Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso

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Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso: desafios e oportunidades Bela Ganatra,a Philip Gues,b Marge Bererc a Cientista, PNUD/UNFPA/UNICEF/OMS, Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Capacitação em Reprodução Humana do Banco Mundial, Genebra, Suiça. Contato: ganatrab@who.int b Consultor Independente, Bangkok, Tailândia c Editora, Reproductive Health Matters, Londres, Reino Unido

O aborto medicamentoso com mifepristona e misoprostol (ou apenas com o misopostrol, em lugares onde o mifepristona ainda não foi aprovado ou não está disponível) é um método seguro e eficaz de interrupção da gestação tanto na fase inicial quanto nas mais avançadas. O misoprostol também pode ser usados para o manejo de abortos incompletos e abortos espontâneos. Quando utilizado na fase inicial da gravidez, o aborto medicamentoso pode ser feito em unidades básicas de saúde e por profissionais não médicos.1 A experiência de mais de três décadas com esses medicamentos também demonstra que, nas primeiras semanas de gestação, parte do processo pode ser feita de maneira segura fora de unidades de saúde, iniciando-se a administração do mifepristone nos serviços e administrando-se o misoprostol e a segunda dose do mifepristone em casa, pelas próprias mulheres. Atualmente, há tentativas para auxiliar as mulheres a checar em casa se o processo de expulsão se completou, como demonstram algumas fontes utilizadas nesse artigo. O acúmulo de evidências está transformando a compreensão e interpretação da definição de aborto inseguro da Organização Mundial de Saúde (OMS), para levar em consideração o fato de que “as pessoas, as habilidades e os padrões assistenciais considerados seguros na oferta do aborto diferem de acordo com o procedimento medicamentoso ou cirúrgico”.2 Mas segue sendo um desafio a transformação de evidências globais em realidades locais. Muitos dos artigos do Suplemento Especial da RHM* examinam essas barreiras ao estudar o conhecimento e as perspectivas de profissionais de saúde e das mulheres – tanto nos contextos em que o aborto legal é restrito a apenas algumas indicações (como na Argentina e no Zimbabué) como naqueles em

que o aborto é permitido em um conjunto maior de situações (como no Camboja, Índia, Nepal e Turquia). O ponto comum entre esses diferentes contextos é a falta de conhecimento preciso sobre o problema. No conjunto, os resultados de pesquisa indicam que ainda é pouco difundido o conhecimento cientificamente preciso sobre o aborto medicamentoso, as dosagens e associações adequadas e o manejo do processo – mesmo em contextos onde o aborto medicamentoso é legal e entre profissionais que já oferecem o procedimento. Os currículos dos cursos de medicina, incluindo as áreas de ginecologia e obstetricía, nem sempre incluem o aborto medicamentoso como parte da formação. De forma geral, continuam limitadas as fontes confiáveis de informação para profissionais, especialmente para aqueles que não trabalham em grande hospitais urbanos, e, assim, o conhecimento – mesmo diretrizes nacionais baseadas em evidências – não é repassado e não influencia as práticas dos profissionais que estão na base do sistema de saúde. Persiste, portanto, o uso de métodos obsoletos, como a curetagem na Colômbia (Rodriguez et al) e no Zimbabué (Maternowska et al). De maneira similar, independentemente do contexto jurídico, as mulheres não tem informação adequada sobre a legislação nacional nem sobre onde e como ter acesso a serviços legais e seguros ou mesmo onde obter acesso à assistência segura pós-aborto se sofrerem complicações de um aborto

146 www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf Contents online: www.rhm-elsevier.com

Doi: artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)43793-5 Doi:(do 10.1016/S0968-8080(14)43793-5

*Todos os artigos citados neste texto estão disponíveis em inglês no link do suplemento: RHM 44. Suplement Expanding Access to Medical Abortion. February 2015. Volume 22, Issue 44, Supplement 1, p1-143. Disponível em http://www.rhm-elsevier.com/issue/S09688080(15)X0002-4.

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inseguro. Fontes de informação precisas são ainda mais limitadas para mulheres que vivem em áreas rurais e que tem menores níveis de escolaridade. Farmácias, trabalhadores informais na comunidade, internet e serviços de apoio ao consumidor, são muitas vezes as únicas fontes de informação em lugares onde as leis são restritivas e, como Ramos et al identificou na Argentina, essas fontes nem sempre são precisas ou adequadas ao aconõselhamento e apoio que as mulheres necessitam. A resistência ou relutância dos profissionais (e futuros profissionais) para oferecer assistência também é um desafio que persiste. No estudo de Mihciokur`s, por exemplo, apenas 15% dos estudantes de medicina afirmaram que fariam um aborto medicamentoso depois de formados. Por outro lado, também é forte a a resistência dos médicos para incluir outros tipos de profissionais de saúde nessa área, como se vê no estudo de Acharya e Kalyanwalla, realizado na Índia. Em parte, essa resistência relaciona-se ao corporativismo, mas os equívocos e o conhecimento impreciso sobre a segurança do aborto medicamentoso também cumprem um papel importante aqui. Mas nem todas as atitudes são negativas: há profissionais bem informados e preocupados em oferecer informação precisa, como Petitet et al verificaram no Camboja. E como demonstram outros artigos desse suplemento, apesar dos desafios, é possível explorar abordagens inovadoras para facilitar o acesso à informação, descentralizar a assistência e facilitar o acesso ao aborto medicamentoso para as mulheres. Em situações em que o aborto cirúrgico é o único método de aborto seguro, a introdução do aborto medicamentoso como opção aumenta o potencial para a expansão do acesso à assistência segura. Em seu estudo na Armênia, Louie et al demonstraram que isso é viável e aceitável. Rob et al exploraram de maneira semelhante a viabilidade da introdução do aborto medicamentoso como parte do programa de Regulação Menstrual (RM) de longo prazo em Bangladesh. Em parceria com o governo, os programas de regulação menstrual vem sendo desenvolvidos de forma bem sucedida em unidades básicas de saúde em áreas rurais e urbanas. A maior parte das mulheres conseguiu regular a menstruação sem intervenção cirúrgica e essa opção tem sido bem aceita tanto pelas mulheres quanto pelos profissionais de saúde. Sanhueza e colegas demonstraram que é possível se utilizar o aborto medicamentoso no 6

atendimento ambulatorial mesmo em gestações com mais de nove semanas. Esse estudo, realizado no âmbito do programa de aborto legal da Cidade do México, obteve sucesso no uso procedimento em gestações de até dez semanas (70 dias). Tanto no estudo de Bangladesh quanto no do México, a maioria das mulheres retornou às unidades de saúde para uma consulta de avaliação do processo de interrupção da gravidez, mas essas consultas não são mais consideradas obrigatórias. Diversos métodos vem sendo pesquisados para auxiliar as mulheres a avaliar a finalização do aborto e a identificar a necessidade de acompanhamento médico. Entre os métodos estão os testes de gravidez de farmácia e o uso de listas de controle para a triagem de sintomas de alerta. Constant e colegas deram um passo além, analisando essas possibilidades por meio do uso da telefonia móvel. No contexto da África do Sul urbana, onde é alto o uso de telefones celulares e as mulheres tem acesso privado aos mesmos, elas demonstraram que as formas móveis e interativas de consulta são possibilidades que merecem ser estudadas mais a fundo. E pode-se ampliar ainda mais o acesso se profissionais não médicos puderem realizar o aborto medicamentoso. No estudo de Bangladesh mencionado acima, a maioria dos profissionais dos serviços públicos eram não médicos. No Nepal, Puri et al demonstraram que parteiras podem realizar o aborto medicamentoso de maneira independente e bem sucedida, em contextos com baixa cobertura de serviços de saúde e onde não há médicos disponíveis. Outros profissionais da comunidade podem desempenhar funções de apoio, garantindo o acesso das mulheres a profissionais devidamente capacitados no tempo adequado ou facilitando o encaminhamento para os serviços, como foi demonstrado também por Puri et al em seu estudo no Nepal. Para muitas mulheres, as farmácias ainda são o primeiro ponto de contato em busca de um método de interrupção de gravidez em locais em que o acesso aos serviços é limitado. As informações recebidas nas farmácias, porém, nem sempre são precisas e, muitas vezes, os medicamentos recebidos são inadequados ou ineficazes. As intervenções direcionadas para ampliar o conhecimento ou alterar essas práticas apresentaram resultados variados, como relatado por Tamang et al no Nepal e Fetters et al na Zâmbia. É difícil transformar as práticas reais em uma única e curta capacitação e, devido à alta taxa de 147


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rotatividade e à heterogeneidade dos profissionais que trabalham nas fármacias, é preciso oferecer capacitação contínua para sustentar uma mudança positiva. Embora sejam as mulheres as principais beneficiárias, o aborto medicamentoso também beneficia os serviços de saúde, ao reduzir seus custos. Em estudo de caso da Colômbia, Rodriguez e colegas utilizaram a análise de árvore de decisões para demonstrar que o sistema de saúde pode reduzir os custos ao substituir a curetagem uterina pelo aborto medicamentoso. Sanhueza et al também demonstram que a extensão do aborto medicamentoso realizado em ambulatório para gestrações de até dez semanas também pode reduzir os custos para os serviços de saúde. Todas essas abordagens podem tornar os serviços de saúde mais próximos das mulheres, mas, como Subha Sri e Ravindran advertem, não se pode pensar que, por si só, o acesso a medicamentos corrigirá as desigualdades estruturais de gênero ou a falta de autonomia das mulheres para tomar decisões sobre gravidez e saúde reprodutiva. Essas são questões centrais, que precisam ser ativamente tratadas junto com os esforços para ampliar o acesso ao aborto seguro. A maioria dos estudos contidos nesse suplemento são parte de uma iniciativa de pesquisas sociais e aplicadas para expandir o acesso ao aborto medicamentoso, apoiada pelo Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Capacitação em Pesquisa (PEDCP) do PNUD/UNFPA/ UNICEF/OMS/Banco Mundial entre 2009 a 2014, por meio do financiamento de um doador anônimo. Os estudos foram selecionados a partir da análise de diversas propostas de pesquisa, todas com o objetivo de contribuir para superar as lacunas de conhecimento sobre os contextos locais e com o potencial de resultar em mudança nos programas e políticas públicas. Os resultados desses estudos foram publicados em várias outras publicações. Não se pode, porém, superestimar a necessidade de pesquisas aplicadas ou de implementação para acompanhar o ritmo cada vez mais acelerado da base de evidências clínicas sobre o aborto medicamentoso precoce. Pesquisas clínicas demonstraram a segurança e a eficácia do aborto medicamentoso até o terceiro trimestre em ambulatórios da rede básica de saúde, mesmo se realizado por profissionais não médicos, mas ainda há muito a ser compreendido sobre como garantir ambientes assistenciais que possibilitem o 148

compartilhamento de tarefas entre os profissionais no contexto dos programas de saúde. De maneira similar, requerem estudos mais profundos a determinação da eficácia ou da aceitação do apoio dos profissionais de comunidade na oferta de informação e de triagem para os serviços, quando necessário, no auxílio às mulheres durante e após o processo de abortamento e na orientação sobre a contracepção pós-aborto. Intervenções com profissionais das farmácias podem ser desafiadoras, mas é importante identificar estratégias eficazes para qualificar o conhecimento, ampliar a oferta de informações e a capacidade de referenciar para os serviços de saúde como prevenção do aborto inseguro. Uma vez que já se sabe que as consultas de avaliação nem sempre são necessárias, é preciso desenvolver ferramentas simples e acessíveis para que as próprias mulheres avaliem a finalização do processo de abortamento. Igualmente importante é encontrar maneiras viáveis para garantir contracepção pós-aborto eficaz para as mulheres que assim desejarem. Aconselhamento e informação são essenciais para o sucesso do aborto medicamentoso no primeiro trimestre. Sendo um processo que ocorre no corpo da mulher, e não um procedimento realizado por terceiros, a necessidade de informação é uma peça chave tanto para o profissional quanto para a mulher. A telemedicina, a medicina móvel e as mídias alternativas são meios importantes a serem explorados, assim como as abordagens inovadoras na formação de profissionais tanto nos curriculos acadêmicos quanto nas capacitações realizadas nos serviços de saúde. É necessário também desenvolver estratégias de retenção de profissionais capacitados, que desejam e estão aptos a oferecer assistência para mulheres rurais, marginalizadas, jovens e solteiras. Todos esses esforços – independentemente de seu grau de sucesso – devem ser rigorosamente documentados, pois a escassez de monitoramento e de dados de avaliação são barreiras que impedem a mudança e a transferência das lições aprendidas de um contexto para o outro. Achados de pesquisas são apenas o primeiro passo para mudanças em programas e políticas públicas. Atribuir o impacto dos resultados apenas a estudos é tarefa difícil, pois a maioria das mudanças resulta de múltiplos fatores. A disseminação dos resultados dos estudos deve ser seguida de estratégias e ações específicas para transformar conhecimento em implementação e 7


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ativismo para a mudança. A maioria dos pesquisadores que publicaram nesse suplemento segue trabalhando com os resultados de seus estudos para produzir mudanças em seus países. O trabalho relatado por Louie et al é um bom exemplo de como a pesquisa apoiou a inclusão do aborto medicamentoso no primeiro trimestre nos serviços de saúde reprodutiva na Armênia e levou à formação de um grupo de trabalho para desenvolver diretrizes nacionais para a oferta do procedimento. Concluindo, diante de uma gravidez indesejada ou não planejada, as mulheres irão procurar meios – seguros ou não – de interrompê-la. É válido o debate sobre o uso não regulamentado desses medicamentos, mas a ampliação de sua disponibilidade por meio da racionalização de procedimentos e serviços, atendendo às necessidades das mulheres é a maneira mais certa de aumentar a segurança e a proteção contra o uso desregulado. As evidências sobre a simplicidade, segurança e eficácia do aborto medicamentoso, faz dele o método mais adequado para expandir o acesso à assistência ao aborto e às complicações pós-aborto.

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Referências 1. World Health Organization. Safe Abortion: Technical and Policy Guidance for Health Systems. 2nd ed. Geneva WHO, 2012. 2. Ganatra B, Tuncalp O, Johnston HB, et al. From concept to measurement: operationalizing WHO’s definition of unsafe abortion. Bulletin of World Health Organization 2014;92(3):155. Doi: 10.2471/BLT.14.136333.

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