AO POVO: carta aos governantes piauienses

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Carta aos governantes do Piaui

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orque devemos preservar a história de um lugar? A ideia de pertencimento e cuidado perpassa o espaço tempo. Essa concepção se baseia na filiação a grupos, nas trajetórias individuais e dentro do modo de viver coletivamente dentro do constituído espaço. A identificação pessoal com o local surge através de diferentes experiências do povo com seu lugar, e tende a ser extremamente mutável. Sendo assim, como podemos definir a identidade de um povo ou de um lugar? Como um aspecto pode ser inerente a diversos grupos com vivências ambíguas e ainda assim captar sua essência? Talvez seja impossível. Diferente dessa identidade embrionária que surge naturalmente e se molda em sintonia com o tempo, a identidade de um local também pode ser moldada. Podem-se desmontar grupos, criar narrativas, esconder a história, tudo com o objetivo de se conceder uma imagem as vezes falha e distante da realidade. No Brasil, por exemplo, o regime estadonovista procurou definir a identidade do país para promover políticas de unificação e patriotismo cultural. O problema é que foi decidido que o objeto de valorização seria os elementos de origem da nação portuguesa, a produção artística barroca e afins, tudo isso em detrimento da real origem do Brasil, a cultura dos povos indígenas e posteriormente dos povos de matriz africana, essas que foram grandes responsáveis pela miscigenação brasileira. O risco de se definir uma identidade é que interesses podem se impor. Lá fora, o Brasil é conhecido como o país do futebol e do carnaval, e isso está enraizado na mente das pessoas desde o século passado. Mas, será que somos só isso? A resposta para essa pergunta é simples e direta: NÃO. Nós somos um país muito mais diverso. Cada região tem sua cultura. Cada estado tem sua tradição. Cada cidade tem seus gostos. Cada povo tem sua história. E, é isso que forma essa unidade que é o Brasil. 2


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Nesse contexto, entra o perigo que é ter uma história única. Chimamanda Adichie, em uma palestra a TED Talks, relata uma história de sua infância. No seu discurso ela fala que quando pequena convivia com um garoto chamado Fide, que trabalhava para a sua família, e tudo que ela sabia sobre ele e seus pais era que eram muito pobres. Chimamanda chegou a essa conclusão através de conversas que tinha com seus pais como: “termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?”. Um dia, a pequena Chimamanda e sua família foram visitar a aldeia de Fide. Ao chegarem lá, ela se depara com um cesto que o irmão do garoto havia feito e se questiona sobre como nunca imaginara que alguém da família de Fide fosse capaz de criar algo. “tudo o que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado impossível para mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha história única”, relata a escritora. Assim, pegar todo o contexto de uma pessoa, de um povo, de uma nação e reduzir a um só aspecto é o que Chimamanda chama de o perigo da história única. E vocês, Senhores Governantes, qual a sua história única sobre o nosso Piauí, sobre o nosso povo e seus costumes? Por que reprimir o que um território tem de mais rico como o próprio povo? No estado do Piauí pouco se conhece sobre seus nativos. Será que o povo “Mafrense” sabe que está sendo denominado por um genocida? O processo de ocupação do território piauiense culminou no apagamento da história e da cultura de povos nativos indígenas. A aventura dos bandeirantes que objetivava a paz resultou num rastro de sangue rumo aos campos distantes do interior piauiense. Se esse é o sentimento de pátria procurado, talvez deva ser revisto. A grande questão é que a história que é contada talvez não seja a história correta. Ou talvez não seja história que querem ouvir. 3


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Mas nós, Senhores Governantes, filhos do Piauí, queremos saber de onde viemos; como chegamos até aqui; o que é nosso por direito. Nós não podemos exigir que pessoas de outros locais do país ou até mesmo do planeta, conheçam e valorizem a nossa trajetória quando nem nós mesmo conseguimos reconhecer isso. Para que esse ideal se torne possível, nós precisamos vivenciar o que é nosso. Nós queremos ouvir as histórias de como a as primeiras edificações foram pensadas para o nosso território. Como a casa de Vaqueiro (Roceiro), que tinha piçarral no seu entorno. Queremos ouvir sobre como os espaços eram divididos no terreno de chão batido, e como se adequavam a todas as suas necessidades. Desde os locais para armar as redes de tucum e colocar o colchão de palha, até os espaços reservados para o cultivo de ervas e chiqueiro para os caprinos. Esse é o tipo de história que faz parte da nossa trajetória e que deveria refletir nas escolhas de hoje em dia. Queremos saber das casas de fazenda, da capela, das instalações sanitárias desenvolvidas na época. Das chamadas “fazendas de gado” que eram os lares de vaqueiros que residiam no Piauí, e em como essa tipologia e partido são características que refletem nas construções de hoje em dia. Afinal, será se sabemos a importância que a figura do vaqueiro teve para a construção dessa identidade não só arquitetônica como de um povo? Se sabem como o trabalho deles e a pecuária influenciou o modo de vida rural piauiense em vários aspectos, na qual se destaca a alimentação baseada no consumo da carne seca que hoje em dia temos como comida típica, o consumo das águas das cacimbas, nas vestimentas do homem do campo e dos vaqueiros, nos utensílios advindos do couro e até mesmo na caracterização da linguagem e principalmente na ocupação territorial do Piauí? Em como as casas que davam origem a fazenda eram rusticas, sendo utilizado na estrutura palma de carnaubeira, paredes em taipa e o telhado em duas águas e seus elementos se resumiam a acessórios feitos da própria carnaúba e posteriormente casas feitas de babaçu com amarração de palha. Materiais vernáculos que utilizamos até os dias de hoje em composições de grandes arquiteturas modernas que querem remeter ao estilo mais “rústico” mas sem saber das influências que esses materiais carregam, do seu peso e de sua história construção da identidade do povo piauiense. 4


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Não, senhores governantes, em sua maioria a população piauiense não sabe da sua própria história, não conhece seu próprio povo e justamente por isso a maioria não carrega consigo o sentimento de pertencimento ao local. A perca de afeto ao seu passado está refletida na arquitetura dos dias de hoje que exalam superficialismo e apenas replicam edificações já existentes. A arquitetura contemporânea não só piauiense, mas a brasileira no geral padece um pouco do amor ao inútil, ao simplesmente decorativo. E assim, temos o cenário que fica evidente não só capital do Piauí como por todo o estado, onde as antigas edificações que ainda sobrevivem e carregam uma história estão sendo demolidas em sua maioria, dando lugar a grandes edificações modernas e contemporâneas onde sentimento da coletividade humana é substituído pelo individualismo exagerado. A coletividade é formada por indivíduos, mas o individualismo destrói a coletividade. O reflexo disso está ligado a perca do afeto da população ao pouco que se conhece do seu passado, a falta de identificação e pertencimento ao local e ai está o motivo de tanta desvalorização não somente da nossa arquitetura mas também como da nossa história e cultura que são de extrema importância para a construção da identidade de um povo.

_Ana Élida Damasceno, João Avelino, Thainá Araújo.

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