Brasileiros tem opiniões divergentes sobre a legalização do aborto

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Brasileiros têm opiniões divergentes sobre a legalização do aborto, mas a maioria discorda que as mulheres sejam presas por abortarem Aníbal Faúndesa, Graciana Alves Duarteb, Maria Helena de Sousac, Rodrigo Paupério Soares Camargod, Rodolfo Carvalho Pacagnellad a Pesquisador sênior, Cemicamp (Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas) e Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina, UNICAMP, São Paulo, Brasil. Contato: afaundes@uol.com.br b Pesquisadora, Cemicamp (Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas), São Paulo, Brasil c Estatística, Cemicamp, São Paulo, Brasil d Professor, Universidade de Medicina de Jundiaí, São Paulo, Brasil e Professor, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina, UNICAMP, São Paulo, Brasil

Resumo: Práticas inseguras ainda são um grande problema de saúde pública em países com leis restritivas sobre o aborto. No Brasil, parlamentares - que possuem o poder de mudar as leis - são influenciados pela “opinião pública”, frequentemente obtida através de questionários e pesquisas de opinião. Esse artigo apresenta os resultados de dois estudos. O primeiro foi conduzido de fevereiro a dezembro de 2010, junto a 1,660 funcionários públicos, e o segundo, de fevereiro a julho de 2011, com 874 estudantes de medicina de três universidades diferentes. Ambos os estudos foram realizados no estado de São Paulo, Brasil. Os dois grupos de participantes responderam o seguinte conjunto de perguntas sobre sua opinião sobre o aborto: 1) em quais circunstâncias o aborto deve ser permitido por lei, e 2) se as mulheres em geral e as mulheres que, de acordo com seu conhecimento, já haviam realizado um aborto, deveriam ser aprisionadas, de acordo com a lei brasileira vigente. As diferenças nas respostas obtidas foram enormes: a maioria dos participantes posicionou-se contra a prisão de mulheres que já abortaram. Quase 60% dos servidores públicos e 25% dos estudantes de medicina declararam conhecer pelo menos uma mulher que abortou ilegalmente; 85% dos estudantes de medicina e 83% dos servidores públicos declaram acreditar que essa pessoa não deveria ser presa. É imprescindível que os parlamentares brasileiros que estudam atualmente a reforma do Código Penal tenham acesso urgente a esses resultados. Palavras-chave: leis e políticas sobre o aborto, prisão, criminalização, pesquisas de opinião pública, opinião pública, Brasil De acordo com estimativas globais recentes, enquanto o número total de abortos induzidos caiu entre 2003 e 2008, o número de abortos inseguros aumentou de forma proporcional1. Práticas inseguras de aborto continuarão sendo um fardo para a saúde e o bem-estar das mulheres nos países onde as leis restritivas criminalizam o aborto2. Felizmente, a mortalidade materna causada pelo aborto inseguro demonstra sinais de queda, provavelmente em decorrência do uso clandestino de métodos menos arriscados para interromper a gravidez3. Em muitas partes do mundo, as leis atuais sobre o aborto foram concebidas durante o período colonial e são herança das leis europeias do século 19 – esse é o caso da maior parte da África. Na América Latina, elas foram usadas como modelo para os Códigos Penais na primeira metade do século 20 (como no Brasil, por exemplo)4. O tratamento destinado ao aborto nesses Códigos Penais

continua praticamente intacto (com pequenas exceções), principalmente sob a pressão de grupos religiosos que tradicionalmente opõem-se ao aborto, especialmente a Igreja Católica e outras religiões cristãs. Um dos pressupostos dessas leis é de que a criminalização do aborto previne a sua ocorrência, o que não aconteceria em um cenário com leis liberais e com fácil acesso a praticas seguras de aborto5. Entretanto, a experiência demonstra que essa não é uma visão realista; de fato, nos países onde o aborto é legalmente restrito, as mulheres abortam com mais frequência do que aquelas vivendo sob leis mais liberais6. Sendo assim, ao que tudo indica as taxas de aborto estão relacionadas ao acesso e uso de métodos contraceptivos efetivos e não à restrição legislativa. Entretanto, a não disseminação dessa informação critica e a forte e contínua oposição de lideres religiosos contribuem significativamente para a manutenção de

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42726-X

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leis restritivas sobre o aborto em muitos países em desenvolvimento. No Brasil, o Código Penal nasceu em 1940 e estabelece o aborto como crime, exceto em três situações: se a vida da mulher estiver em risco, se a gravidez foi resultado de um estupro e, mais recentemente (desde um julgamento de 2012), nos caso de anencefalia fetal7. Abortar em qualquer outra situação não prevista pela lei leva à pena de reclusão de 1 a 10 anos para a mulher e para a pessoa que realizou o aborto4-8. A pena dobra caso o aborto resulte na morte da mulher9-10 Ao longo dos anos, muitos projetos de leis acumularam-se no Congresso Brasileiro tanto para aumentar as restrições quanto para legalizar o aborto. Atualmente, o Código Penal está sendo revisado pelo Congresso, resultando em um debate acalorado entre os representantes das igrejas católicas e protestantes e aqueles que defendem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres11. Congressistas, que detém o poder de mudar a lei, são fortemente influenciados pela “opinião pública”, como se viu durante as eleições presidenciais de 2010. Os jornais mais importantes do país cobriram amplamente a questão do aborto, com direito à publicação de quase quatro artigos por dia sobre o tema12. O debate, no entanto, limitou-se ao contexto moral, religioso e partidário. Colunas descreveram a cautela dos candidatos para evitar serem vistos como favoráveis à legislação mais liberal, por receio de perder votos durante a eleição. Mesmo fora dos períodos eletivos, a questão do aborto é abordada pela mídia como uma questão moral/religiosa ou como parte de notícias policiais, particularmente quando se trata da prisão de profissionais da saúde acusados de praticar abortos ou de mulheres que supostamente fizeram um aborto ilegal. Aparentemente, o medo disseminado entre políticos de serem vistos como favoráveis a leis mais liberais contradiz os dados obtidos em pesquisas com médicos, juízes e promotores, nas quais a maioria se posiciona favoravelmente à ampliação das circunstâncias que permitem o aborto no Brasil13-14. Por outro lado, os resultados das pesquisas de opinião pública sobre o aborto no Brasil, como aquelas publicadas por diferentes institutos de pesquisa, são de difícil comparação, devido à forma como as perguntas são formuladas. A maioria delas não faz referência alguma à opinião sobre a prisão das mulheres. O Senado Brasileiro, por exemplo, realizou uma pesquisa sobre a lei do 138

aborto, onde a pergunta principal era “Você acredita que a lei deveria permitir a interrupção da gravidez quando a mulher não deseja ter o bebê?”. A grande maioria dos perguntados (82%) respondeu “Não”. Porém, quando perguntados sobre circunstâncias concretas, nas quais a saúde da mulher estava comprometida, a maioria posicionou-se a favor da permissão do aborto11. No momento atual, com a revisão do Código Penal, é crucial que os parlamentares tenham acesso ao maior volume possível de informações confiáveis. Considerando que as respostas coletadas em pesquisas são em grande parte influenciadas pela formulação das perguntas, o objetivo desse estudo é comparar respostas a perguntas gerais sobre as circunstâncias sob as quais os participantes acreditam que o aborto deve ser permitido, com as respostas dos mesmos participantes sobre a prisão de uma mulher que fez um aborto ilegal, como previsto pela lei.

Participantes e Métodos Conduzimos duas pesquisas transversais e descritivas, uma com funcionários públicos de uma instituição em São Paulo e a outra com estudantes de medicina de três universidades diferentes, também no estado de São Paulo. Dois questionários diferentes foram aplicados aos funcionários públicos e aos estudantes de medicina (Box 1), compostos por questões com categorias pré definidas de autopreenchimento. Os questionários continham informações sobre idade, sexo, estado civil, religião e a importância da religião em suas vidas, entre outras questões. A respeito da lei brasileira sobre o aborto, os participantes tiveram que responder perguntas relacionadas à sua posição favorável ao aborto em uma lista de circunstancias especificas. Foram perguntados, então, se concordavam ou não com a punição de mulheres que fizeram um aborto. A pesquisa com os funcionários públicos foi conduzida entre fevereiro e dezembro de 2010. O questionário e uma carta anexa, bem como um envelope com o selo pago, foram enviados para 15,800 servidores, juntamente com o contracheque do mês de janeiro. A taxa de resposta foi de 11%, 72 envelopes foram enviados em branco e um participante enviou dois questionários no mesmo envelope; apenas um foi considerado. Portanto, o número de questionários incluídos no estudo foi 1,660. De fevereiro a julho de 2011, todos os estudantes do primeiro ao sexto ano das três universidades


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de medicina foram (tabela) convidados a participar em um estudo. O convite foi8 feito por pesquisadores de campo experientes, que foram responsáveis por recrutar os participantes, explicar os objetivos do estudo e coletar os questionários pre-

enchidos em uma urna lacrada. Se todos os questionários tivessem sido preenchidos, o total de estudantes que teriam participado seria de 1,260. Na prática, 874 completaram o questionário (taxa de resposta: 69%).

Box 1: Questões respondidas pelos participantes: estudantes de medicina e servidores públicos Questões abstratas sobre permissivos legais ao aborto Estudantes de medicina Você acha que o aborto deve ser permitido se: (para cada situação, por favor, marque (1) concordo fortemente (2) concordo (3) discordo (4) discordo fortemente (5) não tenho opinião) Circunstâncias: 1. Má formação fetal incompatível com a vida fora do útero 2. Mulher HIV-positiva 3. Falha de contracepção 4. Mulher solteira e o parceiro rejeita a gravidez 5. Gravidez resultante de estupro 6. Mulher sem condições financeiras para criar o bebê 7. A gravidez pode afetar seriamente a saúde física da mulher. Ou: risco à saúde física da mulher

Servidores públicos Você acha que o aborto deve ser permitido se: (para cada situação, por favor, marque (1) sim, se você concorda (2) não, se você discorda)

8. A gravidez pode afetar seriamente a saúde mental da mulher. Ou: risco à saúde mental da mulher 9. Risco de morte para a mulher 10. Anencefalia fetal 11. Em qualquer circunstância 12. Nunca 13. Outra

Questões sobre a pena de prisão para mulheres (conhecidas e desconhecidas) que realizaram aborto Estudantes de medicina

Servidores públicos

No geral, você acha que uma mulher que fez um aborto ilegal (se a gravidez não resultou de estupro nem coloca em risco a vida da mulher) deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Depende dos motivos que ele teve para abortar 4. Outro 5. Não tenho opinião

No geral, você acha que qualquer mulher que fez um aborto deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Depende dos motivos que ele teve para abortar 4. Outro 5. Não tenho opinião

Você conhece alguma mulher que fez um aborto ilegal? 1. Sim 2. Não

Você conhece alguma mulher que fez um aborto ilegal? 1. Sim 2. Não

Você acha que essa mulher deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Outro 4. Não tenho opinião

Você acha que essa mulher deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Outro 4. Não tenho opinião

As respostas aos dois conjuntos de questionários foram revisadas, numeradas e digitadas em dupla entrada. As variáveis dependentes analisadas nesse estudo foram: a opinião dos participantes sobre em quais circunstâncias o aborto deveria ser permitido e a opinião dos participantes sobre a punição de uma mulher que fez um aborto e de uma mulher conhecida por eles que fez um aborto. Três variáveis dependentes foram coletadas: (1) se aborto deveria ser permitido em todas as cir-

cunstâncias; (2) se uma mulher que realizou um aborto deveria ou não ser presa, e (3) se a mulher conhecida pelos participantes deveria ou não ser presa. As variáveis preditoras investigadas em todos os modelos foram as seguintes: idade (em anos), sexo (feminino|masculino), estado civil (casado|união estável) e importância da religião na vida do participante (muito importante|menos importante|sem importância|não religioso). Os servidores públicos também foram perguntados 139


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sobre o nível de escolaridade (nível superior, ensino médio ou menos). Todas as variáveis preditoras foram incialmente incluídas em todos os modelos e critérios de exclusão foram usados para selecionar apenas as mais significantes. Variáveis não significantes foram então excluídas e um novo modelo foi calculado sem as mesmas. Realizou-se análise de regressão múltipla para estabelecer a relação entre as variáveis dependentes e preditoras, controlando os outros preditores simultaneamente. As taxas de prevalência são apresentadas para os preditores estatisticamente significantes. Os estudos foram conduzidos de acordo com as normas brasileiras para pesquisas com seres humanos. Os protocolos foram avaliados e aprovados pela Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina na Universidade de Campinas, SP, Brasil. A pesquisa realizada com os alunos de medicina também foi avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da OMS.

Resultados Foram constatadas diversas diferenças entre os dois grupos. A idade média dos estudantes de medicina foi bem mais baixa, com 82,1% abaixo de 24 anos, enquanto 80,4% dos servidores públicos tinham mais de 35 anos. A maioria das mulheres que participaram da pesquisa são servidoras públicas (73,1%); entre os estudantes de medicina foram 59,9%. As diferenças na escolaridade foram menores do que o esperado; todos os estudantes de medicina tinha alguma formação universitária, assim como aproximadamente 79% dos servidores públicos. Menos de 4% dos estudantes de medicina declararam ser casados, em comparação com 62% dos servidores públicos; 11% dos servidores públicos declararam não ter uma religião, em comparação com aproximadamente 30% dos estudantes de medicina. Da mesma forma, um pouco mais da metade dos servidores públicos declarou que a religião é muito importante em suas vidas, enquanto 25% dos estudantes responderam da mesma maneira (Tabela 1). A proporção de estudantes de medicina que afirmou que o aborto deveria ser legalizado foi maior do que a proporção dos servidores públicos que responderam da mesma maneira. A diferença entre os dois grupos foi de aproximadamente 10% nas respostas sobre as atuais circunstancias legais: aproximadamente 85% dos estudantes de medicina e quase 75% dos servidores públicos considerou que essas circunstâncias devem permanecer legais. Essa 140

Tabela 1. Características sociodemográficas dos participantes Estudantes de medicinaa n=874 (%)

Servidores públicosb n=1,660 (%)

Idade <24 25–34 >35

711 (82.1) 148 (17.1) 7 (0.8)

51 (3.1) 270 (16.5) 1,315 (80.4)

Sexo masculino feminino

516 (59.0) 358 (41.0)

1204 (73.1) 444 (26.9)

Escolaridade nenhuma/fundamental média superior

874 (100)

106 (6.4) 389 (23.7) 1,149 (69.9)

Situação conjugal Casado/unido solteiro

32 (3.7) 833 (96.3)

1,030 (62.4) 620 (37.6)

Religião alguma nenhuma

615 (71.8) 242 (28.2)

1418 (89.0) 175 (11.0)

Importância da religião muito importante importante não é importante não tem religião

216 (25.3) 386 (45.1) 11 (1.3) 242 (28.3)

767 (50.2) 313 (20.5) 274 (17.9) 175 (11.4)

a. Informações ausentes (missing) para idade (8), situação conjugal (9), religião (17), importância da religião (13). Seis participantes escreveram ‘outra’ na questão sobre a importância da religião b. Informações ausentes (missing) para idade (24), sex (12), escolaridade (16), situação conjugal (10), religião (67), importância da religião (102). 29 participantes escreveram ‘outra’ na questão sobre a importância da religião.

diferença foi maior do que 20% para as circunstancias atualmente não incluídas pela lei, como a existência de risco para a saúde física e mental da mãe. Aproximadamente 80% dos estudantes de medicina e 57% dos servidores públicos concordaram que o aborto deveria ser permitido se a gravidez representasse um grave risco para a saúde física da mulher. Caso a saúde mental da mulher estivesse em risco, mais da metade dos estudantes de medicina declararam concordar com o aborto, enquanto apenas um quarto dos servidores púbicos responderam da mesma maneira. Nos dois grupos, menos de 50% dos participantes concordaram que o aborto deveria ser legalizado em outras circunstâncias sociais e econômicas. Uma pequena porcentagem dos participantes declarou que o aborto deveria ser


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Tabela 2. Circunstâncias nas quais o aborto deve ser permitido (%) Circunstâncias

Má formação fetal severa

Tabela 3. Opinião sobre a prisão de mulheres que fazem aborto (%)

Estudantes de medicinaa n=874 (%)

Servidores públicosb n=1,660 (%)

Nº de respostas %

Nº de respostas %

863

1,487

90.6

75.2

Anencefalia

862

88.9

1,542

80.1

Estupro

863

85.5

1,496

78.3

Risco de morte para a mulher

864

85.6

1,441

75.9

Risco à saúde física da mulher

860

78.4

1,325

56.9

Risco à saúde mental da mulher

864

51.0

1,123

27.5

Problemas financeiros

865

27.9

1,157

14.0

Falha de contracepção

866

24.5

1,161

13.1

Mulher solteira sem apoio do parceiro

860

18.6

1,168

12.4

Mulher HIV-positiva

864

19.7

1,204

18.6

Qualquer circunstância

854

15.7

1,621

5.4

Nunca

852

11.4

1,618

11.7

legalizado em todas as circunstâncias, mas foi três vezes maior entre os estudantes de medicina (16%) do que entre os servidores públicos (5%). A proporção dos que declararam que o aborto deveria ser proibido em qualquer circunstância foi de 11% em ambos os grupos (Tabela 2). A diferença entre os dois grupos foi bem menor quanto à questão da prisão por aborto (tal como estipulado pela lei). Menos de 10% dos participantes de ambos os grupos declararam que “sim”, enquanto 56% dos estudantes de medicina e 59% dos servidores públicos responderam “não”. Outros 26,5% dos estudantes de medicina e 29,7% dos servidores públicos responderam que dependeria das circunstâncias, enquanto 7% e menos de 5%, respectivamente, responderam que não tinham uma opinião definida. Aproximadamente 60% dos servidores públicos e 25% dos estudantes de medicina declararam conhecer pelo menos uma mulher que realizou um aborto. A porcentagem daqueles que julgaram que esta pessoa deveria ser presa foi de 10%, mas o número daqueles que declararam que ela não deveria ser presa saltou para 85% entre os estudantes de medicina e 83%

Estudantes de medicinaa n=874

Servidores públicosb n=1,660

A mulher que faz um aborto deve ser presa Sim Não Depende do motivo Sem opinião

9.9 56.4 26.5 7.2

Conhece mulher que já fez aborto Sim Não

25.3 74.7

64.1 35.9

(n=212)

(n=968) 10.5 82.9 6.6

Essa mulher que você conhece deve ser presa Sim Não

8.0 84.9 7.1

6.8 58.8 29.7 4.6

a. Informação ausente: punição à mulher que aborta (6), mulher conhecida que aborta (5), outras respostas para a punição (11) b. Informação ausente: punição à mulher que aborta (27), mulher conhecida que aborta (9), outras respostas para a punição (25), se recusa a julgar (3)

entre os servidores públicos (Tabela 3). Entre os estudantes, o fato de não ter religião ou não considerar religião importante está associado à posição favorável ao aborto em qualquer circunstância e contra a prisão de mulheres que já passaram por um aborto (p<.001). Viver em uma união estável também se mostrou associado a ser favorável ao aborto em qualquer circunstância (p=.013), assim como ser mais velhos associa-se à opinião de que uma mulher que já fez um aborto não deveria ir para a prisão (p=.011). Nos casos em que os participantes declaram conhecer pessoalmente alguém que já havia realizado um aborto ilegalmente, não houve associação entre as variáveis preditoras e a opinião de que essa mulher deveria ir para prisão (dados não descritos na tabela). A importância da religião e da escolaridade associam-se à crença de que o aborto deve ser permitido em qualquer circunstância assim como com a opinião de que nenhuma mulher, conhecida ou não, deveria ir para prisão por ter feito um aborto (p<.001). Servidores públicos que declararam não considerar a religião importante ou que declararam não possuir uma religião definida e com algum 141


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nível de escolaridade superior mostraram-se mais favoráveis ao aborto ser permitido em qualquer circunstância e declararam acreditar que a mulher não deveria ser presa (p<.001) e também que a mulher que declararam conhecer não deveria ser presa (p=.032). Participantes mais velhos foram associados à oposição à prisão de qualquer mulher (p=.032) ou de mulheres que conheciam pessoalmente e que realizaram um aborto (p=.049) e ser do sexo feminino também se associa com opor-se à prisão de mulheres que já fizeram um aborto (p=.045) (dados não presentes na tabela).

Debate Os dois grupos considerados nesse estudo mostraram-se diferentes em muitos aspectos. Os servidores públicos são muito mais velhos que os estudantes e uma grande parcela deles declarou estar vivendo em uma união estável. Mais importante, uma proporção muito maior dos servidores declarou ter uma religião definida, de grande importância em suas vidas. Isso explica grande parte das diferenças quanto à aceitação da legalidade do aborto nas diferentes circunstancia apresentadas, particularmente quanto à permissão do aborto em qualquer circunstancia. Esses resultados alinham-se com resultados de vários estudos publicados nos últimos 20 anos11,13,16-22. Similarmente, a maior adesão a uma religião foi o fator mais importante associado à opinião mais restritiva em relação à lei sobre o aborto, como descrito em uma publicação recente13. Também encontramos uma importante associação escolaridade superior e opinião favorável a uma lei mais liberal sobre o aborto, o que também é consistente com resultados de outros estudos11,16,19. Nosso estudo diferencia-se dos anteriores, entretanto, por afastar-se da questão teórica sobre o que a lei deveria permitir e perguntar diretamente sobre as consequências práticas da aplicação da lei, isto é, sobre a possibilidade de mandar uma mulher para a prisão por ter realizado um aborto. Essa abordagem à opinião pública nos permitiu observar que a proporção dos participantes que discordam da implementação de mandatos punitivos na lei atual é muito maior que a proporção daqueles a favor da liberação do aborto em qualquer circunstância. Mesmo que ainda exista uma diferença entre os dois grupos quando se trata de qualquer mulher que tenha realizado um aborto, a proporção daqueles favoráveis a não punição (com prisão) de uma mulher conhecida que havia feito um aborto foi praticamente idêntica em ambos os grupos. 142

Qual dessas duas questões - uma sobre como a lei deveria ser formulada e a outra se mulheres devem ser punidas com prisão – revela um cenário mais realista quanto à posição das pessoas sobre o aborto no Brasil ? No contexto brasileiro, onde a palavra aborto possui uma conotação cultural negativa, sendo evitada pela maioria das pessoas, e onde o debate público é limitado aos pontos de vistas morais e religiosos, a situação e os direitos das mulheres raramente são levados em consideração12. Sendo assim, é esperado que a maioria das pessoas responda a questões relacionadas à lei sobre o aborto sem considerar as consequências da mesma para as mulheres, especialmente quando são desconhecidas. Ao perguntar diretamente sobre a punição, o entrevistado não pode mais ignorar as consequências previstas pela lei atual e é obrigado a considerar a situação e os direitos da mulher. Além disso, quando convidados a refletir sobre uma mulher conhecida, a situação e os direitos tornam-se ainda mais evidentes, o que acaba refletindo em suas respostas - isto é, eles declaram-se massivamente contra a prisão. Já em um estudo anterior, identificamos que quanto mais próxima à pessoa está à situação do aborto, mais provável é que essa pessoa veja o aborto como uma solução aceitável23. A nossa amostra não é representativa de todos os brasileiros, mas as similaridades na proporção de pessoas nos dois grupos que declararam ser contra a punição de mulheres com a prisão sugere que os resultados não se diferenciam dos resultados de outras amostras da população brasileira. Nossa hipótese é de que nossos resultados refletem a opinião atual no Brasil, o que é reforçado pelos resultados de outro estudo, conduzido pela Comissão de Cidadania e Reprodução, com alunos de medicina de seis universidade públicas no Brasil. Requisitados a expressar sua opinião sobre a lei, 47% dos participantes declararam serem favoráveis à lei vigente, mas 79% também declararam que uma mulher que fez um aborto não deveria ser presa e, entre os estudantes que declararam não ter uma religião especifica, a proporção foi de 84%. Logo, a maioria dos participantes nessa pesquisa - assim como nas nossas duas amostras - mostraram-se claramente contrários à manutenção da lei que pune com a prisão as mulheres que realizam um aborto ilegal. Para testar essa hipótese, é necessário realizar estudos similares com pessoas com níveis mais baixos de escolaridade em São Paulo e outras regiões do Brasil, um desafio que a


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nossa e outras pesquisas devem considerar encarar em breve. As opiniões sobre as mulheres que já fizeram um aborto refletem-se no baixo número de queixas à policia, processos e punição de mulheres no Brasil, que representam apenas 100 processos para cada milhão de abortos estimados anualmente25. Em 200727, o caso notório de denúncia contra uma clinica de aborto no estado do Mato Grosso do Sul foi concluído sem que nenhuma mulher fosse presa. Não se perguntou aos participantes se seriam favoráveis a outro tipo de punição, e qual seria, mas apenas se eram favoráveis à lei atual e às punições por ela previstas. Mas a opinião sobre esse tema específico e sobre o acesso a métodos seguros de aborto devem ser objetivo de pesquisas futuras. Finalmente, consideramos nossa responsabilidade disseminar o conhecimento de que quando convidadas a refletir sobre mulheres que já fizeram abortos, a maioria das pessoas mostraram-se contra a atual punição de um a dez anos de re-

clusão. Essa informação tem importantes implicações politicas. A crença atual entre os políticos é de que a defesa da mudança legislativa é pouco conveniente e, por isso, preferem a manutenção da situação atual. Mas é preciso mostrar que, ao considerar a situação das mulheres, a opinião da população é completamente diferente e isso é um importante argumento a favor da reforma do Código Penal, que viria a ampliar as situações nas quais o aborto é legal em nosso país. Esse é o nosso objetivo com a publicação dessas informações.

Agradecimentos O apoio financeiro para a pesquisa realizada junto aos estudantes de medicina foi oferecido pelo Programa Especial de Treinamento, Desenvolvimento e Pesquisa em Reprodução Humana e pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP 11/50203-0). O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital MCT/CNPq/ MS-SCTIE-DECIT/CT – Saúde nº 022/2007) apoio a pesquisa com os servidores públicos.

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Résumé L’avortement à risque demeure un problème de santé publique majeur dans les pays avec des législations très restrictives. Au Brésil, les parlementaires, qui ont le pouvoir de changer la loi, sont influencés par « l’opinion publique », souvent obtenue avec des enquêtes et des sondages. Cet article présente les conclusions de deux enquêtes réalisées dans l’État de São Paulo, Brésil. L’une a été menée en fevrier-decembre 010 auprès de 1660 fonctionnaires, l’autre en fevrierjuillet 2011 auprès de 874 étudiants en médecine de trois écoles de médecine. On a posé deux ensembles de questions aux deux groupes de répondants pour obtenir leur avis sur l’avortement : 1) dans quelles circonstances l’avortement devrait-il être autorisé par la loi, et 2) les femmes en général et les femmes dont ils savaient qu’elles avaient avorté devraient-elles ou non être punies ’une peine de prison, comme la loi brésilienne le prévoit. Les différences dans leurs réponses étaient énormes : la majorité des répondants étaient contre l’emprisonnement des femmes ayant avorté. Près de 60% des fonctionnaires et 25% des étudiants en médecine connaissaient au moins une femme qui avait avorté illégalement ; 85% des étudiants en médecine et 83% des fonctionnaires pensaient que ces personnes ne devaient pas être incarcérées. Les parlementaires brésiliens qui examinent actuellement une réforme du code pénal doivent prendre connaissance de ces informations de toute urgence.

Resumen El aborto inseguro continúa siendo un grave problema de salud pública en países con leyes de aborto muy restrictivas. En Brasil, los parlamentarios – que tienen el poder de cambiar la ley − son influenciados por la “opinión pública”, a menudo obtenida por medio de encuestas y sondeos de opinión. En este artículo se presentan los hallazgos de dos estudios: uno realizado entre febrero y diciembre de 2010 con 1660 funcionarios públicos; el otro, entre febrero y julio de 2011 con 874 estudiantes de tres facultades de medicina, ambos en el estado de São Paulo. A ambos grupos de personas encuestadas se les hicieron dos preguntas para obtener su opinión respecto al aborto: 1) bajo qué circunstancias debería estar permitido por la ley el aborto y 2) si se debe o no castigar a las mujeres en general y a las mujeres que sabían que habían tenido un aborto con pena de prisión, según estipula la ley brasileña. Hubo enormes diferencias en sus repuestas: la mayoría de las personas encuestadas estaban en contra de encarcelar a mujeres que han tenido abortos. Casi el 60% de los funcionarios públicos y el 25% de los estudiantes de medicina conocían por lo menos a una mujer que había tenido un aborto ilegal; el 85% de los estudiantes y el 83% de los funcionarios públicos creían que esa(s) persona(s) no debebería(n) ser encarcelada(s). Esta información debe difundirse con urgencia a los parlamentarios brasileños que están revisando la reforma del Código Penal.

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JEREMY HORNER / PANOS PICTURES

A Faúndes et al. / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 137-145

Estátua da "Justiça" na área externa do Ministério da Justiça, Brasil

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