Terra Estrangeira
perfis | memórias | invenções
Sumรกrio
Par 15 | Marseille, Franรงa Boston, EUA | 5
Salaman
1 | Mindelo, Cabo Verde 18| Bridgetown, Barbabos
ris, Franca | 12
nca, Espanha | 8 ,
Desconstruindo preconceitos: a ponte entre a África e o Brasil
CAIO Wallerstein
Quando recebi das mãos do cabo-verdense Miéle Sirley Piedade Lima um pequeno questionário, as três simples perguntas nele contidas me soaram um tanto complexas: “Qual a sua opinião sobre: - Cultura africana; - África; - Africanos. (Esteja à vontade)”. Enquanto respondia ao questionário (com todo cuidado, para não parecer preconceituoso, condescendente ou mal informado mesmo), me vinha à cabeça um bocado de estereótipos e simplismos sobre o continente africano, daqueles que aprendi com o que a televisão me trazia em filmes, reportagens, seriados ou desenhos animados. Nada que pudesse ser escrito sem me causar vergonha ou embaraço. Indo um pouco mais fundo, consegui me lembrar de algumas características e traços da África, de seu povo e de sua cultura que aprendera nas aulas de história (portanto, com maior grau de credibilidade e verossimilhança). Lembrei o suficiente para responder de forma superficial e não passar vergonha. Mas ali, percebi minha alienação em relação ao continente, mesmo tendo muitos africanos ao meu redor, no cotidiano universitário. E eu, com certeza, não era o único a compartilhar esta sensação dupla de interesse e desconhecimento. Daí me veio a curiosidade de conhecer um pouco mais da vida e dos pensamentos daquele rapaz. Miéle (fala-se Miél, com o segundo ‘e’ mudo), 23 anos de idade, natural de Cabo Verde, África, é um entusiasta da cultura e arte africanas. Também é um apaixonado pela cultura brasileira. Sua fala mansa e pausada esconde uma animação pelo novo. Uma ânsia pela união entre o Brasil, país onde mora, e Cabo Verde, sua terra natal; união que possa fazer dos africanos um povo menos retraído. E que possa trazer aos brasileiros mais consciência e menos discriminação. Miéle me fez perceber muito do preconceito intrínseco que se tem com os africanos. Preconceito que eu mesmo tenho sem
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perceber. Nascido na cidade de Mindelo, na ilha de São Vicente (uma das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde), ele morava com a mãe, e próximo aos avós. Uma proximidade que supria a falta dos irmãos: os quatro que tinha foram morar em outras ilhas do país e não voltaram. Alguns deles, ele não vê há quase uma década. A vida tem dessas; afasta pessoas queridas, talvez para testar a fé, medir a vontade, revelar os reais desejos e aspirações. Na sua terra natal, estudava em um colégio primário. Fez um curso técnico em Eletricidade Eletrônica e chegou a ter alguns empregos, por pouco tempo. As aspirações genuínas, porém, eram outras. Nos últimos anos de colégio, passou a se dedicar mais. Precisava de uma média alta para obter uma bolsa de estudos, sua grande ambição. Sacrificou muito de seu tempo e energia para tanto, até que o objetivo foi alcançado. Aos 19 anos, Miéle conseguiu, por meio de suas notas, uma vaga na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para estudar Engenharia (“Faço Engenharia pela curiosidade, e também pela questão do dinheiro. Mas eu gosto mesmo é de arte”). O início da estadia no Brasil foi muito difícil, especialmente pela fal-
“Faço Engenharia pela curiosidade, e também pela questão do dinheiro. Mas eu gosto mesmo é de arte”
ta de auxílio financeiro para moradia e alimentação. Impossibilitado de trabalhar ou estagiar, ele sobrevivia apenas de um dinheiro que havia juntado, além de contribuições que a mãe e uma tia enviavam. “Estudei muito para conseguir a vaga na universidade, mas não vi meu esforço valorizado. Não recebi nenhum tipo de auxílio para me adaptar à cidade. Quando cheguei, não sabia onde comprar um livro, nem em que biblioteca conseguir. Não tinha dinheiro para comprar os equipamentos que o curso exigia. Não podia dormir na Casa do Estudante. Não recebi orientação e ajuda.” Quando, finalmente, conseguiu uma bolsa para intercambistas, enfrentou um problema auditivo, que o tirou das salas de aula por semanas. Com a queda das notas, perdeu o auxílio. Meses de estudo e dedicação podiam ir por água abaixo. A matemática é simples: caem as notas, cai a bolsa. Uma conta elementar, mas
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que não fecha; não considera os problemas que a vida pode trazer, e aos quais todos estão expostos. Não interessa se algum parente morreu ou se a saúde está debilitada. Pragmatismo é a palavra de ordem; por a+b, se chega à desumanidade. Alguns amigos tiveram que voltar para a África pela falta de dinheiro. Ele continuou os estudos, mas reclama muito da falta de ajuda. Muitas vezes, se sente sozinho, largado. Apesar das dificuldades cotidianas, Miéle mantém um semblante feliz e tranquilo. Não deixa transparecer a preocupação. Não permite que as dificuldades influam em seu comportamento, é aberto e comunicativo. Por já residir a quatro anos em Recife, é integrado ao povo brasileiro e aos seus costumes. Muitos de seus conterrâneos, porém, não tem a mesma facilidade de adaptação ao Brasil. Os motivos são muitos. A cultura é diferente, os costumes são diferentes. Sim, mas não só isso. O povo africano é mais fechado. Se junta entre seus semelhantes e tem dificuldade de se misturar. O receio é a maior razão disso. Muitas vezes, ele sente que é tratado como se tivessem pena dele. A África sofreu muito com a colonização, a exploração e a doutrinação da Igreja, ele diz. Mas isso não é motivo para um tratamento diferenciado. Isso incomoda os africanos, que, por isso, não se sentem acolhidos. Uma pena, diz, pois impede que as semelhanças entre África e Brasil se evidenciem. Se o africano é fechado, por outro lado, o brasileiro é desconfiado. “Quando aparece um africano mais aberto e comunicativo [como ele próprio], é visto como malicioso, mal-intencionado.” Também existem os vários estereótipos do povo africano, que, assim como meu desconhecimento sobre a África, vêm da desinformação. “As pessoas vêem os africanos de modo diferente. O preconceito é muito grande e acaba segregando as pessoas.” Esta barreira entre africanos e brasileiros os impede de mostrar suas qualidades e sua cultura. Brasil e África têm semelhanças em muitos aspectos, e é nisso que ele quer investir para aproximar brasileiros de africanos. Daí, a ideia do questionário. “Temos uma dança em Cabo Verde que é muito parecida com o coco, a gente dança batendo o pé. Lá, também brincamos o Carnaval na mesma época. Quero saber mais das semelhanças e diferenças entre as culturas, e assim pensar o que pode ser feito para uni-las.” Morar longe de casa é difícil, mas ele já se acostumou. A distância ajudou a olhar mais para si mesmo, e repensar seus objetivos. A maioria dos africanos quer fazer um curso, aprender e voltar para ajudar a família. Miéle também quer ajudar e se fazer presente, mas quer sair do Brasil com alguma coisa a mais. Quer deixar alguma marca, alguma prova de que esteve
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aqui, que conhece a cidade. “Enquanto a maioria dos africanos não conhecem nada de Recife, eu tenho orgulho de saber onde ficam as coisas. Aprendi muita coisa boa aqui.” Miéle já ajudou a organizar eventos, como um, em 2013, que uniu os intercambistas africanos aos universitários pernambucanos. Uma espécie de legado em solo pernambucano, que ele considera importante: servir de ponte entre África e Brasil. “Me deu muito prazer ver todos interagindo, trocando informação e cultura. Me fez sentir mas africano.” Ele também deixa sua marca entre os círculos de amizade. Diz-se orgulhoso por ter feito amigos seus absorverem gírias africanas em seu vocabulário. “A maioria é safadeza”, ele conta, rindo. “Hoje eu falo gírias pernambucanas, e muitos amigos meus usam gírias africanas. É assim que eu tento mostrar minha cultura, não impor, mas mostrar.” A amizade de um africano vale muito. Embora precise de tempo para se abrir e aproximar, ele cria um laço forte e duradouro. Enquanto ele me faz a revelação, sinto um pouco deste vínculo. A sinceridade de suas palavras é de uma linguagem universal, que transpassa as pequenas dificuldades que tive na compreensão de seu português. O modo a que se referia a seu povo (nunca cabo-verdenses; sempre africanos) me passou uma ideia de unidade. Um povo unido pelo sofrimento. Pela cultura do preconceito. Mais que isso: um povo que quer mostrar o que tem de bom, sem querer piedade ou dó. Que quer entender a vida dos outros, e sonha com um dia em que se saiba falar, sem preconceitos ou arquétipos, daquilo que eles têm a oferecer: - Cultura africana; - África; - Africanos. É este o seu legado.
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Quedas e adaptações de um menino precoce
Mayck torres
Apartamento grande e localizado em uma avenida importante, família numerosa e abastada, três carros esportivos e algumas outras propriedades. A vida de Magnus Diaz, jovem professor estadunidense de 25 anos, aparentava ser tranquila e sem atropelos numa vizinhança de classe média-alta em Boston, EUA. De ascendência portorriquenha e brasileira, Magnus, durante a infância, tinha o desejo de se tornar jogador de futebol. Pelo físico franzino e baixinho, foi demovido dessa ideia e voltou a se concentrar apenas nos estudos, apesar do reconhecido talento com a bola nos pés. Chegou a ter oportunidades no juvenil do New England Revolution, de sua cidade, mas os treinadores disseram seu futuro era longe dos campos. Além do soccer, que praticava quase sozinho por ser um esporte ainda não tão popular na terra do football, o menino Magnus se empolgava com basquete e hockey. O primeiro osso quebrado, inclusive, veio sobre patins e gelo. Os primeiros troféus e medalhas também. Aos nove, já tinha sido campeão como goleiro do torneio interclasses organizado por seu professor de educação física no colégio. Começou a dirigir aos 16 anos, mas, até os 15, o rapaz andava pela cidade com um motorista particular contratado pela mãe, que sempre foi muito preocupado com segurança física. Quando finalmente chegou à idade mínima necessária para obter a carta de direção, ganhou dos pais um Mustang 68 preto, carro dos seus sonhos na infância, totalmente restaurado e conversível. Sempre fora louco por Muscle Cars. Fã de Hard Rock e filmes de estrada, a primeira coisa que fez ao entrar na máquina foi pegar uma pista sem trânsito, acelerar e por “Born To Be Wild”, do Steppenwolf, pra tocar em máximo volume. Sentia-se livre, deliciosamente livre. Seu espaçoso quarto em Boston tinha as paredes repletas de pôsteres e artigos de suas bandas preferidas. Kiss, Iron Maiden, Bon Jovi, Guns N’ Roses, Scorpions, dentre outros, sempre embalaram, com suas guitarras estridentes e seus vocais poderosos, os sonhos do garoto, que arranhava uma guitarra Fender branca deixada pelo pai antes da fatídica viagem de barco. Arriscava também na bateria, o que lhe rendia uma bem-vinda polivalência dentro da banda que mantinha com alguns amigos.
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Esse sem-número de características de moço urbano de “boa família” lhe rendia bons frutos no campo amoroso também. As meninas eram muitas em sua vida. E foi tudo tão precoce nesses termos que o primeiro beijo saiu aos nove anos, a primeira namorada aos dez. Até os 17, foram mais 6 garotas com as quais se relacionou. Aos 14, um enorme baque: descobriu que Anna, sua quarta namorada, estava grávida. Seu mundo desmoronou, ainda que sua família nunca tenha deixado de dar o suporte necessário. “Um choque gigantesco. Eu só tinha catorze anos e fiquei sem chão. Por sorte, minha mãe e minha família nunca me abandonaram”. Não foi o suficiente, entretanto. Anna perdeu o bebê aos quatro meses após uma discussão com seu pai. Vida que seguiu. Sempre gostou da vida que levava, nunca negaria isso. No colégio, costumava tirar boas notas, mas não fazia completamente o estereótipo de nerd. Suas roupas e tênis de marca, os relógios caros e celular de ponta, além de ser o único da turma a ter um laptop, lhe rendiam a imagem de playboy metido, ainda que a recusasse (e, de fato, não fosse merecida). Magnus, de metido, só tinha a casca mesmo. “Os que me conheciam a fundo sabiam que eu sou uma pessoa gentil e cordial, ainda que não desapegada dos materialismos.
A um olhar distraído, jamais se perceberia que aquele American Life Style da família Diaz teria um fim complicado.
RUPTURA A saúde financeira da família, por outro lado, nunca teve muito controle. Gastos supérfluos, pouco a pouco, foram minando as receitas dos Diaz. A um olhar distraído, jamais se perceberia que aquele American Life Style da família Diaz teria um fim complicado. Foi então que tudo isso precisou passar por uma mudança. Magnus nunca teve presente a figura do pai. Mark falecera pouco depois de seu nascimento, num acidente de carro. A mãe, Viviane, nascida em Natal-RN, conhecera seu esposo quando ele havia ido passar férias no litoral nordestino na década de 80. Largou família, amigos e faculdade de Arquitetura para ir a Boston morar com ele.
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O rapaz foi criado pela mãe, pelas tias e pela avó paterna. Nunca lhe faltou nada, até sobrava. Até que o inesperado finalmente chegou: as contas da empresa da família não ficavam mais no azul, levando a uma desestabilização enorme, findando numa falência. A estrutura financeira e emocional desabou e era agora impossível manter o nível de vida que se levava naquele lar. Não havia mais condições de manter o jovem Magnus naquele ritmo caríssimo de viver, e a única solução que encontraram foi mandá-lo ao Brasil para viver com a família de Viviane, que ainda mantinha razoável qualidade em termos de dinheiro. Ele relutou. Falava português parcamente, apesar dos esforços de sua mãe ao ensiná-lo por toda a vida. RECOMEÇO Acabou indo. Entendera que as dificuldades do lado paterno da sua família eram alarmantes e permanecer em Boston seria algo como um estorvo. Porém, antes, resolvera intensificar seu português com a mãe para se adaptar melhor. O começo foi complicado. Chegar aos 17 anos a um país totalmente diferente, por mais que tivesse toda uma base por trás, era difícil. “Eu sabia que teria muitas dificuldades, mas não imaginava que tantas. Acho que a insegurança foi ainda pior que a barreira do idioma. Segunda semana em Natal e já havia sido assaltado duas vezes”, conta, já com o sotaque americano muito mais amenizado do que quando chegara. Seguiu sua vida na capital potiguar até começar a se estabilizar. Retomou os estudos, que ficaram paralisados por seis meses em razão de burocracias, e se formou em Letras aos 23 anos. Em razão de seu lado autodidata, não demorou muito para aperfeiçoar seu português. Tanto é que, ao conhecer uns amigos residentes no Recife, decidiu se mudar novamente e se tornar professor de inglês em algum curso de idiomas. A Minds English School, em Boa Viagem, é seu primeiro emprego no Brasil, e ele está satisfeito, ainda que sonhe em voos mais altos. “O método da escola facilitou minha adaptação aos alunos brasileiros e o ambiente de trabalho é incrivelmente fraterno e receptivo. Mas um dia pretendo seguir carreira acadêmica, estou estudando forte para me tornar professor universitário e pesquisador também”, conclui, empolgado.
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O terceiro mundo como mundo novo
sarah pendon
11 de outubro de 2013 “Atenção senhores passageiros. Dentro de alguns minutos pousaremos em Recife...” Os primeiros dias foram sofridos. Depois de sete dias em um albergue, ele teve que sair para liberar a vaga. Só com a mochila e sem saber o que fazer, empreendeu longas caminhadas em busca de um quarto para alugar. Saiu de porta em porta perguntando aos vigias e moradores sobre um possível local para se hospedar. Acabou obrigado a ficar em um local que não era “lá essas coisas”, mas o melhor que ele tinha visto até então. Os três primeiros meses longe de casa foram os mais difíceis. Pouco a pouco ele se acostumou à ideia de morar em outro país e decidiu mudar sua maneira de pensar. Incorporou, segundo ele, o pensamento dos recifenses: “Tudo vai melhorar.”. Em suas palavras, acostumou-se a lavar mal a roupa, por falta de tempo e de água; e a esperar em longas filas nos bancos, no restaurante universitário e nos supermercados. Essas foram as primeiras experiências do espanhol Pablo García no Brasil. Esse jovem, que tem o nome igual ao de muitos outros na Espanha, é amante do cinema, mas estuda letras/inglês. Pablo está fazendo um ano de intercâmbio no Recife. Vindo da Universidade de Salamanca, na cidade de mesmo nome, Espanha, ele está assistindo às aulas na Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, Brasil. O espanhol iniciou o curso de cinema na Universidade de Madri, mas não gostou. Decidiu voltar para Salamanca e estudar letras. A oportunidade do intercâmbio surgiu e ele pensou uma, duas, três vezes, até que, com o incentivo da mãe, Pablo resolveu partir para uma experiência inédita. Nunca havia morado mais longe de casa do que a capital espanhola, que fica a 214 km de Salamanca. Pablo Hernandez García nasceu em 15 de fevereiro de 1992, em Salamanca, Espanha. Apesar de ter morado por vinte anos na mesma cidade, o estudante não a vê com muito encantamento. Ele a considera triste, embora não saiba bem o porquê. Agora, morando em Recife, o espanhol está feliz com a “luz” do Brasil, como ele chama. Recife é a cidade que mais o encantou e na qual ele mais gostou de viver.
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Apesar de querer trabalhar com o cinema, Pablo decidiu estudar letras porque ama aprender línguas e literatura. Para ele, informação nunca é demais e todo conteúdo adquirido pode aumentar a sensibilidade na produção de seus futuros filmes. Nos oito meses em que está na capital pernambucana, Pablo já conseguiu contatos na área de cinema e está participando da produção de um longa-metragem. Isso foi possível graças à sua experiência na Espanha.
A produção local de cinema o surpreendeu e o deixou satisfeito por ter escolhido o Recife e não São Paulo ou Rio de Janeiro
A paixão pelas artes é hereditária. Mari Carmen García Sánchez, mãe de Pablo, costumava pintar e tentou estudar belas artes. Hoje ela é dona de casa, mas incentiva o filho a fazer o que gosta e a conhecer o mundo. O pai do estudante, Jesús Hernandez Peña, é técnico em edificações, uma profissão - segundo Pablo - que fica entre o arquiteto e o pedreiro. Pablo tem uma irmã sete anos mais velha, chamada Maria. Ela é formada em belas artes e trabalha com desenho. A família o apoia totalmente. Sorrindo, Pablo comenta que ama tudo no cinema, menos o dinheiro. Ele gosta de um cinema independente e crítico, que quer utilizar para incentivar as pessoas a pensar. O espanhol está sendo revolucionado pela experiência no Brasil. Novas ideias estão chegando à sua mente. A produção local o surpreendeu e o deixou satisfeito por ter escolhido o Recife e não São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, no Sudeste. De tênis, bermuda e camiseta, Pablo parece ter se adaptado ao estilo brasileiro. Com sua sempre companheira mochila de montanhismo, o espanhol anda tranquilamente pela universidade e rapidamente conhece as pessoas. Apesar de não ter um perfil muito diferente dos brasileiros, há algo que o diferencia. Talvez sejam os olhos castanho-claros levemente esverdeados. Ele tem o nariz um pouco mais longo, tipicamente espanhol, e cabelos lisos. Mas o que identifica Pablo é seu sotaque inconfundível. 4 de abril de 2014 Primeiro dia de aula de uma eletiva de jornalismo. Pablo estava sentado na última fileira da sala, quando entrei e sentei
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ao lado de outra colega. A professora entrou, disse que esperaria mais cinco minutos para iniciar a aula e saiu. O espanhol começou a puxar conversa. Perguntou de que curso éramos e por que escolhemos a cadeira. Tínhamos a mesma opinião: “a professora é ótima”. Nas aulas seguintes não conversamos. Mandei um e-mail para ele, que não usa muito o Facebook, e marcamos uma conversa para depois da aula. 6 de junho de 2014 Entrei na sala e sentei ao seu lado. Depois de alguns minutos, Pablo olhou para mim fazendo um sinal de positivo com o dedo e disse um pouco tímido: “Sarah, tudo bom?”. Respondi que sim e só nos falamos novamente depois da aula. O espanhol estava surpreso com o meu pedido, mas prontamente atendeu e ficou feliz em poder ajudar. Ele mistura o português com o espanhol. Às vezes desconhece um sinônimo que possa utilizar e fica preocupado se está sendo compreendido. Pablo tem muitas expectativas e sonhos. Depois do intercâmbio, voltará para Salamanca onde terminará a graduação em letras. Ainda quer estudar cinema em Cuba, em uma escola que gosta. Aos 22 anos, ele não tem pressa. Decidiu que queria ser cineasta aos 17, estudou cinema por um ano e parou. Começou letras/inglês e resolveu fazer intercâmbio em um país de língua portuguesa, ao contrário de muitos de seus colegas que foram para Inglaterra e Estados Unidos. Ele busca novas experiências, jeitos diferentes de viver. Recife foi escolhida como destino porque tem menos habitantes do que São Paulo e Rio de Janeiro. A mãe de Pablo já havia passado uma semana na cidade e depois de algumas pesquisas ele decidiu o rumo que ia tomar. Ao chegar aqui, descobriu que Olinda não é uma vila e que é maior que Salamanca. Ele arrisca dizer que gostaria da vida em Olinda. Dos lugares que conheceu, é lá que está o seu preferido, o Cemitério Municipal de Olinda. Pablo achou muito interessante a maneira das crianças da cidade de empinar pipa. O espanhol está fascinado pela cultura local. O cinema pernambucano é uma ótima escola de ideias inspiradoras para ele. Pablo quer fazer algo mais. Ele critica a produção cinematográfica espanhola, que apesar de ter bons diretores, tem também filmes vazios. Documentário e ficção são seus gêneros preferidos. Na ficção, ele gosta de diretores “malucos”. Gaspar Noé, Albert Serra, Julio Medem e Fernando Franco são alguns dos citados. “O som ao redor” e “A febre do rato” são filmes pernambucanos que ele gosta muito. Pablo se interessa pela capacidade dos
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cineastas brasileiros de se inspirarem em sua realidade e utilizarem o cinema para criticar e incentivar mudanças sociais. O objetivo de Pablo é absorver o maior conhecimento possível que possa ajudá-lo a se tornar mais sensível para as questões sociais. Em suas palavras, ele está sempre preocupado com o que acontece no mundo. Pablo está cativado pelo que ele chama de luz do Brasil, pela maneira como as pessoas vivem com tranquilidade e com bom humor para superar as dificuldades. Apesar de Recife ter o seu lado bom, o espanhol também critica o transporte público, a saúde e a educação. Pablo diz que tem uma relação de amor e ódio com os ônibus. Sorrindo, ele diz que tem as mesmas sensações com a cidade. As dificuldades o aproximam da realidade local e proporcionam uma rica experiência, totalmente diferente do que ele vive na Espanha. O espanhol está morando no bairro da Várzea, próximo à Cidade Universitária. Às vezes ele prefere caminhar a pegar um ônibus lotado e ficar preso em um engarrafamento. Terminamos a conversa no fim da tarde. Pablo estava preocupado se o seu relato era interessante o suficiente para virar um perfil. Disse que sim e agradeci mais uma vez. Ele me desejou bom fim de semana e foi embora, andando tranquilamente. 28 de agosto de 2014 A volta de Pablo está marcada desde o dia em que deixou a Espanha. Para ele, o Brasil é uma terra de oportunidades que lhe tem ensinado e inspirado muitas coisas. Desde ideias até a maneira de viver. Quando o dia da partida chegar, o espanhol, que tem saudades de casa, irá dizer: “pero ahora?” e sorrindo acenará, não como quem diz adeus, mas até logo.
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Sob o céu das Prostitutas e dos corações partidos
marina maciel
O encontro O relógio marcava as 10 horas da manhã. Aos domingos, como aquele, muita gente fazia piquenique desde cedo à beira do lago do Buttes-Chaumont, um parque enorme e cheio de árvores no 19º arrondissement de Paris. Os grupos, sentados em torno das toalhas que guardavam frutas e queijos, conversavam e riam até as 17 horas, quando começava uma festinha cheia de gente moderna no Rosa Bonheur, a casa de chá do parque. Estávamos lá naquele dia, como estivemos em tantos outros. O Beto, quem me convidou pra beber vinho sentada na grama, eu já conhecia. É um tipo gaúcho todo carinhoso que fez um mochilão pelo Nordeste do Brasil nos idos de 2011 e acabou dormindo algumas noites na minha casa. Quando coincidiu de estarmos os dois lá, do outro lado do Atlântico, já era a despedida dele. Como já tinha morado na França por alguns anos, deixava muitos amigos e quis unir alguns antes de voltar às terras tupiniquins. Já estavam todos lá quando cheguei, menos Gabriela. Ela chegou por volta das 13. Os cabelos, que depois vi mudar tantas vezes, eram, naqueles tempos, longos e ruivos. Ainda lembro bem: saia, camiseta, all star preto, moletom tão vermelho quanto as madeixas, o olhar quase ingênuo que nunca se perdeu e o rosto descansado de quem havia dormido bem na noite anterior. Pra quem a via pela primeira vez, como eu, ela parecia levar a melhor das vidas por trás daquele sorriso largo. Nos demos bem logo de cara. Eu, ela, Beto e nosso amigo Fábio conversamos o dia inteiro, rimos muito. Lá, longe de casa, as amizades surgem com uma rapidez extraordinária. As saudades dos conterrâneos e do Brasil faz com que tudo vire pretexto pra encontros, com que todos se apeguem mais rápido por quem fala a mesma língua e compartilha os sentimentos misturados de ficar distante de tudo. Mas não era só isso. Tivemos uma empatia grande desde o início. Realmente tivemos. Menos de uma semana depois de nos conhecermos, estava eu no apartamento pra onde ela e Fábio acabavam de se mudar. Os novos inquilinos cozinhavam um coq au vin de um cheiro delicioso que incensava o imóvel inteiro enquanto eu e Beto, já no seu último dia de Paris, montávamos as cadeiras da sala de jantar para que pudéssemos nos sentar durante a refei-
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ção. Para as conversas amenas, o sorriso de Gabi era sempre o porto seguro de todos. Era ela quem convidara todos nós. Com Fábio também foi assim, ele próprio me disse depois. Ele estava por lá sozinho meses a fio, vivendo em casas diferentes, aquelas condições precárias de imigrante que vive com mais 15 ou 20 pessoas no mesmo salão amontoado de colchões, quando a conheceu e recebeu o convite de morar com ela enquanto não conseguisse arranjar a própria grana. O mesmo convite também foi feito a mim alguns meses depois. Aceitei em uma das minhas três voltas a Paris ao longo de 2012. Gabriela Vivemos, naquele mesmo apartamento, os três juntos, todos dormindo na mesma sala que fazia, às vezes, de quarto único. Eu, que sempre fui de acordar e dormir cedo, obedeci às regras da casa e passei madrugadas em claro conversando com meus roommies. Foi numa dessas noites, depois de conhecer Gabi havia meses, que comecei a descobri-la de verdade. Para além do sorriso de quem reconfortava como podia todos os seus amigos e dos olhos de quem beirava a ingenuidade por abrir as portas de casa a qualquer pessoa que parecia ser de bem. Ou para aquém, porque não sei se há coisa que eu guarde com mais carinho daqueles dias que isso.
Cheirava tanta cocaína que, às vezes, não conseguia nem levantar no dia seguinte.
Ela me contava, já na penumbra, que estava na cidade fazia seis anos. Já tinha vivido num desses salões abarrotados de gente e teve de trabalhar, exaustivamente, como garçonete, para pagar pela moradia precária. Depois, conseguiu emprego em um bar, onde recebia uma grana decente e, assim, pôde se mudar pra um apê só dela. Mas, vinda do interior do Paraná, de uma família pobre de agricultores, perdeu a cabeça com as saudades, a distância, aquela dor toda de imigrante solitário e incompreendido pela língua e pelos gestos, e gastou a sobra do dinheiro com cocaína. Cheirava tanta que, às vezes, não conseguia nem levantar pra labuta no dia seguinte. Morava no sexto andar de um prédio sem elevador. Uma vez, numa dessas de voltar correndo com a droga no bolso, quebrou a perna e passou dias sem comer, porque não aguentava descer e subir as escadas para visitar o supermercado.
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O trauma de ter quase morrido sozinha ficou. Tentou se mudar de volta para o Brasil repetidas vezes, sem sucesso. Foi aí que conheceu o namorado que a apresentou ao universo da prostituição. Foi cafetina. Ganhava bem, vivia confortavelmente pela primeira vez. Mas brigava muito com o rapaz. Quando o esquema caiu, passou a ser apenas prostituta. E foi, então, que o próprio relacionamento desandou de vez. Como o companheiro não aceitou a nova profissão, acabaram se separando e cada um foi para o seu canto. Isso foi pouco tempo depois dessa fase que a conheci. Ela já estava bem estabelecida profissionalmente. Há feridas, contanto, que não saram para quem vive nesse meio. De todas as vezes em que ela me falava sobre a própria vida era nesse ponto em que as palavras saíam entrecortadas de dor. A humilhação sofrida, o fim do namoro que já durava 3 anos, o medo das reações da família, a violência a que se expunha em cada encontro. Assim, pelo menos, podia enviar algum dinheiro para o sítio onde a família morava e gastar com suas próprias coisas. Viajava algumas vezes. Ajudava os amigos, comprava roupas. Aguentava cada encontro firmemente. Mas, depois, tinha nojo do próprio corpo, da cama, dos lençóis. Dormia mal. Pensava em voltar pra casa, pedir colo pra mãe. Mas, que colo? Ainda teria colo pra ela por trás do preconceito? O pior era a rejeição. Por trás de cada nova ruga no rosto de moça havia o preconceito escancarado da família. Por trás de cada nova tintura no cabelo, uma Gabi que tentava se aceitar. Primeiro vermelho, depois azul, loiro-mel, loiro-acobreado, loiro-platinado, negro. Loiro outra vez. Uma Gabi que pensava que, mudando a própria aparência, podia se afastar um pouco de si também. No fundo, sabíamos todos que para o nojo que ela sentia de si própria não existia cura. O que se faz quando se aprende a vida inteira a rejeitar o que, no fim das contas, você acaba escolhendo ou precisando ser? A pressão que ela sofreu por todos os anos, e acaba por internalizar, é o maior fardo, mesmo em meio a toda precariedade a que se expõe. Ainda assim, sorria para todos no Buttes-Chaumont, sorria nos jantares que oferecia aos amigos, sorria a cada festa aonde ia a passeio. E fomos a tantas. A cada dança, a cada taça, a esperança de que o próximo dia fosse novo. De que ela conseguisse fugir de toda a teia de medo e trauma que se instalava ao redor. De, talvez um dia, poder voltar pra casa — lá mesmo, longe de todas as luzes de Paris, no meio de um sítio no interior do Brasil — e dormir sem pesadelos. Talvez Hemingway estivesse errado. Paris nem sempre é uma festa. Ou é, mas, no dia seguinte, na vida de tanta gente, o rímel já não existe em meio às lágrimas.
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Entre ficções e ilhas caribenhas
bruna meneses
O primeiro encontro se deu ao acaso num corredor. Não nos conhecíamos e aquela era a primeira vez que nos víamos. Mesmo assim, encontrar alguém vestindo uma blusa estampada com um personagem de um seriado britânico pouco conhecido no Brasil fez com que essa que vos escreve tentasse, com o perdão para a brincadeira na frase, o primeiro contato. “Onde você comprou?” não é a melhor opção para dar início a uma conversa, mas foi o que deu a oportunidade para que ela pronunciasse as primeiras palavras e revelasse não ser do país. Sotaque inglês. Com certeza não era britânico. Americano, provavelmente. Ou, pelo menos, de um lugar com influência norte-americana. Incita a curiosidade para saber mais sobre aquela pessoa que, embora fale sem hesitar, ainda atropela uma ou outra letra. Daquele começo não se extraiu muito. Soube apenas que a tal blusa veio de uma loja em Londres com a ajuda de uma amiga dela. Ela, eu saberia poucas semanas depois, se chama Carla Bellot. Outros encontros ao acaso vieram. Sempre nos encontrávamos porque era comum que chegássemos cedo ao Centro de Artes e Comunicação da UFPE. E ali, sem querer, ouvindo conversas alheias e começando a participar delas, descubro de onde minha colega, que não sabe o que é buchada de bode, vem. De um país pequeno, ou melhor, ilha. Barbados, localizado no mar do Caribe. “É muito, muito pequeno”, ela diz. “Às vezes esqueço que o Brasil é tão grande quando comparado com o meu país. Lá era fácil atravessar de um extremo para o outro”. Carla veio ao Brasil com o intuito de estudar cinema depois de ter recebido uma bolsa de estudos do governo brasileiro dedicado a estudantes da América Latina, África e Ásia. Chegou aqui em novembro de 2012, mas foi só no começo de 2014 que ingressou, de fato, no curso. O primeiro obstáculo foi o idioma. Ela riu ao dizer que, quando chegou, só sabia “bom dia e boa tarde”. E, mesmo depois das aulas oferecidas gratuitamente pela universidade, dos cursos online e do convívio com falantes do português, ainda fica confusa ao ouvir os colegas falando que comeram buchada de bode, prato típico do Nordeste. Ela não teve dificuldades para entender quando a iguaria foi traduzida para a língua materna, mesmo assim não pareceu muito feliz para experimentar. Ainda sobre a culinária, Carla também
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contou sobre uma situação semelhante que aconteceu pouco depois da chegada dela. “Minha amiga me disse que eu precisava experimentar um prato chamado macaxeira. Ela falou muito bem e disse que era típico daqui e muito gostoso. Esperei por uma semana e, quando fomos até um restaurante experimentar, eu descobri que é exatamente uma receita que temos em barbados, só mudava o nome”. A afirmação veio entre gargalhadas. Ela também não escondeu a decepção por ter criado tanta expectativa. O que não poderia ficar de fora das conversas ao longo das semanas foi o assunto que permitiu o contato inicial: séries de televisão. Talvez por ser estudante de cinema, o gosto da garota por produções televisivas é um dos elementos que iniciaram muitas conversas entre nós. E apesar de, quase sempre, ter começado com um assunto tido como sério, o tema acabava desviando para algo “estúpido” que conseguia arrancar risadas de quem estava por perto e parecia não conhecer limites para separar a estrangeira dos brasileiros. The Walking Dead, Dexter, Supernatural e diversas outros seriados foram tema na conversa. Até mesmo Game of Thrones, da HBO, veio para o círculo. Carla explicou que, agora, assim como fazemos, depois de assistir a um episódio, ela e os amigos, que ficaram em Barbados, gostam de discuti-lo.
“Às vezes esqueço que o Brasil é tão grande quando comparado com o meu país. Lá era fácil atravessar de um extremo para o outro”
Sem fugir do audiovisual, revelou que esse interesse fez com que estudasse, ainda no Caribe, artes visuais e design gráfico, ambos dentro da área de humanidades. Gostava mesmo era do cinema, fato que pode ser comprovado pela empolgação com a qual comenta os filmes que estão em exibição no cinema, à procura de um para assistir. O idioma continua um pequeno desafio, especialmente quando se trata dos livros de linguagem rebuscada que tratam do tema. No momento em que ela e os colegam começam a falar sobre roteiro cinematográfico, faço a nobre arte da observação. Eles discutiam Malévola e X-Men. À primeira vista, Carla não possui nenhum traço físico que indique que não é daqui. O segredo só é revelado para aqueles que se interessam em ouvi-la falar. “A primeira impressão que tive daqui...” ela hesita um pouco, mas logo ri. “Foi que era
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muito quente. Barbados é quente. Mas aqui é mais”. Depois, indicou os primeiros itens que comprou quando colocou os pés em solo brasileiro: um dicionário, havaianas, uma rede para matar mosquitos e protetor solar. E, apesar de já estar aqui há quase dois anos, faz questão de lembrar que sente saudade dos pais, mesmo falando com eles quase todos os dias. É filha única, porém a casa que deixou na ilha está cheia de amigos de quatro patas. Gatos, cachorros e várias tartarugas. Animais que aqui ela não pode criar porque divide um apartamento grande com outros estudantes estrangeiros. A bagunça e a mistura de tradições nunca foi um problema. Ali se juntam egípcios, bolivianos e franceses. O maior desafio para esse grupo, segundo Carla – depois do idioma natal – será a Copa do Mundo. Quando questionada se Barbados participaria da Copa, ela lembra que o país não tem tradição no futebol, mas que, se por acaso viesse a participar, torceria sem dúvidas para o Brasil. Carla tem 21 anos e, ao contrário das outras bolsas oferecidas para passar um semestre ou um ano aqui, ela ficará durante os quatro anos do curso. Reclama do preço do aluguel do apartamento, mas diz que a experiência valerá muito a pena. E, mais uma vez, o assunto da conversa deixa de ser os problemas e diferenças que ela encontrou no Brasil e volta a ser aquele que permitiu a contato inicial. A discussão volta para o episódio de Game of Thrones da noite anterior e para o encontro de fãs de The Walking Dead que acontecerá na livraria Saraiva. A presença de Carla já está garantida. Prova que são esses pequenos gostos compartilhados que vencem as barreiras da distância e do idioma. A conversa do dia acaba quando o grupo de alunos de cinema sai. Continuará no outro dia, com outro tema que pode ir do complexo ao estúpido em questão de segundos. Carla se despede com um tchau cheio de sotaque. Apesar disso, já entendeu como funciona o espírito brasileiro e não vê barreiras. Exceto, talvez, caso o seu personagem preferido numa série seja diferente do dela. Aí a discussão começa.
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Eentre a Fraça e Calhetas
maurício penedo
A estrada é difícil. Uma subida de terra, pedregulhos e mata fechada dos dois lados. A largura mal cabe o carro. Qualquer curva mal feita poderia roubar os dois espelhos retrovisores. O encontro com qualquer veículo em direção contrária resultaria em um impasse digno de reuniões pesarosas. As fendas do lado da estrada, como se fossem acostamento para animais silvestres, ajudam a construir o clima de rali da situação. Tudo isso, claro, em um caminho íngreme, mais ou menos uns 25 graus. Duro. O caminho até a praia de Calhetas, no litoral sul de Pernambuco, não é fácil. Mesmo assim, é escolhido por um sem-número de pessoas que buscam uma paisagem idílica, cheia de pedras e coqueiros, somando a isso uma incontável quantidade de restaurantes. Mas as matas laterais, que protegem o caminho até o mar azul, reserva muito mais do que apenas animais, folhas e cascalho. Reserva uma história de uma liberdade reclusa, ou uma reclusão livre, dependendo da perspectiva. Dos outros. Porque o autor vivente desta a classifica mesmo como uma “liberdade livre de qualquer amarra. No paraíso”. O REDUTO No meio do mato, quase não se vê a passagem da luz. Os raios se perdem entre troncos, palhas e vida verde. Por isso, é preciso enxergar com atenção. Ou então, apenas ver. À esquerda do caminho, aproximadamente 200m da praia (caminho esse que leva quase 15 minutos para ser feito de carro, e 5 minutos a pé), surge uma construção: uma casa. Ainda sim, há controvérsias. Uma edificação simples, com um terraço, uma porta na esquerda e uma janela logo ao lado. Poderia ser visto assim em outros tempos. Hoje ela reúne terra, folhas de coqueiro que invadem as janelas e muita, muita sujeira e entulho. Restos de TVs, sofás perfurados e gatos. Uma infinidade deles. Depois o dono da casa revelou: “são quinze. E quem mais quiser chegar eu cuido. Adoro gatos, são companhia”. A recepção é típica de bons anfitriões. Piérre Delond (assim se identifica, não possui qualquer documento que o comprove como tal) mora na “casa” – casa para ele, sem aspas – há 17 anos. Nascido em Marselha, veio para o Brasil passar férias em Recife e, segundo ele, “encontrou o paraíso”. Nunca mais vol-
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tou. Virou um cidadão do mundo e, ao menos tempo, um cidadão de Calhetas. Um cidadão da casa com quinze gatos. Orgulhoso. Sentado na frente da residência, no único banco útil, Piérre faz o convite: “senta no murinho”. Não há problema. Só foi preciso empurrar os gatos delicadamente. Não saíram. Também queriam ouvir as histórias. Ou a história. CONEXÃO MARSELHA-CALHETAS Piérre não quis dizer sua profissão. A pergunta foi feita uma vez, e respondida apenas com um olhar de reprovação. Ao seu lado, uma lata de pitú, virada de forma regular, é companheira. Com um típico sotaque francês, o homem, por volta de seus 60 anos, é vermelho por conta do sol escaldante – e, presume-se, pela forte relação com o álcool – ainda sim, veste apenas uma bermuda, sandália e camisa de botão aberta. Com um grande álbum de fotos no colo, os olhos, aparentemente opacos, seguem cada imagem, seguidos de respirações rápidas. “Vim para cá passas as férias. Sozinho, para conhecer o lugar. De cara me apaixonei. Depois de 20 dias, mandei uma carta para minha família avisando que ficaria mais um pouco. Enviei outras três cartas depois desta, sempre explicando a mesma coisa. Depois da quinta, disse à minha esposa que não voltaria mais. E não me comuniquei depois disso”, disse de forma lenta.
““Vim para cá passas as férias. Sozinho, para conhecer o lugar. De cara me apaixonei.”
Parecendo o texto decorado de uma peça. Os vários anos residindo na localidade parecem ter cumprido sua missão em Piérre: a relação com seu passado, com a França e com seus antecedentes é uma sombra pálida, ao menos externamente. Perguntado sobre seus documentos, o homem grisalho e de olhos azuis diz que jogou todos fora há mais de uma década. “Não preciso de documentos para viver na natureza. Faço bicos, tenho um chuveiro e meus gatos. Para quê papel?”, indaga. Questionado novamente sobre o porquê de não regressar, Piérre prefere usar outro foco: o motivo de permanecer. “Me encontrei aqui. Nunca me senti incluído onde nasci. Pessoas sérias, infelizes. Aqui tenho tudo que preciso. Aqui sou muito feliz. Completo.” Tendo uma fala perfeita, apesar do sotaque, Piérre aos poucos começa a se soltar, e relembra histórias de quando encontrou a casa, sem aspas. “Estava abandonada já quando che-
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guei. Assim que entrei e vi todo aquele entulho, percebi que tinha que fazer algo. E fiz. Arrumei tudo e me instalei. Nunca apareceu ninguém para reclamar. ” Nesse momento da conversa, os gatos estão brincando com um coco que está caído perto da entrada da casa. O anfitrião se irrita e chuta o coco para longe. Metade dos gatos corre atrás. Mais espaço no murinho. SOLIDÃO? Piérre tem muitos amigos. Assim como ele, muitos outros sobreviventes residem dentro da mata, fazendo uso de edificações abandonadas e levando sua existência à margem de qualquer tipo de conceito moderno de civilização. Um deles, “Gel”, é um brasileiro de 64 anos, nascido em Porto Alegre, que logo chega para falar do amigo beberrão francês. “Ele bebe mais do que qualquer um aqui. E não fica bêbado, é impressionante! Ele, assim como eu, fugiu da Babilônia e veio para cá”. Depois de entende que Babilônia é, simplesmente, a cidade grande, a correria, a poeira. Os rostos sisudos. E, depois de algum tempo de conversa e de um cheiro muito forte de cachaça, nota-se que parece que Piérre está tomando água. Sóbrio, ideias concatenadas e construção de diálogo perfeitas. Além da França, a cachaça também parecia ter perdido o senhor Delond. A quantidade acenos feitos com a mão é recorrente durante toda a conversa. Piérre parece ser querido por outros vagabundos – na acepção da palavra – que permeiam o local. Quando continuamos a conversa sobre a família de Delond, ele diz ter uma esposa – no presente – e nenhum filho. Neste momento, sem que fosse feita nenhuma pergunta, lembrou do dia em que foi “descoberto” por seu tio. Foi coagido a tentar retornar para sua cidade natal na Europa, oferta a qual declinou prontamente. “Meu tio um dia chegou aqui na frente da casa, sem mais nem menos. Disse que tinha vindo me levar de volta para casa, que todos estavam me esperando e com saudades. Disse que não voltaria. Ele insistiu por várias horas e disse que iria entrar em contato com autoridades brasileiras, e foi embora. Mas nada nunca aconteceu. Acho que ele percebeu o quanto eu estava feliz aqui e desistiu”, explicou. Neste momento, começa a chover forte e, como em um roteiro de um filme, um carro repleto de pessoas atola em uma das fendas laterais. A conversa para, seguida por um gole de cachaça, seguido de 20 minutos de empurrões no carro e instruções de ré e primeira marcha. Retornando, Piérre diz que esse tipo de coisa que lhe traz felicidade: “só com esse ato ajudei mais pessoas que em toda minha vida na França”. No final da tarde, Gel retorna de sua pescaria e diz que o francês precisa me mostrar as
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fotos do final do álbum. Pela primeira vez, Piérre sorri. Puxa o álbum para o final, quando mostra fotos suas em Paris e, logo ao lado, bem mais jovem, em Calhetas. A opacidade dos olhos se esvai, ao mesmo tempo em que os gatos retornam. “Se as pessoas se sentem felizes no meio de trânsito, inveja, cobiça e ganância, tudo bem. Eu só preciso de uma cama, meus gatos e todo esse verde. Deixo o cinza para os outros. Mesmo falando apenas do verde, existem outras cores fortes. O azul dos olhos, o branco dos cabelos, o vermelho da pele, além do arco-íris dos gatos. Me despeço, ouvindo logo depois. “Minha casa é sua, volte quando quiser”. Piérre entra na sua casa, seguido pelos quinze gatos. E por toda sua história, que, mesmo no avançar da vida, é construída a cada minuto. De Marselha à Calhetas.
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Fim. Edição: Paula Passos e Ana Maria Miranda Diagramação: Michael Matos