bandas de blocos de trio elétrico, que podem ser vistas como contraponto à produção musical dos grupos negros. Essa música mistura ritmos como frevo, galope, merengue e celebra a festa e a alegria baianas. Salvador, sempre citada nas letras das canções, era a fonte máxima de inspiração, a “capital do prazer”. Embora houvesse uma inevitável troca de informações, o meio musical de Salvador, até 87, estava segmentado em espaços musicais negros e brancos. Enquanto os grupos brancos estavam no showbiz, gravando discos, fazendo shows, compondo a programação das rádios, os grupos negros estavam midiaticamente invisíveis, na periferia do mundo da música. Os blocos de trio e suas bandas, ao contrário dos blocos afro, não realizam ensaios públicos e seus repertórios alimentam a programação das FMs locais desde o início dos anos 80. Segundo o fundador e guitarrista da Banda Cheiro de Amor: “as rádios são o canal de impulso das bandas. O radialista Carlos Júnior, com quem nós fizemos nossa primeira fita demo, hoje é nosso produtor”3. A programação das FMs, em geral, é determinada pelo interesse das gravadoras4 e as rádios baianas veiculam, até 20 vezes por dia, o carro-chefe (música trabalhada nas rádios para divulgação) dos discos das bandas carnavalescas e compõem o cast das gravadoras nacionais e multinacionais como Warner e Universal. As bandas de trio, apoiadas pelo marketing das gravadoras, são responsáveis por uma farta produção de música pop-carnavalesca no mercado musical baiano e brasileiro. Toda essa movimentação musical (shows, discos, FMs) criou um mercado local, mas que só alcançava divulgação nacional no período do verão. Esta música regional era considerada, pelos ouvidos brasileiros, uma trilha carnavalesca e, por isso mesmo, só LEITURASCONTEMPORÂNEAS 118


O SUPERMERCADO DA MÚSICA: SAMBA-REGGAE, POR EXEMPLO

era consumida, até o final dos anos 80, no período de festas. Mas essa característica sazonal vai se diluir com a ascensão comercial do novo movimento musical baiano – a axé-music, uma música de elementos estéticos brancos e negros que foi viabilizada pela inserção do samba-reggae nos estúdios de gravação e na cena das mídias. AXÉ -MUSIC A axé-music (frevo baiano + samba-reggae) é o encontro da música dos blocos de trio com a música dos blocos afro. É um estilo mestiço, cuja linguagem mistura sonoridades harmônicas e percussivas. Essa mesclagem foi concebida inicialmente pelas bandas de trio, atraídas pela visibilidade e inovação musical do samba-reggae. A linguagem da axé-music é resultado da alquimia realizada com os recursos do equipamento eletrônico dos estúdios de gravação. Esse equipamento permite incorporar a base rítmica do samba-reggae, seja através de percussionistas em estúdio ou do sampler (uma máquina que recorta, armazena e reproduz sons), à qual se adiciona a instrumentação harmônica do teclado, baixo e guitarra, tocados em estúdio. Além do encontro das sonoridades percussivas e harmônicas, os blocos de trio gravavam as canções dos blocos afro, carregadas de conteúdos anti-racistas, produzindo uma espécie de samba-reggae pop/eletrônico. O samba-reggae Faraó foi gravado pela cantora Margareth Menezes e foi ouvida com relativa frequência nas rádios locais durante o verão de 87. No mesmo ano, a banda de trio Mel também grava a canção. O disco vende 800 mil cópias e se torna um marco do movimento musical de Salvador, pois inaugura a incorporação da música dos blocos afro ao repertório dos trios elétricos. Ao tocá-la com seus samplers e instrumentos eletrônicos, as bandas de trio incrementaram a fusão da nova música afro com a música pop/carnavalesca baiana, dando maior visibilidade ao elemento rítmico-percussivo dos negros. O ritmo produzido nas periferias de Salvador, a partir desta fusão harmônico-percussiva, alcançou os consumidores de classe média/alta que ignoravam a música dos blocos afro e preferiam correr atrás dos trios elétricos. A axé-music inaugura um novo estilo no meio musical de Salvador. O fundador e guitarrista do Bloco Cheiro de Amor comenta o processo: “Os estilos foram mudando porque antigamente era mais instrumental, depois a gente começou a usar essa coisa de raiz, de cultura africana, fazendo a fusão do frevo, salsa, com o samba-reggae. A partir daí muitas bandas começaram a gravar. Aquela coisa percussiva com os instrumentos de harmonia ficou muito legal, deu certo, e é isso que está aí até hoje”5. Este modelo mestiço que se consolida como estilo musical é responsável pela ampliação do mercado em escala nacional. FACULDADESJORGEAMADO 119


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No final dos anos 80, os discos das bandas de axé-music chegaram facilmente à marca de 400 mil cópias e conseguiram farta execução nas FMs brasileiras, através de um poderoso marketing bancado por gravadoras que controlam a programação radiofônica. Os shows destas bandas baianas levaram imensas platéias às casas de espetáculo de todo o Brasil. Ao mesmo tempo em que as bandas brancas ascendiam comercialmente no mercado brasileiro, os blocos afro e o samba-reggae, mesmo sem alcançar cifras elevadas em termos mercadológicos, passavam a ser divulgados nacionalmente, principalmente através do trabalho do Olodum e Ara Ketu, as primeiras bandas afro a se inserir no mercado fonográfico brasileiro. Assim, a produção musical baiana, aparentemente regionalizada, se expande no mercado nacional. A axé-music se transformava na grande novidade do showbiz. A imprensa do eixo Rio- S. Paulo desembarca em Salvador para investigar o novo movimento musical baiano. Artigos de jornais e revistas traçavam paralelos entre a nova movimentação musical e os movimentos anteriores que haviam transformado a música brasileira, como a Bossa Nova e a Tropicália, também liderados por baianos como João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil. E a mídia televisiva passava a produzir e veicular imagens dos blocos afro de Salvador. Assim, a axé-music se transformava num fenômeno de mídia e sinalizava sua ascensão no mercado fonográfico nacional. A cantora Daniela Mercury, conhecida como a “Rainha da axé-music”, é personagem chave do processo de mestiçagem do meio musical de Salvador. Depois de cantar alguns anos em trios elétricos, em 1992 ela lança o disco O canto da cidade e alcança projeção nacional com um repertório basicamente montado a partir das composições dos blocos afro mais famosos de Salvador. Sem dispensar a percussão de tambor que as caracteriza, imprime às canções de samba-reggae um aparato pop. A cantora vendeu um milhão de cópias do álbum, marca jamais registrada até então por um artista atuante no meio musical baiano e sua agenda de shows incluía o Oiapoque e o Chuí. A partir do trabalho de Daniela Mercury, o mundo da percussão passa a interagir diretamente com a produção musical das bandas ligadas ao universo dos trios. MESTIÇAGEM ESTÉTICA E SEGMENTAÇÃO ÉTNICA No primeiro momento da axé-music, houve uma apropriação da música percussiva pelos blocos de trio elétrico, que passaram a alimentar seus repertórios com o ritmo e as canções dos blocos afro. No entanto, esta musicalidade mestiça era resultado de uma relação desigual entre blocos de trio e blocos afro. Interessados no acesso, em primeira mão, ao repertório dos blocos afro, pessoas ligadas aos blocos de trio começaLEITURASCONTEMPORÂNEAS 120


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vam a investigar a cena afro-baiana com um ouvido direcionado e passaram a frequentar os ensaios dos grupos negros, muitas vezes, munidos de gravador, podendo assim repassar para os diretores e produtores de seus blocos/bandas o conteúdo dos repertórios bem como os nomes dos compositores das canções que estavam fazendo sucesso nos espaços negros da cidade.

O preto no branco: um encontro que cria

De posse dessas informações, os produtores das bandas de trio compravam por quantias irrisórias os direitos autorais do compositor e rapidamente registravam as canções afro em discos que, em muitos casos, venderam milhares de cópias. Segundo o ex-conselheiro do Olodum, Zulu Araújo6, “as bandas de trio esperavam as músicas estourarem nos blocos afro, pagavam uma merreca por elas e ganhavam muito dinheiro com isso. A gente fazia os festivais e as melhores músicas iam para as bandas de trio, quando a gente via a música já estava na rádio”. Isso aconteceu com canções como Elejigbô de Rey Zulu e Ytthamar Tropicália, Madagascar Olodum de Rey Zulu, e Faraó de Luciano Gomes dos Santos (gravadas por Margareth Menezes, pela Banda Reflexu’s e pela Banda Mel, respectivamente), entre outras que, antes de serem registradas por seus compositores, foram gravadas pelas bandas de trio, que venderam milhares de cópias de discos. Os blocos negros viram nisso um tipo de exploração, pois produziam FACULDADESJORGEAMADO 121


NÚCLEOHUMANIDADES

os grandes sucessos das bandas de axé, sem que isso representasse algum retorno econômico para eles7. No formato da axé-music, as canções dos grupos negros compunham os álbuns das bandas de trio que chegaram a vender até um milhão de cópias (disco de platina), enquanto os álbuns dos blocos afro alcançavam, no máximo, a marca de cem mil cópias (disco de ouro). Para reverter esse quadro, alguns dos mais importantes blocos negros passam a adotar os procedimentos musicais das bandas brancas, e o samba-reggae produzido pelos blocos afro sofre transformações estéticas, que resultam do encontro do artefato musical - a percussão como manufatura com os instrumentos harmônicos, através do aparato tecnológico. Os grupos afro aderiram à mescla das sonoridades dos instrumentos percussivos e harmônicos, que implica numa redução do número de tambores da bateria. O volume de som dos tambores abafa naturalmente a sonoridade dos instrumentos harmônicos utilizados pelo samba-reggae, como a guitarra, o baixo, o teclado, o sax. Capturar os diferentes instrumentos através de equipamento eletrônico é, na verdade, a única maneira de conciliar universos sonoros tão distintos. Somente o recurso tecnológico das mesas de som e a habilidade do técnico que as opera permitem a audição da harmonia, ao mesmo tempo em que os tambores rufam. Essa alquimia é realizada pelo equalizador que atenua ou acentua o volume e a frequência de cada instrumento captado pelos microfones, tanto em estúdio quanto no palco. Ele é o meio que garante o diálogo entre instrumentos heterogêneos, permitindo o registro e a performance de formas musicais mestiças. Esse diálogo de instrumentos, realizado pela moderna música africana, passa a fazer parte da linguagem musical do Ara Ketu e do Olodum, nos primeiros anos da década de 90. Utilizando o sax, o trompete, a guitarra, o baixo e o teclado, esses blocos fizeram de suas bandas um conjunto de recursos percussivos e harmônicos. Esse formato dá origem à banda show (ou banda principal) dos blocos afro, em que o número de tambores foi reduzido para cerca de dez. É essa banda que vai frequentar os estúdios de gravação e realizar os shows. O terreno mestiçado da axé-music, capitaneado inicialmente pelas bandas de trio, ganha força com a adesão de importantes blocos afro da Bahia. Essa mestiçagem, baseada no diálogo entre linguagens musicais distintas, se configura como o elemento definidor da musicalidade soteropolitana, quando, a partir dos anos 90, o formato mestiço se expande em direção aos espaços negros que passaram a conceber sua expressão musical como produto de mercado, a ser negociado nas malhas do showbiz. Nesse contexto, as bandas produtoras de samba-reggae ascendem comercialmente. A entrada do samba-reggae no mercado fonográfico e a absorção da estética mesLEITURASCONTEMPORÂNEAS 122


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tiça transformam o perfil dos grupos negros. O acesso ao mundo das mídias os fez entender que, para produzir discos e shows, com direito a contrato e cachê, era preciso ter uma postura empresarial que lhes permitisse ter critérios de editoração, de direito autoral, de distribuição e de lançamento do produto musical. A figura do produtor especializado, antes desconhecido, foi incorporada ao staff das bandas afro para intermediar a sua atuação no mercado fonográfico e no mercado de shows. Esse formato de banda com recursos sonoros percussivos e harmônicos é informado por uma estratégia mercadológica. Quando optam pela formação de bandas menores, com atividade comercial regular, e deixam de se constituir apenas como blocos carnavalescos, os grupos negros passam a corresponder a uma lógica que permite sua inserção na indústria, garantindo-lhes maior participação no mercado musical e ampla visibilidade midiática. É o encontro de universos tecnológico e artesanal que vai permitir a ampliação do mercado. Até meados dos anos 80, quando essa mestiçagem musical ainda não tinha se delineado, havia redes de interação paralelas em espaços negros e brancos. De um lado, os intercâmbios dos blocos afro, com sua musicalidade percussiva inserida numa militância política; de outro, a musicalidade dançante dos blocos de trio, preocupada com uma atitude festiva. Com a axé-music essas relações passaram a ser complementares e refletem a transformação do meio musical de Salvador naquele fim de século, onde redes de relações cada vez mais mescladas ganhavam corpo. O rentável mercado reorganizou também o circuito de shows e modificou a posição dos artistas locais no showbiz baiano. As bandas afro passaram a sair de seus bairros de origem não somente para realizar ensaios em outros espaços da cidade, mas também para fazer shows em clubes que comportam até 15 mil pessoas. Aqueles que eram os espaços cativos da musicalidade dos trios fora do período carnavalesco passaram a ser ocupados também pela musicalidade percussiva, através de “shows-dobradinhas”, ou seja, shows duplos que reuniam bandas afro e bandas de trio, atraindo com isso públicos maiores, ecléticos e mestiços, que passaram a exibir um repertório musical comum, baseado na seleção de músicas de sucesso. A ampliação do mercado implica ainda uma aproximação entre as bandas locais e as bandas nacionais, que seguem o mesmo esquema da programação de shows locais. As bandas baianas passaram a dividir os palcos com grandes nomes do mundo da música no Brasil. Em 94, Daniela Mercury dividiu o palco do Clube Espanhol com Gal Costa e, em 95, com os Paralamas do Sucesso. Em 97, a Banda Asa de Águia convidou o Skank para um show no Clube Baiano de Tênis. Carlinhos Brown e a Timbalada contaram com a presença de Marisa Monte em, pelo menos, 5 carnavais, a partir de 1995. Dessa maneira, as relações da nova musicalidade baiana com a MPB se estreitaram no FACULDADESJORGEAMADO 123


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Brasil. A expansão do mercado da música produzida na Bahia ganharia ainda um outro contorno no decorrer dos anos 90: a penetração do afro-pop no panorama da world music. WORLD MUSIC A multiplicação dos contatos culturais no mundo globalizado facilita a penetração de produções locais no mercado musical internacional. Na primeira metade do século XX, os contatos do meio musical de Salvador se davam principalmente com a África e com o Rio de Janeiro. Nas décadas de 60/70/80, no bojo do movimento de Negritude, os intercâmbios se expandem em direção ao Caribe e à América do Norte. Nos anos 90, acontece a mundialização dos intercâmbios musicais, que se materializam na world music. A world music é uma denominação que abriga todos os estilos musicais extraocidentais e se tornou uma fatia promissora e dinâmica do mercado fonográfico. Selos especializados se multiplicaram em toda Europa e EUA. Segundo François Duterre (1993), a world music é uma estratégia dos selos independentes ingleses, que produziam “ músicos étnicos” e, a partir de 87, criaram uma nova etiqueta para chamar a atenção para esse nicho de mercado, que acolhia produções musicais “exóticas”. O fenômeno world music é um dos elementos da Era da Comunicação. Através da tecnologia, ele pode dar às musicalidades diferenciadas formatos estéticos capazes de aproximar culturas distantes, tornando-as audíveis a ouvidos outros, cujos resultados oscilam entre a perda das especificidades culturais, “numa jogada tecnológica, racista e etnocêntrica”, como querem seus críticos, ou na “ampliação da informação musical através da divulgação de estilos diversificados”, como querem seus apologistas. Mas a equação desse debate está nas interações que organizam o mundo da world music. Do ponto de vista das redes de relações, a world music é uma via de mão dupla: compositores do Norte como Paul Simon, Peter Gabriel, David Byrne, Brian Eno, Jon Hassel, vão em direção ao Sul a fim de renovar as fontes do pop. Ao mesmo tempo, compositores do Sul como Salif Keita, Ray Lema, Cheb Khaled, Yossou N’Dour, Ismael Lo, se instalam no Norte a fim de integrar suas produções ao mercado internacional da música. Existem, portanto, interesses mútuos de músicos e mercados dispostos a partilhar experiências e ampliar seus raios de ação. A ascensão da world music enquanto tendência de consumo no mercado fonográfico internacional8 implica uma mudança de posição da música produzida na periferia do “Atlântico Negro” (GILROY, 2001), que passa a alimentar os mercados musicais mais importantes do mundo. Esse fluxo global, que coloca a música negra em posição de LEITURASCONTEMPORÂNEAS 124


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destaque, repercute fortemente em Salvador que, a partir dos anos 90, deixa de ser um centro produtor de matéria prima para ser um centro exportador de musicalidade afro. A produção de samba-reggae, ou seja, um produto local, se insere em um fluxo de globalização do mercado. “O samba-reggae é um dos ritmos mais pedidos nas minhas noites – atesta o DJ Doug Wentd, de São Francisco, Califórnia, cuja discotecagem de world music foi considerada pela revista Details uma das melhores coisas da noite americana”, afirma Carlos Albuquerque, em sua análise sobre a história do reggae (ALBUQUERQUE, 1997, p.149). Também na França, a nova produção musical de Salvador foi bem-vinda. Em 96, o Jornal do Brasil anunciava: “A tomada da Bastilha pela cultura baiana - a invasão que começou nos anos 70 agora conquista os franceses com capoeira e samba-reggae” 9. Este tipo de “exotismo” musical passou a ser tão interessante para os mercados fonográficos internacionais que o maior prêmio destinado à música, o Grammy americano, criou uma categoria específica de premiação. Alguns artistas baianos chegaram a disputá-lo, como Olodum (Neguinho do Samba), Margareth Menezes, Gilberto Gil e Caetano Veloso10. O OLODUM GANHA O MUNDO A trajetória do Olodum é um bom exemplo da penetração da produção local em fluxos globais. O grupo, depois de batalhar anos a fio no Pelourinho, sem despertar a atenção das mídias, consegue penetrar no universo eletrônico dos estúdios e alcançar visibilidade. Em seguida estabelece uma conexão com um dos grandes astros do pop internacional. O encontro aconteceu assim: em passagem pela Bahia em 1990, para pesquisar os ritmos brasileiros, o cantor americano Paul Simon conheceu a produção musical do grupo, pois andava justamente em busca de novidades exóticas, tal como fez anteriormente em cidades africanas11. Fascinado com a performance do grupo, contratou, através do produtor Mazola, a bateria do Olodum, sob a regência de Neguinho do Samba, para gravar a canção Obvious child, carro chefe do CD The rhytm of the saints. O álbum ganhou o Grammy, em 91, na categoria world music e vendeu um milhão de cópias. A partir daí, o Olodum conseguiu um lugar no mercado internacional. O samba-reggae conquistou platéias estrangeiras, colocou a musicalidade afro-baiana na world music e, mais do que isso, conquistou prestígio e maior popularidade nas fronteiras nacionais. Depois da premiação internacional, o Olodum voltou a ser manchete em todos os cadernos de cultura do país. Logo depois do sucesso internacional, o Olodum tranformou-se numa holding – uma espécie de empresa com vários ramos de atuação. A entidade comercializa em sua FACULDADESJORGEAMADO 125


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boutique produtos que levam sua marca, como camisetas, bonés, chaveiros, sapatilhas, adesivos, toalhas, e explora dois bares no Centro Histórico de Salvador. Segundo o presidente da entidade, João Jorge, todo o dinheiro arrecadado serve para viabilizar a Fábrica de Carnaval, que produz todos os ítens à venda na boutique, além das fantasias do bloco e de instrumentos percussivos. Parte desta produção é exportada. “Mesmo antes de ser instalada, a Fábrica já tem encomendas de um bloco afro- londrino e de outro dos Estados Unidos”12, afirma João Jorge, que promete emprego para cerca de 350 pessoas da comunidade. ARES COSMOPOLITAS Mas Paul Simon não foi o único, ao longo dos anos 90, a intensificar a movimentação musical estrangeira na cidade. A partir de 94, Salvador passa a sediar eventos de grande porte como o Fest in Bahia, anualmente realizado, durante 4 anos, que fez convergir para a cidade as novas estrelas internacionais. Revistas americanas como a Rolling Stones e a Afro-pop enviaram jornalistas para cobrir o Festival, garantindo a presença do meio musical baiano em publicações estrangeiras especializadas em música.

Tablas indianas: outras formas de re-percutir

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Também, a partir de 94, vem se realizando anualmente em Salvador o Percpan Panorama Percussivo Mundial, o festival organizado por Gilberto Gil e Naná Vasconcelos13, com ampla cobertura da imprensa local, nacional14 e internacional. Segundo Beth Cayres, produtora do evento, “são 200 pessoas envolvidas num trabalho de caráter cultural, que visa transformar definitivamente a cidade em capital mundial da percussão”15. Em 97, Salvador sediou, pela primeira vez, o evento internacional de Celebração da Herança Africana. O encontro reuniu representantes das religiões afro-brasileiras, militantes do movimento negro e muitos artistas. O centro histórico da cidade recebeu o grupo novaiorquino de Street dance Rennie Harris Pure Movement; o grupo de percussão Tambou Bô Kannal, da Martinica; o músico angolano Kituxis e os percussionistas baianos Wilson Café e Mônica Millet. O clímax da movimentação musical durante a Celebração foi o encontro de 500 tambores afro-brasileiros e internacionais, estes trazidos pelos músicos estrangeiros que participaram do evento. Neguinho do Samba e Mônica Millet, da Bahia dividiram a regência com Daniel Diaz, dos Estados Unidos, e o músico Carlinhos Brown também apareceu para “dar uma canja” como maestro. Cresce a presença de estrangeiros interessados em música afro-baiana, sejam eles turistas, músicos, pesquisadores ou produtores. Segundo Caetano Veloso, “Salvador fez um esforço por meio de todos nós de se ligar com o mundo desabusadamente. E continua fazendo isso”16. O percussionista do Zaire, Ray Lema, um dos mais importantes nomes da world music (ao lado de Salif Keita, Fela Kuti, Yossou N’Dour, pais da moderna música africana), também foi à quadra do Olodum para tocar com o mestre Neguinho do Samba. Dezenas de canais de TV veiculam a cena baiana no exterior. O produtor norte-americano Creed Taylor esteve em Salvador para gravar um programa especial para a TV sobre o tema e, segundo a diretora Amy Roslyn, “o trabalho é uma sequência da ascensão da música afro-brasileira em todo o mundo”17. Nos últimos anos os contatos internacionais são cada vez mais frequentes. O festival de Montreux tem em sua programação a “Noite Baiana”. O grupo Ara Ketu foi entrevistado por David Byrne para um documentário na TV americana sobre música africana, além de ter viajado para a Guiana Francesa como representante brasileiro no Festival de Música Negra de Caiena. O Olodum encontrou Spike Lee nos EUA durante a primeira turnê norte-americana do grupo, iniciada em Montreal. O cineasta dirigiu o videoclip de Michel Jackson no Pelourinho, em 1997. Neste mesmo ano, o Olodum participou também do Festival de Artes de Nova York. No mundo da world music, que privilegia uma musicalidade « étnica », o sambareggae se encaixa como luva, na medida em que recria sonoridades africanas, mesclando-as com ritmos brasileiros e caribenhos, desenhadas em tambores de vários tipos, FACULDADESJORGEAMADO 127


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como surdo, repique, tarol, timbau, timbales, entre outros. Salvador começa a aparecer no cenário mundial como um importante centro de produção musical. A música afrobaiana deixa de ser local para ser global. A inserção nesse mercado sinaliza a vitória da estética percussiva e a percussão assume um novo lugar na arena estético-cultural de Salvador. A percussão vai deixando para trás a imagem que carregou durante muito tempo. Conhecida como “cozinha “ dos grupos musicais, situava-se em um espaço obscuro, pouco notado, onde o percussionista era um músico desvalorizado. Essa denominação, já identificada por Carlos Albuquerque como “manifestação de racismo sonoro”(Albuquerque, 1997), está, no plano imaginário, diretamente ligada à senzala em relação à casa grande e, no plano concreto, remete ao fato de que os percussionistas sempre foram os instrumentistas mais mal pagos do mundo da música. No final do milênio, numa entrelaçada malha de interações locais e internacionais, a percussão ganha uma nova imagem e passa a ocupar a “sala de estar” do mundo da música. Apoiada numa recente visibilidade midiática e ascensão comercial, a percussão alça vôo e inaugura um novo lugar no mercado para o músico percussionista, que passa a ser reconhecido enquanto criador. No mundo da música afro-baiana, os grupos se formam em torno do percussionista. Ele é a atração principal, o articulador de uma linguagem musical que tem nas sonoridades dos tambores seu elemento de força. O percussionista vem garantindo o seu lugar em sets privilegiados do mundo da música como festivais e prêmios internacionais. A música é uma das formas de expressão mais acessadas da cidade, um dos principais eixos do debate cultural local. Através de sua música, Salvador alcança um pico de evidência e se afirma como uma referência musical no Novo Mundo. A linguagem dos tambores é o elemento diferenciador. Essa musicalidade traduz uma experiência sensível, já que é uma forma de expressão popular, visceral, enraizada na vida cotidiana de um povo. Ela representa a identidade da cidade. Esse capital cultural convertido em mercadoria musical coloca Salvador, uma cidade periférica da América portuguesa, no showbizz internacional através de um dos mais poderosos mercados da contemporaneidade, num movimento que aponta para o redimensionamento das noções de centro /periferia no atual mundo globalizado.

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Carlos. O eterno verão do reggae. São Paulo: Editora 34, 1997, 97p. DUTERRE, François. L’air du temps: du romantisme à world music. Famat: St-Jouin-de-Milly, 1993. GILROY, Paul. O Atlântico negro. São Paulo, Editora 34, 2001.

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JORNAIS Jornal do Brasil, A tomada da bastilha pela cultura baiana, 28.7.96. Tribuna da Bahia, Olodum cria griffe de moda e inaugura Fábrica de Carnaval, 19.12.91. Folha de São Paulo, Salvador vira a capital da percussão, 9.3.95. Folha de São Paulo, Caetano de novo, 22.11.97. Correio da Bahia, A capital do tambor, 25.11.95.

NOTAS 1

Este artigo é uma síntese do meu livro A Trama dos Tambores - A música afro-pop de Salvador. São Paulo: Editora 34, 2000. 2 Zulu Araújo, in entrevista concedida à autora em 16.10.97. 3 Vicente Augusto in entrevista concedida à autora em 27.4.95. 4 Segundo Wesley Rangel, « havia uma relação muito forte entre os programadores de rádio e as grandes gravadoras do eixo Rio-São Paulo, que queriam ter seus produtos veiculados ». In entrevista concedida à autora em 29.7.95. 5 AUGUSTO, 1995, passim. 6 Zulu Araújo in entrevista concedida à autora in 16.10.97. 7 Para evitar a gravação de seu repertório durante os ensaios, o Olodum passou a adotar revistas nos frequentadores, buscando, dessa forma, impedir o acesso à quadra com porte de gravadores e/ou filmadoras. 8 No mercado fonográfico internacional, a venda de música clássica cai em 12,7 % nos primeiros 9 meses de 95. Em diminuição constante desde 90, ela se estabilizou em menos de 8% no mercado de disco. A WM crece no mesmo período. Fonte: Le Monde de la Musique, n° 195, jan. de 1996. 9 JB, A tomada da bastilha pela cultura baiana, 28.7.96. 10 Outros artistas brasileiros como Milton Nascimento e Sérgio Mendes também concorreram. 11 O disco Graceland , que também ganhou Grammy, foi gravado com um grupo sul-africano. 12 João Jorge in Tribuna da Bahia, Olodum cria griffe de moda e inaugura Fábrica de Carnaval, 19.12.91. 13 Na sua primeira edição (94), o Festival foi organizado por Arrigo Barnabé e Naná Vasconcelos. 14 A Folha de São Paulo, embora conte com agência local (do grupo Folha da Manhã), envia um crítico de música especialmente para cobrir o evento, que dura três dias. 15 Beth Cayres in Folha de São Paulo, Salvador vira a capital da percussão, 09.03.95. 16 Caetano Veloso in Folha de São Paulo, Caetano de novo, 22.11.97. 17 Amy Roslyn in A capital do tambor, Correio da Bahia, 25.11.95.

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Literatura e Cidade - Vizinhas Sem Fronteira Sérgio Rivero*

Resumo: Dividido em três momentos, esse texto aponta algumas relações entre literatura e cidade, com enfoque específico sobre a cidade do Salvador, Bahia. Parte de uma experiência pessoal de vivência do urbano; passa por um estudo teórico, a partir do texto literário, e retoma a vivência através de prática docente/discente. Palavras-chaves: Literatura - Cidades - Salvador

Tia Alice tinha um sonho: morar numa cidade de fronteiras. No mesmo dia atravessaria dois países. Tio João nunca deixou que ela viajasse. Tia Alice finalmente o abandonou, foi morar num hospício. Agora, vira e mexe, atravessa o país dos seus limites. Carlos Louzada1 - Rio de Janeiro

A BAHIA NA VIDA Quando cheguei à Bahia, em março de 1997, trazia na bagagem muito desejo de dar certo e um projeto de mestrado sobre o cronista carioca João do Rio. Minhas lembranças daqui vinham de muito tempo: uma primeira vez em 1970, com a família, estadia no antigo Hotel da Bahia, sensação de um amazônico Campo Grande, de tão imenso, e, na segunda vez, em 1978, também com a família, viajando de avião, um pequeno a hélice, da Cruzeiro do Sul, odiando um carnaval ininterrupto dias e noites adentro dos ouvidos, hospedado no Hotel Vila Velha ou Bahia do Sol ou Palace, não me lembro mais...

* Professor das Faculdades Jorge Amado, graduado em Arquitetura (USU-RJ) e Mestre em Teoria e Crítica Literária pela UFBA.


LITERATURA E CIDADE - VIZINHAS SEM FRONTEIRA

“A cidade cresce no tempo”

Naquela época, o citytour da Urbi et Orbi ou Soletur levava-nos, ainda que com medo de assalto, ao Pelourinho, mas íamos felizes por pisar sobre solo histórico. Levavam-nos ao Centro Administrativo da Bahia - CAB, também, para conhecermos a moderna arquitetura baiana. No mais, eram as tapeçarias de Kennedy, os balangandãs de prata, em vários tamanhos e que descascavam logo, um ou outro ferro colonial falso de passar roupa, cartões postais novos mas já tão antigos, a casa da Rua Alagoinhas, com sorte, aberta para algum dos nossos mais pidão por um autógrafo do amado Jorge, um olhar forçado de Bethânia no hall do Iemanjá, uma capoeira forçada, um terreiro forçado, uma Mãe Menininha do Gantois com búzios rápidos e certeiros, fitas do Senhor do Bonfim que ainda eram feitas de algodão, três pedidos, três pedidos, três pedidos, acarajé quente que queria dizer com pimenta e não quente de quentura; morríamos de medo da diarréia mas comíamos mais abará, cocada branca e preta, vatapá, caruru, quindim de iaiá e todos os significados muito bem decoradinhos pra quando chegasse no Rio repetir... ah, e um berimbau igualzinho ao que eles... os negros usavam... Nós queríamos a Tarde em Itapuã todinha na mala, dobrada, afofada e miúda de jeito a dar mais coisa ainda. FACULDADESJORGEAMADO 131


NÚCLEOHUMANIDADES

Quase vinte anos depois, cheguei novamente e de vez. E, claro, fui em busca da Salvador que a infância sedimentou como uma tatuagem. Aquela Salvador não existia mais como realidade, nem poderia. O tempo a transformou num punhado amarelado de imagens. Como as imagens que saem das histórias e ficam nas cabeças dos leitores – uma forma perene de preservação dos personagens, de suas ações, das locações, dos momentos mais marcantes. Mas não me desesperei, não. O texto urbano havia se transformado e eu, junto, esperando uma oportunidade de também escrever histórias nessa cidade. Como fazem os escritores sobre o papel. Assim como a literatura, percebi que as cidades também guardam dubiedades na sua essência. Tanto a literatura como a cidade podem revelar a verdade social, abrindo o leitor a questionamentos, assim como podem, por outro lado, seduzir os leitores “para que aceitem os arranjos hierárquicos da sociedade”. Mas o que considero ainda mais interessante é que a cidade tem a capacidade de revelar e esconder a verdade ao mesmo tempo. Apresenta, concomitantemente, aquilo que Jonathan Culler atribui, por obra criada, como a opção do artista perante a vida, perante o texto literário: é o“ruído da cultura assim como sua informação”. Como capital cultural da humanidade, portanto, literatura e cidade se afirmam como práticas sociais. O produto literário, geralmente criado por um único indivíduo que promove a construção de uma forma, motivo e tema, a partir de meios verbais já semantizados pela história da linguagem2. E, claro, apesar de ser composta com elementos da própria consciência do artista, a literatura tem na alusão dos fatos do mundo exterior a composição plena desses elementos, como se fossem “versões ou traduções mais ou menos deformadas desses fatos externos”3. pois viver é con-viver. De maneira tal que o artista conclui cabalmente seu ciclo quando, por meio de sua obra, se reintegra na comunidade, quando produz e sente a co-moção dos que vivem com ele. A arte, como o amor e a amizade, não existe no homem, mas entre os homens.4

Se a literatura ocupa um lugar específico no imaginário humano, o lugar da autoria de quem cria e da co-autoria de quem lê5, temos também, na cidade, uma grande representação da condição humana, fruto de uma criação coletiva, contínua e aparentemente desconexa. Literatura e cidade andam juntas. A literatura surge da memória do escritor, vence essa dimensão individual, juntando-se à memória coletiva (história), enquanto a cidade já surge na trama do coletivo, LEITURASCONTEMPORÂNEAS 132


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dizendo respeito a todos: instalações de todos os tipos, dramatizações conjugais, performances solitárias, cantorias de improviso, movimentos dançantes, cores, formas, texturas... todas as manifestações artísticas constroem a cidade que “cresce no tempo” da história da humanidade. Assim também vai a literatura – obra acabada no objeto livro – mas que segue ecoando pela vida afora do leitor. Ao vencer as fronteiras geográficas e temporais, passo a passo com a construção da própria espécie humana, literatura e cidade são consideradas como arte. A dimensão coletiva, sabemos, é determinante no conceito de arte. Todas as grandes manifestações da vida social têm em comum com a obra de arte o fato de nascerem da vida inconsciente, esse nível é coletivo no primeiro caso, individual no segundo, mas a diferença é secundária, porque umas são produzidas pelo público e outras para o público; mas é precisamente o público que lhes fornece um denominador comum.6

Fui morar na Barra, bairro à beira mar, de praia limpa, com obelisco em homenagem àqueles portugueses que aportaram há muitos anos por aqui e, hoje, uma decadência crônica de quem já viveu dias melhores. A divisão tão charmosa dessa cidade do Salvador, em alta e baixa, cedeu lugar, na modernidade tardia, à cidade velha e à cidade nova. Com isso, bairros próximos ao Centro Histórico viram-se, de repente, esvaziados, desvalorizados. Ainda não sabia das teorias do urbanista Aldo Rossi ou das do teórico de literatura, Jonathan Culler, mas fui percebendo que tinha uma idéia literária da Bahia e que ela não correspondia, de todo, a sua verdade. A Bahia que eu vinha imaginando, a Bahia que eu vivi em duas viagens anteriores era a Bahia de Jorge Amado, de Dorival Caymmi, a Bahia de Edgar Santos7... uma espécie de éden, paraíso tropical perdido e cristalizado no tempo, Salvador conformada em ilha e rancorosa ex-capital brasileira. A Bahia que eu vivenciava em meus primeiros dias nessa terra do Salvador era uma Bahia que se modernizava às custas de um ônus social grande e espelhada num modelo urbano sulista, precisamente paulista; crescia rapidamente e, por isso mesmo, ia negando sua natureza balneária. Mas, do mesmo modo que conhecia uma outra cidade e que percebia in loco o confronto entre tradição e ruptura, constatei que a literatura de Jorge Amado tinha razões verdadeiras para captar determinados matizes. Uma luminosidade que jamais havia vivenciado: cores mais vivas, novos brilhos cegando os olhos ao meio-dia sugeriam-me alegria constante, relaxamento, tranquilidade, conduzindo o cotidiano a um outro tempo na vida de seus cidadãos, um tempo entre festividades não muito esparsas, FACULDADESJORGEAMADO 133


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e, claro, um tempo distante do que chamam no Sul de preguiça, afinal, passava todos os dias pela Av. Sete, no Centro e, numa coincidência precisa com o nome, via os lojistas abrindo suas portas às sete da matina, coisa nunca vista, por exemplo, no Rio de Janeiro. Fui percebendo, na Bahia, um tempo mais condicionado ao tempo do espírito afinado com o do corpo e suas funções naturais, um tempo composto de horas menos neurastênicas. Digamos que o relógio baiano toque as horas das ondas do mar, constantes, porém dinâmicas e imprevisíveis no tempo de seu ir e vir. Naquele momento, coincidentemente, conheci um escritor que desenvolveu, durante 40 anos, uma literatura povoada por gente, quase sempre marcada pela constante inadaptação ao meio social e natural. Um homem chamado Carlos Vasconcelos Maia8. Por causa de duas de suas histórias, meu projeto de mestrado mudou.

DUAS HISTÓRIAS QUE CONTAM QUASE A MESMA HISTÓRIA9 O homem e as vitrines - 1960 O homem saiu de seu banco do jardim onde há um mês parava e apesar da tarde ter-se finado, não foi para casa. Achava que não podia, não tinha o direito de ir para casa. Há uma semana acontecia o mesmo. De seu banco de jardim, não se dirigia logo para casa. A Avenida Sete chamava-o com uma força que êle, por seu lado, nada fazia para recusar. As vitrines eram sua meta. Parava diante das vitrines, os olhos grandes, o coração pequeno. Via emocionado, na resplandecência de luzes, um mundo encantado de jóias, doces, roupas e brinquedos. Sobretudo, brinquedos. Não era luxento nem guloso. Tampouco vaidoso. Por isso, mais do que aos doces, roupas, jóias e frutas, ficava adorando os brinquedos. Diante das vitrines pôs-se, fascinado, a planejar: – Aquela lambreta, vou dar ao João. O jipe, será de Pedro. O carro de corridas, ah! José vai ficar doido quando vir êste carro-de-corrida. Já o Eurico só gosta de bichos. Aquêle cavalinho de rodas será ideal para Eurico. A boneca... Comoveu-se ao pensar na filha, a única filha, “o retrato da mãe”– todos achavam maravilhados diante de tanta parecença. Sentiu-se de súbito alarmado. Onde estava a boneca de Cristina? Era como se estivesse sendo roubado. A boneca que há oito dias vinha escolhendo para a filha, desaparecera. Saíra da vitrine. “Miserável” – xingou intimamente o desconhecido que a adquirira. Era uma boneca maravilhosa, da altura da filha, que andava, falava, chorava. Só faltava pensar! Seria para Cristina como uma irmã gêmea. E compraria também aquela maquininha de costura, que nenhum ricaço LEITURASCONTEMPORÂNEAS 134


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ainda se lembrara de levar, para a filha ir aprendendo a fazer os vestidinhos da nova irmã. O jeito agora era procurar outras bonecas noutras vitrines. Mas faltava ainda o presente do caçula. Tinha três para quatro anos. Era um tipinho metido a gente, brigão raceado, mal-criado. Adorava pistolas, espingardas, metralhadoras. Não queria saber de carros, cavalos, ouvir estórias. Suas diversões eram de competição, eram de desafio: picula, chicotinho-queimado, nêgo fugido. E faz-de-conta de bandido e mocinho. “Esse menino ainda vai me dar um trabalhão” – pensou o homem, o nariz na vitrine, namorando reluzente espingarda de corda. Parecia uma dessas armas de filme de Flash Gordon. E o anúncio garantia fogo pela bôca enquanto a corda funcionasse. Imediatamente, porém, abandonou a idéia de dar a espingarda ao caçula. Nunca dera armas, mesmo armas de mentira aos filhos. Tinha seus princípios pacifistas e achava que tôdas as fábricas de brinquedos bélicos deveriam ser fechadas… O homem passou para outra vitrine. Até a noite anterior aquelas bolas não estavam expostas. Eram esplêndidas. Vermelhas e pretas, graúdas, leves, brilhantes. Achara por fim o presente para o caçula. Mentalmente, com um gôzo muito grande, fêz o rol dos Papais-Noéis dos filhos: a lambreta, o jipe, o carro de corrida, o cavalo, a boneca, a bola vermelha e preta. Também os preços de tudo vieram à sua lembrança. Deu meia volta, meteu a mão nos bolsos. Nos bolsos vazios. Foi andando, cabeça baixa, procurou outras ruas, sem lojas nem vitrines, sem luzes nem gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor. É Natal! É Natal! - 1977 O homem grisalho e magro levantou-se do banco do jardim da Piedade onde há quase dois meses passava o tempo e, apesar da tarde ter-se findado, não foi para casa. A Avenida Sete chamava-o com uma força que ele, por seu lado, nada fazia para recusar. Deixou-se levar pela multidão, integrando-se nela e em sua frenética avidez da escolha dos presentes cupidamente expostos nas vitrines, que resplandeciam de luzes e cores - um mundo encantado de jóias, roupas, doces e brinquedos. Sobretudo, brinquedos. Parou diante do grande magazine, sua meta de toda noite, e pôs-se a fazer cálculos: – Aquela lambreta, vou dar ao João. O jipe, será de Pedro. O carro de corridas, ah! José vai ficar doido quando acordar e ver esse carro-de-corrida. Já o Eurico só gosta de bichos. Aquele cavalinho de rodas será ideal para Eurico. A boneca... Comoveu-se ainda mais ao pensar na filha, a única filha, o “retrato da mãe”– todos diziam, espantados diante do óbvio. Repentinamente alarmou-se: “onde estava a boneca, que vinha escolhendo para a filha, há oito dias, desaparecera. Saíra da vitrine. FACULDADESJORGEAMADO 135


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Xingou surdamente o desconhecido adquirente. Lembrou-se da boneca, quase da mesma altura da filha, “que falava, andava, chorava” – dizia o anúncio. Seria para Cristina como a irmã que não tinha. Bem, se não houvesse em estoque outra boneca igual, levaria em seu lugar aquela maquininha de costura (uma graça), que nenhum ricaço se lembrara ainda de levar. Agora faltava o papai-noel do caçula. Tinha três para quatro anos. Era um tipinho já metido a gente, receado, malcriado. Adorava pistolas, espingardas, metralhadoras. – Aquele diachinho ainda vai me dar um trabalhão – pensou ternamente o homem grisalho e magro, os olhos namorando reluzente espingarda de corda, cópia perfeita de arma de Flash Gordon. E o anuncio garantia “fogo pela boca enquanto a corda funcionasse”. O homem continuou sua jornada até o largo de São Bento. Pensou em continuar andando até a rua Chile. Mas voltou à vitrine que o vinha atraindo mais do que as outras. Era véspera de Natal e ele ficou ali, parado, imóvel até a loja se fechar, vendo um a um os presentes serem retirados da exposição e entregues em vistosos embrulhos coloridos, a homens e mulheres excitados, de aspecto próspero, decerto bem empregados e bem remunerados. Deu meia volta, pôs-se a andar, as mãos nos bolsos. Nos bolsos vazios. Procurou outras ruas sem lojas, luzes ou gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor e sua miséria. A BAHIA NA FICÇÃO10 No conto O homem e as vitrines, Vasconcelos Maia, V.M., resgata um tema clássico: a trajetória do herói que sai em busca de grandeza e depois de uma viagem cheia de percalços, em que muitas vezes é dado como morto na luta contra deuses e mortais, volta para casa. Mais precisamente, irei encontrar esse tema na Odisséia de Homero (séc. VI a.C.). O poema épico retrata as aventuras do herói Ulisses, já no retorno para casa, na ilha de Ítaca, ao encontro de sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco, após dez anos lutando na Guerra de Tróia. Segundo Junito Brandão, a Odisséia, embora “genial ficção”, seria assentada em “esparsos fundamentos históricos” – a saída do herói deveu-se a um motivo bastante prático: a busca do estanho, metal importante na produção das armas de bronze, necessárias à elite da Hélade, pátria de Homero.11 O motivo básico do conto que analiso parece bastante semelhante. O “herói” moderno de V.M. também sairá em busca do estanho/dinheiro. Sua aventura consistiria em comprar os presentes de Natal para seus filhos e voltar triunfante para casa. O LEITURASCONTEMPORÂNEAS 136


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cenário dessa odisséia baiana, em 1960/77, será a rua, no caso, a Av. Sete de Setembro, lugar em que os deuses, os integrados que detêm o poder do consumo, travam silenciosa luta com os excluídos, aqueles simples mortais não consumidores que, tal qual a personagem de V.M., serão condenados a penarem no reino de Hades (morte ou exclusão) se fracassarem, ao final da jornada. Ulisses consegue restaurar a paz em Ítaca, recompondo o cenário anterior à crise. No entanto, para qualquer “herói” moderno, o fechamento do ciclo é problemático. Apesar do saudosismo que carrega consigo, o homem magro e grisalho não resolve “a nostalgia da paz”.12 Fracassado em seu intento, a personagem de V.M. deve abandonar o cenário e ir ao encontro da sombra. É interessante perceber que, nas duas Odisséias, a do herói moderno e a de Ulisses, a aventura consiste num duplo confronto. Inicialmente, as duas personagens são desafiadas por si mesmas. A natureza (mares, montanhas, cavernas) e suas forças míticas, em Homero, ou a rua como palco revelador das lutas cotidianas na cidade, os espaços externos à casa irão consagrar-se como espaços do masculino. Na sociedade representada por Homero, “os homens dividem a vida entre a luta, a caça, as deliberações do mercado e os festins, enquanto as mulheres vigiam as criadas em casa”.13 O segundo ponto a ser comentado em associação com o motivo básico da Odisséia é, no conto de V.M., o confronto com “o outro”. No poema épico de Homero, deuses, mortais e figuras mitológicas medem forças com o herói que conta não só com sua bravura e tenacidade, como também com o apoio de forças sobre-humanas. Na modernidade, a aventura vai envolver homens competindo, desigualmente, em busca de vitória no sistema capitalista. Para esse sistema haverá, sim, um vencedor: o integrado – aquele que conquista dinheiro, recebe o prêmio do consumo irrestrito perde sua aura mortal e ascende deusificado pelo sistema. Nesse cenário, o herói moderno de V.M. não conta com ninguém, nem com a proteção dos deuses, uma vez que a natureza, aqui, é outra; a realidade é bem maior do que o excluído, nem chega a existir real competição, pois o homem já entra na luta na condição de perdedor. Assim, impregnado de passividade, ele se deixa “levar pela multidão” e, incapaz de reagir à força com que é chamado pela Av. Sete, vai em direção à sua única meta – as vitrines. Da imobilidade vivenciada na praça, a personagem atinge seu objetivo, misturando-se à multidão aliada, uma vez que esta compartilha da mesma “frenética avidez” de consumo. Tão logo o homem se desconecta da multidão, a relação com o outro ser humano existe no plano do recalque, já que o verdadeiro confronto levaria à mudança da estrutura social. O outro é o adversário vencedor, é aquele que a personagem, face aos limites impostos pela sua passiva realidade, consegue apenas agredir silenciosamente. O outro é aquele que comprou a boneca que o homem tanto queria para a sua filha. O outro não FACULDADESJORGEAMADO 137


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só almeja, mas conquista o que o homem deseja. Em Notas do Subterrâneo14, novela do escritor russo Dostoievski, destacamos um momento importante em que também essa relação com o outro vai acontecer num espaço especial. Trata-se da Avenida Nevski15 na “cidade-fantasma moderna arquetípica” – São Petersburgo. Nesse espaço cosmopolita em que mais da metade dos letreiros das lojas eram bilíngües ou, exclusivamente, em inglês ou francês, trava-se o paradigma clássico da “autocracia de castas” russa: funcionário pobre versus oficial aristocrático. Ali, a personagem, um homem solitário que passa os dias oscilando entre o “orgulho e a autodepreciação” pretende, ao cruzar mais uma vez com seu oponente social, no ritmo ininterrupto das massas, não se desviar mas se esbarrar ombro a ombro com ele e, assim, “em perfeito pé de igualdade”, confrontar-se. Poderíamos dizer, de certo modo, que o discurso da personagem, ao andar pelo espaço da Nevsk, não se aproxima da fala da personagem de O homem e as vitrines, uma vez que a narrativa de Notas do Subterrâneo apresenta uma personalidade mais consciente do problema social. No entanto, é possível aproximar as duas imagens físicas das personagens, desconfortáveis que estão as duas em seus espaços urbanos. Costumava esgueirar-me da maneira mais absurda entre os transeuntes, como uma enguia, cedendo passagem aos generais, aos oficiais da guarda, aos hussardos, às senhoras. Em tais momentos eu sentia uma dor convulsiva no coração e calafrios na espinha, só ao pensar nas minhas roupas surradas (…) eu era uma simples mosca aos olhos de todo aquele mundo, uma mosca insignificante e nojenta – naturalmente mais inteligente, mais culta, mas uma mosca que estava a toda hora cedendo lugar aos outros, insultada e injuriada por todos (…) por que ia à Nevski, não sei. Eu simplesmente me sentia arrastado para lá, à menor oportunidade.16

Da mesma forma que o homem, a personagem de Dostoievski também se sente atraída, inexplicavelmente, pelo espaço de uma avenida. Logicamente, pelo seu significado, pelo que ela representa. Em Dostoievski, a sedução irresistível que o espaço exerce sobre a personagem deve-se, não a seu apelo puramente consumista num país sem convulsões sociais, como acontece em O homem e as vitrines17, mas à experimentação do espaço, onde se explicitam as tensões de um momento pré-revolucionário. Depois de pedir dinheiro emprestado, comprar roupas novas (quase equiparandose imageticamente ao oficial)18, a personagem de Dostoievski entra em confronto físico, segundo Berman, não apenas com o outro, que na casta social russa é superior a ela, mas sua ação transcende a pessoalidade e endereça, em verdade, um testamento político a toda sociedade russa: “Um microcosmo dessa sociedade estará fluindo na Nevski, ele quer deter não só o oficial, mas também a sociedade, até que reconheçam LEITURASCONTEMPORÂNEAS 138


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o que ele veio a compreender como sua dignidade humana.”19 Tanto em Dostoievski como em V.M. vê-se que a relação de um ser humano com o outro, em meio à massa que povoa as cidades, preza pelo distanciamento motivado por diferenças econômicas e/ou sociais. Um capitalismo periférico – reflexo de uma vontade política que busca importar a modernidade como forma de solução para o atraso econômico, na verdade, adiando a solução para problemas de ordem básica e estrutural das sociedades, (seja na Petersburgo do século XIX, seja na Salvador dos anos 60/70) – irá resultar numa cidadania desfalcada, defeituosa.20 Podemos ampliar mais a questão. No caso do Brasil, segundo Maria Alice Carvalho, nossas cidades foram “prefigurações exclusivas da autoridade colonial e concebidas como pastiches de uma racionalidade proveniente de outras latitudes”.21 Assim, origina-se uma arquitetura desprovida de “densidade estética e política em seu sentido mais amplo”. O indivíduo da cidade periférica não se percebe como membro autônomo de uma comunidade livre, proveniente de sua vontade e ação; não é agente de uma experiência coletiva de construção do social, pois se vinculou à idéia original de sociedade que não surge no mercado, mas, sim, no “centro gravitacional da vida em sociedade”, na “fonte exclusiva de significação de sua existência” – o Estado. V.M., nos anos 60/70, irá representar, de certa forma, essa herança colonial paternalista, cuja significação mais cruel estará presente na passividade de sua personagem. Mas o que falar da cidade modelo, aquela que serviu de inspiração às grandes reformas urbanas mundiais? Já sabemos que o tema urbano por excelência são “as massas”. Na Paris de meados do século XIX, recém reurbanizada a partir do desejo de Napoleão III, a multidão irá redescobrir a cidade, passando a ocupar as ruas iluminadas e seguras da nova capital. A multidão inspira os escritores, de modo geral, à criação de inúmeras personagens. Surgem as fisiologias22 – destacado gênero literário na panorâmica literatura do folhetim. Surge também, nesse caldo cultural, Baudelaire23, o poeta que construiu a figura do Flâneur24 – um típico caráter social do século XIX que vive o espaço da cidade como espetáculo, registrando ao vivo as sensações urbanas. O Flâneur, como Baudelaire mesmo o define na figura do pintor Constantin Guys25, é alguém dominado por uma paixão insaciável pelas coisas visíveis e transitórias que povoam as ruas: “A multidão é seu universo, como o ar é dos pássaros, como a água é dos peixes.”26 Sua paixão e profissão é desposar a multidão.27 Alguém que vive na cidade como se ela fosse a sua própria casa. Vê o mundo, está no centro do mundo e permanece oculto ao mundo.28 Esse ser contempla as paisagens da cidade grande, passeia pelos bulevares, pelas galerias, admira as belas carruagens, o andar das mulheres ondulosas, a moda, o vestuário, a tropa que passa, as belas crianças. No poema, As Multidões, FACULDADESJORGEAMADO 139


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A leitura da cidade por Baudelaire

Baudelaire coloca de um lado o Flâneur e, do outro lado, os felizes desse mundo, representando a burguesia. “É bom alguma vez lembrar aos felizes desse mundo, ao menos para lhes humilhar por um instante o orgulho tolo, que há felicidades superiores à deles, mais vastas e mais requintadas.”29 Aqui, Baudelaire explicita que, embora a ideologia seja capitalista, do consumo, da mercadoria, o artista/Flâneur é senhor de um poder específico: o poder da criação. “O poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem. Como as almas errantes que procuram corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de cada um.”30 A ideologia capitalista do século XIX não funcionaria com esse novo artista que também surgia. Assim, misturado à multidão que busca o consumo da mercadoria, o artista não só não teria medo da solidão31, como seria capaz de sentir felicidade, pois, LEITURASCONTEMPORÂNEAS 140


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na verdade, outro motivo o une à multidão. Sua alegria é perceber que, enquanto artista, tudo lhe é, absolutamente, fecundo e se “alguns lugares parecem vedados ao poeta, é que a seus olhos tais lugares não valem a pena de uma visita”. Aquilo que seus olhos desprezam não merece e não precisa ser visto, pois o artista se mobiliza a partir de uma vontade criadora e não consumista. De acordo com a leitura que Willi Bolle faz de Walter Benjamin, o Flâneur é criticado por este último por ser, não apenas mercadoria, mas também um emissário do capitalismo. Ainda de acordo com Bolle, o Flâneur é, para Benjamin, a alegoria32 da consciência pequeno-burguesa. A partir do momento em que uma classe de indivíduos se torna mais consciente do modo de existir que lhe impõe a ordem produtiva, quanto mais se proletariza, quanto mais é “traspassada pelo frio sopro da economia mercantil”, menos se sente atraída a empatizar com a mercadoria. Benjamin vê na obra de Baudelaire o conflito existencial do poeta: entre o exercício de ser um arquiteto literário33, estreitamente ligado ao lucro resultante de sua produção e a arte pela arte, Baudelaire, desencantando-se, segue a tribo dos poetas malditos34, encontrando no seu ofício artístico algo que possa diferenciá-lo radicalmente dos outros homens.35 São Petersburgo e Paris são espaços similares e intensos em sua beleza urbana. Mas, enquanto Baudelaire está à vontade como homem e cidadão na “cidade mais revolucionária do mundo” veremos, em São Petersburgo, segundo Berman, “um cidadão que não tem uma tradição de fraternité e ação coletiva em que se apoiar”. Sua cultura política, no momento em que não existe liberdade de expressão, só poderá surgir, subterraneamente, entre autotransformações e transformações sociais necessárias. Assim, também se transforma a ficção, através de uma personagem de Dostoievski, como através de tantas outras personagens de muitos autores russos, até que a realidade também crie um foco de resistência contra uma situação que acaba por tornar-se insustentável. Em O homem e as vitrines, a questão política restringe-se ao aspecto econômico que, ao diferenciar os indivíduos, suscita, timidamente, no protagonista, a vontade de confrontar-se com o outro. Em ambos os casos, seja no modernismo ocidental, “tão mais à vontade no mundo”, seja no modernismo do subdesenvolvimento, associável ao do terceiro mundo, o encontro de seres humanos na multidão tem, como significado histórico, a busca de uma inserção dos indivíduos no espaço social urbano. No discurso de Baudelaire, essa busca de inserção é perceptível. No entanto, o Flâneur insere-se física, mas não ideologicamente na multidão. Ao colocar sobre a realidade um olhar diferenciado (artístico), ele age como alguém que extrai da multidão um conhecimento.36 Assim, dando a essa busca uma finalidade artística, o Flâneur consegue caminhar com personalidade no espaço, livre, com autonomia, sem abrir mão FACULDADESJORGEAMADO 141


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de sua privacidade; a constatação de que existem outros seres humanos só serve para ativar a auto-consciência. Em Notas do subterrâneo, o outro ser humano dimensiona, junto com o protagonista, uma sociedade estratificada e injusta. É a partir dessa premissa política que o homem do subterrâneo inicia seus protestos contra a ordem instituída. O confronto com o outro é fundamental para que, de alguma forma, ele reaja à opressão em que vive, embora ainda não consiga olhar nos olhos de seu oponente.37 Quanto ao homem que caminha na Av. Sete, não se pode dizer que tenha, em sua consciência, essa dimensão histórica, social e política. Essas dimensões são sufocadas pelo sonho de consumo, pela fantasia do que seja a própria modernidade. Impossibilitado terminantemente de consumir, mergulhado numa questão essencialmente material, a personagem tem a sua raiva desarmada, anulada; não há o que fazer. A cisão na rua é mesmo irreversível e permanente. Aqui, somente um papel estará disponível para o homem: o de excluído. Assim, só lhe resta retirar-se do espaço que não é apenas físico; aquela não é apenas uma cidade de pedra e cal. A cidade é carregada de representações.

“Tudo parece que é ainda construção e já é ruina”


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A BAHIA DA VIDA E DA FICÇÃO Seria possível resolver a vida através da ficção? Será isso que os escritores fazem ao criar mundos, situações, personagens? Será possível olharmos a cidade como arte e, conseqüentemente, como forma de produção de conhecimento e de expansão da sensibilidade estética? Depois de um mergulho nessas representações, fique com o conto Boas intenções, de Bárbara Lima, do Projeto Leituras da Cidade38. Veja você mesmo, leitor, e tire suas conclusões... se achar, por acaso, necessário. Boas intenções Hoje, 30 de março de 2003, faz 19 anos que a Igreja da Barroquinha foi totalmente destruída pelas chamas. E eu, desde então, venho tentando fazer alguma coisa por ela. Está certo que eu não sou mais tão jovem, é verdade. Já tenho 85 anos e a vida toda nas costas, mas nem assim me canso. Talvez por trabalhar ao lado dela eu me sinta tão tocado a transformar suas ruínas. Eu me lembro que foi um susto muito grande naquela noite. As chamas tomaram conta das peças preciosas, das grandes portas frontais feitas de madeira maciça... Que tristeza, que angústia, que dor... – Bom dia, Seu Zé. – Oi, Luzia, como vai? Está animada hoje para as vendas? – É, esperando o caixa cheio, como sempre. Armava minha barraquinha, nela vendia algumas “bugigangas” para completar a mixaria que o governo chama de aposentadoria. Ninguém vive bem com tão pouco. Sobrevive. A vida de camelô é dura. Fizesse chuva ou sol, estava eu, lá, na Ladeira da Barroquinha, entre a loja de Dona Luzia e as ruínas da velha igreja. Só pra esclarecer, ela foi incendiada em 1984 e até hoje nada se fez e não se sabe quem foi o culpado. Desde aquele dia Luzia não largou mais do meu pé. Vivia me pressionando, falando um monte de coisas sem sentido... que, se eu não contasse, ela iria contar. Eu acho que era a idade chegando, tadinha... Mas eu também evitava essas conversas, era doloroso pra mim. Minha filha casou-se naquela igreja e, já naquela época, não passava de um lugar para meninos marginais que, em vez de irem para a escola, ficavam ali se drogando. No meu tempo não tinha isso, os pais cuidavam dos seus filhos, como eu cuidei dos meus. Além de tudo isso que estou lhe contando, ainda tem as pedras, essas caíam aos poucos, ao longo dos anos, com o simples assoviar dos ventos. – Seu José, Seu José! A igreja tá caindo! FACULDADESJORGEAMADO 143


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– Oh, Luzia! Vai trabalhar que da igreja cuido eu, viu!!! Confesso que às vezes eu ficava matutando nervoso com esses toques que Luzia me dava. Mas logo voltava atrás e decidia ficar calado. O movimento estava fraco e o céu estava ficando nublado. Parecia que ia chover. Escrevia poesias para passar o tempo. Aliás, na minha idade, quanto menos o tempo passar, melhor. Alguns me chamavam de louco, mas dentro da minha loucura procurava explicações para os problemas da vida. Costumava declamar em voz alta para homens, para mulheres, para crianças, para quem quisesse ouvir. Alguns não gostavam. Me mandavam até calar a boca, ameaçavam me bater. Mas o que eu podia fazer, amigo? Para mim, eles é que eram loucos! Estava escurecendo e não tinha vendido mais do que 50 reais, naquele dia. Foi um dia muito difícil. Como costumava fazer sempre, pegava a vassoura de Luzia e recolhia o lixo ao redor da minha barraca. Depois juntava tudo num canto e queimava. Eu era o gari das pessoas mal-educadas que passavam por aquela ladeira todos os dias. E Luzia sempre a me atazanar. – Varrendo a rua de novo, Seu Zé! Isso é trabalho pros garis! Deixe isso aí, homem! Apenas dei um “tchau” e fui me embora. Luzia é minha amiga há muitos anos e talvez soubesse o que tava falando. Mas, talvez não... Naquele dia fui atordoado para casa. Quando cheguei, Tereza já tinha botado a mesa e o café estava cheirando. Ela era minha segunda esposa e vivíamos juntos há 37 anos. Tinha filhos apenas do meu primeiro casamento. Três filhos e sete netos. Tereza era uma bela companheira, organizada, carinhosa. Acho que nem merecia tanto. Depois do café, fui dormir cedo, pois no dia seguinte era dia de ir na Câmara. Toda semana ia pelo menos duas vezes lá, para exigir dos deputados que algo fosse feito em favor da minha igreja. Já tinham me prometido projetos, reconstrução, mas nada aconteceu. Até já haviam tirado os matos, mas só ficou nisso. Eu, que naquela época já era um senhor com cabelos brancos, óculos fundo de garrafa e pele enrugada, parecia ser o único ser vivo que exercia a sua cidadania. Tomava um chá de cadeira nos gabinetes dos deputados e um “vou ver o que posso fazer” da maioria. Mas não me cansava. Enquanto estivesse vivo, estaria lá, incessantemente. Era uma obrigação minha, como se devesse algo àquela igreja... E percebi que o meu trabalho não tinha sido em vão. O deputado estadual, Ciro Fernandes, tinha sido o único, desde o começo da minha saga, a me dar uma esperança. – Seu José, o senhor vem aqui há tanto tempo que me sinto na obrigação de ajudá-lo. Hoje mesmo encaminharei o pedido para a reforma da igreja. Mas não garanto, vou tentar! Nossa, como esses deputados falam difícil! Ficava pensando se ele realmente ia LEITURASCONTEMPORÂNEAS 144


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fazer algo ou se aquele palavreado todo era só pra me enrolar. – Muito obrigado, Doutor Ciro. Estou esperando uma resposta sua. Tenho fé que o senhor vai conseguir. Qualquer coisa, é só me dar um toque. Já não sabia também se eu era a pessoa mais adequada para falar de fé. Eu tinha fé. Só não tinha tanta coragem como Luzia desejava e cobrava. Pela primeira vez, agora que existia a possibilidade da igreja ser reformada, o que Luzia me falava há muito tempo começava a fazer sentido. Mas ainda me faltava coragem. Depois de um dia muito proveitoso na Câmara, fui direto pra casa tomar um banho e dormir. No dia seguinte era domingo e não tinha trabalho. O final de semana ia ser uma expectativa só, à espera de uma resposta positiva na segunda-feira... ... E, finalmente, ela chegou. A bendita segunda-feira. Fui pra Ladeira, ansioso, esperar a ligação do deputado. Escrevia poesia, conversava com os transeuntes, tudo era válido para fazer passar o tempo. Foi quando, mais ou menos, as dez da manhã, o deputado Ciro ligou para a loja de Luzia e ela veio afoita me chamar. – Seu Zé! Corre aqui! Telefonema pro senhor, e é de lá da “cama”! Acho que é o tal do deputado! – Que cama, Luzia? É, Câmara, mulher!! Graças a Deus ele ligou! Percebi o quanto os nossos representantes são imorais. Fiquei abismado com a rapidez com que meu problema foi resolvido, sinal de que o processo já estava era lá, mas encalhado. E, num belo dia, por caridade, eles resolveram liberar. Uma cambada de políticos sem-vergonha, é isso que eles são!!! Mas não deixei de agradecer, afinal de contas, não era mal-educado. – Muito obrigado, Doutor Ciro! Nem sei como lhe agradecer! O senhor não sabe o quanto essa igreja é importante pra mim. Mas, sem querer lhe cobrar muito, o que é que vai ser feito e quanto tempo vai demorar? – Seu José, marque uma hora com a minha secretária e venha até aqui pra nós conversarmos, o.k.? – Tudo bem, sim senhor! Amanhã eu passo aí. Mais uma vez, muito obrigado, muito obrigado mesmo! Fiquei tão feliz que resolvi ir pra casa preparar a minha ida à Câmara. Estava muito satisfeito. Era como se a reconstrução daquelas ruínas também reconstruísse algo dentro de mim. Como se todo meu sentimento de culpa fosse acabar. Meu trabalho estava completo. E Luzia, finalmente, iria esquecer aquela história. Na manhã seguinte, tomei um banho bem caprichado, daqueles que a gente só toma mesmo no dia do aniversário, me perfumei de alfazema e saí. Finalmente a minha saga ia ter um final feliz. Meus anos de luta não tinham sido em vão. FACULDADESJORGEAMADO 145


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Quando entrei no escritório, o sorriso estampado no meu rosto retratava a minha felicidade. Então, Seu Ciro me explicou tudinho que ia ser feito. As ruínas da igreja iriam se transformar num instituto para a recuperação de menores carentes e as obras iam demorar mais ou menos seis meses. Era até pouco tempo pra quem esperou tanto como eu. E eu estava feliz, muito feliz. O nome do instituto ainda não estava definido. Mas eu não me preocupava com isso, o importante é que a reforma ia acontecer, se Deus ajudasse ia sim. Quando saí da Câmara de Deputados, fui correndo contar tudo pra Luzia. Apesar de tudo, ela era uma amiga muito querida. – Luzia, você não vai acreditar, tenho uma notícia muito da boa pra lhe dar! – Conta, Seu Zé, eu tô ficando curiosa! Tem alguma coisa a ver com aquele telefonema, né? – Tem, sim. Um deputado conseguiu aprovar a reforma da igreja. Ela vai virar, daqui a seis meses, um instituto. Isso não é muito bom? A gente vai poder esquecer aquela história toda e viver normalmente daqui por diante. – Eu não acho, não... muito pelo contrário! Acho que, agora, mais do que nunca, o senhor deve contar tudo, Seu José. Afinal, o senhor já fez sua parte e agora pode contar. Luzia acabou com a minha alegria. Como eu podia falar, depois de tanto tempo... Durante seis meses sofri com a minha indecisão. Só nós sabíamos e ela queria revelar todo o meu segredo. Todos os dias ela me perguntava o que eu tinha decidido e ficava me pressionando. E, junto com Luzia, a minha consciência também me atormentava. Os pensamentos começavam a se embolar na minha cabeça, o amigo entende? Eu já não sabia mais o que fazer, estava ficando louco! Começava realmente a pensar na possibilidade de revelar a todos a minha angústia. Estava ficando louco, louco... Bem, finalmente chegou o dia da inauguração do instituto. Eu era um convidado especial e indispensável, segundo dizia o convite que me entregaram. E o nervosismo também tomava conta de mim. Era chegada a hora, eu tinha que me decidir. E, naquele momento, Luzia apareceu pra me dar uma última palavra: – Agora é com o senhor, Seu José, com o seu coração. Não vou mais insistir, faça o que achar melhor. A tranqüilidade de Luzia me fez pensar melhor e refletir. Precisava criar coragem, toda a coragem que eu tinha tido para salvar aquela igreja. Quando cheguei na ladeira, estava começando a grande festa. Muitas bolas, cores e muita gente importante também. A Barroquinha ficou linda. Toda azul, assim como o céu de Salvador. Portas, janelas, telhados, tudo novinho. Que benção que foi, meu LEITURASCONTEMPORÂNEAS 146


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Deus! Ao entrar, todos me receberam com uma calorosa salva de palmas. Não estava entendendo o porquê de tanto alvoroço... mas estava muito feliz para pensar nisso. Sob a atenção de muitos fotógrafos e jornalistas, fui cortar a faixa e finalmente inaugurar a realização do meu sonho. O suspense maior era para saber o nome do instituto, que até então não tinha sido divulgado. Ao tirar o pano, levei um grande susto, misturado com uma sensação de recompensa. O deputado resolveu chamar o instituto de “Casa para Menores José da Silva” – é, meu próprio nome, o senhor veja só. Nesse instante, todos vibraram, aplaudiram, comemoraram. E não é que veio, meu amigo, naquela hora, naquela justa hora, a voz de Luzia, uma voz de caverna escura, sussurrando levemente no meu ouvido. – Essa é a hora, Seu Zé... é agora ou nunca. Um impulso tomou conta de mim. Pedi a palavra e me deram a palavra. Comecei a agradecer a homenagem. – Eu estou muito lisonjeado. É um acontecimento que vai marcar pra sempre a minha vida. A ligação com essa igreja é muito mais forte do que qualquer um de vocês aqui presentes podem imaginar. Acho que nem merecia tanto... mas tenho algo para revelar e não sei como vou sair disso. Vou ler um bilhetinho que escrevi há 19 anos atrás. Só peço que ouçam e, por favor, entendam toda a minha angústia, angústia alimentada por todos esse anos. E comecei a ler aquele bilhete que grampeei junto a uma foto de Santo Expedito. – “Senhor, não sei como isso foi acontecer. Não era essa a minha intenção. Como imaginaria que o simples gesto de recolher e queimar o lixo poderia causar toda essa tragédia? Senhor, me perdoe. Prometo que, até onde eu viver, protegerei essa igreja, com todas as minhas forças, Senhor, eu irei reconstruí-la. Amém!” Bárbara Lima - Salvador

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Alcione. Leitura e Linguagens. In: ____. Leitura, saber e cidadania. Rio de Janeiro: Proler, 1994. p.129-133. AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In: ____. Mimesis. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 1-20. BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. In: BARROSO, Ivo (Org.). Charles Baudelaire - Poesia e Prosa. Vol. único. Trad. de Ivan Junqueira et. al. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 229. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 70 p. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. v. 3. 2. reimp. São Paulo: Brasiliense, 1997. 271 p. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe

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Moisés e Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 360 p. BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da História em Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP/EDUSP, 1994. 426 p. BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995. 80 p. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v.1. Petrópolis: Vozes, 1986. 404 p. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999. 280 p. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 145 p. CULLER, Jonathan. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999. DOSTOIEVSKI, Fiodor M.. Notas do subterrâneo. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 156 p. ELIOT, T. S. De Poe a Valéry. In: ____. Ensaios escolhidos. Tradução Maria A. de Ramos. Lisboa: Cotovia, 1992. p. 147-160. LOUZADA, Carlos. Intolerância. Rio de janeiro: Edições Ladrões do Fogo, 1989. 12 p. MAIA, Carlos Vasconcelos. O Primeiro Mistério. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1960. 71 p. MAIA, Carlos Vasconcelos. Romance de Natal. Salvador: Carlito Editor, [1977]. 107 p. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 309 p. SABATO, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

NOTAS 1

Carlos Louzada, poeta, cronista, nascido em Rio Claro, Rio de Janeiro, falecido em novembro de 1993, aos 41 anos. Cf. LOUZADA. Intolerância... 2 Segundo Alfredo Bosi, o trabalho do escritor consiste em reviver e potenciar a expressão que o uso desgastou. Cf. BOSI. Reflexões sobre a arte... p. 57. 3 Cf. SABATO. O escritor e seus fantasmas... p. 186. 4 Cf. SABATO. op.cit., p. 187. 5 Cf. ARAUJO. Leitura e linguagens... p. 132. 6 Cf. ROSSI. A arquitetura da cidade... p. 19. 7 Foi reitor da UFBA de 1946 a 1961. Cf. CARVALHO. Imagens de um tempo em movimento... p. 124. 8 Ao longo de quarenta anos de produção literária, o autor escreveu 12 livros (em uma obra de originais, coletâneas e reedições que perfaz um total de 87 textos, excluindo-se aqueles editados em jornais, entre contos, crônicas e ensaios escritos entre as décadas de 40 e 80). 9 Dois contos de Carlos Vasconcelos Maia. O O Homem e as vitrines publicado no livro O primeiro mistério, de 1960; o conto É Natal, é Natal, publicado no livro Romance de Natal, de 1977. 10 A Bahia na ficção é parte de minha dissertação de mestrado Lembranças da Bahia: imagens e miragems na cidade de Carlos Vasconcelos Maia, defendida em 16/03/2000, com orientação da Profa. Dra. Mirella Márcia Longo Vieira Lima, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA, tendo como banca de defesa as Profas. Dras. Ana Rosa Ramos (UFBA) e Eliana Yunes (PUC-Rio). 11 Cf. BRANDÃO. Mitologia grega…, p. 115-116. 12 “A Odisséia é o canto do nóstos, do regresso do esposo ao lar e da nostalgia da paz.” Cf. BRANDÃO. op.cit., p. 128. 13 Cf. AUERBACH. Mimesis..., p. 18. Veremos que a mudança desses valores só irá efetuar-se na modernidade, a partir dos meados do século XX. Com relação aos espaços, casa e rua, podemos resgatar o que diz Roberto DaMatta. Mais do que um espaço geográfico, eles são, na sociedade brasileira, duas categorias sociológicas, isto é, duas esferas de significação social. Assim, existiria um código da casa e da família que é “avesso à

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mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao progresso” e um código da rua que “está aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à história linear e ao progresso individualizado”. 14 Escrito em 1864. Cf. DOSTOIEVSKI. Notas do subterrâneo…, 156 p. 15 Reconstruída no início do século XIX, portanto antes de suas correlatas parisienses a avenida Nevski, ou melhor, o Projeto Nevski, era um espaço urbano caracteristicamente moderno. Reunia num só lugar, o que a modernidade oferecia: “macadame e asfalto, luz a gás e luz elétrica, a ferrovia, bondes elétricos e automóveis, cinema e demonstração de massa.” Cf. BERMAN. Tudo que é sólido desmancha no ar... p.187. 16 Cf. DOSTOIEVSKI. op.cit., p. 69. 17 “A Avenida Sete chamava-o com uma força que ele, por seu lado, nada fazia para recusar.” 18 Quase, pois é necessário que ele ainda pareça socialmente inferior ao outro para que, de fato, sua vingança tenha sentido aos olhos da multidão que passa. Cf. BERMAN. op.cit., p. 215. 19 Cf. BERMAN. op.cit., p. 215-216. 20 A esse descompasso entre modernidade e justiça social, Marshall Berman irá chamar de “modernismo do subdesenvolvimento”. Berman chega a esse conceito, a partir da literatura russa e, particularmente, a partir da representação literária da cidade de São Petersburgo. Construída sobre os pântanos do Rio Neva, por Pedro, o Grande, a partir de 1703, essa cidade é, para o autor, “o exemplo mais dramático, na história mundial, de modernização draconiana concebida e imposta”. Historicamente, a construção de São Petersburgo consumiu, literalmente, a vida de muitos trabalhadores, conduzidos nessa missão, sob a autoridade do imperador Pedro. Em três anos de obras ininterruptas, por exemplo, 150 mil homens sucumbiram, mortos ou arruinados fisicamente, ao ritmo de seu crescimento. Como resultado dessa avalanche construtiva, a nova metrópole, declarada capital da Rússia em 1717, tornou-se rapidamente uma das maiores cidades da Europa, alcançando em duas décadas a população de 100 mil pessoas, ultrapassando, em 1890, a cifra de um milhão de habitantes. O modelo para tamanha obra era a arquitetura do Ocidente. Arquitetos vinham da Inglaterra, França, Holanda e Itália e, sob o desejo de Pedro, em transformar a cidade numa “janela para a Europa”, implementaram uma estética baseada numa mistura absurda de estilos, que buscava transformar, a nova cidade, num “teatro político e a vida cotidiana num espetáculo”.21 Berman destaca, nesse fato histórico, a tirania de um Estado nacional que impõe à sua população uma modernização estética desacompanhada de uma modernização humanitária, o que ao menos serviu, segundo o autor, para inspirar duas gerações de escritores responsáveis por uma literatura denunciadora dessa realidade deturpada, além de alicerçar as bases ideológicas para a grande revolução que a Rússia iria detonar a partir de 1917. Mas Berman irá mais além: a partir da implantação forçada de uma modernidade distorcida e distanciada da realidade russa, o autor interpreta a Rússia do século XIX como um grande arquétipo do terceiro mundo do século XX, uma vez que, até o surto industrial de 1890, a Rússia luta com questões que foram posteriormente enfrentadas, no século seguinte, pelos povos africanos, asiáticos e latino-americanos. 22 Cf. CARVALHO. Quatro vezes cidade…, p. 99. 23 Literatura responsável por destacar, do ambiente urbano, as várias personagens cotidianas: do trapeiro ao aristocrata arrogante. Cf. BOLLE. Fisiognomia da metrópole moderna…, p. 78-80. 24 Charles Baudelaire (1821-1867). 25 Termo usado por Baudelaire. Cf. BAUDELAIRE. O pintor da vida moderna…, p. 13. 26 O olhar de Constantin Guys é o seu olhar, é o olhar do Flâneur. Aquele que “Admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana.” Cf. BAUDELAIRE. op.cit., p. 22. 27 No final de 1863, Baudelaire faz publicar no Figaro o ensaio O pintor da vida moderna. Ali, o poeta destaca, de todos os artistas conhecidos, um único que, mais do que um artista é, para ele, um homem do mundo cuja missão é buscar a modernidade. Constantin Guys de Sainte-Hélène, ou G., como o poeta prefere nomeá-lo, é um aquarelista que retrata os tipos humanos de Paris. Baudelaire se identifica com o pintor, naquilo que Berman destaca como o grande diferencial do poeta em relação aos artistas de seu tempo. Através de sua arte, Baudelaire mostra a vida cotidiana das pessoas. Cf. BERMAN. op.cit., p. 140. 28 Épouser la foule. (casar com, desposar a multidão). Termo usado em As multidões e no O pintor da vida

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moderna. Cf. BAUDELAIRE. op.cit., p. 20. Cf. BERMAN. op. cit., p. 147. 30 As Multidões, de Charles Baudelaire, tem tradução, para o português, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Foi publicado, pela primeira vez, na revista Revue Fantaisiste em 1º de novembro de 1861. O livro, na íntegra, com o nome de Pequenos Poemas em Prosa (O Spleen de Paris) e com esse poema sendo o nº XII, veio a ser editado somente em 1869, dois anos depois da morte de seu autor. Baudelaire usa da prosa poética, fugindo de uma forma de arte estabelecida (poesia enquanto verso). Marshall Berman ressalta que essa forma que o poeta encontra para desenvolver aqui seus poemas, está próximo das formas das notícias, referindo-se assim, mais precisamente, ao romance-folhetim, um estilo de literatura rápida muito em moda nos jornais a partir dos meados de 1830. Percebe-se a estreita relação da literatura com a história da imprensa e da informação. Cf. BAUDELAIRE. Pequenos poemas em prosa…, p. 289. 31 Cf. BAUDELAIRE. op.cit., p. 289. 32 Os bulevares criados por Haussman inauguram uma nova cena primordial: um espaço privado, em público, onde as pessoas podiam dedicar-se à própria intimidade, sem estar fisicamente sós. Cf. BERMAN. op. cit., p. 147. 33 Benjamin denomina Baudelaire de poeta alegórico. Sendo mercadoria e produtor de mercadoria o poeta participa de uma experiência de choque, de degradação. Sendo alegoria ele simula ludicamente uma luta contra o aparato dessa degradação. Cf. BENJAMIN. apud. BOLLE. Fisiognomia da metrópole moderna..., p. 128-133. 34 Cf. BENJAMIN. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo …, p. 29. 35 Ponto de admiração que Baudelaire tinha pela personalidade de Poe. Cf. ELIOT. De Poe a Valéry…, p. 155156. Rimbaud, seu sucessor intelectual, chegaria a um termo em seus conflitos existenciais ao optar pelo caminho do lucro, fora de seu ofício, e abandonar tudo, tornando-se contrabandista de armas na Abissínia. 36 No poema Perda de Auréola, a imagem do poeta que perde sua auréola, no lodo do macadame, explicita duas das crenças mais apaixonadas e antagônicas do próprio Baudelaire: de um lado, a crença na santidade da arte e no outro a crença na autenticidade e aprofundamento poético dos poetas, na medida em que eles se tornem, cada vez mais, homens comuns. Cf. BAUDELAIRE. op. cit., p. 333. Cf. BERMAN. op. cit., p. 151-155. 37 Adotamos aqui a noção de Alfredo Bosi, para quem, a arte é um conhecimento. A leitura da realidade, pelo artista, transforma a própria realidade em algo novo. Ao re(des) velar à realidade, a arte coloca sobre ela um saber até então desconhecido. Cf. BOSI. op. cit., p. 27-48. 38 A personagem fecha os olhos no momento em que o confronto físico com o oficial é inevitável. “Ele se dobra sobre si mesmo e se tortura por sua incapacidade de, sozinho, fazer a história, ou se lança a tentativas extravagantes de tomar para si toda a carga da história”. Cf. BERMAN. op.cit., p. 220. 39 Projeto interdisciplinar, realizado em 2003, no Curso de Comunicação Social/Jornalismo das FJA, envolvendo quatro disciplinas e quatro linguagens distintas: texto literário(conto), texto jornalístico, fotografia e radioreportagem. No texto jornalístico (reportagem), também realizado pela aluna Bárbara Lima, o tema é a Igreja da Barroquinha e seu misterioso incêndio. O camelô Walter, de 78 anos, o Poeta das Flores, que trabalha no local, é entrevistado. Fala de sua luta, há muitos anos, junto aos políticos, para recuperar o monumento, hoje em ruínas. No conto da aluna, Seu José, 85 anos, um personagem que também é camelô como Walter e que luta, desde que a Barroquinha pegou fogo, para conseguir de algum político os recursos necessários à sua reconstrução. A vida sinaliza esperança, a reportagem procura retratar os fatos servindo de eco às demandas da comunidade. O conto, por sua vez, busca trazer outras dimensões àquilo que se chama realidade. Cf. http:// www.fja.edu.br/ftp_fja/leituras/centro.htm 29

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Cidade, Homossexualidade e Música Eletrônica: do Espaço Urbano ao Espaço Virtual Cláudio Manoel Duarte e Gisele Marchiori Nussbaumer*

Resumo: Relacionando o universo homossexual, a cena da música eletrônica e a experiência das cibercidades, o artigo visa a mostrar que estas últimas não têm oportunizado estruturas abertas à interatividade e à instalação de culturas emergentes. Palavras–chaves: Cibercidades – Homossexualidade – Música Eletrônica

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite... João do Rio

A cidade, mesmo sendo uma realidade objetiva – com suas ruas, monumentos, praças – é uma ambiência a partir da qual se desenvolvem subjetividades, se constroem representações. Ela é um centro de efervescências culturais. Das representações possíveis acerca da cidade, uma das que mais tem chamado atenção é aquela que se refere ao processo de urbanização, com todas as suas conseqüências. Como mostra Sandra Pesavento (1997), ocorreu um crescimento desordenado de casas e bairros, além da aglomeração em espaços restritos de grupos heterogêneos, impondo–se a questão social como uma questão urbana. Havia uma faceta maldita, com seus atores, seus lugares e seu tempo, sendo preciso reordenar espaços e disciplinar vivências coletivas. Andrade (1997) lembra que na praça se confrontavam formas antagônicas de sociabilidade e que, ao seu esvaziamento, correspondeu um silenciamento de vozes. Privacidade e isolamento arquitetônico tensionaram a cidade e segmentaram o público do

* Professor de Comunicação Social das Faculdades Jorge Amado. Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA, colunista do A Tarde (Coluna Groove/Dez!), fundador e dj do grupo de música eletrônica Pragatecno e membro do Ciberpesquisa – Centro de Estudos e Pesquisa em Cibercultura da UFBA. Professora do Depto de Ciências da Informação da UFSM. Mestre em Ciências da Comunicação pela USP, doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA.


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privado, a massa do indivíduo. Uma noção de conforto, característica da vida moderna, se estendeu por todos os lugares, das moradias aos shoppings–centers, que se tornaram “máquinas de conforto que regulam nossas vidas íntimas e públicas” (ANDRADE, 1997, p.100). Segundo Andrade, dois modelos arquitetônicos e urbanísticos produziram a cidade do século 20 e anunciaram a do século 21; sendo dominantes, ainda, na configuração da imagem que temos hoje das cidades: os superblocos e os bairros–jardins. Nos superblocos, praças e ruas se diluem, reduzindo os espaços coletivos à mera função circulatória; nos bairros–jardins, praças e ruas são reiteradas como espaços de convívio, mas vigiados e separados do resto da cidade. Ou seja, trata–se de dois modelos que se desenvolveram negando a vida pública da cidade, sem considerar possibilidades de regeneração do espaço público e sem atentar para os movimentos que surgiam como forma de resistência à exclusão social que se configurava. Nos últimos anos, com o crescente desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação digital e sua inserção em nosso cotidiano, as atenções voltaram–se, também, para um outro tipo de cidade: as cibercidades, que surgiram como um espaço possível para novas formas de interação. Lemos (1999) registra que a maioria das experiências de cibercidades, desenvolvidas até o momento, no entanto, não passa de metáforas que não abarcam a complexidade de um determinado espaço urbano. Para o autor, seria necessário descobrir como fazer para virtualizar a efervescência ou a dinâmica de uma cidade, suas partes malditas; seria necessário refletir sobre a cidade virtual para que ela venha a se tornar palco de algo diferente das visões estereotipadas e assépticas que os especialistas se ocupam em construir. Na sua visão, as cibercidades deveriam aproveitar o potencial de formação comunitária do ciberespaço, promovendo práticas que, por exemplo, façam com que as pessoas evitem deslocamentos inúteis, ficando para elas a possibilidade da flânerie. De acordo com Lemos, a virtualização digital das cidades não constitui verdadeiramente a criação de uma esfera pública. A maioria das experiências são, certamente, apenas bases de dados sobre um determinado espaço urbano, agregando informações sobre municipalidades, lazer, informações turísticas, transportes, eventos culturais etc. São poucas as experiências que criam espaços de interação social, com abertura a discursos bidirecionais e a fóruns comunitários. Em geral, as cibercidades parecem mais como propaganda e serviços do que a constituição daquilo que dá a vida a uma cidade, ou seja, a criação de formas de comunicação livres e democráticas (LEMOS, 2000, p. 37).

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CIDADE, HOMOSSEXUALIDADE E MÚSICA ELETRÔNICA: DO ESPAÇO URBANO AO ESPAÇO VIRTUAL

Martín Barbero (1996) ressalta que, se há falência das trocas no espaço público, esta não está diretamente ligada às novas tecnologias, mas a crescente urbanização. A nova forma do urbano caracteriza–se por ser globalmente conectada e localmente esfacelada e as cibercidades são importantes, justamente, enquanto tentativa de diminuir esta discrepância. As cibercidades devem ser pensadas no sentido de potencializar trocas entre seus cidadãos e a ocupação de espaços concretos da cidade real. Nesse sentido, como afirma Marcos Palácios, é preciso considerar que uma Cibercidade não se constrói apenas na Internet, separadamente da Cidade Física, mas, pelo contrário, é o resultado da incorporação e uso das tecnologias telemáticas no cotidiano da Cidade Física. Trata–se de uma nova dimensão do planejamento urbano e não de uma modalidade de videogame, como parece que ainda acreditam alguns (PALÁCIOS, 1999, p. 52)

Aurigi e Graham (1998) salientam que as cibercidades nascem num terreno de fragmentação, isolamento e guetificação, que bem caracterizam as grandes cidades. Para os autores, os espaços urbanos nunca foram inclusivos; mas sim uma reunião de mecanismos de exclusão e de inclusão social. Assim, com a crescente corrosão do espaço público, emerge o debate acerca do potencial do ciberespaço em promover novos tipos de interação social. As cibercidades propostas até agora não conseguiram incorporar formatos abertos a intervenções efetivamente interativas de indivíduos e comunidades. Nestes formatos não existem recursos técnicos que abram espaços efetivos para a criação e a incorporação de experiências culturais alternativas e outras práticas políticas. Não da política partidária, eleitoral, institucional, mas das políticas de construção de outros sentidos, de outros discursos estéticos. Ao pensar a construção das cibercidades, há por trás desse debate a aplicação (ou não) de conceitos de participação democrática – liberdade de expressão (temas) e criação (técnicas) de fóruns sem censura – diretamente relacionada ao formato (design) e aos softwares utilizados, que vão estabelecer se essa cibercidade é aberta (ou não) a intervenções externas. Podemos mesmo dizer que as escolhas técnicas (design e softwares) já estabelecem as bases políticas do projeto: o de ser participativo ou de ser uma mera representação do discurso formal das instituições das cidades reais. Ao criticar algumas experiências, Lévy (1999) cita o caso dos museus virtuais, que “às vezes nada mais são do que catálogos ruins na Internet”, quando deveriam servir como espaços para maior interatividade e criação de obras coletivas. Com esse exemplo, o autor defende que o ciberespaço não pode ser mera duplicação das instituições FACULDADESJORGEAMADO 153


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(“formas institucionais”), sob o discurso de acesso para todos, mas deve valorizar e compartilhar a inteligência nas comunidades conectadas. As idéias de Lévy se baseiam no que ele defende como sendo o movimento social da cibercultura: a interconexão, as comunidades virtuais e a inteligência coletiva. As comunidades virtuais se estabelecem a partir da interconexão, aliada à afinidade de interesses, e processam a cooperação através da troca de informações que as consolidam enquanto grupo, independente de proximidades geográficas. Informação e sentimento estão presentes numa comunidade virtual: são a expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais e de poder, mas em torno de centros de interesses comuns, de cooperação mútua. Essas comunidades vêm se firmando, tendo como base processos identitários dirigidos (como os neonazista, os gays, os clubbers e outros); ou apenas por delimitação de espaços territoriais (bairros, alunos de uma mesma escola etc). Mas, nos dois casos, podem ou não encontrar espaços abertos (democráticos do ponto de vista do tema e de suportes técnicos interativos) para se expressarem nas cibercidades. Quanto mais radicais as expressões, menos assimiladas pelos projetos oficiais das cibercidades, que priorizam um discurso formal – e “limpo” – dos estilos de vida. Eis aí a cena gay e as cenas que associam arte e comportamento, como a da música eletrônica. Se as cibercidades não têm conseguido resgatar a efervescência presente no cotidiano das cidades “reais” – embora seus projetos proponham retomar no ciberespaço práticas da cidadania e resgatar o espaço público – há um movimento que se consolida paralelamente. Surgem sites e listas de discussão, entre outros espaços, que se baseiam em conteúdos temáticos especializados e de interesses comunitários bem definidos, muitas vezes por associação de afinidades, de tribos e grupos alternativos, e, talvez por isso, marginais aos projetos das cibercidades, marginais às proposições oficiais (institucionais) no ciberespaço – este é o caso do universo homossexual e da cena da música eletrônica. UNIVERSO HOMOSSEXUAL: DO URBANO AO VIRTUAL A ocupação do espaço público urbano sempre foi considerada como um fator importante para o desenvolvimento da sociabilidade. Green (2000), analisando a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, lembra que uma acessibilidade maior dos homens ao espaço público, às ruas, às praças, sempre facilitou os encontros entre eles. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 154


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Atitude também constrói civilização

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A busca por lugares de encontro e maior interação social sempre foi uma característica da comunidade gay que, como alternativa à falta desses lugares, busca se reunir em determinados pontos das grandes cidades, dos quais “se apropria”. Com o surgimento do ciberespaço, e das cibercidades, um fenômeno semelhante tem acontecido: não havendo esses lugares de interação, eles são “criados”. O ciberespaço se apresenta como um ambiente sem fronteiras, onde as relações que se estabelecem parecem ter como princípio organizador a busca por afinidades. Diferentes espaços surgem na rede, normalmente, a partir de interesses comuns. Basta navegar um pouco pela internet para que percebamos, por exemplo, que nela é possível se relacionar, se informar sobre a cena gay. Este não é um privilégio do universo homossexual, mas é difícil não se surpreender com a quantidade de espaços a ele dirigido – ou com a quantidade de espaços que ele vem criando no ambiente virtual. Com as tecnologias de comunicação digital, os homossexuais vêm satisfazendo necessidades relacionadas à sociabilidade e criando comunidades virtuais específicas que se consolidam como lugares de encontro. Os laços criados no ciberespaço facilitam o estabelecimento de relações que podem ser transferidas para o espaço das cidades “reais” ainda que restritos, já que o padrão cultural que afirma a heterossexualidade impõe limites para a manifestação de uma orientação sexual diferenciada. No ciberespaço, são muitas as listas de discussão destinadas aos gays, lésbicas e diversas outras multiplicidades sexuais, também é considerável o número de sites dirigidos a esse público. Através desses espaços alternativos, quase sempre desconsiderados nos projetos oficiais, como é o caso das cibercidades, a comunidade gay tem mostrado que, como acontece no ambiente das cidades reais, ela também vem se apropriando do ambiente comunicacional do ciberespaço. Nesse contexto, as listas de discussão se destacam por possuírem um caráter mais duradouro, menos efêmero, adequado para a formação de comunidades virtuais eletivas. Das listas de discussão dirigidas ao universo homossexual, a Listagls é uma das mais antigas e conhecidas. Ela foi criada, em setembro de 1996, pelo sociólogo Roberto Warken, e é dirigida a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros e simpatizantes. A lista existe como um espaço para a reflexão de temas inerentes à homossexualidade, possui 398 membros1, está listada no Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/ group/listagls) e a associação é aberta. Trata–se de uma lista bastante ativa que, em janeiro de 2003, chegou a 1277 mensagens, com uma média de 42 e-mails diários. Um dado interessante refere–se ao fato da comunidade da Listagls já ter se encontrado várias vezes fora do ciberespaço. Um desses encontros aconteceu, justamente, durante uma das Parada do Orgulho Gay de São Paulo. No período que antecedeu o evento, os membros da lista divulgavam todo tipo de informação sobre a Parada e marcavam LEITURASCONTEMPORÂNEAS 156


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pontos de encontro na Avenida Paulista, mostrando seu interesse em interagir também no espaço concreto da cidade real. A lista E-jovens foi criada em agosto de 2001, pelo estudante de jornalismo Deco Ribeiro, que também é o seu moderador. Ela é dirigida sobretudo aos adolescentes gays e está vinculada ao site E–jovem (www.e-jovem.com). Possui 795 membros, está listada no diretório do Yahoo (http://groups.yahoo.com/group/e-jovens/) e a associação é aberta. A E-jovens é, sem dúvida, uma das listas GLS mais ativas da rede, com uma média que varia de 15 a 50 mensagens diárias, já tendo chegado a 80. Nela, muitos adolescentes que não se assumem como gays, no ambiente da vida real – junto à família, escola, amigos etc – encontram espaço para estar e debater com outros na mesma situação. Existem casos de adolescentes que, depois de “se assumirem” neste ambiente, ganham coragem para fazer o mesmo fora dele. Os direitos dos homossexuais no Brasil é o tema principal da Gaylawyers, por isso ela reúne muitos advogados, juristas e militantes gays. A lista foi criada em março de 2000, possui 266 membros, está listada no Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/ gaylawyers) e a associação é aberta. A Gaylawyers é uma referência, sendo freqüentemente citada e consultada por outras listas – o que demonstra que existe um diálogo entre as comunidades das diversas listas de discussão. A Judeus Gays do Brasil é uma lista destinada a judeus e judias homossexuais, criada em setembro de 1999. Ela se apresenta como um lugar onde judeus homossexuais podem discutir tópicos diversos como: direitos humanos, cidadania, união civil, judaísmo, sionismo, homossexualidade, entre outros. A lista possui mais de 200 membros, está listada no Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/judeusgaysbr/) e a associação é restrita (é preciso justificar o interesse em entrar na lista e aguardar aprovação). A lista Gays na USP foi criada em junho de 2001 e é voltada à comunidade gay da Universidade de São Paulo, tendo como objetivo principal a discussão de temas pertinentes à realidade dessa comunidade. A lista possui 106 membros, está listada no Yahoo (http://yahoo.com/ group/gaysnausp/), não é moderada e a associação é aberta. É um exemplo de lista que se estruturou não apenas por afinidades, mas, também, considerando um território geográfico de trânsito comum. Temos também, no âmbito universitário, a lista da Associação de Acadêmicos GLS do Brasil, coordenada pelo Prof. Luiz Mott e criada em janeiro de 2001. A lista tem como objetivos, entre outros, realizar o levantamento bibliográfico da produção acadêmica e literária consagrada à homossexualidade; promover discussões sobre sexualidade e homossexualidade, em particular; e denunciar e dar suporte a acadêmicos vítimas da homofobia. Ela possui 80 membros e está listada no Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/aagls/). FACULDADESJORGEAMADO 157


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Duas listas específicas para lésbicas também se destacam. A Lésbicas do Brasil foi criada em novembro de 2001 com o objetivo de criar um canal de comunicação entre militantes lésbicas, discutir e divulgar questões relacionadas à cidadania, educação sexual, cultura, entre outros. A lista possui 56 membros, está listada no Yahoo (http:/ /groups.yahoo.com/group/lesbicas–br/) e a associação é aberta. A Leslist se dirige prioritariamente a lésbicas, mas também é aberta à participação de gays, bissexuais, transgêneros e simpatizantes. Ela foi criada em janeiro de 1999, possui 323 membros, está listada no diretório Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/lelist/) e a associação é aberta. Trata–se de uma lista bastante ativa que, como a Listagls, tem assim se mantido. A Famílias Alternativas é uma lista de discussão sobre e para famílias homossexuais. Ela foi criada em março de 2002 e tem como objetivo discutir os problemas de mães lésbicas e pais gays com filhos biológicos ou adotivos e que têm um relacionamento estável. Ela está listada no Grupos.com (http://www.grupos.com.br/grupos/ familiasalternativas/) e, apesar de relativamente nova, vem crescendo e se tornando bastante conhecida. Além das listas de discussão, vários outros espaços, como os sites, fazem parte do cenário por onde circula o universo homossexual na rede. Nesse sentido, é interessante destacar que, cinco anos atrás, em 1998, um Guia Gay da Internet, organizado pelo jornalista Stevan Lekitsch, já havia sido publicado pela edições GLS (selo da Summus). Entre os sites citados no Guia, destaca–se o do Mix Brasil (www.mixbrasil.com.br), que foi criado em 1996 e, desde 1997, é acessado através do Universo Online. O site divulga notícias atuais sobre o mundo gay, traz entrevistas com pessoas famosas, novelas, galerias, salas de bate–papo, roteiro, área específica para lésbicas (Cio) e informações gerais. O Mix Brasil foi criado pelo publicitário André Fisher e é o site gay brasileiro mais conhecido. Ele foi o pioneiro e até hoje serve como referência para muitos outros sites que surgiram depois. O Glssite.net (www.glssite.net) é um site sobre educação sexual para gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e simpatizantes. Foi criado em setembro de 1996 com o objetivo de contribuir “com a construção de uma cidadania mais justa, ofertando espaços de comunicação e organização contra a homofobia”, conforme é descrito na página de apresentação do site. O Glssite abriga a Listagls. O Ursos do Brasil (www.geocities.com/ ~ubr/pghome.htm) é um site informativo sobre os famosos bears americanos, conhecidos no Brasil como ursos. Explica o que são os ursos, como identificá–los, indica páginas pessoais, traz fotos, um índice de ursos pelo Brasil, e links para outros sites sobre o assunto. Outro exemplo de site dirigido prioritariamente ao universo homossexual é o da Editora GLS (http://www.edgls.com.br/faq.html). Também a conhecida boate LEITURASCONTEMPORÂNEAS 158


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paulista A Loca possui um site na Internet (www.aloca.com.br), com sua programação, flyers de divulgação, fotos, informações sobre os djs que tocam, entre outras coisas. Um site mais recente e muito interessante é o Armário X (http://www.armariox.com.br/ ), que traz dicas e sugestões para quem quer “sair do armário”, ou seja, se assumir como homossexual. O Armário X abriga uma lista de discussão com o mesmo nome. A presença da comunidade homossexual no ciberespaço representa uma apropriação das novas tecnologias de comunicação para fins comunitários. Uma das características dessa comunidade é abrigar uma diversidade de sub-grupos que também se fazem presentes na rede. Como vimos, além dos espaços mais amplos, existem ainda espaços exclusivos para adolescentes, militantes, judeus, advogados gays etc. Também para os que estão próximos geograficamente, como os gays da USP. É importante ressaltar que não apenas o universo homossexual vem se apropriando da rede e criando seus espaços. Uma outra comunidade também nos leva a refletir sobre a relação entre a efervescência urbana e espaços institucionalizados (ou não) no ciberespaço: a agremiação formada por djs, promoters e clubbers que formam a cena da música eletrônica. MÚSICA ELETRÔNICA: DO URBANO AO VIRTUAL A cena da música eletrônica (ou o que se chamou de acid house party/cultura rave), particularmente nesses últimos cinco anos, tem se consolidado como uma cultura, como uma expressão da cibercultura, já que reflete a (re)apropriação das tecnologias contemporâneas, tendo em vista uma produção simbólica: a música eletrônica e tudo que decorre dela (como a moda, produção de softwares de e-music, sites e selos alternativos de música). Essa é uma cena que não aparece nas cidades virtuais, apesar de sua proliferação no mundo, principalmente entre os jovens que alimentam um movimento com passeatas de grande repercussão (Parada da Paz em São Paulo, com mais de 100 mil jovens; Love Parade na Alemanha, com um milhão e 500 mil pessoas; em Paris com 400 mil pessoas; em São Paulo, com 20 mil pessoas), além de eventos noturnos (techno parties, chill in, chill out, lounges), selos, listas de discussão, sites etc. Os encontros em torno da e-music impressionaram no início dos anos 90 – particularmente na Inglaterra, com festas raves reunindo de 8 a 15 mil jovens – e trouxeram, como idéias principais, defendidas pelos ravers, o dogma Plur (peace, love, unity and respect – paz, amor, unidade e respeito). O dogma Plur, defendido pelo dj Frankie Bones em NY, por volta de 1992 e incorporado pela cena dita “rave” (acid house party), recupera o discurso da contracultura dos anos 60/70 (paz e amor), dando uma tônica também ao seu caráter universal (unidade) e de tolerância (respeito). A música, “exeFACULDADESJORGEAMADO 159


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O êxtase das pistas eletrônicas

cutada” em pick ups (pratos toca–discos de vinil) por dee jays, envolve os clubbers e ravers em danças por horas a fio e a partir da música repetitiva (house, techno, trance). Ao pensarmos em cena, lembramos que essa noção é bastante discutida e busca elementos a serem aplicados a diferentes estilos de vida, particularmente ao de comunidades musicais. Straw (1999), em “Systems of articulation, logics of change: commmunities and scenes in popular music”, afirma que o senso articulado dentro de uma comunidade musical, normalmente depende de um link entre dois termos: a prática musical contemporânea e a herança musical. Ou seja, por trás dessa conexão há uma LEITURASCONTEMPORÂNEAS 160


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prática atual com informação, com background, o que reforça a idéia de que existe, nessas culturas jovens, um embasamento além–modismo. Esse embasamento norteia suas práticas com fundamento, estabelecendo uma atuação dos envolvidos em um projeto estético, cultural, mesmo que não o seja, pois nem sempre se reivindica, nessas cenas, uma direção, nem se aponta um caminho definido. Como já ressaltamos, a cena se dá a partir do link “prática musical contemporânea” e “herança musical”, implicando um movimento que tem referências anteriores, mas que se adequa e assimila novas mudanças. Cena é definida por Straw (1999, p. 17, tradução nossa) como “aquele espaço cultural em que uma escala de práticas musicais coexistem, interagindo cada uma com outra dentro de uma variedade do processo de diferenciação, e de acordo com trajetórias de mudança e auto–fertilização”2. Se a cena da música eletrônica não está presente nas cibercidades, como veremos, ela se apropria de outros espaços do ambiente virtual. No Brasil, com a verticalização da cena da e-music, sobretudo a partir de 1999 – quando as tribos se fragmentaram mais em torno das vertentes do techno/house, trance e drum and bass – foram criadas duas listas de discussão. Já havia a BR–Raves (http://www.br–raves.org), destinada principalmente ao tecno e ao house. Agora os integrantes da cena se segmentam em fóruns específicos de música trance (http://members.nbci.com/psytrancebr/) e de drumNbass (http:// spectrogirl.com/in2bass). Há ainda listas “regionais”, como a PragatecnoBrasil, que se volta mais à cena do norte e nordeste (http://groups.yahoo.com/group /pragatecnobrasil). A lista Br–Raves nasceu em 1996 em Florianópolis – SC, por iniciativa dos djs Spiceee e Spark: “de lá pra (sic) cá o que era uma simples lista de e–mail se tornou um importante ponto de referência na cena brasileira, unindo pessoas de diversas regiões do país, levando informações e promovendo o intercâmbio dos nossos DJs”, defendem os criadores na apresentação no site. Para eles, mais do que uma curiosidade, a Br–Raves veio de uma necessidade de contato entre amantes da boa música eletrônica no Brasil, até então presos a contatos na internet e viagens a outras cidades. Mas a lista foi crescendo e, segundo os criadores, cresceram também seus problemas, como o acúmulo de mensagens off–topic; usuários que não sabiam direito porque estavam ali e brigas intermináveis geradas sempre por assuntos que não tinham nada a ver com música. E o mais importante, “cresceu também o sentimento de que ali está nascendo algo que tem muito a acrescentar na cena nacional”3. O caráter comunitário e underground (emergente e não comercial) se destaca no discurso da lista que conta com cerca de 220 participantes. Interessante ainda frisar que a lista possui, além de um moderador, dez mandamentos que orientam a (net)etiqueta de seus freqüentadores. A Drum&Bass (Brazilian Drum&Bass list) foi criada em 1999, é endereçada a interessados nessa vertente e contava com 153 membros (abril de 2001). Ela está listada FACULDADESJORGEAMADO 161


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no diretório do YahooGroups, sendo aberta a novos membros e não moderada. A lista PsyTrance Brasil se define como “o lugar do mundo (para os) que gostam de Trance, Goa Trance ou Psychedelic Trance”. O proprietário é Rogério Martinelli (rogerio@chaishop.com) e trata–se de uma “lista de troca de informações sobre trance, Raves, psychedelic Parties, produções de Trance, GoaTrance e Psychedelic Trance”. A quantidade de membros não foi revelada pelo proprietário; mas sabe–se que gira em torno de 300 pessoas. Além de se voltar à cena rave (festas fora da cidade, em sítios e praias), a lista gira em torno do psy trance – um gênero musical eletrônico. A lista PragatecnoBrasil (http://groups.yahoo.com/group/pragatecnobrasil), criada em 28 de agosto de 2000, é uma das mais recentes. Ligada ao grupo Pragatecno (grupo de djs com núcleos em Salvador, Recife, João Pessoa, Maceió, Fortaleza e Belém do Pará), se volta para a cena “da música eletrônica underground – Norte, Nordeste, Brasil, Mundo. Techno, Trance, House, Techouse, Trip Hop, Dub, Ambient, Illbient, Jungle, DrumNbass, Downtempo, Rave, Club, Fashion, Music Softwares, Djing, Cyberculture etc”. Com 250 membros, conta com djs, interessados, promoters e agitadores culturais. É uma lista aberta e sem moderação. Importante frisar que essa é uma das poucas listas não definida por vertente. É normal, portanto, aglutinar pessoas que também participam de outras listas mais verticalizadas. Na PragatecnoBrasil se discute todos os temas vinculados à música eletrônica. Uma lista semelhante foi a criada em Brasília, embora mais voltada às questões da e-music naquela cidade. São poucas as listas “oficiais”. Talvez a única experiência tenha sido a lista Rave, da Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas (Fapeal), na url www.fapeal.br/listas, criada em 1999 e hoje extinta. No geral, as listas confirmam a hipótese de que a formação de tribos em torno da e-music não acontece de maneira ampla, mas em torno dos estilos musicais e de particularidades regionais: o espelho dessa segmentação aparece no próprio ciberespaço através das listas específicas, reforçando a noção de experiência (com)partilhada. O site de maior referência à cena da música eletrônica brasileira – e o pioneiro – foi o Rraurl (www.rraurl.com), que dispõe de notícias, reviews (resenhas de festas e lançamento de cds e vinis) além de um guia que informa onde acontecem os eventos, classificados em fixos (programações permanentes de bares e clubs), raves (festas em sítios e praias) e festas (techonoparties eventuais, tanto em clubes quanto em bares ou galpões). Com cerca de um ano, o guia do Rraurl foi obrigado a informar sobre os eventos dividindo os mesmos por região e cidades brasileiras, dado o crescimento do movimento e articulação nacional de novos núcleos. O site dispõe ainda de um fórum, utilizado basicamente para o debate de pequenas polêmicas. Um outro dado de uso da rede, nesse contexto, é a descentralização das informaLEITURASCONTEMPORÂNEAS 162


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ções, que acontecem em dois níveis: pela colocação de páginas dos núcleos ou cenas “locais” e pela criação de listas regionais. O Pragatecno produz suas páginas na url www.pragatecno.com.br. A cena de Florianópolis e Santa Catarina está presente em www.potentialvalleys.com/flundi. O Núcleo Undergroove de Fortaleza cria o site www.undergroove.com.br; o BUM (Brazilian Underground Movement) do Rio de Janeiro aparece em bummusic.w3.to, hoje desativado. Brasília cria três sites: pagina.de/ tuntistun, www.pangeia.com.br/bsbnight e www.distopia.com/dsb. Destacamos também o site de um movimento da periferia de São Paulo, chamado de CyberManos, na url members.tripod.com/cybermanos e um ex–fanzine impresso (Cena Brasil) que ganha sua versão na net: www.cenabrasil.com.br. Na internet também encontramos inúmeros sites de projetos de e-music, agências de djs e associações (Zootek, primeira cooperativa de música eletrônica em listen.to/ zootek), além de revistas especializadas como a DJ World (www.djworld.com.br), hoje sem publicação, e a recente Beatz, e colunismo (www.erikapalomino.com.br). A maioria desses sites–portais usam atividades de marketing para sua auto–promoção (malling– list informando sobre novidades no site, promoção de concursos, brindes para quem participa de enquetes, parcerias com clubes etc).

Manufatura e alta tecnologia no trabalho do dj

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Se elegermos a “cultura jovem” – uma das mais presentes no cotidiano das grandes cidades urbanas – a relação entre cibercidades e efervescência nas cidades reais é praticamente invisível. O mesmo acontece se considerarmos estilos de vida, como os das culturas gay e clubber. É perceptível uma lógica de exclusão, até mesmo do ponto de vista técnico, pois os projetos de cibercidades não oferecem estruturas abertas à interatividade, à instalação de espaços ciber–urbanos para essas culturas emergentes, a partir delas mesmas. É preciso pensar as cibercidades como uma articulação entre o território e a inteligência coletiva, e conectar os espaços de inteligência coletiva a essas cibercidades, ou propô–los como espaço público dentro das mesmas, para que elas resgatem a vivacidade urbana. É necessário ir além da mera representação, da metáfora, para que a interconexão constitua a humanidade em um “contínuo sem fronteiras”, como afirma Lévy, tecendo um universo por contato. A presença de estilos de vida alternativos no ciberespaço, tanto advindos do universo homossexual, como da cena da música eletrônica, entre outros, são anteriores aos projetos de cibercidades. Por isso mesmo, os projetos de cibercidades deveriam incorporar esses estilos de vida e sua efervescência (já presentes tanto nas cidades reais como no ciberespaço), criando instâncias de participação. Como isso não é feito, fica caracterizada a distância de conteúdo entre as cidades reais e as cidades virtuais, como se fossem duas vertentes não conectáveis. No entanto, apesar dessa realidade, tanto o universo homossexual como a cena da música eletrônica vêm se impondo como prática social e se apropriando do ciberespaço, como um espaço, uma ambiência de extensão paras as prática sociais. Isso, através da criação de fóruns, sites e listas de discussão que fortalecem seus conceitos e promovem maior interação entre seus membros – paralelamente aos projetos oficiais, as cibercidades. O conjunto de sites, listas de discussão e portais que apresentamos, mostra, além da efervescência de culturas emergentes nas grandes cidades urbanas, uma realidade, digamos, já amadurecida. E essa realidade poderia facilmente ser incorporada pelos projetos de cibercidades: a experiência já está colocada e com público. Enfim, a presença marcante do universo homossexual e da cena da música eletrônica no ciberespaço pode ser interpretada como um movimento de resistência à exclusão social, de regeneração do espaço público perdido e de apropriação das novas tecnologias de comunicação. Se não existe o poder, instaura–se a potência, a vontade de “estar junto”, a socialidade dos agrupamentos urbanos que, com a novas tecnologias, passam do espaço urbano para o virtual – e vice–versa. Se as praças silenciaram, outros espaços se encarregam de tentar cumprir e atualizar seu papel. LEITURASCONTEMPORÂNEAS 164


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NÚCLEOHUMANIDADES

GLOSSÁRIO After–hours – Programação de clubes que tem início normalmente às quatro, cinco da manhã e se estende até o final da manhã. Ambient Music – Música basicamente de texturas, sem batidas, com notas longas e etéreas e melodia lenta (quando aparece algum ritmo está desacelerado), não voltada para as pistas. Usada em situações chill out, relaxamento. Uma das característica desse estilo é, às vezes, a citação de sons do ambiente (vento, mar, vozes...). Há o Illbient que é a versão dark, negra, sombria, da Ambient Music. Big Beat – Acelerando as batidas quebradas do hip hop e as vezes fundindo com as do funk, esse estilo pode incluir distorções de riffs de guitarras. É o som mais acessível da eletrônica e se assemelha ao rock. BPM – Batidas por minuto, a velocidade do ritmo. Chill In – Esquentamento. Encontro para ouvir música eletrônica antes das festas ou saída para os clubes. Chill Out – Relaxamento. Ambiente com música menos acelerada, um pós–agitação das pistas de dança. Cultura Club – Conjunto de manifestações associadas à cultura nos clubes noturno de dança (moda; djs, disco e house music). Faz–se uma associação dessa cultura, em suas origens, com a época Disco, nos anos 70. Djing – A ação ou conjunto de técnicas do dj (scratch, mixar, remixar, back–to–back etc). Dub – Originado na Jamaica, nos anos 60, destaca a montagem e a técnica como fundamentais para o resultado da música. É a tecnologia definindo a estética. O Dub eletrônico utiliza timbres do Reggae, com batidas lentas, reverberadas e efeitos etéreos. O efeito delay (distorção que faz com que o som ganhe uma textura de espacialidade, de trimidensionalidade) é um elemento importante do Dub eletrônico. Drag–queens – Homens que se vestem de maneira estilizada, como mulheres. É comum a presença de drag em casas noturnas, se divertindo ou distribuindo flyers. Electronica – Estilo gerado pela eletrônica, mas sem uma definição específica. Normalmente se refere a toda uma produção de um grupo que prefere não se definir por alguma vertente em particular. Fanchonas – Mulheres de aspecto viril e hábitos masculinizados. Flyers – Filipetas, panfletos “voadores”, repassadas de mão em mão. A produção dos flyers é uma atividade séria na cena da música eletrônica e do universo gay, repassa a idéia da festa através da programação visual. Gabba – É o estilo mais hardcore (pesado e rápido) da eletrônica. Baseado na batida House e Techno, o Gabba chega a 200 bpm´s. GLS – Sigla crida em São Paulo, em 1994, para determinar o público de um festival de cinema e vídeo dirigido aos gays, lésbicas e simpatizantes. House – Nascida em Chicago, em 1986, esse estilo saiu da fusão de elementos da soul music com a disco e batidas das baterias eletrônicas. Daí, surgem sub–gêneros como o Garage (com vocal gospel), e o Deep House (o mais elegante, com linhas melancólicas e minimalistas acima das batidas), o Jazzy House (batidas com um instrumento solo), dentre outros (Acid House, Disco House, Tribal Hous, French Housee). 110 a 128 bpms. ISDN (Integrated Services Digital Networks) – Rede digital de serviços integrados. Tecnologia que integra voz e dados, com taxas altas de velocidade transferência de arquivos em redes de computadores. Jungle/DrumNbass – Saído dos guetos negros de Londres, em 1992, esse estilo associa os baixos do reggae, com as batidas do hip hop, e às vezes funk, com o jazz. O DrumNbass, menos pesado, mistura as linhas de baixos a uma temática mais jazzy, menos quebrada, com vocais minimalistas. Em torno de 160 bpms. Live P A (Live Power Amplification) – É a performance, a apresentação ao vivo, do grupo ou de músico eletrônico em clubes, festas e raves. Mixar – Misturar. Na técnica do dj, significa juntar as batidas de duas ou mais músicas na mesma velocidade, buscando uma fusão ou uma passagem de um vinil, ou cd a outro, de uma música com a outra. Simpatizantes – Termo usado no Brasil para indicar “gay friendly”, pessoas que convivem bem com o universo gay. Techoparty (technoparties) – É a festa com música eletrônica em clubes e/ou em área urbanas da cidade, em ambientes fechados; a rave seria em ambientes abertos, ou em galpões fora do perímetro urbano. Techouse – Sobreposição da batida techno sobre a house. Vertente nascida recentemente (1997). Do house,

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CIDADE, HOMOSSEXUALIDADE E MÚSICA ELETRÔNICA: DO ESPAÇO URBANO AO ESPAÇO VIRTUAL

conserva, às vezes, curtas linhas melódias e a batida com hithat e claps (pratos e aplausos); do techno conserva as batidas 4 por 4. Por volta de 130 bpms. Techno – Originado em Detroit, no início dos anos 80. Derrick May, Kevin Saunderson e Juan Atkins fazem uma fusão entre o som de Kraftwerk e batidas funks de George Clinton. O resultado é uma batidas seca, repetitiva, 4 por 4, sem vocais. 130 a 140 bpms. Trance – Criado na Alemanha, é uma derivação do tecno. Texturas se sobrepõem às batidas e o baixo tem timbre sintetizado e menos seco. Som viajante. O Hard trance acelera as batidas para 150 bpm e o psy trance (de 138/140 bpms) aumenta as camadas de texturas e efeitos sonoros e mistura com sons étnicos indianos. Trip Hop – É o blues do tecno. Melodias triste, com batidas desaceleradas, geralmente cantadas. A base é o hip hop, só que com efeitos lisérgicos e as vezes até de distorção. A voz pode ser processada por filtros e parecer mecanizada. Sua origem é Bristol (Reino Unido) em 1991. Em torno de 65 a 85 bpms. Techno pop – Som baseado nos anos 80 e que teve como expoente o Depeche Mode e o New Order. Música com letras, numa referência à canção tradicional. É pop, bastante dançante. Ursos – Homossexuais de aparência mais máscula, normalmente mais gordinhos e peludos.

NOTAS 1

O número de membros das listas citadas refere–se ao mês de agosto de 2003. “is that cultural space in which a range of musical practises coexist, interacting with each other within a variety of process of differentiation, and according to widely varying trajectories of change and cross–fertilization”. 3 Conforme texto no site da lista 2

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NÚCLEOHUMANIDADES

Créditos Folha de rosto: Gravura anônima holandesa. Cidade da Bahia. Séc. XVI. Foto do Expediente capturada do site www.taschen.com Foto do Índice: capturada do site www.digitalblasphemy.com Torre de Babel. Pieter Brueghel (1563-67). Pg. 8 Vajra-Mandala Lamaico da China. Reprodução. Pg. 19 A Escola de Atenas (1519-1510). Rafael. Vaticano. Pg. 21 Criação de Adão. Michellangelo. Capela Sistina. Vaticano. (1511-12). Pg. 24 Xilogravura alemã. Autor desconhecido. (1530). Pg. 26 Quarto estágio de meditação: o centro em meio às circunstâncias. China. s/d. Pg. 28 Pintor de Nazzano. Taça. 400-350 a. C. Museu de Villa Giulia, Roma. O Rei Príamo caído ao chão ameaçado por um guerreiro. À esquerda Afrodite protege Menelau, Neoptólemos segura pela perna o menino Astíane e o sacode no ar. Pg. 31 Narrativa visual asteca. Museu Britânico. Londres. Pg. 32 Foto de Giovana Dantas, 2003. Pg. 33 Mesquita e Mercado na cidade de Djenné em Mali – África. Pg. 34 Marrakesh – cartão postal, 2000. Pg. 36 Reprodução da revista do The New York Times, 2001. Pg. 37 Gráfico do NUH. Pg. 39 Reprodução da internet, 2003. Pg. 43 Personagens do Carnaval de Veneza. Itália. Fulvio Roiter, 1983. Pg. 45 Foto de Aristides Alves. Máscaras da Bahia, 2000. Festa do Divino, Bom Jesus da Lapa - BA. Pg. 49 Tipos étnicos no traço de Peter Spier, 1980. Pg. 57 Site da mavinfoundation (Organização pela mescla de etnias) www.mavin.org. Pg. 59 Site da MTV China www.mtv-china.com. Pg. 63 Kama Sutra. Índia. Ano 400. Pg.74 Índios e câmera de cinema. Roraima. Expedição do Marechal Rondon, s/d. Pg. 78 Cartaz de cinema. Brasil, 1926. legenda citada do livro O Papalagui - Comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa, nos mares do sul. São Paulo, Editora Marco Zero, s/d. Pg. 78 Filme de Peter Greenaway. O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, 1989. Pg. 88 Filme de Peter Greenaway. O bebê santo de Mâcon. Idem. 1993. Pg. 94 Filme de Peter Greenaway. O livro de cabeceira, 1995. Pg. 95 Pingentes em ouro da H.Stern. Catálogo Coleção Mãe de Samba, 2000. Foto de Greg Vanderlans. Pg. 101 Observação direta de cadáveres. Desenho de Leonardo Da Vinci. Séc. XVI. Pg. 107 Foto de Sora Maia. Timbaleiros. Carnaval de Salvador, 2000. Pg. 111 Foto de Rejane Carneiro. Desfile do Ilê Aiyê. Carnaval de Salvador.2000. Foto de Rejane Carneiro. Pg. 117 Foto de Rejane Carneiro. Daniela Mercury e dançarinas do Ilê Aiyê. Salvador. 1998. Foto Rejane Carneiro. Pg. 121 Foto de Rejane Carneiro. Panorama Percussivo Mundial - Percpan. Salvador, 1995. Pg. 126 Downtown - http://www.unc.edu/Üharaszti. Pg. 131 Baudelaire por Gustave Courbet - 1847 - créditos - http://www.laurentia.com/baudelaire/cadres/peint-courbet1847.htm. Pg. 140 Foto de Aline Andrade Queiroz, estudante de jornalismo das Faculdades Jorge Amado. Igreja da Barroquinha. Salvador - Ba, 2003. Pg. 142 Foto de Ana Dumas. Parada do Orgulho Gay de São Paulo, 2000. Pg. 155 Foto de Doug Young. Festa eletrônica em clube de Berlim, 1998. Pg.160 Foto de Paul Box. John Kelly of Fandango, The Lokota, Bristol, 1998. Pg.160

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Esta revista foi produzida em outubro de 2003. Foi utilizado Cartão Supremo Duo Design de 250 gr/m2 na capa e papel Alta Alvura de 90 gr/m2 no miolo. Fotolitos, impressão e acabamento pela Gráfica Santa Helena


Uma escola em que o aluno não apenas assimile os conteúdos, mas saiba ler o mundo e experimentar o prazer do conhecimento, esta é a proposta do Núcleo Humanidades. Para isso, é preciso sair da condição de reprodutor de teorias e técnicas para a condição de agente pensante. Para implicar o aluno neste processo, o Projeto Humanidades apresentado nesta revista parte de 4 eixos temáticos, próprios da experiência da cultura - Identidades - Narrativas Mercadorias - Cidades. A estratégia consiste em diluir fronteiras entre áreas de conhecimento para uma formação integral do estudante.

HUMANIDADES

ISSN ISSN--1678-1716 1678-1716


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