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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Linha de Pesquisa: Arte. Experiência. Linguagem

Ana Cristina Alves

Seminário Avançado de Processos Artísticos Contemporâneos Prof.ª Dr. ª Cristina Salgado Prof.ª Dr. ª Malu Fatorelli

2019


Os trabalhos que aqui serão discutidos foram desenvolvidos durante o Seminário Avançado de Processos Artísticos Contemporâneos realizado pelo curso Processo e Linguagem, organizado em dois tópicos: I - Palavras com espaço e II - A face fascinante do irrepresentável.

Designíos iniciais

Nas experiências artísticas desenvolvidas ao longo do Tópico I busco conciliar o interesse da minha pesquisa de doutorado às propostas colocadas pela disciplina, sendo assim, nessa primeira fase, os trabalhos apresentados serão discutidos com base na seguinte reflexão do escultor e desenhista norteamericano Richard Serra:

“Inventar métodos sobre os quais eu não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ele se torne conhecido para mim, para então questionar a autoridade daquela experiência e assim questionar a mim mesmo”1.

O trecho supracitado consta no capítulo o PESO, do livro “Escritos e entrevistas, 1967-2013”, no qual Serra descreve uma de suas recordações mais antigas: a inauguração de um navio. Para o artista, a memória dessa experiência, vivenciada aos quatro anos de idade, ainda guarda uma sensação de espanto e admiração. Ao longo de sua narrativa, Serra nos fala sobre a relação entre a velocidade e o peso - no momento em que toda a proteção foi removida e o navio começa a se mover para baixo, em direção ao mar - “o navio havia passado por uma transformação: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e à deriva”2. Segundo o artista, toda a matéria-prima de sua investigação está contida no reservatório dessa lembrança. Ao observar as relações entre o espaço e o “peso” nas experiências do artista entramos em 1

SERRA, Richard. Escritos e entrevistas, 1967-2013, p. 149. São Paulo: IMS, 2014. Org. Heloisa Espada 2 Idem.: p. 147.


contato com o conteúdo de suas experiências. Nunca presenciei a inauguração de um navio, mas visitei a exposição de Richard Serra, no Instituto Moreira Salles, em 2014. A leitura do texto de Serra me fez recordar os seus desenhos negros, sobretudo de “Double Rift #6” (2013) no qual, sobre uma extensa superfície de papel (200 x 600 cm), o artista desenha um retângulo negro semicortado por duas fendas triangulares e obtusas que se estendem da base até o meio da área retangular do suporte. Em termos de acontecimento, o meu encontro com o desenho de Serra guarda uma memória cujo “peso” possui um valor imponderável. Ao pensar o processo construtivo a partir da reflexão de Serra, percebo mais nitidamente o quanto a relação entre “inventar métodos sobre os quais eu nada sei” e a “experiência direta” com materiais variados oscila entre a busca, o encontro e a surpresa.

A natureza dos feitos é uma questão de cultura

Em 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções destruiu o maior museu de história natural da América Latina: O Museu Nacional do Rio de Janeiro, a mais antiga instituição científica do país e que reunia um dos maiores acervos de antropologia e história natural com mais de 20 milhões de itens. A instituição ocupava um prédio histórico, o palácio de São Cristovão, antiga residência da Família Imperial, na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio de Janeiro. Na ocasião da tragédia, eu estava envolvida com experiências no campo da gravura e, também, com estudos teóricos a respeito da condição da imagem enquanto “presença de uma ausência”. Não obstante a miríade de conceitos que atravessam o meu processo construtivo, o interesse pelo caráter indicial das imagens é uma constante. Nesse sentido, diante da perda do acervo do Museu Nacional eu só conseguia pensar nos rastros das coisas perdidas como “presença de uma ausência”, e nesse sentido, a condição do museu se aproximava da própria condição da imagem. Sendo assim, surgiu o interesse em elaborar um inventário de rastros das imagens “perdidas”, como um trabalho de resgate (ficcional) do acervo do museu. A partir do que vou chamar de


arqueopoética, dei início a elaboração de um método voltado para práticas de rememoração do presente a partir da coleta de coisas-imagens em processo de desaparição. Faz parte do processo arqueopoético, investigar como as coisas atuam, sobretudo as coisas perdidas, na afetação, ou destino, de memórias, sensibilidades, identidades e visões de mundo. Logo, trata-se de um processo construtivo permeável aos conceitos de memória, imagem, rastro e testemunho. Cumpre esclarecer que, devido à dificuldade de obter autorização para acompanhar o trabalho de resgate do acervo do museu, o desenvolvimento da minha pesquisa vem sendo realizado à distância, através dos meios de comunicação, sobretudo da mídia digital. Nas primeiras semanas depois do incêndio, os informes sobre a tragédia do museu eram massivamente ilustrados com imagens do prédio em chamas, mas, à medida que o trabalho de resgate segue avançando, imagens de fragmentos dos objetos encontrados em meio aos escombros vêm ganhando destaque. Atualmente, se digitarmos o nome Museu Nacional do Rio de Janeiro na caixa de busca do Google, veremos imagens do prédio antes, durante e depois da tragédia. Gosto de pensar que as imagens seguem resistindo ao desaparecimento daquilo a que se referem, ao menos pelo tempo que durarem como objeto visível. Quando fiz a minha primeira visita ao Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, já haviam se passado meses desde a tragédia. O museu se encontra fechado para obras e, logicamente, interditado à visitação. Uma vez que não havia chances de entrar no museu, acabei sendo contagiada pela alegria dos frequentadores que, nos fins de semana, desfrutam do espaço livre e arborizado em torno do Museu Nacional. Contagiada sim, mas não sem antes me sentir impactada pela contradição entre um museu em ruínas e a alegria do entorno. Aquela descontração sem medida me forçava a perceber o mundo como um grande arquivo vivo de imagens em movimento, imagens relacionais. Dando início à arqueologia de artista, voltei minha atenção para a coleta de rastros e coisas em torno do prédio do museu, nesse sentido, qualquer coisa esquecida, em branco, ou recalcada, que pudesse estabelecer uma relação com a memória do presente do museu era um achado importante. Na verdade, estava em busca de sinais de cultura, ou seja, traços de humanidade, mas também da natureza que pudessem estar associados à memória do museu. A ideia de colecionar


rastros do presente requer um trabalho de rememoração, haja vista que, de acordo com a filósofa Jeanne Marie Gagnebin:

“A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente”.3

Sendo assim, enquanto ideia, uma “arqueologia de artista” implica em escavar o presente das coisas para resgatar suas memórias efêmeras. Em outro sentido, em relação ao incêndio do Museu, a perda dos milhares de artefatos históricos marcava um retorno à natureza ou seria um feito da humanidade, uma questão de cultura? A proposta de criação de um acervo de “coisas sem qualidades” (aquilo que a tradição oficial ou dominante justamente não elege recordar) envolve um trabalho de chiffonier , no sentido daquele que busca “entre os cacos de uma tradição em migalhas”4 outras narrativas possíveis.

Área interditada: entre o visto e o não-ver

Sete meses depois do incêndio voltei ao Museu Nacional, e naquele momento nem tudo parecia estar completamente perdido - o crânio de Luzia e o escaravelho-borboleta, que pertencera à múmia da cantora egípcia Sha-amunem-su, já haviam sido encontrados. À medida que fui me aproximando do prédio do museu, e ao avistar a augusta figura do Imperador d. Pedro II, fui tomada por uma forte sensação de ausência. Meu olhar era incapaz de discernir o que via do que o olhava5. A distância entre mim e o imperador parecia inversamente proporcional à distância entre nós e o prédio do museu – cercado por um imenso

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Idem.: 55 Cf. Gagnebin. P. 53?56 5 Cf. a esse respeito J. Derrida (2012), “Pensar em não ver”, p. 72: “Há uma outra alternativa, uma outra alternância, uma outra vez cada um (...): é que quando olho alguém nos olhos (...) preciso escolher entre olhar os olhos vistos do outro e olhar os olhos videntes do outro”. 4


muro de metal. Lembrei do diagrama de Lacan, pois o muro se erguia entre o observador e o objeto tal como o anteparo se encontra entre o sujeito e olharobjeto. O muro parecia exercer a função de apaziguar o olhar diante da real condição do museu. Ou aquele muro seria a mais concreta representação de um encontro impossível com o real do museu? Quiçá, uma, fronteira entre a memória e o esquecimento. Mas, o fato é que o museu estava interditado e cercado por um muro que dividia o espaço-tempo entre um antes e um agora, um dentro e um fora, um não visto e um visto. Mesmo assim, de ambos os lados, a vida seguia em processo de transformação. Insisto em caminhar rente e ao longo de toda a sua extensão. Enquanto procuro uma brecha por onde infiltrar o olhar; uma sensação de estar andando à margem de um muro sem arestas, infinito e branco. Por um instante me vi cega para significantes (estaria o muro provocando um efeito inverso ao anteparo de Lacan?). Olhando acima do muro de metal era possível visualizar o segundo andar do prédio, bem como, enxergar mais de perto as marcas de fuligem que contornam as aberturas das janelas consumidas pelo incêndio. Através de algumas aberturas é possível visualizar a exaustão dos cômodos internos, bem como, o estado das vigas de ferro contorcidas pelo implacável calor do fogo. O Museu Nacional parecia uma espécie de guardião da memória do fogo, e nas palavras de Gaston Bachelard, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. Quase nada além de rastros de coisas perdidas. Memórias cinzas. Naquele dia, o Museu era uma memória em suspensão, na qual todo o feito (cultura) – oriundo de um dado (natureza) – havia se decomposto em dado novamente. Seguindo a visão do filósofo Villém Flusser, seria como afirmar que “... a cultura volta gradualmente à natureza para ser decomposta e esquecida”6.

Cacos de louça

Minha segunda visita ao museu foi muito próspera. Flanando ao redor do prédio, avistei rente ao grande muro de metal, fragmentos de louça de mesa, azul e branca encrustados no chão de terra.

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Villém Flusser:


Realizado o resgate, após a limpeza dos cacos, os fragmentos foram organizados e separados de acordo com os padrões decorativos. Alguns poucos cacos encaixam entre si formando pequenos trechos contínuos de duas e até, no máximo, três partes – permitindo, assim, uma leitura mais precisa dos desenhos e, consequentemente, uma nítida identificação dos padrões decorativos. A respeito do local e condições dos fragmentos resgatados, gostaria de levantar algumas suposições. O fato de o material ter sido encontrado à flor da terra pode significar que estava ali há pouco tempo, pois, do contrário, esses vestígios materiais deveriam estar soterrados. Em relação à natureza do material, bem como, seu uso e função, a louça - designação genérica para artefatos de uma cerâmica mais refinada (porcelana, faiança e faiança fina) – costuma ser indistintamente utilizada no meio doméstico e, por isso, tais fragmentos soam como testemunhos da intimidade de indivíduos e da vida privada propriamente dita. Segundo pesquisas, o aparecimento de uma ampla variedade de fragmentos de louças, principalmente inglesas, como pratos, xícaras, malgas, tigelas e urinóis - em sua maioria fabricados em cerâmica, grés, faiança, faiança fina, ironstone e porcelana -, marcam um período de ampla difusão das manufaturas europeias pelo mundo, cronologicamente concentradas no século XIX. Ao comparar imagens de louças de origem inglesa com os padrões decorativos dos cacos encontrados nos arredores do museu, é possível identificar faianças azuis no padrão willow, azul borrão, padrão shell edge e louça de macau. Ainda sobre o uso desse tipo de louça no Brasil, segundo a historiadora Tania Andrade Lima, a partir da segunda metade do século XIX, com a abertura dos Portos às Nações Amigas, houve grande importação de manufaturados ingleses. De acordo com Lima, do ponto de vista socioeconômico: O país foi inundado pelas exuberantes faianças decalcadas e em sua ânsia de identificação com os valores franco-ingleses, em busca de


reconhecimento, a sociedade foi absorvendo gradativamente as formas de comportamento delas indissociadas.7

De acordo com as pesquisas, não é raro a presença de vestígios de louça inglesa no Brasil, e muitas das escavações arqueológicas realizadas em sítios do século XIX costumam trazer à luz quantidades impressionantes dessas faianças - cujas formas e os padrões decorativos recuperados correspondem exatamente aos tipos produzidos pelas manufaturas inglesas, representadas com grande popularidade nas unidades domésticas brasileiras e, em particular, no Rio de Janeiro. O fato de se tratarem de vestígios comuns (para não dizer quase vulgares) passa a justificar a presença desses cacos de louça no entorno do museu, e talvez, até mesmo a indiferença das pessoas em relação a existência local desses vestígios. Contudo, como já relatado anteriormente, tanto a proximidade dos cacos em relação ao prédio do museu, quanto o fato de sua exposição à flor do chão, parecem indicar que estavam ali há pouco tempo. Sendo assim, se instaura uma dúvida sobre a relação entre o material encontrado e o acervo do Museu Nacional, ou ainda, se tais cacos poderiam ser oriundos de peças de aparelhos de louça que pertenceram à família imperial. Segundo dados históricos, de 1816 até 1889, o Paço de São Cristovão foi a residência oficial das famílias Real e Imperial. O antigo Museu Real, fundado em 1818, só foi transferido da Praça da República, no Centro do Rio de Janeiro, para o Paço de São Cristovão, em 1892, quando passou a ser chamado de Museu Nacional. De acordo com a pesquisa da historiadora Regina Dantas: A partir de 1892, o palácio deixou de ser reconhecido como Paço de São Cristóvão, passando a ser identificado como prédio do Museu Nacional ou palácio da Quinta da Boa Vista. Posteriormente, a instituição passou por uma longa fase de apropriação dos objetos ali abandonados, oriundos do leilão do Paço e do Congresso Constituinte, devido à solicitação de Ladislau Netto. 8 7

LIMA, Tania Andrade. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX*. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.3 p.173 jan. / dez. 1995 Cf. Regina Maria Macedo Costa Dantas. “A casa do Imperador: do Paço de São Cristovão ao Museu Nacional”, 2007, p. 56. 8


Segundo a pesquisa realizada por Dantas, o Museu Nacional “herdou” parte dos pertences da família imperial. Mas, digamos que os cacos de louça encontrados nas proximidades do Museu façam parte do acervo perdido durante o incêndio, como teriam sido lançados para fora do prédio? Talvez, pelas fortes chuvas que marcaram os dias e semanas após o incêndio no Museu Nacional, em 2018 - ou poderiam ter sido arrastados até o exterior do prédio pelas águas utilizadas nas manobras anti-incêndio. Mesmo assim, o que me intriga é que sete meses depois do incêndio esses cacos ainda se encontravam ali, à espera de serem resgatados, e por mim. Outra possível hipótese sobre a origem desses fragmentos diz respeito ao mosaico que reveste os bancos do “Jardim das Princesas”. Localizados nos fundos do palácio, os bancos se encontram revestidos com quebras de porcelana azul e branca, provavelmente, cacos das peças de serviço de chá da Casa Imperial9. Mas, voltando à ampla importação de louças inglesas durante o século XIX e, consequentemente, a vasta distribuição desses artefatos entre as camadas mais populares da sociedade do Rio de Janeiro, cabe ainda mencionar que durante o Segundo Reinado, contrariando a influência dos ideais da Corte francesa, ao invés do monarca proporcionar a moradia dos nobres próximo ao seu Palácio: “d. Pedro II autorizava a construção de moradias ao redor do Paço de São Cristóvão para a população de baixa renda. Além disso, constatamos a existência de um hospital e uma escola dentro da Quinta da Boa Vista, o que pode comprovar a existência de uma comunidade ao redor do Palácio (...)”.

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Nesse sentido, os cacos de louça também poderiam ser testemunhos da presença de outras famílias que habitaram os arredores da Quinta da Boa Vista na época do Império. Durante o levantamento de dados para essa breve pesquisa fui surpreendida por duas matérias que saíram na mídia. A primeira, publicada pelo 9

Cf. http://www.miniweb.com.br/cidadania/personalidades/pedro_II/pedro_II_mosaicos.html Cf. Dantas, Regina Maria Macedo Costa. “A Casa do Imperador: do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional”, 2007, p.46. 10


G1, em 13/02/2020, diz respeito às obras do novo ‘bioparque’ do Rio, segundo essa matéria: “o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, Zona Norte do Rio, vai receber parte dos itens e relíquias da época do Império que foram encontrados durante as obras de reinauguração do antigo zoológico do Rio”11. A segunda matéria publicada no jornal o Extra, em 26/02/2020, anuncia a restauração do Jardim das Princesas. Segundo esse artigo: “o trabalho de reconstrução e restauração do Museu Nacional pode devolver à população um espaço que nunca foi aberto ao público. (...) O Jardim das Princesas, uma área onde Isabel e Leopoldina, filhas de d. Pedro II passavam o tempo livre, praticando atividades como artesanato e jardinagem”. A matéria descreve que:

O destaque do local é a ornamentação idealizada pela família, utilizando a técnica do embrechamento, que consiste em incrustar conchas, pedras, fragmentos de louças, entre outros materiais, no cimento fresco. No espaço, há três bancos largos e oito pequenos. Em um deles, há o registro da data de batismo de Isabel. O jardim tem ainda dois chafarizes e muros enfeitados com mosaicos.12

Sobre o Jardim das Princesas, durante os anos 90, foram realizadas escavações na área. Sob a coordenação da arqueóloga Maria Beltrão, o projeto se dedicou à procura de vestígios que pudessem identificar a presença de outros habitantes na área circundante ao Palácio, antes mesmo de se tornar residência das famílias Real e Imperial. Segundo informações, Beltrão chega a classificar diversas conchas recolhidas pela Imperatriz Thereza Cristina, mas passa rápido pelos fragmentos de louça, assinalando apenas serem em sua maioria inglesas13. Até o momento, não consegui localizar na íntegra a pesquisa da arqueóloga Maria Beltrão. Em tempo: durante essa investigação, ao buscar informações sobre o Jardim das Princesas, segundo a maioria das fontes, a data

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https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/13/reliquias-achadas-nas-obras-donovo-bioparque-do-rio-vao-compor-acervo-do-museu-nacional.ghtml 12 https://extra.globo.com/noticias/rio/museu-nacional-vai-restaurar-jardim-das-princesas-nuncaaberto-visitacao-24272057.html 13 Cf. MENDONCA, H.N.; BELTRAO, M. da C.M. Considerações sobre o grès no sitio histórico arqueológico Jardim das Princesas, Museu Nacional do Rio de Janeiro. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 6: 141-154, 1996.


gravada no cimento de um dos bancos do jardim não registra a data de batismo, mas o dia do aniversário de 6 anos da Princesa Isabel14, comemorado em 29 de julho de 1852. Sobre a condição atual do Museu Nacional - não obstante os dados históricos apresentados até aqui, bem como, a importância conferida a eles – gostaria de voltar à proposta de colecionar rastros; ao trabalho de rememoração; à coleta de coisas que não representam grandes feitos; aos restos deixados de lado pela falta de significação, importância e/ou sentido, enfim, à prática que denominei de arqueopoética – uma espécie de método de escavação de superfícies imaginárias, nas quais busco o que sobrevive nas coisas, objetos e imagens quando apartados de suas origens. Nesse sentido, reafirmo o interesse pelo resgate do que sobrevive nas coisas somente para ser reinventado, ou seja, para que possa retornar como outra coisa. Destarte, os cacos de louça encontrados na Quinta da Boa Vista passaram a ser investigados como fragmentos de memórias intempestivas, e nesse sentido, funcionam como partículas de conexão entre um antes e o agora em movimento. Por isso, os cacos não são fixados aos trabalhos nos quais participam (e que veremos logo à frente). No entanto, para garantir o rastreamento dos cacos em circulação entre uma proposta e outra, se fez necessário submetê-los a um regime de catalogação com letras e números. O ponto de partida para a elaboração das experiências parte dessa memória-caco como uma unidade referencial de origem estilhaçada. Nos trabalhos a seguir veremos que, ora os cacos geram formas que surgem de uma memória inventada, como em “Aparelho de estado: 30 peças”, ora geram “falhas” ou “hiatos” na relação entre a memória e a imaginação, como em “Morfologias incidentais”. A investigação segue em busca de possibilidades de montagens com cacos e desenhos, numa tentativa experimental de “ampliar continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que ele nunca recobrirá o real todo”15.

Cf. Dantas, Regina Maria Macedo Costa. “A Casa do Imperador: do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional”, 2007, p. 202. 15 KEHL, Maria Rita.: O sexo, a morte, a mãe e o mal, p. 138. São Paulo: Escuta, 2000. 14


Inventando métodos I: Aparelho de Estado: 30 peças De cacos, de buracos, de hiatos e de vácuos, de elipses, psius, faz-se, desfaz-se, faz-se uma incorpórea face, resumo do existido.16

Trata-se de um conjunto de desenhos realizados a partir dos fragmentos de louça encontrados no terreno do prédio do Museu Nacional, RJ. Ao todo são trinta desenhos, dos quais cada um é realizado a partir de um caco de louça. Apesar do número limitado, a variedade dos padrões decorativos indica a presença de louças de estilos diferentes, ao mesmo tempo, por serem poucos e variados, é impossível determinar o formato e/ou função da peça a que cada caco pertenceu. Ao longo das etapas do processo - resgate, limpeza e organização do material – os fragmentos dão a ver uma fragilidade quase nobre, quando não rude, de memórias há muito perdidas. A princípio, diante do enigma dos cacos, quis catalogá-los, um por um. Depois, pensei em unir todos numa única peça, como uma “colcha de retalhos”. Ainda pensei na possibilidade de empacotar cada fração e criar pequenas relíquias. Para a apresentação em sala de aula, optei por um tipo de “restauração gráfica”, na qual desenho o que falta a partir do que resta. Dispostas sobre uma mesa, cada uma das pequenas pranchas em papel (24 x 16 cm e 16 x 12 cm) apresenta um caco de louça fusionado ao desenho de um utensílio de mesa. Em “Aparelho de Estado: 30 peças”, são os desenhos que restauram os cacos, dando forma aos pratos, terrinas, xícaras, canecas, jarros, pires e travessas que invento. Devido à irreverência na interpretação das formas, os desenhos não correspondem aos cacos, ao menos quanto ao estilo, pois se trata de dar a ver o não visto através da imaginação, e a partir do presente. Enquanto estudoprático arqueopoético, busco dialogar com a história perdida em cada caco de memória. Ao longo do processo, tanto a montagem quanto o desenho funcionam como princípio ativo de restauração dos lapsos históricos que escapam do que resta, e nesse sentido, cada caco pode vir a ser qualquer desenho de louça. Durante a elaboração dessa escrita, reencontrei a obra “With my tongue in my cheek”,1959, de Marcel Duchamp, uma espécie de autorretrato, no qual o

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ANDRADE, Carlos Drummond de.: Boitempo I. Rio de Janeiro: Record, 1987.


artista colocou a impressão material de um lado de seu rosto cunhado em um molde de gesso sobre um croqui a lápis de seu próprio perfil. Assim como no trabalho de Duchamp, na experiência com os cacos de louça, a continuidade formal entre a coisa-caco/objeto e o desenho/gráfico visa evidenciar as ambiguidades entre conceitos distintos, como o rastro e o desenho; o índice e o ícone; o esquecimento e a memória; a natureza e a cultura; o espontâneo e o deliberado; o passado e o agora; a ausência e a presença. Em “Aparelho de Estado 30 peças”, questiono as “relações íntimas e secretas” entre o rastro e o traço; através do desenho, alinhavo tempos heterogêneos; remendo o antes e o agora numa memória do futuro, sempre em processo de montagem.

Marcel Duchamp, Com a minha língua na minha bochecha, 1959. Gesso, lápis e papel montados em madeira, 25 x 15 x 5,1 cm. Museu Nacional de Arte Moderna, Centre Pompidou, Paris.


Figura 1: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça, 24 x 16 cm.


Figura 2: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019.


Figura 3: ”Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça.

Figura 4: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça, 16 x 12 cm.


Figura 5: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça, 16 x 12 cm


Figura 6: : “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça, 16 x 12 cm


Figura 7: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça, 24 x 16 cm


Figura 8: “Aparelho de Estado 30 peças”, 2019. Desenho e caco de louça.


Em termos de configuração, em “Aparelho de estado: 30 peças” a literalidade é quase óbvia: cada caco de louça é reintegrado à uma peça de jogo de mesa, nesse sentido, o desenho funciona como o elo perdido entre o significado e o significante, o passado e o agora. No próximo trabalho, o desenho busca se desviar dessa obviedade através de um distanciamento gráfico do objeto-caco e, consequentemente, da memória colonial que ainda resta impressa nesses fragmentos de louça azul e branca.

Inventando métodos II: Morfologias incidentais Em “Morfologias incidentais”, há uma recusa do desenho em traçar semelhanças óbvias. Aqui, os cacos funcionam como condição de possibilidade para que o desenho ‘apague’ os rastros e restaure o esquecimento. Interessa quebrar o nexo simbólico entre causa e efeito, potencializar o enigma. Nesta série, os desenhos resultam do prolongamento das linhas, vértices e planos que configuram a estrutura interna de cada caco observado. Após a conclusão de cada desenho, o caco referente é removido. Os desenhos constam em um caderno, e cada página é carimbada com uma letra do alfabeto. Na página ‘r’, encontramos a seguinte a frase: “geometricae test for nihil liquet”. Grosso modo, a frase pode ser traduzida como “experiência geométrica improvável”. Esses desenhos geométricos, poliédricos e irregulares, possuem em comum ‘cortes’ ou ‘aberturas’. Esses ‘vazios’ marcam o lugar onde antes havia um caco, o mesmo caco que gerou uma forma geométrica ‘improvável’. Considero essas lacunas como rastros de ausência ou, em outras palavras, seriam como traços imemoráveis da história. Em “Morfologias incidentais”, a experiência gráfica busca instaurar uma falha na linguagem a fim de que as formas aspirem por outras nomeações. Faz parte desse imaginário arqueopoético investigar outras correspondências e analogias – não funcionais - entre as imagens, a memória e o rastro.


Figura 9: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.

Figura 10: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.


Figura 11: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.

Figura 12: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.


Figura 13: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.

Figura 14: “Morfologias incidentais”, 2019. Desenho sobre sketchbook, 29,5 x 21 cm.


Inventando métodos III: Exsicatas para quando não houver mais nada a ver

Dando continuidade às experiências anteriores, nesta etapa busco outros meios de inventariar as coisas coletadas em torno do Museu Nacional, Quinta da Boa Vista, bairro de São Cristovão, RJ. Geralmente, não há um critério que determine o que pode, ou não, vir a fazer parte do inventário. Nessas experiências, me aproprio do método “exsicata” - termo utilizado na botânica que diz respeito a práticas de identificação, catalogação e conservação de espécimes vegetais – como suporte ‘técnico’ para a organização de um ‘acervo’ inespecífico. Utilizado há cerca de 500 anos, o método exsicata consiste em prensar e secar plantas para, em seguida, fixar os exemplares em uma cartolina de tamanho padrão A3, acompanhados de uma etiqueta ou rótulo contendo informações sobre o vegetal, coletor, identificador do material, data de coleta e local. A ideia do método surgiu quando, em junho de 2019, tive o prazer de comparecer ao evento 'Ciência, História e Cultura: o Museu na Quinta da Boa Vista', que celebrou os 201 anos da instituição científica mais antiga do país, o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Dentre as diversas atividades oferecidas, participei de uma oficina de “exsicatas” (Fig. 15) – método pelo qual passei a nutrir grande admiração e que, por isso, me aproprio como ferramenta na organização desse inventário. Mas, ao contrário do rigor científico do método aplicado em Botânica, nas “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, o objetivo das montagens é aproximar coisas distintas – feitos e dados, vestígios de cultura ou natureza – e criar um inventário para quando não houver mais nada a ver, tanto no sentido do fim das coisas quanto da falta de sentido. Nessas exsicatas, as coisas são organizadas em função das relações de dissemelhança que possuem entre si. As pranchas (papel Kraft, 44 x 28 cm) funcionam como mostruários, ou suporte de encontros, de coisas achadas no sítio da Quinta da Boa Vista. Considero essas exsicatas como uma promessa de coleção “para quando não houver mais nada a ver”, também, no sentido do que se perdeu de vista e precisa ser revisto a partir do que resta. Essas exsicatas são compostas por fragmentos de coisas ordinárias (nem sempre visíveis) resgatados do cotidiano, como rabiola de pipa, restos de insetos, penas de pombo, capim seco, circuito impresso etc. Normalmente, as montagens se


limitam ao agrupamento de coisas em pares, ou trios, fixadas sobre pranchas numeradas e nomeadas à moda da Taxonomia de Lineu. Para cada prancha os termos habitat, família, espécie e local se encontram impressos de maneira que a palavra aparece ao contrário e repetida duas vezes, espelhada - do centro da folha para à margem direita e esquerda. A grafia confusa das palavras quer corromper e, ao mesmo tempo, ampliar a dimensão comunicativa (funcional) da linguagem. O mesmo se dá com a palavra ‘museu’, impressa de forma fraturada no canto esquerdo superior da prancha. Considero essas experiências em sua fase inicial de montagem. A abordagem sobre o método crítico de criação de um memorial dos restos a perder de vista, se encontra em definição.

Figura 15: “Manacá da Serra”, 2019. Oficina de exsicatas. Museu Nacional do Rio de Janeiro.


Figura 16: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Prego, inseto e capim sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 17: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Asa de mariposa e circuito impresso sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 18: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Pena de pombo e rabiola de pipa sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 19: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Paina, galho e display sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 20: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Papel de seda e coisas sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 21: : “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Papel de seda e coisas sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 22: “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Insetos, crustáceo e prego sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Figura 23: : “Exsicatas para quando não houver mais nada a ver”, 2019. Capim e pena de passarinho sobre papel Kraft, 44 x 28 cm.


Imaginário das representações obscuras de si – Tópico II


Inhambu

[...] E a ausência de imagem lhe incomoda? Imargem A ausência De margem: mar A ausência de Ar Lhe incomoda? E a própria ausência? Pura Seca Dura

(Incômodo. Vídeoinstalação, sitespecific, Jorgge Menna Barreto, 2013.)


Em busca do deslimite na imagem:

Inhambu é uma experiência poética através da imagem e que foi desenvolvida com base no mote “deslimite”. No contexto das práticas artísticas, o deslimite será investigado como uma condição que ignora os limites da


linguagem representativa ou, numa perspectiva deleuziana, à luz da ideia de devir, isto é, o “deslimite” como uma potência do/em movimento, capaz de subverter todas as ordens e representações para afirmar a diferença permanente que caracteriza o eterno retorno. E, enquanto potência do simbólico, o deslimite seria como um sem fim das coisas; uma condição em estado permanente de inacabamento - que permite ao inacabado ser renovado e reinventado pelo processo criativo ou linguagem simbólica. Pensar sobre o deslimite é pensar sobre “aquilo que, para o sujeito, é sem medida”. Tão irrepresentável quanto o real, o deslimite também seria como uma espécie de última condição do próprio limite. Em relação ao real, o psicanalista Jacques Lacan, nas palavras do filósofo Alain Badiou, o define como sendo o “impasse de uma formalização”. Em outras palavras, explica Badiou:

“Isso quer dizer que aquilo que a formalização torna possível [...] só é possível pela existência implicitamente assumida daquilo que não pode se inscrever nesse tipo de possibilidade.

Trata-se,

portanto,

de

um

‘ponto

de

pensamento’ que, embora condenado a permanecer inacessível para as operações que a formalização torna possíveis, não deixa de ser a condição última da própria formalização”17.

E no caso das imagens? O real de uma imagem não estaria para o deslimite da formalização na imagem, isto é, seu ponto impossível de formalização? De acordo com Badiou, na ontologia da imagem (cinematográfica) proposta por André Bazin: “o real de uma imagem é aquilo que está fora de campo [...] o que é impossível fazer entrar tal qual na imagem enquadrada” 18. Destarte, pensar o deslimite da formalização nas imagens nos lança ao desafio de olhar o fora da imagem, de ver o que não está nela, mas que, de fato, constitui 17

BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Trad. Fernando Scheibe. 1ª ed. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2017, p. 30. 18

BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Trad. Fernando Scheibe. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, pp. 31-32.


a sua potência. Em Inhambu, através da imagem, busco desvelar o que se encontra além do limite do que é visto; o que nos olha no que vemos; o outro lado da presença; o real e invisível.


Impressão técnica:

Trata-se de uma única imagem, impressa e copiada inúmeras vezes até esgotar a carga de tinta no cartucho da máquina de impressão. Ao longo do processo, à medida que a tinta vai sendo consumida, as imagens copiadas vão apresentando variações em relação à tonalidade – gerando blocos de imagens coloridas e em preto e branco. Ao término da carga de tinta, a impressora ejeta uma folha de papel em branco como a última imagem de uma cópia sem imagem. Em termos de metodologia, o trabalho apresenta uma logística relativamente simples: uma mesma imagem é impressa repetidamente até esgotar o cartucho de tinta na impressora. Com o consumo gradual das cores, as cópias apresentam variações tonais, de modo que a mesma imagem retorna como diferença à cada repetição.




Inhambu: um rumor de ausência nas mãos da imagem

Inhambu é uma palavra de origem Tupi e quer dizer: “o que levanta voo rumorejando”. Da família dos tinamídeos, os inhambus são aves que costumam habitar as densas florestas tropicais e cerrados abertos do sul da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais até o Rio Grande do Sul. Discretos e extremamente desconfiados, para se proteger dos predadores os inhambus são capazes de fingir que estão mortos. Meu pai costumava contar que desde menino gostava de ‘caçar passarinho’. Na idade adulta adquiriu apitos de madeira que reproduziam sons de aves. Cresci ouvindo que: para atrair um inhambu, primeiro é necessário localizá-lo através de um pio longo, e depois, para provocá-lo a aparecer, um pio curto. Em setembro de 2019, meu pai sofreu um acidente. Durante as semanas seguintes fui a sua acompanhante. Ainda no hospital, fotografei as nossas mãos na intenção de guardar na memória a imagem do nosso reencontro - e toda imagem, na medida que faz retornar a presença daquilo que nos falta, cumpre um papel de memória -, mas onde verdadeiramente a imagem se encontra? Em nosso olhar, em nossa memória, ou num impresso? O historiador alemão Hans Belting, em “Por uma antropologia da imagem”, vai explicar a origem das imagens a partir da relação entre o corpo e o meio (ou medium). Segundo Belting, as imagens são criadas em função de tornar “uma ausência visível ao transformá-la em uma nova forma de presença” e, para tanto, as imagens precisam de um meio para que ganhem visibilidade. A princípio, todo o meio é vazio e precisa de um corpo para gerar uma imagem, assim como, toda imagem depende de nós - que a identificamos como o nosso “outro”. Ao definir a imagem como “a presença de uma ausência”, Belting explica que “a relação entre ausência – entendida como invisibilidade - e presença – entendida como visibilidade – é a última instância baseada em nossa experiência física”19, ou seja, uma vez que a nossa memória física gera imagens com o

19

BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. In. Revista Concinnitas. Ano 6, vol. 1, número 8, julho 2005, p. 77.


propósito de representar eventos ou pessoas de outros tempos, (imaginamos como presente o que de fato há muito se tornou ausente), aplicamos essa mesma capacidade às imagens que fabricamos. Inhambu é um conjunto de imagens no qual vemos se repetir um sem fim de memórias nas muitas cópias de uma única imagem: a mão do meu pai na minha. O processo de impressão não foi imediato, até que não houvesse mais tinta nos cartuchos, passaram-se dias. A cada cópia uma imagem diferente. A memória que guardo do meu pai multiplicada por centenas de sensações impressas em uma única imagem, nunca a mesma imagem. Meu reencontro com o meu pai não pode ser representado. Repito a imagem do nosso contato, como uma prova de amor, tanto para me proteger do afeto quanto para produzir ainda mais estima. Ao copiar repetidamente a mesma imagem, e à medida que a tinta vai se esgotando na impressora, as cores da imagem começam a apresentar alterações, de maneira que as cópias vão se afastando do modelo. Diante das imagens, o acúmulo das cópias é diretamente proporcional à perda da imagem. Embora a visibilidade de uma imagem dependa de um meio físico, onde a imagem acontece? Segundo Belting, “as imagens acontecem entre nós, que as olhamos, e seus meios, com os quais elas respondem ao nosso fitar”. Ao final da tinta nos cartuchos de impressão, diante da folha de papel em branco, o que vemos? Apenas uma folha de papel – evidenciando o que há por detrás da superfície das imagens – ou um encontro com o real da imagem como “presença de uma ausência”? A imagem havia sido submetida a um processo de repetição até a sua consumação ou esgotamento?

“O que se repete é sempre algo que se produz [...] como por acaso” (Lacan)

Há um tempo que queria experimentar copiar uma imagem até consumir totalmente a carga dos cartuchos de tinta de uma impressora deskjet –, mas faltava a Imagem. Quando registrei a mão do meu pai na minha, o fiz por razões


de afeto e memória do corpo – segurar a mão do meu pai me causa uma enorme sensação de segurança, mas, também, uma certa melancolia. Eu não pensava “falar” sobre trauma, mas relendo “O retorno do real”, Hal Foster escreve que “... manifestamente, uma das funções da repetição, ao menos como foi entendida por Freud [é]: repetir um acontecimento traumático para integrá-lo a uma economia psíquica, uma ordem simbólica”20. No capítulo com o mesmo nome, ao analisar as serigrafias de Andy Warhol, Foster aponta os diferentes efeitos traumáticos produzidos pela repetição. Para Foster, em Warhol “a repetição é tanto um escoamento do significado como uma defesa contra o afeto”, além de revelar uma “fixação obsessiva no desejo da melancolia”. Ao descrever os diferentes efeitos produzidos pela repetição, Foster afirma que a repetição se fixa no real traumático para o encobrir e, ao mesmo tempo, o produzir. Em outras palavras, isso parece querer dizer que: uma vez diante do real irrepresentável e, portanto, traumático, a repetição seria como uma estratégia de defesa, e (re) produção, do trauma. Quando pensei em repetir uma imagem até a sua exaustão, não pensava nos efeitos traumáticos provocados pela repetição. Segundo Foster, o psicanalista Jacques Lacan compreende o trauma como um encontro faltoso com o real, e na condição de faltoso, o real não pode ser representado, mas tão somente repetido: “a repetição, antes, serve para proteger do real, compreendido como traumático”21. No caso de Inhambu, a imagem pode ser lida como memória e rastro, presença e ausência. E à medida que vemos a mesma imagem muitas vezes repetida, sobreposta em camadas e disposta em fila, constatamos de que não se trata mais da mesma imagem e, talvez aí, justamente aí, onde uma diferença acontece inadvertidamente, algo parece romper o anteparo da repetição permitindo que o real se insinue. Há um ponto traumático em Inhambu, precisamente onde o real da imagem parece nos escapar. Impossível prever as alterações na imagem durante o processo de impressão e consumo da tinta. Ao se esgotarem os cartuchos, da penúltima imagem à última impressão, uma folha de papel em branco – registro de um fim e começo em estado de choque: “e a

20

FOSTER, Hall. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 127. 21 FOSTER, Hall. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 128.


ausência de imagem lhe incomoda? ”. Seria o trauma das imagens aquilo que as impedem de dar a ver o seu real? O que se repete na imagem, e o que pode romper o anteparo dessa repetição a fim de que o real da imagem se insinue? Na experiência proposta em Inhambu, a imagem do reencontro entre pai e filha expressa uma afetividade muito íntima, o próprio termo, Inhambu, é escolhido em função de prestar uma homenagem ao meu pai como uma prova de amor. Mas, como se não bastasse o conteúdo da imagem, no que diz respeito à repetição exaustiva dessa imagem, busco pelo seu ponto traumático. O que se repte nessa imagem que me arrebata? Talvez, a fragilidade da imagem que na repetição nunca é a mesma, mas, também, das muitas imagens em uma única imagem até desaparecer, única e irrepresentável, sobre uma folha de papel em branco. Inhambu levanta voo e escapa dos meus olhos, tudo o que resta é um rastro branco impresso no papel vazio. Inhambu é parte das minhas memórias, para sempre uma imagem das ausências mais sentidas.

Da vida: uma imagem sem contorno Do objeto-imagem - muitas vezes repetido – à imagem-objeto-folha de papel em branco, estico o limite da imagem até que a sensação de ausência preencha todo real irrepresentável. Quantas memórias cabem nas mãos de uma imagem: múltiplas imagens. Volto a pensar o deslimite como potência do


simbólico; ponto traumático entre o sujeito e o mundo. Releio o trecho do ensaio “O sexo, a morte, a mãe e o mal”, de Maria Rita Kehl, para lembrar que: “ (...) a dimensão traumática da experiência humana, esta que escapa à representação, não tem suas fronteiras delimitadas de antemão. Nossa tarefa vital, como seres de linguagem, consiste em ampliar continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que ele nunca recobrirá o real todo. De cada experiência, de cada objeto, de cada percepção, fica sempre um resto que não conseguimos simbolizar; o núcleo "duro" das coisas, que lhes confere independência em relação à linguagem e nos garante, de alguma forma, que o mundo não é uma invenção de nosso pensamento”22.

Não. O mundo não é uma invenção do nosso pensamento e tampouco o pensamento depende da linguagem para acontecer. Entre um pensamento e outro, o deslimite. Lembra que a metamorfose se encontra na origem das imagens - das imagens que acontecem através das coisas e nunca a partir delas. O “voo” do Inhambu compreende mais de quinhentas provas de artista para impressões de afeto. Através da repetição da imagem, acumulo memórias e esquecimentos nas camadas do tempo. Da imagem à ausência de imagem: sua mão na minha. Uma memória que não consigo esquecer nem reconhecer com total clareza, uma sensação sem contorno.

22

KEHL, Maria Rita. O sexo, a morte, a mãe e o mal. São Paulo: Escuta, 2000. p.138.


[...] E a ausência de imagem lhe incomoda? Imargem A ausência De margem: mar A ausência de Ar Lhe incomoda? E a própria ausência? Pura Seca Dura

(Incômodo. Vídeoinstalação, sitespecific, Jorgge Menna Barreto, 2013.)


Referências bibliográficas:

BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Trad. Fernando Scheibe. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Coleção Filô) BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. Trad. Maria Luz Moita. In. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Trad. Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa, Relógio D´Água. 1992. DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver - escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Org. Ginette Michaud; Joana Masó; Javier Bassas. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: UFSC, 2012. FLUSSER, Villém. Artifício, artefato, artimanha. 2ª palestra: a vida como artefato. Texto para a 18ª Bienal de São Paulo não publicado, 1985 s/p. Disponível em: http://arquivovilemflusser.com.br/vilemflusser/blog/2016/11/14/curso-artificioartefato-artimanha-ministrado-por-flusser-em-1985/

FOSTER, Hall. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. Editora 34, 2009 – 2ª ed. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. 2003. SERRA, Richard. Escritos e entrevistas, 1967-2013. São Paulo: IMS, 2014. Org. Heloísa Espada. KEHL, Maria Rita. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; NESTROVSKY, Arthur (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 137-148.


Teses e dissertações:

Dantas, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador: do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional/ Regina Abreu. Rio de Janeiro, 2007. xi, 276 f.: il. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Memória Social, 2007.

LIMA, Tania Andrade. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX*. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.3 p.129-191 jan. / dez. 1995.

Periódicos:

BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. In. Revista Concinnitas. Ano 6, vol. 1, número 8, julho 2005. MENDONCA, H.N.; BELTRAO, M. da C.M. Considerações sobre o grès no sitio histórico arqueológico Jardim das Princesas, Museu Nacional do Rio de Janeiro. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 6: 141-154, 1996. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/13/reliquias-achadas-nas-obras-do-novobioparque-do-rio-vao-compor-acervo-do-museu-nacional.ghtml

https://extra.globo.com/noticias/rio/museu-nacional-vai-restaurar-jardim-das-princesasnunca-aberto-visitacao-24272057.html


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