VOZES DA LIBERDADE

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VOZES DA LIBERDADE

MOSTRA POÉTICA COMEMORATIVA DO 25 DE ABRIL - 2022


BOCAGE

1765 – 1805 2


Liberdade, onde estás? Quem te demora Liberdade, onde estás? Quem te demora? Quem faz que o teu influxo em nós não Caia? Porque (triste de mim!) porque não raia Já na esfera de Lísia a tua aurora? Da santa redenção é vinda a hora A esta parte do mundo que desmaia. Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia Despotismo feroz, que nos devora! Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo, Oculta o pátrio amor, torce a vontade, E em fingir, por temor, empenha estudo. Movam nossos grilhões tua piedade; Nosso númen tu és, e glória, e tudo, Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

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ANTERO DE QUENTAL

1842 - 1891 4


Evolução A Santos Valente

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo, Tronco ou ramo na incógnita floresta... Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; Ou, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem - e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro... Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente à liberdade.

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FERNANDO PESSOA

1888 - 1935 6


Liberdade Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada, Estudar é nada. O sol doira Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. 7


Quanto é melhor, quando há bruma, Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...

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JOSÉ GOMES FERREIRA

1900 - 1985 9


Termidor errado (25 de Novembro de 1975)

V (Chama que nenhum vento apaga...) A Revolução parece às vezes que pára ou que recua tornando mais funda a escuridão e a noite menos clara -como se qualquer Mágica Mão apagasse o sol dentro da lua. Mas só os medrosos temem que a viagem para a Manhã do Renovo com limpidez de sêmen termine? - antes que cheguemos à paisagem sonhada para o povo por Lenine. Não. A nossa Revolução ainda não acabou 10


nem tão cedo acaba - como no alto mar não gela nenhuma vaga ao sol de Verão. Não. A nossa Revolução continuará, chama que nenhum vento apaga - enquanto no coração dos ricos-senhores doer a ameaça de os cavadores vermelhos (o tojo inútil, os estevais, o rasto das lebres e dos coelhos) - guiados pelo malogro, o asco e as esperança da sombra de fogo da Voz do Vasco colérica e doce. […]

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MIGUEL TORGA

1907 - 1955 12


Liberdade Liberdade, que estais no céu… Rezava o padre-nosso que sabia, A pedir-te, humildemente, O pio de cada dia. Mas a tua bondade omnipotente Nem me ouvia. Liberdade, que estais na terra… E a minha voz crescia De emoção. Mas um silêncio triste sepultava A fé que ressumava Da oração.

Até que um dia, corajosamente, Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, Saborear, enfim, O pão da minha fome. 13


Liberdade, que estais em mim, Santificado seja o vosso nome.

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JORGE DE SENA

1919 – 1978

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Não hei-de morrer sem saber Não hei-de morrer sem saber Qual a cor da liberdade. Eu não posso senão ser Desta terra em que nasci. Embora ao mundo pertença

E sempre a verdade vença, Qual será ser livre aqui, Não hei-de morrer sem saber. Trocaram tudo em maldade, É quase um crime viver.

Mas embora escondam tudo E me queiram cego e mudo, Não hei-de morrer sem saber Qual a cor da liberdade.

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SOPHIA DE MELLO BREYNER

1919 - 2004 17


25 de abril

Esta é a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio E livres habitamos a substância do tempo

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Revolução Como casa limpa Como chão varrido Como porta aberta

Como puro início Como tempo novo Sem mancha nem vício

Como a voz do mar Interior de um povo Como página em branco Onde o poema emerge

Como arquitectura Do homem que ergue Sua habitação

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JOSÉ SARAMAGO

1922 - 2010 20


Ouvindo Beethoven

Venham leis e homens de balanças, Mandamentos daquém e dalém mundo, Venham ordens, decretos e vinganças, Desça o juiz em nós até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade, Brilhe, vermelha, a luz inquisidora, Risquem no chão os dentes da vaidade E mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam, peçam dedos, Para sujar nas fichas dos arquivos, Não respeitem mistérios nem segredos, Que é natural nos homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte, Relógios a marcar a hora exacta, Não aceitem nem votem noutra arte 21


Que a prosa de registo, o verso data.

Mas quando nos julgarem bem seguros, Cercados de bastões e fortalezas, Hão-de cair em estrondo os altos muros E chegará o dia das surpresas.

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NATÁLIA CORREIA

1923 - 1993 23


Queixa das almas censuradas Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu 24


levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro […]

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JOSÉ AFONSO

1929 - 1987 26


Traz outro amigo também Amigo Maior que o pensamento Por essa estrada amigo vem Não percas tempo que o vento É meu amigo também

Em terras Em todas as fronteiras Seja benvindo quem vier por bem Se alguém houver que não queira Trá-lo contigo também

Aqueles Aqueles que ficaram (Em toda a parte todo o mundo tem) Em sonhos me visitaram Traz outro amigo também

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JOSÉ LUÍS TINOCO

1932 28


Madrugada

Dos que morreram sem saber porquê Dos que teimaram em silêncio e frio Da força nascida do medo Da raiva à solta manhã cedo Fazem-se as margens do meu rio.

Das cicatrizes do meu chão antigo E da memória do meu sangue em fogo Da escuridão a abrir em cor De braço dado e a arma flor Fazem-se as margens do meu povo

Canta-se a gente que a si mesma se descobre E acordem luzes arraias Canta-se a terra que a si mesma se devolve Que o canto assim nunca é demais

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Em cada veia o sangue espera a vez Em cada fala se persegue o dia E assim se aprendem as marés Assim se cresce e ganha pé Rompe a canção que não havia

Acordem luzes nos umbrais que a tarde cega Acordem vozes, arraiais Cantam despertos na manhã que a noite entrega Que o canto assim nunca é demais

Cantem marés por essas praias de sargaços Acordem vozes, arraiais Corram descalços rente ao cais, abram abraços Que o canto assim nunca é demais O canto assim nunca é demais.

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MANUEL ALEGRE

1936 31


As mãos Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema - e são de terra. Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas, mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade.

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ARY DOS SANTOS

1936-1984 33


As portas que abril abriu Era uma vez um país onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz dos povos à beira-terra. Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. Era uma vez um país onde o pão era contado onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado 34


onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado onde suava o ceifeiro que dormia com o gado onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado onde morria primeiro quem nascia desgraçado. […]

Ora passou-se porém que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo.

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MARIA TERESA HORTA

1937 36


Resistência Ninguém me castra a poesia se debruça e me põe vendas censura aquilo que escrevo nem me assombra os poemas

Ninguém me paga os versos nem amordaça as palavras na invenção de voar por entre o sonho e as letras

Ninguém me cala na sombra deitando fogo aos meus livros me ameaça no medo ou me destrói e algema

Ninguém me aquieta a escrita na criação de si mesma nem assassina a musa que dentro de mim se inventa 37


EDUARDO GALEANO

1940 - 2015 38


Pássaros proibidos Em 1976… “Nos tempos da ditadura militar, os presos políticos uruguaios não podiam falar sem licença, assoviar, sorrir, cantar, caminhar rápido

nem

cumprimentar

outro

preso.

Tampouco podiam desenhar nem receber desenhos

de

mulheres

grávidas,

casais,

borboletas, estrelas ou pássaros. Didaskó Pérez, professor, torturado e preso por ter idéias ideológicas, recebe num domingo a visita de sua filha Milay, de cinco anos. a filha traz para ele um desenho de pássaros. Os censores o rasgam na entrada da cadeia. No domingo seguinte, Milay traz para o pai um desenho de árvores. As árvores não estão proibidas e o desenho passa. Didaskó elogia a obra e pergunta à filha o que são os pequenos círculos coloridos que aparecem nas copas das 39


árvores, muitos pequenos círculos entre a ramagem: – São laranjas? Que frutas são? A menina o faz calar: -Shhhh. E em tom de segredo explica: – Bobo. Não está vendo que são olhos? Os olhos dos pássaros que eu trouxe escondidos para você”.

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SÉRGIO GODINHO

1945 41


O dia incomum de um exilado vivendo então em Vancouver Era muito longe, ou seja no Pacífico Notícias de jornal, confusas: tanques ocupam a praça central de Lisboa Digo-me: mal eles sabem que se chama Rossio mas digo-me também: se é a revolução daquele do monóculo pouco tenho a esperar Depois espanto-me: como é possível que libertem assim sem mais nem menos os presos políticos e prometam a autodeterminação de colónias economicamente tão preciosas? 0 povo saiu à rua e foi isso que mudou tudo, explicam-me então 42


pelo telefone. No dia em que abalei para aqui ficar deixei sem remorsos: a minha horta cujos legumes tantas vezes protegi um trabalho que tanto suspeitava amar e os amigos que, querendo ser generosos, me disseram: «Vai, vais ver que não te arrependes» Esquece-se muita coisa... a força de ver caras novas não sei se me lembro das antigas embora as veja tão bonitas e disponíveis na memória e por vezes em fotografia. (Inédito)

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Outras propostas: - Jorge de Sena : https://www.youtube.com/watch?v=YuXUSxs8SOg&t=24s - Saramago, Ouvindo Beethoven: https://www.youtube.com/watch?v=chXjLn_Alzc&t=26s - Maria Teresa Horta: https://www.youtube.com/watch?v=N6TAqRSTv5I&t=20s - Sophia, 25 de abril: https://www.youtube.com/watch?v=C1sUjg_Q9OM&t=15s - Mário Henrique-Leiria, A Nêspera: https://www.youtube.com/watch?v=_mokRwblkmw&t=35s - Eduardo Galeano, Pássaros proibidos: https://www.youtube.com/watch?v=Yvlya2PcHyI&t=43s - Carlos Marques, “Trangulo Mangulo da fome”, de Carlos Marques https://www.youtube.com/watch?v=mg99gDJI630&t=57s - Libertar a malta: https://www.youtube.com/watch?v=7X6MZQy4lJI&t=120s

Nota: os t extos mantêm a grafia original.

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