transformações urbanas contemporâneas:
Foto: Felipe Moreira/Instituto Pólis/Arquivo Pessoal
regularização fundiária e resistência
Instituto de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo
Relatório final de Iniciação Científica FAPESP - Auxílio regular
transformações urbanas contemporâneas: regularização fundiária e resistência
Bolsista: Ana Luiza Vieira Gonçalves
Orientadora: Cibele Saliba Rizek
Outubro de 2020
“Que diabos fazer? A nossa tarefa não é apenas resistir. Já não é mais suficiente. É reexistir mesmo; reinventar afeições dentro ou fora das arenas e encontrar novas frestas para arrepiar a vida de originalidades, encantarias e gritos - amados, suados, deseducados, gentis, épicos, múdos, cheirando a mijo e flores delirantes - de gol na rua.” Luiz Antonio Simas
resumo As transformações urbanas, a partir da década de 1980, colocam a capital paulista sob os holofotes que iluminam os problemas sociais e econômicos. Com a aprovação, em 2017, da nova legislação de regularização fundiária - Lei Federal nº 13.465/2017 -, a questão da luta por moradia digna e direito à cidade - categoria criada por H. Lefebvre que foi apropriada pelos movimentos sociais e coletivos tornando-se uma perspectiva e uma noção que acaba por entrar em operação no horizonte político dos movimentos - entram ainda mais em disputa devido ao desmonte do caráter anterior de resistência potencialmente vinculado aos movimentos de reforma urbana e aos processos de regularização fundiária. Esses processos de desmonte se mostram de forma mais acirrada quando falamos da região central da cidade de São Paulo, em especial dos Campos Elíseos - escolhido como estudo de caso -, região histórica de conflito e disputa entre diferentes classes sociais. Nesse sentido se mostra importante relacionar esses processos, que se interligam e entrelaçam no complicado tecido de relações entre os interesses públicos e privados, com um acirramento ainda maior com processos de despejo e remoções no contexto da pandemia de Covid-19 na região. A 13.465 não se coloca como elemento isolado, mas é parte de um processo de desmonte maior, ao qual se soma a reforma trabalhista e da previdência, bem como o desmonte do Programa Minha Casa, Minha Vida e a proposta de um novo programa habitacional pelo governo Bolsonaro - viabilizado pela mudança na legislação de regularização fundiária. A imposição do mercado imobiliário como principal agente regulador do valor da terra e da cidade, a contraposição desse à luta dos movimentos de moradia, dos moradores de rua e famílias sem teto, criam o cenário da metrópole, que deve ser entendida como campo de disputa. Palavras-chave: regularização fundiária, Campos Elíseos, lei nº 13.465
índice
atividades desenvolvidas 6 levantamento bibliográfico 7 participação em atividades extracurriculares 11 estágio de pesquisa no exterior 14 entrevistas 16 levantamento de propostas de intervenção na área central 19 levantamento de movimentos sociais e ONGs atuantes na área central 27 geoprocessamento 30 introdução 31 resultados 43 trajetória de pesquisa 43 Campos Elíseos, São Paulo: Histórico e Análise da situação atual da região 45 ferramentas de intervenção urbana 56 Cracolândia como espaço de disputa 61 regularização fundiária e remoções no Campos Elíseos: valorização imobiliária, resistência e necropolítica 65 regularização fundiária sob a lei nº 13.465/2017 70 movimentos sociais e ocupações no área central 80 subjetivação neoliberação e as contradições da atuação com regularização fundiária 85 Casa Verde e Amarela e 13.465: entrelaces e dependências 90 considerações finais 93 referências bibliográficas 96 anexos 103 entrevistas 103 estágio de pesquisa no exterior 122
atividades desenvolvidas
Ao longo do processo de pesquisa, atropelado pela pandemia de Covid-19, o que provocou mudanças nas possibilidades de análise da conjuntura atual com relação ao território e as políticas de Estado, criando uma forte necessidade de adaptação das metodologias e objetivos de pesquisa, para que se adequassem à essa nova situação. Não apenas pela impossibilidade de realização de pesquisas de campo, mas por novos elementos que se apresentaram no percurso de pesquisa e no horizonte de intervenção pública. Nesse sentido se destaca o desmonte do Programa MCMV, em especial no que diz respeito às faixas 1 e 2 e à modalidade Entidades, a desvinculação da priorização dos processos de regularização com a lei de zoneamento urbano e o lançamento do programa habitacional do governo Bolsonaro, o Casa Verde e Amarela. Vale destacar a necessidade de adequação das metodologias de pesquisa, tendo em vista as mudanças de perspectiva com relação ao trabalho, mas também devido ao impedimento da realização de incursões seguras a campo. Para tal, para além da reestruturação do cronograma e metodologia de pesquisa e adaptação dos processos já iniciados, foi realizado um levantamento bibliográfico e documental, uma revisão bibliográfica, participação em cursos de formação, entrevistas - realizadas de forma remota - e a produção de cartografias temáticas, para serem usadas não apenas como forma de leitura do território mas como metodologia de pesquisa e sistematização. 6
levantamento bibliográfico
O levantamento bibliográfico aqui presente consiste em uma sistematização de conteúdo partindo alguns eixos centrais levantados no processo de orientação da pesquisa. Esses eixos não foram pré estabelecidos, mas sim uma forma de organização do levantamento bibliográfico que foi feito de acordo com o surgimento de questões que necessitavam ser aprofundadas e, é claro, de acordo com os objetivos, processos e metodologias estabelecidas na elaboração do projeto de pesquisa. Esse levantamento foi sendo alimentado ao longo do percurso de pesquisa, de acordo com novas questões ou referências que foram se apresentando. Alguns desses eixos de trabalho receberam mais atenção que outros, pelo próprio processo de leitura das questões que o território apresenta, bem como das mudanças nas trajetórias de pesquisa que já foram colocadas. Entretanto, fez-se a opção por manter o levantamento, uma vez que esse foi bastante importante no sentido de nortear questões de pesquisa. Processos de urbanização de São Paulo Ermínia Maricato | Metrópole, legislação e desigualdade (2003) Caio Prado Jr. | A cidade de São Paulo: Geografia e História (1989) David Harvey | Produção Capitalista do Espaço (2006) Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Outros | São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza (1976) 7
Guerra às drogas e Cracolândia Sarah Feldman | Santa Efigênia, Luz e Campos Elíseos: a Prefeitura derruba (2017) Saskia Sassen | Expulsions: brutality and complexity in global economy (2014) Marcelo Golfetti Pacheco | Consciências do direito: um estudo sobre as compreensões da legalidade no contexto do projeto Nova Luz (2012) Guilherme Wisnik e outros | Notas sobre a Sala São Paulo e a nova fronteira urbana da cultura (2001) Lúcio Kowarick e Heitor Frúgoli Jr. | Pluralidade urbana em São Paulo : vulnerabilidade, marginalidade, ativismos (2016) Tanieli Cristina Rui | Nas tramas do crack: etnografia da abjeção (2015) Tanieli Cristina Rui | Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack (2012) Tanieli Cristina Rui | Usos da “Luz” e da “cracolândia”: etnografia de práticas espaciais (2014) Políticas Públicas e Operações Urbanas Carolina Heldt de Almeida | Concessa Venia: estado, empresas e concessão na produção do espaço urbano (2019) David Harvey | From managerialism to entrepreneurialism: The transformation in urban governance in late capitalism (1989) Regina Maria Prosperi Meyer | Pólo Luz: Sala São Paulo, cultura e urbanismo (1999) Paula Freire Santoro e Flávia Nunes | Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) em São Paulo: transferência de terras para exploração comercial por terceiros. (2018) Guido Otero e outros | A invisibilidade dos mais pobres no PIU Minhocão (2019) Lúcia Shimbo e Beatriz Rufino (org.) | Financeirização e estudos urbanos na América Latina (2019) Prefeitura de São Paulo | Decreto nº 22.055/1986 8
Prefeitura de São Paulo | Processo CONDEPHAAT nº 24.507/86 SP Urbanismo e Prefeitura de São Paulo | Apresentação da Operação Urbana Centro (2017) Movimentos sociais de resistência e luta por moradia Francisco de Oliveira | Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal (2000) Guilherme Boulos | De que lado você está? (2015) Barbara Frutuoso e Volia Kato | Ocupações no centro de São Paulo: desejos de fixação no território (2019) Edson Miagusko | Movimentos de Moradia e Sem Teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche (2008) Ilse Scherer-Warren e Ligia Helena Hahn Luchmann | Movimentos sociais e participação: abordagens e experiências no Brasil e na América Latina (2011) Ana Claudia Chaves Teixeira e Luciana Tatagiba | Movimentos sociais e sistema político: os desafios da participação ( 2005) Lúcio Kowarick | Viver em risco: Sobre vulnerabilidade socioeconômica e civil (2009) Histórico de intervenção no Campos Elíseos Evânio dos Santos Branquinho | Campos Elíseos no centro da crise: a reprodução do espaço no centro de São Paulo (2007) Sylvio de Barros Sawaya | A retomada dos Campos Elíseos: estudos de Arquitetura e Urbanismo (2008) Eva Alterman Blay | Eu não tenho onde morar: Vilas operárias na cidade de São Paulo (1985) Regina Meyer | São Paulo Metrópole (2013) Processos de remoção e situação fundiária Regina Dulce Lins e Raquel Rolnik (org.) | Observatório das remoções: relatório bianual 2017-2018 (2018) Raquel Rolnik | O mapa da desigualdade de São Paulo e as lições que vêm das periferias (2019) 9
Rede Nossa Cidade | Mapa da Desigualdade (2012-2019) Carlos Filadelfo | Cotidiano e política da luta por moradia no centro de São Paulo (2014) Carlos Filadelfo | A Construção do Centro de São Paulo como Arena Política dos Movimentos de Moradia (2010) Francini Hirata | A Luta pela Moradia em São Paulo (2010) Luciana Tatagiba e outros | Ocupar, reivindicar, participar: sobre o repertório de ação do movimento de moradia de São Paulo (2012) Financeirização, regularização fundiária e resistência Rafael Soares Gonçalves | Repensar a regularização fundiária como política de integração socioespacial (2009) Luciana Royer | Financeirização da Política Habitacional: Limites e Perspectivas (2009) Raquel Rolnik | A guerra dos Lugares (2015) Novas modulações do neoliberalismo Pierre Dardot e Christian Laval | A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (2016) Veronica Gago | A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular (2019) Francisco de Oliveira | O Estado e a Exceção ou o estado de exceção? (2003)
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participação em atividades extracurriculares
Café com pesquisa 2019 | Apresentação do trabalho “Regularização fundiária e remoções: políticas públicas em São Paulo e a formulação da lei nº 13.465”, resultado de uma Iniciação Científica financiada pelo CNPq realizada entre agosto de 2018 e julho de 2019, sob orientação da Prof. Cibele Saliba Rizek, no evento “Café com Pesquisa”. O evento, que ocorre mensalmente no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, em São Carlos, é organizado pela Pós Graduação do instituto e tem como principal objetivo divulgar a produção científica do instituto, seja ela da graduação ou pós graduação, do IAU ou de outra unidades. A apresentação do trabalho aconteceu na última edição do ano, em 13 de novembro de 2019. Revista POSTO68 | Membro da equipe de redação e editoração da revista, responsável pela redação de artigos - em parceria com os demais membros - realização de entrevista com o Prof. Sérgio Ferro, trabalho de editoração do primeiro número da revista e participação do evento de lançamento da mesma. A revista se configurou como um importante mecanismo de pesquisa e levantamento de questões quanto à conjuntura política atual e da busca por novos paradigmas de atuação, além de um exercício de redação, de elaboração de entrevistas e de pesquisa bibliográfica essencial. O corpo editorial da POSTO68 é formado por um grupo de estudantes de graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e possui dois números publicados 11
Seminário Internacional de Pesquisa - Habitat: Autonomia e resistência | O Seminário Internacional de Pesquisa “Habitat: Resistência e Autonomia” reuniu a contribuição de pesquisadores da área da arquitetura e do planejamento territorial, brasileiros e franceses, que estão buscando ir além de formulações essencialmente européias e urbanas. Trata-se de enfrentar uma tarefa já enunciada por Quijano (2005), qual seja, a de liberar nossa retina histórica da visão eurocêntrica, abrindo espaço para reconhecermos especificidades do curso histórico do Sul global e dos modos de produção do espaço em contextos ‘não-urbanos’ - ou produzidos a contrapelo do urbano. Neste sentido, os pesquisadores reunidos neste evento apostam que os modos de produção espacial alternativos (autóctones, à margem dos regramentos urbanísticos, fruto de práticas tradicionais, ‘altermondialiste’ etc) podem desempenhar importante protagonismo na constituição de outras abordagens epistemológicas para enfrentar o problema da produção do habitat a partir de lentes não hegemônicas. Para tanto, o Seminário procurará desdobrar diferentes abordagens teóricas visando demonstrar como estes espaços se constituem como espaços de resistência e de autonomia frente à implementação de ordens hegemônicas e homogêneas, ao mesmo tempo alienadas das particularidades locais e das problemáticas globais que lhes são comuns. Além do acompanhamento das atividades, foi parte da equipe de apoio do evento, realizando atividades complementares. Decifrando o direito à moradia | Curso oferecido pelo Instituo Pólis, no qual foi debatido o tema do direito à moradia a partir de sua trajetória enquanto um direito humano. Essa trajetória foi reconstruída tanto no âmbito internacional, no bojo da construção das formulações teóricas e dos tratados de direitos humanos; quando no âmbito nacional, reconstituindo a luta dos atores sociais pela sua reivindicação. Com base nisso, analisou-se as políticas habitacionais brasileiras do último século, apontando seus limites e possibilidades na efetivação do direito à moradia adequada. Houve um enfoque nas ameaças colocadas a efetivação do direito à moradia pelo processo de financeirização da habitação, aprofundando os significados econômicos, políticos e sociais dessa recente tendência global. EPAATHIS - CAU/SP | A Associação Projeto Gerações ofereceu o curso “Estudos e Práticas em Assistência e Assessoria Técnica em Habitação de Inte12
resse Social” para intervenções em ocupações do interior paulista voltada para a formação de profissionais e estudantes de arquitetura e urbanismo para atuar no campo da assessoria e da assistência técnica em habitação de interesse social. O evento é promovido pela associação em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado de São Paulo (CAU/SP) através do Termo de Fomento nº 009/2019. O processo de formação foi feito em dois módulos (Curso introdutório e Curso de Formação) junto aos moradores de ocupações urbanas e rurais localizadas nos municípios de Araras, Campinas, Ribeirão Preto e São José dos Campos. A partir do curso foi possível ter maior contato com a dinâmica dos processos de regularização fundiária, além da forma como as assessorias, as lideranças de movimentos sociais e os pesquisadores que participaram do curso veem a regularização fundiária sob a 13.465, o que constitui uma importante chave de análise. Disciplina Teorias e Concepções da Modernidade | Acompanhamento da disciplina “Teorias e Concepções da Modernidade” do Programa de Pós Graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (PPG IAU USP), ministrada pela Profª Cibele Rizek, pelo Profº Marcel Fantin e pela Profª Camila Moreno de Camargo. A disciplina se debruça sobre o tema da modernidade, em especial no que diz respeito ao neoliberalismo, a partir de ampla bibliografia e debate. O acompanhamento da disciplina é feito como ouvinte, participando da elaboração de um seminário em grupo.
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estágio de pesquisa no exterior
Entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020 foi realizado um estágio de pesquisa na École National de Travaux Public de l’Etat (ENTPE), da Université de Lyon. O desenvolvimento ocorreu no laboratório RIVES, sob orientação do Professor Fabrice Bardet. O trabalho teve como objetivo analisar as formas de gestão urbana, a partir do estudo de caso da operação urbana Lyon Part-Dieu, localizada em torno da estação de trem de mesmo nome, hoje uma das mais importante da Europa. A proposta de trabalho se centra em entender as mudanças da forma de gestão urbana, a partir da transição entre o managerialism para o entrepreneurialisme1 levantar quais as ferramentas usadas para essa nova forma de gestão urbana nas cidades francesas. No caso da Part-Dieu, o trabalho fez um pequeno apanhado histórico das transformações na área, centrado principalmente no projeto elaborado por Charles Delfante na década de 1970, marcado por uma lógica de managerialism (“how to make the city work better”2) para o atual projeto para o quartier, gerido pela SPL 1 HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. 2 Como fazer a cidade funcionar melhor”, em tradução livre. 14
Lyon Part-Dieu e inserido na lógica global de atração de investimentos privados, que marca as competição entre as cidades e a disputa da metrópole de Lyon para alcançar o Top 15 de cidade européias. A partir desse estudo de caso, é possível observar com clareza a mudança nas formas de gestão que são trabalhadas por David Harvey em “From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late
capitalism” (1989), mas também os impactos do processo de metropolização e das competições entre as cidades para a dinâmica urbana e para as formas de produção da cidade contemporânea, com a forte inserção de parcerias público privadas como instrumento, em processo global de financeirização e de mundialização das cidades que fazem com que a gestão urbana não se limite ao ambiente intra-urbano, mas tenha um impacto nacional e global. Além do trabalho de pesquisa, houve também o acompanhamento parcial de uma disciplina - Montage d’opération d’aménagement et construction immobilier - no qual foi realizado um trabalho em grupo de análise e apresentação de uma das operações urbanas em curso na Metrópole de Lyon, a ZAC Armstrong3 3, na comuna de Vénissieux. Para realização do trabalho foi feito uma visita à campo e uma entrevista com uma das responsáveis pela gestão da operação, além de um amplo levantamento documental sobre a mesma. O relatório da pesquisa realizada no período de intercâmbio se encontra em anexo nesse relatório em sua versão em português.
3 A ZAC, Zone d’aménagement concerté, de forma resumida, é um instrumento de gestão que estabelece zonas especiais de desenvolvimento nas quais as regras para a obtenção de investimentos privados são mais flexíveis que nas demais áreas da cidade. 15
entrevistas
Durante o período de pesquisa foram realizadas três entrevistas, que tinham por objetivo um aprofundamento da compreensão sobre a temática aqui trabalhada, a partir de seus diferentes aspectos. O primeiro contato foi com a professora Taniele Rui, ainda em um momento bastante embrionário do processo de pesquisa, não se constituindo concretamente como uma entrevista, mas já trazendo elementos de pesquisa bastante relevantes, em especial no que diz respeito à constituição da Cracolândia como tal e das questões vinculadas à guerra às drogas que se impõe sobre o território brasileiro. Em decorrência da situação da pandemia de Covid-19, bem como de outros elementos de pesquisa que surgiram, não houve a possibilidade de retomada dessa questão, como era prevista em um primeiro momento. As entrevistas realizadas com Nunes Lopes dos Reis e com o professor Caio Santo Amore vieram muito mais no sentido de uma maior compreensão sobre a prática dos processos de regularização fundiária e as mudanças trazidas pela lei nº 13.465/2017, em suas faces e contradições. Foi a partir dessas conversas que foi possível ter uma perspectiva mais ampla com relação ao cotidiano de quem lida com esse tipo de processo, quais as potencialidades que são trazidas pela nova legislação e em como o poder municipal lida com essa mudança de legislação. 16
Havia uma série de outras entrevistas pensadas para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, em especial com lideranças de movimentos sociais que atuam na região do Campos Elíseos, mas a realização dessas foi impossibilitada pela situação do isolamento social, bem como da necessidade de adequação da pesquisa aos processos recentes que se desenham na cidade, como os despejos, A entrevista com Rosane Tierno foi pensada após uma exposição da mesma no curso EPAATHIS do CAU/SP, no qual foi discutido os aspectos da lei nº 13.465 no sentido da flexibilização da segurança de posse, seus instrumentos legais e sua relação com o programa Casa Verde e Amarela do governo Bolsonaro. Tanieli Cristina Rui | professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas. Membra da Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (gestão 2019-2021). É doutora (2012) e Mestre (2007) em Antropologia Social pela Unicamp; bacharel em Ciências Sociais (2004) pela mesma Universidade. Autora de “Nas tramas do crack: etnografia da abjeção” (Prêmio CAPES de Tese -2013 e Menção Honrosa da Society for Latin American and Caribean Anthropology - SLACA BOOK PRIZE 2015) e co-organizadora de “Novas Faces da Vida nas Ruas” (finalista do Prêmio Jabuti 2017). Vem se dedicando à pesquisa etnográfica de vidas e situações-limites, produzindo investigações transversais sobre pobreza e marginalidade urbanas, tendo entre as especialidades empíricas as interfaces políticas da associação entre rua, drogas e dispositivos de assistência social, saúde publica e punição, como prisões e Comunidades Terapêuticas (texto informado pela autora à plataforma lattes). Essa entrevista teve como objetivo explorar as questões ligadas à presença da Cracolândia na região do campos Elíseos e às políticas de “Guerra às Drogas” que vêm sendo colocadas em práticas na cidade de São Paulo como um todo, além de buscar entender quais consequências dessas políticas para a cidade e quais as questões políticas que estão por trás delas. Devido à problemas com o arquivo da gravação, essa entrevista não pode ser transcrita. Nunes Lopes dos Reis | arquiteto e urbanista, graduado pelo Centro Universitário Belas Artes (2011). É diretor financeiro da Assessoria Técnica Peabiru, na qual tem contato direto - entre outras práticas - com processos de regularização fundiária. É membro do Conselho Municipal de Habitação, no segmento 17
sociedade civil. A entrevista foi feita no sentido de entender, de quem trabalha diretamente com isso, com processos de regularização fundiária urbana de interesse social, no contexto da cidade de São Paulo (texto retirado da plataforma digital da Peabiru, em setembro de 2020). Essa entrevista teve como principal objetivo a exploração das questões vinculadas aos processos de regularização fundiária em São Paulo, acompanhados e assessorados pela Peabiru, bem como uma maior compreensão da atuação junto ao Conselho Municipal de habitação, no processo de implantar um plano municipal de regularização fundiária, alinhado aos instrumentos trazidos pela 13.465. Caio Santo Amore | Professor Doutor no Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, instituição onde se graduou (1997) e obteve os títulos de mestre em “estruturas ambientais e urbanas” (2005) e doutor em “planejamento urbano e regional” (2013). Arquiteto e urbanista da ONG de Assessoria Técnica Peabiru – trabalhos comunitários e ambientais desde 1998, com cargo atual de coordenador geral. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em ensino superior e em projetos de arquitetura, planos e estudos urbanísticos, coordenação de equipe, atuando sobretudo em temas ligados à habitação de interesse social, áreas de urbanização precária e assessoria técnica a movimentos sociais e populares. (texto informado pelo autor à sessão de docentes da plataforma digital da FAUUSP). A entrevista com o professor Caio foi importante para questionar as problemáticas dos instrumentos trazidos pela 13.465 aos processos de regularização fundiária, em especial no que diz respeito à questão da desburocratização.
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levantamento de propostas de intervenção na área central
O levantamento dos processos de intervenção urbana foi feito, em especial, a partir do marco da Operação Urbana Centro e seguindo esse recorte temporal, ou seja, trazendo os projetos que se sobrepuseram ou que substituem essa operação, de 1997 - ainda antes da aprovação do Plano Diretor da cidade de São Paulo (2002). É bastante importante ressaltar que existe uma grande dificuldade de entender concretamente quais os processos que ainda estão em curso e quais aqueles que foram substituídos. A partir disso, foi feito um esforço de sistematização e de georreferenciamento desses projetos no território. Posteriormente, usando a car4 Disponível em: https://labcidadefau.carto.com/builder/7fdcbece-32cc-4e7c-9bb8-352c5b6ed684/embed 19
tografia participativa do Observatório das Remoções4, ao perímetro das operações se sobrepõe uma camada de famílias removidas e de ameaças de remoções.
I. Operação Urbana Centro | Lei nº 12.349 - de 6 de junho de 1997. Estabelece Programa de melhorias para a área central da cidade, cria incentivos para sua implantação, e dá outra providências. Dentro de uma grande operação urbana, como é o caso da OU centro, são previstos diversos projetos, como ferramentas mais direta de realização da operação. imagem 1: Operação urbana Centro. Fonte: produção própria
Operação Urbana Centro Ameças de remoção Famílias removidas
II. PIU Campos Elíseos | Parte do Projeto Redenção da Prefeitura de São Paulo. Diretrizes de intervenção poucos claras no material coletado. Necessidade de aprofundamento documental sobre as diretrizes de intervenção. imagem 2: PIU Campos Elíseos Fonte: produção própria
PIU Campos Elíseos Ameças de remoção Famílias removidas
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III. PIU Parque Minhocão | Proposta de desativação do Elevado João Goulart (“Minhocão”) como via de circulação de veículos. De acordo com a Gestão Urbana (2018): “Essa determinação foi atendida com a aprovação da Lei Municipal nº 16.833, de 7 de fevereiro de 2018, que estabeleceu a desativação gradativa do elevado como via de circulação veicular, o estímulo à realização de atividades culturais e esportivas nos períodos de interdição ao tráfego e a obrigatoriedade de propor a transformação parcial ou total do elevado em parque por meio de um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) um conjunto de estudos técnicos, processos participativos e discussões pública para proposição das intervenções urbanas que constituirão a implantação do Parque Minhocão.” imagem 3: PIU Parque Minhocão PIU Pq Minhocão
Fonte: produção própria
Ameças de remoção Famílias removidas
IV. PPP do Hospital Pérola Byington | Obra de uma nova unidade para o Hospital Pérola Byington na região onde se situava a chamada Cracolândia. Na região, é prevista também a construção de um centro de tratamento para usuários de álcool e drogas. As obras foram iniciadas em 2019 e a previsão é durem 36 meses. 21
imagem 4: PPP do Hospital Pérola Byington Fonte: produção própria
PPP Hospital Pérola Byington Ameças de remoção Famílias removidas
V. PPP Habitacional | Programa de habitação cujo um dos projetos se encontra no bairro. O objetivo central é adensar a área e “torná-la habitável, não apenas uma área de passagem.” de acordo com nota da gestão Urbana (2017)5 imagem 5: PPP Habitacional Fonte: produção própria
PPP Habitacional Ameças de remoção Famílias removidas
5 Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov. br/noticias/conheca-as-diretrizes-urbanisticas-do-projeto-redencao-regiao-da-luz/ (acessada em 24 de jeneiro de 2020) 6 Disponível em : https:// www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/ desenvolvimento_urbano/ sp_urbanismo/CE_OUCentro_23a_RE_apresentacao_2017_12_11.pdf (acessado em 24 de dezembro de 2020) 22
VI. Reabilitação Urbanística Campos Elíseos | Intervenção em Espaço Público, consiste na Reabilitação Urbanística e readequação de espaços Públicos Campos Elíseos, de acordo com documento apresentado na reunião extraordinária da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, 11 de dezembro de 2017 (pág. 106)6 .
VII. Projeto Nova Luz | De acordo com caderno de apresentação do projeto de 2011: “O patrimônio histórico materializado na Estação da Luz e no conjunto de edifícios tombados e a vitalidade das áreas adjacentes (República, Bom Retiro e Sé inclusive) moldaram o tecido urbano e social desta região ao longo dos anos e continuam a representar papéis cruciais na evolução e na transformação da área. Entretanto, influências adversas como o padrão periférico de expansão urbana e o declínio do uso residencial no centro criaram um legado de complexos problemas sociais e econômicos que vem contribuindo para agravar a percepção negativa da região por parte da população de São Paulo. Não obstante, a área tem elevado potencial de requalificação (social, econômica e ambiental) devido a sua localização estratégica e larga dotação de infraestrutura. O Projeto Nova Luz poderá representar um importante precedente urbanístico e social para as principais capitais do País.”7 imagem 6: Projeto Nova Luz Fonte: produção própria Projeto Nova Luz Ameças de remoção Famílias removidas
7 Disponível em: https:// www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/201108_PUE. pdf (acessado em 24 de janeiro 2020) 8 Diagnóstico e Caderno de referências disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/ uploads/2017/07/PIU_terminais-municipais_2017_07.pdf (acessado em 24 de janeiro de 2020) 23
VIII. PIU Terminal Princesa Isabel | Requalificação da área em torno do terminal Princesa Isabel, como parte do PIU Terminais Municipais, junto ao terminal Campo Limpo e Capelinha8.
imagem 7: PIU Terminal Princesa Isabel Fonte: produção própria
PIU Terminal Princesa Isabel Ameças de remoção Famílias removidas
IX. Decreto de Utilidade Pública | Os chamados DUPs são decretos que determinam perímetros de desapropriação de parcelas do território, vinculados a projetos urbanos. A partir dos DUPs, determina-se que essas parcelas do território são de interesse social para o município de São Paulo. A plataforma GeoSampa disponibiliza essas informações, discriminando, inclusive, qual o interesse público na desapropriação desses territórios - passagem de um corredor de ônibus ou construção de uma estação de metrô, por exemplo. imagem 8: Decresto de utilidade pública Fonte: produção própria
Decretos de Utilidade Pública Ameças de remoção Famílias removidas
X. Operação Urbana Água Branca | A operação urbana Água Branca foi proposta, inicialmente, em 1995. Em 2013, é aprovada pela Câmara de 24
Vereadores, na gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, a lei nº 15.893/2013, de atualização da Operação Urbana, adequando à legislação federal - Estatuto da cidade (2001) - e municipal - Plano Diretor Estratégico (atualizado em 2014).De acordo com a SPUrbanismo: “O novo Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, aprovado pela Lei 16.050 de 31 de julho de 2014, define a Macroárea de Estruturação Metropoimagem 9: Operação Urbana Água Branca Fonte: produção própria
Operação Urbana Água Branca Ameças de remoção Famílias removidas
litana (MEM), composta por três setores: Setor Orla Ferroviária e Fluvial, Setor Eixos de Desenvolvimento e Setor Central. Inserida no Arco Tietê, no setor da Orla Ferroviária e Fluvial da cidade, desenvolve-se a Operação Urbana Consorciada Água Branca (OUCAB). A partir do desenvolvimento de estudos para avaliação da capacidade de suporte da infraestrutura viária e para o incremento de equipamentos públicos e atendimento habitacional de interesse social, a Lei nº 15.893/2013 traz um plano urbanístico que contém melhorias nos sistemas de circulação e mobilidade, de áreas verdes, equipamentos e no adensamento populacional, complementando e estabelecendo novas diretrizes para a Operação Urbana, agora Consorciada. Mantidas importantes intervenções viárias e de drenagem que já figuravam na lei anterior, como o prolongamento da Avenida Auro Soares de Moura Andrade e as obras de drenagem das Bacias dos Córregos Água Preta e Sumaré na região da Pompéia, a Operação Urbana Consorciada Água Branca traz em seu texto legal 25
inovações como a definição do perímetro expandido, amplia as intervenções de infraestrutura viária e drenagem, construção de equipamentos públicos de saúde, educação e cultura, além de definir e assegurar recursos exclusivos para provisão habitacional de interesse social, ampliando o atendimento em relação à lei antiga. Outras importantes inovações trazidas pela Lei nº 15.893/2013 dizem respeito à participação e ao controle social.”
Em outubro de 2019, a Operação Urbana Centro foi revogada e em seu lugar foi instituído o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Setor Central, que mantém algumas das propostas aqui ilustradas. Independente de quais ainda estão em vigor, é importante destacar o número de propostas públicas de intervenção na área são apresentados em um curto período de tempo, grande parte delas com forte inserção da iniciativa privada e com baixa participação popular. Vale destacar ainda que nenhuma delas pensa a partir da perspectiva de permanência da população de baixa renda que habita a região e nem de reinserção dos antigos moradores da chamada Cracolândia na sociedade, visto que esses são tratados apenas como um problema a ser resolvido. Essas propostas serão discutidas com maior profundidade nas próximas etapas de pesquisa. Vale destacar ainda que, em paralelo à alguns desse projetos, há a proposição feita pelo Fórum Mundaréu da Luz, cujo projeto envolve as áreas do PIU do Hospital Pérola Byington e da PPP Casa Paulista, nas chamadas quadras 36, 37 e 38 do bairro Campos Elíseos. A proposta foi elaborada a partir de uma análise do território e em conjunto com os moradores como uma contra proposta àquelas feitas pela prefeitura. Assim como as demais, a proposta do Mundaréu da Luz será discutida mais a fundo nos próximos itens deste relatório.
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levantamento de movimentos sociais e ONGs atuantes na área central
É importante ressaltar o histórico de organização popular na cidade de São Paulo em torno da pauta da moradia. A cidade conta com diversos movimentos sociais que se aglutinam de acordo com princípios, região ou formas de atuação. Para que um movimento social possa pleitear a aquisição de unidades habitacionais para os membros por meio dos programas públicos de moradia, como o MCMV, por exemplo, é necessário que seja feito um processo de habilitação do movimento como entidade organizada e apta a se responsabilizar pelo contrato do empreendimento, de acordo com um estatuto e que os membros estejam com a documentação em dia para acessar o benefício. Esse processo se transforma em um problema criado pelo próprio programa, uma vez que a falta de repasses faz com que as obras atrasem, comprometendo - individualmente - o sujeito que foi colocado no estatuto como responsável, que fica impedido de se habilitar para outros processos9. A mobilização desses movimentos, especialmente na região central da cidade, é essencial para que se compreenda de forma mais ampla as disputas por território em São Paulo e como a organização popular coloca um horizonte de conquistas para a luta por moradia digna e direito à cidade das populações de 9 CAMARGO, Camila Moreno de. Minha Casa Minha Vida Entidade: entre os direitos, as urgências e os negócios/ Camila Moreno de CAMARGO; orientadora Cibele Saliba RIZEK. São Carlos, 2016. 27
baixa renda. Após os primeiros levantamentos surgiu a necessidade de que a noção do que é resistir fosse ampliada, indo além da questão da moradia. A partir disso, se introduz a atuação de coletivos e de ONGs que discutem a questão do direito à
cidade e das formas de repressão dos usuários de drogas na região de estudo, o que expande o espectro de compreensão do que é lutar e resistência nesse contexto de disputa. O levantamento foi feito a partir de um apanhado dos movimentos sociais de luta por moradia do município de São Paulo, verificando quais atuam na região do Campos Elíseos. Ao longo do processo de levantamento, se entrou em contato com alguns outros movimentos sociais, que não tem como pauta central a questão da moradia ou que apresentam outras formas de enfrentamento da questão. A partir dessas questões, o levantamento dos movimentos de resistência e luta que atuam na região do Campos Elíseos inclui: Frente de Luta por Moradia | Coletivo formado por movimentos autônomos de luta por moradia na cidade de São Paulo, visando somar esforços para conquistas projetos habitacionais e conquistar o direito à moradia. O MSTC é um dos movimentos que compõe a Frente. MSTC | Movimento Sem Teto do Centro de São Paulo. Movimento que conta hoje com 5 ocupações em prédios abandonados na região central de São Paulo, atendendo a mais de 300 famílias. O movimento conta com o apoio de universidades, jornalistas, artistas, arquitetos e arquitetas, profissionais da saúde, educadores e educadoras, coletivos de sustentabilidade, além de grupos de apoio à movimentos de luta por Moradia. A ocupação com maior repercussão do movimento é a Ocupação Cambridge, na avenida 9 de Julho, que foi ocupado em 2012 e tema do filme Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé. MTST | Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Movimento Nacional de trabalhadores e trabalhadoras de luta por Moradia, com forte atuação na cidade de São Paulo. Ainda que a organização do MTST seja territorial, a partir dos bairros periféricos, ainda há uma importante disputa por território que se dá na região central. O MTST é um dos maiores movimentos de luta por moradia urbana do país, chegando a ter sua principal liderança - Guilherme Boulos - como candidato à presidência nas eleições de 2018 pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). UMM | União dos Movimentos de Moradia, tem como principal objetivo a organização de movimentos populares autônomos de moradia, em defesa do direito à moradia e à cidade, de políticas públicas com participação popular e da 28
autogestão como ferramenta de construção de cidadania. Dentro os movimentos da região Central que integram a UMM estão a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC) e o Movimento de Moradia do Centro (MMC). ULC | Unificação das Lutas de Cortiços. A entidade foi fundada no início dos anos 1990 e hoje conta com mais de 6 mil participantes. A atuação do movimento se concentra no chamado centro expandido e em alguns bairros da zona leste, como Belém e Mooca. O movimento também compõe a UMM. Mundaréu da Luz | O Fórum Aberto Mundaréu da Luz reúne instituições e pessoas das mais diversas áreas que atuam na região da Luz, em São Paulo. O coletivo existe desde maio de 2017 e nasceu como frente de reação às ações violentas e autoritárias do poder público na região. O objetivo do Fórum é propor alternativas, a partir do diálogo com os moradores e comerciantes, que garantam mais qualidade de vida à população do bairro. O coletivo trabalha no projeto urbanístico e social Campos Elíseos Vivo, que propõe uma forma alternativa de viver e trabalhar no bairro. Craco resiste | O movimento foi criado em 2016 com o objetivo de coibir as ações violentas da Polícia Militar contra os dependentes químicos e os moradores da Cracolândia. Reúne diferentes sujeitos, dentre os quais o antigo coordenador do programa de Braços Abertos. Defendem a adoção de políticas de redução de danos e atuam como aglutinadores de sujeitos em situação de vulnerabilidade social e como organizadores de eventos e ações socioculturais na região. O levantamento desses movimentos e de sua articulação e histórico de conquistas na região central de São Paulo, tem como objetivo trazer uma nova camada de análise para o debate sobre a perda do caráter de resistência dos processos de regularização fundiária, a partir da experiência e conquistas recentes desses movimentos.
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geoprocessamento
A produção de cartografias foi usada como metodologia de pesquisa, buscando georreferenciar os processos analisados no território, a partir de um cruzamento destes. Para a realização do geoprocessamento dos dados, foi utilizada a ferramenta QGis e o software Adobe Illustrator, a partir de informações disponíveis na plataforma GeoSampa, de cartografias oficiais - da prefeitura de São Paulo - que delimitam o perímetro dos projetos de intervenção urbana e as cartografias participativas do Observatório das Remoções do LabCidade (FAU USP), que localizam as ameaças e processos de remoção na região. A escolha das informações a serem utilizadas partiu de uma compreensão inicial das informações relevantes para uma análise da área. O georreferenciamento do perímetro do bairro do Campos Elíseos parte da delimitação do fornecida pelo Google Maps, reproduzida em todas as cartografias. A partir do desenvolvimento das cartografias foi possível traçar paralelos entre as formas de ocupação, os processos de remoção e o uso dos instrumentos de intervenção como tecnologias de controle da população. Essas análises serão feitas ao longo deste relatório de pesquisa. 30
introdução
A cidade de São Paulo tem sua história marcada pela concentração de riqueza e poder. A legislação urbanística é ineficaz em regular os processos de produção da cidade10, sendo assim causa e consequência da distribuição desigual de renda e de população no espaço. De acordo com Rolnik: “A história dos usos da terra urbana é em parte a história da apropriação do espaço através tanto da ocupação real quanto da propriedade legal. Duas questões podem ser apontadas aqui: a raiz da noção de que o direito à terra está diretamente ligado a sua efetiva utilização, que remonta à própria ordem jurídica portuguesa, e a convivência entre um sistema oficial de concessão e um registro de terras virtual e acessível a poucos com a realidade de apossamento informal. Essa contradição, que, como vimos, não representa um problema ou uma fonte de conflito até 1850, passou a ser o elemento fundamental de tensão urbana a partir dessa data até os nossos dias.” (ROLNIK, 1997. pág. 22) 10 A ineficácia do processo de regulação da produção da cidade de São Paulo se coloca no sentido da reprodução das lógicas de segregação que se desenham na cidade Partindo de uma concepção da cidade neoliberal e do Estado como parte do processo de produção dessas segregações, se desenha, na realidade, uma legislação que cumpre seu papel na viabilização disso. ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997. 31
A partir da promulgação da Lei de Terras, há uma grande mudança na forma de apropriação da terra no Brasil, guardando consequências para o desenvolvimento das cidades. Com isso, a única forma legal de posse de terras passa a ser a compra, que deve ser devidamente registrada. É bastante importante que se pense, entretanto, na mudança do papel da propriedade na sociedade neoliberal. Essa condição, a partir das novas modulações do neoliberalismo no Brasil, será melhor trabalhada em próximas etapas de pesquisa. Entretanto, é importante entender as consequências da promulgação da lei de terras, não apenas como estruturadora de
desigualdades que se mantém até os dias de hoje - em especial ao que diz respeito à desigualdade racial e aos processos de segregação socioespacial -, mas em sua relação com a irregularidade da condição fundiária que se impõe sobre todo território brasileiro. Segundo Rolnik: “Foram duas as implicações imediatas dessa mudança: a absolutização da propriedade, ou seja, o reconhecimento do direito de acesso se desvincula da condição de efetiva ocupação, e sua monetarização, o que significa que a terra passou a adquirir plenamente o estatuto de mercadoria.” (ROLNIK, 1997. Pág. 23)
Essa alteração representa uma séria mudança na forma como a terra é encarada e em quais são os indivíduos que podem adquiri-la11. A transformação da terra em propriedade guarda até hoje as consequências para o espaço urbano e, 11 Aqui deve-se destacar a perspectiva já exposta de que a terra não é mais passível de ser acessada sem ser pela propriedade. Sendo, portanto, a possibilidade de acesso e ocupação da terra e dos espaços, necessariamente ligada a capacidade de compra dessas, evidenciando a monetarização da terra. 12 O processo de determinação do preço da terra deve ser entendido dentro de um a perspectiva histórica da formação dos núcleos urbanos, não apenas como pragmático relacionado ao espaço físico. Partindo da formação da cidade de São Paulo, inicialmente o núcleo urbano era ocupado por todas as classes sociais sem uma distinção socioespacial. A medida em que o núcleo se desenvolve, as regiões de várzea vão sendo ocupadas por cortiços, destinados às classes mais baixas. Com isso, as elites se deslocam para outras áreas da cidade. É nesse processo, inclusive, que se insere o processo de ocupação da região do Campos Elíseos. Ver: CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo”. São Paulo: Edusp/ Editora 34, 2000; BONDUKI, Nabil. “Origens da Habitação Social no Brasil”. São Paulo: Estação Liberdade / FAPESP, 1998.; VILLAÇA, F. (2000). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Fapesp/Lincoln Institute/Nobel. 32
em especial, para a provisão de moradia para populações de baixa renda. A partir do momento que a terra se torna uma mercadoria, passam a existir critérios de valorização dessa, que distinguem quem pode ocupar cada porção do território, sendo destinadas aos mais pobres apenas as terras de menor valor e, portanto, com menos infraestrutura, ainda que uma série de outros fatores interfiram na determinação desse valor, como localização, meio físico natural, entorno, etc12. Em paralelo, o valor da terra é sempre um entrave para o desenvolvimento de moradia para populações de baixa renda em regiões mais urbanizadas, impossibilitando a ocupação das regiões centrais. Vale destacar que a promulgação da Lei de Terras data de 18 de setembro de 1850. Como foi elucidado por José de Souza Martins: “Diante do esgotamento do escravismo e da inevitabilidade do trabalho livre, o Brasil decidiu, em 1850, pela cessação do tráfico negreiro, desse modo abreviando e condenando a escravidão. Optou pela imigração estrangeira, de trabalhadores livres. País continental, com abundância de terras incultas e um regime fundiário de livre ocupação do solo, condenou-se, nesse ato, ao fim do latifúndio, e, consequentemente, da economia escravista que sobre ele florescerá, da sociedade aristocrática que dele se nutrira. Duas semanas depois, porém, o Brasil aprovou uma Lei de Terras que instituia um novo regime de propriedade em que a condição de proprietário não dependia apenas da condição de homem livre, mas também de pecúlio para a compra da terra, ainda que ao próprio Estado.” (MARTINS, 2010)
Esse processo marca um ponto de inflexão no crescimento urbano de São Paulo. Ainda no século XIX, os limites entre os diferentes grupos sociais eram claros e bem definidos, não havendo qualquer dimensão da relação senhor-escravo que não fosse expressão de uma condição de dominação. A vida do escravo se circunscrevia dentro do território do senhor, “dominado pela força e violência físicas, marcado por diferenças culturais e pela cor de sua pele e desumanizado por seu discurso etnocêntrico.” (ROLNIK, 1997. pág. 30-31)
As relações de dominação não se limitavam ao âmbito da propriedade - da casa e da propriedade do corpo, da força de trabalho do escravo pelo senhor - mas se expandia para as sociabilidades do espaço público, da cidade. Começa a se desenhar, então, um processo que visa consolidar a rua como espaço de circulação por excelência, proibindo-se a realização de outras atividades, especial por populações de baixa renda13. Em contraposição, a função da rua como o espaço de conflito, de diversidade começa a ser disputada pela população subalternizada. Rolnik fala de um movimento de duplo sentido, retirando os “homens de 13 Aqui se coloca uma alteração na dinâmica vigente nas ruas. Como foi elucidado por Frehse: “Por fim, uma última regra possível de relacionamento social na rua no Brasil se insinua em abordagens da sociabilidade conflituosa ali: tensões com o poder público, pautado, por sua vez, em mecanismos de “institucionalização” (Frúgoli, 1995) e, mais recentemente, em políticas de “gentrificação” (Leite, 2004); e conflitos mais ou menos tácitos com “movimentações urbanas” supostamente excludentes (Frangella, 2009). Tais resultados interpretativos remetem à resistência como mediação simbólica da convivência social na rua. Esta é, pois, espaço de vínculos sociais de resistência.” (FREHSE, Fraya. A rua no Brasil em questão (etnográfica). Anuário Antropológico/ 2012-II, 2013: 99-129. São Paulo, 2012. Pág. 104) 14 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997. Pág. 31 33
bem” da mistura das ruas, a partir da criação de espaços exclusivos de encontro no interior das casas - as salas e escritórios - e fora delas - como os clubes, cafés e salões. Em contrapartida tem início o conflito entre a apropriação da rua como espaço de circulação e todos os demais usos que passam a ser automaticamente excluídos14. Na última década do século XIX, o lugar do poder municipal como legislador das formas de ocupação da cidade começa a se delinear: primeiro, com o redesenho das ruas centrais, visando a melhorar a circulação; e, segundo, com a eliminação das formas de ocupação de baixa renda, cuja principal materialização está nos cortiços das áreas centrais. “Com a proibição da instalação de cortiços, casas de operários e cubículos, proibiu-se genericamente a presença de pobres no centro da cidade, que no momento em estudo (década de 1890) era o principal objeto de investimentos através dos chamados ‘Planos de Melhoramento da Capital’. Esse tipo de intervenção no território ‘popular’ completava o projeto urbanístico municipal de construção de uma nova imagem pública para a cidade, aquela de um cenário limpo e ordenado
15 Essa questão é mais complexa do que o simples entendimento das políticas sanitaristas como formas de preservar a vida dos trabalhadores, mas também segundo o entendimento da rua como espaço civilizatório, de controle. Ver FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 16 Aqui vale destacar que a legalidade não corresponde aos ricos e a ilegalidade não corresponde aos pobres. Rolnik afirma que: “Mais do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder” (ROLNIK, 1999). Ver ROLNIK “Para além da lei”. 17 Coloca-se aqui uma contradição, visto que a região dos Campos Elíseos era uma das mais ricas da cidade, tendo sua paisagem marcada por grandes casarões de famílias ricas e tendo, inclusive, sido sede do Estado. Deve-se entender a diferença entre a vivência dos Campos Elísios e a forma como o bairro era representado. Como é ilustrado por Paulo César Garcez Marins: “As plantas e fotografias que figuram o bairro estão longe de demonstrar uma especialização social ou funcional radical, pois indicam, como visto, a presença de sequências de casas geminadas de tipo locatício e mesmo alguns exemplares de arquitetura industrial. Mas tais informações inscritas em imagens não lograram jamais contrastar a força dos discursos verbais que abordaram os Campos Elísios. O conjunto de textos que passam a ser examinados foi gerado entre 1895 e 1918, sendo constituído de publicações prioritariamente voltadas ao público externo à cidade. Em todos eles é marcante a caracterização do bairro como espaço residencial vinculado às elites locais, que paulatinamente sofreria concorrência de Higienópolis e da avenida Paulista.” (MARINS, Paulo César Garcez. Um lugar para as elites: os Campos Elísios de Glette e Northmann no ima 34
que correspondia à respeitabilidade burguesa com a qual a elite do café se identificava.” (ROLNIK, 1997. pág. 37)
É no fim do século XVIII que começam a aparecer também políticas sanitaristas, que exercem um importante papel no sentido de preservação da vida da classe trabalhadora, entendida como motor de funcionamento da economia. Essas políticas foram pensadas também no sentido de garantir a produção do trabalhador assalariado e sua disciplinarização15. Passa a se desenhar um imaginário no qual as condições precárias de moradia seriam associadas a imoralidade e a doenças, num processo de demarcação de um território rejeitados pelo imaginário urbano de uma cidade sadia e bela. Essas demarcações se materializaram - e ainda se materializam - na legislação urbana de São Paulo, delimitando espaços de pobreza, de insalubridade, de doenças e de imoralidade16. A lei, ao desenhar as áreas ricas da cidade, determinou também aquelas nas quais a pobreza poderia se instalar, num movimento, desde seu nascimento, centrífugo, nos quais as bordas da zona urbana são permitidas aos pobres: “A constituição de um mercado imobiliário dual, no qual os pobres estavam alocados na periferia, começou com a proibição de instalar cortiços na zona central definida pelas posturas de 1886 e reiterada pelo Código Sanitário de 1894, que proibia terminantemente a construção de cortiços e permitia a construção de vilas operárias higiênicas fora da aglomeração urbana. A lei 498, de 1900, isentou de impostos municipais os proprietários que construíssem vilas operárias de acordo com o padrão municipal e fora do perímetro urbano, delimitado por esta lei.” (ROLNIK, 1997. pág. 47)
Já se desenha, portanto, um espaço de disputa no centro da cidade. A região da Barra Funda/Campos Elíseos - sendo os Campos Elíseos a área de estudo deste projeto - foi no início do século XX, o território mais caracteristicamente negro de São Paulo - especialmente a Barra Funda -, sendo Berço samba paulista e sítio dos clãs africanos urbanos, nos cortiços e casinhas17. A região central de São Paulo aparece como epicentro de um processo repetido infinitas vezes ao longo da história da cidade, que sistematiza o movimento de um mercado que se alimenta da valorização das localidades capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação e, ao mesmo tempo, de valoriza-
ção dos espaços diferenciados ou exclusivos18. O centro cumpre ambos os papéis; constitui uma região privilegiada com relação ao restante da cidade por tratar-se do ponto de maior mobilidade da metrópole, com a presença de um sistema rodometroferroviário interligado, possibilitando o acesso a qualquer ponto da cidade. É também uma região com grande oferta de empregos19, concentrando uma ampla gama de possibilidades de trabalho em diferentes áreas e para diferentes tipos e graus de especialização. imagem 10: linhas de transporte Fonte: produção própria
ginário urbano de São Paulo. Retirado de “São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. Editora Alameda. São Paulo, 2011. Pág. 224) 18 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997.É importante destacar também - ainda que não seja objetivo fim dessa pesquisa, o processo de periferização e de expansão da malha urbana realizado e produzito pelo Programa Minha Casa Minha Vida, entendendo a centralidade do preço da terra na “escolha” dos terrenos para a construção dos empreendimentos do MCMV. Sobre o tema, existe ampla produção recente, da qual destaco CAMARGO, Camila Moreno de. Minha Casa Minha Vida Entidade: entre os direitos, as urgências e os negócios/ Camila Moreno de CAMARGO; orientadora Cibele Saliba RIZEK. São Carlos, 2016. 19 “Há dinamismo socioeconômico e político nas zonas centrais do município, pois não só predomina miséria, pobreza e marginalização. Nesse sentido, basta mencionar os 700 mil empregos 35
A partir desses elementos, a região dos Campos Elíseos, por sua localização estratégica e pela histórica disputa que se coloca em suas terras, foi escolhida como elemento de estudo das transformações das relações urbanas que se dão nesse espaço, entendido como espaço de conflito entre diferentes interesses e que é disputado por diferentes agentes. O bairro Campos Elíseos, localizado no distrito de Santa Cecília, na região central da cidade, teve sua ocupação inicial marcada pela presença de casarões de fazendeiros de café, sendo o primeiro bairro planejado de São Paulo, cuja origem remonta à inauguração da São Paulo Railway. A origem do bairro se dá ainda ao século XIX: “Em 1879, dois Alemães, Glette e Nothman compram a antiga Chácara do Capão Redondo (e desde que se tomou propriedade do Visconde de Mauá – Chácara Mauá) e, despendendo cem contos de réis, abriram ali ruas largas e alamedas ar-
borizadas. Tendo vendido grandes lotes apenas para famílias abastadas da capital, apuraram cerca de oitocentos contos de réis depois de vendidos os lotes. Assim nascia o bairro dos Campos Elísios, Champs Elysées paulistano, que marcaria o nascimento do modelo de bairro aristocrático, exclusivamente residencial e de alta renda.” (ROLNIK, 1999)
Ao longo de sua história, o bairro abrigou importantes famílias, dentre as quais se destaca a de Elias Antonio Pacheco Chaves, cuja residência - Palacete Elias Chaves - viria a ser, depois de 1907 com a morte do patriarca, a moradia dos presidentes da Província de São Paulo, então se chamando Palácio dos Campos Elíseos. A decadência do bairro tem início entre os anos 1950 e 1960, dentre outros fatores, devido à instalação da Estação Rodoviária20, em 1961, abrindo espaço para o estabelecimento de comércios de toda ordem. Esse processo contribuiu para a desvalorização da região dos Campos Elíseos, que por um longo período formais e informais, os 3,8 milhões de pedestres diários nos distritos da Sé e da República ou os 2 milhões de passageiros que são canalizados diariamente para esses locais através de 294 linhas de ônibus e dezessete estações metroferroviárias.” (KOWARICK, 2016) 20 O Terminal Rodoviário da Luz foi inaugurado em 1961 e desativado em 1988, transformado em um centro comercial, que foi demolido em 2007. A construção sempre foi muito criticada, tanto por sua localização na região central da cidade, como por seu estilo arquitetônico, colorido e chamativo. 21 Ver Flávio Villaça “A responsabilidade das elites e a decadência do centro do Rio e de São Paulo”. Ainda que antigo, o texto traz alguns elementos importantes para a discussão do processo de decadência da região central. 36
deixou de ser de interesse do mercado imobiliário, sendo então aberta a possibilidade de sua ocupação por parte de populações de baixa renda. A saída da sede do poder municipal do bairro, devido ao incêndio em 1967, fazendo com que esse fosse transferido para o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, também se coloca como importante elemento de desvalorização da área. Existem diferentes autores que buscam analisar o processo de desvalorização da região central, bem como seu aparente abandono por parte das elites. Villaça, por exemplo, defende a tese de que a decadência da região central das cidades tem íntima relação com o abandono dessa região por parte das elites, que deixa de usar o centro de São Paulo, tanto como lazer como comércio, como pode ser observado pela retirada de alguns tipos de estabelecimento da região21. Villaça afirma que: “A vitalidade depende dos empregos, do comércio, dos serviços. Estes, por sua vez, sustentam a vitalidade imobiliária. O espelho da chamada ‘decadência’ ou
vitalidade dos centros principais é sua estagnação, retrocesso ou vitalidade imobiliária. Abandonados pelas elites eles sofrem uma desvalorização imobiliária acentuada e os grandes investimentos imobiliários, os enormes arranha-céus de escritórios típicos das décadas de 50 e 60, não mais são construídos no centro.” (VILLAÇA, 1997) 22 Essa afirmação se coloca mais com relação aos edifícios comerciais e de escritório que, pelo momento no qual foram construídos, não respondem a algumas das demandas que são colocadas pelos avanços da tecnologia e pelo discurso de securitização das dinâmicas urbanas.
Vale destacar aqui que há sim grande disponibilidade de empregos, comércios e serviços no centro “velho” da capital paulista, mas que muitos deles já não atendem mais às elites22 que perdem o interesse para que sejam feitos grandes investimentos privados na região. Vale destacar que a necessidade de investimento não se limita ao setor privado, considerando a demanda pela manutenção da infra-
23 A palavra nasceu como corolário de “criminalização” e classes perigosas para justificar a intervenção pública por meios de Operações Urbanas ou Parcerias Público Privadas.
estrutura existente - construída em outra época - bem como as questões ligadas à
24 “Na Aurora, a Boca de Lixo; nas imediações da General Jardim, a Boca de Luxo, com seus stripteases; na República, os travestis, que segundo consta, também atendem os hotéis de luxo da Ipiranga; na Sé, os trombadinhas; e, ao lado dos consertos da Sala São Paulo, na Júlio Prestes, a desumanidade da Cracolândia, agora mal controlada, pois os consumidores se espalham por pontos próximos. A erradicação deste local é uma grande bobagem política e social; revela um espírito higienista, segregador, que lembra as ações da política sanitarista da década de 1910.” (KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. Sobre vulnerabilidade socioeconômica e civil. Editora 34. São Paulo, 2009. Pág. 120)
José Serra na prefeitura de São Paulo, o poder público tem feito diversos esforços
25 O Programa de Braços Abertos, iniciado em 2014 pela prefeitura, durante a gestão de Fernando Haddad, é focado na redução de danos, oferecendo 3 refeições diárias, trabalho - com o pagamento de R$15 ao dia -, tratamento e uma vaga em um quarto de hotel para cerca de 400 moradores da Cracolândia que antes habitavam 178 barracos de madeira montados na rua. Informações retiradas de reportagem do Jornal El País, de 2016. 37
preservação do patrimônio presente na região. Desde o início dos anos 2000, com o projeto Nova Luz, durante a gestão de
de revitalização do chamado centro velho da cidade de São Paulo, lançando mão de Projetos de Intervenção Urbana e Parcerias Público Privadas, numa tentativa de reacender o interesse do capital privado na região, com políticas que expulsam os moradores de baixa renda da área, acirrando o cenário de conflito. Essas tentativas vêm exatamente no sentido de fazer com que o centro velho volte a ser atrativo para o capital privado. Com o início da ocupação da chamada Cracolândia23 no início dos anos 2000, o parcialmente calculado abandono social da região da Luz aprofundou sua desvalorização, fazendo com que a capacidade de negociação dos especuladores fosse fortalecida e possibilitando a aquisição de terrenos no centro da cidade a preços relativamente baixos. As iniciativas para acabar com a Cracolândia - em especial pela gestão de João Dória, atual governador do estado de São Paulo, na prefeitura - se relacionam em parte com uma retomada das chamadas políticas higienistas24, contraditoriamente acompanhadas com o desmonte de políticas de redução de danos, em especial do Programa de Braços Abertos25. Esse cenário se acirra ainda mais com as propostas de Parcerias Público Privadas, com a criação de Operações Urbanas e Projetos de Intervenção Urbana (PIU) por parte da Prefeitura. Com isso, além
de um processo de higienização e de elitização da região central, se impõe a demanda do mercado pela valorização imobiliária a partir da retirada de populações “indesejáveis”26. De acordo com Maricato, a região central: “Trata-se do único lugar da cidade onde os interesses de todas as partes (mercado imobiliário, Prefeitura, Câmara Municipal, comerciantes locais, movimentos de luta por moradia, moradores de cortiços, moradores de favelas, recicladores, ambulantes, moradores de rua, dependentes químicos e outros) estão muito claros, e os pobres não estão aceitando passivamente a expulsão.” (MARICATO, 2015, p. 57)
No centro de São Paulo foi deflagrada uma guerra de classes, que ganha ainda mais força se comparada ao restante da cidade27, que acompanha o acirramento do processo de especulação colocado no país como um todo. A partir disso, é importante que se coloque a regularização fundiária como um instrumento capaz de garantir a permanência de grupos sociais em áreas de 26 Em entrevista, Rui coloca a necessidade de se entender os usuários de drogas como “sem lugar”, como uma população que é indesejável em todos os espaços da cidade. O usuário de droga não pode estar na periferia, nem no centro, nem em espaço nenhum da cidade, se desenhando como uma população em constante movimento e tendo na rua a única possibilidade de existir. 27 Ainda que hajam movimentos, ocupações e disputas que se colocam nas demais regiões. 28 Relação desse processo com o que é descrito em HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. O foco da gestão urbana está na geração de lucro e valorização imobiliária e não na otimização das dinâmicas urbanas, de forma bastante simplificada. 38
valorização imobiliária. A regularização também é usada - ou era, antes da mudança na legislação - como garantia da realização de obras de infraestrutura nas regiões periféricas, possibilitando uma melhora na qualidade de vida dos ocupantes. Coloca-se portanto uma contraposição entre os processos de regularização fundiária pautados na permanência de populações marginalizadas e os territórios que são palco de OUCs, PPPs e PIUs, que tem em si a demanda pela realização de despejos e remoções para que se alcance a valorização imobiliária28. No cenário de recente aprovação da lei federal nº13.465/2017, que reestrutura toda a política fundiária no Brasil, flexibilizando processos de regularização fundiária, os espaços destinados às diferentes populações se mostram como um importante tema de discussão, principalmente se considerando o papel histórico que a regularização teve como instrumento de resistência. Desde o início das discussões sobre reforma urbana e direito à cidade no Brasil, a questão fundiária apareceu no bojo dessas temáticas, entendida como ponto central para a democratização do acesso à cidade e a direitos básicos. Políticas de provisão de habitação são, ou deveriam ser, acompanhadas de outras
que pensam o acesso a bens e serviços básicos, como saúde, educação e lazer. No entanto, “políticas de solo voltadas para dar suporte a programas de promoção habitacional raramente escaparam do binômio desapropriação/localização periférica, muitas vezes através de operações de conversão de solo rural em urbano.” (ROLNIK, CYMBALISTA, NAKANO, 2013).
As políticas fundiárias no Brasil acabam por se tornar o principal mecanismo de transferência da arrecadação tributária aos proprietários de casas e terrenos, dada a ausência de impostos significativos sobre a propriedade imobiliária que marca a política fundiária no país. “A combinação destas condições é o conhecido quadro de ausência de políticas fundiárias redistributivas ou de ampliação de acesso à terra para moradia popular a nível federal bem como conteúdo do planejamento e gestão locais. Este quadro permaneceu inalterado, tendo sido impactado nos anos 80, pela falência do BNH e queda no nível de investimentos no setor, e, do ponto de vista político, pelo movimento pela redemocratização do país, no qual os movimentos sociais urbanos constituíram parte de sua base popular.” (ROLNIK, CYMBALISTA, NAKANO, 2013)
A regularização fundiária no Brasil é - ou era, antes da mudança de legislação - um processo demorado e burocratizado, além de muito oneroso, o que dificultava sua realização, em especial para populações em situação de vulnerabi29 De acordo com o levantamento feito em Iniciação Científica feita previamente pela bolsista, com a implantação da 13.465 não houve uma grande alteração no tempo de realização dos processos de regularização fundiária, como era esperado à princípio. Ainda que se esperasse uma desburocratização dos processos, pautado em um programa de regularização fundiária em massa, pouco mudou com relação ao tempo dos processos e ao número de processos concluídos em um determinado período. Ver GONÇALVES, Ana Luiza. Regularização Fundiária e remoções: políticas públicas em São Paulo e a formulação da lei nº 13.465/2017. Relatório científico ao CNPq. Orientação Prof. Cibele Saliba Rizek, 2018-2019. 39
lidade social29. A nova legislação descarta muitas dessas burocracias, mas não de forma adequada, abolindo mecanismos importantes ao invés de otimizar os processos, reduzindo a segurança de posse dos ocupantes, prejudicando os processos que visam garantir a preservação ou recuperação ambiental e tirando a prioridade da regularização de interesse social, que ficam igualados aos de interesse específico, beneficiando a iniciativa privada. A questão da informalidade e da irregularidade não deixam de ser centrais para o poder público. A ordem jurídica formal ou estatal nunca está totalmente ausente, se colocando, no mínimo, como mediadora de negociações que são estabelecidas e entre moradores/ocupantes desses espaços de informalidade. Da mesma forma, nos espaços ditos “formais”, construídos de acordo com a legislação urbanística, acontecem uma série de transgressões, que são consequência de sua
própria atratividade e valorização que essas regiões têm30. “Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente porque existem, na própria ordem jurídicourbanística, muitos tipos de irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática, diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do que morar em favelas.” (ROLNIK, 1999)
A partir desses elementos passa a ser importante compreender como as transformações urbanas contemporâneas redesenham a cidade e como se interrelacionam com os processos de intervenção urbana tal como os processos de regularização fundiária, por exemplo. O mesmo vale para o entendimento de como a esfera legal se entrelaça com os processos de transformação e de produção da cidade. Na região dos Campos Elíseos, entender como a dinâmica do capital imobiliário constrói novos campos de disputa se mostra como central para a compreensão, inclusive, do destino dessa área, marcada, nos últimos anos, pela monumental presença da Cracolândia - localizada nas chamadas quadra 36, 37 e 38, no quadrilátero entre as ruas: a Avenida Rio Branco, a Rua Helvétia, a Alameda Cleveland e a Alameda Glete -, sendo hoje ativo financeiro em si e palco de uma série de projetos que sinalizam o grande interesse do poder público e do mercado 30 ROLNIK, Raquel. Para além da lei. 1999. 31 Informações encontradas no mapeamento participativo, realizado pelo LabCidade, Laboratório de pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. 40
imobiliário na área, através de remoções, por parte dos governos municipal e estadual, e de projetos de intervenção como a PPP Casa Paulista do Centro e o PIU do Hospital Pérola Byington. O território, habitado por população de baixa renda, apresenta grande número de cortiços, pensões, ocupações, além de ser demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)31.
Com a implementação do Estatuto da cidade, as formas de intervenção do Estado na cidade começam a se alterar, prevendo, inclusive a criação de Planos Diretores municipais. Em São Paulo, essas mudanças se dão principalmente com o Plano Diretor Estratégico de 2002, na gestão de Marta Suplicy32 e com a lei nº 14.917, de 7 de maio de 2009, que diz respeito às Concessões Urbanísticas. O art. 1º da lei dispõe: “Art. 1º A concessão urbanística constitui instrumento de intervenção urbana estrutural destinado à realização de urbanização ou de reurbanização de parte do território municipal a ser objeto de requalificação da infra-estrutura urbana e de reordenamento do espaço urbano com base em projeto urbanístico específico em área de operação urbana ou área de intervenção urbana para atendimento de objetivos, diretrizes e prioridades estabelecidas na lei do plano diretor estratégico.” (Lei estadual nº 14.917/2009. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/infraestrutura/sp_obras/arquivos/concessaourbanistica_lei_14917_07_05_09.pdf )
Ao longo do período recente - desde 2010 - houveram muitas mudanças nas formas de intervenção urbana no município de São Paulo, passando pelas Concessões Urbanísticas, Operações Urbanas e Projetos de Intervenção Urbana (PIUs), com grandes complexidades nas transições entre elas. Esses instrumentos de intervenção urbana serão trabalhados de forma mais aprofundada nas próximas etapas de pesquisa, buscando levantar os elementos comuns e dissonantes nas diretrizes de intervenção na região central, além de uma relação entre a estrutura dos instrumentos e a potencial redução no caráter de resistência dos processos de regularização fundiária vinculados a eles. Sem entrar, nesse momento, no mérito desses instrumentos, o que se propõe no âmbito dessa etapa de pesquisa é discutir as formas de intervenção do Poder Público nessas áreas, de acordo com os instrumentos legais de intervenção urbana 32 Foi elaborado um novo Plano Diretor Estratégico, em 2014 - lei nº 16.050/2014 -, durante a gestão de Fernando Haddad na prefeitura que estabelece as orientações de desenvolvimento e crescimento de São Paulo, estando em vigor até 2030. 41
que são colocadas e se considerando a possibilidade de intervenções de caráter privado, como é o caso das Operações Urbanas, das Parcerias Público Privadas e dos Projetos de Intervenção Urbana. Com relação à redução do caráter de resistência dos processos de regularização fundiária de interesse social, entende-se que há, no momento atual do pro-
cesso de pesquisa, uma fragmentação com relação ao restante dos dados, aspecto este que será corrigido nas próximas etapas de pesquisa, a partir do cruzamento entre as questões referentes aos instrumentos de intervenção urbana, as remoções e reintegrações de posse, as ações do movimentos sociais e os processos de regularização fundiária em curso nos Campos Elíseos.
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resultados trajetória de pesquisa
A princípio, é importante ressaltar que toda a segunda etapa da presente pesquisa foi feita no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. A pandemia teve um imenso impacto no desenvolvimento de pesquisa, não apenas pela questão do isolamento social que se impõe, mas pelas novas modulações que passam a se acirrar no contexto da pandemia. Uma importante questão que se coloca também diz respeito à escolha do estudo de caso da pesquisa. Apesar de ser possível observar uma série de entrelaces entre as questões fundiárias e as dinâmicas de remoção no Campos Elíseos é importante destacar que essas remoções não se dão com o respaldo da lei nº 13.465/2017. Os processos de regularização no chamado centro velho de São Paulo, bem como as ocupações dessa região, são, em geral, muito anteriores inclusive à legislação anterior de regularização fundiária - lei federal nº 11.977/2009, conhecida como lei Minha Casa, Minha Vida, por ter sido a lei que viabilizou a implantação do programa. A partir disso, entende-se que existem dois processos que se colocam nesse trabalho: de uma lado, os processos que incidem sobre a região do Campos Elíseos - instrumento de intervenção urbanística, processos de remoções e despejos, guerra às drogas e as políticas que incidem sobre a Cracolândia, violência e im33 Ver ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? ESTUDOS AVANÇADOS 34 (98), 2020. 43
plementação de medidas policiais letais - e de outro os processos do que pode se entender como desregulamentação que se coloca no período pós golpe de 2016 - flexibilização e uberização do trabalho33, ligada à reforma trabalhista do gover-
no Temer, desburocratização dos processos de regularização fundiária (13.465), reforma da previdência, desmonte do programa MCMV e, mais recentemente, o lançamento do programa Casa Verde e Amarela. Apesar de partir de chaves de análise distintas, é importante que se entenda que esses processos se sobrepõem e se entrelaçam sob o neoliberalismo, em especial com as novas modulações que se acirram após o golpe de 2016. Entende-se portanto que os instrumentos de intervenção urbanística - Operações Urbanas Consorciadas, Projetos de Intervenção Urbanísticas, Parcerias Público Privadas - como um elemento de entrelace dessas duas chaves de análise. Destaca-se também que em decorrência da pandemia de Covid-19 houve um impedimento da realização de visitas à campo, de contato com os moradores da região do Campos Elíseos e com lideranças de movimentos sociais que atuam na região. Isso exigiu uma adaptação da metodologia que passou a ser mais pautada na produção de cartografias, no levantamento bibliográfico e na análise documental. A isso se somou a participação em alguns cursos de formação e disciplinas, além da realização de duas entrevistas - além da conversa com a professora Taniele Rui que já havia sido realizada no primeiro semestre de realização da pesquisa - com o professor Caio Santo Amore (FAUUSP | Peabiru) e com o arquiteto e urbanista Nunes Lopes dos Reis (Peabiru), cuja transcrição se encontra em apêndice deste relatório. A partir desses elementos, o presente trabalho se estrutura na tentativa de cruzamento desses elementos, entendidos como parte de um mesmo processo, no coração das modulações do neoliberalismo brasileiro.
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Campos Elíseos, São Paulo: Histórico e Análise da situação atual da região
O bairro do Campos Elíseos, na cidade de São Paulo, se localiza na região do chamado centro velho da cidade, entre os distritos da Luz e Santa Cecília. A região é marcada por um longo histórico de disputa pelo território, desde o início de sua ocupação, no fim do século XIX.O bairro foi inicialmente construído a partir imagem 11: localização do Campos Elíseos na cidade de São Paulo. Fonte: produção própria
de uma lógica de especialização social de frações da cidade, como um território destinado às elites cafeeiras do século XX. De acordo com Rolnik: “Em 1879, dois Alemães, Glette e Nothman compram a antiga Chácara do Capão Redondo (e desde que se tomou propriedade do Visconde de Mauá – Chácara Mauá) e, despendendo cem contos de réis, abriram ali ruas largas e alamedas ar45
borizadas. Tendo vendido grandes lotes apenas para famílias abastadas da capital, apuraram cerca de oitocentos contos de réis depois de vendidos os lotes. Assim nascia o bairro dos Campos Elísios, Champs Elysées paulistano, que marcaria o nascimento do modelo de bairro aristocrático, exclusivamente residencial e de alta renda.” (ROLNIK, 1999, p. 3)
Marins destaca que o loteamento do Campos Elíseos coloca Glette e Northmann como agentes da urbanização do espaço da capital paulista, propondo uma estrutura de bairro que antes não existia em São Paulo: “Loteado no fim da década de 1870, o bairro Campos Elísios inaugura a ação de Glette e, sobretudo, de Northmann como agentes da urbanização do espaço da capital, a partir da conservação de uma antiga chácara em bairro arruado geometricamente. Tomando como exemplo acabado de uma ruptura simultaneamente formal, devido ao tecido retilíneo de suas ruas e quadras, e social, devido à reputação de ser território das elites cafeicultoras, os Campos Elísios foram imaginados ao longo do século XX, em contraste com o que se pode aferir no exame das fontes cartográficas, como o início do processo de especialização social do espaço urbano da cidade.” (MARINS, 2011. p. 211-12)
Ainda segundo o autor, o nome do bairro, que faz referência ao Champs Elysées, em Paris, evoca essa lógica de exclusividade burguesa de frações urbanas socialmente uniformes e destinadas às elites. A partir do que pode se chamar de uma analogia ao image marketing - que marcou a produção do espaço urbano principalmente a partir dos anos 1970 - Glette e Northman, ainda no século XIX construíram uma imagem do bairro como livre de complexidade socioespacial e funcional, a partir de textos veiculados em jornais e revistas e de representações imagéticas do bairro, veiculadas entre 1895 e 1918, Com isso, se ignoravam os conflitos sociais ali presentes, destinados especialmente a pessoas externas à cidade e que buscavam consolidar o bairro como área destinada às elites locais - sofrendo, pouco a pouco, com a competição com Higienópolis e Avenida Paulista. Marins afirma que: “A confrontação das plantas de Huet de Bacellar (1892) e da Repartição Técnica da Águas e Esgotos (1894) sinaliza lotes vazios em todas as ruas, mais de quinze anos após o loteamento. Além disso, um perfil edilício evidentemente misto se 46
revela. São representados poucos palacetes isolados no lote, tipologia que poderia se julgar recorrente devido às exigências de Glette na transmissão de lotes. Há também, contraditoriamente a essa expectativa elitizante, numerosas residências geminadas, espacialmente no prolongamento do bairro para além da rua dos Bambus.” (MARINS, 201, p. 218)
Além dessas tipologias, havia também a presença de alguns galpões industriais no bairro, caracterizando o uso misto e evidenciando a dificuldade em estabelecer o bairro como exclusivamente residencial de elite, apesar da presença de palacetes de importantes figuras que já se colocavam na região - como Elias Pacheco Chaves Anésia da Silva Prado, Inácio e Olivia Guedes Penteado, os barões de Arary, os condes de Prates ou de Henrique Santo Dumont34. Com a consolidação de bairros de elites - cuja ideia passa a ser discutida em nível nacional - passa a difundir também um padrão arquitetônico a ser construído e que não se limita aos palacetes ajardinados - uso privado -, mas traz novos programas arquitetônicos, de escala mais grandiosa e ligados a um uso público, como monumentos, teatros, fóruns etc35. Vale destacar que a especialização social era uma prática em voga em Paris no século XIX e buscava atender a uma prática de distinção burguesa. Marins destaca ainda que: 34 MARINS, Paulo César Garcez. Um lugar para as elites: os Campos Elísios de Glette e Northmann no imaginário urbano de São Paulo. Retirado de “São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. Editora Alameda. São Paulo, 2011. p. 230. 35
Iden. p. 210
36 É importante aqui que se faça uma distinção entre o que se entende como burguesia e aristocracia. De acordo com Marins: “Novamente os Campos Elísios recebem a compreensão de que abrigavam um segmento - ou ao menos o ideal - de uma ‘classe de lazer’, algo próximo ao ócio que se atribuía ao comportamento da aristocracia face à burguesia operosa, que se estabelecia na avenida Paulista ou em Higienópolis” (MARINS, 2011, p. 237) 47
“Para além da fortuna, entretanto, é convocada a adjetivação aristocrática, na qual se expressa o caráter nobre e certamente fechado que oriundo do estamento nobiliárquico do Antigo Regime. Ainda que ocupados por fortunas provenientes em grande parte do comércio e da indústria, coube associar às elites econômicas da cidade, e seus bairros, a distinção advinda tradicionalmente da linhagem, do trato agrário, da toga ou, quando muito, dos títulos de nobreza concedidos pelo imperador deposto.” (MARINS, 2011, p. 227)
Ainda que em Higienópolis e na Avenida Paulista - bairros com os quais o Campos Elíseos concorria pela presença das elites - houvesse o que de fato pode ser chamado de especialização social, é nos Campos Elíseos que se consolida uma associação com a aristocracia36 do café, visto que em Higienópolis e na AV. Paulista, se instalava um perfil econômico muito mais diverso, como industriais, imigrantes empreendedores e alguns segmentos de cafeicultores mais ligados à
indústria. Marins afirma que: “Burguês na tipologia e na composição social, aristocrata no imaginário, os Campos Elísios serviram à forja de uma ideia de cidade disciplinada, refinada, exclusiva, estribada naquilo que a sociedade paulista podia evocar como sua vielle roche, seu padrão máximo de refinamento e distinção nata. Foi e ainda é o bairro mais associado aos ‘barões’ do café.” (MARINS, 2011, p. 231)
A condição do bairro como sede das elites paulistanas começa a se desmanchar por uma série de fatores, dentre os quais se destacam a inauguração da rodoviária - já fechada - em 1961, estimulando a instalação de pequenos comércios, além de uma maior circulação das classes mais baixa, a transferência da sede do governo do estado - que até então se localizava em um importante casarão do bairro - em 1964, o incêndio no Palácio dos Campos Elíseos em 1967. Com isso, tem início um processo de aceleração da mutação do bairro para uma área de perfil funcional misto, além da presença mais forte da habitação popular, hotelaria mais simples e pela presença mais acentuada de cortiços. É nesse sentido que a legislação urbanística passa a ser usada de forma a regular as formas de ocupação que são ou não permitidas em determinados espaços, de acordo com uma série de demandas, das elites, da aristocracia, da iniciativa privada, bem como da população. Rolnik afirma que: “A intensidade de uso é garantida através do estabelecimento de um território fora da jurisdição de lei, aonde a terra pode se subdividir ao infinito; a condição é não “contaminar” as vizinhanças. Daí decorre um duplo movimento estabelecido pela lei: por um lado garantir a “proteção” de determinados espaços contra a invasão de usos e intensidades de ocupação degradantes, de outro definir uma fronteira, para além da qual estes mesmos usos seriam tolerados. [...] A lei, ao definir que ali só pode ocorrer certo padrão, opera o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imóveis e, assim, permitir um alto retorno do investimento, mesmo considerando o baixíssimo aproveitamento do lote.” (ROLNIK, 1999, p. 2-3)
Sendo assim, pode-se argumentar que quando se define que um determinado espaço não permite a presença de habitação popular, se configura, fora do perímetro urbano, uma zona de obscuridade na qual o poder municipal teria menor 48
poder37. É importante destacar que desde o fim do século XIX, o Município transfere para a iniciativa privada uma parte significativa de suas responsabilidades públicas, como é possível observar, inclusive, na construção do Campos Elíseos como bairro residencial voltado para as elites - por iniciativa de empreendedores privados. Essa passagem de responsabilidade se deu de forma mais acentuada com relação à provisão de serviços e infra-estrutura urbana, como redes de água e esgoto, eletricidade, transportes urbanos e telefonia, através de concessões de monopólio a companhias privadas de capital estrangeiro - em sua maioria ingleses, canadenses e norte-americanos38. 37 É importante aqui que se faça uma distinção entre o que se entende como burguesia e aristocracia. De acordo com Marins: “Novamente os Campos Elísios recebem a compreensão de que abrigavam um segmento - ou ao menos o ideal - de uma ‘classe de lazer’, algo próximo ao ócio que se atribuía ao comportamento da aristocracia face à burguesia operosa, que se estabelecia na avenida Paulista ou em Higienópolis” (MARINS, 2011, p. 237) 38 ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936). In: Maria Adélia A Souza; Sonia C. Lins; Maria do Pilar C. Santos; Murilo da Costa Santos. (Org.). Metrópole e globalização - Conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo: Editora CEDESP, 1999, p. 07. 39 Ainda que não se trate de uma obra acadêmica, vale a indicação de GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. São Paulo: 1979. 40 ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936). In: Maria Adélia A Souza; Sonia C. Lins; Maria do Pilar C. Santos; Murilo da Costa Santos. (Org.). Metrópole e globalização - Conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo: Editora CEDESP, 1999, p. 10. 41 49
Idem, p. 12
Com o processo de industrialização por substituição de importações na capital paulista, como reflexo da Primeira Guerra Mundial, ocorreu um forte crescimento demográfico e se constituiu um proletariado urbano, aumentando de forma drástica a demanda por terrenos e habitações. Esse novo proletariado urbano, formado em grande parte por imigrantes - em especial espanhóis e italianos - de forte tradição anarquista passa a constituir uma rede de associações livres - sejam elas culturais, esportivas, escolares ou sindicais - que tiveram um papel político central na ampliação da base sindical paulista, incorporando questões que iam além do mundo do trabalho39. Essas associações funcionavam como “base territorial da ação direta, levando à prática da autonomia e autogoverno, princípios da doutrina anarquista.”40
Com a consolidação, em meados da década de 1920 do padrão urbanístico alicerçado na expansão horizontal, nos veículos a motor como meio de transporte dominante, na autoconstrução de assentamento informais e na irregularidade com relação às leis e códigos urbanos e de uso e ocupação do solo - que irá se configurar até os dias de hoje como dominante na metrópole paulistana, se estabelece uma “nova ordem jurídica onde a clandestinidade ganha o estatuto de uma extra-legalidade dependente da intermediação do Estado”41.
É central que se coloque que essa lógica de clandestinidade não se dá simplesmente por uma localização territorial nas bordas da cidade e/ou além do perímetro urbano. As regiões centrais, como fica claro pela presença massiva de
cortiços e ocupações, se inserem com força na disputa de narrativas entre legal e ilegal42. É a partir dessa perspectiva que o Campos Elíseos deve ser lido como ambiente de disputa que, desde sua origem, contrasta os palacetes da aristocracia e a presença - invisível na reprodução imagéticas do bairro - de cortiços e habitações populares. De acordo com Rolnik: “Esta contraposição não é absoluta: a ordem jurídica formal ou estatal nunca está totalmente ausente, mesmo no mais ilícito dos espaços. No mínimo, se apresenta como referente e é frequentemente mobilizada nas negociações que se estabelecem entre moradores/ocupantes destes espaços e as autoridades estatais, que são geralmente as encarregadas pela aplicação das normas. Da mesma forma, no interior dos espaços construídos de acordo com as regulamentações urbanísticas, existe uma infinidade de transgressões, fruto muitas vezes da própria atratividade e valorização que as regiões ultra regulamentadas têm na cidade.” (ROLNIK, 42 “Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente porque existem, na própria ordem jurídico urbanística, muitos tipos de irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática, diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do que morar em favelas.” (ROLNIK, 1999, p. 15) 43 Essa situação não é exclusiva da capital paulista, como mostra CAMARGO (2010) com relação à presença de cortiços da área central da cidade de Campinas e mapeamentos do Observatório das Metrópoles sobre a presença da tipologia na área central da cidade do Rio de Janeiro (em especial na zona portuária). 50
1999, p. 15)
No caso do Campos Elíseos, é importante entender a tipologia do cortiço como habitação popular, ainda que em outras regiões da cidade essa tenha sido - já nos anos 1930 - “substituída” pela autoconstrução das periferias e pela formação de favelas. Não há, em São Paulo, nenhum distrito que não conserve cortiços, seja nas regiões de implantação antiga desses, nas casas unifamiliares que são subdivididas para abrigar mais famílias ou nas periferias com o aluguel de cômodos e compartilhamento de quintais por diferentes famílias. No Campos Elíseos, além dos cortiços originalmente construídos no bairro, houve, ao longo do século XX, a ocupação de diversos casarões por populações de baixa renda que lá vivem em situação de encortiçados. A cartografia abaixo localiza os cortiços na região do Campos Elíseos e adjacências, possibilitando a percepção do cortiço como uma tipologia ainda bastante vigente para as populações de baixa renda nos grandes centros urbanos43. Hoje esses cortiços abrigam uma parcela significativa da população do bairro, em especial a população de baixa renda, além de muitos dos usuários de drogas que vivem no bairro. Em entrevista, o professor Caio Santo Amore, da FAUUSP, destaca a problemática em torno da questão dos cortiços da região do Campos Elíseos e dos
imagem 12: cortiços Fonte: produção própria
movimentos de luta por moradia na região central. De acordo com o professor, houve um importante deslocamento nas pautas de aglutinação dos movimentos sociais de luta por moradia da região central, que pode ser observado pelas mudanças na nomenclatura destes. inicialmente, a luta dos encortiçados era transversal aos movimentos de moradia. Hoje, dentre os movimentos que atuam na região central somente a ULC (União das Lutas dos Cortiços) traz em seu nome a questão dos cortiços. Amore destacou também o como é possível observar, no contato direto com os moradores de habitações precárias na região central da cidade, que o cortiço é visto como a mais precárias das formas de ocupação - “o cortiço é sempre o outro”. A cartografia abaixo mostra o cruzamento entre a presença de cortiços e duas das principais operações urbanas que se desenvolvem na região - a PPP do Hospital Pérola Byington e a PPP habitacional. Existem também processos de remoção - já realizados e ameaças - dessa área, a das quadras 35, 36 e 37, que são os principais campos de disputa da região. É nesse mesmo território que se coloca o projeto “Campos Elíseos Vivo”, desenvolvido de forma participativa pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz. O projeto leva em consideração importantes demandas da população de baixa renda e de moradores em situação de rua que ocupam o território, em especial os moradores da chamada Cracolândia. De acordo com o Fórum - fundado em maio de 2017 por diversos grupos e 51
imagem 12: presença de cortiços, PPP Hospital Pérola Byington, Decretos de Utilidade Pública e PPP Habitacional
Decreto de utilidade Pública PPP Habitacional
Fonte: produção própria
PPP Hospital Pérola Byington Cortiços Ameças de remoção Famílias removidas
instituições que já tem um histórico de atuação na área - estima-se que: “O número de usuários de drogas nas ruas de Campos Elíseos, segundo levantamento do governo do estado de São Paulo, cresceu 160% entre 2016 e 2017, chegando a 1.861 pessoas. Estima-se que 136 estejam em situação de rua. Dados complementares sobre o perfil dos beneficiários do programa De Braços Abertos apontam que: 77% têm mais do que 30 anos; 25% passaram pelo sistema socioeducativo durante a adolescência; 66% já passaram pela prisão (principalmente por tráfico, roubo e furto); 68% se autodeclararam pretos ou pardos. Para efeitos de comparação, 37% da população da cidade de São Paulo se declara preta ou parda, segundo o Censo 2010.”44
A questão dos usuários de droga nos Campos Elíseos ganhou evidência com o crescimento com o que ficou conhecido como Cracolândia45. O trabalho do 44 Fórum Aberto Mundaréu da Luz: Campos Elíseos Vivo: Plano Alternativo da Luz. São Paulo: 2018, p. 16.
Fórum, se coloca no sentido de enfrentar de forma propositiva as questões da re-
45 É importante destacar que, ainda que hoje o nome da região já tenha se consolidado para além do estigma, a denominação de cracolândia surge de forma pejorativa e buscando instigar o medo na população paulistana. Foi feita a escolha de não alterar a forma de denominação da região em função da notoriedade que já a caracteriza.
municipal e partindo das demandas e desejos da população local, o que inclui os
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gião, com um plano de intervenção alternativo ao que foi apresentado pela gestão
moradores da Cracolândia - muitos deles em situação de rua - e que são marginalizados inclusive das discussões sobre direito à cidade e luta por moradia digna. É central que se parta de uma perspectiva da concentração de usuários de drogas na região como uma questão de saúde pública e não a partir de um viés higienista. Essa questão se sobrepõe à situação fundiária do bairro, não podendo ser
desconsiderada a quantidade de edificações tombadas e que poderiam ser ocupado para fins de habitação, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela lei de zoneamento. Ainda que alguns dos casarões dos Campos Elíseos, como já foi mencionado, sejam hoje ocupados por populações de baixa renda, essas são combatidas por políticas de remoção e medidas de reintegração de posse por parte da municipalidade. Abaixo, o mapa das edificações tombadas, sobreposto aos cortiços, ilustra o entrelaçamento entre essas duas camadas. imagem 13: cortiços, favelas e bens tombados. Fonte: produção própria
Favela do moinho Bens tombados Cortiços
46 De acordo com a prefeitura de São Paulo: “As ZEIS 3 se localizam prioritariamente nas áreas centrais da cidade, principalmente nas Macroáreas de Estruturação Metropolitana e de Qualificação da Urbanização Consolidada. Nas ZEIS 3 deve-se, conforme o caso, recuperar áreas urbanas deterioradas e aproveitar terrenos e edificações não utilizadas ou subutilizadas para a construção de novos empreendimentos com HIS, HMP ou atividades não residenciais.” Disponível em: < https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/novo-pde-zeis/ >. Acessado em março de 2020. 47 Contemplam terrenos vazios ou subutilizados e se adequam a família com renda de até dez salários mínimos, de acordo com o dicionário da Lei de Zoneamento da prefeitura de São Paulo. Disponível em: <http://www. saopaulo.sp.leg.br/zoneamento/dicionario/> . Acessado em março de 2020. 53
A isso se soma a relação entre os edifícios tombados que são ocupados por cortiços, bem como a determinação desses como Zonas Especiais de Interesse Social. A relação entre a determinação das ZEIS e os processos de regularização fundiária, são elementos centrais dessa pesquisa e serão melhor discutidos no decorrer deste relatório. Uma parcela significativa do bairro é determinada pela lei de zoneamento como Zona Especial de interesse Social (ZEIS), níveis 346 - a maior parte - e 547 apenas dois fragmentos. Entretanto, é bastante importante a sobreposição entre a determinação de ZEIS e a presença dos cortiços e da favela do Moinho. O moinho é uma das últimas favelas de grande porte da região central da cidade de São Paulo e seu processo de remoção já tem uma longa história na cidade. Sobre o Moinho é importante destacar a ocorrência de alguns incêndios - potencialmente propositais - que aconteceram e que marcaram os processos de
ocupação da comunidade. A ocupação da favela do Moinho tem início a partir do moinho Matarazzo, a principal edificação da favela, que foi parcialmente demolida após um dos incêndios que a atingiu. O Moinho se localiza em um vazio entre a linha férrea, uma importante avenida e sob um viaduto, o que configura um ambiente de insalubridade e perigo constante para os moradores. A comunidade apresenta uma complicada situação fundiária e jurídica, além de muitos problemas relacionados à presença do tráfico de drogas na região. É importante destacar que existe um fluxo direto entre a região da Cracolândia e o Moinho, em especial após as tentativas de expulsão dos moradores da Cracolândia. Tanto a ocupação da favela do Moinho, quanto à manutenção dos cortiços na região do Campos Elíseos apresentam forte relação com os benefícios de habitar a região central. Isso se deve, entre outros motivos, à supracitada disponibilidade de postos de trabalho formais e informais a disponíveis na região bem como a condição privilegiada de abastecimento de transporte público, que possibilita aos moradores acessar com relativa facilidade e velocidade - se comparado ao deslocamento de outras regiões - a qualquer região da metrópole de São Paulo. imagem 14: densidade demográfica Fonte: produção própria
O mapa acima mostra a questão de densidade da região do Campos Elíseos, que é parcialmente justificada pelas questões discutidas acima. Se comparado ao mapeamento de localização de cortiços, é possível destacar pontos em que localidades onde existem cortiços - tipologias habitacionais marcadas pela densidade 54
populacional - há quase que um vazio, caracterizando-as como áreas de baixa densidade (0-115 habitantes/km 2). Essa imagem de abandono da área central, que passa por uma construção imagética, mas também pela leitura de cartografias oficiais, constitui a munição que ajuda a inflamar o discurso de necessidade de revitalização da área central. Sendo assim, é importante que se tenha o levantamento e cruzamento dos projetos de intervenção nessa região como inseridos nesse contexto de disputa - material e narrativa - da área central, contrapondo os projetos, os contextos e objetivos, os instrumentos de intervenção e os processos e ameaças de remoção vinculados a eles. Em contrapartida, a construção de Habitação de Interesse Social pelo Poder Público - especialmente pela municipalidade - se coloca nesse caldo como um mediador de disputas, usando a habitação como moeda de troca entre os interesses públicos e privados. É nesse sentido que a mudança na legislação de regularização fundiária, que a definição de critérios para programas habitacionais, que os processos de flexibilização do trabalho, que a vinculação - ou não - da definição de ZEIS e os processos de regularização, que os instrumentos de intervenção urbana, que os processos de remoção e que o contexto da região do Campos Elíseos se cruzam, nesse complicado tecido que é a capital paulista sob a lógica do capitalismo neoliberal contemporâneo.
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ferramentas de intervenção urbana
Na região do Campos Elíseos, é possível observar um grande desejo de intervenção por parte do Poder Público municipal, como fica claro pela sobreposição de diferentes escalas e propostas de projetos de intervenção. A partir do levantamento realizado, a cartografia abaixo ilustra a sobreposição dos diferentes projetos que se desenham sobre o território do Campos Elíseos. O mapa confirma a análise do bairro como campo de disputa, visto que - a partir desses diferentes projetos, toda região é objeto de um projeto. Além da sobreposição do perímetro das diferentes propostas de intervenção, a cartografia mostra os processos de remoção em curso, tanto as famílias que já foram removidas, como as que estão sendo ameaçadas de remoção. Bem como na lá apresentada cartografia que sobrepõe a presença de cortiços e os processos de remoção, nessa também é possível observar uma relação direta entre os processos de remoção e o perímetro das operações urbanas, o que determina seu caráter como promotora de uma “limpeza social” na região. São três os principais instrumentos de intervenção urbana que se desenham no território: as Operações urbanas Consorciadas (OUC) - Operação Urbana Consorciada Centro (já substituída por outros instrumentos) -, os Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) - PIU Campos Elíseos, PIU Parque Minhocão, PIU Terminal Princesa Isabel - e as Parcerias Público Privadas (PPP) - PPP Habitacional, PPP Hospital Pérola Byington. Além desses, destaca-se o Projeto Nova Luz, um dos mais antigos dentre os processos em vigor na região. 56
imagem 15: sobreposição dos projetos de intervenção na região do Campos Elíseos
OU Água Branca
Fonte: produção própria
Projeto Nova Luz PPP Hospital Pérola Byington DUP PIU Pq Minhocão PIU Pq Dom Pedro II PPP Habitacional PIU Pq Princesa Isabel PIU Campos Elíseos OU Centro Ameças de remoção Famílias removidas
De acordo com a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras do município de São Paulo: “Operações urbanas consorciadas são intervenções pontuais realizadas sob a coordenação do Poder Público e envolvendo a iniciativa privada, empresas prestadoras de serviços públicos, moradores e usuários do local, buscando alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Nesse instrumento, o Poder Público deve delimitar uma área e elaborar um plano de ocupação, no qual estejam previstos aspectos tais como a implementação de infraestrutura, nova distribuição de usos, densidades permitidas e padrões de acessibilidade.”48
Hoje, na cidade de São Paulo, só existem três operações urbanas em vigor: Faria Lima, Águas Espraiadas e Água Branca. A operação urbana Centro, trazida aqui apenas a título de registro, já foi revogada e substituída por outros instrumentos de intervenção. É importante destacar que as Operações Urbanas são instrumentos de intervenção de grande escala, sendo assim, dentro das diretrizes 48 Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov. br/cidade/secretarias/obras/ sp_obras/operacoes_urbanas/#:~:text=Operações%20 urbanas%20consorciadas%20 são%20intervenções,melhorias%20sociais%20e%20valorização%20ambiental. 57
da operação urbana, existem espaços pontuais que serão objetos de projetos específicos dentro da operação urbana. No que diz respeito às Parcerias Público Privadas, essas são definidas, de acordo com o Decreto nº 61.371/15, como interações de longo prazo entre o Es-
tado e a iniciativa privada “para o desenvolvimento de projetos para a prestação de serviços públicos e disponibilização de infraestrutura adequada aos usuários, com destaque e enfoque principal para as concessões comuns de serviços públicos e as parcerias público-privadas (PPPs), estas nas modalidades de concessões patrocinadas e administrativas.”49 Vale destacar que as PPPs são estabelecidas não com a municipalidade,
mas com o governo do Estado de São Paulo, o que define outras relações entre o público e o privado. É central destacar que na plataforma digital do Governo do Estado de São Paulo, as parcerias são trazidas na perspectiva de atração à iniciativa privada, com o principal caderno que discute as parcerias intitulado como “Oportunidades de Investimento”. Esse caderno já denota com clareza o caráter das Parcerias Público Privadas no que diz respeito à produção da cidade: o foco está na possibilidade de gerar lucro, nas oportunidades de investimento, em processo análogo ao que é trazido por Harvey (1999)50. No caso das duas PPPs que existem nos Campos Elíseos, é bastante importante destacar o projeto do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, que se contrapõe a elas. As PPPs habitacional e do Hospital Pérola Byington incidem sobre o território da chamada Cracolândia, nas quadras 35, 36 e 37 do Campos Elíseos, uma região que concentra cortiços, moradores em situação de rua e usuários de drogas. O projeto do Mundaréu da Luz, denominado Campos Elíseos Vivo51, foi elabora49 Disponível em: http://www.governo.sp.gov. br/parcerias-e-inovacao/concessoes-e-ppp/ 50 HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. 51 Caderno completo disponível em: https://mundareudaluz.files.wordpress. com/2018/04/completo_caderno-plano-alternativo-luz-r09-2018-04-10_web1.pdf 58
do de forma participativa com os moradores da região, levando em consideração as demandas, o perfil dos moradores, partindo de alguns preceitos básicos, sendo eles: Chave a chave: as famílias só saem de suas casas quando as novas unidades habitacionais estiverem prontas. Garantia de atendimento habitacional e diversificado, respeitando a diversidade de realidade das famílias; Mínimo de demolições: priorizar a requalificação, reforma e adaptação das construções já existentes e só construir novas edificações em áreas vazias ou subutilizadas; O projeto parte de uma ampla leitura da região e dos moradores e propõe
imagem 16: perspectiva esquemáticas das tipologias habitacionais Fonte: Caderno completo do projeto alternativo “Campos Elíseos” - Fórum Aberto Mundaréu da Luz
a readequação do território, para uma pluralidade de funções e de tipologias habitacionais. A imagem abaixo foi retirada do caderno do projeto, destacando as diferenças habitacionais. Em contraposição à demanda habitacional e de comércio, as propostas trazidas pelas PPPs, se desenham como propostas que desconsideram as questões colocadas no território. A PPP Hospital Pérola Byington e o Decreto de Utilidade Pública - vinculado ao projeto de implantação do terminal Princesa Isabel (PIU Terminal Princesa Isabel). Vale destacar que as duas quadras abaixo do DUP são determinadas como perímetro da PPP habitacional, de diretrizes pouco claras. Além dessas, existe ainda a intersecção de diversos Projetos de Intervenção Urbana - PIU Terminal Princesa Isabel, PIU Campos Elíseos, PIU Parque Minhocão e PIU Setor Centro. Destaca-se aqui a tese de doutorado de Carolina Heldt d’Almeida “Concessa Venia: Estado, Empresas e Concessão da Produção do Espaço Urbano”, sob orientação da prof. dr. Cibele Rizek, pela profunda análise do instrumento dos PIUs e das Operações Urbanas na cidade de São Paulo. Destaco também a discussão feita por Laisa Stroher52. 52 STROHER, Laisa. Operações urbanas consorciadas: financeirização urbana sem investidores financeiros? In: SHIMBO, Lucia; RUFINO, Beatriz (org.) Financeirização e estudos urbanos na América Latina - Rio de Janeiro: Editora Letra Capital, 2019. 59
Não se pretende, no âmbito desse território, fazer uma análise profunda desses instrumentos de intervenção. É importante, apenas, destacar o papel delas enquanto reguladoras das dinâmicas do território e da importância que a região do Campos Elíseos - e do centro da cidade de São Paulo como um todo - apresenta para o poder público e a iniciativa privada. Esse interesse tem impacto direto nos
processos de remoção que se desenvolvem nesse extrato da cidade. Em paralelo aos projetos de intervenção urbana, a atuação dos diferentes movimentos sociais que se organizam e disputam a capital paulista, desenham dinâmicas próprias desse território. Nesse sentido, retoma-se a importância da aprovação da lei federal nº 13.465, um dos pontos focais desse trabalho de pesquisa. A 13.465 tem um impacto indireto e fragmentado na produção desse espaço. Os processos de regularização fundiária na região do Campos Elíseos já correm na justiça a muitos anos, de forma a constituírem nós jurídicos que precede em muito a instituição dessa lei - ou mesmo de sua antecessora, de 200953. Entretanto, elementos que são trazidos pela nova lei - em especial no que diz respeito à desvinculação entre a definição de ZEIS e a priorização de processos de regularização fundiária de interesse social - contribuem fortemente para que caiba ao interesse privado quem pode ou não habitar esses territórios. Ao se pensar um cruzamento desse processo já em curso com a criação do novo programa habitacional do governo Bolsonaro - Casa Verde e Amarela, que substitui o programa Minha Casa, Minha Vida - é possível se pensar em novas modulações dessas dinâmicas que serão ensaiadas ao longo desse relatório.
53 Informações trazidas a partir da entrevista realizada com o professor Caio Santo Amore. 60
Cracolândia como espaço de disputa
54 O crack é uma droga sintética, obtida através da alteração da estrutura da cocaína, obtendo-se uma versão cristalina da cocaína. O nome é uma referência ao som que a droga faz, os estalos, quando queima. A droga tem efeito semelhante ao da cocaína, mas de forma acelerada, uma vez que é fumada, alcançando o pulmão e o cérebro rapidamente. Os efeitos também passam mais rapidamente, forçando o usuário a fumá-la com mais frequência para garantir a manutenção desses efeitos. Isso faz do crack uma droga que gera dependência acelerada e acentuada. Um dos problemas frequentes entre os usuários em situação de rua é o compartilhamento de cachimbos, muitas vezes feitos de materiais encontrados nas ruas; com isso, uma vez é frequente que os cachimbos causem feridas na boca devido ao calor, acelerando a propagação de doenças, inclusive daquelas que são sexualmente transmissíveis - pela transmissão de sangue entre os usuários. Ver a série de artigos publicadas em 2017 pela revista Le Monde Diplomatique sobre a região da Cracolândia, em um dos momentos recentes das disputas entre os moradores e o Poder Público. Disponível em: https://diplomatique.org.br/cracolandia-sp/ . Recomenda-se também o livro “Nas Tramas do Crack” da professora Taniele Rui e todo o seu trabalho de pesquisa sobre o tema. 61
O que se denomina hoje como Cracolândia é quase que um território itinerante de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social que transitam por diferentes pontos da região da Luz, mudando sempre que o Poder Público toma a liberdade de “limpar” o centro da cidade de São Paulo. O termo é uma referência pejorativa aos usuários de droga - em especial de crack54 - que povoam as ruas da capital paulista. Recentemente, os moradores e os movimentos sociais que pautam os direitos dos usuários e a necessidade de encarar a questão do uso de drogas e dos moradores em situação de rua não como um “problema a ser resolvido”, mas como uma questão de saúde pública, se apropriaram do nome. A partir disso, o termo Cracolândia passa a ser usado pelos próprios moradores e movimentos como forma de auto denominação- motivo pelo qual ele é usado no âmbito desse relatório. O uso de políticas públicas de intervenção urbana como parte da narrativa de destruição da Cracolândia não é novidade e se repete em diferentes gestões da prefeitura de São Paulo. Esse é um processo que se repete, seja com Operações mais diretamente voltadas para expulsão dos usuários como é o caso da Operação Limpa em 2005, da Operação Centro Legal em 2009, da Operação Sufoco em 2012 e das ações do então prefeito de São Paulo, João Doria em 2017. De acordo com artigo publicado na Carta Maior, são apenas: “nomes de ações de grande espetacularização promovidas pelo poder público, sob
o discurso de “revitalização” ou “requalificação” da região. Nada mais fizeram do que impingir sofrimento, induzir à errância e, posteriormente e longe dos olhos da mídia, servir para delinear os sempre móveis contornos espaciais da região, marcada historicamente por várias ocupações pelas classes populares, decorrentes de dinâmicas muito complexas de fluxos de mobilidade entre centralidades e periferias, repressão policial, transações mercantis e regimes de moralidade do tráfico de drogas, circulação de dinheiro e estratégias dos serviços assistenciais e de saúde.” (RUI, FRÚGOLI, FELTRAN, FROMM, 2014)55
É a mesma narrativa que é propagada com a nova fronteira cultural56 da cidade de São Paulo, vastamente debatida com a inauguração da Sala São Paulo, ao lado da Estação da Luz, colocada como uma “ilha reluzente em plena Cracolândia”57. Somadas às tentativas de expulsão dos usuários de droga e do sufocamento do que ficou conhecido como Cracolândia, se colocam os processos de remoção de moradores das ocupações da região, em sua maioria vinculados a Movimentos Sociais de Luta por Moradia, que se acirraram ainda mais no contexto da pandemia de Covid-19, como será discutido adiante. Ainda que as forças que buscam 55 RUI, Taniele; FRÚGOLI, Jr, Heitor; FELTRAN, Gabriel; FROMM, Deborah. Braços Abertos e Sufoco: sobre a situação na “Cracolândia”. São Paulo: Carta Maior, 2014. Disponível em: <https:// www.cartamaior.com.br/?/ Editoria/Direitos-Humanos/ Bracos-Abertos-e-Sufoco-sobre-a-situacao-na-Cracolandia-/5/30235>. Acessado em fevereiro de 2020.
expulsar esses dois grupos de cidadãos marginalizados sejam as mesmas, a nar-
56 Ver também: JOSÉ, Beatriz Kara. Cultura e espaço público no Centro Histórico de São Paulo (1985-2000) intervenções arquitetônicas e manifestações sócio-culturais e artísticas. São Paulo: Dissertação de Mestrado, FAUUSP, 2002.
expulsão das periferias e por serem rejeitados pelas famílias:
57 WISNIK, Guilherme; FIX, Mariana; LEITE, José Guilherme Pereira; ANDRADE, Julia Pinheiro; ARANTES, Pedro. Notas sobre a Sala São Paulo e a nova fronteira urbana da cultura. São Paulo: Revista Pós, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2001, p. 3. 62
rativa dos movimentos de luta por moradia frequentemente buscam se contrapor aos usuários de drogas, sendo comuns afirmações como “aqui não tem drogado/ traficante/bandido”, alimentando a discriminação dessa classe já marginalizada. Essa mesma narrativa marca o ideário das periferias. De acordo com Rui et al., muitos dos moradores da Cracolândia moram na região em decorrência de sua
“Os usuários de crack estão nesses espaços ou porque foram expulsos de outras periferias, por conflitos com suas famílias, traficantes, policiais; ou porque tomaram esta centralidade como refúgio último de uma cidade que só aí os acolhe. A perspectiva histórica mais ampliada deixa clara a ineficácia da política de repressão policial aos usuários de drogas no local, uma vez que eles continuam sempre a chegar de outros lugares. A “Cracolândia” é um problema da metrópole, não localizado apenas no centro.” (RUI et al, 2014)
É nesse sentido que o Programa de Braços Abertos, iniciado pela prefeitura
de São Paulo de 2015, durante a gestão de Fernando Haddad, se colocou como um importante modelo de política social, uma vez que tratou da situação como uma questão de saúde pública e não como problema que poderia ser resolvido com a expulsão ou internação forçada desses indivíduos. O programa funcionava a partir de um cadastro dos usuários que recebiam um pequeno valor diário em dinheiro em troca da prestação de alguns serviços à prefeitura. Além disso, houve a construção de alguns hotéis que serviram para abrigar os usuários em situação de rua durante o período de vigência do programa. Não era obrigatório que não se fizesse uso de drogas e houve um programa de internação voluntária para os moradores da Cracolândia. O Programa foi desmontado na gestão de João Doria que voltou a realizar ações violentas na região, com a prisão de mais de 150 pessoas em uma única operação em 2017. A partir disso começa a haver uma movimentação e organização social no sentido de garantir os direitos dessa população, como é o caso do Movimento Craco Resiste. O entendimento da situação da Cracolândia e das relações entre o território e os instrumentos de intervenção urbana na região do Campos Elíseos são centrais para o entendimento mais profundo da realidade do bairro e da região central como um todo, que já é objeto de estudo de diversos pesquisadores, colocado, em muitos momentos, como ponto focal dos conflitos pela terra e por direitos humanos na capital paulista. É importante reforçar o que já foi dito por Rui, de que a situação da Cracolândia e as formas como o Poder Público a governa não é apenas um problema que se localiza na região central da cidade, é um conflito que se coloca na escala da metrópole e que revela processos que impactam o metrópole de São Paulo como um todo. É nesse sentido que entende-se a necessidade de aprofundamento com rela58 Esse foi um dos mapeamentos indicados pela professora Taniele Rui em entrevista e que não foi possível de ser realizado. Entende-se que o desenvolvimento de tal estudo pode trazer informações bastante relevantes com relação ao discurso de desvalorização do bairro pela presença dos usuários de drogas que habitam a região. 63
ção ao impacto - especialmente financeiro - da presença da Cracolândia no bairro do Campos Elíseos58. A Cracolândia voltou aos holofotes de São Paulo mais recentemente no contexto da pandemia de Covid-19. Eram duas as principais questões que se colocavam na região: de um lado, os processos de remoção e despejos que se multiplicaram em um momento em
que o discurso de “ficar em casa” como principal forma de prevenção da doença era uma possibilidade sistematicamente negada às populações marginalizadas; de outro, a redução da circulação de pessoas nas ruas e o crescimento vertiginoso do desemprego - de postos de trabalho formais e informais - acirraram a condição dos moradores em situação de rua e os trabalhadores - em especial aqueles com baixa capacitação profissional - fazendo crescer a fome e a pobreza59. É central destacar que o principal fator de transmissão da doença - como mostrado em estudo do LabCidade60 - são os deslocamentos para trabalho, isso porque, às populações marginalizadas, quando foi possível manter os postos de trabalho, não tiveram a possibilidade de trabalhar na modalidade de home office. Esse processo se cruza com os despejos, uma vez que, ao serem expulsas da área central da cidade, os sujeitos se deslocam para as periferias, sendo forçados a passar mais tempo em transportes coletivos para chegar até o trabalho. Essa leitura simplificada dos processos que se sobrepõe no contexto da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo se coloca no sentido de preludiar potenciais novos estudos que podem se desdobrar a partir desse trabalho. A situação dos despejos será novamente abordada no decorrer deste relatório, uma vez que se entende como um processo central nas novas dinâmicas e modulações do neoliberalismo na cidade de São Paulo.
59 Não entraremos aqui no impacto que teve o pagamento do Auxílio Emergencial - proposto pela Câmara dos Deputados a partir de uma coligação de partidos de esquerda e apropriado pelo governo Bolsonaro - uma vez que pessoas em situação de rua e/ou de extrema informalidade não foram beneficiadas com o auxílio. 60 Disponível em: http://www.labcidade.fau. usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-de-casos-de-covid-19/ 64
regularização fundiária e remoções no Campos Elíseos: valorização imobiliária, resistência e necropolítica
61 Foucault caracteriza o biopoder como “conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana.” FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (19771978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. 62 A discussão sobre a necropolítica aplicada ao contexto do Brasil, considerando o evidenciamento deste no contexto da epidemia de COVID-19 foi exposta de forma excelente em entrevista fornecida pelo jurista Silvio Almeida ao programa “Lado B do Rio” em 07 de agosto de 2020, disponível nas plataformas de streaming e tocadores de Podcast. Em entrevista, Almeida discute a aplicação do conceito de necropolítica ao contexto atual brasileiro, em sua relação com o racismo estrutural e com as novas modulações do capitalismo que se desenham com a ascensão da extrema direita no Brasil. 65
Os processos de despejos dos quais a região do Campos Elíseos foi palco no contexto da pandemia de Covid-19, remontam às formas de governo das populações marginalizadas sob a lógica do neoliberalismo, em suas novas modulações. Essas novas modulações neoliberais se relacionam de forma direta com a aplicação de tecnologias de extermínio, em uma análise que se aproxima do que se entende por necropolítica. A noção de necropolítica desenvolvida por Mbembe parte do conceito foucaultiano de biopoder61, o qual é entendido como o domínio do Estado sobre a vida. A noção de necropolítica parte da crítica de Foucault à noção de soberania, em uma perspectiva decolonial, em especial no que diz respeito a sua relação com a guerra e o biopoder, ou seja, para além de um domínio sobre a vida, há um exercício de soberania sobre a morte. Mbembe caracteriza a necropolítica como o exercício de soberania no qual se define quem tem ou não direito à vida; quem deve viver e quem deve morrer. Entende-se que essa definição é determinante e reguladora das relações sociais, em especial quando ela é definida por características externas ao sujeito lugar de origem, cor da pele, situação social, religião62, etc. É isso que Foucault caracteriza como racismo, ou seja, uma relação de controle que “pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o
estabelecimento de uma censura biológica entre uns e outros.”63 Sendo assim a raça
tem local proeminente na racionalidade do biopoder: “Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros - ou a dominação a ser exercida sobre eles.”64
Portanto, é possível entender o racismo como a tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ou seja, do direito soberano de matar65. O processo de racialização dos corpos não pode se dissociar da colonização, uma vez que: “O processo colonial e as relações de poder têm, como um de seus matizes, o questionamento de identidades. Nesse processo de hierarquização e constituição de estruturas de poder, o colonialismo tem interseccionado, e como imprescindível em si, a racialização de características físicas e aspectos culturais dos povos explorados. Ou seja, os discursos e estereótipos construídos sobre o corpo e as 63 MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: edições n-1, 2020. Pág. 17 64
Ibidem, pág, 18.
culturas foram cruciais para o êxito e aceitação do processo colonial. Segundo a antropóloga Avtar Brah, a racialização do poder opera em e através dos corpos. Ou seja, esse discurso e essa representação são indissociáveis do poder político
65 Ibidem pág. 18-19; FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: cursos no Collège de France (19751976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
e econômico que constituem. Sem a racialização, o processo colonial e a hierar-
66 BORGES, Juliana. Necropolítica na metrópole: extermínio de corpos, especulação de territórios. Blog da Boitempo, 01 de junho de 2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com. br/2017/06/01/necropolitica-na-metropole-exterminio-de-corpos-especulacao-de-territorios/
agem interseccionadas e de modo indissociado para a manutenção da estrutura
67 É importante destacar que essas tecnologias não são `inventadas ́ pelo neoliberalismo. Como demonstrado por ampla bibliografia. Essas práticas são estruturantes das lógicas de governo desde o período da colonização no Brasil. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite; COSTA, Sérgio. Um porto no capitalismo global. São Paulo: Boitempo, 2020. 66
quização política e econômica teriam, sem dúvidas, maiores dificuldades de serem apreendidas e instituídas. Isso significa que não há hierarquia de opressões. Elas
de dominação.”66
Borges entende - a partir de Mbembe - que há uma relação direta entre o neoliberalismo e o emprego de políticas de extermínio de grupos que são colocados à margem do sistema67. Destaco no entanto, que esses processos se acirram ainda mais com as novas modulações neoliberais, se somando à força do aparato de repressão policial e do Estado exercendo controle e regulando os processos jurídicos que consolidam a subordinação de determinados grupos sociais não mais à exclusão, mas ao extermínio. Ainda de acordo com Mbembe, o Estado exerce o biopoder através do controle dos corpo, criando formas de clivagem das populações.
“Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’.” (MBEMBE, 2019. Pág. 59)
É nesse sentido que se coloca, de forma bastante clara, as tecnologias de repressão da região da Cracolândia, não se busca mais a internação, forçada ou voluntário dos usuário - “inscrição dos corpos em aparatos disciplinares” - mas sua inserção na ordem econômica máxima - entendida aqui pela representação do massacre, mas podendo ser pensada pela lógica da regulamentação, da inserção das população do mercado formal, via regularização fundiária, isentando o Estado de qualquer responsabilidade sobre a vida. O emprego dessa tecnologia pelas mãos do Estado pode ser observado em diferentes contextos68, dos quais destacam-se aqui as formas de governo usadas no contexto da pandemia de Covid-19, especial na região central da capital paulis68 Como é feito pelo próprio Mbembe no ensaio, ao fazer diversos estudos da aplicação da noção de necropolítica a diferentes contextos globais - escravidão nas colônias, sendo aplicável tanto pela situação dos negros escravizados nas Américas, quando na própria dinâmica de exploração e tráfico no continente africano; situação atual dos conflitos no Oriente Médio; políticas de guerra às drogas etc. 69 Não será discutido neste a questão da escolha das atividades que seriam priorizadas no processo de reabertura das atividades comerciais, visto que os impactos dessas escolhas ainda são pouco claros no contexto da pandemia, que segue em curso e estável em um platô de cerca de mil mortes diárias desde maio/2020. 70 Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19. http:// www.labcidade.fau.usp.br/ circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-de-casos-de-covid-19/ 67
ta. Em um momento no qual a preservação da vida passa, em grande medida, pela questão do isolamento social e da possibilidade de ficar em casa, o governo dos territórios marginalizados se mostra como elemento central para o enfrentamento da pandemia, em especial nas grandes cidades brasileiras. Assim, passam a se evidenciar diversas dinâmicas do território da cidade, que vão desde os fluxos moradia-trabalho, até a distribuição desigual do sistema de saneamento das cidades. É central que se entenda, também, a definição dos serviços essenciais como exercício de biopoder, uma vez que a determinação parte de uma ótica de que a cidade não pode parar, a economia não pode parar, independente de quantos - mas com um quem muito bem definido - tenham que morrer69. Neste contexto, destacam-se os processos de despejos e remoções realizados durante a pandemia que coloca a casa como ponto de ancoragem para o isolamento e distanciamento social, sendo esse um elemento chave para a manutenção da vida. É importante destacar, no entanto, que pesquisas realizadas pelo Instituto Pólis e LabCidade70 mostram que a questão mais importante para os dados de contágio é o trabalho e não a moradia, pelo menos que diz respeito à cidade de São Paulo.
Ao se discutir a região da Cracolândia, a narrativa de ‘Guerra às drogas’ se impõe como estruturante da regulação dessas relações de poder e dominação. A construção de um discurso, que parte do poder público, sobre a necessidade de limpeza do território, da construção de uma imagem de perigo vinculado à região, criam-se as “justificativas”, os argumentos por trás do emprego da força e da violência empregados para a “resolução do problema’’. Em contrapartida, não se tem um entendimento da presença do usuários de droga no território como uma questão de saúde pública, nem como uma população que se encontra à margem dentro de qualquer ótica - são moradores que habitação as ruas da área central em parte por serem expulsos também das periferias71, em um processo alimentado pela criminalização do usuário. Entende-se portanto, que os processos de despejo e remoção dessa população em situação de vulnerabilidade social extrema, com baixo ou nenhum grau de formalidade frente ao Estado e em um contexto de pandemia, no qual os dados mostram que a taxa de mortalidade varia de acordo com a renda72, devem ser entendidos como dimensões necropolíticas. Em contraposição ao crescimento dos despejos na cidade de São Paulo, teve início a Campanha Despejo Zero, que tem por objetivo a proibição dos despejos durante o período da pandemia. Ainda que a proibição tenha sido conquistada, de acordo com dados do Observatório das remoções, estima-se que entre abril e junho de 2020, 1300 famílias tenham sido afetadas por processos de remoção apenas na região metropolitana de São Paulo73. Houve também uma mobilização importante, a partir do Coletivo Mundaréu da Luz - formado por 25 entidades - no sentido de questionamento da declaração do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, 71 RUI, Taniele. Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2015. 72 LICHOTTI, Camille; BUONO, Renata. Jogando dados com o vírus. Revista Piauí, 17 de agosto de 2020. Disponível em: https://piaui. folha.uol.com.br/jogando-dados-com-o-virus/ 73 Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp. br/remocoes-aumentam-durante-a-pandemia-despejozero/ 68
que ameaçava a remoção de 400 famílias que ocupam a região da Cracolândia. De acordo com uma reportagem do G1, em carta de repúdio à declaração, as entidades que assinam a carta chamam a atenção para: “ - a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) trabalha com o número de 190 famílias nas duas quadras, cadastradas em 2017, para oferecer auxílio moradia e definitivo após as reintegrações. No entanto, hoje, há pelo menos 433 famílias, sendo somente 58 originalmente cadastradas.; - o auxílio moradia, oferecido provisoriamente às 190 famílias, é de R$ 400, valor insuficiente para seguir na região
central, onde estabelecera vínculos de trabalho, saúde e educação; - no conselho gestor, apesar de inúmeras demandas, não ficou claro ao longo dos anos de tratativas, quando as famílias deverão sair, como será o atendimento a elas, ou qual o valor das prestações de quem quiser obter suas moradias; - não há garantias sobre o atendimento permanente prometido, pois entre os antigos moradores da quadra 36, removidos em 2018 da mesma ZEIS, há pessoas sem atendimento, e quem conseguiu adquirir um imóvel via carta de crédito relata o aumento constante do valor das prestações; - em abril de 2018 foi construída a proposta “chave a chave” junto aos moradores, comerciantes e entidades, chamada “Campos Elíseos Vivo”, que nunca recebeu um posicionamento claro sobre o motivo de não adesão.”
Esses processos se relacionam de forma direta com a aprovação da lei federal nº 13.465/2017, a partir de dois elementos centrais que são colocados a partir de lei: de um lado, o desmonte do programa MCMV - que não é premissa da lei, mas se relaciona diretamente com sua aprovação - possibilitando a implantação de um novo programa habitacional pelo governo Bolsonaro. De outro, a desvinculação entre a determinação das Zonas Especiais de Interesse Social e os processos de regularização fundiária. Com isso, a definição de uma parcela do solo urbana como ZEIS não garante sua prioridade como destinação à Reurb-S. Sendo assim, é fundamental que sejam compreendidos os instrumentos colocados pela mudança de legislação, e quais as bases e interesses políticos que a sustentam.
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regularização fundiária sob a lei nº 13.465/2017
Em decorrência do processo de urbanização brasileiro e pelo vasto histórico de grilagem das terras, a regularização fundiária é uma questão central nas áreas urbanas e rurais no Brasil, existindo ainda cidades inteiras em situação de irregularidade, muitas vezes sob uma única matrícula. A partir disso, é central que se entenda a regularização, em especial no caso de assentamentos, favelas e ocupações urbanas como uma forma de garantir a permanência e a segurança de posse das populações de baixa renda nessas localidade, além de responsabilizar o Estado pela provisão de infraestrutura viária, de saneamento, de transporte, educação, saúde, cultura e lazer. Sendo assim, ao longo da história dos movimentos sociais e das discussões sobre direito à cidade e reforma urbana, a regularização fundiária foi usada como importante instrumento de resistência das populações e dos movimentos sociais que pautavam a permanência em áreas ocupadas ou de assentamento. Além das questões históricas que imbricam os processos de regularização fundiária, esses processos são burocratizados, demorados e onerosos, visto que uma parte significativa dos títulos ainda são manuscritas e ligadas aos cartórios de origem da matrícula. O processo e digitalização desses documentos começa a ser feito em 2009, com a lei federal nº 11.977, que cria um sistema digital e integrado de regularização passa a obrigar sua realização por parte dos cartórios. É essa 70
mesma lei que possibilita, a partir da questão fundiária, a criação do Programa Minha Casa Minha Vida - pelo qual a lei ficou conhecida. Em 2017, durante o governo de Michel Temer, foi elaborada e aprovada uma nova legislação de regularização fundiária, a lei nº 13.465/2017 que substituiu a lei nº 11.977/2009, gerando fortes manifestações por parte de movimentos e órgãos envolvidos nos processos de regularização, não apenas pelo conteúdo da lei, mas pela forma como ela foi elaborada, sem qualquer participação popular. A 13.465 parte de princípios liberais do papel do Estado, guiada pela produção do teórico Hernando De Soto74, que defende que o mercado é capaz de regular as diferenças econômicas e que a população pobre é capaz de resolver suas necessidades desde que possua um endereço - podendo conseguir um emprego, pedir empréstimos aos bancos etc. Essa visão isenta o Estado como provedor de direitos básicos aos mais pobres e coloca na titulação a única responsabilidade a ser cumprida, o que faz com que a regularização em massa - narrativa por trás da 13.465 - passe a ser colocada como uma política social. A partir desses elementos é importante que se coloquem duas questões: a primeira é que a regularização em massa, por si só não é um problema. Ao contrário, há sim uma demanda por desburocratizar, baratear e acelerar os processos de regularização, em especial aqueles de interesse social. A segunda questão é que a grande problemática da nova legislação está na redução da segurança de posse dos ocupantes e na diminuição do papel do Estado como provedor e mediador desses processos. Portanto, nessa etapa de pesquisa, é feita uma análise dos principais instrumentos da lei, buscando entender como ela altera os processos de regularização fundiária urbana de interesse social, para que, nas próximas etapas de pesquisa, seja possível identificar essa suposta redução do caráter de resistência da regularização fundiária sob a vigência da 13.465. Essa análise deve ser feita a partir das entrevistas, dos mapeamentos realizados e da análise dos instrumentos de intervenção urbana em vigor. A regularização fundiária é, portanto, um processo de legalização dos títulos 74 De SOTO, Hernando. O Mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001. 71
de posse e propriedade da terra, sejam elas públicas ou privadas, passando pela
necessidade de cumprimento da função social destas, de acordo com a legislação urbanística. A lei federal nº 13.465 de 2017 foi convertida em lei após a aprovação da Medida Provisória (MP 759) que a precedeu, em substituição à já mencionada lei nº 11.977/2009. A lei diz respeito, entre outras questões, aos processos de Regularização Fundiária. Aqui, a análise irá se limitar à Regularização Fundiária Urbana, a chamada Reurb, em suas três espécies, com um enfoque nos processos de interesse social (REURB-S). Esse recorte foi feito com o objetivo de discutir o caráter de resistência dos processos de regularização fundiária, bem como da aplicação da Reurb-S no contexto da região central da cidade de São Paulo, elencada como estudo de caso. Vale destacar a relação da 13.465 com as discussões em torno da pauta da reforma urbana, ainda que essa se coloque na contramão das demandas dos movimentos sociais de luta por moradia75. A regularização fundiária sempre se mostrou como uma importante ferramenta de luta pelo direito à cidade, caráter esse que tende a se perder com a nova legislação. Sendo assim, é importante que se mantenha a pauta da Reforma Urbana em torno da 13.465 para que essa não seja ainda mais soterrada pelos interesses privados. Regularização fundiária urbana (Reurb) inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais com a finalidade de incorporar os núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. As medidas jurídicas dizem respeito ao título de posse da terra, que dá ao ocupante segurança jurídica sobre a propriedade. Somados a estes, as medidas urbanísticas visam adequar o parcelamento do território à cidade regularizada e à implementação de infraestrutura básica (água, energia, esgoto, vias de acesso, etc.) para a localidade. Para tanto, o processo pode envolver remoção e realocação de famílias, de forma a alcançar essa adequação. As medidas ambientais buscam superar o problema dos assentamentos e/ou loteamentos implantados sem licenciamento 75 Ver ROLNIK, Raquel; CYMBALISTA, Renato; NAKANO, Kazuo Solo urbano e habitação de interesse social: a questão fundiária na política habitacional e urbana do país. São Paulo, 2013. 72
ambiental e em desacordo com a legislação urbana e de proteção ao meio ambiente. As medidas sociais, por sua vez, buscam soluções para garantir que as famílias beneficiadas pelo processo de regularização possam exercer o direito à moradia e à cidadania.
É importante que se coloque que os processo de regularização fundiária não se limitam aos territórios à margem das cidades e nem aos assentamentos informais, incluindo, por exemplo, edifícios desocupados, terrenos nas regiões centrais já construídos e, em alguns casos, grandes parcelas das cidades que não foram devidamente regularizadas em momentos anteriores, consolidando um grande nó fundiário no Brasil. A lei nº 13.465 discrimina 3 espécies de Regularização Fundiária: A primeira é a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (Reurb-S), que diz respeito à núcleos urbanos informais predominantemente ocupados por populações de baixa renda76. Considerando os dados colhidos por órgãos governamentais de pesquisa, como o IBGE (PIB, IDH, PIB per capita, presença de mobiliários nos domicílios, entre outros), a grande maioria dos municípios têm amparo estatístico para definir, através de ato do executivo municipal, quais serão estas áreas, podendo em todo tempo ser revista a definição das áreas objeto de Reurb-S (art. 30, § 3º, da Lei 13.465/2017), não sendo necessários gastos com estudos técnicos mais apurados nestes casos. A segunda é a Regularização Fundiária de Interesse Específico (Reurb-E), que diz respeito a núcleos urbanos informais ocupados por populações que não se enquadram na situação anterior, ou seja, com melhores condições de vida, 76 Nesse aspecto vale ressaltar a necessidade de aplicação da Reurb-S para regularização de edifícios que não cumpram com sua função social ou que tenha pendências com relação à arrecadação de impostos. 77 Vale destacar que a forma como a implantação dessa infraestrutura será feita foi alterado face à legislação anterior, uma vez que na 11.977 a titulação só poderia ser feita após a implantação da infraestrutura, enquanto que na 13.465, os diferentes processos - titulação, licenciamentos, infraestrutura podem ser feitos em paralelo mediante um termo de compromisso de que todos serão feitos. 73
mas que não possuem moradia juridicamente regularizada. Nessa categoria se enquadram, por exemplo, os condomínios fechados. A terceira espécie de regularização é a Regularização Fundiária Inominada (Reurb-I) que diz respeito a núcleos urbanos informais consolidados em data anterior à Lei de Parcelamento do Solo (lei 6.766/1979, DE 19 de dezembro 1979). Para a Regularização na categoria de Reurb-S é prevista a implantação de infraestrutura mínima para habitação - seja infraestrutura de saneamento, de locomoção ou de equipamentos públicos - em áreas que não contem com esta77. De acordo com Moura: “Na Reurb – S, caberá ao poder público competente, diretamente ou por meio da
administração pública indireta, implementar a infraestrutura essencial, os equipamentos comunitários e as melhorias habitacionais previstos nos projetos de regularização, assim como arcar com os ônus de sua manutenção.” (MOURA, 2017)
Na lei é garantido o direito à gratuidade das custas e emolumentos notariais e registrais para regularização fundiária. DIferente do que acontecia na lei nº 11.977/2009, na qual esses custos ficavam a cargo dos cartórios, na 13.465, o Estado é quem arca com eles. Sendo assim, são isentos apenas na Reurb-S: o primeiro registro, que confere os direitos reais aos beneficiários; o registro de legitimação; o registro do título de legitimação de posse e sua conversão em título de propriedade; o registro da CRF e do projeto de regularização fundiária, com a abertura de matrícula para cada unidade imobiliária urbana regularizada; a primeira averbação de construção residencial, desde que respeitado o limite de até setenta metros quadrados; a aquisição do primeiro direito real sobre unidade imobiliária derivada da Reurb-S; o primeiro registro do direito real de laje no âmbito do Reurb-S e o fornecimento de certidões de registro para os atos anteriormente citados. Para atos referentes à Reurb (S ou E), passa a ser dispensável a comprovação do pagamento de tributos ou penalidades tributárias, tais como ITCMD - Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação - (em caso de doação), ITBI - Imposto de Transmissão de Bens imóveis - (na compra e venda de outros direitos reais onerosos), INSS - Imposto Nacional do seguro Social - (nos casos de averbação de construção de até 70m²), taxas municipais etc. A lei 13.465/2017 não veda a comprovação apenas para Reurb-S, desta forma, uma doação feita pelo Município ao ocupante de um determinado imóvel objeto de Reurb-E também será abrangida pela isenção da comprovação. Segundo a Reurb, é vedada a exigência de quitação de tributos municipais, como o IPTU - Imposto Territorial e Predial Urbano - por exemplo, para que o beneficiário obtenha a regularização de seu imóvel. Sendo assim, a 13.465 não necessariamente reduz os benefícios dos processos de interesses social, mas aplica para todos os processos de regularização fundiária as facilidades que antes eram apenas aplicáveis para os primeiros. Essa 74
mudança, por inversão, privilegia os processos de interesse específico, favorecendo as populações de alta renda, o que desenha a principal problemática dessa nova legislação. Com relação às exigências da lei de Licitações (Lei 8.666/1993), segundo a nova legislação, os critérios não se aplicam no âmbito da Reurb (S ou E), desburocratizando o procedimento. A lei de licitações definia que a alienação de bens da Administração Pública estava: “subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, precedida de avaliação e, quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência.” (Lei 8.666/1993 art. 17)
Ainda que com foco em imóveis residenciais, a 13.465 não exclui outras modalidades de imóveis - comerciais, industriais, mistos, rurais etc. Sendo assim, poderá ser aplicado Reurb a imóveis com uso misto de atividades como forma de promover, de acordo com a própria lei, a integração social e a geração de emprego e renda no núcleo urbano informal regularizado. Como requisito para a concessão do Título de Legitimação Fundiária78 ao beneficiário do Reurb-S, a lei dispõe, em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, que seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação. Dado que a lei não veda a concessão do Título de Legitimação Fundiária na Reurb-E, entende-se que é possível que o Poder Público demonstre interesse público na ocupação e conceda o Título de Legitimação Fundiária, ou outro instrumento de titulação cabível, aos ocupantes de imóveis de imóveis não residenciais no âmbito de Regularizações Fundiárias de Interesse Específico. “Para fins da Reurb, os Municípios poderão dispensar as exigências relativas ao percentual e às dimensões de áreas destinadas ao uso público ou ao tamanho dos lotes regularizados, assim como a outros parâmetros urbanísticos e edilícios (art. 11, § 1º). Considerando que, em regra, esses requisitos e padrões urbanísticos são definidos em lei municipal/distrital, os municípios ou o DF deverão editar norma 78 A legitimação fundiária é um dos instrumentos usados na Reurb, criado na 13.465, conforme será descrito adiante. 75
possibilitando a mitigação das exigências citadas.” (MOURA, 2017)
Será permitida a regularização fundiária, por meio do Reurb-S, de núcleos
urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente contanto que haja a aprovação do projeto de regularização fundiária. O projeto de regularização fundiária de interesse social deve incluir estudo técnico que comprove a melhoria das condições ambientais em relação às condições anteriores. O documento deve conter, no mínimo, a caracterização da situação ambiental da área; especificação do sistema de saneamento básico; proposição de intervenções para a prevenção e controle de riscos geotécnicos e de inundações; recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização; uso adequado de recursos hídricos, não ocupação de áreas de risco e proteção de unidades de conservação - quando houver - devem ser consideradas para a comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano ambiental; comprovação da melhoria de habitabilidade dos moradores segundo o projeto proposto; garantia de acesso público à praias e cursos d’água. Nos casos que se enquadram como Regularização Fundiária Urbana de Interesse Específico (Reurb-E), será permitida a regularização de assentamentos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco mediantes aprovação de projeto de regularização fundiária que garanta melhoria das condições ambientais com relação à situação anterior e ser instruído com os seguintes elementos: a caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área; a identificação dos recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais e das restrições e potencialidades da área; a especificação e a avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento básico implantados, outros serviços e equipamentos públicos; a identificação das unidades de conservação e das áreas de proteção de mananciais na área de influência direta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou subterrâneas; a especificação da ocupação consolidada existente na área; a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama e outras definidas como de risco geotécnico; a indicação das faixas ou áreas em que devem ser resguardadas as características típicas da Área de Preservação Permanente com a devida proposta de recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização; a avaliação dos riscos ambientais; a comprovação da melhoria 76
das condições de sustentabilidade urbano ambiental e de habitabilidade dos moradores a partir da regularização; e a demonstração de garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e aos corpos d’água, quando couber. Para regularizações ao longo de rios e cursos d’água será mantida a faixa não edificável de 15 metros de cada lado. Em áreas urbanas tombadas como patrimônio histórico e cultural a faixa não edificável deve seguir os parâmetros do ato de tombamento. Segundo o art. 12, § 3º, a Reurb pode ser feita em etapas, atingindo somente áreas que não sejam ambientalmente protegidas. Na Reurb-I, de imóveis anteriores à 19 de dezembro de 1979 (Lei 6.766/1979) não será necessário apresentar estudos técnicos. (art. 69, § 2º). Quando houver órgão municipal legalmente habilitado, os estudos técnicos cabem ao município. Quando não, se tornam atribuição do Estado, segundo o art. 12, § 5º da lei nº 13.465/2017. A lei define também que a aprovação municipal do Reurb corresponde à aprovação ambiental quando houver órgão municipal legalmente habilitado. Para a realização da Reurb são considerados três instrumentos a serem aplicados: O primeiro deles é a Demarcação Urbanística, que consiste em um procedimento administrativo que caracterizado pela identificação do imóveis públicos e privados abrangidos pelo núcleo urbano informal, levantado seus limites, áreas, localização e confrontantes, e a obter a anuência dos respectivos titulares de direitos inscritos na matrícula dos imóveis ocupados, culminando com averbação na matrícula destes imóveis da viabilidade da regularização fundiária, a ser promovida a critério do Município79. A demarcação urbanística só pode ser consolidada pelo poder público, no entanto pode ser promovida por qualquer legitimado, sendo eles União, Estado, Distrito Federal e Municípios; beneficiários da regularização fundiária (individual ou coletivamente); proprietário de imóveis ou terrenos; 79 De acordo com a legislação anterior, a Demarcação Urbanística era um instrumento que só poderia ser aplicado em processos de interesse social. Na 13.465 esse instrumento foi universalizado para toda a Reurb. 77
Defensoria Pública e Ministério Público. É importante destacar que a demarcação urbanística não constitui condição para o processamento e a efetivação da Reurb, ou seja, não é obrigatória a sua realização.
O segundo instrumento da Reurb é a Legitimação de Posse, que consiste ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, o qual é conversível em direito real de propriedade, na forma desta Lei. A legitimação de posse é um instrumento de uso exclusivo para fins de regularização fundiária, sendo aplicável somente para áreas privadas (art. 25, § 2º). Após cinco anos é convertida automaticamente em propriedade, não sendo necessário provocação ou prática registral, desde que atendidos os requisitos da lei (art. 26, § 2º). O instrumento da legitimação de posse já era previsto na legislação anterior. O terceiro instrumento é a Legitimação Fundiária, caracterizada como um mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb (art. 23). “A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.” (Lei federal nº 13.465) A legitimação fundiária é um instrumento que foi criado pela 13.465 e é, sem dúvida, um dos pontos mais polêmicos da lei. O instrumento se coloca no sentido de desburocratizar os processos, guardando consequências diretas para a redução da segurança de posse para ocupantes de assentamentos precários e uma maior abertura para que construções sejam feitas de forma ilegal e depois regularizados por meio deste instrumento. É por meio deste que se dá a possibilidade de desvinculação do processo de titulação das obras de infraestrutura por parte do Poder Público, no âmbito da Reurb-S. Para Reurb-S de imóveis públicos, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e suas entidades vinculadas, tem autoridade para reconhecer o direito de propriedade dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio de legitimação fundiária. A lei não veda o uso de legitimação fundiária para Reurb-E, contanto que seguindo os mesmos requisitos de regularização fundiária 78
de Reurb-S. Os processos de regularização fundiária dos quais a região do Campos Elíseos é palco são muito anteriores à aprovação da 13.465 e, portanto, não têm a lei atual como instrumento regulatório. O entrelace que ocorre entre os processos na área central e a nova legislação de regularização fundiária se dá a partir de dois aspectos principais: a redução nas facilidades dos processos de interesse social se comparados aos de interesse específico e desvinculação entre os processos de regularização fundiária e a determinação das ZEIS A redução na diferenciação entre os processos se dá pela mudança dos critérios de enquadramento dos processos como de interesse social ou específico e pela aproximação entre os instrumentos de regularização nos dois casos. Sendo assim, o que ocorre não é uma redução na priorização da Reurb-S, mas uma facilitação para a Reurb-E. Isso faz com que seja possível que o órgão responsável pela regularização possa enquadrar qualquer processo como Reurb-E, se isentando de garantir a construção de infraestrutura para a regularização - que fica a cargo do solicitante - e do pagamento com as despesas de cartório - bastante onerosas. Em relação à desvinculação dos processos com o desenho das ZEIS, esse se dá pela retirada no artigo que fazia a determinação (presente na lei federal nº 11.977/2009). Com isso, a determinação de uma fração do território como Zona Especial de Interesse Social não faz com que haja nela prioridade para realização da Reurb na modalidade Social. Esse é um dos aspectos mais importantes no que tange a região da chamada Cracolândia, uma vez que toda a argumentação em torno da manutenção dos moradores das quadras 36 e 37 - destinadas atualmente à PPP Hospital Pérola Byington e como Decreto de utilidade Pública, vinculado à PPP do terminal Princesa Isabel - está na determinação dessas quadras como ZEIS 3.
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movimentos sociais e ocupações no área central
A cidade de São Paulo apresenta um longo e importante histórico de atuação de movimentos sociais de luta por moradia, em especial no que diz respeito àqueles que se formaram na área central da cidade. A região é marcada pela disputa pela terra, sendo o berço de alguns dos mais importantes movimentos sociais do Brasil, tendo forte influência sobre os movimentos de reforma urbana, na organização de ocupações de edifícios e na mobilização em torno da construção de empreendimentos habitacionais via Estado, a partir de diferentes programas de habitação. A pauta em torno da qual esses movimentos se aglutinam, bem como o território onde se estabelecem sofreu diversas alterações ao longo da história da capital paulista, no qual destaco o deslocamento da luta dos encortiçados e da questão do preço dos aluguéis para uma atuação mais ligada à ocupações de edifícios e terrenos ociosos e da construção de empreendimentos habitacionais, pautados na casa própria. Houve também um importante deslocamento dos territórios de atuação dos movimentos. Com o processo de industrialização da cidade e a criação de vilas operárias para os trabalhadores da indústria, somado à organização sindical influenciada pela imigração de italianos e espanhóis ligados à movimentos comunistas e anarquistas, têm-se início um processo de organização social em torno das condições 80
de vida e trabalho dos moradores da capital paulista, ainda bastante calcado na área central da cidade e nos bairros ligados À produção industrial. De acordo com Bunduki, a questão da habitação social começa a se desenhar de forma mais pungente, em especial na cidade de São Paulo, durante o governo Vargas. O autor afirma que a lei de inquilinato se insere como contraponto a nível urbano das medidas tomadas por Vargas para regulamentar as relações entre trabalho e capital, defendendo as condições de trabalho dos assalariados urbanos e consolidando a imagem de ‘pai dos pobres’ de Getúlio Vargas: “Entre as medidas mais importantes implementadas pelo governo no que diz respeito à questão habitacional, estiveram o decreto-lei do inquilinato, em 1942, que, congelando os aluguéis, passou a regulamentar as relações entre locadores e inquilinos, a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência e da Fundação da Casa Popular, que deram início à produção estatal de moradias subsidiadas e, em parte, viabilizaram o financiamento da promoção imobiliária, e o Decreto-Lei n.° 58, que regulamentou a venda de lotes urbanos a prestações.” (BUNDUKI, 1995, pág. 711)
Bunduki entende que, é durante a Era Vargas que a questão habitacional é assumida pelo Estado e pela sociedade como questão social, sendo esse o marco do início de políticas públicas de habitação de interesse social. Ainda de acordo com o autor, o período da República Velha foi marcado pelo ausência do Estado no que diz respeito à provisão habitacional: “Fiel ao liberalismo predominante, o Estado privilegiava a produção privada e recusava a intervenção direta no âmbito da construção de casas para os trabalhadores. Assim, suas iniciativas restringiam-se à repressão às situações mais graves de insalubridade, via legislação sanitária e ação policial, e à concessão de isenções fiscais, que beneficiavam basicamente os proprietários de casas de locação, ampliando sua rentabilidade.” (BONDUKI, 1995. pág. 712)
Na década de 1920, a habitação via locação era a maioria entre os moradores da cidade de São Paulo. Grande parte dos trabalhadores de baixa renda moravam em cortiços e estima-se que “quase 90% da população da cidade, incluindo quase a totalidade dos trabalhadores e da classe média, era inquilina, inexistindo 81
qualquer mecanismo de financiamento para aquisição da casa própria.” (BONDUKI, 1995. pág, 713)
O bairro dos Campos Elíseos, como já descrito em item anterior, foi pensado, em sua origem, como bairro destinado às elites cafeeiras da capital paulista. Com o deslocamento destes para outros bairros, como a região da Paulista e de Higienópolis, em parte ligada a mudança da sede do governo do estado e à construção da rodoviária, atraindo comércios e serviços, presença de cortiços nos Campos Elíseos se faz crescer, ainda que essa já fosse uma importante forma de ocupação do bairro. Kohara80 descreve um processo de mudança na nomenclatura dos movimentos sociais de luta por moradia relacionada a um processo de transformação nas formas de acesso à moradia e no entendimento que é feito sobre a moradia. O cortiço vai sendo, cada vez mais, visto como uma tipologia habitacional inferiorizada e que deixou de ser pauta de grande parte dos movimentos sociais. Em entrevista, Caio Santo Amore narrou um fenômeno de negação do cortiço entre os moradores de moradia precárias nas áreas centrais da cidade de São Paulo. De acordo com Amore, os moradores começam a se identificar como moradores de pensões, sistematicamente negando o cortiço, que é sempre o outro, o pior, o mais precário. Atualmente, de acordo com levantamento realizado, destacam-se três principais pontos de ancoragem dos movimentos sociais que atuam nos Campos Elíseos: dois vinculados à questão da moradia e um aos usuários de drogas e pessoas em situação de rua. Destaco a atuação do Mundaréu da Luz na produção do Plano Alternativo para as quadras 35, 36 e 37 do Campos Elíseos (Campos Elíseos Vivo) que ainda que seja mais pautado na questão habitacional, considera a pluralidade de atuação dos movimentos, congregando as diferentes pautas que 80 KOHARA, Luiz. Relação entre as condições da moradia e o desempenho escolar: estudo com crianças residentes em cortiços. Orientação: Maria Ruth Sampaio Amaral. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, 2009. 82
se somam na região. O movimento Craco Resiste, principal expoente no que diz respeito à luta pelo direito dos moradores da região da Cracolândia, se pauta na perspectiva de entender a questão dos usuários de droga, em especial daqueles em situação de rua como elemento de saúde pública, defendendo os direitos dessa população e o
respeito à vida desses indivíduos. Os movimentos ligados à questão da moradia podem ser identificados a partir de dois principais grupos. De um lado os movimentos que ainda trazem em si o cortiço como tipologia habitacional central - em especial a União das Lutas de Cortiço (ULC). De outro, os movimentos que têm nas ocupações de edifícios ociosos o elemento central, dentre os quais se destaca o MSTC - Movimento Sem Teto do Centro de São Paulo. Os movimentos de luta por moradia, ainda que com siglas, formas de organização e atuação distintas, tem se aglutinado em frentes amplas de luta. Dentre elas, destaca-se a Frente de Luta por Moradia e a União dos Movimentos de Moradia (UMM). Não se procura aqui analisar de forma direta as formas de atuação dos movimentos sociais81 na região dos Campos Elíseos, mas apenas esboçar como existe 81 Destaco aqui a tese de doutorado de Isadora Guerreiro, ainda que apresente um foco de discussão bastante distinto, pelo esforço de sistematização e análise da atuação de movimentos sociais de luta por moradia. GUERREIRO, Isadora de Andrade. Arquitetura a contrapelo: As estratégias de produção do urbano dos movimentos populares durante o Estado Democrático Popular. Orientação: Vera Maria Pallamin.São Paulo: FAU USP, 2018. 82 OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e a Exceção. Ou o Estado de Exceção? In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol.5, n.1, maio de 2003. DOI: http:// dx.doi.org/10.22296/23171529.2003v5n1p9 83 ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo, Boitempo Editorial, 2014 84 Esses questionamentos foram feitos dentro do grupo de trabalho composto por Ana Clara Oliveira de Araújo, Debora Pereira de Brito, Laura Adami Nogueira, Lígia Lupo, Maria Sylvia Baptista Serra e Tiago Hindi na Disciplina “Teorias da Modernidade”, ministrada pelos(as) professores(as) Cibele Saliba Rizek, Marcel Fantin, Camila Moreno de Camargo e André Dal’Bó. 83
uma pulverização das pautas e das formas de atuação dos movimentos, bastante ligadas às disputas internas e ao processo de institucionalização desses movimentos, ligado principalmente ao período lulista e às demandas do Programa MCMV, em especial na modalidade Entidades. Vale ressaltar também um processo do que Oliveira82 aponta como um esgotamento dos horizontes utópicos ligado à atuação desses movimentos sociais. Relacionado também à discussão feita por Arantes83 bastante pautada na noção de dialética negativa, na qual as zonas de transição entre os processos históricos se convertem em zonas de contenção. Ou seja, se perde um horizonte de utopia, de grande objetivo que está por trás da atuação do movimento, que passa a responder de forma direta à realidade concreta, sem que haja de fato um projeto de transformação dessa realidade84. Essa é uma questão que se mostra concreta quando se pensa a questão motriz de atuação dos movimentos sociais. No período anterior à ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964, as discussões sobre reforma urbana permeiam o campo progressista no Brasil, a partir de um projeto político de garantia do que viria a ser entendido como direito à cidade - a obra de Henri Lefèbvre, que cunhou o termo, foi escrita nesse mesmo ano. No período de redemocratização, os movimentos passam a se organizar em torno da pauta do direito à moradia, pela provisão estatal, entendendo - e esse são
pontos em disputa - como vitórias a inclusão do direito à moradia na Constituição Federal de 1988, a criação do Estatuto da Cidade (2001) e do Ministério das Cidades (2003), com destaque para criação e implementação dos Planos Diretores Estratégicos para as cidades brasileiras (lei nº10.257/2001, vinculado ao Estatuto da Cidade). Com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida, esse horizonte de atuação dos movimentos sociais de luta por moradia se dá quase que de forma exclusiva pelo programa - em todas as duas contradições85 - pautado na produção privada de habitação, frequentemente em regiões mais periféricas das cidades. Nos melhores cenários, os movimentos tinham como horizonte a modalidade Entidades do programa, ainda assim muito longe de uma ampliação do escopo dos direitos. Com o desmonte do MCMV e a criação do programa habitacional do governo Bolsonaro - o Casa Verde e Amarela, que será analisado mais profundamente no item a seguir - o que existe como horizonte como forma provisão de habitação para as populações de baixa renda é a regularização fundiária feita por empresas privadas, a partir de instrumentos flexibilizados de regulação que não garantem a construção de equipamentos públicos ou de melhoria nas habitações que serão regularizadas, além da redução da segurança de posse aos ocupantes, vinculada e possibilitada pela aprovação da lei nº 13.465/2017, ainda não governo de Michel Temer. Nesse sentido, é importante entender os instrumentos trazidos pelo novo programa habitacional, no sentido de analisar sua relação direta com a mudança na legislação de regularização fundiária. Entende-se que ambas se colocam como marcos das novas modulações do neoliberalismo, que se desenham na forma de uma neoliberalização autoritária da política brasileira.
85 RIZEK, C.; AMORE, C.; CAMARGO, C. POLÍTICA SOCIAL, GESTÃO E NEGÓCIO NA PRODUÇÃO DAS CIDADES: o programa Minha Casa Minha Vida “entidades”. CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 531-546, Set./Dez. 2014 84
subjetivação neoliberação e as contradições da atuação com regularização fundiária
O golpe de 2016 no Brasil, que tirou Dilma Rousseff da presidência, pode 86 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Editora FGV, 2017. 87 RIZEK, Cibele. Um mosaico macabro. Trabalho, moradia, violência de Estado: modulações contemporâneas. In: Revista Proposta FASE, Rio de Janeiro, 2019. 88 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes; 2000. , p. 56. 89 Entende-se por desregulamentação o que Francisco de Oliveira relaciona com o processo de naturalização do estado de bem estar, que para de ser entendido como direito conquistado e, ao ser naturalizado, passa a ser benefício. Entretanto, é importante reforçar que não existe, de forma concreta, uma falta de regulamentação, mas sim, um desmonte das estruturas de garantia de direitos civis e sociais. OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes; 2000. 85
ser entendido como um dos acontecimentos mais importantes da história contemporânea do Brasil. Com ele, se estabelece o que Santos86 chama de democracia impedida, num processo de desmonte das políticas sociais construídas ou reforçadas nos governos petistas, inicialmente com a reforma trabalhista e nova legislação de regularização fundiária, ainda no governo interino de Michel Temer, pautados em uma noção de “desburocratização” das relações entre público e indivíduo e uma redução cada vez maior da esfera pública do indivíduo e do coletivo87. A isso se relaciona em grande medida a naturalização de direitos sociais que marcou tanto o período FHC quanto os governos petistas - ainda que com uma roupagem mais progressista e voltada às classes populares - que teve como consequência, “no sentido habermasiano, o esgotamento das energias utópicas”88. Ou seja, a partir do momento a moradia, a regulamentação do trabalho assalariado, a regularização fundiária, a saúde e educação pública etc. param de ser vistos como direitos, o desmonte desses é facilitado, desenhando o cenário de desregulamentação que se dá hoje. É nesse contexto político que se observa também uma ascensão do conservadorismo extremo, ajudando a configurar o cenário de eleição de Jair Bolsonaro à presidência. Com isso, se acirram esses processos de desmonte, numa situação que pode ser análoga ao que Oliveira chamou de desregulamentação89 - ainda que
não tenha se dado, de fato, uma redução de leis, mas uma desburocratização, uma redução do caráter social e de garantia de direitos sociais da legislação brasileira processo que se evidencia com a dissolução de diversas secretarias e ministérios, ainda nos primeiros meses do governo Bolsonaro. É também nesse contexto que se coloca a extinção do Programa Minha Casa, Minha Vida, bem como da modalidade Entidades, único programa de habitação voltando às classes baixas no Brasil, sendo substituído pelo Casa Verde e Amarela. O programa habitacional do governo Bolsonaro será discutido mais a fundo no próximo item deste relatório, sendo porém importante ressaltar que não é prevista a construção de unidades habitacionais para as faixas 1 e 2 - de menor renda - que tem como única forma de acesso a regularização fundiária, já passível de ser terceirizada, a partir de instrumentos criados pela 13.465. Ainda que não se busque aqui fazer uma defesa do programa MCMV, entendendo que este se insere no processo de naturalização do estado de bem estar social, transformando os cidadãos em consumidores, em beneficiários e do que se entende como estreitamento dos horizontes utópicos. Da mesma forma, o programa se coloca alinhado às práticas no capitalismo neoliberal, sendo caracterizada como uma política anticíclica, focada nas empresas - e em sua lucratividade - e de estímulo ao mercado imobiliário, contribuindo para o acirramento da financeiri90 Vale destacar que a promessa de programa habitacional - o Casa Verde e Amarela - do governo Bolsonaro não considera essas faixas, ainda que tenha muitos elementos comuns com os programas petistas, em sua estrutura, foco e, imagina-se, produto. O programa já foi anunciado mas ainda não entrou em operação, mas já é objeto de discussões. Ver: ROLNIK, Raquel. Em plena crise, governo impulsiona financeirização da moradia. LabCidade, 07 de agosto de 2020. Disponível em: http:// www.labcidade.fau.usp.br/ em-plena-crise-governo-impulsiona-financeirizacao-da-moradia/
zação da cidade e da segregação socioespacial. Entretanto, entende-se que há, de
91 LAVAL, Christian. Duas faces do neoliberalismo contemporâneo. Tradução de Cibele Rizek, no prelo.
“as formas de poder que impõe à sociedade a lógica de mercado e impõe aos indivíduos
92
dor de si mesmo”92. Em outras palavras, o neoliberalismo se coloca no processo de
86
Idem.
fato, uma demanda por um programa habitacional em escala nacional, pensando fora do espectro da propriedade privada individual, como é sugerido em ampla bibliografia. O foco do debate aqui proposto está no desmonte da política como parte das novas modulações neoliberais, do qual o Brasil é não apenas palco, mas um caso emblemático90. Partindo das conceituações de Christian Laval com relação ao neoliberalismo, entende-se que, dentro da chave das novas modulações neoliberais, é possível enquadrar o contexto brasileiro no que Laval chama de neoliberalismo autoritário91. De acordo com Laval, o conceito de neoliberalismo pode ser definido como
um certo tipo de funcionamento social e subjetivo - o do capital humano e do empreende-
mercantilização das relações, da transformação do trabalhador em “empresário”, do cidadão em um consumidor da cidade. Ainda de acordo com o autor: “O conceito designa uma racionalidade política que se tornou mundial, que consiste na imposição, pelos governos, de uma lógica do capital tanto no âmbito da economia como no âmbito da sociedade e do próprio Estado, até que essa lógica se torne a forma mesma das subjetividades e a norma das existências”93
Esse processo se evidencia, por exemplo, com a flexibilização das relações de trabalho, marcada no Brasil pela aprovação da reforma trabalhista, em 2017 no governo Temer, facilitando o que se denomina de uberização do trabalho. É nesse contexto que se coloca a chave de leitura que parte do processo de desregulamentação. Neste relatório, dá-se maior enfoque ao processo de desmonte das políticas habitacionais, em especial à desburocratização trazida pela lei federal nº 13.465/2017, a extinção do Programa MCMV e a criação do Casa Verde Amarela, que tem a regularização fundiária terceirizada como única forma de provisão habitacional para as faixas mais baixas de renda. Entende-se que esses processos, que começam a ser acelerados após o golpe de 2016, como demonstrado pelas mudanças na legislação brasileira, se cruzam de forma direta com as modulações do neoliberalismo. Nesse sentido, propõe-se uma perspectiva de redução do caráter de resistência vinculado aos processos de regularização fundiária sob a 13.465. Entende-se que, a partir do processo de desburocratização, somado à extinção de outras de provisão de habitação pautadas em segurança de posse, qualidade de vida nas habitações, considerando aspectos do direito à cidade e à moradia digna e à terceirização da regularização fundiária, fazendo com que essa passe às mãos do mercado e, portanto, a necessidade de 93
Idem
94 Pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq, desenvolvida entre 2018 e 2019 e intitulada “Regularização fundiária e remoções: políticas públicas em São Paulo e a formulação da Lei no 13.465”, sob orientação de Cibele Saliba Rizek. Ver também: GONÇALVES, Ana Luiza; RIZEK, Cibele Saliba. Lei nº 13.465: Regularização Fundiária no Brasil - novas injunções.Aceito para publicação na revista RISCO em março de 2020. 87
geração de lucro, esgotam-se as possibilidades de pautar a regularização como parte de um horizonte utópico. Um elemento importante que foi observado ao longo do processo de pesquisa, bem como em pesquisa de Iniciação Científica realizada anteriormente94 foi uma falta de perspectiva crítica por parte dos profissionais que atuam com regularização fundiária, visto que a desburocratização e os novos instrumentos jurídicos trazidos pela lei possibilita uma aceleração e facilitação concreta para a realização dos processos. Esse é um fenômeno que pode ser entendido dentro da
chave da dialética negativa e do que Paulo Arantes95 chama de zona de contenção, bem como da própria subjetivação neoliberal que cobre todas as relações sociais e formas de atuação na sociedade contemporânea. Ou seja, ainda que a lei federal nº 13.465/2017, possa ser questionada em muitos de seus aspectos e que esta crie problemas a longo prazo, as facilidades para quem lida cotidianamente com os processos de regularização fundiária acabam ficando em primeiro plano. É essencial que se faça um questionamento da regularização fundiária em si como instrumento de provisão habitacional para populações de baixa renda Destaco aqui dois elementos principais para esse questionamento: de um lado a regularização é um política habitacional barata, uma vez que não envolve a compra de terras e nem, frequentemente, a construção da moradia ou de equipamentos públicos vinculados à ela; sendo assim existe uma dificuldade para a implementação de políticas habitacionais pautadas na regularização, em especial pela dificuldade de criação de uma mercado de produção vinculado à elas96. Ao possibilitar a terceirização dos processos de regularização fundiária, o Programa Casa Verde e Amarela desenha uma possibilidade concreta de lucro sobre a regularização, ainda que não vinculada à produção, mas criando um interesse de mercado e um nicho de atuação. Outro elemento de crítica bastante importante é o questionamento da regu95 ARANTES,Paulo.O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência.São Paulo:Boitempo Editorial,2014 96 Apontamento feito por Caio Santo Amore em entrevista em anexo a este relatório. 97 Ver a discussão feita por Virgínia Fontes (2010) sobre a definição de acumulação primitiva, bem como o conceito de acumulação entrelaçada proposto por Gonçalves e Costa em “Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro” (2020) 98 DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: Porque o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001. 88
larização em si como forma de inserção de “à margem” do capitalismo para dentro da lógica da propriedade privada por meio da titulação. Esse é um processo de pode ser entendido dentro da chave da acumulação primitiva97, desenhando uma nova fronteira de expansão do mercado - em especial do mercado imobiliário e financeiro, acirrando as lógicas de financeirização da cidade. Com isso, setores ainda não completamente inseridos da dinâmica financeirizada da sociedade neoliberal são cooptados para o capitalismo formal, pautado o individualismo, na propriedade individual, no empreendedorismo de si mesmo e colocando a moradia como “caixa eletrônico”, passível de ser comercializada em momentos de dificuldades financeiras, em relação direta com o que é defendido pela peruano Hernando De Soto98. Pensando a partir das críticas à regularização fundiária, no contexto contemporâneo do Brasil do neoliberalismo autoritário, entendendo que o Casa Verde
e Amarela coloca a regularização feita por atores privados como forma única de provisão de habitação à população de baixa renda, é central que se pense o novo programa habitacional a partir da aprovação da 13.465, como instrumentos legais complementares.
89
Casa Verde e Amarela e 13.465: entrelaces e dependências
A MP nº996 foi promulgada pelo governo federal em 25 agosto de 2020 e institui o programa habitacional Casa Verde e Amarela como forma de substituição ao programa MCMV, da gestão anterior. Rolnik e Guerreiro destacam que: “[...] uma das principais diferenças entre este programa e o PMCMV é o fim da antiga Faixa 1, destinada a famílias com renda familiar mensal de no máximo R$ 1.800 reais (R$ 2.000 reais agora). No PMCMV, as construtoras e Entidades construíam casas que eram repassadas às famílias beneficiárias quase que inte99 GUERREIRO, I.; ROLNIK, R. Regularização fundiária e casa verde e amarela. Disponível em: http:// www.labcidade.fau.usp.br/ regularizacao-fundiaria-verde-e-amarela-endividamento-e-precariedade/ (acessado em setembro de 2020) 100 “Entidades” aqui faz referência à modalidade do PMCMV que tinha movimentos sociais registrados como contratantes dos empreendimentos habitacionais do programa. No PCVA, ainda que não haja uma supressão da modalidade Entidades, não há um papel a ser realizado por elas, uma vez que o foco está no processo de titulação individual dos moradores de assentamentos, sem qualquer garantia da construção da infraestrutura urbana relacionada aos processos e tendo empresa privadas como mediadoras do processo regularização fundiária. 90
gralmente subsidiadas pelo governo federal, através de recursos do Orçamento Público — o subsídio poderia chegar a 95%, e as prestações variavam entre R$ 80 e R$ 270, de acordo com a renda. [...] Nesta versão do Programa Casa Verde e Amarela, para esta faixa de renda, não há mais a construção de casas e apartamentos, apenas regularização fundiária e melhorias habitacionais.”99
O foco do presente trabalho está no aspecto da MP que diz respeito à regularização fundiária e melhorias habitacionais como únicas modalidades que impactam diretamente as populações de baixa renda, bem com a possibilidade da realização da regularização fundiária de interesse social por empresas privadas, tirando o papel das “Entidades”100 da habitação de interesse social. A isso se somam as condições trazidas pela 13465, configurando um cenário de esvaziamento da política habitacional, no que diz respeito ao caráter social da mesma. Ainda de acordo com as autoras, “neste programa, apoiado na Lei de Regularização Fundiária Rural e Urbana 13.465, aprovada no Governo Temer, é possível regularizar a proprie-
dade em espaços sem condições de habitabilidade, sem a infraestrutura urbana que os estados e municípios deveriam fornecer.” (GUERREIRO, ROLNIK, 2020).
Ainda considerando os instrumentos trazidos pela 13.465, as autoras afirmam que: “Os moradores de áreas classificadas como regularização fundiária de interesse social (REURB-S), de baixa renda, podem promover a regularização com seus próprios recursos, arcando com todos os custos do projeto e documentações através de financiamento via Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o que era anteriormente uma obrigação do Estado. Os recursos de R$ 500 milhões, previstos para serem liberados ainda em 2020, provenientes do FDS, deverão atender, segundo as previsões do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), 130 mil famílias nas modalidades de Regularização Fundiária e Melhorias, de modo que a média de valor por contrato é de R$3.800, valor esse que corresponderia a intervenções de pequeno porte e sem possibilidades de resolver problemas de precariedade estrutural das moradias e dos assentamentos.” (GUERREIRO, ROLNIK, 2020)
A partir de instrumentos legais, o Programa Casa Verde e Amarela institui a possibilidade da realização da regularização fundiária de forma terceirizada, por empresas privadas. Assim, a regularização fundiária deixa de ser feita, definitivamente, a partir de uma perspectiva de incorporação dos assentamentos na malha urbana, com a responsabilização do Estado pela construção e manutenção da infraestrutura urbana desses assentamentos. Ela passa a ser feita por oferta, de acordo com projetos oferecidos por empresas privadas, em áreas escolhidas pelas mesmas. Sendo assim, da mesma forma que a lei nº 13.465/2017, a MP 996/2020 se relaciona de forma direta com as proposições de Hernando De Soto, no sentido de inserir as populações de baixa renda na economia formal, para que o próprio mercado haja no sentido de regulador das relações políticas econômicas e sociais, em uma perspectiva de individualização das relações públicas. “Em declarações recentes, tanto o Ministro Rogério Marinho (MDR), quanto o presidente do Banco Central (Bacen), Roberto Campos Neto, enfatizaram o objetivo de conferir títulos plenos de propriedade para que os imóveis se valorizem e para que as famílias possam “extrair valor de suas casas”. Noutros termos, 91
trata-se de empregar a propriedade imobiliária popular regularizada para inserir parcela significativa da população no mercado de crédito imobiliário, preparando terreno para securitização das dívidas, outro dos objetivos perseguidos pelo atual governo, com apoio da Caixa Econômica Federal (CEF), tema que abordaremos em outro artigo.” (GUERREIRO, ROLNIK, 2020)
Além desse aspecto, o PCVA acirra as desigualdades entre as diferentes faixas de renda que eram considerados pelo PMCMV, de acordo com Guerreiro101: “O novo programa aprofunda as desigualdades entre as duas partes, além de não indicar qualquer papel para as “Entidades”. Para a Faixa 1, o governo promete apenas terminar as 200 mil unidades com obras paradas no país [4] e usar o FDS integralmente para regularização fundiária, não construção de novas unidades. O centro desse procedimento é a polêmica Lei de REURB 13.465/2017 sancionada pela gestão Temer, que desvincula a regularização da implantação de infraestrutura (urbanização), que pode ser feita posteriormente (ou não). Desta maneira, no PCVA a regularização fundiária significa tão somente a passagem cartorária da propriedade do imóvel, enquanto os necessários projetos urbanísticos e a urbanização são de responsabilidade e custo dos municípios ou dos “beneficiados” – não sendo impeditivos para a escritura.” (GUERREIRO, 2020)
Esses elementos possibilitam entender a relação direta, ideológica e a partir dos instrumentos legais, entre a 13.465 e o Programa Casa Verde e Amarela, ambos bastante alinhados com as lógicas e dinâmicas do neoliberalismo contemporâneo e com o que pode ser entendido como neoliberalismo autoritário, de acordo com as proposições de Christian Laval. A MP 996 ainda tramita no Congresso Nacional, mas já é possível observar as relações entre a nova política habitacional e o processo de individualização e de desregulamentação que se somam à realidade da política brasileira desde o golpe de 2016. 101 GUERRERO, Isadora. Casa Verde e Amarela, securitização e saídas da crise: no milagre da multiplicação, o direito ao endividamento. Disponível em: http:// www.labcidade.fau.usp.br/ casa-verde-e-amarela-securitizacao-e-saidas-da-crise-no-milagre-da-multiplicacao-o-direito-ao-endividamento/ (acessado em outubro de 2020) 92
considerações finais
O presente trabalho se debruçou sobre as transformações urbanas contemporâneas, em seus instrumentos legais e de intervenção, vinculados ao neoliberalismo brasileiro e ao processo de subjetivação neoliberal que afeta de forma drástica as relações entre público, privado; coletivo e indivíduo. A partir da chave de leitura dos processos de regularização fundiária e de provisão de habitação de interesse social entende-se que tanto a lei nº 13.465/2017 quando a MP 996 - que implementa o Programa habitacional Casa Verde e Amarela - se inserem no contexto das novas modulações do neoliberalismo no Brasil, somadas aos processos de desregulamentação, de individualização das relação com o Poder Público e das relações de trabalho e da constituição de dinâmicas vinculadas ao empreendedorismo de si. Tendo esse cenário como condição político e social dada, buscou-se entender como a região do bairro de Campos Elísios na cidade de São Paulo se insere como território no âmbito desses processos. Essa leitura foi feita pensando nos instrumentos de intervenção urbana - Operações Urbanas Consorciadas, Projetos de Intervenção Urbana, Parcerias Público Privadas etc. - se colocam como ferramentas de regulação das formas de ocupação da cidade, somadas, em especial no caso dos Campos Elíseos, com a questão da Guerra às Drogas e a construção da narrativa de um sujeito social perigoso e que deve ser colocado à margem das cidades e, em última instância, exterminado. 93
As questões iniciais do projeto tinham como objetivo - ou pelo menos como desejo - encontrar brechas de resistência por parte de movimentos sociais de luta por moradia que se estabelecem na região central da cidade de São Paulo. Ao contrário, o que se encontrou foi um processo de estreitamento dos horizontes de atuação desses movimentos que, cada vez mais, tem de lidar “com o que tem para hoje” e “o que tem” se contrapõe a qualquer possibilidade de emancipação social. No período lulista o horizonte era construção de unidades habitacionais minúsculas e de baixa qualidade arquitetônica, subsidiadas pelo Estado e pautadas em propriedade individual e na possibilidade de geração de lucros para os investidores e sem preocupação com o direito à cidade ou à moradia digna, criando grandes empreendimentos habitacionais genéricos e em sua maioria da periferia das cidades. Isso era colocado como uma conquista, em especial por ser a única alternativa dada. Hoje o horizonte está na titulação de propriedades individuais já construídas, por meio de empresas privadas que devem elaborar planos de urbanização que podem ou não ser realizados - uma vez que até a exigência pela construção de infraestrutura por parte do Estado foi esfumada pela nova lei de regularização fundiária - e áreas cujos processo de regularização possa gerar lucro. Já não importa - se é que algum dia importou - se as pessoas têm moradia digna, se tem acesso a serviços básicos e à infraestrutura urbana. O que importa é que tenham um título de posse e um endereço formal para pedir empréstimos nos bancos e entrar de fato no sistema capitalista por meio da dívida, abrindo uma nova fronteira de expansão do capital. O programa Casa Verde e Amarela, que se estabelece inspirado no modelo estadunidense de subsídio habitacional - responsável, importante ressaltar, pela explosão da bolha imobiliária que causa da crise financeira global de 2008 - coloca o Brasil ainda mais no contexto de um neoliberalismo autoritário e de superexploração que nem se dá ao trabalho de fingir que se importa com os pobres. 94
A afirmação de Francisco de Oliveira de que “todo otimista é um pessimista mal informado” parece fazer cada vez mais sentido. Essa pesquisa deixou ainda soltos vários fios que podem ser puxados, na tentativa de desatar os nós que são o neoliberalismo brasileiro, a sociedade contemporânea e as grandes cidades. Seja pela chave de entrada dos instrumentos de intervenção urbana, pela análise das ferramentas jurídicas de regulação, pela perspectiva das relações entre trabalho e território, pela discussão sobre a Guerra às Drogas e mecanismo de extermínio e biopolítica, as possibilidades de aprofundamento são inúmeras. Espero que esse possa ser apenas um prelúdio da trajetória de pesquisa que eu gostaria de construir.
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referências bibliográficas
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São Carlos Outubro de 2020 102
anexos entrevistas
Nunes Lopes dos Reis | entrevista realizada de forma digital em 21 de julho de 2020, acompanhada da professora Camila Moreno de Camargo. Ana: Só para fazer uma pequena introdução, a pesquisa tem como objetivo central identificar uma redução no caráter de resistência dos processos de regularização fundiária a partir da aprovação da 13.465. Eu já fiz uma outra iniciação científica sobre 13.465 em especial, pautada mais em entender quais eram os agentes envolvidos no processo de aprovação da lei, pensando nas mudanças com relação a 11.977 e em quem se beneficiaria com a aprovação da 13.465. Eu entendo que existem vários aspectos da lei que se colocam no sentido da flexibilização e desburocratização de alguns processos que a gente, eu e a Cibele, começamos a questionar se não haveria um papel significativo na redução desse caráter de resistência, vinculado aos processos de regularização, como a redução da segurança de posse dos ocupantes de áreas que vão ser regularizadas, por exemplo. Uma outra questão que se coloca também é com relação ao desenho das ZEIS e como elas se relacionam, agora, com os processos de regularização, pensando nessas mudanças de legislação. No nosso entendimento isso também está relacionado com o desmonte do PMCMV, bastante atrelado à aprovação da 13.465. 103
Nunes: Além da Peabiru, eu trabalho também no escritório modelo da PUC, que é um escritório ligado à Faculdade de Direito, e que tem defensoria que faz defesa de comunidade de moradores em situação de não regularização, ou para a realização da regularização fundiária, processo de defesa da posse, com um papel mais ligado à uma consultoria urbanística dos processos de regularização. Mais recentemente eu tenho me dedicado mais a trabalhos que envolvem o tema regularização, muito na chave dos planos populares de urbanização que foram evoluindo mais recentemente para discutir a regularização fundiária das áreas que a gente - Peabiru - trabalhou em 2015, na quadra 36 no jardim da União, na ocupação na zona Sul, que é uma ocupação super recente. Em 2012 eles estavam se organizando para pleitear a regularização e urbanização do bairro, a partir de um plano da CDHU. E a Peabiru ajudou na elaboração de um plano de urbanização, de alta urbanização, com propostas para o sistema viário e para área de lazer, para um padrão de loteamento, que eles implementaram. Agora estamos trabalhando no Anchieta, que é uma outra ocupação na Zona Sul, no Grajaú , em um local bem próximo da União com uma situação semelhante na qual nós temos mais um papel de ajudar a associação local a fazer o movimento, não só de resistência permanente mas também de luta pela regularização e pela urbanização, e pela melhoria das condições de vida, da moradias. E a lei se insere nesses debates porque ela é o instrumento que vai ser utilizado para viabilizar a regularização. Nesses casos usamos esta lei para viabilizar a regularização, porque até então a legislação anterior vedava por exemplo a regularização fundiária em áreas de mananciais, que é o caso de muitos desses assentamentos. Mas nesse processo de simplificação da lei, ela criou um novo marco temporal pras ocupações nas áreas de manancial no qual se insere essas duas comunidades que eu citei aqui. Esse novo marco temporal passou a ser em dezembro de 2016. Tem ainda um conflito com as leis locais, de proteção da bacia, que no caso é a lei Billings e Guarapiranga. Nos dois casos é a lei Billings. E nesses casos tinha um conflito de legislação. A lei federal diz que pode regularizar ocupações que ocorreram antes de 2016. E as leis estaduais dizendo que não, que tinha que ser antes de 2006. 104
Mais recentemente nas nas reuniões com a Prefeitura, com a coordenadoria de regularizaçao fundiária, ficamos sabendo que o movimento que a Cetesb está fazendo, é de abrir mão de participar do processo de regularização em São Paulo, na região Metropolitana, já que esses municípios têm dentro do seu corpo técnico as condições de fazer as aprovações ambientais. A tendência é que toda a aprovação de urbanização em áreas de mananciais vá acontecer no âmbito do município, sem participação da Cetesb e do Governo do Estado. Então a relação que temos com a lei hoje é mais no sentido da prática da regularização fundiária. Eu não sei de uma relação da lei com processos de remoção; não chegou ainda nenhum caso, nenhuma situação de o ente público usar essa lei para fazer a remoção, para desalojar famílias. Por outro lado, o que tem aparecido, na verdade é o contrário, para regularizar situações, que nos parece que é o objetivo real da lei. O que a 13.465 possibilitou mesmo foi regularização em massa, em especial da população de alta renda fazendo regularizações indiscriminadas, em áreas de proteção ambiental, reservas ou mesmo das dentro das cidades, empreendimentos, megaempreendimentos que foram feitos usando a 13.465 como base legal. Camila: Você acha que em São Paulo o fato da legislação local ela já ter incorporado ZEIS, já ter um reconhecimento um pouco mais consolidado desses núcleos então talvez a nova lei, ainda que por um lado flexibilize para regularizações que não sejam de interesse social, possa também flexibilizar para os processos de Reurb-S, uma vez que já tem um campo constituído para isso? Nunes: É meio que por esse caminho, Camila. A percepção que a gente tem, que eu tenho pelo menos, é que a legislação de ZEIS, por exemplo, pouco fez diferença no avanço concreto para garantir o direito à habitação de interesse social. Lei não falta, o que falta é implementação delas. Eu participo do GT da Conselho Municipal de Habitação que está discutindo um projeto de lei de regularização fundiária aqui em São Paulo e totalmente baseado na lei federal (13.465). E então tem algumas coisas como a ZEIS ser um dos critérios para regularização. Nesse sentido ele se complementa. Ser ZEIS é um dos critérios para o município poder classificar a área como Reurb-S ou não, sendo a Regularização fundiária urbana de Interesse Social um dos instrumentos da 13.465. Então ajuda a ter esses 105
parâmetros. Douglas Tavares, que acho que é um defensor público na região sul, conseguiu recentemente barrar uma decisão judicial de reintegração de posse com o argumento de que a área era ZEIS 1, conseguindo efetivar, fazer valer o instrumento de ZEIS naquela favela, o que virou uma jurisprudência importante. Nesse sentido, me parece que na medida em que há pressão social da sociedade civil para que o instrumento seja usado, ele passa a ter uma validade maior. Ana: Retomando isso que você disse com relação a forma como a lei possibilita uma maior facilidade para a realização dos processos de regularização. Essa foi uma questão que apareceu em vários momentos nas entrevistas que eu fiz para a Iniciação Científica que eu fiz antes desta. Eu entrevistei 3 pessoas que atuavam e tinham contatos diferentes com a lei e eles viam ela de formas diferentes também. Um dos meus entrevistados era membro do IAB e ele colocou que por mais que ele visse aspectos bastante negativos na lei, ela poderia ser usada para desburocratizar e facilitar alguns processos. Então tem essa questão também que ela acaba por quase que igualar os processos de interesse social específico e traz problemáticas também. Mas eu fiquei pensando nessa relação entre o desmonte do Minha Casa Minha Vida e como isso tem uma proximidade com a aprovação da 13.465. Pelo que entendi dela - da lei -, tem essa questão da desburocratização e flexibilização, que possibilita que você inicie processos para regularizar sem que tenha um plano urbanístico para a área. Essas brechas são abertas, e é nelas que estão os problemas, pelo que eu vejo, não necessariamente na desburocratização mas na possibilidade de ela acontecer sem um plano concreto de urbanização da área, por exemplo. Como isso se relaciona também com o desmonte da MCMV, principalmente na modalidade Entidades. Não sei se isso já é algo que pode ser visto a partir de exemplos concretos em São Paulo ou ainda é um processo muito recente. Nunes: Olha eu acho que ainda não. Ainda não concretamente. Mas é possível visualizar isso como uma tendência, como um potencial. Porque o que a gente começa a ver, e que parece que o espírito dessa situação, é que você começa a distribuir títulos de propriedade sem nenhum critério, e chamar isso de efetiva106
ção do direito à moradia, o que é uma mentira. Nessa perspectiva há um risco concreto e muito grave, uma vez que ela define muito pouco do que é a infraestrutura essencial. Até mesmo as definições de núcleo urbano são muito vagas, qualquer coisa pode ser chamada de núcleo urbano, qualquer coisa pode ser chamada de infraestrutura essencial e qualquer coisa pode ser regularizada. Na discussão aqui do Projeto de Lei de Regularização do Município, que está sendo elaborado, tem acontecido algumas audiências públicas agora e a gente estava vendo o mercado imobiliário vindo com muita força com toda aquela história do direito de laje, que virou quase que um fetiche. Parece que agora regularizar teto é “ah como que a gente não fez isso até hoje?!” Só que isso quem tem muita contraindicações, uma vez que se está falando de regularizar teto, lajes, mas tem que ter critério. A casa tem que ter alguma sustentabilidade, para você regularizar nessas situações. Dentro das discussões do GT de Regularização tem aparecido muito essa questão de um mercado imobiliário que está vindo com muita força, na tentativa de aprovar o direito de laje na lei municipal. Nisso vem um discurso de defesa do interesse social e do direito do cidadão que mora numa laje de também ter uma matrícula dela, uma escritura de propriedade, mas que aparece sempre um direito por trás, que é o de regularizar outro tipo de coisa e coisas que não são nada de interesse social, como empreendimentos comerciais irregulares, empreendimentos de alta renda. E tem também o interesse de abrir um nicho de mercado para atuar no campo que da Reurb; da regularização começando a ser vista como a possibilidade de mercado, de geração de lucro, e existem empresas se preparando para atuar nesse campo. E para regularizar qualquer coisa, sem acesso a lotes ou a infraestrutura, sem acesso a rua ou acessadas por beco. Há uma tendência, mas isso já existia um pouquinho na lei anterior. Eu acho que a lei atual abre mais as pernas para isso. Você entra na favela e pode regularizar tudo do jeito que está sem nenhum tipo de intervenção. O que é terrível, o Estado fingindo que está fazendo seu trabalho, faz o mínimo necessário para poder chamar de infraestrutura essencial e abrindo espaço para o mercado fazer. 107
Uma outra coisa que está na lei é a possibilidade de a comunidade pagar os encargos da regularização, mesmo pela Reurb-S. A comunidade pode, ao invés de ficar esperando 10-15-20 anos para que a prefeitura faça a regularização, pagar pelos instrumentos, pagar pelo levantamento planialtimétrico, pagar todas as etapas do processo e inclusive as obras. E de um lado tem comunidades que são bem organizadas, tem associações que podem chegar até a prefeitura, se a prefeitura não consegue recursos ou não quer mobilizar recursos. O que para essas comunidades pode até ser bom, porque elas conseguem avançar mais rapidamente no seu processo de regularização. Mas para a grande maioria da população pobre isso não acontece, não há a menor condição. Mas o que acontece é que a alternativa vira regra. Essa oportunidade da comunidade apresentar o projeto, até executar as obras de infraestrutura. Isso vai desonerando o Estado, vai abrindo espaço para essas empresas atuarem, lucrarem com regularização, em um processo de privatização da regularização que me aparece sendo meio oblíquo. Camila: Aproveitando que vc falou desse GT que se constituiu em torno da PL de regularização vou fazer duas perguntas para você, para ver se você nos auxilia. A primeira que ajuda a Ana no sentido de enxergar como é que esses instrumentos em torno da lei são usados para atuar em áreas centrais, nos processos de permanência das famílias que de alguma maneira já moram precariamente na área central e aquilo que a gente vai acompanhando em termos de projetos de reabilitação de edifícios de construção de edifícios pelo Minha Casa Minha Vida, no sentido de entender se, mais recentemente, esses empreendimentos já são afetados e como pela aplicação da lei. Isso porque para nós é mais visível a aplicação da lei nas áreas mais periféricas, nos grandes núcleos. Mas em que medida a lei se aplica nas áreas centrais? E outra coisa, que não sei se você saberia me dizer, é em que medida que esse PL da regularização se combina àquelas estratégias do próprio Plano Diretor, aos eixos de transformação urbana, os arcos, enfim, toda a ideia de reestruturação territorial. Se existe uma combinação com essas estratégias urbanísticas ou não, se isso ocorreu em paralelo à aplicação do próprio Plano Diretor. Nunes: Sempre sim e não. Ao que me parece correu tudo em paralelo, não 108
havendo nenhum diálogo, no que diz respeito ao município. Tem algum contato mas não muito; não há nenhum vínculo claro com os PIUs, ou os eixos de estruturação urbana; muito pouca discussão, muito pouco diálogo com o Plano Diretor. E esse diálogo basicamente com as ZEIS, no sentido de validar ou a área como Reurb-S, sem nenhum instrumento de comprovação. Em relação à área central, eu tenho acompanhado pouco. Eu sei que está acontecendo muitas coisas e todas elas têm em comum os processos de regularização fundiária: os planos de intervenção urbanística, PPPs, tudo isso é um processo de privatização das ações. tudo isto acontecendo no Centro. Da nossa parte - assessoria técnica - já houve uma certa discussão sobre dar início ao processo de regularização, de se propor Reurb pra edifícios, para as ocupações da área central. Por exemplo, o Edifício Nove de Julho, talvez o mais famoso. Diante de uma escassa perspectiva daquilo se transformar em um novo retrofit, num novo Minha Casa Minha Vida por conta do fim do programa e também olhando para todo o investimento que as famílias já fizeram ali. Esse é o mesmo tratamento que a gente tem defendido para os processos que acontecem nas favelas. Então se institui ali um processo de regularização de interesse social, com algumas obras que vão ser executadas e se criará programas para realizar as obras do que a gente tem-se chamado de urbanização de prédio, pensando o prédio como se fosse uma favela vertical, com algumas intervenções que precisam ser feitas para concluir a regularização. E isso é um pouco das lutas que a gente vem fazendo agora. Fora isso, o que a gente tem visto é como as coisas vão se combinando, em um grande processo de especulação e de avanço sobre essas áreas para remoções e para desalojamento. Tem mais uma vez discussão sobre a região dos Campos Elíseos, da Nova Luz, para remover as famílias e fazer a PPP. Acho que ainda é a PPP do governo do Estado e a parceria público privada que é algo único, é o programa de produção habitacional que existe hoje com recurso privado. Existe um debate uma conversa, do qual eu participei super pouco, sobre os PIUs, os perímetros de intervenção urbana, Tem uma discussão de acabar com 109
a Operação Urbana; por exemplo, a Operação Urbana Centro, e transformar por esses projetos de intervenção urbana que que é bem menos regulamentada, com menos com menos controle social, mais privatizado mesmo. Ana: eu ia te perguntar também se existe alguma movimentação dos movimentos sociais de luta por moradia, em torno dessa pauta da regularização fundiária, pensando já na 13.465. Se já houve uma mudança na forma como os movimentos veem a questão da regularização a partir desse novo entendimento da lei. Nunes: Tem uma mobilização grande, mas em defesa das comunidades. Não estão discutindo ou se opondo à lei em si. Acho que tem um grande movimento de oposição à lei dentro da comunidade acadêmica, os advogados populares, algumas ações de inconstitucionalidade. Os movimentos sociais vêm se mobilizando. Principalmente agora com a pandemia, a mobilização ganhou uma força maior, no sentido de se criar programas de urbanização, de regularização fundiária, cobrar do Estado o seu papel de interventor, de garantidor dos direitos. Esse GT da regularização, por exemplo, é constituído em parte por pessoas do movimento. Então existe uma tentativa de colocar na lei municipal, algumas coisas pra nos garantir, como o processo de Reurb, para que não se faça remoção, referindo a lei local, colocando instrumentos que deem mais ferramentas para o nosso campo. Em especial para evitar as remoções, ou definir que elas só podem ocorrer dentro da área do projeto de Reurb, ou em último caso garantir a moradia definitiva. Todas as discussões foram introduzidas no texto da lei, e que agora vai para câmara municipal, pode cair ou pode continuar.
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entrevistas
Caio Santo Amore | Entrevista realizada de forma virtual no dia 15 de setembro de 2020. Caio: Em geral quando se tem uma discussão em torno do fato da lei ser negativa ou positiva acaba reduzindo-se muito, porque se a lei é colocada como positiva, tem muitas contradições que ficam escondidas. Meu doutorado, pensando sobre as ZEIS, era isso; nas várias escalas, havia uma positividade em demarcar as ZEIS mas que não se realizava nas contradições. Acho que tem um primeiro movimento, uma vez que a lei (13.465) vem no contexto do golpe, sendo aprovada meio no susto. Como se faz uma lei, cancela todo o capítulo de regularização do Minha Casa Minha Vida e aí nesse susto é aprovada? E passa a medida provisória, depois ela ganha algumas coisas, o pessoal do IBDU, dos partidos mais progressistas conseguem aprovar algumas coisas no congresso no processo de converter a MP em lei. Acho que até a Rosane Tierno poderia te ajudar mais precisamente com isso. Existem três ações de inconstitucionalidade que estão tramitando com relação à lei, uma delas é do IAB, e elas ainda não foram julgadas. Eu acho que ainda tem uma parte, muda um monte de outras leis, muda código civil, muda lei de parcelamento, é um arrasa, vai mudando tudo; cancela o capítulo 3 do MCMV, substitui completamente. 111
Eu ouvi uma vez num evento em Campinas com um pessoal do Ministério Público, uma pessoa que foi da CDHU e estava no ministério do Temer, na secretaria do Ministério da Cidade eu acho. Ele falava que na Amazônia Legal estão aprovando um monte de coisas, regularizando um monte de coisa. Então a lei tem uma parte que acho que a gente lê menos, a gente vê como ela funciona aqui pra favela, a parte de interesse social, vai interessar mais a Reurb-S, mas ela tem um monte de instrumentos para aprovação de regularização em terras da união, flexibiliza muito. Essa é a parte de mais interesse, e que destravou para o mal, pra aprovar coisas pelo Brasil, que a gente não consegue acompanhar muito bem. Tem a parte da regularização de interesse específico, que já estava na lei do MCMV. E ai acho que também tem aspectos que reduzem a diferença entre os processos de interesse social e os de interesse específico. E mesmo a questão dos loteamentos fechados, que quem está no interior sabe muito bem disso. Damha 1, 2 3 - condomínios da cidade de São Carlos -, todos os Alphavilles, tem uma pressão pra esse tipo de privatização do espaço público que a nº 6.766 de certo modo preservava. Você já deve ter ouvido a Ermínia (Maricato) falar que o loteamento fechado é ilegal nesse país. Mas tem uma série de coisas... Me ligaram da BBC para fazer uma análise do Programa Casa Verde e a Amarela. A medida provisória é super genérica. As apresentações não tem nada a ver com a MP, elas prometem muito mais do que está escrito na Medida Provisória. Na própria apresentação do Ministro do Desenvolvimento Regional, no lançamento, fala de coisas que não estão escritas na MP 966. Eu conversei com a Rosane um dia desses, e são coisas que o próprio MCMV já mostrou; são coisas que vão se realizar, o jeito como aquilo vai acontecer está nos regulamentos, nas instruções da Caixa Econômica, nas instruções normativas. Isso vale para o Programa Casa Verde e Amarela e para a 13.465. Porque um monte de coisa que ela promete ela não vai entregar. Então agora você vai dar a propriedade e vai dar tudo certo? Essa ideia está na justificativa da lei, na exposição de motivos. De vc regularizar em massa, 112
titularizar em massa, direta ao dessoto, que nem no peru rolou desse jeito. Enfim tem uma coisa, como o Vilaça chama o plano discurso e a lei discurso. Uma justificativa que a gente nao sabe como ela se realiza. Uma preocupaçao da parte das terras da uniao. A Mariana Mencio, que é professora da UFABC, discute os desafios e perspectivas para a aplicaçao da lei, em um livro que é mais voltado para a área do direito, mais especificamente na situação da regularização de interesse social, o Moretti falou que existem elementos que são quase que propaganda da lei, o direito de laje, por exemplo. E que são coisas que não se realizam da forma como está escrito, é mais um marketing da lei. O próprio condominio urbano simples, que acho que é uma coisa interessante, para a regularização em si. Mas tem diversos lugares que voce não consegue individualizar os lotes, em favelas, por exemplo. Ter um instrumento como esse é interessante para você chegar numa fração ideal, em trechos menores; é melhor que uma coisa geral bem coletiva. Mas tem muita coisa que é mais propaganda, o direito de laje foi o que mais se falou na época. Todo mundo vinha com esse instrumento, e é o que não tem regulamentação. Aqui em São Paulo agora, o Nunes é do conselho de habitação, e eles estão fazendo uma lei municipal dialogando com a lei federal. Isso foi uma decisão do grupo de trabalho, de desvincular a parte fundiaria da parte edilicia, foi uma coisa que decidiram porque se você não regularizar a parte edilicia você não regulariza a parte fundiária. No caso da legitimação fundiaria, os advogados falam que é um avanço em relação aos instrumentos que existiam antes, como a COEM, a CDRMU, o próprio uso do capião coletivo, praticamente tornando obsoletos esses outros instrumentos. Agora de uma maneira mais geral - eu estou me referindo a entrevista do Chico de Oliveira no caderninho da Fase, que eu acho maravilhosa - em que ele fala que não é para chorar as pitangas, não tem propriedade no Brasil e vai dando um exemplos bem pessoais, como que a regularização da propriedade regulariza a cidadania e como que se inventar formas de se regular a propriedade, porque pedir regulação é pedir propriedade e que é um paradoxo para as forças progres113
sistas imaginar que você ta pedindo propriedade. Essa entrevista tem me salvado em várias situações, porque coloca o problema numa escala de radicalidade. Não existe regulação de propriedade em um país construído a partir das capitanias hereditárias,e com isso a regulação de compra e venda da propriedade que isso é muito restrito pra algumas partes sociais. Mas a história de nao chorar as pitangas, de você imaginar o que esses instrumentos todos estão tentando construir. E quando ele fala do coletivo, da propriedade coletiva, do uso capião coletivo. O povo não é bobo, elas sabem que aquilo não organiza. Eu acho que tem uma dimensao que é, como a genta ta falando de um sistema todo juridico e urbanistico e parâmetros urbanísticos e edílicios, que são absolutamente incompativeis com a maioria da populaçao, com o jeito que a maioria da populaão mora, se organiza, constrói. Nesse texto que fiz com o Moretti, a gente usa um texto muito bom da Vera Telles, que ela trabalha com essa noção de ilegalismo e essas zonas cinzentas, não é legal nem ilegal. E minha leitura é que não tem lei nenhuma que vai dar conta disso nesse país, não tem nenhuma lei, é uma construção política de luta. Na verdade a lei nova abre uma perspectiva de organizar um monte de coisa, algumas que, olhando de uma escala maior, nem deveriam ser regularizadas, como espaço em área de manancial. Mas é como você abraça essa contradição e usa a legislação em favor da permanência de grupos, das pessoas que estão no lugar, e ocuparam e construíram, e que nao outra chance, não tem outra alternativa, estão em situações muito extremas de vulnerabilidade. A gente tem feito pesquisa e levantamento no Anchieta, na zona sul de São Paulo, no Grajaú, onde 30% dos moradores ganham menos de 500 reais/mês. São mil familias, um monte de familia que é renda zero, 60% ganha menos de dois salários mínimos. Então assim, o nível de precariedade... A gente entrevistou pessoas que moravam na rua e que foiram morar lá; um cara que era menino de rua, que morou dos 7 aos 18 anos na rua e foi morar lá. E agora trabalha no shopping trem, ele é o ornitorrinco inteiro, mora na rua, trabalha na rua vendendo produtos industrializados da China no trem sem nenhuma regulamentação, cresceu na rua, vai morar numa ocupação jovem, sem infraestrutura, com casas muito precárias, casa em madeira, em conflito fundiário, áreas que estão sujeitas a reintegração de posse. 114
Por exemplo, nesses casos extremos, partes da lei ajudam a regularizar, é um tipo de regularização que não pode se limitar à titulação, precisa de urbanização, reparcelamento... Então você faz uma reunião na prefeitura e fala: olha nos podemos regularizar por aqui, mas são pequenas conquistas que você vai tendo com o diálogo de interlocução com o poder público, com a defensoria. Como também a defensoria organiza essas coisas, organiza esses argumentos nos pedidos de Reurb. Teve um movimento inicial de todo mundo que era contra o golpe, que tomou um susto e depois o próprio escritório modelo, começou a falar de usar alguns elementos e fazer vários pedidos de Reurb usando esses argumentos pra ver onde consegue ganhar; para regularizar situações que não tinham instrumentos para regularizar antes, inventar regularização de propriedades, inventar formas de titulação, que você nao tinha disponibilidade antes. Nos anos 2000 o top de linha era COEM e uso capião coletivo, agora você vê que ela não presta, mas que tem outros instrumentos. A gente ta fazendo um trabalho, que parte já tem COEM e a gente tá vendo de substituir por legitimação fundiária, que é um instrumento mais novo. Agora, isso aplaca as contradições? De jeito nenhum, a gente tá vivendo elas. Por isso que eu acho que o texto do Chico tão importante, tem me ajudado muito. A Rosane me falou isso uma vez quando a gente tava fazendo um concurso pro Rio, a regularização fundiária é propriedade, dominialidade, é você ter o instrumento mais próximo da propriedade possível. O Chico fala, o pior no mundo do capitalismo é você está fora, nao ter a sua mais valia explorada com alguma regulamentação. É uma regulamentação que aprova a desregulamentação. Ana: Até mesmo esses instrumentos como a legitimação fundiária, traz uma alternativa mas separa muito os processos. Pelo que eu entendi ele faz a legitimação provisória sem que a questão da estrutura estejam consolidadas. Cai muito nessa questão da subjetivação neoliberal, que é o que a gente tem pra lidar e a gente tenta tirar água de pedra mas ao mesmo tempo tem milhões de problemas que estão ligados a isso. Caio: eu acho que ele entre numa questão da subjetivação neoliberal que inclusive tem um ideal de individualização da sua propriedade reconhecida, mas ao mesmo tempo ele dialoga com um sistema onde se você não tem a sua proprie115
dade individual, a operação de compra e venda é inviável. Uma coisa que a gente discute no artigo é a urbanização por etapas, que isso por exemplo para quem trabalha com regularização na prática, é um grande salto; você pode pegar uma favela gigantesca em pedaços e urbaniza e regulariza, e assim por diante, porque isso era uma trava que existia antes, só pode regularizar Heliópolis se regularizar tudo, aí você não vai regularizar nunca. A Rosana Denaldi trabalha com uma ideia de consolidação pra você fazer as intervenções, que é o consolidado, o consolidável e o não consolidável. Ela trabalha com essas três categorias, identificando o não consolidável como sinônimo de remoção, é uma cabeça de gestora pública. A gente tentou problematizar isso um pouco. Afinal, o que é o consolidável? Tudo é consolidável, depende do tanto de dinheiro que você tem, depende de outras coisas. Aí a gente usou uns termos assim, setores consolidados são aqueles que foram objetos de distintas etapas de obras de urbanização, em que a situação existente permite a regularização fundiária imediata, ainda que sejam necessárias obras de melhorias nas habitações, são setores onde não se espera que haja modificações significativas a disposição de ruas, quadras e lotes. Então consolidado está um pouco pacificado. Aí depois a gente colocou setores em consolidação, que são aqueles onde se verificam restrições em relação à consolidação urbana, onde se prevê a necessidade de alteração nas condições urbanísticas, e nesses casos pode ser questionável a titulação tradicional como propriedade plena individual. Porém existe um avanço no entendimento da regulamentação dos instrumentos que possibilite dar posse inclusive com caráter coletivo, como é o caso dos condomínios urbanos simples e outras coisas. E depois os setores não consolidáveis e/ou de consolidação questionável, onde a decisão sobre a regulamentação deve se dar após estudos específicos, que mostre os trechos onde pode ser mantida, onde você precisa olhar mais de perto. Mas você pode, por exemplo, definir isso numa área, esses setores e vai fazendo na prática. Essa história de segurança na posse, só que não tem é que sabe. A gente fez uma entrevista com um morador na área, que mora à 20 anos no local, mas ele fala que “ah eu sinto que eu posso sair a qualquer momento”, e ele tem um título 116
meio precário, mas consolidado de fato, mas não ter segurança na posse é um nó. Ana: E na prática nem a regularização traz a segurança de posse. Caio: Então, pelo menos pelo que eu tenho dialogado com os advogados, a legitimação fundiária é mais segura dos que as outras que tinha antes. Vila Autódromo é essa história, eles tinham a concessão, um título que era tão precário a prefeitura chega a passar por cima. Eu acho que nada segura o capitalismo, onde ele quer passar ele compra, muda a lei, isso é óbvio. Mas é muito louco isso porque os advogados têm uma visão bem operacional dessas coisas. Eu me lembro de um trabalho que fiz há mais de 15 anos, em uma vila... você vai dar uma fração de uma casa, por um uso capião coletivo numa casa que tem 8m², que era um quarto com dois andares, e quando a prefeitura quiser fazer uma intervenção ela teria que desapropriar essa casa, e aí a intervenção fica mais cara e aí ela pode decidir ir pra uma outra área. Porque a gente está sempre na migalha, na política localizada, na falta de universalização. A Virgínia Fontes, professora da UFF, fala da pobretologia. Está fazendo o foco do foco, o que a Cibele chama de produção de demanda. Nas políticas culturais por exemplo, a política para os jovens pretos periféricos moradores de algum lugar e assim se faz um super recorte e determina aquilo como público alvo, e aí faz uma política que não universaliza. Não universaliza acesso à saude, à educação, à moradia, à políticas culturais. E como isso está organizado desde os anos 60, a Virgínia Fontes fala dessa história do Maquina Mara que vai gerenciar o banco mundial. Tem uma parte boa do Mike Davis que ele discute isso no Planeta Favela, da traição do Estado, a ilusão do “faça você mesmo”, e como isso vai saindo da agenda, vai individualizando. Você é praticamente culpado por morar ilegalmente. As pessoas se sentem erradas na vida. Ana: o estudo de caso da minha pesquisa é o Campos Elísios, mas o processo de regularização que está acontecendo lá não está sendo através da 13.465, são muito mais antigas do que isso. Mas acho que o que é importante entender são que as lógicas do neoliberalismo que estão colocadas são as mesmas as que se colocam com a questão da guerra às drogas e a questão dos despejos que tem lá, mas eu ainda tenho um pouco de dificuldade de entender como eu vou casar essas duas coisas, pensando no Campos Elíseos. 117
Caio: Ali é outra coisa né, não tem regularização ali. É um lugar onde mesmo que se use a 13.465, ela é relativamente fácil, porque ela está num lugar onde tem uma morfologia mais convencional de quadra, rua. Porque você dialoga melhor com sistema jurídico com parâmetros urbanísticos. O pessoal do Mundaréu da Luz quando vai para lá e descobrem outras coisas, miolos de quadra, passagens, e eles fazem um desenho bonito revelando uma camada que não está nessa estrutura de rua-quadra-lote, de passagens entre lote, miolinhos de quadra, passagens. Mas é uma estrutura que tem quadra fiscal, cobrança de IPTU, tem propriedades constituídas, então é uma outra lógica. Eu acho que esse ambiente da Cracolândia também coloca as pessoas numa posição de culpadas por estarem ali, sem voz. Os moradores de cortiço também, que nem tem mais esse nome porque não tem identidade de luta. Tem outros aspectos para avaliar. A gente tem um texto legal que a gente fez para o UrbFavelas, chama ‘’é pensão sim’’, texto que a gente fez com um pessoal do labcidade, fizemos um levantamento nos cortiços do centro e tem uma parte que a gente fez uma entrevistas meio abertas com o pessoal. Fizemos umas incursões com uma mulher que fazia arquitetura no Mackenzie, era freira e morava ali num lugar com outras freiras, e fizemos umas incursões com ela e entramos nos cortiços. Uma das coisas que a gente percebeu foi isso, essa história de “é pensão”, cortiço era sempre o pior. O Luiz Kohara, faz uma análise bem legal dos nomes dos movimentos do centro, num primeiro momento os movimentos tinham sempre a palavra cortiço no nome, ULC, Fórum de cortiços,etc, isso nos anos 80-90. Na segunda metade dos anos 90, movimento e centro eram as palavras, MSTC, MMC, MMRC, porque tava mais clara a luta pela moradia no centro e o termo movimento dialogava com MST. Depois quando a gente estudou MCMV Entidades, os movimentos do centro todos estavam fazendo coisas na periferia, a ULC virou ULCM, MMC virou MMCidade, MSTC continua, mas tb fazendo ocupação em Goianases. Porque MCMV Entidades o movimetnos se pulveriza e são as entidades que vão ser potenciais contratantes com a Caixa, o Fórum de cortiços foi pra lajeado. Ana: eu fiz um levantamento dos movimentos que estão atuando nos Campos Elísios, na tentativa de expandir esse campo dos movimentos sociais para além dos movimentos de moradia. Levantei também, porque vinculado à cra118
colândia também tem movimentos vinculados aos usuários de drogas. Caio: A ideia do cortiço não mobiliza mais. Em São Paulo as associações não conseguem entrar mais nos cortiços, são controlada pelo PCC, não conseguem mais mobilizar e a palavra cortiço... agora volta a ideia de favela organiza uma identidade de luta, que a palavra cortiço não organiza mais. Ali a gente está falando de uma puta intervenção estatal, com o projeto Nova Luz. Desde a Nova Luz, o que são as ZEIS ali, a quadra 36, as demolições com as pessoas morando dentro que o Dória fez, as CDHU, fazendo obra pra caramba que não atende as famílias que moram ali... Mas eu acho que do ponto de vista de regularização, ainda é um lugar que tem uma morfologia que dialoga com a morfologia existente. Tem lote tem propriedade definida, membrar e desmembrar são operações mais simples, a desumanização que tem é pela questão da Cracolândia, do local, do fluxo, que vai organizando uma desvalorização imobiliária. Agora quando você conversa com os moradores de favela, dos lugares mais difíceis assim, as pessoas se sentem errada na vida. Tenho um orientando estudando conflitos fundiários e é feito tudo pra dar errado. Para cumprir a reintegração de posse, tudo o que os movimentos e as organizações conseguem é fazer um clinche (metáfora de box), atrasar a derrota. Eu estou lendo um livro do Alisson Mascaro, no último capítulo, chamado Regulação, acho muito legal o jeito como ele organiza a relação entre Estado e regulação. Ele é meio estruturalista. Sem muita referência direta. Esse livro da Mariana Mendes é de 2019, mas é uma coisa que juntou muita gente que estava discutindo isso. Ana: Mais recente que eu tenho tratado sobre o Casa Verde e Amarela e a grande solução para as faixas 1 e 2 é a regularização via 13.465. E aí o que eu tenho trabalho é com a hipótese de que oPCVA foi possibilitada pela 13.465; ele só existe nos moldes que existe por conta da 13.465. E existe toda uma discussão de uma política habitacional mais barata do que construir novas unidades, ainda mais com essa desvinculação com a infraestrutura que é possibilitada pela lei. Se você tiver mais indicações de coisas que discutam nesse sentido seria ótimo. Caio: Saiu uma reportagem da BBC sobre o Casa Verde e Amarela minha, da Bia e da Rosane. Hoje a gente tem pouco informação, a MP é uma coisa e as 119
apresentações são outra. E muito do que vai acontecer, vai vir nos regulamentos posteriores. Basicamente assim, tira a faixa 1, no discurso pelo menos, fala que prefere terminar o que está contratado, mas não exclui totalmente a possibilidade do Entidades com um verniz. A medida provisória é muito genérica, e de fato abre uma coisa da melhoria habitacional com uma regulação fundiária que não tinha no outro programa. O outro (MCMV) era claramente um programa de produção de unidades novas e a MP abre um campo novo com esse argumento de que é mais barato. É mais barato porque você não tem que comprar terra, mas é também muito mais difícil de fazer, por isso que o PMCMV não fazia. Não tem uma cadeia produtiva interessada nisso, você não contrata MRV pra consertar trinca dentro de casa em favela, assumir responsabilidade por coisas. A operacionalização que é mais complicada. Poderia mobilizar uma outra cadeia produtiva de pequenos empreiteiros, de pequenos escritórios de arquitetura e urbanismo, uma coisa bem num nível local, onde você possa ter escritorio, fazer projeto 1 a 1, fazer acompanhamento. Mas isso tá muito longe de acontecer, o MCMV deu certo porque ele organizou um jeito espedito de aprovação, regulamentação de sistemas produtivos, e de contratação, expandindo para áreas vazias. No grupo BR cidades eu fiz uma provocação, falei “não tem que se construir mais nada”. O Nabil ficou doido comigo, depois ele foi falar publicamente. Lógico que é importante construir, mas se você construir qual a cadeia produtiva que você mobiliza, é construtora, é escala, terreno vazio, vai encarecer a terra. Se você muda a chave da política urbana assim, “vou só urbanizar, vou só regularizar, vou só fazer melhoria e tal”, ninguém tem interesse nisso. Que impacto teria você dizer que não constrói mais nada? Deixa o mercado, o mercado faz habitação social e de mercado, cadeia produtiva e tal. Eu acho que eu faço essa leitura bem genérica, da Amazônia Legal, das terras da União. Você tem também municípios inteiros que são irregulares, aí você entende o que é o Chico de Oliveira falar que não tem propriedade nesse país. Municípios inteiros, prefeitura irregular, câmara irregular. Essa ideia de segregação de municípios pequenos. Quando você vai pra outras realidades de municípios pequenos, municípios inteiros dentro da água. A Karina tem umas imagens fantás120
ticas da Amazônia. A regularização de interesse específico que altera a 6.766 que altera o condomínio urbano, condomínio de lotes que aí também não tem regulamentação ainda. O que faz com todos que foram aprovados como loteamentos? Porque já estava tudo averbada com a prefeitura. E os instrumento de marketing, o direito de laje. Na questão operacional, como a desregulamentação vai mudando os instrumentos para inventar propriedade, instrumentos para implantação em situações onde a morfologia não dialoga com o sistema que foi todo construído assim. Rua, quadra, lote, prorpriedades individuais, público, privado, sucessões, RG da matrícula do registro de imoveis. é quase como se você mexesse uma linha do que é legal e ilegal, e vai deixando mais cinzenta. E como se usa isso politicamente, como isso organiza a luta, as reivindicações por melhorias urbanas, por segurança na posse... São coisas que a gente só vai ver daqui algum tempo.
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estágio de pesquisa no exterior
École Nationale de Travaux Public de l’État | Université de Lyon Laboratoire Recherches Interdisciplinaires Ville Espace Société | EVS-RIVES
SPL Lyon Part-Dieu e as formas de gestão e intervenção urbana Orientação | Fabrice Bardet 122
_ Índice 1. Resumo 2. Objetivos 3. Metodologia 4. Pequeno resumo das estruturas de intervenção urbana nas 5. cidades francesas 6. Consolidação de Lyon como metrópole e os investimentos para atrair a iniciativa privada 7. Histórico de intervenções na região da Part-Dieu 8. Do plano Delfante à SPL: a transformação da Part-Dieu em um modelo empresarial de gestão urbana 9. Estrutura e função da Société Publique Locale 10. Questionamentos sobre a forma da intervenção na região da Part-Dieu 11. Entrevistas 12. Bibliografia
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Resumo Esse trabalho tem como objetivo analisar as formas de gestão urbana por meio do estudo de caso Lyon Part-Dieu. Mais especificamente, a proposta de trabalho se centra em entender as mudanças da forma de gestão urbana a partir da transição entre o managerialism para o entrepreneurialism e levantar as ferramentas usadas para essa nova forma de gestão urbana nas cidades francesas. No caso da Part-Dieu, o trabalho fará um pequeno apanhado histórico das transformações na área, centrado principalmente no projeto elaborado por Charles Delfante na década de 1970, marcado por uma lógica de managerialism - how to make the city work better - para o atual projeto para o quartier, gerido pela SPL Lyon Part-Dieu e inserido na lógica global de atração de investimentos privados, que marca as competição entre as cidades e a disputa da metrópole de Lyon para alcançar o Top 15 de cidades européias. A partir desse estudo de caso, é possível observar com clareza a mudança nas formas de gestão que são trabalhadas por Harvey, mas também os impactos do processo de metropolização e das competições entre as cidades para a dinâmica urbana e para as formas de produção da cidade contemporânea, inseridas em processo global de financeirização e de globalização que fazem com que a gestão urbana não se limite ao ambiente intra-urbano, mas tenha um impacto nacional e global.
Objetivos Esse trabalho tem como objetivo analisar as formas de gestão urbana por meio do estudo de caso Lyon Part-Dieu. Mais especificamente, a proposta de trabalho se centra em entender as mudanças da forma de gestão urbana a partir da transição entre o managerialism para o entrepreneurialism e levantar as ferramentas usadas para essa nova forma de gestão urbana nas cidades francesas.
Metodologia Esse trabalho tem como objetivo analisar as formas de gestão urbana por meio do estudo de caso Lyon Part-Dieu. Mais especificamente, a proposta de trabalho se centra em entender as mudanças da forma de gestão urbana a partir da transição entre o managerialism para o entrepreneurialism e levantar as ferramentas usadas para essa nova forma de gestão urbana nas cidades francesas.
Pequeno resumo das estruturas de intervenção urbana nas cidades francesas O processo de intervenção urbana nas cidades francesas parte de uma estrutura organizacional da qual fazem parte as seguintes instâncias ou instrumentos: 124
PLU-H | O Plano Local de Urbanismo e Habitação é um plano desenvolvido pela Metrópole, com papel semelhante ao desempenhado pela lei de zoneamento no Brasil, determinando áreas destinadas a diferentes funções na cidade. Ainda que tenha uma ”versão inicial”, o plano está em constante atualização e mudança. ZAC | as Zones d’Aménagement Concerté são zonas definidas pelo PLU-H cujo objetivo é o desenvolvimento dessas áreas, possibilitando maiores investimentos privados para a concretização de seu objetivo. Após a definição da ZAC, é desenvolvido um projeto urbano para a realização da operação - pode ser voltada para resolver uma questão habitacional, visando diversidade de usos, modernização do quartier, valorização etc. - que pode ser de gestão majoritária da município ou da metrópole, de acordo com o tamanho e objetivos da ZAC. SPL | A Société publique Locale é uma forma de gestão das operações urbanas a partir de uma espécie de “empresa” responsável pelas obras de intervenção urbana, em especial para operações de maior escala e voltadas para atração de investimentos privados. A SPL é responsável pela gestão das obras, do orçamento, dos investimentos, assim como da elaboração do projeto urbano e dos projetos de arquitetura que serão implantados. Além disso, é função da SPL fazer a comunicação do projeto para os moradores e estabelecer a relação com a vizinhança. Na metrópole de Lyon, existem hoje apenas duas SPL vigentes: a Part-Dieu e a Confluence. Dentro da SLP existem alguns regimes empregatícios. Algumas pessoas já eram funcionários públicos na Grand Lyon e foram alocados para essa função e existem outros que são contratados apenas para o trabalho na SPL, que em geral fica em vigor por um longo período de tempo, podendo chegar a mais de uma década. Com relação às formas de financiamento e decisão sobre os projeto, o poder de decisão que cada esfera - município e metrópole - tem sobre a intervenção depende da porcentagem de investimento que é dado por ela. Projeto Urbano | determinado pela SPL, o projeto urbano é estabelecido a partir dos objetivos definidos para a ZAC pela collectivité (Grand Lyon). Nele são previstos os espaços livres, as novas edificações - que serão projetadas por escritórios de arquitetura contratados posteriormente - os equipamentos públicos, as propostas de sustentabilidade para a área, o plano de mobilidade, entre outros. A partir de alguns desses elementos, a SPL Lyon Part-Dieu será analisada, levando em consideração as mudanças com relação ao projeto de Charles Delfante elaborado para a região na década de 1970, a partir de uma outra lógica de planejamento, mais voltada para um funcionalismo urbano e não para a atração de investimentos privados, como acontece na lógica atual - o que fica evidente no caso específico da Part-Dieu, 125
como será discutido à diante.
Consolidação de Lyon como metrópole e os investimentos para atrair a iniciativa privada Não é nenhuma novidade as formas de competição entre as cidades europeias, em especial entre as grandes cidades de um mesmo país, buscando atrair investimentos privados para alavancar seu desenvolvimento econômico e aumentar seu poder político dentro do país. No que diz respeito à Lyon, segunda maior cidade francesa, atrás apenas de Paris, Bardet e Healy afirmam: “La forme de compétition la plus classique à Lyon se focalise sur une concurrence entre élites politiques lyonnaises et élites politiques parisiennes dans l’acquisitions puis le maintien du monopole des fonctions et des institutions de régulation nationale” (BARDET, HEALY, 2015)
Na última década, vem se acentuando, no entanto, uma competição internacional entre as cidades europeias, visando a obtenção de auxílios financeiros da União Europeia, mais do que de seus governos locais. Além disso, essa competição visa os investimentos privados nas cidades, como a vinda de sedes de empresas multinacionais, a escolha da cidades como ambiente de trocas comerciais etc, estimulando a circulação de pessoas e de dinheiro nelas, consolidando o que Bardet e Healy chamam de “forme de compétition plus classique: favoriser l’implantation de la production des biens et services.”
Em Lyon, vale destacar a importância da Association pour le Développement Économique de la Région Lyonnaise, cuja “principale mission est de favoriser le rayonnement international de Lyon, notamment en assurant de maintien de sièges sociaux de grands groupes dans la métropole.” (BARDET, HEALY, 2015)
É nesse processo também que se insere uma mudança na forma como a população é vista pelos gestores públicos. De acordo com os autores: “Une inflexion qui renvoie à un changement de conception économique de la population - d’une population qui travaille à une population qui consomme - que la géographie économique pourrait avoir négligée ces dernières années.” (BARDET, HEALY, 2015)
Nessa lógica, se insere um processo de marketing territorial, visando a atração de investimentos internacionais e reforçado pela École de Management de Lyon, através da construção de grande equipamentos como a Cité International, consolidando um desempenho institucional focado em estabelecer a cooperação entre atores locais na esfera econômica e uma liderança de Lyon na estrutura regional. 126
“Les élus et les agents de la communauté urbaine de Lyon (encouragés par les réflexions de l’agence d’urbanisme) sont alors décidés à s’investir dans d’internationalisation de l’agglomération par l’économie, en affichant un moyen d’action que se veut spécifique et qu’ils nomment la ‘gouvernance économique’. Celle-ci consiste à réunir les ‘principaux acteurs de l’économie lyonnaise’ pour définir les actions à mener de manière à maintenir, voire, améliorer, le rang de Lyon dans le compétition internationale des villes. [...] Il s’agit de rassembler acteurs publics et privés du territoire pour travailler à établir un projet d’agglomération partagé et susceptible de préparer un meilleur positionnement de l’agglomération dans la compétition internationale des villes.” (BARDET, HEALY, 2015)
Com isso, são criados mecanismos públicos de inserção da iniciativa privada no planejamento urbano, visando uma maior colaboração entre as partes para o desenvolvimento do território. O objetivo central dessa colaboração é a colocação da cidade no Top 15. O processo de metropolização e o crescente poder na metrópole da Lyon sobre as cidades que a compõe se insere fortemente nessa lógica. Além disso, a determinação das ZACs e da SPL na metrópole também exerceram um importante papel para colocação de Lyon no Top 15 de cidades européias. “Au début des années 2000, il s’opère ainsi une généralisation des collaborations entre élites publiques et privées qui font aujourd’hui l’objet d’interrogations approfondies. Traditionnelles, ces collaborations bénéficient alor d’une théorisation avec les succès du terme de ‘gouvernance’ que concourt à leur popularisation. A Lyon, le service du développement économique du Grand Lyon dès lors en charge de l’établissement de relations privilégiées avec la sphère privée porte aussi les politiques de palmarès.” (BARDET, HEALY, 2015)
De acordo com informações fornecidas em entrevista e pela própria divulgação da SPL Lyon Part-Dieu, o projeto se coloca como uma das iniciativas da Grand Lyon na competição em torno do Top 15 e sendo a própria competição um dos elementos de motivação da SPL e do projeto Part-Dieu.
Histórico de intervenções na região da Part-Dieu A região da Part-Dieu tem uma história de mais de 800 anos de ocupação, passando por diferentes momentos e formas de ocupação ao longo de sua história. Entre os séculos XIX e XX abrigou um forte e se estruturou como um importante quartier militar em Lyon. Entre as décadas de 1940 e 1960, a região recebeu um projeto urbano pautado na Carta de Atenas, importante manifesto do movimento modernista, que propunha um maior adensamento populacional para a região acompanhado de grandes espaços livres, como mostra o plano de massas 127
abaixo. O projeto resultou na demolição de diversos edifícios e na construção de exemplares do brutalismo corbusiano, em uma região que antes apresentava construções baixas e mais rudimentares. Mas é na década de 1970 que a região sofre as maiores transformações, com o avanço do projeto do arquiteto e urbanista Charles Delfante para a região, que visa um avanço do setor terciário na região, com a reestruturação da estação de trem a redução das unidades habitacionais e a construção de torres escritórios e de equipamentos públicos. O projeto de Delfante se pautava fortemente na lógica de managerialism da cidade, buscando uma maior produtividade a partir da especialização de alguns setores da região. Abaixo, o plano de massas do projeto de Delfante para a região.
Do plano Delfante à SPL: a transformação da Part-Dieu em um modelo empresarial de gestão urbana Com a consolidação do plano de Delfante para a região da Part-Dieu, ocorrem grandes transformações que têm impactos sobre toda a metrópole de Lyon. A começar pela construção de alguns edifícios, em especial o chamado Crayon, que rompem completamente com a malha urbana da cidade, com uma altura muito superior aos demais edifícios da cidade, podendo ser visto quase que de qualquer lugar. A estação também se coloca como uma das mais importantes de toda Europa, usada diariamente por milhares de pessoas. O centro comercial também faz parte da proposta de Delfante, assim como diversos equipamento públicos, como a já mencionada nova estação de trem, o auditório, a biblioteca e a cidade administrativa. O projeto da Part-Dieu estabelecido por Delfante seguia a delimitação da imagem acima e se pautava em um melhor funcionamento da cidade, a partir da reestruturação da mobilidade urbana, dos equipamentos e dos usos do quartier, como fica claro pelas proposições do arquiteto e urbanista, em especial no que diz respeito aos equipamentos públicos que são propostos. Esses equipamentos potencializam uma ocupação da região - em especial durante o dia - ainda que não sejam, claramente, voltados para uma população local, residente na área. A construção desses equipamentos se alongou até perto dos anos 1990, ainda que muitas deles tragam consigo muito do estilo arquitetônico típico dos anos 1970, em um claro diálogo com as grandes cidades norte americanas com enfoque no setor terciário, em especial com New York. 128
A forma de gestão da região que é colocada pela SPL tem um enfoque muito diferente do projeto de Delfante. O projeto Part-Dieu dos anos 2010 se coloca como um claro exemplo da discussão feita por Harvey: um projeto que tem como força motriz a atração de investimentos privados. Se observarmos apenas as principais obras propostas, em contraposição com o projeto de Delfante essa transformação da forma de gestão já fica evidente. Uma quantidade significativa dos edifícios propostos é majoritariamente de escritórios, alguns deles atendendo a uma única empresa - como é o caso do edifício da Orange. A SPL argumenta que em todo o plano é proposta a utilização de fachadas ativas e a implementação de unidade de habitação, com a justificativa de criar um quartier vivo, ainda que uma porção majoritária deste feche as portas em horário comercial. O projeto é bem mais uma proposta de embelezamento e gentrificação de uma região já consolidada do que uma grande obra de renovação urbana. A lógica de gestão urbana proposta pela SPL é endossada pela delimitação da ZAC, que possibilita e estimula a injeção de capital privado para a realização da obra. Com isso, a operação passa a estar atrelada à necessidade de responder à demandas do capital privado, focada na obtenção de lucros. A relação da operação com a competição para entrada de Lyon no Top 15 de cidades européias também contribui para o entendimento do projeto Part-Dieu como parte da lógica de entrepreneurialism discutida anteriormente.
Estrutura e função da Société Publique Locale Atualmente só existem duas SPL em vigor na métropole de Lyon: a Part-Dieu e a Confluence. As duas têm objetivos muito diferentes, uma vez que a Part-Dieu parte mais da questão da mobilidade e atração de empresas, com a construção de diversos escritórios e o desenvolvimento no entorno da estação multimodal da Part-Dieu; enquanto que a Confluence se dedica mais a consolidar um polo cultural e comercial em torno do centro comercial, das moradias de alto padrão e do Museu da Confluence. Ainda assim, ambas apresentam a característica comum de modernização da cidade e claro processo de gentrificação que se coloca na região. Como já dito, a SPL é uma estrutura independente, criada para a gestão de uma zona de desenvolvimento específica, sendo assim, as duas SPL não possuem qualquer relação entre si. A princípio, imaginava-se que era a SPL - enquanto instrumento de gestão - que possibilitava uma maior inserção da iniciativa privada nas obras de desenvolvimento urbano, mas de fato esse aspecto fica a cargo da ZAC, que determina as áreas com maior facilidade para investimentos 129
privados na cidade. Ainda assim, não pode ser negada a força da SPL como contribuidora desse processo, acentuando a gentrificação e a perda do caráter social dessas transformações urbanas. A SPL é criada para gerir a intervenção a ser realizada em uma determinada ZAC, cujo objetivo é definido pelo Estado, quando da criação da ZAC. Sendo assim, a SPL deve garantir que esse objetivo seja alcançado, podendo, para isso, ampliar o perímetro da intervenção, definir seu orçamento e a infraestrutura necessária para sua concretização. A SPL funciona como uma empresa dentro da estrutura pública que tem autonomia para realizar a intervenção em sua área de projeto. É a SPL que gerencia a destinação dos recursos, as obras de intervenção, determina quais os projeto de arquitetura que serão construídos, a porcentagem das habitações que serão de interesse social, as áreas verdes, os espaços públicos, a forma de comercialização dos edifícios etc, além de fazer a comunicação com a população da região e a divulgação da intervenção. A equipe da SPL é constituída de cerca de 20 funcionários agrupados em 4 áreas: urbana, financeiro, comunicação e recursos. O investimento é proporcional à porcentagem de participação de cada uma das instâncias públicas, sendo a Metrópole (90%) a principal delas, seguida pela cidade de Lyon (10%). De acordo com a plataforma digital da própria SPL: “Ce projet au long cours propose de donner un nouveau souffle à la Part-Dieu, en s’appuyant sur une vision équilibrée et respectueuse de l’existant. Modèle de réinvention à grande échelle, il propose une offre tertiaire augmentée et mieux calibrée, conjuguée à une ambition forte sur les logements et les espaces collectifs. Vitrine de la ville de demain, le projet Lyon Part-Dieu dessine ainsi un espace favorable au développement économique mais aussi un territoire de vie, plus fluide, plus agréable, plus vert, plus vivant et mieux connecté à la ville. Pour que ce territoire ne soit plus un espace où l’on passe mais comme une destination où l’on reste, véritable quartier à vivre. Pour concilier plaisir de ville et performance, au cœur d’une métropole européenne.” (SPL Lyon Part-Dieu)
A ZAC Part-Dieu Ouest teve seu documento de criação aprovado em dezembro de 2015 e se configura como o principal instrumento de intervenção na região. A realização da ZAC foi colocada sob responsabilidade da SPL até 2029, prazo de finalização das obras. A ZAC é aprovada em 2014, como continuidade ao trabalho iniciado pela Mission Part-Dieu de 2010 à 2014, que possibilitou as primeiras operações e mobilizações dos atores públicos e pri130
vados na região. A SPL é fundada em 2015 buscando, de acordo com a mesma, criar um território mais atrativo, ampliando a qualidade de vida os moradores e intensificando a relação com a cidade, a partir do consolidação de um quartier vivo.
Entrevistas Foram realizadas no processo de pesquisa duas entrevistas com sujeitos opostos dentro do ambiente de disputa da Part-Dieu: uma com Gilbert Dumas, membro e fundador do Collectif Part-Dieu e uma com Benjamin Kassis, responsável pela comunicação da SPL. As entrevistas foram importantes no sentido de expor às questões que são colocadas por cada uma das partes, como objetivos e mecanismos do projeto. Entretanto, nenhuma das partes se aprofundou muito no que se acredita ser a verdadeira questão por trás do projeto Part-Dieu: o caráter empreendedor da SPL, a partir de uma necessidade de atração de investimentos privados e da consolidação do quartier como um polo de integração modal e financeira na Europa. Em ambas as entrevistas, foi discutido muito sobre as estratégias ambientais para a região ou a falta delas, pela parte de Dumas - e na questão habitacional. Entretanto, a principal questão que se coloca no projeto não diz respeito, essencialmente, aos aspectos locais da Part-Dieu, mas aos impactos que o projeto tem para toda a metrópole de Lyon. Para embasar a metodologia de elaboração e realização das entrevistas, foi feita uma leitura inicial de Pièrre Bourdieu, buscando fazer uma análise das entrevistas que fosse além das respostas em si, mas considerasse o lugar de fala de cada um dos entrevistados. Quanto à estrutura das entrevistas, buscou-se elaborar perguntas que fossem possíveis de serem comparadas posteriormente, visando uma contraposição entre os discursos dos dois atores. Pelas questões colocadas acima, foi acordado que não havia a necessidade da transcrição das entrevistas realizadas. Benjamin Kassis | Responsável de comunicação da SPL Part-Dieu | 22 de janeiro de 2020 Gilbert Dumas | Collectif Part-Dieu | 27 de janeiro de 2020
Bibliografia BARDET, Fabrice. HEALY, Aisling. Les acteurs urbains et les promesse des palmarès internationaux des villes. Lyon à conquête du “Top 15” européen. Métropole, 16 | 2015. 131
DELFANTE, Charles. La Part-Dieu: le succès d’un échec. Lyon: Libel, 2009. DECOSTER, François; DELOMIER-ROLLIN, Florence; DUFIEUX, Philippe; d’ARCIER, Louis Faivre; MONTÈS, Cristian; ROY, Maud; TRIOMPHE, Pierre. La Part-Dieu: 800 ans d’histoire. Lyon: Archives départementales et métropolitaines, 2019. HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. LORRAIN, Dominique. La main discrète: la finance globale dans la ville. Revue française de science politique | vol 61 n 6 | 2011 | p. 1097-1122. MENEZ, Florence. Le partenariat public privé en aménagement urbain: évolution et métamorphose de la maîtrise d’ouvrage urbain des années 1960 a nos jour. Analyse à partir du cas lyonnaise. Lyon: Université Lumière Lyon II ; Institut d’Urbanisme de Lyon, 2008. SPL Lyon Part-Dieu. Dossier de Concertation ZAC Lyon Part-Dieu Ouest. Grand Lyon: la métropole. Lyon, 2016. Collectif Part-Dieu (DUMAS, Gilbert; LACROIX, Jean-Jacques; PARIS, Hugo; BEAU, Patrick; BIENVENUE, Stéphane). Aménagement de la Part-Dieu à Lyon, une lettre du Collectif Part-Dieu. Lyon, 2019. SPL Lyon Part-Dieu. Plataforma digital de comunicação da Société Publique Locale.
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