Questões de Saude Reproduitiva nº 8 2015

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ano 9 - número 8 - dezembro de 2015 UMA REVISTA INTERNACIONAL SOBRE SAÚDE E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

Novos Paradigmas para o Desenvolvimento Pós-2015: Igualdade de Gênero na Saúde e nos Direitos Sexuais e Reprodutivos



ano 9 - número 8 - dezembro de 2015

Novos Paradigmas para o Desenvolvimento Pós-2015: Igualdade de Gênero na Saúde e nos Direitos Sexuais e Reprodutivos


Questões de Saúde Reprodutiva Ano 9 - número 8 - dezembro 2015 ISSN 1809-9785 Edição em português: Grupo Curumim Gestação e Parto Coordenação Editorial: Ana Paula Portella e Simone Diniz Tradução: Bruno Portella e Camila Sarmanho Revisão e revisão técnica: Ana Paula Portella Administração: Grupo Curumim Gestação e Parto Secretária: Neide Batista Diagramação: Isabela Faria e Demóstenes Coelho Capa: foto de Andrew Aitchison (www.andrewaitchison.com) Website: www.grupocurumim.org.br/site/revista/qsr8.pdf Grupo Curumim Gestação e Parto Rua Profª. Maria da Paz brandão Alves, 63 Casa Forte - Recife - PE - Brasil tel.: 55 81 3427 2023 curumim@grupocurumim.com.br www.grupocurumim.org.br Website da Revista Questões de Saúde Reprodutiva (acesso aberto aos textos integrais) www.grupocurumim.org.br/site/revista ©Reproductive Health Matters 2013 ©Questões de Saúde Reprodutiva 2013 Todos os direitos reservados.

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Andrew Aitchison (www.andrewaitchison.com)


Sumário 6

Apresentação

Artigos 8

Marge Berer

Um novo paradigma de desenvolvimento pós-2015, com metas abrangentes para a igualdade de gênero e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos.

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Peter S Hill, Dale Huntington, Rebecca Dodd, Michael Buttsworthd

Dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ao Desenvolvimento Sustentável pós-2015: saúde e direitos sexuais e reprodutivos no contexto das mudanças na cooperação internacional

29

Just Haffeld

Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global: facilitando a boa governança em contextos complexos

36

Lynn P. Freedmana, Marta Schaafb

Pensando globalmente, agindo localmente: a responsabilização na linha de frente

46

Alicia Ely Yamin, Vanessa M Boulanger

Incorporando a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos a uma perspectiva transformadora de desenvolvimento: lições extraídas das metas e indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)

58

Nafis Sadik

Saúde e direitos sexuais e reprodutivos: os próximos 20 anos - Discurso durante a Conferência Internacional de Direitos Humanos - Holanda, 7 a 10 de julho de 2013

64

Marianne Halesgrave

Garantindo a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para a Saúde

76

Susana T Fried, Atif Khurshid, Dudley Tarlton, Douglas Webb, Sonia Gloss, Claudia Paz, Tamara Stanley

Cobertura universal de saúde: necessária, mas insuficiente

87

Theresa McGovern

Não há bônus sem ônus: investindo em meninas e mulheres por meio do financiamento ao ativismo, organização, judicialização e ações para a mudança cultural

104

Mónica Roa, Barbara Klugman

A judicialização como estratégia política: um estudo de caso na defesa dos direitos reprodutivos na Colômbia


116

Anna Forbes

Mobilizando mulheres de movimentos populares para a incidência nas políticas de saúde: um estudo de caso sobre a Campanha Global pelos Microbicidas

126

Amy L. Coates, Peter S. Hill, Simon Rushton, Julie Balen

O envolvimento da Santa Sé nas questões relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos: conservadora no posicionamento, dinâmica nas respostas

137

Aníbal Faúndes, Graciana Alves Duarte, Maria Helena de Sousa, Rodrigo Paupério Soares Camargo, Rodolfo Carvalho Pacagnella

Brasileiros têm opiniões divergentes sobre a legalização do aborto, mas a maioria discorda que as mulheres sejam presas por abortarem

146

Bela Ganatra, Philip Gues, Marge Berer

Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso: desafios e oportunidades

150

Silvina Ramos, Mariana Romero, Lila Aizenberg

Experiências de mulheres com o uso do aborto medicamentoso em contextos de restrição legal: o caso da Argentina

162

Particio Sanhueza Smith, Melanie Peña, Ilana G Dzuba, María Laura Garcia Martinez, Ana Gabriela Aranguré Peraza, Manuel Bousiéguez, Tara Shochet, Beverly Winikoff

Segurança, eficácia e aceitação do aborto medicamentoso com mifepristone e misoprostol no primeiro trimestre de gestação, em ambulatórios de unidades básicas de saúde na Cidade do México

170

Maria Isabel Rodriguez, Willis Simancas Mendoza, Camilo GuerraPalacio, Nelson Alvis Guzman, Jorge E Tolosa

Aborto medicamentoso e aspiração manual intrauterina (AMIU) como procedimentos para o aborto previsto em lei protegem a saúde da mulher e reduzem os custos do sistema de saúde: resultados da Colômbia


Apresentação É com grande satisfação que apresentamos a nossa edição anual da Revista Questões de Saúde Reprodutiva, trazendo artigos que analisam a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos no contexto atual do debate sobre o desenvolvimento. Encerrado o ciclo dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), no qual as pressões conservadoras impuseram retrocessos às conquistas das Conferências do Cairo e de Beijing, cabe agora recuperar o espaço político no processo de elaboração e implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). A maior parte dos artigos aqui traduzidos integram a edição nº 42 (2013) da Reproductive Health Matters e, por isso, nosso primeiro artigo é a apresentação feita por Marge Berer para esse número da revista britânica. Berer nos oferece um panorama sobre o tema, indicando os principais desafios a serem enfrentados para expandir o grau de responsabilização e compromisso com a saúde global e influenciar o novo paradigma de desenvolvimento. Essas questões são tratadas a partir de diferentes perspectivas em 12 artigos. Os demais tratam do tema do aborto e foram parte do Suplemento 44 da RHM (2015), sobre a expansão do acesso ao aborto induzido por medicamentos como forma de garantir eficácia e segurança para as mulheres, sobretudo nos contextos de restrição legal, como é o caso do Brasil e de outros países da América Latina. Assim como as demais edições brasileiras, procuramos equilibrar artigos voltados para análises globais, regionais e locais, incluindo pelo menos um estudo realizado no Brasil. No artigo “Dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ao Desenvolvimento Sustentável pós-2015: saúde e direitos sexuais e reprodutivos no contexto das mudanças na cooperação internacional”, Hill et al apresentam resultados de estudos de caso realizados na Mongólia, Nicarágua, Senegal e Yemen sobre as mudanças na cooperação para o desenvolvimento entre 2005 e 2011 e seus impactos sobre a inclusão da agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no planejamento de políticas públicas. Haffeld prossegue com o tema, colocando o foco sobre a crescente complexidade do processo de globalização no artigo “Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global: facilitando a boa governança em contextos complexos”, e propondo que se discuta a possibilidade de elaboração de uma Convenção Global para a saúde. 6

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No artigo “Pensando globalmente, agindo localmente: a responsabilização na linha de frente”, Freedman e Schaaf analisam a discrepância existente entre a concepção dos problemas e as soluções propostas para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos pelos movimentos globais e a complexa realidade enfrentada pelas pessoas no dia a dia dos serviços de saúde, sugerindo que se coloque o foco sobre a ponta do sistema, onde as pessoas se relacionam diretamente com profissionais e instituições de saúde. É a partir daí que se pode identificar e enfrentar os mecanismos de poder, direcionando a responsabilização para aqueles cuja saúde e direitos estão diretamente em jogo, produzindo, assim, as mudanças necessárias. Yamina e Boulanger retomam o tema das limitações do ODM 5 no artigo “Incorporando a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos a uma perspectiva transformadora de desenvolvimento: lições extraídas das metas e indicadores dos ODM”, para chamar a atenção para a necessidade de não se repetir os mesmos erros no processo dos ODSs. Para as autoras, um novo marco referencial para o desenvolvimento deve incluir uma perspectiva da transformação social na qual metas e indicadores não dominem nem restrinjam os objetivos mais amplos de fazer avançar a justiça social e a justiça de gênero. Antes de prosseguir com os artigos que tratam de questões mais específicas, apresentamos o discurso de Nafis Sadik, Conselheira Especial da Secretaria Geral da ONU, durante a Conferência Internacional de Direitos Humanos de 2013, intitulado “Saúde e direitos sexuais e reprodutivos: os próximos 20 anos”, que sintetiza alguns dos argumentos apresentados nesse debate, apontando os desafios a serem superados. No artigo “Garantindo a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para a Saúde”, Halesgrave defende a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos como prioridade em um novo Objetivo de saúde. Nessa mesma direção, Frieda et al apontam os limites da proposta de cobertura universal de saúde (CUS) no contexto da agenda de desenvolvimento sustentável pós-2015, no artigo “Cobertura universal de saúde: necessária, mas insuficiente”. Tratada de forma isolada, a CUS não levará ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva.


A P Portella, S Diniz / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 06-07

McGovern retoma o importante tema do financiamento aos grupos de mulheres como elemento essencial dos processos de cooperação para o desenvolvimento. No artigo “Não há bônus sem ônus: investindo em meninas e mulheres por meio do financiamento ao ativismo, organização, judicialização e ações para a mudança cultural”, a autora analisa ações desenvolvidas em Bangladesh e na África do Sul, para demonstrar o modo como esse tipo de apoio pode alterar práticas culturais, leis e políticas públicas danosas às mulheres e meninas. Seu artigo é seguido de dois outros, que analisam experiências de articulação e mobilização políticas de grupos de mulheres. No primeiro, “A judicialização como estratégia política: um estudo de caso na defesa dos direitos reprodutivos na Colômbia”, Roa e Klugman descrevem e analisam processos de judicialização no campo dos direitos reprodutivos, coordenados pela organização Women’s Link Worldwide, de forma articulada com redes e organizações locais de mulheres. O artigo seguinte, “Mobilizando mulheres de movimentos populares para a incidência nas políticas de saúde: um estudo de caso sobre a Campanha Global pelos Microbicidas”, de autoria de Anna Forbes, examina a contribuição da Campanha Global pelos Microbicidas ao movimento para expandir as opções de prevenção ao HIV para mulheres, descrevendo o processo de mobilização de centenas de ativistas populares em todo o mundo para atuarem de forma coordenada. A análise de Coates et al, no artigo “O envolvimento da Santa Sé nas questões relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos: conservadora no posicionamento, dinâmica nas respostas”, conecta a primeira parte da revista – voltada para os amplos processos de negociação política em torno das agendas do desenvolvimento e dos direitos sexuais e reprodutivos – com a segunda parte, que examina o caso específico do aborto. As autoras analisam as declarações oficiais da Santa Sé no processo das conferências das Nações Unidas, identificando seu posicionamento fundamentalmente conservador pari passu à forma dinâmica com que transmite seus argumentos, respaldando-se em reivindicações laicas e em evidências empíricas, reinterpretando as normas de direitos humanos e situando a sexualidade e a reprodução no contexto “da família”. Vistos no contexto do renascimento religioso nas relações internacionais e das alianças da Santa Sé com sujeitos conservadores, a análise aqui apresentada ajuda a entender o lento progresso já

alcançado e os potenciais obstáculos a serem enfrentados no futuro no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. O bloco sobre o aborto começa com o estudo brasileiro, de Faúndes et al, no qual se revela um sutil deslocamento na opinião dos participantes sobre o aborto que pode produzir efeitos jurídicos importantes. Intitulado “Brasileiros têm opiniões divergentes sobre a legalização do aborto, mas a maioria discorda que as mulheres sejam presas por abortarem”, o estudo identificou que a maioria dos participantes posiciona-se contra a prisão de mulheres que já abortaram. Esses resultados podem influenciar os parlamentares brasileiros que estudam atualmente a reforma do Código Penal em direção à descriminalização do aborto no Brasil. Os últimos quatro artigos tratam do aborto induzido por medicamentos. O primeiro é a apresentação de Ganatra et al (“Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso: desafios e oportunidades”) para o Suplemento já citado, na qual tratam da importância de se produzir conhecimento sobre o uso do misoprostol e do mifepristone para produzir mudanças nos programas e políticas públicas voltadas para o aborto seguro. Os demais apresentam os resultados dos estudos realizados na Argentina, México e Colômbia. Ramos et al analisam a experiência das mulheres argentinas com o uso dos medicamentos, concluindo que, quando há informação e orientação adequada quanto ao uso correto, o método é seguro e bem aceito pelas mulheres. No México, Smith et al encontraram resultados semelhantes para o uso ambulatorial dos medicamentos a partir do um estudo quantitativo, oferecendo evidências adicionais de que é um procedimento seguro para a interrupção de gestações com até dez semanas. Finalmente, na Colômbia, Rodriguez et al avaliaram os custos do aborto medicamentoso em comparação com a aspiração manual intrauterina (AMIU) como procedimentos para o aborto previsto em lei, concluindo que o primeiro procedimento é mais seguro para as mulheres e menos custoso para os serviços de saúde do que a AMIU. Esperamos que façam bom proveito dessas análises. Boa leitura! Ana Paula Portella e Simone Diniz 7


Um novo paradigma de desenvolvimento pós-2015, com metas abrangentes para a igualdade de gênero e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Marge Berer Editora, Questões de Saúde Reprodutiva, Reino Unido.

“Essas são as nossas conclusões… Contamos com a coragem de todos os governos para defender questões controversas quando lidam com realidades complexas, muitas das quais relacionadas às causas mais profundas das desigualdades… 1. Mantenham suas promessas; 2. Defendam nossos direitos sexuais; 3. Exigimos justiça econômica; 4. Deixem-nos um planeta saudável; 5. Somos colaboradores e não público-alvo.” (Declaração do Encontro da Juventude pós-2015, Outubro 2013).* Que tempestade de palavras nos legaram a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) - Para Além de 2014 e as agendas de Desenvolvimento Sustentável Pós-2015! São tsunamis de discussões, reuniões, relatos, declarações, listas de demandas e revindicações e expectativas diversas oriundas de todas as partes do mundo! Eu não sei como o Secretário-Geral da ONU consegue lidar com tudo isso, mas a minha caixa de entrada de emails já está quase cheia. Mas essa tempestade também trouxe um conjunto valioso de comentários, críticas e análises políticas, que eu gostaria de compartilhar com vocês. E o mesmo se aplica aos excelentes artigos dessa edição da revista. Nesse editorial eu gostaria de dar destaque a duas questões que, juntas, expressam o cerne dessa edição da revista e do que eu acho que está acontecendo no mundo para além dessa explosão verbal:

• Neste momento, temos a oportunidade de esta-

belecer metas de desenvolvimento sustentável que podem superar diversas limitações dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), expandindo o grau de responsabilização e compromisso para melhorar a saúde global e os direitos humanos. Essas metas devem incluir a igualdade de gênero e a saúde e direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, há fortes evidências de que os es-

forços para se alcançar a igualdade de gênero tem obtido pouco sucesso e a área da saúde tem sido subfinanciada por muitos governos, a despeito de compromissos já assumidos, especialmente na África†, mas não apenas lá. Novas metas precisam ser configuradas de maneira a levar em conta a interdepêndencia dos direitos humanos, o que significa que nenhum ser humano deve ser delas excluído. A princípio, até que esse compromisso seja alcançado, um novo paradigma e novas metas de desenvolvimento não passam de aspirações sem esperanças de sucesso. Os ODMs da área da saúde desviaram o foco da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos (SDSR), articulados ofi mente pela primeira vez no Programa de Ação do Cairo, limitando-se à redução da mortalidade materna no ODM5, em detrimento de quase todas as outras questões da SDSR. A mortalidade materna foi reduzida, mas não o suficiente, e não diminuiu nada nos países mais pobres, enquanto a assistência ao parto não foi ampliada de forma concomitante no mesmo período. Nós, ativistas da SDSR, enfrentamos problemas urgentes. Alguns aspectos específicos da saúde não se tornarão metas e, certamente, a SDSR também não. Assim, como podemos garantir desta vez que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos serão inteiramente incluídos nas metas de desenvolvimento sustentável para a saúde pós-2015, junto com todas as outras questões urgentes de saúde e desenvolvimento que vêm sendo defendidas por outros grupos sociais?

Texto completo em: https://docs.google.com/file/ d/0B2zDeXV8KPlrdkhEQ1VUYm9YeHc/edit?usp=sharing&pli=1.

† “Doze anos depois da Declaração de Abuja, quando os governos africanos se comprometerem a alocar pelo menos 15% dos seus orçamentos anuais para a saúde, apenas seis países alcançaram essa meta. Mais importante, cerca de um quarto dos países membros da União Africana retrocederam e agora gastam menos em saúde do que em 2001." Governos africanos continuam subfinanciando a saúde. Irin News. 23 July 2013. http://www.irinnews.org/report/98459/african-governments-stillunderfunding-health.

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42750-7

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www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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Quem está na liderança de nosso movimento atualmente? Nós temos um plano? Uma estratégia? Algumas dessas questões exigem uma abordagem voltada para o exterior. Elas requerem ações nos níveis global, nacional e local, envolvendo os sistemas de cooperação intergovernamentais, governos, financiadores, comunidades ligadas aos sistemas e políticas de saúde e a sociedade civil, que atuam no nível nacional. Outras questões demandam inicialmente um olhar mais interno. Nós, ativistas de SDSR, conseguimos articular brilhantemente nossas questões mas, por vezes, empacamos no ponto em que é necessário indicar os meios de resolvê-las. A oposição à nossa agenda não está se enfraquecendo. Neste momento, o conteúdo das metas de desenvolvimento está sendo debatido e negociado em todos os níveis, envolvendo uma complexa rede de atores e aqueles entre nós que são especialistas no assunto precisam auxiliar na formulação, negociação e renegociação dessas metas, até 15 de setembro de 2015. Um grupo maior ainda deveria negociar com as lideranças no nível nacional. Há gente suficiente do nosso lado fazendo isso agora? Como chegar a um consenso entre nós sobre o que apoiamos e pelo que lutamos no cenário mais amplo, para além dos SDSR e da igualdade de gênero? A CIPD não foi um jogo fácil, mas comparado com o que vivemos agora até parece brincadeira de criança.

Um novo paradigma de desenvolvimento em saúde Qual é o novo modelo de desenvolvimento demandado por nós? Como deve ser a meta em saúde para que não restrinja e promova o ideal de “saúde para todos”? Qual a meta em saúde mais adequada para abrigar nossas pautas? O Banco Mundial apoia a “cobertura universal” como meta em saúde. Até recentementre, a Organização Mundial de Saúde também apoiou a universalidade, mas há relatos de que começam a considerar a cobertura universal mais como um meio do que como uma meta. Espero que essa posição se sustente e que o Banco Mundial também mude sua percepção do problema. Uma rede do Reino Unido considera que os componentes centrais da universalidade são o “acesso universal a serviços de saúde de qualidade que atendam às necessidades da população e correspondam à carga de doenças nos contextos nacionais e a proteção também universal contra o risco de que os custos dos serviços se tornem uma barreira para a assistência à saúde”.

E incluem ainda “o apoio internacional para superar as barreiras legais e políticas no acesso à saúde para as populações mais vulneráveis e marginalizadas”‡. De fato, essa definição parece ter muito potencial. Mas o real sentido da cobertura universal em saúde não é a parte da “cobertura”, ou seja, a forma de financiamento da assistência? Essa não seria uma outra forma de restringir a agenda? E qual(is) é(são) o(s) modelo(s) que garantem a cobertura? Levemos em consideração, por exemplo, os resultados de um estudo de caso publicado esse ano sobre os esforços consideráveis do México para implementar a universalidade: “no que se relaciona à assistência à saúde no México, o conceito “universal” nunca significou igualdade, particularmente no que diz respeito à assistência adequada para as 52 milhões de pessoas que não possuem seguro privado”§. A conclusão de que os mais vulneráveis são os menos atendidos pode ser um resultado inesperado da “hipótese da equidade inversa”¶, segundo a qual, a menos que medidas específicas de prevenção sejam tomadas, os ricos são os primeiros a se beneficiarem da implementação de novos programas, o que aumenta a desigualdade. A cobertura universal tem o propósito de impedir que a equidade inversa ocorra, mas de acordo com Gita Sen, citando Davidson Gwatkin, ainda não há evidências de que a universalidade possa de fato evitar esse problema (Gita Sen, apresentação, consultoria do UNFPA, Cidade do México, Outubro de 2013). Além disso, pelo menos até o momento atual, a noção de universalidade da cobertura não incorpora nem a abordagem baseada em direitos nem o foco nos demais determinantes da saúde, para além dos serviços. Pode parecer, portanto, que a cobertura universal de saúde não seja a solução mais adequada. No entanto, preocupa-me a ausência de opiniões sobre o tema por parte de colegas da área de SDSR, embora muitos de nós tenhamos concordado na Cidade do México que essa era uma questão a ser tratada com urgência. Por isso, estou muito con‡

Base britânica da Rede Global de Saúde. Minutas de Políticas para a Saúde Global em Manifestos Partidários, fonte desconhecida. § Ocejo A. Health, Citizenship, and Human Rights Advocacy Initiative: Improving Access To Health Services in Mexico. International Budget Partnership Impact Case Study No. 15, July 2013. http:// papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2326607. ¶ Victora CG, Vaughan P, Barros FC, et al. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet2000;356(9235):1093–98.

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tente em publicar um artigo sobre o tema, a partir da perspectiva da SDSR, nessa edição da revista. Antes de prosseguir, cabe mencionar outra questão preocupante, que é o baixo grau de contestação de alguns pressupostos relacionados aos modelos público e privado de gestão e financiamento dos sistemas saúde, que subjazem à noção de universalidade. O problema de quem financia a assistência, assim como quem oferece os serviços, é, na minha avaliação, a questão que todos querem ignorar. Qual a posição do movimento de SDSR a esse respeito, considerando o grau de privatização dos serviços de SDSR, ou seja, a oferta por fora do sistema público de saúde na maior parte dos países? São inegáveis as fragilidades e capacidade limitada dos governos para desenvolver, administrar e implementar sistemas de saúde de qualidade, sem falar das outras responsabilidades relativas à assistência social, educação e economia. Mas isso é uma consequência direta e intencional de políticas nacionais e internacionais e não um fato imutável da vida, não é? Em um artigo de 2012, London e Schneider** argumentam que “embora a globalização neoliberal seja associada ao aumento de desigualdades, a integração global também fortalece a disseminação do discurso dos direitos humanos em todo o mundo”. Os autores examinam a “aparente contradição” entre a concepção de “globalização como um fenômeno que enfraquece a capacidade dos Estados-Nação de agir em prol dos interesses de suas populações e o fato de a implementação dos compromissos de direitos humanos demandarem do Estado a capacidade de criar políticas públicas eficazes que concedam direitos socioeconômicos, como a saúde. A noção de responsabilização é central para as demandas feitas ao Estado para a implementação de sistemas de saúde baseados na perspectiva dos direitos humanos”. Assim, antes de se definir a meta em saúde deve-se discutir sobre a eficácia dos Estados para a concessão de direitos, incluindo o direito à saúde. London e Schneider chamam a atenção para a necessidade de se fortalecer o controle parlamentar no nível nacional, de modo a se priorizar a proteção às populações pobres e aumentar o financiamento do setor saúde, e alertam para a importância da ação da sociedade civíl na responsabilização da gestão e na mobilização social. Chamam a atenção, ainda, para a importância de se analisar ** London L, Schneider H. Globalisation and health inequalities: can a human rights paradigm create space for civil society action? Social Science & Medicine 2012;74(1):6–13.

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críticamente a incapacidade do Estado em implementar o direito à saúde, o que levanta questões quanto à “difusão generalizada da responsabilização no moderno sistema de cooperação internacional”6. A função da cooperação internacional, portanto, também deve ser minuciosamente analisada. Se nossa intenção é criar novos modelos, ainda há muito trabalho a ser feito. Uma terceira questão diz respeito ao poder e à articulação da sociedade civíl, incluindo ativistas de SDSR, para responsabilizar as agências internacionais e os governos. Como demonstra a AWID-Association for Women’s Righst in Development, em um estudo realizado em 2010 com mais de 1100 organizações de mulheres de todo o mundo, não há financiamento suficiente para isso. O estudo concluiu que “há vastos recursos para o campo do desenvolvimento” mas, embora haja interesse em se investir em ações específicas para mulheres e meninas, o financiamento para organizações de mulheres é desprezível. Em 2010, a receita média anual de mais de 740 organizações de mulheres de vários países do mundo foi de apenas 20.000 dólares. A AWID também salienta que embora “os mecanismos e as fontes da cooperação internacional e da filantropia estejam se tornando cada vez mais diversificados, a prioridade tem sido o crescimento econômico e o retorno do investimento, em lugar dos direitos humanos e do bem-estar social”, verificando-se, assim, a influência dos “interesses e das abordagens do setor privado no campo tradicional da cooperação e do desenvolvimento††. O que pensam os movimentos de SDSR sobre essas mudanças? Que recursos - humanos e outros - são necessários para responsabilizar de fato governos e financiadores? Somos fortes o suficiente, especialmente no nível nacional, para realizar essa tarefa? De forma mais ampla, como as políticas de saúde e os movimentos de SDSR tem respondido a isso? Quando vamos começar a trabalhar em conjunto? Assim como a AWID, preocupa-nos que os direitos humanos tenham se transformado em uma “controvérsia” e, por isso, estejam sendo negligenciados. Mas se o mundo pretende falar sério sobre desenvolvimento não pode abandonar os direitos humanos. Tampouco pode depender ††

Arutyunova A, Clark C. Watering the Leaves, Starving the Roots: The Status of Financing for Women's Rights Organizing and Gender Equality. Association for Women’s Rights in Development. 2013. http://www.awid.org/Library/Wateringthe-Leaves-Starving-theRoots.


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de empresas como a Coca-Cola para apoiar o Ministério da Saúde da Tanzânia e o Fundo Mundial de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária com a rede distribuição de medicamentos essenciais para áreas remotas do país‡‡, provavelmente acompanhados de grandes quantidades de um refrigerante nada saudável. A despeito das frustrações com as fragilidades dos sistemas nacionais de saúde, esse exemplo de parceria público-privada, supostamente financiada pelos lucros do refrigerante nada saudável, é um esforço antiético. Mas parcerias como essa estão em crescimento nos campos do desenvolvimento e da ajuda humanitária, pois cada vez mais empresas buscam novas fontes de influência, lucro e poder disfarçadas sob a credibilidade da “filantropia”. Apesar da alta rentabilidade dos alimentos nocivos à saúde, a nutrição ainda é um problema global fundamental que se manifesta tanto na desnutrição quanto na obesidade, que trazem consequências graves para a saúde, como diabetes e hipertensão. A grande indústria alimentícia é tão relevante para as questões globais de saúde quanto a grande indústria farmacêutica. A desnutrição é resultado da pobreza, do desemprego e de políticas agrícolas deficientes. Uma colaboração interssetorial voltada para populações pobres pode melhorar alguns dos resultados negativos em saúde que, atualmente, precisam ser resolvidos pelo setor de saúde. E por falar em novos paradigmas, o que dizer da meta aparentemente impossível de eliminar a pobreza, o ODM que apresenta a pior performance, mas que ainda é uma meta abrangente para o desenvolvimento sustentável? O relatório da Comissão de Determinantes Sociais da OMS (2008)§§ afirma que a “injustiça social está matando em grande escala por meio da combinação tóxica entre “programas sociais e políticas públicas frágeis, arranjos econômicos injustos e má política”, produzindo e reforçando as desigualdades em saúde. O relatório apresenta um quadro abrangente e bem fundamentado sobre as desigualdades em saúde em diversos países, no qual se observa um gradiente social em que os resultados de saúde es-

tão associados à distribuição injusta dos seus determinantes sociais”¶¶. Dito de outro modo, os 20% mais ricos não querem que os 40% mais pobres tenham o que eles têm, não é? Qual a estratégia para lidar com essa barreira? Os governos nacionais e as lideranças globais da ONU têm uma estratégia para lidar com isso? Aqui retorno ao cerne da questão: a necessidade de destacar as responsabilidades da ONU e de seus Estados-Membros com a melhoria da situação de saúde de suas populações e com o respeito, proteção e cumprimento do direito de acesso ao mais alto padrão possível de saúde. Os Estados não podem fazer isso sozinhos, especialmente aqueles que lidam com baixos padrões de rendimento e tributação, infraestrutura precária, gestão financeira deficiente e políticos corruptos no poder, que não valorizam nem apoiam metas acordadas internacionalmente. Os governos também não podem esperar que a ajuda venha de fontes externas de financiamento que tem suas próprias agendas (como, por exemplo, evasão fiscal, vantagens comerciais, influência política e questões de segurança) e que, na realidade, operam uma versão contemporânea do neocolonialismo, tratando os países como dependentes. Assim, falando como ativista de saúde pública e direitos humanos, minha resposta à pergunta sobre qual meta de desenvolvimento sustentável devemos escolher, é a seguinte: primeiro, precisamos de um paradigma de desenvolvimento transformador, ancorado nos direitos humanos, e de uma nova ordem econômica global e nacional, baseada no reconhecimento de questões ambientais urgentes, que também requerem ação global urgente por parte de todos os países, especialmente daqueles que mais poluem o nosso planeta. Então, a partir de uma ampla abordagem de direitos humanos para as metas de desenvolvimento sustentável, estão sobre a mesa as seguintes as opções relativas às metas para a saúde:

‡‡

• O direito ao mais alto padrão de saúde possível

Irin. Global Analysis: What future for private sector involvementin humanitarianism? 26 August 2013. http://www:irinnews.org/ report/98641/analysis-what-future-for-privatesector-involvementin-humanitarianism. §§ World Health Organization. Closing the Gap in a Generation: Health Equity through Action on the Social Determinants of Health. Geneva: WHO; 2008. www.who.int/social_determinants/ final_report/.

• Universalidade da cobertura • Saúde para todos até... (definir prazo) • Algumas ideias frágeis sobre a melhoria do bem estar humano ou

(“direito à saúde”)

¶¶

Marmot M, Bell R. Fair society, healthy lives. Public Health 2012;126(Suppl. 1):S4–10.

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A escolha parece bem clara. Ao rejeitar a cobertura universal, o direito à saúde é o único nessa lista que faz algum sentido. Saúde para todos é uma meta otimista, inclusiva e ambiciosa, assim como o foi na época que Hafdan Mahler criou o slogan para a OMS, com o objetivo de se alcançar a saúde para todos por volta do ano 2000. Essa meta me agradava antes e continua me agradando, mas é um slogan e não é forte o suficiente como meta de desenvolvimento sustentável, que deve ser complexa, claramente delimitada e baseada nos direitos humanos. Sem pensar duas vezes, o meu voto vai para o “direito à saúde”. E para reforçar isso, evitando tratá-lo como algo ambicioso, acho que se deve explorar as propostas da Iniciativa Conjunta para o Estudo e Ação para a Construção de uma Convenção sobre Saúde. O “direito à saúde” está presente em diversos documentos de direitos humanos da ONU, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Hoje, por ter se mostrado de difícil realização, acho que o “direito à saúde” merece sua própria convenção e mecanismos de responsabilização dos Estados com a sua implementação. Além disso, há um grande número de pactos e convenções com efeito vinculante***, assim como há muitos compromissos não-vinculantes†††, todos ratificados pela grande maioria dos Estados. Há muito trabalho a ser feito para operacionalizá-los no nível dos países. Por que não são utilizados como fontes para a defuição de metas, já que boa parte do mundo concordou em cumprí-los? Por fim, há a Revisão Períódica Universal do Conselho de Direitos Humanos, que envolve avaliações nacionais por parte dos Estados-Membro sobre os avanços quanto aos compromissos assumidos com a situação dos direitos humanos‡‡‡. Isso certamente deveria ser incluído como parte do processo de ***

Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966; Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966; Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, 1979; Convenção Internacional contra a Tortura e Todas as Formas de Punição Cruéis, Degradantes e Desumanas, 1984; Convenção sobre os Direitos das Crianças, 1989; Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, 1990; Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2008. ††† Por exemplo, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), o Programa de Ação da CIPD (1994), a Plataforma de Ação de Beijing (1995) e do Rio+20, o Futuro que Queremos. ‡‡‡ UN Human Rights, Office of the UN High Commissioner for Human Rights. Universal Periodic review. http://www.ohchr.org/EN/ HRBodies/Upr/Pages/UPRMain.aspx.

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reponsabilização a nível global. Ademais, é importante ampliar a visibilidade e a responsabilidade dos órgãos da ONU que tem como tarefa garantir que os entes responsáveis implementem os compromissos nos níveis global e regional§§§. Assim como para o nosso movimento, a garantia de que os SDSRs sejam incluídos como parte integral da meta de saúde passa pelo óbvio: é preciso ativismo, negociação e envolvimento com a agenda global da saúde, com as políticas públicas de saúde, com os movimentos pelo direito à saúde e desenvolvimento, assim como nas redes e movimentos pela igualdade de gênero e pela SDSR. É desnecessário relembrar que a construção de redes nacionais, articuladas a gestores, parlamentares e líderanças políticas envolvidas com a agenda global é pelo menos tão importante quanto a pressão permanente sobre a ONU. Outra tarefa crucial é identificar políticos e líderes religiosos com posturas nocivas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Além disso, ainda permanece a grande tarefa de convencer e conquistar o apoio daqueles que afirmam apoiar mulheres e meninas, ou acreditam em (alguns) direitos, mas que produzem políticas que geram manchetes como essa: “Estupros em guerra são inadmissíveis para o Canadá; Postura sobre o aborto continua obscura”¶¶¶.

Artigos na edição britânica nº 21 Os artigos dessa revista começam com a história do consenso global alcançado com o Programa de Ação da CIPD em 1994, apresentada em uma consulta internacional de direitos humanos em julho de 2013 por Nafis Sadik. Outros artigos descrevem o caminho que levou aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) em 2000, apontando de forma crítica os pontos fortes e as deficiências dos indicadores e metas de desenvolvimento, suas consequências desejadas e indesejadas e os limites dos meios de mensuração utilizados, tais como a noção de responsabilização, §§§ Três instâncias regionais de direitos humanos (Europa, InterAmérica e Áfrtica), duas cortes regionais de direitos humanos (InterAmérica, Europa), instâncias de monitoramento de tratados (Cedaw, por exemplo), relatórios especiais (incluindo sobre o direito à saúde), agências especializadas de monitoramento (como UNFPA, UNAIDS e OMS), instâncias de elaboração de políticas como as Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres, o Conselho e o Alto Comissariado de Direitos Humanos - e, sem dúvida, deixei outros exemplos de fora. ¶¶¶ Ditchburn J. Canada slams war rape, abortion stance murky. Canadian Press, 27 September 2013. http://globalnews.ca/ news/869355/canada-slams-war-rape-abortion-stance-murky/.


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“É grande a probabilidade de que haja uma forte ênfase em questões ambientais e de desenvolvimento sustentável, os primeiros dois pilares da Rio+20, em detrimento do desenvolvimento social, tal como aconteceu no Rio... quando as negociações se tornaram difíceis. As questões relativas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, à governança (accountability) e às modalidades de responsabilização foram todas deixadas de lado. Outro aspecto que reduz o otimismo em torno do novo paradigma do UNFPA-Fundo de População das Nações Unidas é a abordagem “cautelosa” à linguagem da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos presente em vários relatórios recentes, que não vai além da linguagem da CIPD. O palco, portanto, está montado para futuras negociações. O processo que vai levar à agenda de desenvolvimento pós2015 é complexo, mas muitas… pessoas demandam que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos sejam prioritários nos novos objetivos do desenvolvimento sustentável. Não há outra opção senão continuar o trabalho em direção aos níveis mais altos de decisão. O que não podemos deixar acontecer novamente é o que aconteceu com as ODMs em 2000. Dessa vez não podemos sair de mãos vazias.” (Haslegrave, M.).

DIETER TELEMANS / PANOS PICTURES

para fazer avançar a agenda do desenvolvimento. Outros artigos trazem estudos de caso, analisando pesquisas nacionais e políticas públicas específicas e expondo de forma crítica as fragilidades das fontes de financiamento, orçamentos e despesas. Os artigos apresentam a falta de conexão entre os acordos internacionais e as realidades nacionais. Um dos artigos demonstra que, independentemente dos ODMs, a mudança do parto realizado nas florestas para o parto domiciliar foi um importante avanço para as mulheres. São artigos profundos e complexos, cujas mensagens provocam reflexão e debate. Além disso, outros artigos colocam o foco sobre parâmetros utilizados para determinar os objetivos de desenvolvimento do milênio e para pensar o futuro. Esses artigos discutem os conteúdos de um novo paradigma de desenvolvimento e, ao utilizar termos como “transformador”, demandam um mundo melhor. Para os ativistas do campo da SDSR, talvez a mais importante mensagem contida nessa edição da revista seja a seguinte:

Foto: Professora lê para crianças no Los Amiguitos de Membol, uma pré-escola em um bairro pobre de Guayaquil, Ecuador, 2009 13


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Principais mensagens nessa edição da revista Direitos humanos

à justiça de gênero (Yamin, A. E. e Boulanger, V. M.).

• “Os direitos humanos para as mulheres são direitos humanos para todos.” “Hoje, esse consenso está mais forte do que nunca.” (Sadik, N.)

• O novo paradigma de desenvolvimento associa expectativas de longo prazo quanto à sustentabilidade ambiental, política e financeira a metas internacionais de erradicação da pobreza. Mas os financiadores, as agências internacionais de desenvolvimento e as instituições nacionais raramente conseguem articular esses planos ou lidar com questões políticamente sensíveis e complexas que entrelaçam religião, status socioeconômico, vida social, cultural e familiar (McGovern, T.).

Crítica ao paradigma ODM • Nas últimas décadas muito se fez pela adoção de uma abordagem multidimensional para o desenvolvimento definida pelos direitos humanos, liberdade e empoderamento. A questão é avaliar se o alcance e a profundidade desses esforços foram suficientes. A sociedade civil desafiou a abordagem direcionada e tecnocrata implícita nos ODMs, alertando para o surgimento de “nichos” de desenvolvimento. De acordo com a definição dos ODM, a igualdade de gênero se restringe a uma meta e indicadores voltados para a representação política das mulheres, educação e trabalho, desconectada da necessidade de cumprimento dos outros ODMs (Reddzy, B. e Sen, G.).

A meta da saúde e o direito à saúde • Com base na abordagem de direitos humanos para o desenvolvimento, 17 Relatores Especiais da ONU identificaram três áreas prioritárias que devem informar esta agenda, todas relevantes para a realização do direito à saúde: redução de desigualdades, proteção social básica nacional e dupla responsabilização (Grover, A.). • Tal como compreendida atualmente, a cobertura universal do sistema de saúde por si só não resultará no acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e, certamente, também não levará aos direitos sexuais e reprodutivos. (Fried, S. et al). • Uma convenção internacional para a saúde pode ser um instrumento apropriado para lidar com alguns dos desafios relacionados à governança em um ambiente complexo. (Haffeld, J.).

Garantindo a inclusão da igualdade de gênero e dos SDSRs no novo paradigma de desenvolvimento • O novo paradigma de desenvolvimento deve incluir uma forte perspectiva de transformação social com objetivos e indicadores adequados, mas que não devem substituir ou restringir os objetivos mais amplos ligados aos avanços sociais, políticos e

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• Há distinções preocupantes entre a maneira como os problemas e soluções no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos são tratados no plano global e a realidade cotidiana complexa que as pessoas enfrentam nos serviços de saúde. Qualquer abordagem que pretenda renovar o campo da responsabilização deve começar com as dinâmicas de poder nas linhas de frente, lá onde as pessoas se relacionam diretamente com profissionais e instituições de saúde (Freedman, L. P. e Schaaf, M.).

Ajuda ao desenvolvimento • Entre 2005 e 2011, observa-se importantes mudanças institucionais e estruturais no campo da ajuda ao desenvolvimento, que produziram impactos sobre a inclusão da agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no planejamento de políticas públicas no nível nacional. Se a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos requerem uma perspectiva abrangente e multissetorial, é necessário fazer a conexão com os temas-chave do desenvolvimento sustentável: desigualdades de gênero, educação, crescimento e população, mas também urbanização, migração, empregabilidade de mulheres e mudanças climáticas (Hill, P. S. et al) OK • No Haiti, os mecanismos de cooperação internacional tem assumido diversas funções do Estado: alocam recursos, definem prioridades, implementam programas e, em conjunto com as forças de pacificação, partilham o monopólio da violência legítima. Mas as organizações de ajuda, assim como as forças de pacificação, não assumem a responsabilidade direta pelos haitianos em casos de negligências graves ou mesmo em situações simples como, por exemplo, a forma de utilização dos recursos (Bhatia, P.).


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Abordando os contextos nacionais • A perspectiva transformadora dos direitos humanos voltada para o acesso à saúde sexual e reprodutiva, fortemente defendida no plano internacional pelo movimento feminista global e por atores governamentais e intergovernamentais progressistas, não tem sido tão bem-sucedido ou influente no nível nacional (Oronje, R. N.). • O relatório do Cabo Oriental, na África do Sul, é um testemunho analítico do colapso de um sistema público municipal de saúde, do qual dependem mais de seis milhões de pessoas. Durante décadas, esse colapso foi negligenciado ou mesmo permitido. (Campanha de Ação de Tratamento e Seção 27). • É essencial compreender o fluxo nacional dos recursos para a saúde reprodutiva, de modo a garantir o financiamento efetivo desse componente crucial da saúde, mas, mesmo assim, desafios importantes permanecem (Sidze, E. M. et al). • Os avanços na redução da morte materna foram consideráveis, mas o ritmo da redução ainda é muito lento para que a meta seja integralmente cumprida até 2015, especialmente na África Subsaariana. Isso demonstra que tanto os governos nacionais quanto a comunidade internacional estão deixando a desejar no cumprimento das obrigações relacionadas ao direito à saúde para as populações desses países (Ooms, G. et al).

O papel do ativismo • A disputa em torno dos avanços na agenda das políticas públicas é constante. O ativismo de base sempre esteve na cena política pautando problemas específicos, apresentando soluções para as agendas políticas e pressionando os responsáveis políticos para a ação. As decisões sobre o tipo de ativismo exigido pelo processo pós-CIPD e pós2015, assim como seus sujeitos, temas e métodos, é o que irá definir o conteúdo desse novo momento (Forbes, A.). • No Brasil, embora haja previsão legal para a prisão de mulheres que abortam de maneira ilegal, dois estudos demonstram que 85% dos estudantes e 83% dos servidores públicos entrevistados acham que essas mulheres não devem ser presas. Esse fato deve ser considerado por parlamentares que agem de acordo com a opinião pública (Faundes, A. et al). • O trabalho com diversos parceiros, incluíndo o Programa Conjunto da UNFPA-UNICEF sobre Muti-

lação Genital Feminina: Acelerando a Mudança, nos fez perceber como alavancar determinadas dinâmicas de apoio às comunidades para a proteção das meninas. Testemunhamos o modo como a informação sobre os perigos dessa prática e as evidências de que outras comunidades estão questionando ou abandonando a MGF podem provocar ou revigorar um processo positivo de mudança (UNICEF).

Morte materna ou saúde materna • Conhecer a taxa de mortalidade materna é o ponto de partida necessário para se trabalhar pela sua redução (Mola, G. e Kirby, B.). • No período de 30 anos houve mudanças intergeracionais importantes nas práticas de gestação e parto em áreas remotas da República Popular e Democrática do Laos. Compreender como jovens mulheres interpretam suas escolhas e incorporar esse conhecimento e a experiência bem sucedida de programas locais no sistema público de saúde e na assistência obstétrica pode contribuir para a melhoria das taxas de mortalidade materna e neonatal e para a redução das desigualdades em saúde (Alvesson, H. M. et al). • Embora tenha sido pensada para melhorar a saúde materna, a pressão para o alcance de metas traz implicações negativas indesejáveis para o relacionamento entre mulheres, agentes comunitários de saúde e os serviços de saúde, como demonstrado na Nicarágua, e isso precisa ser devidamente debatido (Kvernflaten, B.). • Boa parte do debate sobre os serviços de assistência obstétrica, inclusive nos países ricos, está focado na necessidade de se alcançar um padrão de excelência nos serviços. No entanto, há grupos de mulheres - incluindo refugiadas - recebendo assistência bem abaixo dos padrões mínimos desejáveis. A assistência obstétrica de alta qualidade é muito mais do que apenas o reconhecimento das complicações graves da gravidez. As mulheres precisam de apoio durante a gravidez. Precisam estar cercadas por uma rede de amigos e pela família. Precisam estar devidamente abrigadas. Devem estar bem nutridas, descansar e praticar exercícios. O stress e isolamento impactam negativamente tanto a mãe quanto o bebê. Dispersar as mulheres que procuram por asilo não apenas lhes separa de suas redes sociais, como também lhes deixa distantes das parteiras com quem precisam construir um elo de confiança e uma relação compassiva (Feldman, R.).

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ANDREW AITCHISON / STARS FOUNDATION

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Foto: Uma garotinha que acabou de receber a sua certidão de nascimento do Centro de Legislação Urbana,administrado pelo Comitê para a Assistência Legal aos Pobres, distrito de Orissa, Índia. 16


Dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ao Desenvolvimento Sustentável pós-2015: saúde e direitos sexuais e reprodutivos no contexto das mudanças na cooperação internacional Peter S Hill,a Dale Huntington,b Rebecca Dodd,c Michael Buttsworthd a Professor Adjunto de Sistemas de Saúde Global, Faculdade de Saúde da População, Universidade de Queensland, Herston, 4006, Brisbane, Austrália. Contato: peter.hillsph.uq.edu.au b Diretor, Diretório de Sistemas e Políticas de Saúde do Pacífico Asiático, Escritório Regional da Organização Mundial de Saúde para o Pacífico Ocidental, Manila, Filipinas c Técnica da Unidade de Desenvolvimento de Sistemas de Saúde, Escritório Regional da Organização Mundial de Saúde para o Pacífico Ocidental, Manila, Filipinas (no período da pesquisa) d Pesquisador, Faculdade de Saúde da População, Universidade de Queensland, Brisbane, Austrália

Resumo: Esse artigo apresenta resultados de estudos de caso nacionais sobre as mudanças institucionais e estruturais na cooperação para o desenvolvimento entre 2005 e 2011 e seus impactos sobre a inclusão da agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no planejamento de políticas públicas. Durante esse período, os financiadores apoiaram modalidades mais integradas de apoio - multissetoriais, com estratégias para a redução da pobreza e apoio direto aos orçamentos - utilizando-se de referências econômicas nos processos de tomada de decisão. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio chamaram a atenção para a mortalidade materna, mas à custa da agenda mais ampla da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. No plano nacional, houve dificuldades para que os movimentos de mulheres se articulassem aos processos de implementação das políticas, os gestores de saúde ficaram em desvantagem diante dos argumentos econômicos e faltaram mecanismos de controle financeiro e orçamentário para garantir a conexão entre o ativismo e as ações implementadas. As competências requeridas nos processos de planejamento de alto nível foram ampliadas e agora os gestores de saúde redirecionam o foco para os objetivos de desenvolvimento pós-2015. Mas para que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos seja integrada ao processo de forma abrangente, é preciso conectá-la aos temas centrais do desenvolvimento sustentável: desigualdades de gênero, educação, crescimento e população, urbanização, migração, emprego das mulheres e mudanças climáticas. Palavras-chave: saúde e direitos sexuais e reprodutivos, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, objetivos de desenvolvimento pós-2015, eficácia da cooperação ao desenvolvimento, RPD do Laos, Malawi, Senegal, Tajiquistão O ano de 2005 é um marco para o engajamento da Organização das Nações Unidas (ONU) com o campo da saúde sexual e reprodutiva. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) orientaram o foco para a saúde materno-infantil, que foi reforçado no Relatório da Organização Mundial de Saúde de 2005: Make every mother and child count (Faça com que toda mãe e criança conte)1. O potencial das intervenções nos sistemas de saúde para reduzir a mortalidade materna e neonatal foi claramente demonstrado2,3, mas a preocupação com os avanços na redução da mortalidade materna já estava presente em muitos países, particularmente na África Subsaariana.4 Naquele ano, foi criada a Parceria para a Saúde Materna, Neonatal e Infantil, com o ob-

jetivo de produzir sinergia entre essas três áreas5. Mas essa dinâmica ainda estava limitada ao alcance do ODM 5a: reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna até 2015. A partir da perspectiva da saúde sexual e reprodutiva, isso representa apenas uma pequena parte de todo o leque assistencial destacado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) como, por exemplo, planejamento familiar, saúde materna e neonatal, assistência ao aborto inseguro, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, redução de danos e promoção da saúde sexual.6 Seriam necessários mais dois anos até que a Assembleia Geral da ONU lançasse uma resolução especial para marcar a adição atrasada do ODM 5b – referente ao acesso

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42737-4

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universal à saúde reprodutiva até 20157 -, expressando as demandas políticas relativas à saúde sexual e reprodutiva e enfrentando as resistências à promoção do planejamento familiar. Em 2005, já estava claro que era tênue o compromisso global com uma agenda abrangente de saúde sexual e reprodutiva: com o consenso em torno dos ODMs, agências importantes bilaterais, multilaterais e filantrópicas passaram a concentrar seus recursos no HIV/AIDS e outras doenças transmissíveis, na saúde infantil e na saúde materna definida de forma bastante estrita. A agenda da saúde sexual e reprodutiva foi deixada de fora em um contexto de cooperação global cada vez mais complexo. As consultas de alto nível da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Fundo de População da ONU (UNFPA) já haviam reconhecido esse problema nos anos anteriores, demonstrando preocupação com a capacidade dos países para incluir a saúde sexual e reprodutiva nos processos de planejamento das políticas a partir desse “novo contexto da cooperação”. Desde a década de 1990, as tendências do desenvolvimento tornavam-se cada vez mais integrativas: o acordo internacional sobre a redução de pobreza como objetivo primário de desenvolvimento contribuiu para as orientações econômicas básicas para o desenvolvimento e o Relatório de Desenvolvimento Mundial de 19938 reforçou esse enfoque na área da saúde. A retórica da saúde demandava mudanças no financiamento, saindo dos projetos isolados para o apoio a programas integrados ou, melhor, para o apoio direto aos orçamentos públicos nacionais. A nível setorial, a coordenação dos processos de desenvolvimento ganhou importância por meio de abordagens intersetoriais na saúde, caracterizadas pelos pacotes governamentais de reformas, apoiados pelos doadores. Os Documentos Estratégicos Integrados para a Redução da Pobreza (DEIRP) tinham a intenção de coordenar essas políticas no nível nacional. Nesse novo contexto, as equipes nacionais da ONU entenderam que sua capacitação profissional, fortemente orientada para o campo técnico e programático, seria de uso limitado para a assessoria aos ministérios da saúde9. Essas preocupações levaram a um programa exploratório de pesquisa e à introdução da capacitação para o ativismo nos processos nacionais de planejamento. Os resultados da pesquisa e as avaliações dos programas de capacitação implementados em 27 escritórios da OMS e UNFPA em quatro regiões10,11, são o objeto da análise comparativa relatada nesse artigo. 18

Ainda em 2005, as argumentos em defesa das mudanças no contexto da cooperação estavam presentes na Declaração dos Princípios de Paris para a Eficácia da Cooperação12, recomendando a maior ênfase nas lideranças nacionais, o alinhamento das políticas, a harmonização dos processos de financiamento e o foco na gestão baseada em resultados e na responsabilização mútua. Esses princípios revelam a mudança no controle dos processos em direção ao nível local, com previsão de ampliação dos financiamentos de longo prazo e uma melhor sincronia entre as políticas governamentais e os processos orçamentários e administrativos. Potencialmente, essas tendências poderiam levar a abordagens mais abrangentes da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e de outras áreas da saúde. Elas permitiam o desenvolvimento de políticas intersetoriais, definindo um pacote financeiro com fundos governamentais e externos e a construção da necessária infraestrutura de saúde para a oferta dos serviços assistenciais. A necessidade urgente de uma melhor coordenação nos níveis global e local respondia às demandas crescentes do que estava se tornando a “revolução global do desenvolvimento”13,14. A coordenação - expressa como o alinhamento às políticas locais ou como a harmonização dos processos de financiamento – estava inscrita em um conjunto maior de mecanismos para o desenvolvimento. O compromisso com a redução da pobreza traduzia-se no campo da saúde por meio dos ODMs 4, 5 e 6, que deveriam ser monitorados e relatados anualmente de forma integrada aos outros processos nacionais de planejamento, como os Documentos Estratégicos de Redução da Pobreza (DERPs).15,16 Os processos nacionais referentes ao Marco Referencial para a Cooperação ao Desenvolvimento (UN Development Assistance Framework-UNDAF) seguiu as orientações mais amplas quanto à eficácia das ações, buscando alinhar as atividades da ONU com as políticas públicas e harmonizar o trabalho entre as diferentes agências da ONU. Na área da saúde, as abordagens setoriais ao desenvolvimento já somam mais de uma década de experiência no planejamento liderado pelos governos nacionais, com o apoio da cooperação para o financiamento e implementação de reformas setoriais. O maior volume de financiamento para a saúde existente até 2005 deveria continuar, mas com uma maior diversidade de participantes e a multiplicação de iniciativas de saúde global. Em termos de recursos e influências, o público global – instituições e fundações privadas e redes da


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sociedade civil - agora competem com as agências multilaterais tradicionais envolvidas na área da saúde, como a OMS e o UNICEF13,17. Esse ambiente de mudança está bem documentado no nível global(9,13,14). Nossa pesquisa explorou o modo como essas mudanças globais impactaram as políticas e programas de saúde sexual e reprodutiva no nível nacional, utilizando como evidências os resultados de estudos de caso exploratórios conduzidos em 2005 e 2011 em vários países7,8,18. Com base nesses estudos, o artigo explora as implicações das mudanças globais na cooperação ao desenvolvimento no campo da saúde sexual e reprodutiva nesse período, o impacto dos ODMs sobre a própria reformulação do campo da saúde sexual e reprodutiva, a função da OMS e do UNFPA no fortalecimento de capacidades de respostas a essas mudanças no nível global e os desafios diante dos novos paradigmas que vêm delineando os objetivos de desenvolvimento pós-2015.

Métodos Essa pesquisa examina a colaboração entre o UNFPA e o Departamento de Pesquisa em Saúde Reprodutiva da OMS (DSR) entre 2005 e 2012 por meio de uma série de incentivos e acordos para capacitação dos escritórios nacionais para apoiar a saúde sexual e reprodutiva dentro do contexto de eficácia da cooperação. O apoio inicial do UNFPA para o Departamento de Pesquisa e Saúde Reprodutiva da OMS financiou a pesquisa de 2005, sobre as estratégias de redução da pobreza, o marco referencia para a cooperação ao desenvolvimento e as abordagens intersetoriais na área da saúde e dos direitos reprodutivos. Incluiu ainda o levantamento das necessidades das equipes dos escritórios nacionais em termos de competências para o planejamento de políticas, definição de estratégias e processos orçamentários o cumprimento dos ODMs e a implementação dos princípios de Paris. Quatro estudos de casos foram realizados em 2005 (Mongólia, Nicarágua, Senegal, Yemen). Os resultados gerais foram apresentado em um Relatório Técnico da OMS/UNFPA7 e em artigo sujeito à revisão de pares; outro artigo examinou o estudo de caso da Mongólia.19 Os quatro estudos de caso de 2005 utilizaram uma metodologia comum: revisão de artigos científicos, análise documental de políticas, relatórios e documentação relevante coletada por consultores locais; análise de dados oficiais de Ministérios da Saúde e da ONU e dados de relatórios de ONGs, de pesquisas locais não publicadas e históricos de

programas; realização de entrevistas semiestruturadas e entrevistas em profundidade com roteiro de questões comum a todos os países*. Foram conduzidas mais de 80 entrevistas com informantes-chave, com profissionais que participam do planejamento de políticas e programas de saúde reprodutiva nos Ministérios da Saúde e em organizações não-governamentais, gestores sênior dos Ministérios da Saúde, das Finanças, do Bem-Estar Social e do Planejamento, representantes de agências bilaterais importantes, do Banco Mundial e de outros bancos regionais, equipes locais da OMS e do UNFPA e outras agências da ONU. As entrevistas trataram das mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas nos últimos dez anos, da saúde sexual e reprodutiva como prioridade política e sua posição no discurso das políticas. Outros temas específicos foram a saúde materna, neonatal e infantil, HIV/Aids, indicadores de saúde, serviços de saúde e questões de gênero relacionadas à condição social, papéis e educação das mulheres. Também foram estudadas as alocações orçamentárias para a saúde sexual e reprodutiva, o financiamento de estratégias e suas tendências temporais e a categorização de serviços de saúde. Examinou-se a posição da saúde sexual e reprodutiva nas políticas nacionais de saúde e sua integração às políticas sociais voltadas para os mais pobres. Os parceiros da cooperação ao desenvolvimento foram entrevistados sobre a sua participação nas políticas e em seus mecanismos de coordenação. A análise comparativa foi feita por meio de um roteiro comum de análise para o relatório. Após 2005, o UNFPA e o Departamento de PSR da OMS continuaram a colaborar com o desenvolvimento de projetos e em 2008 garantiram mais três anos de financiamento do Fundo Internacional de Parcerias da ONU e da Fundação Ford para desenvolver e executar um programa de capacitação para as equipes dos escritórios nacionais das duas agências, sobre o novo contexto da cooperação ao desenvolvimento e o lugar da saúde sexual e reprodutiva nos processos nacionais de planejamento de políticas. Tratou-se de uma formação técnica, focada em novos atores, redes e modos de coordenação da cooperação (abordagem intersetorial e estratégias de redução da pobreza) processos orçamentários, análise econômica e implicações dos princípios de Paris para a saúde sexual * O quadro para a pesquisa e análise desses estudos de caso

de países pode ser acessado em: https://www.researchgate.net/ publication/257931178_Framework_for_analysis_country_case_ studies?ev=prf_pub.

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e reprodutiva. Os cursos regionais e sub-regionais reuniram profissionais de 52 países da Ásia, África e Leste Europeu. A capacitação resultou em um exercício de desenvolvimento de um plano colaborativo de ação indicando os passos necessários para a atuação em defesa da inclusão da saúde sexual e reprodutiva nos processos nacionais de planejamento de políticas. Nessa mesma linha, pequenos incentivos foram oferecidos para atividades adicionais de fortalecimento das habilidades em países selecionados. A avaliação dos programas de capacitação indicaram a ampliação do conhecimento e do ativismo nos escritórios do UNFPA e da OMS, o que levou o UNFPA a estender a capacitação para todos os escritórios nacionais e a OMS a integrar os conteúdos do pacote em capacitação similar oferecida para os escritórios nacionais e Ministérios da Saúde. No período de 2009 a 2011, a OMS conduziu um projeto similar para fortalecer a capacidade da sociedade civil com apoio da Fundação Gates e a parceria do UNFPA nos níveis regionais e nacionais. Uma segunda rodada de estudos de caso foi realizada em 2011 no Laos, Malawi, Senegal e Tajiquistão, na sequência do projeto conjunto do UNFPA e da OMS. Esses estudos de caso exploraram as mudanças no ambiente da cooperação para a saúde sexual e reprodutiva e as respostas nacionais a essas mudanças. Os quatro países foram selecionados de um grupo de países que tinham se submetido aos programas de capacitação do UNFPA e da OMS usando-se o critério da representação regional. Com exceção do Senegal, não foi possível proceder a comparações longitudinais diretas entre os países, mas os dois conjuntos de estudos ofereceram um corte transversal de países de baixa renda para cada período, permitindo comparações significativas - mas não lineares. A pesquisa buscou mapear as mudanças no contexto do desenvolvimento desde 2005 e a evolução da área da saúde sexual e reprodutiva nas políticas, programas e processos de nacionais e s setoriais de planejamento. Além disso, buscou evidências sobre para a utilidade da capacitação oferecida e uma análise da colaboração entre os parceiros da cooperação ao desenvolvimento no apoio aos governos em seus processos setoriais e nacionais. Uma segunda rodada de pesquisa seguiu a mesma estrutura descrita para 2005, com quatro equipes de estudo compartilhando um roteiro comum (atualizado) de entrevista e análise para os 106 informantes-chave. Após a conclusão dos estudos, todas as equipes se encontraram para 20

compartilhar os achados dos estudos de caso e as lições aprendidas9. Os autores desse artigo estiveram envolvidos no planejamento, implementação, análise e síntese final dos processos de pesquisa de 2005 e 20118,9.

Resultados O novo contexto da cooperação e as mudanças no nível nacional Na época dos estudos de caso de 2005, havia um conhecimento agudo a nível global e nacional sobre as importantes mudanças na arquitetura da cooperação que estavam a caminho. Para os entrevistados, a promoção das abordagens setoriais e o apoio direto aos orçamentos públicos permitiram a consolidação do financiamento para o setor saúde como um todo, mas não havia segurança quanto a suas implicações específicas para os orçamentos de saúde sexual e reprodutiva e receava-se que a perda de financiamentos já consagrados poderia tornar a área menos competitiva dentro do processo orçamentário. Equipes da OMS, do UNFPA e de ONGs com histórico de participação na saúde sexual e reprodutiva questionaram o seu papel e mandato devem ser ajustados para atuar de forma adequada junto aos novos parceiros de desenvolvimento como o Fundo Global de Combate a AIDS, Tuberculose e Malária (Fundo Global) e a Fundação Gates. As equipes nacionais da OMS, por sua vez, expressaram insegurança quanto às políticas da OMS relativas às abordagens intersetoriais, aguardando as diretrizes que foram lançadas em 200620. As equipes dos escritórios nacionais da ONU se mostraram preocupadas com a possibilidade de que a infinidade de novos atores, cada um com o seu próprio modus operandi, torne mais complexos os processos nacionais de desenvolvimento. No Senegal, os entrevistados do Ministério da Saúde apontaram para a existência de muitos financiadores com vários focos de interesse na saúde reprodutiva - maternidade segura, planejamento familiar, saúde sexual adolescente, mutilação genital feminina, mortalidade materna -, o que dificulta a oferta de programas abrangentes e integrais de saúde sexual e reprodutiva. A sobreposição entre os indicadores de monitoramento dos ODMs, das estratégias de redução da pobreza e dos avanços nos programas intersetoriais tem levado ao estreitamento do foco sobre a saúde materna e o planejamento familiar. O foco recente (à época) nas articulações entre fatores macroeconômicos e saúde23 contribuiu para o reenquadramento econômico do


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desenvolvimento, com as agências priorizando a redução da pobreza e justificando novas iniciativas em termos da melhor relação custo-benefício ou de resultados que favoreçam os pobres. A equipe sênior dos Ministérios da Saúde questionou a sua própria capacidade de negociação nesse contexto transformado, particularmente nas reuniões de alto nível sobre temas econômicos. Promovidos a lideranças em função de seu conhecimento técnico e programático na área da saúde, eles perceberam que é difícil transferir experiência e conhecimento para outros ministérios: “A gente não maneja o jargão econômico necessário para participar dos debates.” (Gestor do Ministério da Saúde da Mongólia, 2005). Mesmo em um nível mais básico, a falta de acesso a dados financeiros e ao planejamento orçamentário continuava a frustrar alguns gestores de saúde sexual e reprodutiva nos estudos de 2011. No Tajiquistão, o Ministério das Finanças define o orçamento da saúde, as alocações ao Ministério da Saúde são feitas por meio do Tesouro e cobrem unidades de saúde no nível nacional, programas nacionais e investimentos. As unidades de saúde regionais, municipais e distritais são financiados por meio dos hospitais dos distritos, que funcionam como departamentos locais de saúde. Repasses distritais e impostos locais financiam as unidades rurais de saúde - mas os fundos para a saúde sexual e reprodutiva não podem ser identificados separadamente dentro dessa matriz financeira complexa. O Plano Nacional de Saúde Reprodutiva 2005-2014 foi elaborado, mas não recebeu financiamento e os ativistas de saúde sexual e reprodutiva que atuam no ministério da saúde estão tentando elaborar programas intersetoriais como um modo de criar pressões externas que possam fazê-los entender a sua situação financeira: “Nós não sabemos como mensurar o nosso financiamento. Se soubéssemos como fazer isso conseguiríamos uma melhor alocação dos recursos e melhor coordenação /com os parceiros de desenvolvimento.” (Oficial do Ministério da Saúde, Tajiquistão, 2011) Em 2011, o novo contexto do desenvolvimento não era mais uma novidade, mas ainda era disseminada a percepção dos integrantes de governos e de agências de se tratava de um rearranjo da complexidade já documentada em 200514. Apesar disso, as equipes de pesquisa de 2011 identificaram a presença de uma relativa confiança nas agências, governos e organizações da sociedade civil para produzir no-

vas interações em termos de uma agenda baseada no princípio da eficácia da cooperação. Em 2011, os Princípios de Paris eram muito mais reconhecidos e estavam institucionalizados a nível nacional, sendo uma característica consolidada do diálogo em torno das políticas de saúde e em outras áreas. A República Democrática Popular do Laos, por exemplo, assumiu o compromisso com os princípios da eficácia da cooperação junto a parceiros governamentais e mais outros 22 parceiros na “Declaração Vienciana sobre a Eficácia da Cooperação”23,24. Os gestores de saúde levantaram questões sobre a velocidade dos avanços da eficácia documentados para o Plano de Ação de Accra25 e sobre o interesse nas preparações para o 4º Fórum de Alto Nível sobre Eficácia da Cooperação ao Desenvolvimento de Busan. Embora as questões sobre o contexto da cooperação ainda estivessem presentes, elas evoluíram de um foco relativamente abstrato em funções e mandatos para um interesse mais prático sobre a operacionalização da agenda da eficácia em um contexto local complexo. Os entrevistados do Ministério do Planejamento do Laos consideram importante ir além de um foco setorial único: obteve-se uma colaboração mais eficaz quando os gestores olharam além dos ODMs de saúde, formando alianças mais amplas com agências e bancos de desenvolvimento para incluir a saúde nas estratégias mais abrangentes de desenvolvimento, incluindo educação e infraestrutura: “Para a saúde, você sabe, também há problemas no ODM 8 - desenvolver uma parceria para o desenvolvimento - mas no nível local.” (Oficial do Ministério do Planejamento, RPD do Laos, 2011) O outro tema comum no estudo de 2011 foi o reconhecimento, pelo Ministério da Saúde e pelas equipes da OMS, da importância estratégica da agenda da eficácia para os movimentos que lutam pelo fortalecimento dos sistemas de saúde e, por meio dele, pela oferta de assistência de emergência obstétrica e neonatal. Os entrevistados perceberam essa mudança em direção ao fortalecimento dos sistemas de saúde em parte como uma reação ao grande volume de financiamento para as doenças transmissíveis do começo dos anos 2000s, mas também como o resultado da sinergia natural entre as agendas de reformas para todo o setor, que fortalecem o planejamento, os processos orçamentários e a harmonização dos processos de cooperação. Iniciativas públicas globais de saúde como a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Aliança AGVI) e o Fundo Global responderam 21


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rapidamente às mudanças na arquitetura da cooperação, tornando-se mais “amigável” ao sistema(26,27), assinando os acordos da Parceria Internacional de Saúde + (P+IS)28, participando ativamente no desenvolvimento de ferramentas para os sistemas de saúde29,30 e contribuindo cada vez mais com recursos humanos para a saúde31. Em 2011, todos os ministérios da saúde relataram receber incentivos específicos para o fortalecimento de sistemas de saúde da Aliança AGVI e/ou do Fundo global, que geraram receitas significativas para os orçamentos nacionais de saúde26,32.

Articulando a coordenação do novo contexto da cooperação internacional Com a crescente participação de agências como a Aliança AGVI e o Fundo Global - e suas tentativas de estender suas ações para além de seus mandatos -, as equipes dos Ministérios da Saúde e dos escritórios nacionais da OMS e do UNFPA confrontam-se com a ampliação dos mecanismos de coordenação de um campo cada vez mais diverso de sujeitos. Em 2011, todos os países estudados tinham passado por exigências de criação de novas estruturas de coordenação: as estratégias de redução da pobreza e os relatórios de progresso de ODMs unificou as coordenações nacionais; a Aliança AGVI estabeleceu o comitê coordenador do setor saúde como pré-requisito para o financiamento dos sistemas de saúde; e o Fundo Global instituiu seu próprio Mecanismo de Coordenação Nacional (MCN), com representações que se sobrepunham, mas que não eram idênticas. Em 2011, a Plataforma de Financiamento dos Sistemas de Saúde, criada em 2009 pela colaboração entre a Aliança AGVI, o Fundo Global e o Banco Mundial, estava iniciando a coordenação das atividades de fortalecimento dos sistemas de saúde já existentes nos seus programas e explorando uma maior colaboração baseada em formas comuns de atuação e nas Estratégias Conjuntas de Avaliação Nacional33. As Estratégias foram desenvolvidas pela P+IS como uma avaliação independente dos processos de planejamento e financiamento do setor de saúde no plano nacional, possibilitando aos doadores a identificação de possíveis colaborações para o apoio direto aos orçamentos setoriais28,34. O Senegal havia iniciado esse processo como parte da elaboração de uma P+IS compacto, agregando-o aos mecanismos de coordenação já existentes: as abordagens intersetoriais da saúde, o Mecanismo de Coordenação Nacional, o 22

Plano Nacional de Desenvolvimento na Saúde, o Marco Referencial Intercalado de Gastos e o Plano Nacional de Apoio ao Desenvolvimento. Em 2005, os dois principais instrumentos de coordenação da cooperação eram as abordagens intersetoriais (a nível setorial) e as estratégias de redução da pobreza (a nível nacional). Em 2011, ambos haviam evoluído e se diversificado. De fato, as estratégias de redução da pobreza como instrumento voltado para o alívio do endividamento já não mais existia. Em seu lugar, as estratégias passaram a reunir uma grande variedade de políticas influenciados pelos contextos locais e nacionais, como, por exemplo, os Documentos de Políticas Econômicas e Sociais 2011-2015 no Senegal35, a Estratégia de Crescimento e Desenvolvimento 2006-2011 do Malawi36 e a Estratégia Nacional de Crescimento e Erradicação da Pobreza do Laos37. Em 2011, gestores e representantes das agências reconheceram a aparente inevitabilidade da ampliação das estruturas de coordenação e dos fóruns nacionais, setoriais ou subsetoriais. Ainda assim, salientaram que os esforços de alinhamento e harmonização entre os parceiros de desenvolvimento - que representam um alto custo para os governos e para os parceiros - foram lentamente transferidos para o apoio à otimização das políticas e dos procedimentos operacionais. O reconhecimento do governo do Malawi do secretariado das abordagens intersetoriais como parte do Grupo de Trabalho do Setor Saúde otimizou os mecanismos de coordenação nacional e consolidou a direção das políticas, mas a capacidade operacional ainda é mais lenta do que o desenvolvimento da governância. O fracasso (à época) do Malawi em garantir a Rodada 10 de financiamento do Fundo Global foi atribuído à baixa capacidade de absorção e repasse de verbas no nível local e aos frágeis mecanismos de responsabilização das rodadas anteriores. A confiança anterior na abordagem intersetorial de saúde do Senegal foi erodida e a proposta do P+IS compacto foi tomada pelas agências financiadoras como uma alternativa para a coordenação dos processos de desenvolvimento, garantindo apoio financeiro adicional. Nesse interim, os parceiros nacionais reduziram o comprometimento com as diretrizes das políticas públicas, pois a alta rotatividade de Ministros e gestores do primeiro escalão interrompiam a implementação das políticas, impedindo as operações programáticas. Sem dúvida, a crise eleitoral de 2012 reduziu ainda mais a capacidade governamental. Algumas


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análises apontam para a necessidade de maiores financiamentos para o desenvolvimento e de uma melhor sincronização com o planejamento e o orçamento público. Embora o Grupo de Trabalho do Setor Saúde coordene as atividades das agências, criando um processo similar à abordagem intersetorial, a persistência de múltiplos projetos executados por unidades independentes (com diferentes políticas de recursos humanos e escalas salariais) continua a prejudicar os esforços de harmonização da implementação. Ironicamente, o crescimento do financiamento para a saúde dificultou para os Ministérios a solicitação de recursos adicionais às fontes nacionais. Em maior ou menor medida, essa foi a experiência de todos os governos estudados. No Malawi, a cooperação ao desenvolvimento para o setor saúde cresceu e as alocações governamentais foram reduzidas e redirecionadas para outros setores. O entrevistado do Ministério das Finanças do Laos foi franco ao relatar os dilemas relacionados à previsibilidade e sustentabilidade dos financiamentos e a inquietação produzida pelas decisões unilaterais dos doadores - como, por exemplo, a suplementação salarial dos profissionais de saúde ligados a seus projetos - consideradas injustas aos olhos de outros servidores públicos.

Saúde sexual e reprodutiva no novo contexto global da cooperação Com a adoção dos ODMs como medida básica para a maior parte das abordagens de desenvolvimento e redução de pobreza, em todos os países as metas dos ODMs gozavam de alto reconhecimento governamental para os processos nacionais e setoriais de planejamento. A apropriação dos pressupostos dos ODMs era evidente: gestores de Finanças, Planejamento e Bem-Estar Social entendiam a importância de prevenção da morte materna e neonatal e da redução da incidência de AIDS, tuberculose e malária. Assim, a saúde materna, neonatal e infantil estava bem posicionada nas agendas setoriais, nacionais e globais de saúde, sendo um elemento central no discurso mais amplo do desenvolvimento. Os estudos de casos de 2005, porém, haviam identificado a falta de conexão entre o ativismo para a inclusão da redução da mortalidade materna no planejamento nacional e as respostas programáticas efetivas por meio da alocação de recursos, capacitação e desenvolvimento de recursos humanos. Os estudos de caso de 2011 sugerem que esse problema persiste: apesar do estreita-

mento da lacuna entre políticas e programas, os avanços limitados na melhoria dos resultados de saúde demonstra a importância do fortalecimento dos sistemas de saúde - particularmente para a saúde materna e neonatal. Além disso, o renovado interesse na saúde materna e neonatal não levou à melhoria do perfil da saúde sexual e reprodutiva; se é que algo foi feito, foi o reforço das distorções históricas da agenda mais ampla de saúde sexual e reprodutiva, marginalizando a atenção para o planejamento familiar e, muitas vezes, negligenciando a agenda dos direitos e da prevenção do aborto inseguro.38 No Laos, a priorização dos ODMs 4 e 5 levou à articulação dos principais financiamentos para a implementação do Pacote Integrado de Serviços de Saúde Materna, Neonatal e Infantil, lançado em setembro de 2009, com a colaboração da OMS, UNFPA, Banco Mundial e Banco de Desenvolvimento Asiático para um único plano e relatório financeiro. A partir de três programas separados, padronizou-se a capacitação de parteiras, criaram-se subsídios comuns, promovendo-se a assistência pré-natal, a equipagem de unidades de saúde, programas de cupons para a assistência ao parto e, quando necessário, se garantiu acomodação em unidades de saúde para as mulheres no pré-parto. Hoje, diferentes ações de um mesmo programa são realizadas por vários parceiros: o Banco Mundial oferece assistência qualificada ao parto, o UNFPA distribui contraceptivos nas comunidades e a OMS oferece os cupons gratuitos para a assistência ao parto. Mas os entrevistados dos bancos de desenvolvimento consideram que a abordagem da ONU no apoio ao planejamento e implementação das políticas ainda é muito vertical e limitada pelo mandato das agências. Daí derivam problemas estruturais e orçamentários: com a manutenção do financiamento a projetos, em lugar do apoio direto ao orçamento público, os recursos limitados do Laos continuam grandemente comprometido com as despesas correntes (principalmente salários), deixando aos parceiros a maior parte da responsabilidade pela proteção da área de saúde sexual e reprodutiva (e de outros programas prioritários) contra eventuais perdas de financiamento devido a falhas ou alterações de prioridades no orçamento. Mesmo assim, sem a participação da OMS ou do UNFPA nas discussões sobre as estratégias nacionais de redução de pobreza, as questões de saúde sexual e reprodutiva teriam uma relevância nacional ainda menor. Por fim, identificou-se que a maior diversidade no campo da saúde - em termos de atores, alianças 23


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e processos – produziu impactos nos processos de planejamento setorial e nacional da área de saúde sexual e reprodutiva. A diversidade está presente em todos os países, mas é variável o grau de impacto produzido em cada um deles, o que reflete suas especificidades históricas e estruturais. A experiência do Senegal é instrutiva: em 2005, a abordagem intersetorial do setor saúde representava uma base promissora para a articulação entre as agências e a saúde sexual e reprodutiva foi mencionada como prioridade em todos os planos de desenvolvimento elaborados a partir dessa data. Já em 2011, a saúde sexual e reprodutiva, como conceito integrado, não mais aparecia nem no Documento de Políticas Econômicas e Sociais 2011-2015 (terceiro documento estratégico de redução de pobreza do Senegal)35, nem no Plano Nacional para o Desenvolvimento da Saúde 2009-201839. De fato, as questões de saúde pareciam ter perdido importância nas Políticas Nacionais de Cooperação do Senegal40. Para os entrevistados das agências multilaterais, não estava claro se isso era um sinal de uma mudança mais ampla para favorecer investimentos de “setores produtivos” ou se expressava a fragilização das lideranças do setor saúde. De qualquer maneira, pelo fato de ter sido incluída nos planos nacionais anteriores, a ausência da saúde em geral, e da saúde sexual e reprodutiva em particular, nos planos nacionais atuais chama a atenção para o lugar incerto ocupado por essas questões nas arenas políticas nacionais. No Malawi e no Laos, as estruturas setoriais de governo garantem a integração da saúde sexual e reprodutiva aos processos de planejamento da saúde e de redução da pobreza. O forte apoio técnico e o financiamento significativo da OMS e do UNFPA contribuiu para isso, mas trouxe consigo os riscos da dependência do doador – imprevisibilidade do financiamento, vulnerabilidade na aquisição de suprimentos, competição com as prioridades mutáveis das agências e retirada do financiamento estatal.

Discussão Em 2011, em pleno andamento da segunda rodada de estudos de caso, o contexto da cooperação tomou outro rumo: o 4º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Cooperação Internacional, realizado em Busan, na Coréia, redefiniu o conceito de “eficácia”, que passou a significar “eficácia do desenvolvimento”41. Confrontados pelos múltiplos determinantes da saúde, pela necessidade crescente de recursos e por uma rede profícua de apoiadores, os organizadores do Fórum estavam cientes da necessidade de se repensar a coopera24

ção ao desenvolvimento, reconhecendo as parcerias mais amplas entre nações e doadores, novos parceiros de desenvolvimento, como Brasil e China, as colaborações sul-sul e a maior relevância do comércio sobre a assistência nos futuros marcos de referência. Apesar da incerteza quanto ao futuro das novas parcerias, sublinhou-se a importância de alcançar os ODMs - em particular o ODM 5 - mesmo nos Estados mais frágeis, buscando-se um novo consenso para a ação e eliminando as políticas atuais que frustram esses resultados(42,43). No entanto, a avaliação dos avanços nesse novo contexto tem sido ambígua: a avaliação do Plano de Ação de Accra 2008 identificou um maior compromisso retórico com os princípios de Paris e uma implementação “altamente desigual”44. A avaliação da eficácia das metas demonstrou que apenas duas, entre 12, foram alcançadas: fortalecimento da capacidade de coordenação e o nível de financiamento desvinculado49. A previsibilidade do apoio aumentou entre 1% e 42%, muito distante da meta de 71%45. A crise financeira global tornou alguns compromissos irrealizáveis46, adiando a rodada 11 do Fundo Global. A Parceria de Busan pela Cooperação Eficaz ao Desenvolvimento propôs uma Parceria Global de Cooperação Eficaz ao Desenvolvimento, mas suas funções e articulações específicas ainda estão em fase de elaboração41. Dado o cenário infinitamente mais complexo do que o previsto nos princípios de Paris, não é surpreendente a incerteza quanto ao desenho das novas parcerias para acomodar essa diversidade do desenvolvimento. Com o prazo dos ODMs em 2015, o foco global nos ODMs - e particularmente no ODM 5 -, representa uma oportunidade para acelerar as ações em saúde materna, mas pode, ao mesmo tempo, atrasar os avanços na saúde sexual e reprodutiva como um todo. De acordo com nossa pesquisa, a ênfase dada à mortalidade materna na última década foi bem recebida pelos entrevistados. Aparentemente, as distorções produzidas na agenda de saúde sexual e reprodutiva foram entendidas como um subproduto quase inevitável dos investimentos focados nos ODMs, mas traz consigo a expectativa - ou pelo menos a esperança - de que isso possa mudar na agenda pós-2015. No nível global, as primeiras rodadas de exploração dos objetivos de desenvolvimento pós-2015 parecem apoiar tal mudança: o relatório do Painel de Alto Nível sobre os Objetivos de Desenvolvimento Pós2015 mantém o Objetivo ODM 5a sobre a mortalidade materna, mas adiciona uma meta separada,


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garantindo a universalidade da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos47. Ainda assim, é provável que o foco nos direitos prossiga como uma das linhas frágeis no processo de debate e alteração dos objetivos de desenvolvimento pós-2015. Os estudos de caso de 2005 e 2011 revelaram que, no plano nacional da elaboração e implementação das políticas, os discursos governamentais sobre a saúde sexual e reprodutiva não eram orientados pela ideia de direitos e, em alguns contextos, os direitos também não estavam presentes no ativismo da sociedade civil. Mesmo com o foco específico sobre o lugar político da saúde sexual e reprodutiva nas políticas nacionais e setoriais, os direitos não apareceram como fator de influência para o desenvolvimento das políticas. A avaliação das equipes dos escritórios nacionais da OMS e do UNFPA, durante a capacitação, confirmou o aumento significativo da conscientização sobre políticas globais de desenvolvimento e do conhecimento técnico relevante sobre o contexto da cooperação. Mas embora o foco retórico na saúde materna tenha reforçado a ideia de direitos entre os entrevistados, isso não foi transferido para outros campos da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, tais como o direito ao controle da fecundidade, ao aborto seguro e legal ou ao controle de doenças sexualmente transmissíveis.

Conclusões Como antecipado, o debate sobre os objetivos de desenvolvimento pós-2015 reabriu a arena das políticas globais para a inclusão da saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Assegurar uma meta ostensiva de ”garantia da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos” nos objetivos iniciais - com referência específica no texto à mortalidade materna, contracepção, aborto seguro, doenças sexualmente transmissíveis e necessidades das adolescentes - oferece uma plataforma a partir da qual se pode pressionar para a ampliação da agenda ODM. A próxima fase do processo, que desenvolve os objetivos em termos de desenvolvimento sustentável, oferece uma oportunidade única para que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos ganhe centralidade em termos de sustentabilidade social. Mas como Shiffman aponta, a prioridade definitiva de uma agenda de políticas globais depende de uma complexidade de questões: os atores envolvidos, a efetividade de sua comunicação, o próprio contexto político atual e as próprias características do problema48. Para a saúde e os direitos sexuais e

reprodutivos, isso depende de que os países membros desenvolvam políticas e programas concretos e da vontade política para defender esse debate nos planos local, nacional e mundial. As alianças para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos poderão, por vezes, se beneficiar de outros interesses geopolíticos, já que o debate pós-2015 recoloca o foca no desenvolvimento sustentável, mas correm o risco de serem negociadas em troca de apoio a questões mais polêmicas. A liderança política é indispensável na condução desse processo. A construção sistemática da vontade política para a maternidade segura já está bem documentada49, esse mesmo processo deve ser estendido para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Em termos de ação imediata, a pesquisa mostra que há uma janela tática por meio da qual se pode qualificar o perfil das prioridades em saúde sexual e reprodutiva, integrando-as às políticas multissetoriais: cobertura universal de saúde, fortalecimento dos sistemas de saúde, saúde adolescente - como parte da saúde em qualquer fase da vida, incorporando a perspectiva da equidade de gênero e o reconhecimento cada vez maior da centralidade das questões de gênero e de sexualidade para o HIV. Os marcos referenciais da cooperação ao desenvolvimento estão novamente em mudança: nossa análise é que as novas referências temáticas e programáticas serão pelo menos tão influentes quanto os marcos da eficácia, que predominavam no início dessa pesquisa. Certamente, a reformulação da eficácia da cooperação como eficácia do desenvolvimento irá provavelmente reduzir o foco nos instrumentos e modalidades de cooperação como a agregação de fundos – essa é uma transição que nosso estudo sugere já estar acontecendo em alguns países. Com a ênfase dos Grupos Abertos de Trabalho nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pós-2015, os ativistas da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos precisam renovar seus argumentos em termos da articulação com temas que vão além da saúde: sustentabilidade e desigualdades - especialmente em relação a gênero, educação, crescimento e população50. A agenda do desenvolvimento sustentável abre possibilidades para a integralidade da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, mas em áreas não identificadas previamente: urbanização, migração, emprego e mudança climática. Essa pesquisa sugere que a linguagem política e econômica do novo contexto da cooperação foi dominada, mas não incluiu os direitos necessários que garantem a sua 25


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integralidade. Na reestruturação da cooperação ao desenvolvimento, os ativistas da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos - na sociedade civil, nos governos e na comunidade global - precisam impor a prioridade dos direitos na próxima transição global. Vigilância e ativismo são necessários para garantir a abrangência do foco em termos dos direitos, mas também profundamente inse-

rido na agenda mais ampla do desenvolvimento sustentável. A fragmentação da agenda da saúde e da agenda da eficácia da cooperação também pode facilmente levar à fragmentação da agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e isso é algo a se proteger no contexto de contínua complexidade da dinâmica da cooperação ao desenvolvimento51.

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Résumé Utilisant les études de cas de pays, cet article donne un aperçu de l’éventail des changements institutionnels et structurels de l’aide au développement entre 2005 et 2011, et leur impact sur l’inclusion d’un ordre du jour de la santé et des droits sexuels et génésiques dans les contextes nationaux de planification. Au niveau mondial, pendant cette période, les donateurs ont soutenu des modalités plus intégratrices de l’aide – approches sectorielles, cadres stratégiques de lutte contre la pauvreté, soutien budgétaire direct – avec un recours accru aux cadres économiques dans la prise de décision. Les objectifs du Millénaire pour le développement ont attiré davantage l’attention sur la mortalité maternelle, mais aux dépens d’un agenda plus large de santé et de droits sexuels et génésiques. Le plaidoyer à l’échelon national de la planification n’a pas été suffisamment lié à l’application des programmes ; les responsables de la santé étaient désavantagés dans les argumentations économiques et manquaient de contrôles financiers et budgétaires pour garantir une connexion entre le plaidoyer et l’action. Avec des compétences accrues dans les processus de planification aux niveaux supérieurs, les responsables de la santé se recentrent maintenant sur les objectifs du développement après 2015. Pour que la santé et les droits sexuels et génésiques obtiennent un engagement sur tous leurs multiples éléments, les activistes doivent les lier aux thèmes clés du développement durable : inégalités sexuelles, éducation, croissance et population, mais aussi urbanisation, migration, femmes et emploi, et changement climatique.

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Resumen Utilizando investigaciones de estudios de casos de país, este artículo ofrece información sobre una variedad de cambios institucionales y estructurales en asistencia para el desarrollo entre 2005 y 2011, y su impacto en incluir una agenda de salud y derechos sexuales y reproductivos en ámbitos de planificación nacional. A nivel mundial durante este plazo, los donantes apoyaron modalidades más integrales de ayuda – enfoques sectoriales, artículos sobre estrategias de reducción de pobreza, apoyo presupuestario directo – con mayor uso de marcos económicos en la toma de decisiones. Los Objetivos de Desarrollo del Milenio incrementaron la atención a la mortalidad materna, pero a expensas de una agenda más amplia de salud y derechos sexuales y reproductivos. Las actividades de promoción y defensa a nivel de planificación nacional no estaban bien vinculadas con la ejecución de programas; los funcionarios de salud estaban en desventaja en argumentos económicos y carecían de controles financieros y presupuestarios para asegurar una conexión entre la promoción y defensa y la acción. Con creciente competencia en procesos de planificación de nivel superior, los funcionarios de salud ahora están reenfocando los objetivos de desarrollo post2015. Si el campo de salud y derechos sexuales y reproductivos ha de asegurar participación en todos sus múltiples elementos, los promotores deben vincularlos con las temáticas clave de desarrollo sostenible: desigualdades en género, educación, crecimiento y población, pero también con urbanización, migración, empleo de mujeres y cambios climáticos.


Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global: facilitando a boa governança em contextos complexos Just Haffeld Acadêmico afiliado ao Instituto Jurídico O’Neill para a Saúde Global e Nacional, Centro de Direito da Universidade Georgetown, Washington DC, USA. Correspondência: just.haffeld@medisin.uio.no

Resumo: Os processo de globalização tem produzido contextos crescentemente complexos. Sendo assim, os debates sobre as Metas de Desenvolvimento Sustentável (MDSs) requerem uma nova concepção que parta de uma critica às ferramentas políticas atuais e explore uma abordagem favorável à complexidade. Esse artigo propõe que as potenciais MDSs devem: tratar as partes interessadas, como estados, empresas e atores da sociedade civil, como agentes agregados à diferentes níveis de articulação em redes, incorporar bons processos de governança que facilitem o envolvimento precoce de recursos relevantes e a participação igualitária, processos de consulta e análises regulares sobre a implementação de políticas e programas, a adoção e execução dessas regras em processos democráticos nas instituições responsáveis e a inclusão de sistemas de avaliação abrangentes, incluindo indicadores de processo. Convenções globais podem ser instrumentos adequados para enfrentar alguns dos desafios relacionados à governabilidade em contextos complexos. Podem estruturar e legitimar o envolvimento governamental, engajar os atores globais, promover a deliberação e o processo de tomada de decisões com a devida participação e análise política sistemática, além de definir padrões mínimos para os serviços de saúde. Os processos de monitoramento podem assegurar que os agentes cumpram as metas, considerando os indicadores locais de resultados e de processo, superando o paradoxo entre controle governamental e espaços de política local. Assim, uma convenção pode explorar o dinamismo resultante do encontro entre sociedade civil, organizações internacionais e autoridades nacionais. Palavras-chave: globalização, ciência da complexidade, metas de desenvolvimento sustentável, governança de saúde global, convenção global de saúde “Vamos juntos desenvolver uma nova geração de metas de desenvolvimento sustentável para dar continuidade ao progresso iniciado pelas MDSs. E vamos chegar a um consenso sobre os meios necessários para alcançá-las.” (Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, 2011)1. Apesar da convocação do Secretário Geral da ONU para a elaboração de uma nova geração de metas de desenvolvimento sustentáveis (MDSs), os ODMs (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) não perderam relevância no período pós-2015. Mas os ODMs visavam principalmente os países em desenvolvimento, enquanto as MDSs voltam-se para todos os países e fazem parte de uma agenda que vai além do desenvolvimento para os países pobres, buscando atingir uma meta de sustentabilidade planetária. Assim, as MDSs podem ser vistas como complementares aos ODMs - oferecendo uma oportunidade para se cumprir a Declaração do Milênio. Após a Conferência Rio +20, a comunidade internacional incluiu nos debates sobre as MDSs o desenvolvimento de um conjunto de indiwww.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

cadores para a avaliação do seu progresso: “O desenvolvimento das MDSs e de seus indicadores podem produzir maior legitimidade e impacto sobre o desenvolvimento se emergirem de um processo consultivo transparente e participativo”2. Como argumentado nesse artigo, tanto o processo de elaboração das MDSs e seus indicadores como as metas e indicadores finais devem ser concebidos de modo a facilitar processos consultivos transparentes e participativos, incluindo a incorporação dos princípios da teoria da complexidade e da governança articulada em rede ou multicêntrica. A abordagem baseada na complexidade funda-se no estudo da evolução e da dinâmica dos sistemas complexos. Em oposição à tradição cartesiana*, que enfatiza o estudo isolado de cada parte de um sistema, a abordagem complexa volta-se para o sistema em sua totalidade. Longe de * René Descartes é associado à lógica analítica reducionista, à

interpretação mecanicista da realidade física e à distinção dualista entre corpo (matéria) e mente (pensamento). Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42734-9

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estudar mecanismos isolados de causa e efeito, os objetos de estudo são padrões (simples e complexos), conexões, comunicação e dependência mútua em redes de atores ou agentes3. Um sistema social é considerado complexo quando existem altos níveis de interação e interdependência entre as ações de diferentes indivíduos e os efeitos por elas produzidos. No caso de um sistema complexo em constante adaptação, como a saúde global, esse é um desafio especialmente difícil, uma vez que a noção newtoniana de causa e efeito deve ser gradualmente quebrada, dando espaço para uma nova lógica, em que causa e efeito são determinados por múltiplos fatores e mecanismos de feedback e emergência e onde o futuro é, por princípio, incerto4. No uso da teoria da complexidade como parte de um novo paradigma cientifico, comportamentos adaptativos complexos podem ser simplificados para dar coerência ao modelo. A convenção global de saúde aqui sugerida como facilitadora de processos de desenvolvimento pode ser uma forma de reconciliar processos de governança participativos (bottom-up) e hierarquizados (top-down)3. Neste aspecto, esse novo regime demandaria uma mudança nas concepções, valores e capacidades do conjunto de atores do campo da saúde global.

Uma crítica ao desenvolvimento orientado por indicadores de resultados O debate sobre a escolha de indicadores das MDSs é problemático porque depende das diferentes concepções a respeito da natureza das MDSs - se devem ser modificadas, por exemplo, na direção do fortalecimento dos sistemas de saúde, como defendido pela OMS a partir do conceito de cobertura universal dos serviços de saúde5, ou as recomendações para uma Parceria Global que viabilize uma agenda de desenvolvimento transformadora, centrada na pessoa e sensível às questões planetárias, tal como previsto no Relatório do Painel de Alto Nível da ONU6, como parte da Cúpula das Nações Unidas para as MDSs7, realizada em 2010. A despeito dessa incerteza, um outro obstáculo recorrente é o fato de que “não há uma definição única ou medidas de avaliação do desenvolvimento sustentável aceitas universalmente … (e) inexistem indicadores de desenvolvimento sustentável aceitos internacionalmente que possam auxiliar a monitorar esse progresso.”2 O debate atual, no entanto, parece assentar-se na crença de que tempo, esforço e dados robustos são suficientes para a criação dessas medidas 30

e indicadores2. Mas existem sólidos motivos para criticar e questionar metodologicamente o desenvolvimento exclusivamente orientado por indicadores de resultado. 0041 lei que ficou conhecida como Goodhart, em homenagem à Charles Goodhart, antigo conselheiro do Banco da Inglaterra, especifica que: “Assim que o governo regula um conjunto qualquer de bens financeiros específicos, ele torna-se pouco confiável como indicador de tendências econômicas.”8 Isso se dá por que os investidores tentam antecipar os efeitos das intervenções de acordo com os indicadores e investem de maneira a beneficiar-se deles - em outras palavras, os indicadores se tornam um mecanismo de autorregulação que distorce a alocação de recursos. Um exemplo famoso são as indústrias soviéticas que quando recompensadas por produzir um alto número de pregos produziam micro pregos e quando recompensadas por produzir pregos por peso produziam pregos gigantes. Embora a lei de Goodhart tenha sido concebida no contexto de respostas de mercado, ela tem implicações profundas para o cumprimento de metas políticas de alto nível, como aquelas propostas nas MDSs. Se os governos aprovarem um conjunto de MDSs que estabelecem resultados específicos (mensurados por indicadores relevantes) - como campanhas nacionais de vacinação ou de reidratação oral remuneradas pelo desempenho – os órgãos executores estarão mais interessados em alcançar essas metas do que em fortalecer o sistema de saúde, de modo que adaptar-se às dinâmicas locais e atender a outras necessidades essenciais de sobrevivência, promovendo o sentimento de apropriação por parte da população. Outro problema é que qualquer parâmetro de nível ótimo de saúde para a população mundial é ambíguo. Quer se trate de analisar as populações individualmente ou apenas grupos populacionais específicos, os indicadores de resultados não irão apontar se os níveis gerais de saúde são bons, ainda que uma determinada população alcance um bom resultado de acordo com esses indicadores. Quanto mais se considera a saúde como resultante da interação contínua e complexa entre indivíduos, sistemas sociais e meio ambiente, menos produtivo é manter o foco em fatores de risco imediatos ou alvos específicos. Pelo contrário, o sistema e seus efeitos sobre a saúde devem ser vistos como um todo. O problema é que avaliações de resultados abrangentes são subutilizadas, devido os limites de capacidade técnica, à ausência de


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conscientização e apreciação sobre a importância dessa abordagem, assim como a visão equivocada sobre seus custos, combinado com o ceticismo dos financiadores de pesquisas, que preferem resultados rápidos e facilmente quantificáveis9.

As MDSs e a complexidade As mudanças sociais são percebidas como desenvolvimentos ascendentes (bottom-up), graças ao grande número de pequenas flutuações na base da sociedade10. Nesse contexto, o valor produzido é fruto das interações individuais entre atores (ou agentes) e redes sociais e, frequentemente, o que emerge dessas interações é maior ou qualitativamente diferente de todas as ações individuais. Ordem, inovação e progresso são desenvolvimentos naturais dessa interação e seguem regras simples dentro do sistema, não requerendo imposições centrais ou externas11. De acordo com o Relatório Flagship da OMS12, o pensamento sistêmico é muito relevante para a gestão mundial da saúde por que:

“...tem um potencial enorme e inexplorado, primeiramente para decifrar a complexidade dos sistemas de saúdes e, posteriormente, para aplicar esse conhecimento na elaboração e avaliação de intervenções capazes de melhorar a saúde e alcançar a igualdade de condições nesse campo. O pensamento sistêmico pode oferecer um caminho para se atuar de maneira mais eficaz e bem sucedida em contextos reais e complexos. Pode abrir caminhos poderosos para identificar e solucionar desafios no sistema de saúde, sendo um ingrediente crucial em qualquer tentativa de fortalecer o sistema de saúde.” Dessa maneira, em um mundo cada vez mais interligado e interdependente, todos os níveis de governança são complexos e a interação entre os diversos sistemas de governança levam a uma complexidade cada vez maior13. Essa conjuntura tem criado desafios em relação à coordenação das diferentes governanças em saúde global que se sobrepõem e concorrem entre si. Isso é especialmente verdadeiro para as MDSs que requerem cooperação entre círculos de governança sobrepostos, que disputam o controle político e, principalmente, recursos. Essa complexidade também influencia no modo como produzimos e nos relacionamos com o “conhecimento”. Uma vez que a incerteza é um elemento crucial dos sistemas complexos, especialmente no que se refere aos efeitos emergentes, é impossível prever ou determinar o que está adiante, assim como identificar e utilizar indicadores de resultados para prever a

condição a ser alcançada por um sistema em uma fase muito posterior. Assim, o conhecimento tradicional é posto em cheque de duas formas: • Em um sistema com múltiplas variáveis, suas qualidades emergentes e os efeitos sistêmicos tardios desafiam os desdobramentos de análises e mapeamentos exaustivo, e • Se os problemas mudam mais rapidamente do que a otimização de novas soluções, estas serão sempre obsoletas antes mesmo de serem aplicadas4. Isso significa que os princípios da governança estão mudando profundamente. Atualmente, a governança é caracterizada por um campo de atuação estável com uma pluralidade de atores formando redes mais ou menos densas, com uma multiplicidade de mecanismos, mudanças aceleradas e incerteza sobre o futuro13. Em relação a essas mudanças, a diplomacia multilateral da saúde global representa tanto uma restrição quanto uma oportunidade. A oportunidade jaz na incorporação dos princípios baseados na complexidade no código de conduta diplomático, isto é, regras básicas de participação, transparência, responsabilização etc. que podem expandir o campo da saúde global e transformar a comunicação entre governos nacionais, organizações internacionais e a sociedade civil. A restrição está nas negociações internacionais, frequentemente centradas nos governos, baseadas em interesses e visões limitadas, como, por exemplo, os fracassos nas negociações entre os governos sobre as questões relativas à saúde, especialmente evidente após o impasse da Cúpula de Copenhague sobre o Protocolo de Kyoto14, em 2009, e o arquivamento do tratado da OMS sobre desenvolvimento e pesquisa medica para apoiar populações pobres, em 201215.

MDSs para a gestão de redes sociais: nova epistemologia, novos indicadores É evidente que os modelos existentes de gestão não funcionam de maneira satisfatória. Do ponto de vista conceitual, a anomalia mais clara é a prevalência do modelo hierárquico de comando e controle (top-down, do topo para a base), identificada mas críticas às iniciativas verticais de saúde global. Apesar do sucesso de algumas intervenções - como vacinação, tratamento do HIV e malária, por exemplo - a atenção restrita a uma doença ou problema específico distorce o uso dos recursos locais, o que tem sido limitado a abordagem mais ampla e sustentável para o fortalecimento dos sistemas de 31


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saúde16. Quando aplicado a redes sociais, o modelo hierárquico leva a resultados não previstos, atrasos, subutilização de recursos e descontentamento generalizado3. Outra anomalia é que os modelos atuais de atribuição causal não levam em consideração a dinâmica das relações sociais, baseada na culturas, nos valores, status, preferências e objetivos dos agentes17. As redes sociais se constituem de agentes interrelacionados e interdependentes e a governança não significa apenas dar e seguir instruções, mas, sobretudo, adaptar-se contínua e estrategicamente a um ambiente complexo, procurando maximizar essa adaptação.3 De modo igualmente importante, agentes e redes diferenciam-se na aptidão e capacidade de atingir metas. Redes poderosas de negócios podem exercer uma influência não democrática para alcançar benefícios econômicos em detrimento de outros. Um exemplo disso foi a negociação do tratado TRIPS, na qual algumas empresas farmacêuticas conseguiram influenciar autoridades para o estabelecimento de um regime jurídico internacional que prioriza os direitos de propriedade intelectual acima dos direitos humanos13. Outras redes podem colaborar para alcançar benefícios sociais ao fortalecer organizações da sociedade civil para educar, solucionar conflitos, ou promover serviços de saúde18. Esse último caso pode ser ilustrado pelas campanhas internacionais de luta contra o HIV/AIDS e pelo fim das minas terrestres19. Outros exemplos históricos são os movimentos norte-americanos pelo fim da guerra do Vietnã e contra a segregação racial na década de 1960 e a revolução pan-europeia pelos direitos dos trabalhadores. As adaptações pelas quais essas redes passam para alcançar seus objetivos podem ser vistas como formas substantivas de regulação que escapam dos procedimentos legislativos formais no nível internacional e nacional. Para os governos, que são os agente centrais da rede global e os principais destinatários de potenciais MDSs, trata-se de afirmar sua soberania e poder formal no plano da governança global, na mesma medida em que buscam a melhoria do sistema de saúde, garantindo espaço para que outros atores da rede também floresçam. Isso pode ser alcançado pela incorporação de metas abrangentes e globalmente consensuadas, que recomendem a participação da sociedade civil desde os primeiros estágios da elaboração de políticas públicas, restituindo à sociedade o espaço para a identificação, avaliação e proposição de soluções para as possíveis barreiras à implementação das MDSs, e, caso 32

desejem, para chegar a acordos sobre indicadores locais de resultados. Nesse caso, a abordagem da complexidade consegue munir os agentes de capacidades adaptativas que lhes habilitam para enfrentar situações inesperadas, possibilitando processos de negociação baseados em princípios, uma perspectiva holística para as políticas e habilidades avançadas de comunicação. Para assegurar uma performance democrática, os processos de governança das redes sociais devem estar ancorados a estruturas governamentais democráticas já existentes, incluindo o controle por parte representantes eleitos, a responsabilização de autoridades nacionais e o cumprimento de regras democráticas20. Em uma revisão das intervenções para o fortalecimento de sistemas de saúde, Adam et al. identificaram que as avaliações mais abrangentes envolveram a análise por meio da abordagem participativa na elaboração, monitoramento e aperfeiçoamento contínuo das intervenções. Isso acontece, sugerem os autores, por que as avaliações participativas ampliam o escopo da avaliação de impacto da intervenção9. Com base nisso e na necessidade de avaliações amplas, os indicadores de processos devem ser incorporados e utilizados de forma mais abrangente. Esses indicadores podem regular, por exemplo, o envolvimento dos sujeitos, cuja representação deve ser justa e imparcial, e a análise sistemática das políticas, com foco sobre o futuro. A divisão equilibrada das responsabilidades entre governos e outros atores pode ser alcançada organizando-se a governança a partir dos “ciclos recorrentes das políticas globais”21, nos quais os atores passam por processos dinâmicos de análise de políticas em que as responsabilidades são alocadas de acordo com as capacidades. Pode-se chegar a isso por meio de reuniões regulares com todos os atores e setores, constituindo-se um processo cíclico de deliberação, que inclua a participação de todos no processo de tomada de decisões. Para a saúde global, os seguintes princípios foram sugeridos para operacionalizar a abordagem da complexidade na governança: • ampliação da participação (governo, sociedade civil, empresários e gestores de saúde) nos processos de tomada de decisão e na elaboração de políticas com foco sobre o futuro; • diversificação das estruturas de governança para ampliar a aproximação com os conhecimentos locais relativos às condições culturais, religiosas, técnicas, financeiras e sociais;


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• definição de bons princípios de governança para

facilitar a auto-organização e surgimento de soluções exequíveis em uma rede dispersa, mas interrelacionada, de atores, com regras claras quanto à responsabilização, transparência, cooperação e alocação de recursos; • elaboração de um modelo de tentativa e erro e seleção de acertos, com aproveitamento das energias e capacidades criativas para a produção de inovação e empoderamento; • coerência entre iniciativas de governança hierárquicas e participativas durante o processo regular de ajuste das políticas, produzindo conhecimento sobre os efeitos das políticas por meio de análises regulares; • definição de um nível mínimo de saúde, facilitando o consenso local sobre o que são necessidades fundamentais de sobrevivência da população (como, por exemplo, água tratada, medicamentos essenciais, saneamento básico e infraestrutura do sistema de saúde) para a utilização dos recursos de acordo com a demanda real3. Tomando esses princípios como base para avanços futuros, a governança pós 2015 deve enfrentar o desafio de administrar o poder fragmentado no interior das redes sociais - nas quais governos e empresas cuidam apenas de seus próprios interesses e as organizações sociais são predominantemente idealistas - e identificar onde há disparidade de poder e carência de conhecimento científico. A governança no pós-2015, portanto, deve influenciar a relação intima entre autoridades e outros atores das redes globais por meio de uma governança interconectada e multidisciplinar22. Os governos existentes são os nós dessa articulação, confrontados com o duplo desafio de adaptar-se a um ambiente cada vez mais complexo e, ao mesmo tempo, “manter a mão no leme”, ou seja, mantendo o comando do navio e delegando a condução para representantes - ao invés de ficar preso aos remos13. Para o Estado moderno, a governança inteligente usa seu status formal de legislador para estabelecer visões ou metas (“comando”), deixando o espaço político para que outros atores com menor poder formal façam o que de melhor sabem fazer, adaptando-se assim a condições em transformação constante. Estruturas internacionais reguladoras, baseadas em concepções e objetivos abrangentes nos níveis global, regionais e nacionais para facilitar a adaptação e as capacidades locais de construção em ambientes em constante mudança, representam o compromisso ideal de governança que recu-

sa estratégias de comando e controle e adapta-se aos contextos complexos e interconectados22. Assim, potenciais MDSs deveriam incluir compromissos específicos quanto à cooperação internacional baseados em concepções e objetivos abrangentes, que abram espaço político para prioridades locais e soluções para problemas complexos, incluindo o consenso sobre indicadores locais de resultados e indicadores amplos de processo ancorados em valores democráticos, participativos e cooperativos. Além disso, dada a falta de indicadores abrangentes, o monitoramento do progresso pode ser feito através de indicadores de processo, que permitem tratar das questões relativas à confiança nos processos políticos. O conceito de espaço político local sob um regime de governança global, porém, demanda maiores reflexões, que podem trazer implicações para os processos políticos associados à governança global de saúde e sobre a organização e administração dos sistemas de saúde no nível local. Na prática, as MDSs sugeridas acima podem ser facilmente alcançadas através da incorporação de um instrumento dinâmico de regulação global, como a Convenção Global de Saúde (FCGH), sugerida pela Ação Conjunta e Iniciativa de Aprendizado das Responsabilidades Globais e Nacionais para Saúde (JALI), com o objetivo de ampliar e avançar a governança de saúde global23. O raciocínio que sustenta a proposta da convenção é a criação de um processo no qual cada estado acataria princípios básicos para a assistência à saúde, com protocolos específicos para alcançar objetivos que dependem de negociação. O foco nos protocolos auxilia a definição de obrigações e níveis mínimos a serem endossados e gradualmente adotados por todos os atores envolvidos. Especificações mínimas, como a definição conjunta de necessidades básicas de sobrevivência, permitem espaços para a inovação e encorajam esforços coletivos, sendo essenciais para a construção de boas relações no futuro24. Essa Convenção pode englobar os propósitos e objetivos necessários para uma cooperação internacional construtiva, as regras para a coordenação de processos, prioridades e atividades, os compromissos e financeiros e os mecanismos específicos de financiamento, as estruturas institucionais, tais como secretariado e consultoria técnica, os sistemas de monitoramento e os mecanismos de execução e de mediação de conflitos23. Finalmente, uma convenção global para a saúde pode ser um instrumento adequado para lidar com alguns dos desafios relacionados à governança em 33


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ambientes complexos. Ela pode estruturar e legitimar o envolvimento governamental, engajar os apoiadores, organizar o processo de deliberação e tomada de decisões com participação e analise política regulares e definir níveis mínimos de qualidade para os serviços de saúde. Seus processos de monitoramento podem garantir que atores ajam de acordo com as metas definidas para o

sistema, com resultados e indicadores de processo definidos localmente, solucionando, assim, o paradoxo entre controle governamental e espaço político local. Uma convenção poderia extrair a energia produzida pelo encontro entre sociedade civil, organizações internacionais e autoridades nacionais, mantendo o governo no leme e os parceiros no remo.

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Résumé La complexité croissante est une conséquence de la mondialisation rampante. La discussion sur les objectifs du développement durable (ODD) exige donc de nouvelles idées qui s’écartent de la critique des outils politiques actuels dans l’exploration d’une approche adaptée à la complexité. Cet article avance que les ODD potentiels devraient : traiter les acteurs, tels que les États, les entreprises et la société civile, comme des agents à différents niveaux intégrés de réseaux ; inclure des procédures de bonne gouvernance qui facilitent la participation précoce de ressources pertinentes, ainsi que la participation équitable, les processus consultatifs et les études régulières de la mise en oeuvre des programmes et des politiques ; ancrer l’adoption et l’application de ces règles sur les procédures démocratiques dans des organisations comptables de leurs actes ; et inclure des évaluations complètes des systèmes, notamment des indicateurs de procédures. Une convention cadre internationale pour la santé pourrait être l’instrument adéquat pour relever certains des défis liés à la gouvernance d’un environnement complexe. Elle pourrait structurer et légitimer la participation gouvernementale, associer les parties prenantes, organiser les processus de délibération et de prise de décision avec une participation appropriée et des analyses régulières des politiques, et définir des normes minimales pour les services de santé. Un plan de suivi pourrait veiller à ce que les agents dans les réseaux agissent conformément à des objectifs systémiques, des indicateurs de résultats définis localement et des indicateurs de processus, ce qui résoudrait le paradoxe du contrôle gouvernemental par opposition à l’espace politique local. Une convention pourrait ainsi exploiter l’énergie créée par la rencontre entre la société civile, les organisations internationales et les autorités nationales.

Resumen Tras una globalización desenfrenada, la situación es cada vez más compleja. Por lo tanto, la discusión sobre los Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) requiere una nueva forma de pensar que se aleje de una crítica de las herramientas actuales de políticas para explorar una estrategia que abrace la complejidad. En este artículo se arguye que los posibles ODS deberían: tratar a las partes interesadas, tales como Estados, empresarios y actores de la sociedad civil, como agentes en diferentes niveles agregados de redes; incorporar procesos de buena gobernanza que faciliten la participación temprana de recursos pertinentes, así como participación equitativa, procesos consultivos y revisiones periódicas de la aplicación de políticas y programas; anclar la adopción de dichas reglas en los procesos democráticos de organizaciones responsables e imponer su cumplimiento; e incluir evaluaciones integrales de sistemas, que incluyan indicadores de procedimientos. Una convención del marco mundial para la salud podría ser un instrumento adecuado para abordar algunos de los retos relacionados con la gobernanza de un ambiente complejo. Podría estructurar y legitimar la participación del gobierno, incluir a las partes interesadas, coordinar procesos de deliberación y de toma de decisiones con la debida participación y revisión periódica de políticas, y definir los niveles mínimos para los servicios de salud. Un esquema de monitoreo podría asegurar que los agentes de las redes cumplan acorde a las metas de sistemas completos, indicadores de resultados definidos a nivel local e indicadores de procesos, y así resolver la paradoja de control gubernamental contra espacio local de políticas. Por lo tanto, una convención podría aprovechar la energía creada en el encuentro entre la sociedad civil, organizaciones internacionales y autoridades nacionales.

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Pensando globalmente, agindo localmente: a responsabilização na linha de frente Lynn P. Freedmana, Marta Schaafb a Diretora, Programa de Combate à Morbimortalidade Materna, Faculdade de Saúde Pública Mailman , Universidade de Columbia, Nova York, NY, EUA b Pesquisadora Senior do Programa de Combate à Morbimortalidade Materna, Faculdade de Saúde Pública Mailman, Universidade de Columbia, Nova York, NY, EUA. Contato: MLS2014@columbia.edu

Resumo: É preocupante a discrepância existente entre a concepção dos problemas e soluções para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos pelos movimentos globais e a complexa realidade enfrentada pelas pessoas no dia a dia dos serviços de saúde. A análise das noções de responsabilização utilizadas pelos movimentos pode revelar os pressupostos que estão em jogo a respeito dos processos de mudança. Esse artigo defende uma abordagem renovada sobre responsabilização que se inicia com as dinâmicas de poder na ponta do sistema, onde as pessoas se deparam com profissionais e instituições de saúde. As abordagens convencionais evitam debater essas dinâmicas e, com isso, muitos esforços de responsabilização não resultam em mudanças. As abordagens científicas sistêmicas, bem como aquelas voltadas para os processos de implementação de políticas, são fontes promissoras para a renovação aqui proposta, a começar pela compreensão dos sistemas de saúde como sistemas adaptativos complexos inseridos nas dinâmicas políticas mais amplas da sociedade. Utilizando os insights de disciplinas como a economia política, etnografia e administração de mudanças organizacionais - e aplicando-as criativamente à experiência das pessoas nos serviços de saúde - pode-se começar a identificar e enfrentar os mecanismos de poder, direcionando a responsabilização para aqueles cuja saúde e direitos estão diretamente em jogo, produzindo, assim, mudanças significativas. A abertura, ainda que provisória, de espaços globais de políticas para a sociedade civil tem oferecido oportunidades para se testar o potencial de mudança do ativismo nessas arenas. Do ápice da mudança de paradigma da CIPD em 1994, passando pelo ponto mais baixo da exclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de 2001, ao ressurgimento de alguns aspectos dos DSR, com a Iniciativa de Planejamento Familiar de 2020 em 2012, nós nos encontramos agora no limiar de uma nova era de ação global, após a elaboração e lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pós-2015. Embora novas tecnologias permitam novas formas de participação, a proliferação de fóruns, instituições e iniciativas globais exige dos ativistas uma especialização cada vez maior para navegar nesses espaços de forma eficiente - dedicando bastante tempo e energia para isso. Isso levanta questões sobre se e como os movimentos sociais devem se mobilizar para influenciar processos globais*. Entre essas questões esdominadas por ativistas profissionais serem ou não consideradas como movimentos sociais globais produzem implicações para os próprios princípios que lhe orientam.

tão: a estruturação da participação, a disputa pela obtenção e administração de recursos financeiros, conseguir a atenção da mídia, priorizar os objetivos, entrar em negociações e articular parcerias. Mas talvez o mais importante sejam as contestações internas quanto às narrativas que moldam as demandas e as estratégias de mudança. Na condição de ativistas de saúde e direitos humanos trabalhando em uma universidade de Nova York, temos o privilégio do acesso rápido à arena global ao mesmo tempo em que nos dedicamos a iniciativas para o fortalecimento de serviços locais de saúde, especialmente nos países em que é alta a mortalidade materna. É a partir desta dupla perspectiva que percebemos discrepâncias preocupantes entre a concepção dos problemas e soluções no nível global e a realidade encontrada no nível local. É claro que os contextos do ativismo devem ser estrategicamente tratados segundo seus próprios termos. Mas uma estratégia coerente que articule os níveis requer o entendimento compartilhado sobre os processos de mudança. O poder e o glamour dos encontros globais podem ser sedutores e muitas vezes levam os ativistas a acreditar que a mudança no topo das relações entre governos e entre estes e a sociedade civil,

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42744-1

* Na verdade, o fato de iniciativas organizadas frouxamente e

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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locus da definição dos objetivos globais, irá levar à mudança na base, onde as pessoas lidam com a mão do Estado em suas vidas cotidianas por meio da ação dos serviços de saúde e de outras instituições. Nesse artigo, defendemos uma mudança substantiva na compreensão sobre os processos reais de mudança no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e nas técnicas utilizadas para estudar, defender e produzir mudanças. Tomamos a ideia de responsabilização como um princípio organizacional que pode ser o carro-chefe para uma transformação mais ampla na saúde pública e na prática dos direitos humanos. A responsabilização, obviamente, não soluciona tudo. Mas pode produzir diversos outros processos e mudanças necessários para a próxima fase do desenvolvimento global. Nossa análise limita-se à parcela da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos relativa aos serviços de saúde. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos certamente cobrem um conjunto bem mais amplo de condições que influenciam as vidas das mulheres, mas os serviços de saúde não se reduzem a um conjunto estreito de questões técnicas. De fato, uma premissa fundamental do nosso argumento é que os serviços de saúde, apesar da dimensão técnica, também são profundamente políticos e funcionam como instituições sociais de base: as interações das pessoas com as hierarquias de poder que moldam essas instituições muitas vezes criam ou reforçam a própria exclusão e ‘desempoderamento’ que estão no núcleo das violações dos direitos sexuais e reprodutivos. Por outro lado, sendo um reflexo da presença do Estado - e, cada vez mais, das alianças do Estado com o setor privado - o sistema de saúde pode ser um espaço de demanda, articulação e garantia de direitos. A responsabilização certamente não é uma novidade nas práticas globais de desenvolvimento. Mas a forma como vem sendo concebida e operacionalizada globalmente tem estado profundamente desconectada da realidade das interações das mulheres com as forças que moldam sua vida cotidiana. Argumentamos aqui por uma renovação da abordagem de responsabilização que parta das dinâmicas de poder na linha de frente do sistema de saúde, que estão profundamente inseridas nas dinâmicas sociais e políticas mais amplas da vida local. Essa realidade deve subsidiar e definir as estratégias de desenvolvimento global, forçando uma redefinição dos mecanismos de mudança em saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Em suma,

tomando como ponto de partida os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, na direção da CIPD além de 2014, os movimentos de saúde e direitos sexuais e reprodutivos ainda precisam agir globalmente, mas suas ações no palco global devem ser informadas diretamente das realidades locais. Definindo responsabilização A definição de responsabilização influencia a forma de operacionalização e, logo, a mudança que fomenta. Definimos responsabilização como as “limitações colocadas ao exercício do poder por meios externos ou normas internas”1. Essa definição é mais extensa do que aquela presente em algumas das abordagens predominantes que se refere a mecanismos de responsabilização, definidos como sistemas de respostas, reforços e sanções entre duas partes2. A definição de responsabilização aqui proposta traz à cena conceitos indispensáveis para refletir sobre as mudanças para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Primeiro, por que coloca o poder como conceito central, destacando a diferença entre demonstrações superficiais de responsabilização e ações potencialmente transformadoras. Segundo, a definição se aplica a todos que exercem poder e não apenas aos envolvidos no governo. Alguns atores não governamentais, como fundações privadas e religiosas, desempenham funções determinantes moldando o cenário da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos nos corredores da ONU e no plano nacional. Para alguns serviços de saúde reprodutiva, como o aborto, muitas vezes sequer existe setor público. Para outros serviços, o estado lamentável do setor público leva as mulheres ao setor privado, muitas vezes não regulamentado ou mesmo perigoso. Finalmente, o foco cada vez maior nas parcerias público-privadas no campo da saúde global e, particularmente, a opção pelas franquias na oferta de serviços de assistência à saúde reprodutiva, torna crucial a inclusão de atores não estatais no modelo de responsabilização para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Terceiro, essa definição reconhece a relevância das normas internas de indivíduos e instituições - apoiadas ou não por políticas - como modo de expressão e manutenção do poder. Por exemplo, o comportamento abusivo de profissionais de saúde pode persistir não pela ausência de normas ou padrões profissionais que preconizem o contrário, mas porque esse comportamento foi normalizado no sistema, tornando-se rotina, sendo aceito ou 37


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esperado e até naturalizado4. Entender e reconhecer a influência de tais normas é então essencial para identificar as forças que moldam as experiências das mulheres nos sistemas de saúde. Por fim, é importante reconhecer que nossa definição não diz nada sobre o objeto da responsabilização. Isso por que a responsabilização (ou sua ausência) pode ser uma característica de qualquer organização, sensível ou não aos direitos. Como exemplo, tome-se a máfia ou um departamento policial corrupto, onde todos os “soldados” conhecem, aceitam e, muitas vezes, internalizam as regras dos negócios criminosos dos quais se beneficiam, impondo essas regras de forma consistente ou até brutal. A responsabilização está aí. Mas a organização eficiente que daí resulta é exatamente o contrário de uma organização que respeite os direitos. O nosso ponto é que o conteúdo da responsabilização não é inerente ao mecanismo de responsabilização. O conteúdo deve ser fornecido pelo processo político no qual se negocia e consensua a concepção de um sistema que funcione adequadamente. É aqui que uma noção bem acabada da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos torna-se central à responsabilização5. Para isso, dois aspectos da mudança de paradigma incorporada ao Programa de Ação da CIPD são relevantes: (1) a prioridade conferida às experiências de vida das mulheres, isto é, o entendimento de que o conteúdo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos deve ser definido pelas experiências das mulheres relativas aos serviços de saúde, às relações de gênero e a outras dinâmicas sociais, políticas e econômicas; e (2) um conceito de direitos que vai além de uma lista de “liberdades de” e “liberdades para”, desafiando as noções sociais tradicionais gênero e reprodução. Em suma, é uma concepção que vai além da taxonomia legal para descrever o modo de realização dos direitos, trazendo para a cena as relações de poder políticas, sociais, econômicas e de gênero. Uma concepção de responsabilização que acomode e alavanque a mudança de paradigma do Programa de Ação nos aproxima de sua própria realização. A mudança acontecerá quando se for além da análise convencional sobre a distância entre políticas e práticas para indagar profundamente sobre o que realmente molda as experiências reais das mulheres nos serviços de saúde, isto é, quando se “repolitizar a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos”6. Isso significa, em suma, trazer de volta à cena uma análise crítica sobre 38

os mecanismos de poder na saúde pública e nos direitos humanos. Recolocar uma análise do poder no núcleo central do campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, associada à questão da “produção da mudança” gera práticas de responsabilização - e de implementação - qualitativamente diferentes das abordagens convencionais que dominam a saúde global atualmente.

Abordagens convencionais sobre responsabilização As abordagens convencionais sobre responsabilização evitam tratar das dinâmicas de poder nos sistemas de saúde. De um lado, tem sido rotina, quase um protocolo, incluir em todas as declarações, pronunciamentos, atas de encontros, boletins de imprensa ou discursos, declarações do tipo “tornar (preencha a lacuna) responsável”, sem que se faça referência ao objeto, sujeito ou mecanismos dessa responsabilização. A responsabilização tornou-se uma “palavra da moda” vazia7,8. Em outro nível, define-se a responsabilização como uma forma eficiente de utilização de recursos, em um contexto de cortes no financiamento à saúde e da demanda governamental para que os gestores façam mais com menos. Um uso legítimo da responsabilização, mas ainda frágil, é aquele que foca quase que exclusivamente na corrupção, baseado em pressupostos que vão da defesa da eficiência à demanda por justiça. Abusos flagrantes podem ser reparados, mas continuam inalteradas as estruturas essenciais de poder que lhes dão origem. Esse artigo foca nas formas convencionais de uso da responsabilização em fóruns globais por aqueles que buscam genuinamente promover a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. No processo das conferências da ONU dos anos 90, o ativismo se organizou com base na negociação do conteúdo dos acordos intergovernamentais, com pouca atenção aos aspectos relativos à implementação. As práticas de responsabilização desenvolvidas pelas instituições de monitoramento a partir das declarações das conferências globais se constituíram em uma refinada abordagem de “exposição e denúncia”, a exemplo dos processos da CIPD +5, +10, +15 e +20 e dos relatórios sombra das ONGs. Esses esforços globais para acompanhar e divulgar o progresso dos objetivos das declarações baseiam-se no pressuposto de que constrangimento e pressão de iguais geram mudanças nas políticas, que, por sua vez, levam a mudanças nos resultados de saúde e de direitos.


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A Declaração do Milênio, que gerou os ODMs, foi adotada pelos governos no ano 2000. O desenho e o conteúdo desses objetivos - com metas estreitas voltadas para problemas específicos – facilita a mensuração do progresso, mas pouco ajudam na identificação dos caminhos para a mudança. Os esforços da comunidade internacional quanto aos compromissos do governo se basearam na fé de que metas ousadas combinadas com vontade política e recursos financeiros adequados iriam gerar progresso. Para ser justo, uma abordagem que define metas e tenta alinhar incentivos deixando para os países as decisões sobre como alcançar a meta, representa um passo à frente das abordagens colonialistas baseadas na crença de que todas as respostas estão no Norte do globo e que a imposição da cooperação técnica trará desenvolvimento para os países atrasados do sul†. Mas as técnicas de responsabilização criadas pelos ODMs, assim como os seus pressupostos orientadores dos processos de mudança, são armas frágeis na luta pela transformação que buscamos. Primeiro, há um investimento massivo para a construção da vontade política - que geralmente se resume a líderes políticos articulados por meio de uma declaração pública de compromisso cheia de sessões de fotos com celebridades. Isso se combina com esforços de boa fé para criar responsabilização. A campanha do secretário-geral Cada mulher, cada criança instituiu a Comissão de Informação e Responsabilização, mas o próprio nome já revela as crenças que sustentam a iniciativa. Assume-se que a combinação da vontade com a identificação e a divulgação dos avanços resultará em responsabilização. A fórmula de responsabilização da Comissão (“monitorar, analisar, reparar”) se baseia em resultados e não em processos - uma fórmula muito mais frágil do que alternativas como “responsabilidade, exequibilidade e prestação de contas” defendida por ativistas de direitos humanos. A “Contagem Regressiva para 2015”, iniciativa que acompanha o progresso dos ODMs 4 e 5, acolheu a formulação do Secretário Geral com desenvoltura, adaptando muito rapidamente a sua metodologia para incluir as informações específicas recomendadas pela Comissão. A Contagem Regressiva é o protótipo da abordagem de † Abordagens “baseadas em resultados” ganharam espaço na cooperação internacional em todos os setores de políticas, no apoio aos Orçamentos Gerais e em iniciativas multilaterais, como a Parceria Internacional de Saúde.

responsabilização, é muito valorizada na saúde pública, centrada no desenvolvimento de indicadores quantitativos e no investimento em coleta de dados para mensurá-los. Embora a boa prática de saúde pública faça bom uso dos dados e indicadores que daí resultam, é sem fundamento a crença de que as estatísticas por si só provocam a cascata de ações necessárias para gerar mudança - muito menos do que as intervenções baseadas em direitos. Essa abordagem de responsabilização pressupõe que a exposição e o rastreamento – dessa vez melhor e baseado em evidências sólidas e quantitativas - irão solucionar a questão. É claro que os defensores da Contagem Regressiva sabem que a mudança requer mais do que a compreensão do alcance quantitativo do problema; ela também requer uma estratégia para superá-lo. Os ODMs inspiraram esforços globais para identificar estratégias eficazes, incluindo o Projeto Milênio da ONU, o Portal de Conhecimento da Parceria para a Saúde Materna, Neonatal e Infantil, e, de certa forma, as múltiplas séries do Lancet sobre saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil. Em conjunto, essas iniciativas contribuíram de maneira extraordinária para a organização e análise de evidências em intervenções clínicas. Mas, em geral, todas utilizam a abordagem das “melhores práticas” para a implementação – na qual a qualificação das experiências como “melhor” ou “boa” depende de evidências produzidas em estudos experimentais que, quase por definição, requerem a anulação das mesmas dinâmicas de poder que são centrais para a compreensão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. Na verdade, nas abordagens experimentais os mecanismos de poder que dão forma à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos são intencionalmente “controlados” ou eliminados. Na prática, a energia, o dinheiro e o glamour produzidos por esses esforços globais de responsabilização representam apenas um frágil sopro no cotidiano das pessoas. A descriminação e a exclusão permanecem. Muitos dos serviços recomendados pelos documentos de política sequer existem nas comunidades e unidades de saúde. Onde existem, a qualidade da assistência é muitas vezes precária, com desrespeito e abusos flagrantes. Certas formas de “corrupção silenciosa” como o absenteísmo, a atuação indolente e o roubo de recursos financeiros e materiais corroem a confiança dos usuários, desestimulando-os a utilizar os serviços9. E a corrupção verdadeira também se manifesta10.

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Abordagens convencionais para a responsabilização no nível local A literatura sobre as práticas de responsabilização nos serviços públicos revela alguns dos mesmos problemas encontrados no nível global: quando os gestores de políticas se baseiam em um conceito limitado de responsabilização, as práticas daí resultantes fragilizam a implementação das políticas que, mesmo quando ocorrem de acordo com o planejado, seus “mecanismos” não necessariamente produzem mudança. Na prática, muitos mecanismos de responsabilização desenhados para que as pessoas prejudicadas possam acessá-los. Mecanismos como caixas de reclamações, investigações, litígio individual e ombudsman podem desempenhar uma função importante ao identificar reparações para prejuízos sofridos, mas eles só apenas uma parte da execução da responsabilização. Esses mecanismos individuais podem criar uma aura de sistema responsivo, mas muitas vezes não fazem sentido para os grupos menos ‘empoderados’, que são dissuadidos de utilizá-los pelos custos e riscos da manifestação de preferências ou reclamações ou mesmo por que sequer tem acesso a serviços11. As frustrações contínuas com as tentativas de reformar e melhoramento do setor público, tem reorientado a atenção de acadêmicos e ativistas para a participação da sociedade civíl2,12,13 e para o papel dos grupos organizados de cidadãos na promoção da “responsabilização social” na oferta de serviços por meio de ações que afetam a reputação e produzem custos políticos para as instituições14. Exemplos citados com frequência são os “boletins” cidadãos com opiniões sobre a qualidade do serviço, auditorias sociais e acompanhamento dos gastos públicos. Esses esforços são mais eficazes, mas apenas em algumas situações, como quando a liderança política é sensível a denúncias, os gestores dos serviço são comprometidos com a melhoria de sua reputação e os pacientes interessados em melhorar a performance clínica e a oferta de serviços baseada em direitos14,15. Mas os financiadores e executores dessas iniciativas nem sempre se baseiam em análises robustas do contexto que permitam avaliar as situações e/ou não estão em uma posição de planejar mudanças a partir dos dados produzidos pelas ações de responsabilização social produzem. Assim, as táticas de “exposição e denúncia” não necessariamente geram mudança, seja no nível local ou nacional de implementação, tal como colocado pela CIPD. De fato, duas meta-análises sobre as iniciativas de responsabilização 40

social concluíram que a suposta relação entre transparência, opinião, empoderamento e sistemas de responsabilização nem sempre ocorre. Tanto as intervenções individuais quanto sociais de responsabilização podem se tornar fins em si mesmas – ou ‘artifícios’, nas palavras de Joshi e Houtzager14, processos formais sem sentido que nada fazem para transformar um sistema injusto. Na realidade, em sua pior fase, funcionam como processos de Potemkim - manobras que criam uma aparência superficial e ilusória de serviços responsivos e, ao fazer isso, desviam o foco, mantendo inalterados os fatores que precarizam a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Parte do problema está na concepção sobre o funcionamento do sistema de saúde que está na base dessas iniciativas. A complexa interação entre os mecanismos de poder que moldam o cotidiano dos serviços de saúde é omitida nesse modelo simplista de procura e oferta, no qual o lado da oferta consiste de formuladores de políticas e gestores de serviços e o lado da procura consiste de usuários. Esse modelo deixa de fora a diversidade de interesses de formuladores de políticas e profissionais de saúde e usuários18. Não se pode supor que esses três “grupos” têm interesses homogêneos. Há aí diferenciais cruciais de poder que devem ser desagregados para discernir e explicar a multiplicidade das relações de responsabilização existentes. As questões importantes aqui são: qual a responsabilidade dos profissionais e trabalhadores da saúde que atuam na ponta do sistema? Quem se responsabiliza por eles? Por quem eles devem se responsabilizar? Os mecanismos de responsabilização privilegiam certos usuários dos serviços? A responsabilização social e os mecanismos individuais de denúncia são intervenções do “lado da procura” e as novas leis, políticas e mecanismos de execução são os pontos de entrada para intervenções do “lado da oferta”. Mudanças nesse campo podem promover responsabilização, mas não devem ser as únicas esferas de intervenção. Muitas avaliações de programa e estudos de caso lamentam-se pela lacuna existente entre as políticas e o cotidiano dos serviços, mas raramente apresentam uma crítica política do problema. Na realidade, as normas - mais do que as políticas e procedimentos - são mais decisivas para a definição do comportamento individual e da cultura organizacional. As políticas podem moldar as normas, mas podem também não exercer nenhuma influência sobre os valores e práticas. As normas informais podem ser rígidas em parte por


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que refletem as necessidades sociais e materiais das pessoas que tem como tarefa oferecer serviços públicos, como ilustrado na literatura sobre a burocracia do nível de rua. Um estudo sobre um programa comunitário de planejamento familiar no Quênia identificou que os agente comunitários não eram apenas motivados pelos objetivos do programa, mas também pelo seu desejo de aumentar o seu prestígio e respeito entre os membros da comunidade, levando a comportamentos inconsistentes com os objetivos do programa19. Outro exemplo são os casos em que o monitoramento da responsabilização é especialmente destacado, evidenciando a denúncia como a norma mais importante, como em uma etnografia de serviços de saúde em um distrito no Nepal, que identificou que “a vontade de atingir as metas não era tão grande quanto a vontade de entregar relatórios sobre as metas”20. Aqui, “o que se conta se torna o que importa, mais do que o que importa é o que conta”21.

Repensando a responsabilização: a teoria da implementação e a teoria dos sistemas podem gerar práticas mais eficazes de responsabilização? Um conjunto diferente de marcos conceituais é necessário para entender o que realmente está acontecendo nos serviços de saúde que os torna tão resistente ao tipo de mudança requerida pelo campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e para apoiar o planejamento e a implementação de mecanismos de responsabilização realmente eficazes. A teoria da implementação e a teoria dos sistemas são fontes recente e promissoras para novas abordagens, que partem da compreensão dos serviços de saúde como sistemas adaptativos complexos inseridos nas dinâmicas políticas mais amplas das sociedades nas quais se inserem. A teoria da implementação coloca o foco sobre o modo como inovações - ideias, estratégias e tecnologias recentemente introduzidas em um sistema de oferta de serviços - podem ser colocadas em prática. Para isso, parte-se de uma distinção útil entre os graus de implementação: papel, processo e performance22. A “implementação no papel” refere-se à codificação da inovação nas políticas, como a adição de um novo contraceptivo à lista de medicamentos essenciais. “Implementação no processo” é quando são colocadas em prática as mudanças necessárias ao sistema: o contraceptivo é adquirido e se torna disponível, os programas são modificados e os profissionais são capacitados.

“Implementação de performance” é quando o objetivo desejado é alcançado: os pacientes obtém o acesso ao contraceptivo e recebem aconselhamento de qualidade sobre o modo de utilização. A lógica aqui é linear, mas a operacionalização não, porque a implementação da performance tem sua própria dinâmica nos sistemas adaptativos complexos. O planejamento de sistemas, que é uma vertente da teoria dos sistemas, aponta três conceitos relevantes nessa área: contexto, resistência às políticas e emergência23,24. Embora a importância do contexto seja óbvia, é surpreendente a forma limitada como o contexto é usualmente definido - quando o é. Métodos epidemiológicos focados na mensuração de mudanças atribuíveis a uma intervenção - como, por exemplo, estudos randomizados controlados - pretendem controlar o contexto em lugar de explicá-lo. O foco nos determinantes sociais da saúde traz à cena as dinâmicas sociais e políticas, mas ainda na posição de variáveis independentes em modelos fatoriais e não como elementos que configuram o funcionamento do próprio sistema de saúde. A adaptação de metodologias de disciplinas como a economia política, etnografia e administração para aplicá-las à experiência das pessoas nos serviços de saúde pode auxiliar na identificação dos mecanismos do poder25-27. A “resistência às políticas” é um fenômeno amplamente vivenciado, mas raramente documentado na saúde. Ocorre quando o sistema reage a uma intervenção de forma a neutralizar os seus efeitos28, tal como identificado em um estudo conduzido pelo Laboratório de Pobreza do MIT sobre a implementação de um sistema de incentivos financeiros para enfermeiras para combater o absenteísmo em Rajastão na Índia. O programa, executado por uma ONG, produziu efeitos no início, mas ao final de 18 meses as enfermeiras encontraram uma forma de seguir as regras do programa continuando ausentes do trabalho29. A pequeno intervalo de tempo para o monitoramento e avaliação da maior parte das iniciativas de saúde pública dificultam a detecção da ocorrência e dos efeitos da resistência às políticas . A “emergência” é um conceito que se afasta dos modelos convencionais de saúde pública que tratam e mensuram isoladamente cada fator causal em lugar de reconhecer que o sistema é mais do que a soma de suas partes, não podendo ser reduzido a seus componentes constituintes30. A melhor maneira de alcançar a responsabilização é entendê-la como propriedade emergente de um sistema 41


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que envolve uma multiplicidade de relações “responsabilizáveis” situadas em uma cultura geral de transparência, direitos, compromisso e solidariedade. Isso requer uma perspectiva que capture a totalidade do cenário das políticas e das ações e negociações que ocorrem entre todas os sujeitos. A incapacidade ou a falta de vontade política para compreender e lidar com esse tipo de dinâmicas leva a padrões de “falhas persistentes de implementação” verificados com frequência no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos e em outras áreas da saúde global31. Por exemplo, a identificação e promoção (ou imposição) entusiasmadas das chamadas melhores práticas baseadas em evidência levou frequentemente ao “mimetismo isomórfico”: os países adotaram o formato das ações - faz-se a leitura correta dos documentos de políticas, altera-se os programas e identifica-se indicadores - mas permanecem inalteradas as práticas disfuncionais inerentes ao sistema32. De fato, as causas destas disfunções são complexas e incluem déficits de capacitação cujas raízes históricas estão no colonialismo e nas iniciativas subsequentes de modernização33. Apesar da maior no alcance de objetivos em lugar da quantificação de resultados, as iniciativas hoje hegemônicas no campo da saúde global dia pouco fazem para resolver os problemas da baixa capacitação, particularmente quando os resultados recompensados ignoram as dinâmicas de poder utilizadas para alcançá-los. Um exemplo disso é a Janani Suraksha Yojana (Iniciativa de Maternidade Segura), da Índia, que oferece incentivos monetários para mulheres e profissionais de saúde da comunidade para a realização do parto em unidades de saúde. Porém, dá-se pouca atenção à qualidade da assistência nessas unidades ou à possibilidade de que o incentivo leve ao tratamento abusivo ou a outras consequências “indesejadas”34. Na perspectiva dos direitos humanos, o foco nos resultados e a exclusão dos processos também são problemáticos. Os desenvolvimentos recentes no campo da mortalidade materna demonstram como as abordagens baseadas em direitos podem incorporar uma compreensão mais profunda sobre responsabilização. O documento “Diretrizes técnicas da aplicação de uma abordagem baseada em direitos humanos para a implementação de políticas e programas para reduzir a morbimortalidade materna evitável”, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos35, a responsabilização não é formulado meramente como sistema de garantia de execução, mas, sim, como um elemento “fundamental em 42

cada fase do processo” - do planejamento e da alocação de recursos até a implementação35. A necessidade de redirecionar a nossa atenção é óbvia. Como uma comunidade global, nós depositamos(?) nossa energia e recursos em metas globais sem uma ideia clara de o que é preciso nas linhas de frente para fazer a mudança acontecer e alcançar/atingir a implementação de performance. Sem uma estratégia clara para identificar e tratar dessas dinâmicas, a “responsabilização” pode se tornar outra arma empunhada pelos poderosos ao invés de uma ferramenta para transformar relações de poder.

Conclusões É necessário ter uma maior clareza sobre os processos de mudança, particularmente no que se refere às populações marginalizadas e excluídas, que são parte da agenda dos novos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. A experiência nos ensina que implementação e responsabilização podem ambas ser negociadas - assim como acontece com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos36. As políticas e programas implementados recentemente são muito mais diversificados do que o que está proposto nos documentos oficiais: são adaptados, subvertidos e filtrados por meio de hierarquias formais e informais de poder, nas quais os resultados são permanentemente negociados18,37,38. Para se chegar a uma boa implementação é necessário antecipar, acomodar e participar diretamente desses processos de negociação. Similarmente, a construção de um sistema do qual a responsabilização é parte essencial requer a mediação entre valores concorrentes em diferentes níveis e uma “repolitização” do processo.6 Interesses concorrentes não podem ser incluídos e negociados ignorando-se os mais importantes ou tratando-se os desafios como puramente técnicos, o que torna qualquer avanço vulnerável à resistência às políticas. O que isso significa para ativistas e gestores? A responsabilização precisa ser construída a partir do cotidiano dos serviços com novos conceitos e ferramentas que ajudem a definir as mudanças. A reorientação aqui proposta baseia-se em alguma das tendências emergentes sobre desenvolvimento, saúde global e avaliação de programas que enfatizam as expressões do poder e as experiências vividas pelas pessoas nos serviços de saúde. Métodos antropológicos como observação participativa, por exemplo, não apenas são úteis por si mesmos, mas também podem ser combinados


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de forma estratégica com os métodos quantitativos utilizados nas pesquisas clínicas39. As abordagens sobre estratégias de desenvolvimento, como a “Adaptação interativa orientada por problemas” de Andrews et al, se afasta dos modelos hierarquizados para considerar o contexto de forma sistêmica, antecipando a resistência a políticas e envolvendo o máximo possível de sujeitos em processos contínuos e consistentes de identificação, correção e aprendizagem40. A avaliação realista, entre outras abordagens teóricas, inovam ao reconhecer a importância do contexto e ao elucidar os mecanismos reais de mudança, em lugar de apenas detectar a associação estatística entre a exposição a uma intervenção e um resultado desejado41. O uso regular das referências da teoria da mudança, tal como proposto por Klugman para o ativismo eficaz para a justiça social, garante a atenção para os elementos essenciais dos processos de mudança42. Por fim, educadores ativistas desenvolveram modelos, tais como o cubo de poder de Gaventa ou as tipologias de poder de VeneKlasen, para guiar suas próprias as decisões sobre as demandas e para o exercício construtivo do poder43,44. Essas técnicas não são uma resposta, são apenas ferramentas para guiar investigadores, planejadores, gestores ou ativistas na aplicação sistemática do que é basicamente uma escolha política: trazer os mecanismos de poder de volta para o núcleo do entendimento sobre os processos de

mudança - de modo a fundamentar as ações no campo da saúde pública e dos direitos humanos. Não devemos ter a ilusão de que a “participação” ou “a negociação na base” possam por si só superar os diferenciais de poder existentes na linha de frente dos serviços. Na verdade, esses processos podem mesmo gerar ou reproduzir exclusões. Mas a utilização atenta dessas ferramentas fundamentada na abordagem do conhecimento e da agência dos atores dentro do sistema de saúde apresenta potencial para gerar mudança. E o campo está aberto: se essa perspectiva for adotada pelas pessoas influentes na academia, na cooperação ao desenvolvimento e no planejamento de políticas e programas haverá espaço e apoio para novas e criativas metodologias. Isso pode significar um pensamento novo e criativo sobre as principais medidas a serem acompanhadas no monitoramento global dos próximos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Isso também significa que iniciativas globais como o Grupo Especialista de Análise Independente em Informação e Responsabilização para a Saúde de Mulheres e Crianças, que demandam serviços de saúde voltados para pessoas (e não para intervenções), podem expandir seu foco para além dos níveis global e nacional, destacando as diferentes dinâmicas que operam no nível local para garantir acesso e igualdade nos serviços.

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Résumé Il existe une divergence inquiétante entre la manière dont les problèmes et les solutions en matière de santé et droits sexuels et génésiques sont formulés dans le plaidoyer au niveau mondial, et la réalité complexe que connaissent les individus dans les services de santé sur le terrain. Une analyse des approches de l’obligation de rendre compte utilisées dans le plaidoyer à ces différents niveaux met en lumière les hypothèses en jeu sur la manière dont le changement se produit. L’article argumente en faveur d’une approche renforcée de la responsabilisation qui commence avec la dynamique du pouvoir en première ligne, là où les individus rencontrent les prestataires de soins et les institutions. Les approches conventionnelles de l’obligation de rendre compte évitent d’aborder ces dynamiques. Beaucoup d’activités de responsabilisation n’aboutissent donc pas à un changement transformateur. Les sciences de la mise en oeuvre et les sciences des systèmes sont des sources prometteuses pour de nouvelles approches, à commencer par la compréhension des systèmes de santé comme structures complexes capables de s’adapter et ancrées dans la dynamique politique plus large de leur société. En empruntant des idées dans des disciplines telles que l’économie politique, l’ethnographie et la gestion du changement organisationnel, et en les appliquant avec créativité à l’expérience des individus dans les systèmes de santé, on peut commencer à mettre à jour et traiter les rouages du pouvoir, ce qui accroîtra la responsabilité face à ceux dont la santé et les droits sont en jeu, et déclenchera un véritable changement.

Resumen Existe una preocupante divergencia entre la manera en que los problemas y las soluciones relacionados con la salud y los derechos sexuales y reproductivos son planteados en el área de promoción y defensa a nivel mundial, y la compleja realidad que las personas presencian en los servicios de salud en el terreno. Un análisis de enfoques en responsabilidad utilizados en actividades de promoción y defensa en estos diferentes niveles destaca las diferentes suposiciones en juego en cuanto a cómo suceden los cambios. Este artículo arguye a favor de un enfoque revigorizado en responsabilidad, que empieza con la dinámica de poder en primera línea, donde las personas encuentran a los prestadores de servicios y a las instituciones. Los enfoques convencionales en responsabilidad evitan abordar esta dinámica; por consiguiente, muchos esfuerzos por imputar la responsabilidad no producen cambios transformativos. La ciencia de implementación y la ciencia de sistemas son fuentes prometedoras para nuevos enfoques, comenzando por entender los sistemas de salud como sistemas adaptativos complejos arraigados en la dinámica política más amplia de la sociedad. Al adquirir conocimientos de disciplinas como la economía política, etnografía y gestión del cambio organizacional –y al aplicarlos de manera creativa a la experiencia de las personas en los sistemas de salud– se puede empezar a revelar y abordar el funcionamiento del poder y agudizar la responsabilidad hacia las personas cuya salud y cuyos derechos están en juego y generar cambios significativos.

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Incorporando a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos a uma perspectiva transformadora de desenvolvimento: lições extraídas das metas e indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) Alicia Ely Yamina, Vanessa M Boulangerb a Professora de Saúde Global, Escola de Saúde Pública de Harvard, Diretora do Programa de Direito à Saúde de Mulheres e Crianças do Centro de Saúde e Direitos Humanos François-Xavier Bagnoud (FXB), Universidade de Harvard, Boston, MA, EUA. b Coordenadora do Programa de Direito à Saúde de Mulheres e Crianças do Centro FXB, Universidade de Harvard, Boston, MA, EUA.

Resumo: Esse artigo explora as consequências esperadas e não esperadas da escolha do ODM 5 – junto com suas metas e indicadores - como um objetivo global, ampliando a análise e situando-a no contexto do modelo de desenvolvimento proposto pelos ODMs. Na década passada, à medida que os ODMs ocuparam o centro do palco do desenvolvimento e à medida em que evoluía a sua aplicação, os objetivos foram inapropriadamente convertidos em metas nacionais de planejamento. Essa conversão foi particularmente evidente no caso do ODM 5, ao reduzir o escopo de políticas e programas e produzir um enorme impacto no discurso sobre o desenvolvimento, reestruturando o campo de ação em termos de organização e disseminação de conhecimento, em uma demonstração clara da presença de valores normativos no processo de definição de metas e indicadores, que está longe de ser neutro. Pensando adiante, portanto, não parece adequado propor um quadro para os ODM+ baseado nessa mesma estrutura. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos devem ser reinseridos no debate global, utilizando-se o desenvolvimento para empoderar mulheres e populações marginalizadas e para combater desigualdades estruturais, o que é fundamental para mudanças sociais sustentáveis. Um novo marco referencial para o desenvolvimento deve incluir uma forte narrativa de transformação social na qual as metas e indicadores associados aos objetivos certamente cumprem um papel, mas não dominam nem restringem os objetivos mais amplos de fazer avançar a justiça social, política e de gênero. Palavra chave: Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, saúde sexual e reprodutiva, direitos humanos, desenvolvimento humano, programas e políticas de saúde Já é bem conhecida a história da redução dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) ao campo relativamente apolítico da saúde materna, reduzindo a ampla agenda da saúde e direitos sexuais e reprodutivos estabelecida durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) e a Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres (Beijing)1-5. Após as primeiras incursões iniciadas em Viena em 1993, onde os direitos das mulheres foram declarados direitos humanos, o movimento das mulheres alcançou um sucesso extraordinário, e até mesmo inédito, avançando a agenda progressiva na CIPD e usando esse avanço como base para construir uma agenda ampla na Conferência em Beijing1,2,6,7. A revolta imediata gerada por esses avanços evidenciou a ferocidade da contestação contra o direito básico das mulheres de controlarem seus próprios corpos e transformarem suas vidas3-5. Consequentemente, a Declaração do Milênio, adotada por 189 Membros da ONU e frequentemente descrita como um documento

“centrado nas pessoas” com o objetivo de incorporar questões sobre o desenvolvimento humano, não continha uma única referência à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos8-9. Em contrapartida, os ODMs, construídos por meio de um processo tecnocrático e hierarquizado como um guia de implementação da Declaração do Milênio, incluíam apenas um Objetivo relacionado à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos - o ODM 5, que é um apelo para a melhoria da saúde materna4,5,10. Por outro lado, são menos conhecidas as consequências normativas e empíricas da escolha do objetivos, metas e indicadores do ODM 5 e a relação entre os acontecimentos envolvendo a ODM 5 e a perspectiva de desenvolvimento da agenda do Milênio como um todo. Desde o seu estabelecimento, em 2001, os ODMs tornaram-se o modelo internacional para a cooperação global11. Apesar concebidos para refletir o empenho da Declaração do Milênio com a erradicação da pobreza mundial, os ODMs terminaram por contribuir apenas com

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42727-1

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


AE Yamin, VM Boulanger. / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 46-57

uma pequena dose de desenvolvimento humano à contínua organização neoliberal do mundo12-13. Além disso, o reducionismo dos ODMs e, mais especificamente, a forma como os objetivos, metas e indicadores dominaram a agenda, produziram um impacto complicado sobre o discurso e as práticas de desenvolvimento, não apenas em relação à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, mas também no que diz respeito a outras questões sociais complexas. Pensar o lugar da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos nos marcos futuros do desenvolvimento, requer que se considere não apenas as aspirações políticas de progresso global, mas também as implicações acarretadas pela estruturação da agenda de desenvolvimento em torno de metas, como aconteceu com os ODMs. Esse artigo explora as consequências intencionais e não intencionais relacionadas à escolha do ODM 5 como objetivo global, juntamente com o apelo da Meta 5A para a redução das taxas de mortalidade materna (TMM) em 75% em relação às taxas de 1990 e a adição tardia da Meta 5B e seus indicadores sobre o acesso universal à saúde reprodutiva. A fim de situar as consequências dos ODMs para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos em um contexto mais amplo, utilizamos dados de um estudo do Power of Numbers Project14. Trataremos primeiramente do contexto político no qual os ODMs foram concebidos e da conversão inadequada dos objetivos globais em metas de planejamento nacionais. No caso da ODM 5, a escolha da meta e do indicador principal – a razão de mortalidade materna - agravou as consequências negativas dessa conversão. Em seguida, exploramos as ambiguidades em torno do aclamado sucesso dos ODMs em atrair atenção e investimentos para a “saúde reprodutiva”, destacando que o aumento dos investimentos foi direcionado apenas a um subgrupo de problemas, enquanto outras áreas cruciais foram deliberadamente excluídas ou ignoradas, negligenciando-se a questão da equidade. Serão destacadas, então, as consequências não intencionais da ODM 5 em termos dos seus efeitos sobre políticas/planejamento e conhecimento/discurso, examinando-se também a ampla tecnocracia e o planejamento limitado que emergiram como parte dos esforços para alcançar os resultados do ODM 5 e a mudança de um discurso sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos para um discurso sobre saúde materna neonatal e infantil (PMNCH). Finalmente, consideraremos, a partir da perspectiva dos direitos humanos, as lições retiradas das metas e indicadores do ODM 5,

e dos ODMs em geral, que devem guiar as considerações sobre qualquer agenda de desenvolvimento futura e os debates atuais sobre a definição de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, dado que os ODMs expiram em 2015.

Processo de construção e aplicação dos ODMs: implicações do ODM 5 Os ODMs introduziram um novo modelo de desenvolvimento que de acordo com o consenso geral tem alcançado grande sucesso11-15. Esse modelo apresenta uma intricada estrutura de objetivos, metas e indicadores, na qual os objetivos foram concebidos para serem normativos e ambiciosos, as metas deveriam atribuir fins quantitativos e prazos a cada objetivo e os indicadores representariam os dados a serem usados para monitorar o avanço das metas. Os objetivos divulgados junto com a Declaração do Milênio em 2000 foram convertidos em ODMs e publicados pela primeira vez em 2001 no documento “Road Map”, inicialmente concebido apenas para facilitar os relatórios de progresso7. Os ODMs foram projetados como objetivos globais para sinalizar a prioridade conferida a áreas negligenciadas11. John Ruggie, o maior responsável pela construção da Declaração do Milênio, alega que a lista de objetivos precisava ser simples e marcante para atrair atenção e consenso16. Michael Doyle, autor do documento “Road Map”, pretendia reproduzir o mesmo impacto em investimentos alcançado pelos países da OCDE com as metas atreladas a prazos dos Objetivos Internacionais de Desenvolvimento de 199616. A simplicidade e o reducionismo dos ODMs eram vistos como fundamentais para alavancar esses objetivos ao patamar de instrumentos globais de comunicação. Tratava-se, no entanto, de objetivos completamente inapropriados para a complexidade do planejamento no nível nacional. Mas os ODMs foram rapidamente aplicados exatamente nesse contexto, isto é, como um manual técnico de alocação/distribuição de recursos e de elaboração de políticas16-17. Na realidade, à medida que, na última década, os ODMs ocupavam o centro do palco de debates sobre desenvolvimento, foram também observadas mudanças na sua interpretação e utilização. O relatório do Secretario Geral da ONU de 2005, “Por uma maior liberdade: a caminho do desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos”, discute explicitamente o papel dos objetivos como metas de planejamento nacional18. O relatório “Investindo em desenvolvimento”, 47


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também publicado em 2005, desviou ainda mais a finalidade dos ODMs ao definir processos a nível nacional e recomendações para se alcançar “as metas quantitativas previstas pelos ODMs”19. Alguns países desenvolveram suas próprias metas de planejamento e passaram por um processo de adaptação nacional dos ODMs20. No entanto, especialmente em países altamente dependentes da ajuda externa, o que inclui praticamente todos os países com altas taxas de morbimortalidade materna, onde os doadores apresentaram resistência à adaptação e apropriação nacional, os objetivos globais deixaram de ser vistos como medidas de referência do progresso alcançado e passaram a conduzir o planejamento das políticas21,22. A Razão de Mortalidade Materna (RMM) é um dos principais indicadores de saúde materna, o que pode ser adequado para atrair a atenção para uma prioridade há muito tempo negligenciada, mas é um indicador inadequado para avaliar a efetividade de estratégias e intervenções no nível nacional. Consequentemente, a conversão das metas - de instrumentos globais de mobilização para instrumentos nacionais de planejamento - ocorreu principalmente a expensas do ODM 5. Devido à falta de investimento em sistemas de informação de eventos vitais, a produção das estimativas dos resultados dependiam grandemente da modelagem estatística. Devido à baixa qualidade e disponibilidade de dados, assim como à baixa incidência de ocorrências no nível populacional, grande parte dessas estimativas apresentam grandes intervalos de confiança, gerando resultados incompletos e dificultando a interpretação da variação de tendências. Mesmo naquela época, os estatísticos envolvidos na seleção dos indicadores para os ODMs reconheceram a necessidade de complementar as TMMs com indicadores de processo para avaliar o ODM 5ª23,24. A assistência obstétrica de emergência, reconhecida mundialmente como fundamental para salvar a vida das mulheres e o único indicador principal de saúde materna ligado ao funcionamento dos serviços de saúde, foi descartada, dando lugar à assistência qualificada durante o parto, em grande medida pela ausência de dados que respaldassem os argumentos a favor desse indicador5. Na maioria dos países com altas taxas de morbimortalidade materna, dados completos sobre a assistência obstétrica de emergência ainda não são coletados no nível nacional. Entretanto, a assistência qualificada durante o parto também é problemática como indicador devido aos métodos de pesquisa usados para registrar as taxas no nível nacional, o que dificulta a 48

comparação entre diferentes contextos25. Na ausência de registros essenciais e adequados, muitos países com altas taxas contaram apenas com métodos menos diretos e menos efetivos para monitorar a mortalidade materna. O Plano Nacional para Acelerar a Redução da Mortalidade Materna, Neonatal e Infantil, da Tanzânia, usou dados do Sistema de Informações de Saúde, dos relatórios anuais de Saúde Reprodutiva e da Saúde Infantil e do IDH, além de outras pesquisas locais e de instituições de saúde, a fim de monitorar as taxas de morbimortalidade no país. As muitas falhas dos dados são reconhecidas abertamente, inclusive aquelas referentes ao “registro incompleto e incorreto, definição adequada do contexto, gestão de dados, fonte de informação e métodos de previsão”26. Nem as RMMs nem a assistência qualificada durante o parto incluem as taxas de fecundidade ou as necessidades de saúde sexual e reprodutiva. A Meta 5B foi incorporada apenas em 2005, após um intenso lobby encabeçado pelo UNFPA e outras instituições, e seus indicadores só foram introduzidos em 2007. A Meta 5B preconiza o “acesso universal à saúde reprodutiva até 2015” e quatro indicadores da cobertura dos serviços de saúde (uso de contraceptivos, gravidez na adolescência, cobertura do pré-natal e necessidades não atendidas de planejamento familiar) foram incluídos na lista oficial dos ODMs27,28. A combinação de indicadores pode ser vista como um esforço em direção à percepção da autonomia das mulheres no controle da sua vida reprodutiva, mas ainda são problemáticos. O indicador “Necessidades não atendidas de planejamento familiar”, por exemplo, baseia-se em pesquisas realizadas com mulheres casadas, excluindo meninas e mulheres que não estão em um relacionamento29. O ODM 5B foi adotado apesar da forte oposição política do governo Bush e de outros governos, e recebeu pouca prioridade até 2012, quando a questão da contracepção, ou do “planejamento familiar”*, ressurgiu no debate global30.

Atraindo investimento e atenção: questões em destaque e questões negligenciadas O objetivo amplo dos ODMs era atrair investimentos globais e não há dúvidas que a cooperação * Essa terminologia é problemática já que muitas pessoas tem

necessidades contraceptivas fora do contexto de “planejar uma família”. Usamos esse termo aqui apenas em referência à Cúpula de Londres sobre o Planejamento Familiar de 2012 e à Iniciativa de Planejamento Familiar de 2010.


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internacional para a saúde aumentou vertiginosamente durante esse período. Em 2008, a saúde materna, neonatal e infantil (SMNI) recebeu apenas metade dos investimentos destinados ao HIV/Aids, mas os recursos da cooperação oficial ao desenvolvimento (COD) oficial para as ações em SMNI passaram de 2.56 bilhões de dólares em 2003 para 6.48 bilhões em 20103133. A COD para atividades ligadas à SMNI nos 74 países prioritários aumentou de 1.96 bilhões de dólares em 2003 para 3.46 bilhões em 2006 e para 4.99 bilhões em 2010. Dos 3.46 bilhões de dólares desembolsados em 2006 para SMNI nestes países, 68% foram gastos em saúde infantil e 32% em saúde materna e neonatal31. Entre 2003 e 2010, a COD para a “saúde reprodutiva” (assistência ao pré-natal, parto e puerpério, infertilidade, aborto inseguro e ações pela maternidade segura) passou de 305 para 863 milhões de dólares (Gráfico 1)34. O aumento significativo de recursos para o setor saúde, de 0,144 bilhões de dólares em 2000 para 1.234 bilhões em 2009, porém, ainda não alcançou o planejamento e os programas específicos e verticais35. Gradualmente, algumas áreas da saúde reprodutiva receberam maior atenção e financiamento durante a vigência dos ODMs, mas esse não foi o caso, pelo menos até 2010, de contracepção, ou “planejamento familiar”. De fato, entre 2000 e 2007, Nguyen et al. declarou que os aportes financeiros para o planejamento familiar foram reduzidos em termos absolutos de 518 para 462 milhões e, em termos proporcionais, de 30% para 5% do

total da “assistência à população” (contraceptivos; serviços básicos de saúde reprodutiva, que inclui saúde materna, aborto, informação, educação e comunicação sobre saúde reprodutiva, entre outros serviços; infecções sexualmente transmissíveis, HIV/AIDS; e pesquisa básica, dados e análises das políticas de população e desenvolvimento)36. A ausência de investimentos adequados em contracepção, entretanto, não pode ser inteiramente atribuída à falta de atenção dada pelos ODMs à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos37-38. A retirada do financiamento da UNFPA por parte do governo americano, por exemplo, também contribuiu de maneira drástica com essa situação. A ausência de doadores adequados e, consequentemente, de financiamento para a contracepção foi devastadora especialmente no que se refere aos seus efeitos para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres39. Um estudo de 2013, por exemplo, que analisou a prevalência de uso de contraceptivos de 1990 a 2013, concluiu que dos 26 países com as taxas mais baixas de prevalência em 1990 (menos de 10%), o crescimento absoluto dessa taxa até 2010 foi menor do que 10% em 16 países africanos. Em 2010, as necessidades não atendidas de planejamento familiar na África permaneciam praticamente no mesmo patamar de 199039. A Cúpula de Planejamento Familiar de Londres (2012) comprometeu-se com novos planos substanciais de ajuda, inclusive por parte da Fundação Bill e Melinda Gates. Entretanto, o documento final da Conferência da ONU de Desenvolvimento

Gráfico 1: Total dos compromissos oficiais bilaterais: atenção básica, HIV/Aids, saúde reprodutiva, planejamento familiar 6000

Em milhões de dólares 2010

5000

Atenção básica Saúde reprodutiva Controle do DST e do HIV/AIDS Planejamento familiar

4000 3000 2000 1000 0 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009

49


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Sustentável, a Rio+20, assim como o discurso governamental e acadêmico, sugerem que o real motivo para o retorno dos debates sobre “planejamento familiar” e uso de contraceptivos está ligado ao “desenvolvimento sustentável” e ao crescimento econômico e não às questões de saúde e direitos sexuais e reprodutivos40-43. Outras questões, como o fato de 13% das mortes maternas no contexto global poderem ser combatidas com acesso a serviços de aborto seguro e acessíveis, foram explicitamente excluídas do financiamento destinado à redução da mortalidade materna5-44. Seria correto afirmar que a responsabilidade por essa exclusão está na influência dos doadores, a visão religiosa conservadora contra o aborto e a pouca disposição ou impossibilidade de muitos governos do sul para desafiar essas forças45. Há ganhos significativos relativos ao direito ao aborto graças à ação das instituições internacionais de monitoramento dos direitos humanos e eixos de resistência no campo jurídico e das mobilização social, mas, certamente também há alguns retrocessos38,46. Além disso, deve-se destacar muitas outras questões tratadas pela CIPD e em Beijing que transcendem as intervenções do setor de saúde como, por exemplo, a violência de gênero, e que não foram incluídas na agenda ODM, sendo afastadas do centro dos debates globais48. Foi apenas em 2003 que a Comissão sobre o Status das Mulheres, em conjunto com o Painel de Alto Nível sobre a Agenda de Desenvolvimento pós-2015 e o Secretário Geral da ONU, apresentou relatórios que destacavam firmemente a necessidade de se tratar a violência de gênero como violação dos direitos humanos e de tornar a sua erradicação uma prioridade no contexto do desenvolvimento global48-50.

Avanços agregados e desigualdades persistentes O propalado sucesso do ODM em reduzir a mortalidade materna em 47% - de 543,000 para 287,00051 - também encobre desigualdades e possíveis padrões de discriminação que são fundamentais do ponto de vista da perspectiva dos direitos humanos. Países que alcançaram progressos consideráveis em reduzir as desigualdades na saúde reprodutiva, como a Tailândia, o fizeram através de investimentos substanciais e contínuos nos serviços de saúde52. Mas uma vez que as metas dos ODM têm um foco em avanços agregados e não nas desigualdades, muitos países, visando uma boa avaliação, optaram por não abordar populações marginalizadas ou remotas, focando suas 50

ações em grandes áreas urbanas e periurbanas com o objetivo de alcançar o melhor custo-benefício em termos de investimentos na saúde e na reprodução53-54. De maneira geral, os ODMs foram criticados pelo foco em avanços agregados, sem considerar as questões de equidade. O Power of Numbers Project identificou negligências quanto à equidade em questões relacionadas à água e saneamento e à educação e sobrevivência infantil. Unterhalter, por exemplo, argumenta que a falha em abordar a equidade no acesso ao ensino básico (objetivo 2), perpetua a marginalização de crianças que pertencem à classes socioeconômicas mais baixas e a grupos étnicos subordinados, que, em geral, vivem em áreas não alcançadas pelos programas de desenvolvimento social55. A desagregação dos dados é vital para se detectar as disparidades nacionais e entre países, identificando-se possíveis padrões de discriminação entre as populações. No caso do ODM 5, a desagregação das RMMs exacerba os problemas discutidos acima relacionados à interpretação dos dados devido à pequena dimensão da amostra e ao grande intervalo de confiança23. Assim, a narrativa otimista da Índia sobre os declínios da RMM, por exemplo, perde força quando se analisa cada estado de forma separada ou a renda de cada área, a despeito da disponibilidade e qualidade dos dados56. Apesar disso, se a escolha das RMMs involuntariamente encobriu os impactos dos ODMs na igualdade, eles foram alarmantemente evidenciados por meio dos dados relativos à assistência ao parto de qualidade. Um estudo comparativo publicado em 2012 contendo 12 intervenções SMNI em 54 países, demonstrou que a assistência ao parto de qualidade foi o indicador que melhor refletia a disparidade, estando sujeito à variações significativas associadas à distribuição geográfica e à renda. Nos 54 países analisados, a proporção de partos assistidos com qualidade foi de 54%, nas zonas mais pobres, porém, essa proporção foi de apenas 32% e nas zonas com rendas mais altas chegava à 84%57.

Programas verticais, objetivos de curto prazo e nichos programáticos Várias análises sobre o progresso dos ODMs, a partir do Road Map, demonstram que foram poucos os impactos positivos nos serviços destinados às mulheres58. Uma das razões para isso é o planejamento vertical e a ausência de programas nacionais multissetoriais que, invariavelmente, obstaculizam os avanços em direção a uma abordagem


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mais ampla dos serviços de saúde materna e neonatal e de saúde sexual e reprodutiva58. A própria estrutura dos ODMs, focada em resultados quantificáveis, encoraja o planejamento vertical e de curto prazo. Conexões entre os ODMs não foram previstas, nem mesmo entre os da área da saúde. No caso do HIV/Aids, os movimentos defenderam a retirada deste tema da área de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, alegando “excepcionalidade” e ameaças à segurança nacional, o que também ocasionou enormes consequências para o financiamento e planejamento durante os processos de elaboração dos ODMs59-61. O foco nos resultados de curto prazo, e não em mudanças sistemáticas, pode ter exacerbado uma tendência do financiamento para a saúde associada ao apelo e à promessa de “maior responsabilização”, dominada pelas abordagens focadas na “gestão orientada para resultados” e na relação “custo-beneficio”62. Os Documentos de Estratégias para a Redução da Pobreza do Banco Mundial promoveram os financiamentos focados em resultados e evidências sugerem que após a introdução dos ODMs, muitos desses documentos foram simplesmente modificados para incluir as metas dos ODM como objetivos consensuais e metas de planejamento, sem qualquer adaptação às condições e prioridades locais63. Em lugar de questões macroeconômicas abrangentes como, por exemplo, o acesso das mulheres a recursos e ao trabalho formal, o que ganhou espaço na última década foram medidas paliativas como transferência de renda e distribuição de cupons†, especialmente no campo da saúde reprodutiva. De fato, essas ações apenas oferecem às mulheres recursos imediatos para uma “escolha” pré-selecionada quanto à assistência à saúde reprodutiva, em lugar de promover o empoderamento econômico, necessário para a igualdade de gênero e para produzir impactos sobre a saúde sexual e reprodutiva. Apesar da popularidade desses programas entre as agências de cooperação e as organizações internacionais, com algumas exceções na América Latina, há alguns estudos bastante críticos a esses programas utilizando-se diferentes metodologias64. Os ODMs baseiam-se em uma noção de desenvolvimento focada em intervenções especificas e †

Nota da editora brasileira: os programas de cupom do Banco Mundial tem sido implementados especialmente na África e na Ásia e consistem na distribuição de um ‘pacote’ de cupons de desconto para o acesso a serviços de saúde reprodutiva, com o objetivo de ampliar o acesso das mulheres aos serviços e criar mercado para os setores público e privado de saúde.

resultados concretos, contrastando claramente os documentos das conferências internacionais dos anos 90 que reconhecem a interdependência dos avanços em diferentes campos sociais e econômicos e a necessidade de dar relevância à liberdade civil e política. Essas conferências foram marcantes exatamente pela sua abordagem interssetorial1,2,6. Não só a CIPD e a Conferência de Beijing, mas a Cúpula Mundial das Crianças (Nova Iorque), a Conferência de Educação de Jomtien, ambas em 1990, a ECO-92 no Rio, a Cúpula Social Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhagem, 1994), a Cúpula Mundial da Fome (Roma, 1996) e a Conferência sobre Assentamentos Humanos (Istambul, 1996) também reconheceram explicitamente a natureza intercultural das questões sociais complexas que abordaram e quase todas destacaram a importância da igualdade de gênero para o desenvolvimento (essa questão acabou sendo reduzida ao ODM 3, avaliado por meio da igualdade de gênero na educação e só posteriormente é que foram incluídas medidas de avaliação da participação política das mulheres). Apesar dos ODMs pretenderem expressar o modelo de desenvolvimento “centrado nas pessoas” presente na Declaração do Milênio, na realidade acabaram representando um retorno às abordagens restritas de desenvolvimento dos anos 80, nas quais saúde e educação eram vistas como necessidades básicas e não como direitos62. Segundo o Power of Numbers Project, o ODM 5 não foi a única área afetada por essa mudança no modelo de desenvolvimento. Ao analisar o ODM 1 (sobre a fome), Fukuda-Parr e Orr demonstram que os ODMs incentivaram medidas de distribuição de alimentos e suplementos nutricionais para alcançar resultados de curto prazo, em lugar de propor as medidas estruturais propostas pela Conferência Mundial sobre a Fome (1996), que tratou a segurança alimentar como direito humano65. De maneira similar, Unterhalter demonstra que o ODM da educação reduziu a amplitude da agenda “Educação para todos”, aprovada em Jomtien, à educação básica universal, excluindo as questões relativas à igualdade, qualidade e gênero, entre outras, e substituindo-as por resultados quantificáveis de curto prazo55. Cohen aponta que o Objetivo 7 (Meta 7D - alcançar melhorias significativas na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de favelas) reduziu os objetivos econômicos, sociais, de gestão e do meio-ambiente consensuados na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (1996) ao cálculo do número 51


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de casas e banheiros, fracassando redondamente em abordar os desafios estruturais decorrentes da urbanização, como a mudança climática, o crescimento econômico e a geração de empregos66. Sen e Mukherjee destacaram que os ODMs trataram apenas de um dos 13 pontos de ação pela igualdade de gênero propostos pela Conferência de Beijing67.

Da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos para a saúde materna, neonatal e infantil? Os ODMs não apenas promoveram o reducionismo das políticas e do planejamento, mas também produziram um enorme impacto no debate sobre o desenvolvimento, claramente evidenciado pelo ODM 5, que impulsionou uma reestruturação do campo em termos de investimentos, políticas, planejamento, organização e disseminação do conhecimento. Em 2005, quando os ODMs já ditavam as políticas de cooperação internacional, havia também a compreensão crescente de que, para se alcançar os ODMs 4 e 5, seria contraproducente ampliar os esforços ligados à SMNI, superdimensionados pela própria estrutura dos ODMs19. Uma das principais iniciativas para lidar com essa fragmentação foi a Parceria para a Saúde Materna, Neonatal e Infantil e a abordagem do “continuum da assistência”, que tinha como objetivo aproximar as comunidades de pesquisa e de prática. Esse modelo não era novidade, mas acabou por aproximar unidades de saúde de diferentes níveis, assim como fortaleceu os vínculos entre as intervenções antes e durante a gravidez e as intervenções do pós-parto até o inicio da infância. Ainda que esse modelo não tenha corrigido a fragmentação no nível nacional, em alguns países altamente dependentes da ajuda externa a Parceria para Saúde Materna, Neonatal e Infantil foi um instrumento importante para consolidar essa abordagem como o caminho a ser seguido na Estratégia Global sobre a Saúde das Mulheres e Crianças do Secretário Geral da ONU (2010)68. Ao destacar o papel da mulher como mães, a abordagem do continuum da assistência refletiu e também contribuiu para a mudança significativa dos ODMs, que colocou no centro da agenda o papel da mulher como mãe e cuidadora de crianças e não como cidadã autônoma e sujeito de direitos. Essa foi a maior mudança na concepção da saúde e direitos sexuais e reprodutivos trazida pela CIPD, e depois reafirmada em Beijing, reconhecendo as mulheres como propulsoras da mudança social e 52

sujeitos de direitos, demandando ações multissetoriais que vão além do setor saúde e envolvem o ciclo completo de vida da mulher, não se limitando à gravidez. Essa primeira agenda visava modificar as relações de poder no nível macro, isto é, os modelos econômicos que produzem a feminização da pobreza, indo até os níveis micro da violência nas relações íntimas – e, por isso, atraiu uma forte oposição política69. O foco na saúde materna excluiu do discurso hegemônico o debate sobre o lugar social das mulheres e muitas outras questões - como a violência de gênero e as diferentes expressões da identidade de gênero – também desapareceram das pesquisas e dos debates. Isso se refletiu nos programas de algumas das principais conferências mundiais desse período, como as Conferências sobre Parto e Saúde Materna, que receberam milhões de dólares e atraíram atenção com e edição especial do periódico Lancet, e terminou por também contribuir para essa mudança. Apesar desses desdobramentos, é importantíssimo destacar que os movimentos de mulheres do campo da saúde continuaram pressionando e defendendo uma agenda ampla durante os anos 2000s, como foi evidenciado pela incorporação do ODM 5B - apesar da enorme resistência política -, pela defesa dos paradigmas da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos nos contextos nacionais e internacional e pelo encontro de Langkawi em 2010. Recentemente, a construção de redes de ativistas de saúde e direitos sexuais e reprodutivos para a agenda de desenvolvimento pós-2015 e o documento do Consenso de Montevidéu, que surgiu da análise regional da CIPD+20 na America Latina, representam indicadores promissores de um movimento político firme em relação à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos no contexto do desenvolvimento15,47,49,69,70.

Implicações para a elaboração da próxima agenda de desenvolvimento Atualmente, a atenção mundial volta-se para a elaboração da agenda de desenvolvimento pós-2015, que incluirá um novo conjunto de objetivos – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e outros-, que também envolverão metas e indicadores42,49. Ativistas da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos continuam a demandar a incorporação das questões mais abrangentes na agenda pós-2015, de modo articulado com o processo da CIPD+20. Entretanto, pouca atenção tem sido dada à estrutura desse futuro marco do desenvolvimento


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e suas implicações para a saúde e para os direitos sexuais e reprodutivos. A análise do ODM 5 e os resultados do Power of Numbers Project sugerem que se deve trazer à cena os dilemas ligados à elaboração de objetivos e metas derivados dos critérios usados na concepção dos ODMs.

Estipulando objetivos universais e interrelacionados É absolutamente essencial que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos estejam presentes em todos os objetivos e conectados ao gênero e à justiça econômica no futuro marco referencial para o desenvolvimento. Saúde e direitos sexuais e reprodutivos são relevantes para muitos dos prováveis objetivos da agenda pós-2015 de desenvolvimento: não apenas no campo da saúde, mas também para os objetivos que se referem ao emprego (e às atividades não remuneradas exercidas por mulheres), à educação, nutrição e segurança alimentar, governança democrática, mudanças climáticas, acesso à água e ao saneamento. Saúde e direitos sexuais e reprodutivos estão essencialmente ligados à pobreza e às desigualdades, especialmente à desigualdade de gênero. Além disso, a interrelação entre todos os direitos deve ser contemplada por todos os objetivos. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos também ilustram a importância de um conjunto universal de objetivos71. Questões como a violência de gênero afetam países com diferentes níveis de desenvolvimento. Além disso, o acesso universal à informação ampla, integrada e de qualidade sobre saúde sexual e reprodutiva, à educação e à serviços também revelam as disparidades existentes entre países e no interior dos mesmos. Em um estudo para o Power of Numbers Project, Sumner e Gentilini destacam que 72% da população pobre mundial vive em países de renda média, o que demonstra a necessidade urgente de abordar a igualdade e os padrões nacionais de discriminação na futura agenda para o desenvolvimento72.

Traçando metas diferentes Um lição importante a ser retirada dos ODMs é a necessidade da implementação gradual de metas referentes a cada nível de desenvolvimento, como feito anteriormente nas Conferências das Nações Unidas, evidenciando-se as especificidades de cada país e não colocando em posição de desvantagem aqueles que ainda estão longe de alcançar um determinado objetivo. É essencial que o processo de definição das metas quantitativas conte

com a participação dos governos nacionais, para que fundamentem de forma rigorosa e se apropriem das metas, utilizando-se a comparação com países semelhantes do ponto de vista demográfico e econômico para conceituá-las de forma realista. A abordagem proposta pelos Comitês de Monitoramento dos Tratados de Direitos Humanos é um bom exemplo da relação entre a definição da normativa internacional e o processo subsequente de análise comparativa no âmbito nacional, através do qual é possível, e adequado, responsabilizar os governos pelos resultados.

Selecionando indicadores para os direitos humanos No marco dos direitos humanos, alguns indicadores não são e não devem ser quantitativos. Uma meta que invoca o “reconhecimento universal dos direitos sexuais e reprodutivos”, por exemplo, depende necessariamente de indicadores relacionados ao marco jurídico e político. O fato de não serem quantitativos não significa que não podem ser alcançados em um determinado período, durante o qual congrega esforços políticos e institucionais. A força Tarefa de Alto Nível da CIPD, por exemplo, recomenda a imediata “criminalização da violência sexual e o fim da impunidade para os perpetradores, a eliminação do casamento precoce e forçado e da mutilação genital no período de uma geração”73. Olhando para o futuro, é essencial que indicadores quantitativos sejam desagregados para revelar possíveis padrões de discriminação. Como já reconhecido por diversas frontes, a disponibilidade de dados não pode definir automaticamente a seleção dos indicadores, como aconteceu com os ODMs74. Investimentos em sistemas de informação são essenciais para a produção de dados que permitem o monitoramento de muitas questões de saúde sexual e reprodutiva, mas também de questões como o casamento infantil. Além disso, os indicadores devem ser relevantes para a elaboração de novas políticas e sensíveis às intervenções políticas5. Isso requer indicadores de processos e de resultados, como a assistência obstétrica de emergência. Em relação aos direitos humanos, indicadores são usados para avaliar o comprometimento de cada país com as obrigações internacionais e sem essas medidas seria impossível assegurar que os governos adotam “medidas apropriadas” e de caráter não discriminatório, como é exigido pela normativa dos direitos humanos. 53


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Conclusões Muitas lições podem ser extraídas dos processos envolvendo a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos nos ODMs. É evidente que os avanços na saúde e direitos sexuais e reprodutivos exigem mudanças na arquitetura econômica mundial e nos mecanismos institucionais globais, afetando uma grande gama de questões, desde os financiamento para o desenvolvimento até acordos comerciais, uma vez que as mudanças na ajuda externa e nos acordos econômicos globais afetam profundamente a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Nesse artigo, descrevemos os efeitos da ênfase dos ODMs em metas e indicadores quantificáveis de curto prazo que acabaram definindo objetivos sociais. Clareza e simplicidade foram os pontos fortes dos ODMs que atraíram reconhecimento, mas a redução da agenda do desenvolvimento a um “conjunto de objetivos” não foi um processo neutro e excluiu muitas dimensões criticas de todos os objetivos. De maneira similar, como demonstrou o Power of Numbers Project, as metas quantificáveis, enquanto conceitos complexos de comunicação, eram outro ponto forte dos ODMs, mas o foco exclusivo nelas pode ter desviado a atenção política das questões estruturas de direitos humanos, que demandam mudanças jurídicas, institucionais e políticas que, por suas vez, não podem ser medidas quantitativamente. Metas concretas e focadas em resultados demonstraram ser eficientes para produzir consensos sobre os ODMs como referências de desenvolvimento, mas acarretaram intervenções de curto prazo que não tocaram nas raízes de problemas como a mortalidade materna e muito menos da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, pensados de maneira mais abrangente. Dentro dos ODMs, a preocupação em

atender necessidades básicas fortaleceu o apoio financeiro a iniciativas globais e nacionais de saúde, que investiram em planejamento vertical e hierárquico. Isso representou o afastamento do discurso de desenvolvimento dos anos 90, que incorporava questões sobre mudança social e alterações das relações de poder. Além disso, o modelo de desenvolvimento baseado em direitos prevê um processo que envolve as pessoas não apenas como destinatárias passivas do progresso, mas como sujeitos de direitos que podem manifestar suas apreensões, reivindicar seus direitos e participar ativamente da transformação de estruturas e instituições que perpetuam sua submissão. Defendemos que a hegemonia das abordagens restritas à saúde materna, como resultado dos ODMs, deve ser interpretada no contexto da mudança dos paradigmas de desenvolvimento que ocorreu na primeira década dos anos 2000. Trazer de volta para o discurso global as questões de saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos representa o eterno desafio de usar o desenvolvimento como arma para empoderar mulheres e populações marginalizadas e para abordar desigualdades estruturais fundamentais para a mudança social sustentável. Aprendemos com os ODMs que o processo de definição de metas não é neutro, mas envolve valores e normas, que produzem efeitos políticos e de planejamento de longo alcance. Assim, não é adequado que o futuro marco referencial do ODM+ baseie-se nessa estrutura. Um novo paradigma de desenvolvimento deve incorporar uma forte narrativa de transformação social, inclusive em relação à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, na qual metas e indicadores devem ter seu lugar, mas não devem comandar e nem restringir os propósitos abrangentes de se avançar na justiça social, política e de gênero.

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AE Yamin, VM Boulanger. / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 46-57

Résumé Cet article examine les conséquences prévues ou non du choix de l’OMD 5 comme objectif mondial, conjointement avec ses cibles et indicateurs respectifs, et place l’évolution de l’OMD 5, et plus largement de la santé et des droits sexuels et génésiques, dans le contexte du modèle de développement qui a été encodé dans les OMD. Ces dix dernières années, à mesure que les OMD occupaient une place de plus en plus centrale dans le développement et que leur utilisation évoluait, il est regrettable qu’ils aient cessé d’être des objectifs mondiaux pour devenir des cibles de la planification nationale. Cette transformation a été particulièrement néfaste dans le cas de l’OMD 5. Elle a non seulement restreint les politiques et la programmation, mais a eu d’importantes répercussions sur le discours du développement lui-même : elle a transformé ce domaine du point de vue de l’organisation et de la diffusion des connaissances, et a montré que la définition des cibles et des indicateurs n’est pas neutre et qu’elle véhicule des valeurs normatives. S’agissant de l’avenir, il n’est pas judicieux de proposer un cadre des OMD+ reposant sur la même structure. La santé et les droits sexuels et génésiques doivent être replacés dans le discours mondial, utilisant le développement pour autonomiser les femmes et les populations marginalisées, et corriger les inégalités structurelles, ce qui est fondamental pour un changement social durable. Le nouveau cadre de développement devrait inclure une solide description de la transformation sociale dans laquelle des cibles et des indicateurs adéquats jouent un rôle, mais sans dépasser ni circonscrire les buts plus larges du progrès de la justice sociale et politique et de l’égalité des sexes.

Resumen En este artículo se examinan las consecuencias deseadas y no deseadas de la selección del ODM 5 como meta mundial, así como sus respectivas metas e indicadores, y se pone en el contexto del modelo de desarrollo codificado en los ODM lo que sucedió con el ODM 5 y con la salud y los derechos sexuales y reproductivos en general. En la última década, a medida que los ODM cobraron cada vez más importancia en desarrollo y su uso evolucionó, inapropiadamente pasaron de ser metas mundiales a ser metas nacionales de planificación. Esta conversión fue perjudicial en el caso del ODM 5 en particular. No solo creó un estrechamiento con relación a las políticas y los programas, sino que también tuvo un gran impacto en el discurso del desarrollo en sí, ya que reestructuró el campo en términos de la organización y difusión de conocimientos y recalcó que el proceso de establecer metas e indicadores dista mucho de ser neutral pero codifica valores normativos. Con miras hacia el futuro, no es adecuado proponer un marco de ODM+ basado en la misma estructura. La salud y los derechos sexuales y reproductivos deben incluirse nuevamente en el discurso mundial, utilizando el desarrollo para empoderar a las mujeres y a las poblaciones marginadas, así como para abordar las desigualdades estructurales que son fundamentales para el cambio social sostenido. El nuevo marco de desarrollo debe incluir una narrativa influyente sobre la transformación social en la cual las metas y los indicadores adaptados al propósito desempeñen un papel, pero no superen ni limiten los objetivos generales de promover la justicia social, política y de género.

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Saúde e direitos sexuais e reprodutivos: os próximos 20 anos Discurso durante a Conferência Internacional de Direitos Humanos - Holanda, 7 a 10 de julho de 2013

Nafis Sadik

Conselheira Especial da Secretaria Geral da ONU, Enviada Especial de HIV/AIDS na Ásia, Diretora Executiva do Fundo de População das Nações Unidas de 1987 à 2000.

A CIPD certamente concluiu algumas questões que seguiam pendentes. O consenso do Cairo abriu de vez a caixa-preta do chamado “controle populacional”, deixando claro de uma vez por todas que é impossível separar as políticas de população das políticas de desenvolvimento. Também encerrou definitivamente o antigo debate sobre o conflito entre necessidades globais e soberania nacional: os países que adotam a agenda do Cairo, o fazem

de acordo com sua própria iniciativa e interesses nacionais, mas também atendem ao imperativo global de um crescimento populacional mais lento e equilibrado. O consenso do Cairo também reconfigurou outro antigo debate: entre os direitos humanos e as demandas de desenvolvimento. Cumprir a agenda do Cairo é respeitar e promover os Direitos Humanos. Quando falamos sobre “direitos reprodutivos” é a isso que nos referimos. É sobre a diferença entre pessoas como objetos e pessoas como agentes: a diferença entre tomar as pessoas como peões no jogo político e reconhecê-las como sujeitos, tomadoras de decisões e condutoras ativas da política, ou seja, como indivíduos autônomos profundamente interessados na direção de suas vidas. Nessas circunstâncias, as mulheres, especialmente, desfrutam de melhores condições de saúde e de vidas mais plenas. Meninos e meninas, igualmente, crescem com a certeza de que podem tomar suas próprias decisões. Meninas, cujos direitos são compreendidos e protegidos a partir da família, tornam-se mulheres com um forte senso de autonomia, que valorizam a si mesmas, a seus parceiros e o direitos de outras pessoas. Nestas circunstâncias, as meninas tem a oportunidade de concluir seus estudos, casam mais tarde e têm o número de filhos que desejam, e não mais que isso. Grandes famílias deixam de ser a norma e o crescimento populacional desacelera. E assim, abre-se uma janela para o investimento e o desenvolvimento econômico.

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42722-2

Obrigada pela recepção calorosa. E um agradecimento especial ao nosso anfitrião, o Governo da Holanda, cuja forte liderança e participação enérgica têm nos acompanhado nos últimos 20 anos. Acredito que ao me aplaudirem vocês estão, na realidade, aplaudindo a si mesmos. Conheci pessoalmente muitos de vocês que estiveram no Cairo e vejo muitos outros aqui na platéia. Estou muito orgulhosa em conhecer muitos que não estiveram na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD, 1994), mas que trabalham arduamente para transformar suas grandes promessas em realidade. Vocês todos merecem crédito pelo que conquistamos no Cairo e pelo que alcançamos desde então. E tenham certeza de que vocês também serão reconhecidos pelo seus esforços futuros. E essa é a grande conquista do Cairo - não apenas o que a Conferência alcançou, mas o passo inicial que foi dado durante a mesma. Ela abriu portas e nos mostrou os caminhos que ainda estão sendo trilhados atualmente.

Significados original e atual da CIPD

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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Esse é o caminho que o consenso nos mostrou: o caminho da implementação de políticas populacionais e de desenvolvimento - e especialmente de saúde sexual e reprodutiva - que respeitam os direitos humanos e especialmente os direitos das mulheres. Ao seguir esse caminho, países e indivíduos alcançam um desenvolvimento baseado em direitos, começando peça eliminação de desigualdades e da pobreza extrema. E isso começa com uma mulher. Com uma menina.

Em direção a um consenso Os livros de história dizem que o consenso do Cairo foi difícil de se alcançar. Bem, levou apenas 20 anos. De fato, o Plano de Ação da População Mundial, de 1974, o primeiro documento deste tipo, menciona mulheres apenas em duas ocasiões, e ambas no contexto da fecundidade. Dez anos depois, as recomendações da Cidade do México incluem uma recomendação (Recomendação 11) que considera a situação das mulheres no contexto global: “Melhorar a condição das mulheres e reforçar seu papel é um objetivo importante por si mesmo e influenciará a vida familiar de maneira positiva”. Entre o México e o Cairo percorremos um longo caminho. Naturalmente, a Conferência do Cairo não foi livre de controvérsias - e foi através delas que alcançamos tanta cobertura midiática. Porém, a maior parte delas referia-se a apenas um parágrafo e, assim, podemos concluir que houve um enorme grau de concordância com relação às questões centrais - a 85% do documento final, na verdade - mesmo antes do inicio da conferência. Esse amplo consenso foi resultado de uma extensa consulta conduzida nos níveis nível nacional e regional, com a participação ativa da sociedade civil. De maneira que, quando a Conferência começou, tínhamos não apenas um fórum independente de ONGs, mas também representantes de ONGs em diversas delegações nacionais… Na minha opinião, esse foi o segredo do nosso sucesso. A presença física de tantas pessoas dedicadas e comprometidas, muitas delas jovens, muitas delas mulheres, indicava que as delegações estavam completamente cientes das questões e prioridades do mundo real e do que seria necessário para fazer uma diferença real e duradoura na vidas das pessoas. O resultado foi um Programa de Ação*, que foi e ainda é muito claro e altamente preciso. Um programa que diz em linguagem clara o que pre* http://www.unfpa.org/public/home/sitemap/icpd/internationalConference-on-Population-and-Development/ICPD-Programme.

cisa ser feito, quem precisa fazê-lo, até qual prazo, quanto irá custar e quem deve pagar por ele. Sem dar brechas para desculpas.

Onde estamos agora e o que devemos fazer? Mas então por que estamos aqui hoje ainda longe de alcançar tantas metas do Cairo? Por que tantas meninas ainda começam, mas não concluem sua educação formal? Por que tantos adolescentes ainda ignoram informações básicas sobre sexualidade e reprodução, incluindo sobre prevenção do HIV/Aids? Por que tantas meninas casam antes de serem maduras o suficiente para tomar suas próprias decisões? Por que tantas mulheres, casadas ou não, são vulneráveis à violência de gênero - incluindo mutilação genital, fístulas e infecção pelo HIV? Por que tantas mulheres ainda sofrem e morrem por complicações durante a gravidez e o parto? Por que o aborto inseguro ainda é uma das maiores causas de morbimortalidade materna? E por que, acima de tudo, tantos países ainda estão longe da meta global de oferta universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva adequados e acessíveis? A maioria dos serviços disponíveis direcionam-se a mulheres casadas e com filhos e incluem a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da AIDS, da violência de gênero, além da prevenção do câncer de mama e colo de útero. Esses serviços não alcançam mulheres solteiras, sem filhos, adolescentes - casadas ou não - nem a maior parte dos homens. Também não alcançam pessoas que não se encaixam na sociedade convencional - jovens fora da escola, usuários de drogas injetáveis, trabalhadores do sexo e a comunidade gay, lésbica, bissexual, transgênero e transexual (LGBT). Para nós é claro que enquanto essas condições não forem atingidas, a meta de igualdade de gênero e da garantia plena dos direitos humanos para todos nunca será alcançada. Assim, o desenvolvimento baseado nesses direitos nunca se tornará realidade. Não subestimo o grande progresso alcançado pelas nações e pelas próprias mulheres desde a ICPD. Temos muitos motivos para nos orgulharmos. O contexto internacional para a promoção da igualdade de gênero e dos direitos humanos nunca foi tão forte. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) reconhecem o papel central da saúde reprodutiva e sexual na luta pela erradicação da pobreza - mesmo que um pouco de trabalho educativo tenha sido necessário para 59


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que todos entendessem essa mensagem. É irônico, na realidade, que a saúde sexual e reprodutiva não tenha sido incluída na concepção original dos ODM, já que todos os Objetivos são frutos dos esforços desenvolvidos durante a ICPD. Para citar alguns exemplos na esfera da ONU, as Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres adotaram recentemente fortes posições sobre os direitos das jovens e a violência de gênero. O Comitê de Direitos Humanos adotou uma resolução sobre a prevenção da morbimortalidade materna e os direitos humanos. Progresso similar também foi registrado em nível nacional e regional, marcado especialmente pelo Protocolo de Maputo em 2003†, que oferece ampla proteção dos direitos de mulheres africanas, incluindo os direitos reprodutivos. Muitos países apresentam progressos quanto à proteção legal e constitucional de direitos, especialmente das mulheres, mas os direitos da comunidade LGBTT ainda não são universalmente protegidos, ou nem mesmo reconhecidos. Entretanto, o progresso real, isto é, as mudanças concretas nas vidas de homens e mulheres comuns, ainda está longe. Certamente aumentou a prevalência de uso de contraceptivos, mas os países ricos e as elites das maior parte dos países representam grande parte deste aumento. Em outros lugares, especialmente para mulheres pobres vivendo em comunidades carentes, a vida reprodutiva permanece basicamente a mesma desde o tempo de suas mães e avós. Contraceptivos modernos e acessíveis não se encontram com facilidade e as mulheres ainda percebem a gravidez indesejada como um acaso normal em suas vidas, acatando também os riscos dela decorrentes. É ótima a notícia de que os índices de mortalidade materna foram reduzidos para 40% desde a ICPD - mas ainda estamos longe da meta de 75% traçada na ICPD. Anualmente, o casamento na infância afeta a vida de 14 milhões de crianças menores de 18 anos: muitas dessas meninas engravidarão antes de estarem completamente preparadas para o parto. Muitas agonizarão ou morrerão em decorrência disto. A maioria dos países está longe da meta de envolver todos os setores da comunidades, especialmente mulheres e jovens, na concepção das políticas que moldarão suas vidas. O aborto inseguro - tópico de muitas discussões calorosas no Cairo - ainda é uma das maiores causas † Protocolo para a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e os Direitos das Mulheres na África. http://www.achpr. org/instruments/women-protocol/.

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de morte materna em muitos países. Esses países avançaram muito pouco no debate sobre o aborto e no combate às questões ideológicas e aos preconceitos enfrentados pelas mulheres em decorrência dessa decisão. Há um debate racional a ser feito em qualquer sociedade sobre as condições nas quais o aborto é permitido. Mas, independente do desfecho desse debate, uma vez que o aborto seja legalizado, ele deve ser seguro. Esse foi o consenso geral mínimo a que se chegou durante a ICPD e, sem dúvida, foi revolucionário para a época. Entretanto, o consenso não leva em consideração os direitos de mulheres que precisam abortar em contextos onde o aborto não é legalizado. A gravidez não deve acarretar riscos de vida evitáveis: sendo assim, o direito de abortar é simplesmente uma extensão do direito à saúde. O aborto ilegal é inseguro por definição. É certo, então, que chegou o momento de reconhecer e abordar essa questão urgente, não apenas no âmbito das nações e de diferentes culturas, mas no nível global? Eu gostaria de fazer algumas sugestões para se alcançar o objetivo de promover o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva. Primeiramente, os programas de SSR devem se afastar do paradigma da saúde materno-infantil (SMI). Programas de SMI estão amplamente estabelecidos na maioria dos países e podem ser bastante efetivos. O problema é que, em sua grande maioria, são voltados para mulheres casadas e com filhos. Mulheres em outras categorias, incluindo casadas e sem filhos, não casadas, e, obviamente, homens, são efetivamente excluídas dos mesmos. Na prática, programas de SMI são aplicados de maneira isolada, mas se todos os homens e mulheres devem ter acesso à gama completa de serviços, esses programas devem ser concebidos de maneira a alcança-los. A melhor maneira de alcançar essa meta é compreendendo esses programas como parte de um sistema de saúde integrado que combine serviços curativos e preventivos, incluindo SMI. Cada país encontrará seu próprio modelo, mas essa é uma solução perfeitamente possível, caso haja a vontade de executá-la. Uma segunda questão é que, apesar da intenção primária do ICPD ser a de assegurar a oferta de planejamento familiar para todos que necessitam deste serviço, informações e serviços de planejamento familiar ainda estão fora da agenda de políticas públicas, tanto entre os agente financiadores internacionais quanto entre os governos dos países de renda média e baixa. Tentativas recentes


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de focar em tais serviços, como a Reunião de Cúpula de Londres sobre planejamento familiar, são mais que bem vindas, mas a verdade é que a demanda das mulheres em idade reprodutiva ultrapassa a capacidade desses países para atendê-las. Os programas atuais estão, na melhor das hipóteses, estagnados. Em muitos lugares estão completamente ultrapassados. Talvez nós todos sejamos vitimas do nosso próprio sucesso. As taxas de fecundidade total e de crescimento populacional caíram no nível global e em muitos países, então é natural que se conclua que o período mais crítico foi superado. Mas, obviamente conhecemos a situação melhor que ninguém: se o foco principal são as mulheres e não as taxas demográficas, então a questão permanece mais urgente do que nunca. Grande parte das mulheres sem acesso ao planejamento familiar são pobres e outras tantas analfabetas e elas estão sendo deixadas para trás, enquanto o resto do mundo evolui. De fato, nos 69 países mais pobres do mundo, onde residem 73% das mulheres sem acesso a esses serviços, o número de mulheres que não fazem uso de métodos anticonceptivos modernos aumentou entre 2008 e 2012‡. É possível que os países supram essa demanda sem a implementação de novas tecnologias ou de serviços de distribuição de alto custo e mesmo que novos métodos contraceptivos sejam bem vindos, os que existem atualmente são perfeitamente adequados. É óbvio que os recursos disponíveis são escassos - mas destinar a pequena verba necessária para suprir essa demanda não é uma questão econômica e, sim, de vontade política. Em 2012, a oferta desses serviços nos 69 países mais pobres do mundo requeria pouco mais de dois bilhões de dólares§. Em Wall Street essa quantia é uma mixaria. Em terceiro lugar, anos de experiência e pesquisa demonstram que a educação sexual na adolescência é a base de uma vida sexual saudável na vida adulta. Mundialmente, entretanto, apenas um terço dos adolescentes sabem como se prevenir contra o HIV e milhões de jovens mulheres casam-se sem o menor conhecimento básico sobre sexualidade e reprodução. Os jovens têm o direito ‡

Estudos recentes identificaram poucos avanços quanto ao alcance das metas relativas às necessidades contraceptivas no mundo em desenvolvimento. http://www.guttmacher.org/presentations/ Adding-It-Up.pdf. § Adding It Up: The Costs and Benefits of Investing in Family Planning and Maternal Health. Guttmacher Institute. December 2011. http://www.guttmacher.org/presentations/Adding-It-Up.pdf.f

de conhecer seus próprios corpos e, assim, decidir sobre o seu futuro. E como isso é possível sem que tenham acesso sistemático à informações, na escola e fora da escola? Cada nação individualmente e a comunidade internacional devem reiterar o desafio assumido no Cairo de assegurar que todas as crianças tenham não só acesso à educação, mas que também sejam educadas sobre saúde sexual e reprodutiva e sobre as formas de assegurá-la. Finalmente chegamos ao último ponto: homens. Toda causa precisa de defensores e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos não é uma exceção. Organizações de proteção dos direitos das mulheres, com sua crescente força e influência, aceitaram esse desafio. Mas os homens constituem metade do mundo e precisamos de homens influentes que guiem outros homens e os encorajem a exercerem suas responsabilidades, tornando-se nossos assim parceiros na luta pelos direitos humanos. Em resumo, precisamos de lideranças.

Barreiras à implementação dos direitos Lideranças de diversos campos possibilitaram o consenso da ICPD, destacando-se as da Holanda, onde o embaixador da ONU, Nicolaas Biegman, representou uma grande força propulsora nos estágios preparatórios. Os Estados Unidos foram a “nação indispensável”. Sem o comprometimento dos EUA, personificado pelo senador Tim Wirth e o envolvimento pessoal do vice-presidente Al Gore, o resultado final teria sido bem diferente. A participação de tantos chefes de estado e governos concedeu status e prestigio à Conferência, impulsionando a força do consenso. Nós deixamos Cairo com uma grande sensação de realização e um forte sentimento de que as maiores barreiras haviam sido deixadas para trás. Isso tornou a perda do momento oportuno depois da ICPD ainda mais frustrante. Não acredito que nos antecipamos à opinião mundial: a Conferência da Mulher em Beijing levou o consenso ainda mais além na mesma direção apontada pela ICPD. Cinco anos de análises regionais e globais ratificaram e fortaleceram o Programa de Ação em muitos aspectos. Mas, como já citei anteriormente, os ODMs, da maneira como foram concebidas em 2000, não incluíam o elemento chave para o acesso universal à saúde reprodutiva e, certamente, depois do ano 2000 avanços foram contidos pela nova administração dos EUA e por outros governos conservadores. Talvez a oposição concreta 61


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desses governos tenha fortalecido aqueles que estavam indiferentes ou mesmo opostos ao consenso e desencorajado aqueles que estavam mais temerosos em levar adiante as ações acordadas. Além disso, o aumento de investimentos para a agenda da ICPD ficou muito aquém dos valores acordados, e, particularmente, o apoio internacional para o planejamento familiar decaiu, inclusive em termos financeiros. A crescente epidemia do HIV e AIDS atrasou a agenda da ICPD: mas também colaborou para isso a prática generalizada de isolar os serviços de prevenção e tratamento do HIV/AIDS nos mecanismos institucionais e nas estruturas de saúde publica. Ainda que exista um certo progresso em direção à integração desses serviços, mas os nichos e os programas verticais ainda fazem parte da realidade. Isso levou a gastos desnecessários de recursos humanos e financeiros e, em muitos casos, representaram a exclusão de pessoas - especialmente mulheres e meninas - de serviços dos quais elas desesperadamente precisavam. Mas, a previsível resistência de alguns atores, a falta de apoio da comunidade internacional em relação à agenda da ICPD e a ameaça do HIV/AIDS são apenas justificativas parciais e óbvias. Eu acredito que a causa principal é muito mais antiga e complexa: o preconceito e medo relacionado ao fortalecimento de mulheres e meninas, em todas as suas formas. Obviamente a ICPD é apenas um capitulo dessa história. Outro capitulo - o contexto que tornou a ICPD possível - é o crescente poder dos movimentos das mulheres e a crescente demanda por autonomia por parte das mulheres individualmente, seja na família, na economia, no processo político ou nos tribunais. A implementação da ICPD não só fortaleceu as mulheres, mas também encorajou a reflexão sobre direitos. O aumento de relatos pessoais e o desenvolvimento da intolerância à violência de gênero, refletem não só a crescente presença e assertividade das mulheres, como também a percepção de que os homens estão intimidados. Devemos fazer uma reflexão sobre os motivos pelos quais tanto a violência de gênero quanto a oposição à ela têm aumentado em muitas sociedades. Uma possível explicação é que mulheres estariam mais propensas a denunciar essa violência. Outra explicação é de que homens se sentem encurralados, em uma situação de tudo ou nada. Se o poder econômico e social das mulheres está em crescimento, então o dos homens deve estar decaindo. 62

Parte dos homens estão corretos em enxergar o crescente poder das mulheres como uma ameaça ao seu próprio. De vilarejos a nações, de assembleias a parlamentos, encontramos pequenos grupos de homens agarrando-se ao poder, em detrimento das mulheres. É chegada a hora de eles reconhecerem que o mundo mudou, a hora de se adaptaram à nova realidade ou saírem do caminho, de seguir em frente ou abrirem caminho. Em alguns lugares, os homens usam os direitos das mulheres como reféns do que denominam de “valores tradicionais”. Efetivamente, usam as mulheres para se autoafirmar e mostrar para o mundo que nada mudou. Argumentam que o conceito de direitos humanos é um produto importado que não se aplica a eles. É claro que isso é um absurdo. A estrutura atual dos direitos humanos é universal. E é adequado e aplicável a qualquer cultura que se preze, mesmo - ou talvez especialmente no que diz respeito às mulheres. Vou repetir esse ponto novamente: nenhum valor cultural que mereça esse nome deve permitir ou promover a opressão e a escravidão de mulheres. Nenhum valor cultural deve permitir que mulheres não tenham acesso à educação e saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva. Nenhum valor cultural deve permite que o comportamento das mulheres obedeça a um único padrão social, enquanto homens podem se comportar da maneira que quiserem. Nenhum valor cultural deve permitir que um homem se esconda atrás da honra de sua irmã, enquanto ataca as irmãs de outros homens. Nenhum valor cultural deve venerar as mulheres como mães, ao mesmo tempo em que as condenas à morte e ao adoecimento decorrentes do parto. Esses não são valores culturais ou humanos - esses são os meios pelos quais um grupo exerce poder sobre outro. Acredito que a maioria dos homens são capazes de perceber que é equivocada essa visão do tudo ou nada quanto ao empoderamento de mulheres e à equidade de gêneros. Acredito que as expectativas crescentes colocadas para homens e mulheres pode dissipar grande parte da relutância dos homens em priorizar a saúde sexual e reprodutiva no seio familiar e da comunidade. Não tenho qualquer base cientifica para apoiar essa crença, apenas a minha longa experiência e muita esperança. Essa é uma questão que se refere às premissas sobre os homens, mas também sobre as mulheres. Para cada mulher que se impõe, existe outra que ainda se subordina ou que nem mesmo entende seus direitos. Muitas mulheres tem dificuldade até


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para acreditar que possuem direitos, que suas vidas não são predestinados e que pode mudar e que elas próprias podem mudar. Essa passividade apenas encoraja a reação masculina - então parte da solução é educar, defender e financiar a implantação ampla e profunda do consenso da ICPD, iniciando com a saúde sexual e reprodutiva. Isso requere o forte comprometimento de todas as partes do consenso, incluindo os governos nacionais e a comunidade internacional. É essencial que mais e mais homens em posição de liderança, na vida pública e na privada, assumam a luta pelos direitos e pela saúde sexual e reprodutiva. As mulheres e suas organizações devem fazer sua parte através da educação, de exemplos e do ativismo incessante. A mensagem é “direitos humanos para mulheres significa direitos humanos para todos”. É com muita alegria que eu digo que 20 anos após a ICDP nós estamos no caminho certo para levar essa mensagem a todos. O consenso está

mais forte do que nunca. A ICPD pode até ter sido à frente do seu tempo, mas essa é só uma outra maneira de dizer que nós pavimentamos esse caminho. Os ODMs, a criação da ONU Mulheres, as resolução que associam a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos à segurança nacional e global demonstram a crescente aceitação internacional da abordagem da ICPD. As ações concretas, apesar de ainda tímidas, demonstra que os países e as comunidades compreendem a relevância da agenda do Cairo e a importância de ancorar firmemente os programas e as políticas em uma base de direitos humanos. Espero que essa Conferência seja um guia para os próximos 20 anos. Espero que vocês demonstrem seu comprometimento a essa causa que iniciamos no Cairo e afirmem sua liderança para dar continuidade a ela. A via do progresso é reconhecer, proteger e promover os direitos humanos em todas as culturas e países, para todos os seres humanos e, acima de tudo, para as mulheres.

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Garantindo a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para a Saúde Marianne Halesgrave Diretora, Fundo Fiduciário Médico da Commonwealth, Deal, Kent, Reino Unido. Contato: mh@commat.org

Resumo: Desde que a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) de 1994 em Cairo colocou a saúde e os direitos reprodutivos na agenda internacional, ativistas da sociedade civil vem trabalhando incansavelmente para garantir que essas questões permaneçam centrais para o empoderamento das mulheres, aproveitando todas as oportunidades para incluir a saúde e os direitos sexuais nos novos marcos referenciais do desenvolvimento. Em 2000, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foram excluídos dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) e apenas em 2007 o acesso universal à saúde reprodutiva foi colocado de volta. Em 2014 e 2015, com a ICPD Além de 2014, os ODMs e o marco do desenvolvimento pós-2015 serão decididos a partir de consultas e encontros em todo o mundo. Esse artigo trata das principais influências nas iniciativas para implementar a agenda da CIPD, sintetizando os eventos, relatórios e processos passados, atuais e planejados para o futuro, entre 1994 e 2014, até chegar ao quadro pós-2015 e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). O artigo conclui que a única coisa que nós não podemos permitir é o que aconteceu com os ODMs em 2000. Não podemos sair de mãos vazias dessa discussão. Devemos, pelo contrário, garantir a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos como prioridade em um novo Objetivo de saúde. Palavras-chave: saúde e direitos sexuais e reprodutivos, marco referencial do desenvolvimento pós-2015, CIPD Além de 2014, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, UNFPA, Grupo de Alto Nível e do SecretárioGeral da ONU, Grupo Aberto de Trabalho, Rio+20, sociedade civil, ativismo e processo político. O Evento Especial da Assembleia Geral da ONU, realizado em Nova York em 25 de setembro de 2015, marcou o começo dos estágios finais do processo que levou à agenda de desenvolvimento pós-215 e à adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) que darão continuidade aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Para os ativistas de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, é de enorme importância garantir que essas pautas sejam incluídas nessa agenda. Desde a adoção do Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foram reconhecidos como parte integral de um desenvolvimento sustentável bem sucedido, assim como dos direitos humanos fundamentais(1). Durante esses anos, houve ganhos no desenvolvimento desses conceitos, apesar da oposição das forças conservadoras. O aniversário de 20 anos da CIPD, também conhecido como CIPD Além de 2014, será celebrado na Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU em Setembro de 2014, 12 meses antes da adoção do marco do desenvolvimento pós-2015. Esse artigo faz um balanço das influências mais importantes para a agenda da CIPD e resume os 64

acontecimentos, relatórios e processos passados, atuais e planejados para o futuro entre 1994 e 2014, até a determinação do marco referencial de desenvolvimento pós-2015 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O artigo analisa a situação atual e busca possíveis pontos de entrada para a inclusão da saúde e dos direitos reprodutivos nos objetivos de desenvolvimento sustentável.

O passado A CIPD e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos A agenda da CIPD foi bastante ampla e introduziu uma mudança de paradigma ao se afastar da perspectiva macrodemográfica que tinha sustentado os resultados das conferências internacionais de população e desenvolvimento de Bucareste (1974) e Cidade do México (1984). O Programa de Ação apresentou uma nova visão da relação entre população, desenvolvimento e bem-estar, colocando os direitos humanos no centro dessas políticas e incluindo um amplo conjunto de questões relacionadas. A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo planejamento familiar e saúde sexual,

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42742-8


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foram firmemente incluídos na agenda internacional1. Além disso, o Programa de Ação demandava a igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, assim como a atenção para as necessidades da população de adolescentes e jovens. Mas não houve consenso sobre a inclusão dos direitos sexuais, para os quais não havia nenhuma definição comum até essa data e a saúde sexual era incluída (de forma pouco lógica) na saúde reprodutiva. Os governos também não foram capazes de chegar a um acordo sobre o acesso pleno ao aborto seguro, menos ainda quando baseado no direito de decisão das mulheres. O acesso dos adolescentes à educação, informação e serviços de saúde sexual e reprodutiva também gerou controvérsias, resolvidas por meio do uso da linguagem da Convenção dos Direitos da Criança que reconhece a importância da orientação dos pais e do desenvolvimento das capacidades dos adolescentes. A Conferência de Beijing foi um pouco além, priorizando o bem-estar das crianças até os 18 anos(2). Referências significativas foram então estabelecidas, particularmente quanto às definições de saúde e de direitos reprodutivos1. A CIPD +5, a primeira análise quinquenal dos avanços na implementação da CIPD, aconteceu em 1999 e pode ser considerada um “momento alto” na promoção da agenda na medida em que o documento de resultados, Ações Cruciais para a Continuação da Implementação do Programa de Ação da CIPD, avançou em algumas áreas. Entre elas destaca-se a formulação de que o acesso ao aborto seguro, onde permitido pela lei (formulação da CIPD), deve incluir a capacitação de profissionais de saúde para garantir acesso e segurança para as mulheres3. No entanto, outras questões não foram submetidas a uma revisão mais profunda. Isso frustrou os movimentos de saúde e direitos sexuais e reprodutivos que, embora tenham entendido a CIPD como a melhor plataforma disponível em 1994, consideravam que ainda estava longe de ser satisfatória.

Avançando e enfrentando a oposição crescente Os avanços depois de 1999 pode ser melhor descrito como “espasmódico”. Desde 1994, a cada ano a Comissão de População e Desenvolvimento da ONU tratou de diferentes aspectos da agenda CIPD. Mas como as prioridades evoluíram e mudaram, se tornou cada vez mais difícil introduzir a linguagem progressista nas resoluções adotadas como, por exemplo, promover o acesso à educa-

ção sexual abrangente ou os direitos da comunidade lésbica, gay, bissexual e transgênero. Isso foi resultado da oposição cada vez maior, mais forte e mais ousada. As organizações antiaborto estavam presentes no Cairo e a Santa Sé trabalhou com os países que tinham feito reservas ao Programa de Ação, particularmente no texto sobre aborto, regulação da fecundidade e direitos reprodutivos. Uma declaração que foi debatida inicialmente e que permaneceu como um obstáculo para os ativistas foi a inclusão (no Capítulo II dos Princípios do Programa de Ação) do reconhecimento explícito da soberania de cada país nas decisões sobre a implementação. Durante a CIPD+5, as organizações de oposição atacaram regularmente as sessões da CIPD e a arena política se tornou mais conservadora de forma geral. Hoje, os defensores da agenda da CIPD devem se preparar para reagir à oposição em um espectro mais amplo de questões de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, que inclui o acesso à contracepção de emergência, educação sexual abrangente e, claro, o aborto. Mas também devem tratar dos desafios ligados a questões menos polêmicas como “igualdade de gênero” e “acesso a serviços”. De forma sistemática, antes das sessões das Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres, os opositores organizaram encontros para fazer lobby junto às delegações nacionais dos países que lhes apoiam, para solidificar suas posições. Mas algumas resoluções progressistas foram adotadas pela Comissão de População e Desenvolvimento como, por exemplo, a resolução de 2012 sobre adolescentes e jovens4. Quando houve impasse nas negociações, o bloqueio foi superado pela introdução do texto do Presidente da sessão. Os opositores, porém, tem desconsiderado esses textos como “negociados” ou “redação consensuada”. O Programa de Ação do CIPD continua a oferecer uma base firme para negociações, mas cada vez mais conteúdos acordados em outros fóruns são introduzidos no processo. Isso inclui não apenas a linguagem de documentos como a Plataforma de Ação de Beijing, mas também, por exemplo, as resoluções do Conselho de Direitos Humanos. Nesse sentindo, documentos como os Relatórios Especiais para o Direito à Saúde tem sido particularmente úteis ao introduzir uma linguagem que pode ser tomada como controversa. Atualmente, porém, a prática de usar a linguagem do consenso prévio parece erodida, uma vez que o conceito de saúde e direitos sexuais e reprodutivos 65


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ainda é tratado como altamente polêmico. No nível regional, os avanços tem sido mais fáceis, como se pode ver no Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e das Populações sobre os Direitos das Mulheres na África (Protocolo de Maputo), no qual os países que o ratificaram podem autorizar o aborto em várias situações5*. Além disso, o Plano de Ação sobre Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos (Plano de Ação de Maputo) trata do aborto inseguro, demandando “serviços de aborto seguro na extensão máxima da lei”6. Embora se possa argumentar que esses acordos fazem pouca diferença na prática, requerendo esforços em cada país para a sua implementação, o Protocolo foi ratificado por vários governos e o Plano de Ação de Maputo foi acordado a nível ministerial. Além disso, o atraso contínuo em sua implementação efetiva não evitou as repetidas reafirmações do Plano de Maputo. A oposição, portanto, não é a única barreira a ser enfrentada. Esse tipo de acordo sobre o aborto não pode se realizar na ONU em Nova York, uma arena onde os delegados “usam seus músculos diplomáticos”, seguindo instruções nacionais que podem impedir seriamente o progresso futuro. Recentemente, isso se tornou evidente nas negociações nas Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres. Recentemente, delegados e membros do Secretariado da ONU, como o Dr. Babatunde Osotimehin, diretor executivo da UNFPA na Conferência Anual das ONGs Européias, realizada em outubro de 2013, tem se pronunciado sobre esses processos7. A Santa Fé, entretanto, continua a exercer um alto grau de influência na condição de observadora. Os seus “lembretes gentis” (ou similar) para algumas delegações definem as restrições para a linguagem progressista. As alianças perversas entre os países mais conservadores e, o crescimento da oposição altamente conservadora nos EUA produziram impactos importante em diversos momentos dos últimos 19 anos.

Papel da sociedade civil e das organizações de mulheres A sociedade civil, especialmente as organizações não governamentais, foram de crucial importância para a promoção da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos antes mesmo do Cairo. A articulação das organizações de mulheres, coor* ...proteger os direitos reprodutivos das mulheres autorizando o aborto medicamentoso em casos de abuso sexual, estupro, incesto e quando a continuidade da gravidez prejudica a saúde mental e física da mãe ou a vida da mãe ou do feto”(5).

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denada pela Coalizão Internacional de Saúde da Mulher (IWHC), foi grandemente responsável pela inclusão dessa pauta nas deliberações da CIPD – a partir do apoio de delegações governamentais. Também desempenharam uma função importante como ativistas nos níveis nacional, regional e internacional e na execução de tarefas cruciais de pesquisa, organizações como a Federação Internacional do Planejamento Familiar (IPPF), com sua Carta dos Direitos Sexuais e Reprodutivos8, o Conselho de População, o Instituto Allan Guttmacher, financiando o Programa de Ação da CIPD9, a Rede de Mulheres Alternativas de Desenvolvimento para Nova Era (DAWN) e o Centro Ásia-Pacífico de Recursos para Mulheres (ARROW), apenas para nomear algumas. A sociedade civil também enfrentou as forças conservadoras com a maior eficácia da comunidade de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, que procurou apoio em organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, e organizações que atuam na área de migrações. Também se articularam com organizações de mulheres que promovem o empoderamento econômico das mulheres, que consideram que a saúde e direitos sexuais e reprodutivos também é parte de suas agendas. A violência contra as mulheres e o casamento precoce e forçado, por outro lado, apresentam interfaces a partir das quais pode se trabalhar em conjunto. Além disso, grupos e coalizões de jovens ganharam cada vez mais reconhecimento, demandando o direito de serem ouvidas em um grau tão alto que a Conferência da Comissão Econômica para a Europa instituiu-as como a “delegação jovem” para contribuir com suas discussões de forma sistemática.

Analisando os avanços Se os avanços desde 1999 foram desiguais, o ponto mais baixo foi, sem dúvidas, a Cúpula do Milênio. Embora a saúde reprodutiva estivesse presente nos Objetivos Internacionais de Desenvolvimento10, por várias e complexas razões não houve pressão efetiva para a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos durante a elaboração dos ODMs11. Outras omissões também foram gritantes, como a ausência de objetivos ou metas de empregabilidade. Assim a meta 1B do ODM “Alcançar o emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todos, incluindo mulheres e pessoas jovens” teve que ser adicionado em 2005, assim como a meta 5b “Alcançar, até 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva”. Infelizmente, em muitos países a meta 5B não foi realmente assumida,


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não tendo recebido prioridade nem os recursos necessários para sua implementação. Além disso, apesar de indicadores claramente definidos e dos esforços para promovê-los12†, os avanços (se é que houve algum) nem sempre foram mensurados ou registrados. Outras questões também saíram da agenda em vários outros momentos e foram recuperadas posteriormente por meio de ações e intervenções de governos, fundações ou movimentos sociais. Um exemplo interessante foi o planejamento familiar. Em 1994, uma das maiores preocupações era que a introdução da saúde e dos direitos reprodutivos iria reduzir o protagonismo ou excluir o planejamento familiar das agendas. Apesar do reconhecimento no Programa de Ação de que homens e mulheres têm o direito “de ser informados e ter acesso a métodos seguros, eficazes, acessíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha”1, o que aconteceu foi exatamente a perda de importância, principalmente pelo deslocamento da atenção e dos financiamentos para o HIV/AIDS, em um grau tal que, nos últimos cinco anos, novos esforços tiveram que ser envidados para retomar a centralidade do planejamento familiar. Isso culminou na realização da Cúpula de Planejamento Familiar, em Londres, em 2012 e na FP202013. A cada cinco anos, foram realizadas análises dos avanços na implementação do Programa de Ação da CIPD. Em 2004, foram produzidos uma pesquisa e um relatório globais como parte da análise dos dez anos do Cairo14. Após 1999, no entanto, essas análises foram limitadas a “eventos comemorativos especiais”, geralmente sob a forma de uma sessão única da Assembleia Geral da ONU, na qual são feitas declarações, mas sem nenhum debate real ou negociação de documentos ou resultados. Em 2014, haverá uma nova Sessão Especial, envolvendo chefes de governo e outros participantes de alto nível, mas sem negociação de documento final(15). Assim, o contexto dos últimos 13 anos pode ser definido como de “procedimentos cautelosos”.

2013: o aqui e agora 2013 pode vir a ser tão importante para a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na † Os indicadores da meta 5B ODM são: 5.3 Taxa de prevalência contraceptiva; 5.4 Taxa de natalidade entre adolescentes; 5.5 Cobertura da assistência pré-natal (ao menos uma visita e ao menos quatro visitas); 5.6 Necessidade não satisfeita de planejamento familiar12.

agenda de desenvolvimento pós-2015 quanto o foi 1994. Essa seção do artigo busca explorar os processos atuais para auxiliar os movimentos de direitos reprodutivos e sexuais. Deve-se, no entanto, lembrar que esse é um “trabalho em progresso” e que os processos se encontram em um fluxo de constante mudança. No momento de escrita desse artigo, há três processos-chave acontecendo: (1) a CIPD Além de 2014; (2) as iniciativas da Secretaria Geral da ONU e a agenda de desenvolvimento pós-2015 a partir dos ODMs; e (3) as consultas pós-Rio+20 (Conferência Internacional de Desenvolvimento Sustentável). Há outros processos que também podem influenciar e que serão discutidos brevemente. (1) CIPD Além de 2014 O processo de análise do Programa de Ação da CIPD forneceu o principal marco para a CIPD Além de 2014 e se iniciou muito antes da agenda de desenvolvimento pós-2015. A resolução que estabeleceu a CIPD Além de 2014, adotada na 65ª Sessão da Assembleia Geral16, definiu o seu processo de forma clara, fazendo com que os governos reassumissem o compromisso de alcançar os objetivos e metas, agora estendidos para Além de 2014. Adicionalmente, solicitou que o UNFPA coordenasse uma Revisão Operacional da implementação do Programa de Ação, incluindo os processos governamentais e aquelas executados pelo UNFPA. A Sessão Especial da Assembleia Geral, mencionada acima, será realizada no dia 22 de setembro de 2014. Como base para a Revisão Operacional realizou-se uma pesquisa global junto a 176 países, sobre os seguintes temas: dinâmicas e desenvolvimento sustentável; juventude; envelhecimento e as necessidades de pessoas mais velhas; necessidades de pessoas com deficiência; necessidades das populações indígenas; urbanização e migração interna; migração internacional e desenvolvimento; família, bem-estar individual e social; direitos reprodutivos e saúde reprodutiva; saúde sexual, morbidade e mortalidade; igualdade de gênero, equidade e empoderamento de mulheres; e população, desenvolvimento e educação. Um levantamento paralelo também foi realizado junto a 453 organizações da sociedade civil nacionais, regionais e internacionais, que permitiu fazer algumas comparações com as percepções dos governos. Os resultados do levantamento global foram organizados a partir de quatro princípios relacionados à CIPD: dignidade, saúde, segurança territorial e boa governança, destacando-se as realizações, déficits e os compromissos dos governos17. 67


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Dois importantes encontros internacionais também contribuíram para a Revisão Operacional. Em dezembro de 2012, realizou-se o Fórum Global da Juventude, em Bali, organizado pelo Governo da Indonésia e pelo UNFPA. Tratou-se do “primeiro processo da ONU liderado pela juventude global, para a juventude global”, reunindo mais de 3000 delegados virtuais e presenciais, que culminou com a adoção da Declaração de Bali, um documento progressista que foi entregue ao Secretário-Geral da ONU18. O segundo encontro foi a Conferência Internacional de Direitos Humanos da CIPD, realizado na Holanda em julho de 2013. Organizado pelo Governo Holandês em parceria com o UNFPA e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, envolveu mais de 300 representantes de governos, sociedade civil e de agências da ONU para debater a “relação entre direitos humanos, igualdade, responsabilização e população e desenvolvimento, com foco em gênero, discriminação, empoderamento e saúde e direitos sexuais e reprodutivos”19. Entre setembro e outubro de 2013, também se realizou o Encontro de Especialistas sobre Saúde das Mulheres - Direitos, Empoderamento e Determinantes Sociais, na Cidade do México. Todos esses encontros ofereceram contribuições, mas não houve negociação de acordos intergovernamentais em nenhum deles. Avanços no nível regional As conferências regionais da CIPD Além de 2014 foram realizadas em todas as regiões da ONU‡, algumas das quais lograram excelentes resultados na negociação da linguagem. Os resultados desses encontros são importantes por que podem ser referidos nas negociações sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015. Todas as regiões, com exceção da Ásia Ocidental, incluíram referências à “saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos” e à “educação sexual abrangente”. Além disso, incluíram os temas da violência de gênero e do casamento precoce e forçado. A Conferência para a América Latina e Caribe produziu documento particularmente forte, o Consenso de Montevideo, que inclui20: • o direito de tomar decisões livres e informadas sobre sexualidade, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero. • reconhecimento que a criminalização do aborto eleva diretamente as taxas de mortalidade materna e os Estados devem oferecer serviços de ‡

As Comissões Econômicas e Sociais da ONU para a Ásia Ocidental (ESCWA) e Ásia- Pacífico (ESCAP) e as Comissões Econômicas para a África (ECA), Europa (ECE) e América Latina e Caribe (ECLAC).

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aborto seguro e legal e para revogar a legislação que proíbe o acesso aos serviços, e • proteção dos direitos e da autonomia das mulheres, promovendo o exercício pleno dos seus direitos sexuais e direitos reprodutivos, igualdade de gênero e eliminação da discriminação e violência como compromissos fundamentais dos governos para avançar no desenvolvimento com igualdade20. As negociações mais difíceis foram realizadas no encontro regional da África, organizado pela Comissão Econômica para a África e pela União Africana, devido às questões sobre orientação sexual e identidade de gênero. Embora o texto em negociação não explicitasse essas questões em nenhum momento, alguns governos africanos entenderam que a linguagem padrão da proteção dos direitos humanos “que não faz nenhum tipo de distinção” os obrigaria a tomar atitudes para proteger esses direitos. Ainda assim, 16 países fizeram reservas à Declaração de Addis Abeba sobre População e Desenvolvimento na África Além de 2014 e um país votou contra a adoção do documento completo. Unificando o processo da ICPD O próximo passo na análise do processo da CIPD Além de 2014 já está a caminho e representa a unificação do processo em dois relatórios. O primeiro é um relatório longo que irá incluir os resultados da Pesquisa Global e o segundo será um relatório da Secretarian Geral. Ambos serão debatidos na 47ª Sessão da Comissão de População e Desenvolvimento em abril de 2014. Até o momento, não se sabe se haverá negociações em direção a um único documento de consenso ou se os temas debatidos serão registrados em um terceiro documento para se somar à resolução original, conhecida como o “relatório index”, que será apresentado na Sessão Especial. A CIPD Além de 2014 é um “processo independente”, mas que considera o contexto político internacional atual. Esse contexto favoreceu a realização do processo, minimizando os esforços de desestruturação da oposição conservadora. Seus sucessos podem ser vistos, por exemplo, no Consenso de Montevideo e na Declaração de Bali do Fórum Mundial da Juventude(18,20. Outros aspectos da Análise Operacional, especialmente os resultados da Pesquisa Global, irão oferecer dados e informações importantes para serem usados no futuro. Até o momento, porém, é difícil vislumbrar como isso irá contribuir com a agenda de desenvolvimento pós-2015 ou como e quando isso irá acontecer,


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especialmente por que as ações voltadas para o pós-2015 estão ganhando força em outros fóruns. (2) Contribuição para a agenda de desenvolvimento pós-2015, baseada nos ODMs O prazo para a realização dos ODMs acaba em 2015 e, assim, há que se continuar o trabalho com os ODMs atrasados e ainda não alcançados simultaneamente ao início das ações para desenvolver “o que vem depois”. Assim como com os ODMs, esse processo é liderado pela Secretário-Geral da ONU, com o forte apoio da Equipe Operacional de Sistemas da ONU (EOSONU), que reúne mais de 60 entidades e agências da ONU e do setor privado21. Criando a “substância”: relatórios do Secretário-Geral Como atividade preparatória, o Secretário Geral iniciou diversos painéis e consultas que já produziram ideias e comentários para a agenda de desenvolvimento pós-2015. Esses painéis envolvem especialistas e defensores que podem introduzir novas ideias caso o discurso se torne conservador. Outras iniciativas também tem contribuído para o processo, com a participação de muitos indivíduos e organizações, introduzindo elementos cruciais para os ativistas da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, como se vê a seguir.

O Painel de Alto-Nível do Secretariado-Geral da ONU Em agosto de 2012, o Secretário Geral realizou um Painel de Alto-Nível (PAL), junto com os presidentes da Indonésia, Susilo Bambang Yodhoyono, da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, e com o Primeiro-Ministro britânico David Cameron. Também participaram outros representantes dos governos, do setor privado, academia, sociedade civil e juventude. Consultas à sociedade civil e “encontros na prefeitura” foram realizados em três dos cinco encontros e foram publicados documentos após o terceiro e o quarto encontros, na Monróvia e em Bali, respectivamente. O Comunicado da Monróvia incluía uma referência específica à saúde sexual e reprodutiva. O relatório PAL, Uma Nova Parceria: Erradicando a Pobreza e Transformando Economias por meio do Desenvolvimento Sustentável, foi enviado ao secretário-geral no fim de maio de 2013, e declarava que: “Nenhuma pessoa deve ser deixada para trás.” O Painel demandou um objetivo de gênero autônomo e ilustrativo – a Meta 4D sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, atendendo à forte reivindicação das organizações

de saúde e direitos sexuais e reprodutivos22. Rede de Soluções em Desenvolvimento Sustentável O Secretário-Geral também organizou a Rede de Soluções em Desenvolvimento Sustentável (RSDS), junto com Jeffrey Sachs, diretor do Instituto Terra, da Universidade de Columbia. A Rede reúne conhecimentos acadêmicos, da sociedade civil e do setor privado “para apoiar o gerenciamento de problemas do desenvolvimento sustentável em escala local, nacional e global” e seu trabalho é estruturado em 12 grupos temáticos. O relatório da Rede, Uma Agenda de Ação para o Desenvolvimento Sustentável, foi publicado em 6 de junho de 2013. A Meta 2C se refira à “realização da saúde e dos direitos saúde sexuais e reprodutivos”, mas relacionando-os à “redução rápida e voluntária da fecundidade” e a “países com taxa total de fecundidade acima de três filhos por mulher…”. A meta 5A também inclui a assistência à saúde sexual e reprodutiva e o planejamento familiar ao “garantir o acesso universal à atenção básica à saúde”. Assim, não é difícil compreender as razões pelas quais tantas organizações da sociedade civil foram hostis ao relatório, já que a referência aos direitos sexuais e reprodutivos se dá apenas no contexto da redução das altas taxas de fecundidade (tanto nas metas, quanto no próprio texto), sem que se reconheça o seu completo alcance23. Compacto Global sobre Sustentabilidade Corporativa As posições do setor corporativo sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015 foram publicadas no relatório do Compacto Global sobre Sustentabilidade Corporativa e as Nações Unidas, intitulado Perspectivas dos Participantes do Compacto Global da ONU sobre Prioridades Globais e Envolvimento do Setor Corporativo para Atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Como esperado, a saúde e direitos sexuais e reprodutivos não estão no topo da agenda do Compacto Global, embora o Objetivo 4, sobre cobertura universal de saúde trate dos “serviços universais de saúde reprodutiva, incluindo o acesso ao controle de natalidade e à assistência qualificada ao parto.”24.

O Mundo que Queremos 2015 e outros processos para a contribuição da sociedade civil Um processo mais amplo de consulta envolvendo a sociedade civil foi instaurado por meio do site do Mundo que Queremos 2015, incluindo consultas 69


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online nacionais e temáticas25. Foram realizadas 88 consultas nacionais, cujos resultados foram postados no site. Uma análise rápida dessas informações revela que a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos é um tanto aleatória, dependendo possivelmente do nível de envolvimento dos ativistas da sociedade civil e dos órgãos da ONU relacionados ao tema, como o UNFPA. Isso demonstra a necessidade de uma estratégia ativista constante e coordenada, pois a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos ainda não se constituem em uma questão que irá “se apresentar por si só”. Onze consultas temáticas também foram realizadas seguindo processos similares que tinham um ponto comum – todas foram muito intensivas. Incluíram discussões online, artigos de opinião, consultas e reuniões com governos, organizações da sociedade civil, academia e setor privado, levando a um diálogo ou encontro de alto nível e a um relatório final com recomendações. As consultas mais relevantes para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foram Saúde, Dinâmicas Populacionais e Desigualdades. Além disso, a Educação foi importante para a inclusão da educação sexual abrangente. Uma estratégia utilizada pelas ONGs europeias para chamar atenção e trabalhar para a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos foi intensificar os comentários online no maior número de consultas possíveis, oferecendo contribuições mais extensas nos pontos mais relevantes26.

Um Milhão de Vozes Os relatórios temáticos finais do Mundo que Queremos 2015 contribuíram para o relatório provisório do secretário-geral da ONU sobre o processo, intitulado O Diálogo Global Começa: Opiniões Emergentes para uma Nova Agenda de Desenvolvimento (Março de 2013) e, mais recentemente, para o relatório Um Milhão de Vozes: O Mundo que Queremos - Um Futuro Sustentável com Dignidade para Todos (Setembro de 2013). Além disso, lançou-se o levantamento online Meu Mundo, ao qual 1,2 milhão de pessoas de 194 países responderam, indicando seis prioridades. Os resultados foram incluídos no Um Milhão de Vozes25. O Um Milhão de Vozes reitera que os atuais ODMs de saúde irão permanecer como prioridades após 2015 e demanda um objetivo geral de “bem-estar sustentável para todos”, para captar a ligação entre a saúde e outros aspectos do bem70

-estar. Também destaca a necessidade de tratar de problemas relacionados à disponibilidade de medicamentos essenciais, fortalecendo a infraestrutura dos sistemas de saúde e aumentando o número e as competências dos profissionais de saúde. A consulta de Saúde reconheceu que, no passado, a exclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos “prejudicou o avanço dos próprios ODMs e o progresso equitativo nos resultados gerais de saúde”. Salientou ainda que 222 milhões de mulheres no mundo não têm acesso a métodos contraceptivos modernos, muito menos a outros serviços de saúde sexual e reprodutiva. A consulta pediu pela reiteração das metas de acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, e recomendou a inclusão da educação sexual abrangente nos currículos escolares. A igualdade de gênero é abordada no Um Milhão de Vozes, destacando que mulheres e garotas estão entre aqueles que “estão sendo sistematicamente deixados para trás”. A violência de gênero é tratada como um fator de perpetuação das desigualdades, como violação de direitos humanos e como manifestação das relações desiguais de gênero. As perspectivas e as necessidades das jovens são destacadas no documento, reconhecendo-se a importância de sua educação, assim como do emprego, salientando-se os altos níveis de desemprego de jovens em muitos países. Também se faz menção à orientação sexual nas mensagens-chave e no texto, discutindo-se a marginalização no contexto de desigualdades e exclusão social. As dinâmicas populacionais relacionadas a padrões de crescimento populacional, envelhecimento da população, migração e urbanização também são abordadas em Um Milhão de Vozes, destacando-se as políticas de gênero responsivas. As consultas das dinâmicas populacionais destacaram as prioridades demográficas na agenda de desenvolvimento pós-2015, chamando a atenção para “a formação de capital humano durante o desenvolver da vida, com foco especial na saúde, incluindo a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos; educação, incluindo a educação sexual abrangente”. As consultas de Saúde e de Dinâmicas Populacionais também reconheceram a necessidade de fortalecimento da capacidade nacional para coletar e analisar dados demográficos (e outros dados) desagregados. Contribuição da sociedade civil por meio da consulta do Serviço de Articulação Não Governamental da ONU (SANG)


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O Secretário-Geral coletou outras opiniões sobre os relatórios junto a organizações da sociedade civil de diferentes regiões, em uma consulta liderada pelo Serviço de Articulação Não Governamental da ONU e publicada no relatório Recomendações Regionais para a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015, antes do Evento Especial da Assembleia Geral da ONU26. Comparado a esse relatório, o Um Milhão de Vozes é mais benigno e conservador. O relatório da SANG se baseia fortemente na perspectiva dos direitos, incluindo muitas das questões controversas que são prioritárias para sociedade civil, como o poder corporativo, comércio e estrutura dos investimento e orientação sexual. Além disso, demanda claramente a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na agenda de desenvolvimento pós-2015. Relatório do Secretário Geral da ONU Em agosto de 2013, foi lançado o esperado relatório do Secretário Geral da ONU, Vida Digna para Todos: Acelerando o Progresso para os Objetivos de Desenvolvimento e Avançando a Agenda de Desenvolvimento das Nações Unidas além de 201527. Esse relatório vai além da obrigação anual do Secretário Geral de relatar o progresso dos ODMs, tratando da transição para a nova agenda de desenvolvimento sustentável além de 2015. Faz menção aos relatórios do Painel de Alto Nível, à Rede de Soluções em Desenvolvimento Sustentável e ao Compacto Global e aos processos do Mundo que Queremos 2015 e d’O Diálogo Global Começa, avançando em das pautas centrais do Painel de Alto Nível, como a proposição de não excluir do processo nenhum grupo populacional. Mas o relatório ignora o objetivo autônomo e ilustrativo de gênero e a meta 4D sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, afirmando o gênero com questão transversal e revertendo a linguagem da CIPD para “saúde sexual e reprodutiva e direitos reprodutivos”. Também pode ser considerado “leve” nas questões de juventude e usa a curiosa nomenclatura “educação sexual e reprodutiva”, em lugar da mais amplamente utilizada “educação sexual abrangente”. (3) O Futuro Que Queremos: documento da Conferência Internacional de Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) O terceiro processo mais importante para os ODSs foi a Conferência Internacional de Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), sediada no Rio de Janeiro em junho de 2012. O documento de resultados,

O Futuro que Queremos, já influenciou significativamente os debates sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015 e irá continuar a orientar o processo pelos próximos meses28. No Rio, os governos concordaram em desenvolver um conjunto de ODSs que “considerem as diferentes circunstâncias, capacidades e prioridades nacionais, (que) sejam consistentes com a normativa internacional, formulados de acordo com compromissos já acordados e que contribuam para a implementação plena dos resultados das cúpulas mais importantes dos campos econômicos, sociais e ambientais…” Os objetivos devem se “voltar para ações, devendo ser concisos e fáceis de comunicar, numericamente limitados, ambiciosos, mundiais em sua essência e universalmente aplicáveis para todos os países e, ao mesmo tempo, levando em consideração as realidades, capacidades e níveis de desenvolvimento nacionais e respeitando as políticas e prioridades nacionais… Também devem abordar e focar áreas prioritárias para a realização do desenvolvimento sustentável…”28 Em conformidade com O Futuro que Queremos, criou-se um Grupo Aberto de Trabalho para desenvolver os objetivos, cujos resultados devem ser relatados à 68ª Sessão da Assembleia Geral. O Grupo foi constituído por 30 representantes, nomeados pelos Estados-Membro dos cinco grupos regionais da ONU, “para garantir representação geográfica justa, igualitária e equilibrada”28. O Grupo Aberto de Trabalho sobre os ODSs (GAT) foi estruturado durante a 67ª sessão, mas, dada a alta demanda por participação por parte dos Estados Membro, criou-se um procedimento inovador, por meio do qual três países poderiam “compartilhar” algumas das vagas, trabalhando como uma “troika”. Outras vagas foram preenchidas por apenas um país. Assim, França, Alemanha e Suíça dividem um mandato, enquanto Hungria e Benin tem mandato individual. Foram nomeados dois coordenadores, os embaixadores da ONU da Hungria e do Quênia, que já se encontraram quatro vezes. Mais quatro encontros estão planejados entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014. Além disso, será realizado um Diálogo Interativo em novembro de 2013. A 4ª sessão do Grupo Aberto de Trabalho, realizada em junho de 2013, incluiu em sua agenda a Saúde e as Dinâmicas Populacionais e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foram fortemente defendidos pelos governos e pelo UNFPA. Mas o relatório preliminar dos coordenadores omitiu todas as referências à saúde e aos direitos sexuais e 71


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reprodutivos, declarando apenas “que se destacou a importância de se respeitar e cumprir os direitos reprodutivos conforme o Programa de Ação da (CIPD)”29. Esse vocabulário faz eco ao relatório do Secretário Geral e demonstra a mesma ausência de vontade política para modificar a linguagem da CIPD de 1994, apesar de todos os avanços das resoluções da Comissão de População e Desenvolvimento e de tantos outros documentos intergovernamentais e recomendações de consultas, especialmente relacionados aos direitos sexuais. Diante dos problemas para a inclusão dos direitos sexuais no nível internacional e da ausência de clareza quanto aos acordos sobre os direitos reprodutivos, o parágrafo 145 do Mundo que Queremos utilizou a seguinte redação: “... (avançar) nos compromisso que levam à saúde sexual e reprodutiva e à promoção e proteção de todos os direitos humanos nesse contexto”. Há desacordo entre as organizações da sociedade civil sobre essa redação, mas acredito deve se considerar em que medida ela pode ser usada para garantir a inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos nos futuros documentos28. A 6ª e a 8ª sessão do Grupo Aberto de Trabalho serão importante, por que tratarão dos direitos humanos e das desigualdades (incluindo questões de gênero). O Futuro que Queremos recomendou a criação de mais dois órgãos: um Fórum Político de Alto Nível para substituir a Comissão de Desenvolvimento Sustentável e um Comitê Intergovernamental de Especialistas sobre Desenvolvimento Financeiro Sustentável. Ambos realizaram seus primeiros encontros no Evento Especial da Assembleia Geral em 25 de setembro de 2013. O Grupo Aberto de Trabalho e o Fórum Político de Alto Nível foram estruturados de acordo com O Futuro que Queremos, sendo resultados diretos do processo Rio+20, que atuam por meio de mecanismos próprios de articulação com a sociedade civil, denominados de “Grupos Principais”, cuja pauta principal é o desenvolvimento sustentável. Esse é um processo bastante diferente daquele utilizado nas Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres, que se baseia no status consultivo das ONGs junto ao Conselho Econômico e Social da ONU. Os Grupos Principais são organizados por grupos populacionais e não por tópicos temáticos. Assim, é possível que não exista grupo sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Mas há, por exemplo, grupos para Mulheres, Crianças e Jovens, Fazendeiros, Trabalhadores e Sindicatos, 72

Autoridades Locais e ONGs. “Outros participantes” deverão se envolver nos “Comitês Temáticos e de Coordenação”, mas esses processos ainda estão longe de uma definição final. Outros processos que podem produzir impactos Como mencionado, há outros processos que produzem impactos sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015, entre os quais se destaca a Força Tarefa de Alto Nível para a CIPD, que conta com integrantes altamente qualificados, incluindo os seus coordenadores (os ex-presidentes da Finlândia, Tarja Halonen, e de Moçambique Joaquim Chissano), e ativistas do campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos30. Há ainda outras atividades em andamento, como a Comissão do Status das Mulheres, cujo tema para a 58ª sessão é “Desafios e realizações na implementação dos ODMs para mulheres e crianças”, a partir do qual devem emergir questões para a agenda de desenvolvimento pós-2015. A saúde materna foi um foco prioritário no processo dos ODMs e para a Secretária Geral da ONU e, por isso, a iniciativa Cada Mulher, Cada Criança promoveu fortemente a saúde materna, com a bem sucedida Conferência sobre Parto, de 2013, e a arrecadação de 20 milhões de dólares entre mais de 250 parceiros. Na prática, porém, muito do trabalho do sistema da ONU para a agenda de desenvolvimento pós-2015 irá orientar o período de 2015 a 2030. 2013-2015: A Assembleia Geral da ONU e o monitoramento das iniciativas de implementação dos ODMs O Evento Especial da Assembleia Geral de 25 de setembro de 2013 acordou um mapa para as negociações em torno do documento de resultados pós201531, indicando o processo a ser seguido para a adoção da agenda de desenvolvimento pós-2015. As negociações intergovernamentais irão se iniciar na 69ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 16 de setembro de 2014, seguindo pela maior parte de 2015. Enquanto isso, o Grupo Aberto de Trabalho e o Comitê Internacional de Especialistas em Desenvolvimento Financeiro Sustentável seguirão com as atualizações até o início das negociações. O Presidente da Assembleia Geral da ONU irá convocar eventos da Assembleia Geral sob o tema “A Agenda de Desenvolvimento Pós-2015 - Montando o Palco”, para os quais serão convidados “a sociedade civil, instituições científicas e de conhecimento, parlamentares, autoridades locais e o setor privado”. As contribuições desses eventos serão apresentadas em um relatório síntese até o final


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de 2014. Finalmente, será convocada uma Cúpula de Chefes de Estado e Governo em setembro de 2015, após uma série de consultas preparatórias intergovernamentais convocadas pelo Presidente da Assembleia Geral da ONU. Os Chefes de Estado e de Governo reiteraram que irão priorizar os ODMS que menos avançaram ou que estão ‘fora da rota’ prevista, como “o acesso universal à saúde reprodutiva, incluindo a saúde materna”. Essa é uma redação diferente daquela geralmente utilizada, pois dá maior ênfase à saúde reprodutivo do que à saúde materna, mas ainda é muito limitada. Por outro lado, demonstra que, em fóruns específicos, os governos podem ir além da redação acordada31. A “promoção firme da igualdade de gênero” e “a eliminação das barreiras ao empoderamento de mulheres e meninas” também foram reconhecidas no documento como a base de todos os objetivos. Finalmente, destaca-se a soberania nacional, mas se enfatiza a oferta de apoio internacional para a realização dos ODMs até 2015.

O caminho para 2015… O acordo aprovado no Evento Especial esclareceu o processo dos próximos dois anos até a adoção da agenda de desenvolvimento pós-2015 pela Assembleia Geral da ONU. Uma das dificuldades foi a ausência de clareza quanto aos conteúdos de “saúde e direitos sexuais e reprodutivos” a serem incluídos na agenda. Um passo importante nesse sentido foi o lançamento da plataforma do UNFPA para o desenvolvimento pós-2015, Empoderando Pessoas para Garantir um Futuro Sustentável para Todos32, cujos conteúdos foram anunciados pelo Dr. Babatunde Osotimehin em 24 de outubro de 2013. O UNFPA demanda: • um Objetivo específico para a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres com metas incluindo os direitos sexuais e reprodutivos, coerção sexual, casamento infantil, mutilação genital feminina e violência contra as mulheres, assim como posicionar a igualdade de gênero como questão central da agenda; • uma meta específica para o Objetivo de saúde referente ao acesso universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos; • um Objetivo específico para o investimento nas capacidades de adolescentes e jovens para o desenvolvimento sustentável, incluindo metas sobre educação sexual abrangente, acesso universal a serviços, educação e capacitação para

o trabalho, e segurança para as jovens nos espaços públicos; e • incluir no Objetivo de governança ou como questão central... metas para melhorar a capacidade nacional de gerar, disponibilizar e analisar dados sociodemográficos e de saúde desagregados32. Em certa medida, ainda se trata aqui de um trabalho em andamento, mas que já oferece uma referência importante para o ativismo. As organizações da sociedade civil e outras podem enfatizar outros componentes desse conjunto, adicionar outros elementos ou modificar alguns pontos, mas pelo menos já se tem algo concreto e progressista como um bom ponto de partida. O histórico do processo de implementação do Programa de Ação da CIPD e do crescimento das forças de oposição, não permite que se tome a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na agenda de desenvolvimento pós-2015 como uma tarefa fácil. Nesse momento, também é difícil identificar como os resultados da CIPD Além de 2015 irão alimentar esse processo, para além de subsidiar parte do relatório do Secretário Geral de 2014, se os dois processos continuam a seguir por caminhos paralelos. Mas o resultado do Evento Especial da Assembleia Geral demonstra que pode haver convergência no caminho para 2015. Daqui por diante, será mais importante aproveitar as oportunidades, incluindo o processo do Grupo Aberto de Trabalho e os eventos da Assembleia Geral que, provavelmente, irão focar nos seguintes pontos: • Qual a função das mulheres, jovens e da sociedade civil na nova agenda de desenvolvimento? • Como podemos incorporar os direitos humanos e o estado de direito? • Como podemos maximizar os benefícios da cooperação sul-sul? • Como podemos fortalecer as novas e antigas parcerias? • Como podemos construir sociedades estáveis e pacíficas? Como abordaremos os desafios persistentes de acesso à água potável, saneamento e energia? Deve-se notar, no entanto, que além do trabalho dos Grupos Principais no processo do Grupo Aberto de Trabalho, é provável que haja uma forte ênfase no desenvolvimento ambiental e sustentável, os primeiros dois pilares da Rio+20, como oposição ao terceiro pilar, do desenvolvimento social. Nessa inflexão, quando as negociações no Rio se tornaram 73


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difíceis, as questões relativas às agendas ambiental e de desenvolvimento sustentável foram sobrepostas ao desenvolvimento social, às questões governamentais, às questões de saúde sexual e reprodutiva e às formas de responsabilização. Outra advertência que relativiza o otimismo do quadro proposto pelo UNFPA é a abordagem “cautelosa” à linguagem da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no relatório preliminar do Secretário Geral da ONU e nos relatórios dos Grupos Abertos de Trabalho, que mantém a redação da CIPD. Assim, o palco está montado para as futuras negociações.

Uma última ressalva... O processo que leva à agenda de desenvolvimento pós-2015 é complexo, mas dele participam centenas, se não milhares, de pessoas que querem ver a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos como prioridade nos novos ODSs. Assim, não há opção senão

avançar com as proposições dos níveis mais altos. A única coisa que não se pode permitir novamente é o que aconteceu com os ODMs em 2000. Dessa vez não podemos deixar a sala de mãos vazias.

Agradecimentos Muito obrigado a todos que ofereceram informações, ideias e ajuda para a preparação desse artigo. Agradeço em particular a Patrizia Pompili e Benedetta Pagotto (Secretariado da EuroNGOs), Sarah Shar (Federação Internacional do Planejamento Familiar), Yvonne Bogaarts e Hilde Kroes (Rutgers WPF), Françoise Girar e Shannon Kowalski (Coalizão Internacional de Saúde da Mulher) e Sascha Gabizon (Grupo Principal de Mulheres). Meus agradecimentos também a Diego Palacios, coordenador executivo para a agenda de desenvolvimento pós-2015 no UNFPA.

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Résumé Depuis que la Conférence internationale sur la population et le développement (CIPD), organisée en 1994 au Caire, a fermement placé la santé et les droits génésiques à l’ordre du jour international, la société civile et d’autres activistes ont travaillé sans relâche pour qu’ils demeurent au centre de l’autonomisation des femmes et ils ont saisi toutes les occasions d’élargir le cadre de travail pour y inclure la santé et les droits sexuels. Quand, en 2000, le processus de développement a changé avec l’introduction des objectifs du Millénaire pour le développement (OMD), la santé et les droits sexuels et génésiques ont été exclus, et ce n’est qu’en 2007 que l’accès universel à la santé génésique a de nouveau été inclus. L’avenir de la CIPD au-delà de 2014, des OMD et du programme de développement de l’après-2015 sera décidé en 2014 et 2015, après des consultations et des réunions autour du globe. Cet article fait le point des influences majeures sur les activités pour réaliser l’ordre du jour de la CIPD et résume les événements passés, présents et futurs prévus, les rapports et processus entre 1994 et 2014, qui aboutiront à la définition du programme de développement de l’après-2015 et d’objectifs du développement durable. Il conclut que nous ne pouvons absolument pas nous permettre de reproduire ce qui s’est passé avec les OMD en 2000. Nous ne devons pas repartir les mains vides ; au contraire, il faut que nous garantissions l’inclusion de la santé et des droits sexuels et génésiques comme priorité au titre d’un nouvel objectif relatif à la santé.

Resumen Desde que la Conferencia Internacional sobre la Población y el Desarrollo (CIPD) celebrada en 1994 en El Cairo puso la salud y los derechos reproductivos en la agenda internacional, la sociedad civil y otros promotores han trabado sin cesar para asegurar que continúen siendo fundamentales para el empoderamiento de las mujeres y han aprovechado todas las oportunidades para ampliar el marco a fin de incluir la salud y los derechos sexuales. Cuando el proceso de desarrollo cambió con la introducción de los Objetivos de Desarrollo del Milenio (ODM) en el año 2000, se excluyeron la salud y los derechos sexuales y reproductivos; fue solo en 2007 que se volvio a incluir el acceso universal a servicios de salud reproductiva. En 2014 y 2015, se decidirá el futuro de la CIPD más allá de 2014, los ODM y el marco de desarrollo post-2015, tras consultas y reuniones mundiales. En este artículo se evalúan las influencias clave en los esfuerzos por lograr la agenda de la CIPD y se resumen eventos, informes y procesos anteriores, actuales y futuros planificados entre 1994 y 2014, que conducen a la determinación del marco de desarrollo post2015 y los objetivos de desarrollo sostenible. Se concluye que lo único que no podemos permitir es lo que sucedió con los ODM en 2000. No debemos salir con las manos vacías, sino garantizar la inclusión de la salud y los derechos sexuales y reproductivos como una prioridad bajo un nuevo objetivo en salud.

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Cobertura universal de saúde: necessária, mas insuficiente Susana T Frieda, Atif Khurshidb, Dudley Tarltonc, Douglas Webbd, Sonia Glosse, Claudia Pazf, Tamara Stanleyg a Consultora na área de saúde e HIV, Coordenadora de incorporação de gênero em políticas e nos ODMs, Grupo de Saúde e Desenvolvimento, Departamento de Políticas de Desenvolvimento, PNUD, New York, NY, EUA. Contato: susana.fried@undp.org b Especialista em Políticas, Grupo de HIV, Saúde e Desenvolvimento, Departamento de Políticas de Desenvolvimento, PNUD, New York, NY. c Especialista em Programas, HIV, Saúde e Desenvolvimento, PNUD, Genebra, Suíça. d Coordenadora local de incorporação de gênero em políticas e nos ODMs, Grupo de HIV, Saúde e Desenvolvimento, Departamento de Políticas de Desenvolvimento, PNUD, New York, NY. e Mestranda, Universidade de Brandeis, Waltham, MA, EUA. f Mestranda, Faculdade Wagner da Universidade de Nova York, Mestrado em Arte, Nova York, NY, EUA. g Mestranda de Saúde Pública, Universidade de Wollongong, Palmerston ACT, Austrália.

Resumo: Nesse artigo tecemos algumas considerações para qualificar a abordagem da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito de cobertura universal de saúde (CUS), especialmente no contexto da agenda de desenvolvimento sustentável pós-2015. Abordamos a CUS do ponto de vista histórico, como uma questão de saúde, desenvolvimento e financiamento. Discutimos suas limitações a partir da perspectiva atual dos direitos humanos e demonstramos por que as barreiras estruturais é saúde e o contexto político e jurídico, que são essenciais para a saúde (especialmente para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos), devem ser incluídas com urgência nas discussões atuais sobre os modelos de desenvolvimento pós-2015 e em qualquer meta futura relacionada à saúde, indo além da CUS. Assim, sugerimos que, isoladamente, a CUS não levará ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e certamente não irá contribuir para o usufruto dos direitos sexuais e reprodutivos. Pelo contrário, deveria ser usada como uma ferramenta para atingir objetivos abrangentes de saúde e desenvolvimento, como, por exemplo, alcançar o nível mais elevado possível de saúde ou maximizar o tempo saudável de vida, que são objetivos fundamentados na abordagem dos direitos, o que deveria ser a aspiração da agenda de desenvolvimento pós-2015. Palavras-chave: cobertura universal de saúde, modelo de desenvolvimento, direitos humanos, financiamento da saúde, objetivos sustentáveis de desenvolvimento, saúde e direitos sexuais e reprodutivos Esse artigo explora as promessas e limitações da proposta de cobertura universal de saúde (CUS), enfatizando suas implicações para o alcance pleno do direito à saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. A necessidade de garantir a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foi recentemente confirmada no Relatório do Secretário Geral da ONU sobre o Painel de Alto Nível sobre a Agenda de Desenvolvimento pós-20151. O empoderamento de mulheres e a igualdade de gênero é um dos 12 objetivos abrangentes propostos no PAL e assegurar saúde universal e a saúde e direitos reprodutivos é uma das cinco metas do objetivo “garantir vidas saudáveis”1. No relatório de 2013 dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a análise sobre o ODM 5 (saúde materna e reprodutiva), ressalta a existência de lacunas e o atraso considerável no cumprimento das metas.

Na análise de 2011 do Programa de Ação da ICDP (ICDP pós 2014), a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução destacando a importância da repactuação dos objetivos e metas com os Estados-Membros e estendendo o prazo de implementação do Programa de Ação e de Ações Chaves para além de 2014, a fim de assegurar que as metas e objetivos sejam alcançados em sua totalidade. É oportuno o reconhecimento da importância de se abordar as desigualdades relacionadas à saúde e de promover avanços na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos. O acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos é o principal elemento do amplo objetivo de garantir a saúde como direito humano, com base na igualdade e na não discriminação, para além da ICPDs e dos ODMs2. Entretanto, outros aspectos essenciais da saúde ainda não foram alcançados, como, por exemplo, a oferta de serviços de saúde financeiramente

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42739-8

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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acessíveis para toda a população, com assistência de alta qualidade, orientada pela perspectiva da igualdade e da não discriminação3. Isso se liga aos debates sobre a CUS e ao objetivo de superar as barreiras financeiras no acesso a serviços de saúde - sejam ele de promoção ou prevenção, curativos ou de reabilitação. A constituição da OMS (1948) declara a saúde como um direito humano fundamental e isso é reiterado na Agenda de Saúde para Todos (1978)2. Os elementos centrais da CUS2 estão ancorados no direito à saúde e consagrados na normativa internacional dos direitos humanos (como, por exemplo, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, a Convenção sobre os Direitos das Crianças e a Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiências), além de estarem presentes em muitas constituições nacionais, nas quais é uma obrigação legal dos governos o apoio às pessoas na realização do direito à saúde (no qual se inclui a saúde sexual e reprodutiva). A CUS emerge como prioridade nas consultas sobre desenvolvimento pós-2015. Até então, havia sido citada na análise dos 20 anos da ICPD e na Assembleia Geral da ONU (Resolução A/67/L36). O Relatório Mundial de Saúde destacou a CUS nas edições de 2008, 2010, 2012 e 2013*. O Relatório de 2013, na verdade, enfocou as pesquisas sobre cobertura universal de saúde, expandindo a definição de “cobertura” para “assistência”4. Mas, em geral, a CUS foca muito mais na cobertura (assegurando proteção contra dificuldades financeiras) do que na assistência universal à saúde. Em junho de 2012, a Conferência de Desenvolvimento Sustentável da ONU, a Rio+20, enfatizou o papel da CUS para os avanços não só para a saúde, mas também para a coesão social, crescimento econômico e desenvolvimento. Essa conferência também expressou a demanda por ações voltadas para os determinantes sociais e ambientais da saúde e pelo compromisso com o fortalecimento dos sistemas de saúde para a oferta de cobertura universal e igualitária, por meio de processos participativos5. Assim, em dezembro de 2012, a Assembleia Geral da ONU recomendou que a CUS fosse incluída nos debates sobre a agenda de desenvolvimento pós-20155, reconhecendo explicitamente que “a importância da cobertura universal nos sistemas nacionais de saúde, especialmente * Disponíveis em: http://www.who.int/whr/en/. Relatórios

anteriores podem ser encontrados aqui: http://www.who.int/whr/ previous/en/.

através da atenção básica e dos mecanismos de proteção social, a fim de promover o acesso aos serviços para todos e, em particular, para os segmentos mais pobres da população”6. No processo de consulta sobre a agenda pós-2015 do Grupo para o Desenvolvimento da ONU, a CUS ganhou proeminência entre as temáticas das consultas globais sobre a saúde, junto a outros objetivos como a redução de desigualdades no âmbito da saúde, as doenças não transmissiveis (DNT) e a garantia das conquistas arduamente alcançadas pelos ODMs da saúde. O relatório do Painel de Alto Nível do Secretário Geral da ONU recomenda “avanços estáveis para se assegurar a Cobertura Universal de Saúde e o acesso à serviços essenciais de saúde de qualidade”7, chamando a atenção para a necessidade de coesão entre objetivos e prioridades distintos. O relatório da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (RSDS) propõe que “até 2030, todos os países devem assegurar a cobertura universal de saúde para todos os cidadãos em todos os estágios da vida, com ênfase especial na promoção de serviços básicos de saúde disponíveis por meio de um sistema de saúde bem equipado”3. Atualmente, o debate político sobre a agenda pós-2015 acontecem principalmente no Grupo Aberto de Trabalho sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis. Dada a proeminência da CUS, vale a pena investigar como essa proposta pode e deve auxiliar na consecução de outros objetivos acordados internacionalmente, como o acesso universal à saúde reprodutiva (MDG 5) e o usufruto do direito à saúde, livre de discriminação, no contexto das propostas a nova agenda de desenvolvimento. É importante destacar ainda que a atual proposta de CUS refere-se ao apoio financeiro para a assistência à saúde e não à assistência universal à saúde (ou saúde para todos), apesar da maior abrangência desse último objetivo. Esse artigo considera que essa é uma distinção crucial para os defensores do direito à saúde.

O que é a CUS? De acordo com a OMS, CUS refere-se ao acesso à serviços de saúde de qualidade e financeiramente acessíveis para todas as pessoas, assegurando que “obtenham a assistência necessária sem que para isso passem por dificuldades financeiras”. A CUS pode contribuir para a realização do direito à saúde, além de reforçar as agendas abrangentes de desenvolvimento econômico e social ao tornar serviços de saúde mais acessíveis do ponto de vista 77


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financeiro. A Organização Mundial do Parto (OMP) salienta que “a cobertura universal deve assegurar o acesso à assistência para todos os residentes de um país, independente da sua posição socioeconômica”8. De acordo com a Resolução 66/288 das Assembleia Geral da ONU, é imprescindível o “envolvimento de todos os atores do campo da saúde em uma ação coordenada e multissetorial que atenda urgentemente as necessidades de saúde da população mundial”5. A cobertura universal é alcançada quando quase todas as pessoas de uma determinada população recebem assistência para quase todas as suas necessidades de saúde, independentemente dos custos envolvidos (ressaltando-se que até o momento nenhum país atingiu 100% de cobertura)9. Ao explicar o processo para se alcançar a CUS, a OMS utiliza a imagem de um cubo tridimensional (Figura 1) com três âmbitos: população (a quem os serviços são destinados), serviços (tipos de serviços oferecidos) e custos diretos (proporção de serviços oferecidos). Cobertura significa essencialmente a remoção das barreiras financeiras à assistência por meio de mecanismos adequados de financiamento, reduzindo e, eventualmente, eliminando o pagamento por parte dos usuários. O Acesso, por sua vez, depende de vários determinantes sociais e de fatores relacionados aos sistema de saúde, como a existência de unidades de saúde, medicamentos e equipamentos em número suficiente, a disponibilidade de serviços primários, secundários

e terciários e de equipes profissionais capacitadas. A CUS não é uma solução para todos os problemas relacionados à saúde, incluindo os determinantes sociais da saúde. Ainda que seja essencial, o foco no acesso universal a serviços pode desconsiderar as diferentes formas de restrição a esses serviços - seja pela falta de infraestrutura ou de profissionais de saúde, pela vigência de certas normas sociais ou pelo estigma e discriminação10. Essas questões são cruciais para a análise da extensão da contribuição da CUS ao direito à saúde e ao acesso universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Gita Sen11 propõe uma abordagem diferente a essa questão, com foco em sete dimensões:

• fi nanciamento e proteção financeira • normas dos serviços de saúde (inclusive nos pacotes básicos),

• R ecursos humanos para saúde, • acesso à medicamentos e equipamentos médicos,

• p articipação comunitária e • determinantes sociais da saúde. Essa abordagem levanta questionamentos sobre questões negligenciadas do debate sobre a CUS.

CUS: um pouco de história Nas últimas duas décadas, um número cada vez maior de países de média e baixa, como Brasil, Índia, México, Ruanda, África do Sul e Tailândia,

Figura 1. Três dimensões a serem consideradas para o alcance da cobertura universal

Redução das taxas e divisão dos custos

Inclusão de outros serviços

Custos diretos: proporção dos custos cobertos

Extensão para os serviços não cobertos

População: quem está coberto? Fonte: adaptado de 9, 10

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Serviços: quais serviços estão cobertos?


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deram início à implementação de programas para promover a CUS. O ILO documentou esse crescimento, registrando quase 50 países que alcançaram uma considerável ampliação dos seguros de saúde até 20088,12. O sistema ONU, assim como a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Fundação Rockfeller e a Fundação Bill e Melinda Gates, lançaram um apelo para que se dê maior atenção à CUS13. Esse apelo reflete um conjunto de interesses e perspectivas – como a redução ou racionalização das despesas com assistência à saúde, a ampliação da oferta de serviços e assistência em contextos de recursos escassos e a garantia do direito à saúde – que, frequentemente, fortalecem o sistema privado de saúde nesse processo. No contexto global, há diferentes abordagens ao financiamento da cobertura universal. Alguns países utilizam a contribuição financeira por parte de todos os domicílios (Gana, Ruanda, Filipinas e Vietnã). Em outros, como na Tailândia, a CUS é financiada por meio de impostos para assegurar cobertura para quem está fora do setor formal de trabalho, para servidores públicos e para usuários de seguros privados14. Alguns defensores da CUS colocam a ênfase na promoção do direito à saúde para todos, enquanto outros enfatizam a saúde como fator essencial para o crescimento econômico ou para a realização de interesses políticos15. A expansão da cobertura e da assistência à saúde é um processo intrinsecamente político e diretamente conectado aos debates nacionais sobre desenvolvimento, previdência e bem estar sociais. A implementação da CUS como política nacional “requer a confluência de oportunidades políticas, disponibilidade de recursos financeiros (provenientes primordialmente da receita tributária) e a mobilização de fortes partidos políticos, lideres e representantes de esquerda, incluindo sindicatos”16. Como propõe Gita Sen, é necessário que todas as sete dimensões estejam alinhadas no processo.

A CUS como questão de desenvolvimento econômico Evidências apontam que a saúde precária e os custos da assistência representam um grande fardo econômico para indivíduos e para o orçamento público17. A ILO estima que os habitantes de países de renda baixa e média-baixa, como Camboja, Índia e Paquistão, gastam mais de 50% dos seus

ganhos com despesas relacionados à saúde, enquanto habitantes de países com renda média-alta gastam apenas 30% dos ganhos com saúde8. Certamente, 30% ainda é uma proporção elevada e representa um fardo para as famílias, especialmente aqueles com recursos limitados, não importa onde vivam. De fato, a cada ano, mais de 150 milhões de pessoas, muitas já vulneráveis, enfrentam graves dificuldades financeiras decorrentes do pagamento direto por serviços de saúde18,19. Além disso, há uma relação evidente entre renda e acesso à serviços de saúde no nível nacional: um alto PIB per capita está associado a um baixo déficit de assistência à saúde (isto é, a falta de acesso aos serviços de saúde)8. Ao mesmo tempo, o pacote de serviços contemplados na CUS é limitado pela capacidade financeira, infraestrutura da saúde e consenso político nacionais. Apesar dessas limitações financeiras, a CUS pode ser uma proteção contra o impacto das dificuldades financeiras decorrentes de problemas de saúde, fortalecendo a resiliência dos domicílios e comunidades no enfrentamento de problemas graves de saúde e ajudando-os a proteger-se e escapar da pobreza. Condições precárias de saúde são uma das principais causas de pobreza, reduzindo a produtividade e aumentando os custos relacionados à busca por assistência. Mas o gasto direto com assistência à saúde também é, paradoxalmente, um dos principais fatores que levam as pessoas à pobreza9. A proteção financeira é um dos pilares da CUS, por que auxilia as pessoas no acesso aos serviços ao tempo em que protege sua renda, patrimônio e subsistência. Funciona, assim, como uma intervenção de saúde e como uma medida de redução da pobreza. A expansão da cobertura no México é um bom exemplo. De acordo com avaliações feitas em 2005-06, o programa nacional de proteção à saúde conseguiu reduzir significantemente os valores desembolsados pela população, ampliando a proteção financeira, especialmente para os domicílios mais pobres20. Sendo assim, a erradicação da pobreza até 2030 - um dos objetivos propostos pelo Banco Mundial21 e pelo Painel de Alto Nível do Secretário Geral da ONU7 – requer que a CUS progrida de maneira contínua. Além de ser importante por si mesma, a saúde também é um indicador e uma fonte de desenvolvimento e, por isso, três dos oito ODMs são sobre saúde22. A expansão da cobertura para serviços há muito necessários, como a terapia antirretroviral para o HIV ou o controle da diabetes e de outras condições crônicas, também amplia o bem estar 79


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e a produtividade das pessoas, das famílias, das comunidades e das nações. No México, por exemplo, a expansão da cobertura de saúde aumentou o acesso aos serviços de pré-natal e de assistência ao parto, além de ter contribuído para uma queda significativa da taxa de mortalidade infantil23. Dessa maneira, espera-se que o México atinja o ODM4 antes de 201524†. Nesse contexto, argumenta-se que a saúde não apenas é essencial para o desenvolvimento econômico, como também para o desenvolvimento sustentável, sendo a CUS uma peça chave para alcançar esse objetivo. Entretanto, persiste a necessidade de medidas de acompanhamento para “garantir a oferta dos serviços de saúde que as pessoas realmente necessitam e com qualidade, de equipes profissionais qualificadas, motivadas e empáticas e dos medicamentos e equipamentos necessários e apropriados”25. Isso serve para lembrar que a capacidade e as normas dos serviços de saúde também são elementos fundamentais para ampliar a equidade na saúde.

CUS como uma questão de financiamento da assistência A CUS pode beneficiar especialmente aqueles que sofrem de doenças crônicas, como HIV, diabetes e doenças cardiovasculares e, em particular, a população pobre, já que os mais abastados e/ou empregados no setor formal estão, em geral, protegidos por planos de saúde estatais ou privados. Na Tailândia, por exemplo, até 2001 os diversos sistemas de pré-pagamento ou isenções de taxas alcançavam apenas 70% da população pobre ou sem plano de saúde. Com o objetivo de alcançar toda a população, em 2001 o governo tailandês implementou um novo sistema que, em 2015, havia ampliado entre 8% e12% o uso de serviços hospitalares entre os mais pobres26,27. Muitos países de renda baixa, mesmo comprometidos com o objetivo de garantir assistência para todos, enfrentam dificuldades, uma vez que a renda doméstica é insuficiente para assegurar o acesso universal à serviços básicos de saúde. Em países como Mali e Etiópia, a receita pública geral coletada através de impostos, royalties e outras fontes, representa aproximadamente 20% da receita nacional, o que corresponde a 60 dólares † A taxa de mortalidade materna no México caiu de 90,4 para cada 100.000 nascidos vivos em 1990, para 51.5 em 2010. A mortalidade infantil até os cinco anos caiu de 47.1 a cada 1.000 nascidos vivos em 1990 para 16,7 em 2010.

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por pessoa/ano para todos as áreas de política, inclusive para a saúde21. Ainda que se obtenha ajuda externa para os serviços básicos, outras barreiras persistem, como a baixa capacidade coordenação governamental. Em muitos países, a fragmentação do financiamento da saúde em diferentes fontes, como doadores, governo e sociedade civil, também dificulta a oferta conjunta de serviços. Um estudo realizado no Zâmbia, por exemplo, constatou que a harmonização das fontes de financiamento em um único programa facilita a ampliação da cobertura dos serviços de saúde28. Entretanto, mesmo que a CUS reduza os custos diretos relacionados à cobertura de serviços de saúde, ela não substitui os custos indiretos, como a perda de renda decorrente do desemprego ou da baixa produtividade enfrentada pelas pessoas doentes e por seus cuidadores. Tampouco alivia a carga familiar com as despesas extras, com a necessidade de desfazer-se de imóveis e com a acumulação de dívidas decorrentes de situações de adoecimento e/ou dos custos não cobertos pelo sistema (como transporte, por exemplo). Também não protege as pessoas do estigma e da discriminação resultantes de uma situação precária de saúde, o que pode afetar negativamente o acesso a emprego, à justiça e a outros serviços sociais. Em suma, condições críticas de saúde trazem consigo consequências potencialmente negativas e a proteção financeira prevista na CUS toca apenas em uma delas. Por fim, como especificado no Relatório da Saúde Mundial de 2010, “os fundos obtidos nunca serão capazes de alcançar 100% da população ou cobrir 100% dos custos de 100% dos serviços necessários. Cada país ainda deverá tomar a difícil decisão de como melhor alocar esses fundos”14.

CUS como uma questão de direitos humanos O direito de desfrutar do maior nível possível de saúde está consagrado no cerne da normativa internacional de direitos humanos e também é referência nas constituições nacionais. O esforço para a realização desses direitos vai necessariamente para além dos serviços e commodities e alcançam outros determinantes sociais da saúde e situações de discriminação dentro do sistema de saúde. Além disso, a discussão sobre os direitos humanos engloba também a questão da responsabilização. A implementação da CUS requer a coerência dos mecanismos de responsabilização que monitoram os compromissos relacionados aos direitos humanos


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e à saúde, assegurando a ampla participação de mulheres e outros grupos marginalizados e um processo transparente de monitoramento dos recursos. Isso é especialmente importantes em função do debate atual sobre mecanismos adequados de responsabilização, métodos de monitoramento e elaboração de compromissos à luz dos direitos humanos. A CUS representa o compromisso para que todas as pessoas tenham acesso à assistência à saúde e à serviços independente do sexo, etnia, classe social, religião, orientação sexual, identidade de gênero, origem social ou qualquer outro fator. O direito de desfrutar do maior nível possível de saúde está previsto no artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais29 e ancorado na ideia de responsabilização por parte dos Estados Membros da ONU, que assumiram os compromissos e devem prestar contas dos mesmos30. O usufruto do direito à saúde depende do direito de viver livre de discriminação, da extensão dos serviços de qualidade promovidos pela CUS e da participação comunitária nos mesmos e, ainda, se os determinantes sociais de saúde foram considerados no planejamento e implementação da oferta de serviços. São muitas as proposições, em todas as áreas, sobre o que deve ser incluído em uma CUS baseada em direitos: fortalecimento dos sistemas públicos de saúde31, boa governança, que considere questões de gênero, geração e território32, além de obrigações governamentais e mecanismos de responsabilização33, justiça, igualdade no acesso à serviços de saúde de qualidade e à medicamentos essenciais34. A mudança do objetivo para “desfrutar do maior nível possível de saúde”, contida na Declaração Alma-Ata de 197835, baseou-se em um amplo debate sobre os direitos humanos, oriundo das reações à Segunda Guerra Mundial e que foi muito além das questões de saúde. Outras normativas e padrões de direitos humanos podem ser úteis para auxiliar a traduzir o direito à saúde e à não discriminação - e mesmo a totalidade dos direitos humanos - para o contexto da CUS. Isso inclui normas de execução progressiva, de não regressão e de níveis mínimos, que consideram que ainda que os recursos sejam limitados, os Estados Membros tem o dever de cumprir com suas obrigações relativas aos direitos humanos - mesmo que se distinga entre implementação imediata e a longo prazo36,37. O Comentário Geral n. 14, Artigo 12.2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais explicita que: “O direito à saúde não deve ser interpretado como o direi-

to à ser saudável. O direito à saúde abrange tanto liberdades quanto direitos. As liberdades incluem o direito de posse sobre próprio corpo e a própria saúde, incluindo a liberdade sexual e reprodutiva e o direito de não sofrer intervenções, como o direito de não ser torturado, de não ser induzido a tratamentos forçados e a experimentação. Em contrapartida, esses direitos incluem o direito a um sistema de saúde que promova a igualdade de oportunidades para que as pessoas desfrutem do maior nível possível de saúde (sublinhado nosso)”30. Finalmente, o principio de não regressão significa que os Estados Membros não podem regredir no nível de compromissos já alcançados37.

Evidências de que a cobertura universal de saúde é necessária, mas não suficiente para alcançar os objetivos ligados à saúde Os países que avançaram na implementação da CUS ainda enfrentam desafios, como as persistentes desigualdades na saúde (ligadas aos determinantes sociais da saúde e/ou à discriminação) e a baixa qualidade da assistência (devido à infraestrutura inadequada ou à disparidade entre a oferta de serviços e as necessidades de assistência). Assim, observa-se avanços nas políticas de cobertura universal de saúde no Brasil, México e Ruanda, mas ainda há muitas falhas. No México, ainda existem desigualdades e disparidades na oferta de recursos para a saúde entre os estados e no interior de cada um deles - e entre áreas urbanas e rurais - o que produz resultados de saúde distintos. O Seguro Popular, por exemplo, avançou na prevenção, nos diagnósticos iniciais e no tratamento do câncer de colo do útero, mas esses resultados não atingiram o âmbito nacional: a incidência e a taxa de mortalidade ainda são mais altas nos estados mais pobres do sul do que em qualquer outro lugar no país24. Além disso, em 2012 a taxa de mortalidade infantil no estado de Nuevo Leon foi estimada em 9.4 para cada 1.000 nascidos vivos, mas em Guerrero essa taxa foi de 18.6. A mortalidade materna em Tlaxcala foi de 27 para cada 100.000 nascidos vivos, enquanto em Oaxaca essa taxa foi de 9924,38. Padrões semelhantes de desigualdade também podem ser observados em Ruanda. Mesmo que o Programa de Proteção à Saúde da Comunidade Ruandesa (Mutuelle) tenha levado a um aumento significativo na utilização de serviços e a uma redução do risco de enfrentar graves dificuldades financeiras decorrentes do pagamento direto de serviços de saúde pelos beneficiários, entre os 81


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mais pobres ainda se observa índices muito baixos de utilização dos serviços e níveis mais altos de dificuldades financeiras graves quando comparados às classes de maior renda34. E no Brasil, mesmo com a presença de um sistema bem estabelecido de cobertura universal de saúde, verifica-se a desigualdade etária no acesso à assistência pré-natal para adolescentes e mulheres jovens, ainda que 20% das crianças nascidas em 2008 tenham sido filhas de mães adolescentes39. O acesso a serviços não garante automaticamente a qualidade da assistência nem a observância dos princípios dos direitos humanos propostos pela Convenção Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (disponibilidade, gratuidade ou baixo custo, aceitabilidade e qualidade). Na Tailândia, por exemplo, onde a política da CUS está em vigência desde 2002, déficits e má distribuição de profissionais de saúde qualificados foram citadas como as maiores barreiras para se alcançar o acesso universal40. Na Nicarágua, uma análise dos planos de saúde para trabalhadores do setor informal demonstrou que os impactos previstos não foram alcançados em parte pelo fato de não se garantir a qualidade mínima na assistência41. Em contextos mundiais de escassez de recursos, a CUS requer uma adaptação da extensão da cobertura para garantir a qualidade da assistência.

A CUS como meio para um fim, mas não como um fim em si Muitos dos defensores da CUS enxergam-na como um passo concreto em direção ao objetivo de longo prazo de concretizar o direito à saúde para todos e assegurar vidas com saúde. As mudanças na expectativa de vida e outros indicadores de resultados no campo da saúde podem demorar gerações para serem alcançados, enquanto outras metas podem se materializar em um período de 15 a 20 anos, assim como qualquer outro compromisso de desenvolvimento. Dessa maneira, para muitos defensores da saúde e direitos sexuais e reprodutivos, a CUS pode ser vista como um objetivo tático que auxilia a realização do objetivo principal, isto é, que todas as pessoas usufruam da totalidade dos direitos humanos. Isso significa que medidas adicionais à CUS são necessárias para maximizar os resultados de saúde, para reduzir as desigualdades e acelerar o progresso dos objetivos mais amplos de desenvolvimento. Para isso, existem duas medidas chaves: a ação sobre os determinantes 82

sociais de saúde e a implementação de outras proteções sociais e legais42-45. Há determinantes sociais que são fonte de desigualdades profundas. São eles: níveis e distribuição de renda, educação, moradia, nutrição e segurança e estão enraizados nas normas sociais, nas leis e políticas e nas instituições governamentais. Determinantes sociais podem, por sua vez, influenciar diretamente comportamentos de riscos, como sexo desprotegido, dietas pobres em nutrientes, ausência de atividade física e o uso de drogas, tabaco e álcool. Também impedem que pessoas, especialmente as mais vulneráveis e marginalizadas, tenham acesso a serviços de saúde, mesmo quando os serviços estão disponíveis e são prestados gratuitamente. Leis punitivas, por exemplo, também continuam impedindo que pessoas vivendo com o HIV, homens que tem relações sexuais com outros homens, transgêneros e trabalhadores do sexo tenham acesso à terapia antirretroviral, apesar da notável ampliação do acesso ao tratamento do HIV desde 2012. Ações externas ao setor saúde podem influenciar comportamentos de forma positiva, além de remover barreiras aos serviços de saúde e, assim, promover melhores resultados de saúde através de, por exemplo, avanços das condições sociais, de moradia e de nutrição, que contribuíram com quedas drásticas da prevalência e incidência da tuberculose nos países de renda alta, antes do advento dos medicamentos eficazes contra a tuberculose46-48. A taxação do tabaco e as zonas livres de fumo - medidas que requerem ação coordenada e multissetorial - são armas fundamentais na luta contra as doenças relacionadas ao fumo49. Transferências de renda são outra área promissora de ação multissetorial, que pode aumentar a procura por serviços de saúde, influenciar comportamentos de risco, melhorar os resultados de saúde, aumentar a adesão à testagem e ao tratamento do HIV50,51-52,53. Estudos recentes também destacam como a transferência de renda pode mudar comportamentos de risco relacionados ao HIV principalmente entre mulheres jovens, levando a um declínio significativo da incidência do HIV ou dos fatores de risco a ele relacionados54,55. Além das ações de enfrentamento aos determinantes sociais de saúde, medidas de proteção social e jurídica associadas à CUS também são imprescindíveis para garantir a equidade no acesso à assistência, incluindo a saúde sexual e reprodutiva. Tais medidas podem ser a implantação de sistemas de pensões, subsídios para a habitação e medidas de proteção ao trabalho e direitos trabalhistas.


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Normas sociais e culturais e leis e políticas restritivas dificultam o acesso à serviços de saúde. Algumas dessas barreiras são: leis que criminalizam o sexo consensual entre parceiros do mesmo sexo (em vigor em 78 países), que criminalizam o sexo fora do casamento ou profissionais do sexo, além de leis que negam o acesso ao aborto seguro, bem como as que impedem que jovens busquem informações sobre a saúde sexual e reprodutiva e à serviços de saúde56.

As implicações para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos Saúde e direitos sexuais e reprodutivos podem ser sistematicamente negligenciados em muitos “pacotes de serviços essenciais”, mas argumentamos que, se queremos assegurar o acesso a esse tipo de assistência e a realização desses direitos para as mulheres, três fatores específicos merecem atenção dentro e além do setor saúde: acesso, estrutura política e jurídica nacional e normas sociais. TK Sundari Ravindran chama a atenção para a existência de obstáculos sistemáticos relacionados a gênero em todos os níveis: o custo dos serviços é maior para as mulheres do que para os homens, em parte devido ao alto custo do pré-natal e dos serviços de parto, mas o acesso também é dificultado pela mobilidade restrita das mulheres e pelo menor acesso a recursos57. Por fim, a escassez da oferta de serviços de assistência à saúde da mulher, os horários limitados de atendimento e a falta de creches também impedem o acesso das mulheres aos serviços58. Outros exemplos de discriminação explícita são as leis que negam à mulher o direito de consentir com a intervenção médica59 ou que exigem a permissão de pais ou maridos para o uso de contraceptivos60. As leis e políticas discriminatórias neutralizam ou destroem os avanços das CUS. De maneira similar, algumas leis e políticas podem ser diretamente contrárias aos objetivos acordados globalmente. Em 2008, por exemplo, 98% dos países permitiam o aborto em caso de risco de morte da mãe e apenas 28% permitiam que fosse feito por solicitação da mulher. E apesar da MDG 5 focar na mortalidade materna, a redução dos 13% da mortalidade materna que decorre do aborto inseguro61 quase nunca é considerada como um meio para alcançar o objetivo.

Cobertura universal de saúde e a agenda de desenvolvimento pós-2015 Apesar dos inúmeros apelos para ação e compromisso feitos pela ONU, os avanços na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos ainda estão muito

atrás daquelas alcançados pelos outros ODMs. Enquanto alguns países se esquivaram das suas obrigações de promover serviços de saúde sexual e reprodutiva por causa das barreiras colocadas pela oposição política ou religiosa, outros fracassaram em priorizar as necessidades e os direitos das mulheres devido à normas sociais que subordinam as mulheres. Em outros países, as políticas já existem no papel, porém poucos recursos são destinados para a sua execução. Infelizmente, não há nos ODMs linguagem ou marco referencial específico para abordar as muitas sensíveis intrínsecas à saúde e direitos sexuais e reprodutivos, especialmente aquelas relacionadas à sexualidade e ao gênero. Essa lacuna foi levantada durante a Cúpula Mundial, em 2005, na qual os lideres mundiais reconheceram que a exclusão das metas e indicadores relacionados à saúde sexual e reprodutivas estava impedindo o avanço no campo da saúde materna, do combate ao HIV, da igualdade de gênero, da sobrevivência infantil e da redução da pobreza62. Um desenvolvimento promissor nesse sentido, especialmente em termos do fortalecimento da responsabilização à nível nacional no contexto do ODM5, foi a instalação da Comissão de Informação e Responsabilização sobre a Saúde da Mulher e da Criança. O sistema de responsabilização da comissão inclui indicadores de resultados e recursos, assim como um plano de ação para melhorar as informações sobre a saúde. Entretanto, o tópico da saúde sexual e reprodutiva masculina segue praticamente invisível. O tratamento dado à saúde na agenda de desenvolvimento pós-2015 é crucial para garantir o direito à saúde, à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos sexuais e reprodutivos. Com base nos dados disponíveis, concluímos que a CUS deve ser considerada um meio para alcançar objetivos mais abrangentes de saúde e desenvolvimento. Logo, o objetivo da saúde deveria ser formulado dentro da agenda pós-2015 para o desenvolvimento sustentável como um objetivo para alcançar o maior nível possível de saúde ou maximizar vidas saudáveis. As consultas globais sobre saúde do Grupo de Desenvolvimento das Nações Unidas (GDNU) e do Painel de Alto Nível do Secretário Geral da ONU, propuseram esse objetivo abrangente. Os benefícios são claros: o foco permaneceria no objetivo final de maximizar a saúde, mas assegurando simultaneamente uma abordagem igualitária e baseada em direitos para o fortalecimento dos sistemas e da qualidade dos serviços de saúde. Essa abordagem seria, de fato, transformadora. 83


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Agradecimentos O autor gostaria de agradecer profundamente Tenu Avafia, Mandeep Dhaliwal, Vivek Divan,

Kate Lifanda, Brian Lutz, Deena Patel, Roy Small e Mami Yoshimura pelos comentários úteis e atentos aos nossos tópicos e a esse artigo.

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Résumé Cet article met en évidence les principaux éléments à considérer pour mieux aborder les questions de santé et de droits sexuels et génésiques dans le cadre de la couverture sanitaire universelle (CSU), en particulier dans le contexte du programme du développement durable de l’après-2015. Nous examinons la CSU comme thème du développement sanitaire et du financement des soins, et son histoire. Nous discutons de ses limites telles qu’elles sont actuellement comprises dans une perspective de droits de l’homme. Nous montrons pourquoi les obstacles structurels à la santé, et l’environnement politique et juridique, essentiel pour la santé (en particulier pour la santé et les droits sexuels et génésiques), doivent être examinés de manière critique dans les discussions actuelles sur la santé dans le programme du développement de l’après-2015 et doivent être pris en compte en allant au-delà de la CSU dans tout objectif futur relatif à la santé. Par conséquent, à notre avis, la CSU n’aboutira pas seule à un accès universel à la santé sexuelle et génésique, et certainement pas aux droits sexuels et génésiques. Elle devrait plutôt être considérée comme un moyen de parvenir à des objectifs de santé et de développement élargis. Le programme de développement de l’après-2015 devrait aspirer à atteindre un objectif, étayé par une approche fondée sur les droits, tel que la jouissance du meilleur état de santé ou d’une vie aussi saine que possible.

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Resumen En este artículo se destacan consideraciones clave para tratar mejor los asuntos de salud y derechos sexuales y reproductivos relacionados con la cobertura sanitaria universal (CSU), en particular en el contexto de la agenda de desarrollo sostenible post-2015. Consideramos la CSU como un asunto de desarrollo en salud y de financiación de servicios de salud, y estudiamos su historia. Discutimos sus limitaciones tal como se entienden actualmente desde el punto de vista de derechos humanos, y mostramos por qué las barreras estructurales a la salud y el ambiente legislativo y político, que son esenciales para la salud (en particular la salud y los derechos sexuales y reproductivos), requieren consideración crítica en las deliberaciones sobre la salud en el marco de desarrollo post-2015 y deben tomarse en cuenta más allá de la CSU en todo futuro objetivo relacionado con la salud. Por consiguiente, sugerimos que la CSU por sí sola no basta para garantizar acceso universal a servicios de salud sexual y reproductiva, y menos a los derechos sexuales y reproductivos. Debe considerarse como un medio para lograr metas más generales en salud y desarrollo. La aspiración para la agenda de desarrollo post-2015 debería ser una meta como procurar alcanzar el más alto nivel posible de salud o maximizar el número de vidas saludables, en la cual influya una estrategia basada en derechos.


Não há bônus sem ônus: investindo em meninas e mulheres por meio do financiamento ao ativismo, organização, judicialização e ações para a mudança cultural Theresa McGovern Professora de População e Saúde da Família, Universidade de Columbia, Faculdade Mailman de Saúde Pública, Nova York, NY, EUA. Contato: tm457@columbia.edu

Resumo: O novo modelo de desenvolvimento pretende associar as expectativas de sustentabilidade ambiental, política e financeira a metas internacionais de erradicação da pobreza. Ainda assim, muitas vezes as instituições nacionais, os financiadores e as agências internacionais de desenvolvimento não conseguem lidar corretamente ou confrontar as questões politicamente complexas e sensíveis que articulam religião, status socioeconômico e vida social, cultural e familiar. A confiança cada vez maior no investimento privado pode fragilizar ainda mais a perspectiva dos direitos das mulheres. O modelo apresentado no Relatório do Painel de Alto Nível poderia tratar dessas questões de forma mais adequada, embora tenha qualificado os ODMs ao expandir as metas relacionadas às mulheres. O sucesso, porém, depende do apoio à poderosa articulação entre ativismo, construção de movimentos e uma combinação complexa de estratégias de base capazes de alterar práticas culturais, leis e políticas públicas danosas às mulheres e meninas. O financiamento do ativismo e de intervenções de direitos humano é um imperativo, mas os conflitos entre governos e parcerias público-privadas tem minado a confiança nesses dois setores. A análise das ações em defesa dos direitos das mulheres, em termos de infraestrutura e apoio financeiro, em Bangladesh e na África do Sul, demonstra a necessidade de vigilância e investimento de longo prazo para a efetividade do trabalho. Palavras-chave: igualdade de gênero, status das mulheres, marcos internacionais de referência sobre direitos das mulheres, metas de desenvolvimento sustentável, organismos nacionais de gênero, financiamento para direitos das mulheres, direito consuetudinário, assistência ao desenvolvimento, África do Sul, Bangladesh Muitos governos têm firmado múltiplos compromissos para financiar e promover a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres. Esses esforços incluem a Quarta Conferência Mundial de Mulheres em Beijing (1995)1, a 23ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) (200)2, a Cúpula do Milênio (200), e a Comissão sobre o Status das Mulheres (2006)4. Ainda assim, as mulheres continuam a carregar o peso da pobreza e da discriminação5. Nesta conjuntura, quando os governos tratam de uma nova agenda de desenvolvimento, é importante examinar aonde chegaram esses compromissos internacionais em determinados países e qual a função dos financiadores quanto a seus resultados. As aspirações pelos direitos das mulheres foram comprometidas pela confiança exagerada em métodos questionáveis, mas politicamente aceitáveis, de lidar com a igualdade de gênero, tais como a generalização de gênero? Houve financiamento ou apoio governamental adequado para ações criativas de altera-

ção da cultura e do direito consuetudinário, que são danosos para as mulheres e meninas, como o assédio em espaços públicos (“eve-teasing”)6 e as leis de primogenitura do direito de família7? Maior apoio deve ser dado a organizações como a Mulheres Vivendo sob a Lei Muçulmana, uma rede cujo programa “Mulheres Reivindicando e Redefinindo Cultura” fortalece a capacidade das mulheres para documentar, defender e intervir na cultura que lhes nega direitos. Ou para o Consórcio Puentos de Encuentro na América Central e Latina que levam as questões de direitos e saúde sexual e reprodutiva para o debate público, utilizando a televisão e outras mídias8. Ou, ainda, programas de direitos humanos como o Centro de Judicialização da África do Sul que vem desafiando as leis consuetudinárias danosas às mulheres. Nesse artigo, defendemos a tese de que programas e políticas públicas homogêneas, geridos por financiadores, subfinanciados e elaborados apenas pelo governo não são suficientes para

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42741-6

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garantir a proteção e a promoção de direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais baseados na igualdade de gênero. Para isso, analisamos o financiamento, a programação, os impactos de gênero e o empoderamento de mulheres na África do Sul e em Bangladesh9-11. Esses estudos de caso demonstram a importância do apoio ao ativismo e a intervenções que questionam as interpretações patriarcais de cultura, transformando a legislação e práticas sociais danosas às mulheres.

Financiamento e implementação nacional dos modelos internacionais para a igualdade de gênero Mais de 95% dos Estados-Membros da ONU - 185 Países - assinaram a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW, 1979)5,12. Em suas recomendações gerais, o comitê da CEDAW encoraja todos os atores políticos a destinarem recursos para superar os obstáculos à participação e à representação plena das mulheres13-15. A Plataforma de Ação de Beijing enfatiza a necessária natureza multissetorial do financiamento para a igualdade e empoderamento de gênero. Para isso, os governos deveriam analisar sistematicamente a forma como as mulheres podem ou não se beneficiar ou se prejudicar pelos gastos do setor público, ajustando os seus orçamentos para garantir a qualidade de acesso aos gastos do setor público e cumprir os compromissos relacionados a gênero. Além disso, deveriam alocar recursos suficientes em organismos nacionais, no setor privado e em entidades da sociedade civil que pudessem contribuir para a implementação e o monitoramento da Plataforma de Ação. Finalmente, os países envolvidos no processo internacional de desenvolvimento deveriam analisar criticamente seus programas de assistência para adotar a abordagem de gênero1. No ano 2000, a Assembleia Geral da ONU reiterou a necessidade de cooperação financeira internacional contínua para atingir as metas de Beijing2. Esse compromisso se refletiu na aprovação da meta de utilização de 0,7% do PIB de países desenvolvidos para a assistência oficial ao desenvolvimento, refletindo a demanda de Beijing por uma arquitetura abrangente de gênero1,2. Em 2006, a Comissão do Status da Mulher da ONU reiterou esses compromissos, encorajando processos orçamentários de gênero mais responsáveis em todos os setores e o financiamento adequado para medidas específicas para mulheres4. 88

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e os direitos das mulheres Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) deveriam ser operacionalizados na Plataforma de Ação de Pequim e nos compromissos da Assembleia Geral da ONU para conduzir e mensurar os avanços no nível nacional16. A MDM3 foca na igualdade de gênero e no empoderamento das mulheres17 e é mensurada principalmente pela melhoria na educação das meninas e pelo número de mulheres eleitas para cargos oficiais. A implementação dos ODMs terminou por criar nichos para áreas interrelacionadas complexas como HIV e saúde materna, menosprezando o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva12,18,19. Além disso, não há monitoramento nem dos avanços nem das violações de direitos humanos, tampouco são monitoradas a efetividade das medidas de governância e responsabilização para garantir os avanços20,21. As desigualdades não são mensuradas de maneira adequada20,21: as metas e os indicadores de mortalidade infantil e de mortalidade materna, por exemplo, são medidas em termos de reduções médias, não divididas em quintis, o que revelaria o fracasso na melhoria da situação de mulheres nos 4º e 5º quintis em qualquer contexto22,23. Apesar da mobilização produzida, os ODMs refletem a desatenção para a situação das pessoas mais vulneráveis, o que afeta gravemente o seu principal propósito. A programação com base em resultados, tal como incentivada pelos financiadores, levou à oferta de serviços de saúde para aqueles que não são marginalizados e são mais facilmente alcançáveis24.

Direitos das mulheres e eficácia da cooperação internacional A concordância dos 192 Estados-Membros da Organização das Nações Unidas25 e de 23 organizações internacionais em apoiar os ODMs em 200026 deve-se parcialmente às dificuldades de se administrar as demandas dos financiadores. Nos anos 1990, o Comitê de Cooperação ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (CAD/OCDE)27, liderou um movimento pela eficácia da cooperação com o objetivo de agilizar as atividades dos financiadores, garantindo uma melhor relação custo-benefício. Os governos e financiadores participantes do Consenso de Monterrey (2002) reconheceram a importância de uma abordagem holística ao financiamento para o desenvolvimento,


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salientando a necessidade de se reforçar as ações de capacitação para a elaboração de orçamentos de gênero28. Entre 2002 e 2005, o CAD/OCDE concentrou os seus esforços na criação da Agenda da Eficácia da Cooperação26. A sociedade civil se envolveu profundamente nesse processo, especialmente na elaboração da Declaração de Paris sobre a Eficácia da Cooperação. No entanto, a função da sociedade civil foi minimizada nos componentes relativos à implementação da Declaração29 e as organizações de mulheres terminaram sendo excluídas das negociações. A Declaração de Paris (2005), a Agenda de Ação de Accra (2008) e a Parceria de Busan para Cooperação Eficaz ao Desenvolvimento (2001) revelam uma evolução no discurso sobre a igualdade de gênero e o desenvolvimento8. Paris ignorou as questões de gênero, mas a pressão das ativistas pelos direitos das mulheres levou Accra a proclamar a igualdade de gênero como um dos pilares do desenvolvimento e Busan ampliou esse alcance e sua relevância31. No mesmo ano, incluiu-se um Questionário Opcional sobre a Igualdade de Gênero ao monitoramento e ás atividades de avaliação da Declaração de Paris32. O impacto de Accra e Busan, entretanto, continua incerto33-35. Apesar dos diversos compromissos internacionais e regionais para a igualdade de gênero36, a incorporação da perspectiva da igualdade de gênero nas áreas de ação importantes - como a mobilização de recursos nacionais para o desenvolvimento, comércio, fluxo privado de capital, cooperação oficial ao desenvolvimento, crédito e outras questões relacionadas ao sistema financeiro internacional - não é automática37-39. Ademais, não foram definidos prazos ou protocolos oficiais para a integração com outras metas de desenvolvimento. A capacidade das organizações de direitos das mulheres para monitorar a implementação de todos esses acordos também foi gravemente limitada pela falta de apoio financeiro, indisponibilidade de dados públicos, problemas quanto à definição dos projetos para a igualdade de gênero e quanto às estruturas institucionais específicas nas diferentes áreas de políticas38. Em 2008, foi criada a Campanha pela Reforma da Arquitetura Institucional para a Igualdade de Gênero, por mais de 300 organizações de mulheres, para pressionar governos e o Secretariado da ONU para a correção dessas deficiências. Em julho de 2010, em resposta a essa demanda crescente, o Secretário Geral da ONU criou a Unidade para a Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), administrada por

uma Subsecretária-Geral e com um quadro intergovernamental, que atua de forma ostensiva na criação de oportunidades para qualificar as ações voltadas para a igualdade de gênero no sistema da ONU. A ONU Mulheres, porém, não tem orçamento suficiente para implementar suas ações. O seu orçamento é de apenas 235 milhões de dólares anuais, enquanto UNFPA conta com 934 milhões de dólares e o PNUD com 4.8 bilhões de dólares8.

Contexto fiscal e de desenvolvimento para a implementação dos compromissos relativos à igualdade de gênero São limitados os avanços na distribuição dos recursos para tornar realidade as metas internacionais de empoderamento de mulheres e da igualdade de gênero36,40,31 e relaciona-se a tendências financeiras de nível macro, nas quais o papel dos financiadores e problemas de responsabilização são pontos críticos. Diversos fenômenos moldaram o contexto atual do desenvolvimento e dos sistemas financeiros. A crise do petróleo de 1979 teve um efeito duradouro nos serviços de saúde e na oferta de serviços públicos, graças aos aumentos consideráveis do preço do petróleo e do valor do crédito42. O Fundo Monetário Internacional aumentou os juros logo em seguida, resultando em uma crise inflacionária que deixou países pobres altamente endividados. O FMI colocou condições para o acesso a empréstimos que levaram aos ajustes estruturais para reduzir o déficit público em muitos países43. Os juros altos limitaram a quantidade de fundos disponíveis e os salários foram reduzidos para se controlar a inflação. A desvalorização das moedas atraiu o investimento privado internacional44 em setores que antes eram públicos, como a saúde, educação e transporte45-47. Como resultado, foram reduzidos os investimentos em serviços públicos e os salários dos servidores e, com isso, caiu também o número de empregados nesse setor – atingindo desde a área de infraestrutura até a saúde e a educação. Nos países em desenvolvimento, os recursos do setor privado sempre foram uma parte importante das transferências financeiras, consistentemente mais alta do que a cooperação bilateral para o desenvolvimento(48). Durante as décadas de 1980 e 1990, as parcerias público-privadas foram experimentadas em muitos países, uma vez que muitos governos haviam privatizado os serviços de saúde, transformando-se em regulador de serviços em lugar de prestador. Na maior parte dos casos, as mudanças nos mecanismos de financiamento e 89


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no equilíbrio entre as receitas tributárias, seguro social ou privado, pagamentos diretos feitos pelos usuários e a assistência externa afetou as mulheres de maneira desproporcional37,49,50. Em mais de 60% dos países de baixa renda, o gasto direto dos usuários com saúde passou a representar 40% do total dos gastos com saúde. Há evidências de que, para as mulheres, os gastos diretos com o parto são desastrosos51. Também houve mudanças nos mecanismos de organização, incluindo a descentralização, abordagens setoriais, reformas na logística e nos sistemas de fornecimento associados à privatização e mudanças nos mecanismos de desembolso43,44. Ao longo das últimas décadas, as parcerias público-privadas prosperaram. A plataforma de parcerias público-privadas deu à indústria farmacêutica uma moeda de troca para implementar os Acordos sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordos TRIPs) para patentes exclusivas de longo prazo e para a proibição de licenciamento de medicamentos essenciais por parte dos governos(52). As parcerias ente agentes da ONU, instituições financeiras internacionais e o setor corporativo resultaram muitas vezes em investimento maior, e muitas vezes vertical, acompanhado de falta de transparência e indisposição para lidar com as questões relativas aos direitos. A relativa incapacidade dos ministérios da saúde e de políticas para mulheres em comparação com os ministérios das finanças, que realmente negociavam os empréstimos e definiam os orçamentos nacionais, tornou-se ainda mais confusa ao tratar da igualdade de gênero53. Ademais, as consequências distributivas e sociais da liberalização dos mercados e de outras políticas econômicas, incluindo o investimento e comércio internacional, carecem de análises a partir da ótica da igualdade de gênero. Há falta de coerência entre políticas econômicas que enfatizam a inflação baixa e a mobilidade de capital e os compromissos sociais para a redução de pobreza, sustentabilidade ambiental e igualdade de gênero. Em alguns países e contextos, iniciativas orçamentárias que levam em conta a questão de gênero conseguiram preencher as lacunas entre problemas macroeconômicos e alocação de recursos54. No entanto, esses resultados são instáveis e ainda avaliados como desafios. Iniciativas contínuas requerem a análise de gênero durante todo o ciclo orçamentário, considerando receita e despesas e envolvendo o conjunto dos atores do campo - ministérios da fazenda, organismos de políticas de mulheres, institutos de estatística e planejamento, 90

parlamentares, mídia, organizações internacionais, sociedade civil e financiadores47. Há pouco conhecimento sobre a influência prática do setor privado no desenvolvimento. Em geral, faltam medidas de responsabilização que se apliquem à implementação dessas parcerias e à a adesão aos acordos de direitos humanos42. Na última década, o financiamento ao desenvolvimento seguiu em processo de transformação devido às alterações nas condições econômicas, às próprias tendências do desenvolvimento e à diversidade dos novos financiadores. As economias emergentes, especialmente os Estados dos BRICS, também desempenharam um papel crucial no debate político-econômico e de desenvolvimento. As crises financeiras, como a de 2008, devastaram economias de norte a sul do globo e a redução dos Produtos Internos Brutos (PIB) resultou na diminuição da cooperação oficial ao desenvolvimento8. “Alguns atores consideram que a ênfase desproporcional na estratégia da incorporação generalizada da perspectiva de gênero nas políticas e programas (gender mainstreaming) resultou em uma redução importante na alocação de recursos para o empoderamento de mulheres e para a eliminação da discriminação de gênero. Há exceções apenas em áreas específicas como, por exemplo, na educação.”55 Desde sua introdução na Plataforma de Ação de Beijing, o gender streaming tem demonstrado ser uma ferramenta tecnicamente confusa38. A OCDE/ DAC identificou que, entre 2010 e 2011, 74% dos financiamentos que definiam a igualdade de gênero como objetivo principal ou importante foram dedicados a iniciativas de incorporar a perspectiva de gênero em políticas e programas8. Muitas vezes, as políticas que tratam da igualdade de gênero “evaporam” nos processos orçamentários e de implementação56. Apesar do apoio verbal ao empoderamento da mulheres e meninas, e do reconhecimento de que as mulheres são essenciais para o desenvolvimento econômico e para o avanço da sociedade, as ações em defesa dos direitos das mulheres ainda são gravemente subfinanciadas. Em 2011, a AWID - Associação para os Direitos de Mulheres no Desenvolvimento realizou um levantamento junto a mais de 1000 organizações de mulheres e identificou que apenas 7% tiveram orçamento maior do que 500.000 dólares, 48% não receberam financiamento institucional e 52% não receberam financiamento plurianual(8). Com o setor privado sendo o ator mais influente no desenvolvimento e com o aumento de parcerias


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público-privadas entre ONGs internacionais, agências bilaterais de desenvolvimento e empresas, há quem afirme que a tendência da “corporatização” no desenvolvimento também está mudando o discurso da cooperação em direção a um discurso do investimento. Organizações de defesa dos direitos das mulheres apontam para a corporatização da cooperação internacional e para a adoção de modelos corporativos de gestão. Com isso, tem sido maior a ênfase sobre o financiamento, monitoramento, sistemas de avaliação baseado em resultados e sobre respostas limitadas8. No seu relatório Aguando as Folhas e Secando as Raízes: O status do financiamento das organizações de mulheres e a igualdade de gênero, a AWID afirma que: “O processo essencial e contínuo de organizar mulheres… auxiliando-as a analisar as causas mais profundas de sua subordinação, construindo um poder coletivo e estratégias coletivas de mudança, apoiando as mulheres para que desafiem normas culturais e sociais que justificam sua subordinação… os elementos de base para uma luta sustentável de longo prazo para transformar as instituições e estruturas… [tudo isso] é considerado lento e difícil de mensurar… e [por isso] recebem pouco ou nenhum apoio, a não ser por um pequeno grupo de financiadores perspicazes e experientes”8 Mas o cenário do financiamento não é desprovido de inovação. Em 2008, o Ministério de Cooperação ao Desenvolvimento da Holanda criou um fundo para o ODM 3 que repassou 82 milhões de euros para 45 projetos voltados para a igualdade de gênero durante um período de quatro anos42. Com o foco na participação política, prevenção de violência contra a mulher e empoderamento econômico, esse financiamento de longo prazo para organizações de mulheres produziu mudanças significativas. Pesquisas realizadas em 70 países demonstram que a “mobilização autônoma de feministas em contextos nacionais e transnacionais – fora dos partidos de esquerda, dos governos e das elites nacionais - é o fator crítico para se alcançar a mudança política”8. O modelo de desenvolvimento pós-2015 O recente relatório do Painel de Alto-Nível da ONU sobre o modelo de desenvolvimento pós-2015 levanta questões complexas sobre o futuro das ações pelos direitos das mulheres57. Este painel, composto por 27 pessoas, demandou uma agenda única de desenvolvimento sustentável com um número

limitado de metas de alta prioridade apoiadas por indicadores mensuráveis para o período de 2015 a 203053. O relatório prevê o surgimento de um novo modelo que deve associar expectativas de sustentabilidade ambiental, política e financeira a metas internacionais de erradicação da pobreza58. O painel afirma que a igualdade de gênero deve estar “integrada a todos as metas, sob a forma de objetivos específicos e, ainda, assegurando-se que os objetivos sejam mensurados separadamente para mulheres e homens, ou meninas e meninos, quando for apropriado”53. Esse nível de imprecisão, porém, nunca é um bom sinal. Os objetivos recomendados são: prevenir e eliminar todas as formas de violência de gênero; acabar com o matrimônio infantil; garantir o direito das mulheres a possuir e herdar propriedades, assinar contratos, registrar negócios e abrir conta em bancos; eliminar a discriminação de gênero na vida política, econômica e pública e garantir o acesso e usufruto universal da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos53. Embora o relatório deva ser louvado por incluir questões cruciais ignoradas pelos ODMs, como a violência de gênero, ele nos deixa novamente com uma lista fragmentada e incompleta. A história demonstra que, a não ser que os princípios da universalidade, não discriminação, participação e responsabilização pelos direitos humanos sejam explicitamente incorporados nas estratégias, nem a discriminação de gênero nem a degradação ambiental serão eliminadas59. É provável que essas metas estreitas pouco façam para corrigir as desigualdades de gênero35. Além disso, o relatório se baseia fortemente nas parcerias público-privadas entre as agências da ONU e financiadores multi e bilaterais como um componente importante do novo modelo, sem mencionar ou questionar suas possíveis limitações(?)60. Estudos de caso As dinâmicas e expressões da desigualdade de gênero e sua interseção com as diversas estruturas de poder são altamente contextuais, mas certos padrões podem ser observados nesses estudos de caso. Bangladesh Embora Bangladesh tenha alcançado algum sucesso na melhoria da vidas de meninas e mulheres, as intervenções com foco no acesso a justiça não gozam recebem o apoio adequado, particularmente no campo das mudanças legislativas e culturais. Bangladesh é muitas vezes utilizada como 91


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exemplo de avanço na situação das mulheres, mas identificar e mensurar as fontes desses ganhos em termos de igualdade de gênero e empoderamento é uma tarefa complexa. O Banco Mundial denomina Bangladesh de “o brilhante exemplo do sul da Ásia de como um país pobre ampliou a igualdade de gênero”9, ressaltando a redução à metade da taxa de fecundidade total entre 1971 e 2004. O número de jovens mulheres no ensino secundário já ultrapassou o de rapazes em muitas partes do país e já não se observa o fosso de gênero na mortalidade infantil9. Para o Banco Mundial, a revolução do microcrédito contribuiu para a emancipação das mulheres ao facilitar sua organização e aumentar seus rendimentos, embora ainda haja críticas61-63 ao microcrédito pelo seu alto potencial de produzir endividamento9. O governo de Bangladesh firmou acordos internacionais em defesa dos direitos das mulheres e implementou medidas legislativas antidiscriminatórias para proteger as mulheres. O governo de Bangladesh é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres5, da Convenção pelos Direitos das Crianças64, da Plataforma de Ação de Beijing e, recentemente, da Convenção dos Direitos de Pessoas com Deficiência, entre outras. A legislação de proteção das mulheres inclui a Lei de Prevenção da Violência Doméstica e de Proteção às Vítimas, a Lei de Controle do Ácido de Bangladesh, a Lei de Proibição do Dote e a Lei de Controle do Crime de Ácido65-67. Apesar desses compromissos, a desigualdade e a discriminação de gênero persistem. O CEDAW aponta para a vigência de leis ainda discriminatórias, especialmente sobre o casamento, a tutela e a nacionalidade68. De fato, embora a Constituição de Bangladesh garanta a igualdade de direitos para homens e mulheres, essa garantia não se estende à esfera privada. Apesar de aderir à CEDAW, só em 2011 o governo de Bangladesh retirou suas últimas reservas ao Artigo 269. O Artigo 2 obriga os governos a garantir que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens em todas as esferas da vida e que elimine a discriminação contra as mulheres dentro do casamento e nas relações familiares5. É grande a presença das desigualdades de gênero em Bangladesh, amplamente verificada nos dados desagregados por sexo, pelos indicadores de desenvolvimento e pelos níveis de violência de gênero70. As mulheres estão sub-representadas em todas as áreas da vida pública, até mesmo em se92

tores onde houve avanços, como a educação, saúde e emprego, que comprometem o alcance do conjunto dos ODMs71. Embora a paridade de gênero tenha chegado às matrículas no ensino médio, ainda há mais meninos no ensino fundamental e rapazes nas universidades. A discrepância nas taxas de alfabetização meninos e meninas também é preocupante72. O mesmo se observa nas taxas de emprego: uma 2007, 68.3% dos homens estavam empregados, enquanto entre as mulheres essa proporção era de apenas 22.9%65. As mulheres dalit ,em particular, estão em grande desvantagem em todas as esferas73. A constituição garante a participação das mulheres na política e a 14ª Emenda reserva 45 assentos parlamentares para as mulheres74, mas, ainda assim, a participação feminina permanece baixa. As mulheres detém menos de 10% dos cargos de primeiro escalão no setor público e o relatório da 53ª Comissão sobre a Situação das Mulheres da ONU (200) identificou que a recessão econômica reduziu o número de mulheres nessas posições75. Muitos destes ganhos podem ser atribuídos aos movimentos de mulheres, que se iniciou junto com a luta anticolonial e nacionalista contra a Grã-Bretanha e o Paquistão49. E outras forças também atuam nesse campo. O declínio drástico nas taxas de fecundidade, por exemplo, não foi resultado exclusivo do compromisso com o empoderamento de mulheres, mas foi também uma resposta malthusiana ao furor contra a superpopulação dos anos 1970, que envolveu graves violações dos direitos humanos9. As organizações de mulheres lidam hoje com uma vasta agenda que envolve desde questões de empoderamento político e igualdade econômica a reformas legislativas, violência contra as mulheres e direitos reprodutivos. Os ganhos na igualdade de gênero resultam de um conjunto complexo de fatores, incluindo a mobilização da sociedade civil, a existência de lideranças femininas e as mudanças legislativas.

Organismos nacionais de políticas de gênero Bangladesh criou um vasto sistema de organismos nacionais para a promoção da igualdade de gênero. Em 1978, o governo criou o Ministério da Mulher e o primeiro de muitos planos quinquenais de políticas para mulheres. O governo reservou vagas para as mulheres no Parlamento e no setor público, incorporando as questões de gênero no planejamento das políticas de desenvolvimento. Mas o plano falhou por causa do acesso limitado das mulheres a recursos materiais e não materiais76.


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Em 1985, o plano de cinco anos colocou o foco na distribuição desigual de recursos, na redução das desigualdades de gênero na sociedade e na redução da pobreza para as mulheres mais vulneráveis. Em 1990, o quarto plano quinquenal introduziu a incorporação da perspectiva de gênero em todas as intervenções de desenvolvimento, seguindo com o foco nas mulheres pobres. Mecanismos institucionais inadequados para garantir a integração completa das mulheres aos programas de desenvolvimento impediram a incorporação do gênero, em parte por falta de financiamento9. Em 1994, o Ministério da Mulher foi reestruturado como Ministério da Mulher e da Criança, diluindo-se assim os recursos voltados para as mulheres. Em 1995, com a revisão dos programas de desenvolvimento, suas atividades foram alinhadas com os ODMs. Essa reestruturação contribuiu diretamente com as políticas voltadas para mulheres e gênero da Estratégia de Redução da Pobreza e dos planos quinquenais posteriores77. O MMC é órgão coordenador das ações de gênero no governo de Bangladesh, mas responde ao Conselho Nacional de Desenvolvimento das Mulheres, que é presidido pelo Primeiro Ministro9. A agência executora do Plano Nacional de Ação para o Desenvolvimento das Mulheres e o Comitê Parlamentar Permanente articulam-se com pontos focais em todos os ministérios, que também trabalham com o MMC. Abaixo do MRMC, o Departamento das Questões das Mulheres supervisiona os Departamentos Distritais das Questões das Mulheres, responsáveis pelos Comitês Locais Mulheres em Desenvolvimento. Na base, atuam as ONGs, indivíduos, escritórios locais e sindicatos de Parishads (unidades de governo local). O MMC atua por meio de duas grandes agências executoras de programas para o empoderamento das mulheres e para a redução da pobreza78, que incluem ações de microcrédito, creches e centros de apoio a mulheres, centros de custódia para mulheres, adolescentes e crianças e centros de informação sobre trabalho e emprego79. Além disso, o Ministério da Informação executa programas de conscientização e há legislação específica e um conjunto de agências para tratar do tráfico e da violência contra as mulheres.

Costumes locais e normas religiosas Um sistema de parentesco patrilinear e patriarcal reforça a dependência social e econômica das mulheres, reservando-lhes um status social mais baixo diante dos homens67. Segundo o Fórum Uni-

versal de Periódicos, que reúne 17 organizações de direitos humanos, as causas da discriminação de gênero em Bangladesh estão na “supremacia das normas e costumes de cunho religioso com relação à herança, casamento, divórcio, manutenção da ordem pública, custódia e adoção de menores, que discriminam as mulheres quanto a seus direitos na família”,nas dificuldades de acesso à educação, trabalho, recursos e serviços – especialmente assistência à saúde -, na menor visibilidade na esfera público e na persistência da violência nos espaços público e privado80. A violência de gênero revela normas socioculturais relacionadas à sexualidade consolidadas e danosas para as mulheres. A violência é um elemento significativo da vida cotidiana de muitas mulheres bengalis: 53% das mulheres que vivem em áreas urbanas e 62% daquelas que vivem em áreas rurais sofreram violência física ou sexual durante sua vida81 e 14% das mortes maternas são resultado de violência de gênero82. Apesar da existência de um plano de ação multissetorial para combater a violência de gênero, sua implementação é frágil e o aumento da violência nas escolas e nas ruas leva os pais a manterem suas filhas em casa83. O “eve-teasing” (assédio a Eva, em tradução livre) é uma forma de assédio verbal, físico e sexual cometido por garotos e homens contra meninas e mulheres em espaços públicos. Esse fenômeno é um “mecanismo de normalização da violência contra as mulheres que sugere que as mulheres são, simultaneamente, tentadoras e merecedoras de abuso”6. Esse tipo de provocação varia de gritos obscenos a apalpadelas em espaços públicos. Em 2010, várias mulheres e meninas cometeram suicídio para escapar desse abuso sexual constante6. A violência de gênero também assume a forma de penalizações ilícitas impostas por tribunais ilegítimos sob a forma de fatwas, apesar de a Suprema Corte já ter julgado ilegais essas punições extrajudiciais a mulheres83. Muito já se fez contra o casamento forçado nos últimos anos, mas esse costume ainda persiste. Bangladesh é o país do Sul da Ásia com a maior proporção de mulheres que casam antes dos 18 anos, sendo o quarto país no ranking mundial84,85. Além disso, a gravidez precoce agrava a marginalização das mulheres mais pobres e com escolaridade mais baixa76,86. O acesso das mulheres à justiça é restrito e os sistemas informais das aldeias competem com o sistema judiciário. Os sistemas de mediação contam com equipes pouco informadas sobre os princípios e procedimentos legais, levando a uma 93


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maior discriminação contra as mulheres. A abordagem protecionista dos direitos das mulheres é muito comum, o que priva as mulheres da participação em decisões importantes em suas vidas73. O acesso das mulheres à justiça também é limitado pela frágil implementação das leis voltadas para a violência doméstica, pela corrupção no sistema judiciário, pela lentidão dos procedimentos legais e pela escassez de defensores públicos73.

Financiamento Nos últimos 40 anos, observou-se uma evolução nas tendências de financiamento para as questões de gênero. A disponibilidade de recursos da cooperação internacional para projetos nessa área durante as décadas de 1970 e 1980 incentivou o governo de Bangladesh a desenvolver uma agenda de gênero. A proliferação dos financiamentos para gênero e desenvolvimento levou à criação de redes impulsionadas pelas organizações de mulheres para envolver o Estado nas questões das mulheres. Nesse processo, favoreceu-se a vertente específica voltada para a função produtiva e o empoderamento econômico das mulheres e o bem-estar das famílias. A Declaração de Paris de 2005 reestruturou a cooperação oficial ao desenvolvimento, facilitando o recebimento de recursos por parte dos governos. Em 2010, o Banco Mundial coordenou uma Estratégia Conjunta de Cooperação, apoiada por 15 financiadores4, mas a Estratégia e o Marco Referencial para os Resultados de Desenvolvimento não mencionam as desigualdades de gênero nem os direitos das mulheres e não há indicadores específicos de gênero40,87,88. A partir de 2010, o Banco Mundial, o Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, o Banco de Desenvolvimento Asiático e a Agência de Cooperação Japonesa são responsáveis por 80% da cooperação oficial ao desenvolvimento em Bangladesh40. As organizações de mulheres lutam para introduzir questões estruturais relativas ao contexto dos direitos das mulheres, mas esses financiadores dão preferência a programas de baseados em resultados de curto-prazo com objetivos tangíveis, alinhados a paradigmas mais amplos de responsabilização40. Além disso, as prioridades não são mantidas por muito tempo pelos financiadores89, o que vai na contramão da transformação profunda das desigualdades históricas. O proliferação de governos de direita em muitos dos países da OCDE tem reforçado a adesão à mensuração e reduzido a receptividade ao apoio financeiro a projetos ativistas90. 94

Há projetos governamentais voltados para a igualdade de gênero e o empoderamento social e jurídico das mulheres que contam com financiamento bilateral91,92. Com a ampliação do número de mulheres no parlamento e do financiamento dos objetivos de educação da ODM 3, percebe-se a existência de um setor público progressista em relação a gênero, mas ainda são as organizações independentes e não governamentais de mulheres que lidam com as inextricáveis questões ligadas à cultura, ao patriarcado e aos direitos das mulheres. No entanto, os requerimentos impostos pelos financiadores externos e implementados pelas organizações não governamentais de maior porte produziram um efeito de homogeneização sobre as organizações menores, que são pressionadas a planejar suas atividades de maneira similar, afetando a sua autonomia e, algumas vezes, levando à despolitização de suas agendas. De acordo com Mukhopadhyay e Eyben, em um relatório sobre cooperação internacional: “Entre as ONGs de Bangladesh [...] a maior parte das organizações alterou suas agendas para atender aos requisitos dos financiadores, tornando-se, muitas vezes, agências implementadoras dos programas dos financiadores. Não se pode negar que, algumas vezes, as [organizações de mulheres] fizeram a opção estratégica de trabalhar com questões suplementares, ausentes de sua agenda principal mas relacionadas a suas ações apenas para terem acesso a recursos e continuar a trabalhar com a agenda principal”40.

África do Sul A África do Sul endossou e ratificou a Declaração dos Direitos Humanos93. a Carta Africana de Direitos Humanos e Direitos das Mulheres94. a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência e Discriminação contra as Mulheres5. e a Plataforma de Ação de Beijing, entre outros instrumentos internacionais de direitos humanos. O país firmou os compromissos acordados pelos Chefes de Estado das Comunidades de Desenvolvimento da África do Sul95. aprovando a legislação de garantia dos direitos das mulheres. Em 1994, o Congresso Nacional Africano herdou um país maduro mas repleto de desigualdades de gênero. Como parte do legado do apartheid, as mulheres negras africanas vivem em situação de desvantagem e discriminação, sob um patriarcado consolidado e sem serviços sociais básicos96. Até hoje persistem desigualdades de gênero inaceitáveis.


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De acordo com o censo de 2011, a renda média anual das famílias chefiadas por mulheres é um pouco maior do que a metade da renda das famílias chefiadas por homens, sendo maior entre as mulheres o subemprego e o desemprego97. As desigualdade raciais e sociais são parte das desigualdades de gênero na África do Sul. Em geral, a população negra africana representa 78.2% da população economicamente ativa e respondem pelas maiores taxas de subemprego e desemprego, em torno de 45%. As mulheres chefiam cerca de 43,8% das famílias e 22,8% delas estão no quintil mais pobre da população98. Os domicílios chefiados pelas mulheres negras são os mais pobres. Apesar de a África do Sul ter se comprometido a reduzir a violência de gênero e a aprovar legislação específica com este fim, incluindo a Lei da Violência Doméstica de 1998, ainda são altas as taxas de violência e difíceis de verificar as mudanças (e sua lógica estrutural) na qualidade dos serviços. O Departamento Sul Africano de Polícia registrou 64.514 crimes sexuais em 2012, ou 176 casos por dia. Um estudo do Conselho de Pesquisa Médica constatou que 28% dos homens entrevistados – ou um em cada 25 homens – havia estuprado uma mulher ou uma menina no ano anterior à realização da pesquisa99. Mais da metade das mulheres Sul Africanas já sofreu alguma forma de abuso e 78% dos homens disseram ter cometido alguma forma de violência contra mulheres100. O Conselho de Pesquisa Médica estima que cerca de um quarto dos casos são denunciados101. A África do Sul se comprometeu a tomar medidas para a igualdade de gênero, incluindo a ampliação do acesso à educação e da participação de mulheres em posição de liderança102. Oficialmente, o país já alcanço a paridade de gênero nas matrículas da educação básica, tal como recomendado pelo CEDAW14,58, mas permanecem altas as taxas de desistência e o baixo desempenho escolar das garotas. Os gastos e obrigações das famílias das meninas com a educação seguem sendo fatores de risco no campo da educação103. O país obteve sucessos reais na promoção da participação das mulheres na política e nos processos de tomada de decisão. As mulheres representam 18% do total de parlamentares no mundo todo e a África do Sul está entre os cinco países com o maior número de mulheres no parlamento. De acordo com o Banco de Desenvolvimento Africano, em 2009, 43% dos membros do parlamento, 41% dos ministros e cinco de nove governadores de província eram mulheres97.

As mulheres parlamentares desempenharam uma função ativa na mobilização pelos direitos da mulheres, garantindo a aprovação de um conjunto importante de leis, incluindo a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (1996), a Lei da Violência Doméstica, a Lei da Pensão Alimentícia (1998), a Lei do Reconhecimento da Casamento por União Consensual (1998) e a Lei Criminal (Lei de Crimes Sexuais e Assuntos Relacionados) (2007). Em 1994, durante a transição democrática, análises orçamentárias de gênero levaram ao compromisso governamental para a aplicação desse tipo de análise em todos os processos orçamentários104, tornando a África do Sul líder em orçamentos de gênero105. A Iniciativa Orçamento de Mulheres (IOM), projeto quinquenal iniciado em 1995, foi constituída por duas ONGs voltadas para políticas públicas e pelo Grupo de Economia e Políticas de Gênero da Comissão Parlamentar de Finanças106. A Iniciativa recebeu financiamento privado, multilateral e bilateral para constituir a África do Sul na experiência piloto da Iniciativa Orçamento de Gênero do Secretariado da Commonwealth. Os resultados dessa e de outras iniciativas foram amplamente divulgados, mas a partir do ano 2000 foram deixadas de lado em razão da falta de apoio, da redução nos financiamentos e da falta de ativismo e defensores em posições de influência97. Apesar das medidas para cumprir os compromissos internacionais - por meio da incorporação da perspectiva de gênero nas políticas e no orçamento público -, ainda persistem as desigualdades de gênero na África do Sul. As questão de gênero foram negligenciadas no Novo Pacto de Crescimento, na Declaração sobre a Situação do País e no orçamento de 2012. Apesar do reconhecimento de que as mulheres enfrentam o triplo desafio do desemprego, da pobreza e da desigualdade, esses documentos usam uma linguagem neutra de gênero e não desagregam os dados de acordo com o sexo107-109. Além disso, a maior parte dos municípios não adotou estratégias explícitas para o empoderamento das mulheres110. Em 2012, o Relatório Sombra da Comissão de Direitos Humanos da África do Sul apresentado ao CEDAW, aponta as insuficiências ainda presentes nos poderes Executivo e Legislativo, reiterando a insuficiência dos orçamentos para a implementação da legislação117. Um outro estudo, desta vez da Comissão Financeira e Fiscal da África do Sul, também apontou a inexistência de dotação orçamentária específica para a implementação das políticas de gênero111. 95


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Organismos Nacionais de Políticas de Gênero Historicamente, os organismos nacionais de políticas gênero incluíam os Pontos Focais de Gênero, o Gabinete sobre a Situação da Mulher (GSM), a Comissão de Igualdade de Gênero, o Comitê Parlamentar Conjunto para a Melhoria da Qualidade de Vida e do Status das Mulheres e várias ONGs97. No ano 2000, o Gabinete sobre o Status da Mulher elaborou um marco político, o “Referências para as Políticas Nacionais de Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres”, apoiado teoricamente na abordagem da incorporação da perspectiva de gênero, nos direitos humanos e nos princípios constitucionais de igualdade111. Mas não foram incluídos indicadores de monitoramento e mensuração dos resultados das atividades e o seu impacto foi reduzido. Avaliações demonstram que o governo não deu prioridade operacional ou administrativa igualdade de gênero nem aos órgãos encarregados de executar essas ações. Hierarquias institucionais, financiamento inadequado e bloqueios sistêmicos são obstáculos a essas tarefas97. Apesar do mandato, o Gabinete do Status das Mulheres nunca teve recursos ou autoridade para garantir as políticas de gênero nos ministérios e órgãos públicos nem tampouco entre as ONGs e órgãos internacionais97. O Relatório Nacional para o CEDAW de 2008, autorizado pelo Gabinete, apresenta diversas leis e políticas públicas como marcos dos avanços no empoderamento das mulheres, mas não dá detalhes sobre sua implementação. Também não menciona as leis que corroem o empoderamento, como as leis contra a prostituição112. Embora as profissionais de sexo raramente sejam condenadas, a apreensão de camisinhas por parte das autoridades força as profissionais a escolher entre a proteção à saúde ou a defesa do abuso policial. Um estudo realizado no Quênia, África do Sul, Uganda e Zimbábue concluiu que as leis criminais contra profissionais do sexo deveriam ser alteradas para reduzir o risco e os danos que podem causar a mulheres já vulneráveis à infecção ao HIV e outras DSTs113. Além de ignorar as orientações da CEDAW, o relatório governamental também não menciona as ONGs de mulheres e as organizações da sociedade civil que se beneficiaram de financiamentos da Agência Nacional de Desenvolvimento Nacional e da Loteria Nacional. Também não reconhece o papel da sociedade civil na elaboração do relatório. Isso expõe a lamentável falta de coordenação entre sociedade civil e governo Sul Africano na promoção da igualdade de gênero114. 96

A Comissão para a Igualdade de Gênero, órgão oficial estabelecido em 1996 para monitorar o governo, o setor privado e a sociedade civil, incluindo o próprio Gabinete sobre o Status das Mulheres, passou por processo similar103,115: a comissão é “afetada por brigas internas permanentes, performance medíocre e ineficácia tão grave que se desaparecesse, ninguém perceberia”116. A Comissão se limitou a publicar a informação disponível sobre o tema, em lugar de monitorar a performance do governo e do parlamento sobre a igualdade de gênero59 e sequer desagregou os dados por sexo, raça/etnia, idade e área urbana e rural97, 117. Uma análise do Congresso Nacional Africano sobre a implementação das políticas de igualdade de gênero desde 1994, levou, em 2009, à criação de um novo Ministério da Mulher, Criança, Jovem e Pessoas com Deficiência97. A Comissão do Serviço Público identificou, porém, que a “falta de clareza quanto a suas funções”103 comprometeu o mandato das instituições nacionais responsáveis pela promoção do empoderamento das mulheres e da igualdade de gênero. As ONGs argumentam que as falhas destas instituições nunca foram tratadas de maneira adequada e a junção das áreas de mulheres com crianças e pessoas com deficiência reduziu a capacidade de ação pela igualdade de gênero97.

Costumes locais e normas religiosas A Constituição Sul Africana, assim os documentos auxiliares das políticas, reconhecem as normas locais e as lideranças tradicionais como parte integral do caráter social e político do país118. Ainda assim, como reconhece a Corte Constitucional da África do Sul, há uma “confrontação destrutiva entre a constituição… e as lei nativas”66. As normas locais relativas à herança, à violência doméstica e ao dote constituem três esferas importantes de confronto sobre a igualdade de gênero. As leis nativas de herança, universais e patriarcais, se baseiam na primogenitura masculina119. O discurso sobre a herança e sobre a sucessão das lideranças tradicionais revela o quanto essa tensão está enraizada - e enviesada - na África do Sul66,120. Foi só em 2004, com os casos de Bhe e Outros contra o Magistrado, Khazelitisha e Outros Caso CCT 49/03, Shibi contra Sithole e Outros Caso CCT 69/03, e a Comissão de Direitos Humanos da África do Sul e Outro contra o Presidente da República da África do Sul e Outro Caso CCT 50/03, que a Corte Constitucional da África do Sul aboliu a primogenitura masculina, considerando-a inconstitucional com relação à herança, mas não com relação à liderança tradicional121.


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Além disso, a Lei dos Tribunais Tradicionais de 2012 busca promover as leis consuetudinárias e os costumes comunitários que formalizam um sistema de justiça específico para as pessoas que vivem principalmente nas áreas rurais, comprometendo a igualdade de gênero.(122) Estima-se que 75% dos Sul Africanos aderem à lei consuetudinária para os assuntos domésticos. Em 2002, cerca de 36% da população vivia em vilarejos tribais em áreas rurais onde a lei consuetudinária é a mais importante.(123) As mulheres representam a maior parte da população rural. Os tribunais tradicionais são presididos por lideranças tradicionais, o que limita a participação das mulheres nos processos decisórios e dificulta sua defesa e os mecanismos de recurso e apelação. Mulheres e crianças vivendo sob a lei consuetudinária são alvo de seletividade e exclusão por parte do sistema(112,124) A lei oficial consuetudinária deixa as mulheres vulneráveis à violência de gênero, impedindo-as de sair de relacionamentos abusivos. Mulheres de áreas rurais raramente tem acesso ao sistema de justiça por que não são proprietárias de suas casas e não podem afastar os maridos abusivos. Regras relacionadas à posse de terra, à sucessão e a titularidade masculina sobre os bens do casal afeta a capacidade das mulheres para resistir ou escapar da violência doméstica.(107) As legislação que regula o casamento produz mais vulnerabilidade, ao retirar a autonomia das mulheres, subordinando-as aos homens. De acordo com o costume ukuthwala, o casamento envolve o “roubo das noivas”.(125) Ás vezes isso é feito de forma negociada, outras vezes é puro sequestro, mas essa prática sempre retira a autonomia de mulheres e meninas, violando seus direitos. Em geral, o valor da noiva (lobolo) é pago pelo marido, aumentando também a vulnerabilidade das mulheres à violência doméstica e reduzindo suas possibilidades de escapar. Se o pai de uma mulher usar o lobolo para pagar suas dívidas, pode recusar o retorno da filha para casa porque não poderia devolver o lobolo. Além disso, nos conflitos matrimoniais espera-se que a mulher recorra à família do marido. O modo tradicional de lidar com os problemas conjugais valorizam as fontes privadas e internas, impedindo as mulheres de buscar ajuda externa, como os abrigos ou a justiça, tal como previsto na Lei da Violência Doméstica.(67) Financiamento É difícil avaliar o quadro geral do financiamento

ao desenvolvimento na África do Sul, seja oficial ou bilateral e multilateral. Até 1994, as agências privadas contribuíam consideravelmente para as ONGs e organizações antiapartheid, enquanto o financiamento público era insignificante.(126) Depois de 1994, o financiamento oficial ao desenvolvimento oficial vem aumentando de forma progressiva.(118) Desde então, o crescimento do PIB tem sido contínuo, a economia diversificou-se, com uma infraestrutura bem desenvolvida, alçando o país à classificação de renda média-alta de acordo com o Banco Mundial(127). O apoio da cooperação internacional oficial para o desenvolvimento, porém, representa apenas uma pequena porcentagem do PIB Sul Africano (0,2% a 0,4%). O passado político do país, seu papel econômico na região e os altos níveis de desigualdade mantém os financiadores envolvidos nos processos nacionais.(129) A maioria dos financiadores, porém, utiliza a abordagem tradicional do ciclo de projetos, fazendo doações diretas a projetos tidos como excepcionais em lugar de investir na melhoria dos sistemas locais de financiamento e contratação. Mas a maior parte das fundações e organizações bilaterais(128-130) restringiram o apoio às ONGs que trabalham com o empoderamento das mulheres. Recentemente, o Reino Unido anunciou a retirada completa da ajuda financeira à África do Sul e, em 2014, os Estados Unidos pretendiam reduzir seus recursos em 18%.(131) A redução da cooperação bilateral irá agravar a falta de recursos para as ONGs sul-africanas. Conclusão Confiar a proteção dos direitos de mulheres a agências financiadoras governamentais e internacionais é arriscado, dada a sua forma atual de operar e à incerteza quanto à sustentabilidade, mas de onde mais se deve esperar apoio? O relatório do Painel de Alto Nível pretende expandir as metas relacionadas a mulheres e analisar as desigualdades mais profundamente. Mas os estudos de caso aqui apresentados questionam a eficácia desse tipo trabalho sob estas circunstâncias. Na África do Sul e Bangladesh, é muito preocupante a persistência - ou o crescimento – do foco sobre as leis e costumes tradicionais, que reforçam as desigualdades de gênero. A ênfase do Painel de Alto Nível nas parcerias público-privadas e sua abordagem monotemática também preocupam: “Em muitas circunstâncias os parceiros e agências internacionais serão convidados a apoiar os 97


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países na implementação de planos e no alcance de metas - em média, 30 agências parceiras operam em casa país em desenvolvimento. Essas agências têm a responsabilidade de harmonizar os seus esforços com os planos nacionais, operando com o orçamento público onde for possível e colaborando umas com as outras para garantir o máximo de impacto com o mínimo de esforço e a união das partes interessadas em parceiras “multilaterais”... congregando governos (local e nacional), especialistas, institutos de pesquisa, setor privado e filantrópico, universidades e outros, para trabalhar em temas específicos”53. Essas parcerias forçadas (seria desonesto chamá-las de outro nome) muitas vezes são o golpe de misericórdia para as vozes independentes e autônomas, podendo levar a programas que não enfrentam o risco de desafiar a cultura e as normas tradicionais. O êxito, por outro lado, requer o apoio da mistura potente de ativismo, construção de movimentos e um conjunto complexo de estratégias de base que alterem práticas culturais danosas a mulheres e garotas. O financiamento é necessário para o ativismo e para as intervenções que desafiam a cultura e que defendam firmemente os direitos humanos de mulheres e meninas. Um modelo bem sucedido deve incluir políticas e leis antidiscriminação e medidas reparadoras para as mulheres que forem prejudicadas pelas desigualdades132. Também são essenciais as iniciativas explícitas para garantir acesso e oportunidades para grupos marginalizados, medidas redistributivas adequadas, incluindo proteção social, e atividades de conscientização e disseminação de informações sobre desigualdades – como, por exemplo, transparência no acesso a dados oficiais.

As estratégias devem levar em conta a presença dos fundamentalistas - sejam de cunho religioso, político ou econômico –, a situação e os sistemas de saúde, a pobreza e os direitos humanos. Esse são componentes inextricáveis das desigualdades estruturais e precisam ser tratados como forças interrelacionadas em um modelo programático e de implementação, e não de forma isolada, como um ambiente que não possibilita133,134 a definição de diretrizes específicas e recursos suficientes. Se não for assim, o ativismo que alimenta os avanços nos direitos das mulheres em todo o mundo será apoiado de forma inadequada e não obterá êxito. Alguns financiadores (alguns privados e muitos pequenos fundos para mulheres) e agências de maior porte, como o fundo do ODM 3, apoiam o ativismo, a organização e o trabalho local independente e autônomo para os direitos de mulheres. O apoio significativo para esse tipo de ativismo é crucial para o sucesso de qualquer modelo de desenvolvimento pós-2015 que pretenda superar as injustiças e as desigualdades de gênero. Essas iniciativas certamente produzirão desconforto entre governos e financiadores internacional. O trabalho que objetiva alterar leis e práticas tradicionais danosas às mulheres sempre incomodará. Ainda assim, as ações que causam profundo desconforto e que não produzem resultados imediatamente “mensuráveis”, podem ser a chave para desmontar as violações de direitos humanos sofridas diariamente por mulheres e meninas em todo o mundo.

Agradecimentos A autora agradece às extensas contribuições de Katherine Polin, MPH, e Sonia Rastogi a esse artigo.

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Résumé Le nouveau programme de développement aspire à fusionner des espoirs à long terme pour la viabilité environnementale, politique et financière avec les objectifs internationaux d’éradication de la pauvreté. La promotion et la protection des droits fondamentaux des femmes et des filles sont au centre de ce programme. Toutefois, les mécanismes nationaux, les donateurs et les institutions internationales du développement échouent souvent à pleinement ces questions ou se heurtent aux problèmes complexes et politiquement sensibles qui les accompagnent, mêlant la religion, le statut socio-économique, la vie sociale, culturelle et familiale. Le recours accru aux investissements privés risque d’affaiblir encore une approche des droits des femmes. Le programme proposé dans le rapport du Groupe de personnalités de haut niveau pourrait systématiser davantage ce problème, même s’il représente un progrès par rapport aux OMD en élargissant les cibles relatives aux femmes. Le succès exigera de soutenir une association puissante de plaidoyer, de renforcement des mouvements et d’un ensemble complexe de stratégies ancrées sur le terrain et propres à changer les pratiques culturelles, les lois et les politiques qui lèsent les femmes et les filles. Il est impératif de mobiliser un financement pour le plaidoyer et des interventions qui ne transigent pas sur les droits de l’homme. Mais, compte tenu des loyautés concurrentes des gouvernements et des partenariats publics-privés, il peut être risqué de se reposer sur ces deux acteurs. Une analyse de l’état du travail, de l’infrastructure et du soutien des donateurs en faveur des droits des femmes au Bangladesh et en Afrique du Sud montre qu’il faut être vigilants et investir à long terme dans des projets efficaces.

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Resumen El nuevo marco de desarrollo aspira a unir las esperanzas a largo plazo de sostenibilidad ambiental, política y financiera con los objetivos de erradicación de la pobreza internacional. Fundamental para esta agenda es la promoción y protección de los derechos humanos de las mujeres y niñas. Sin embargo, los mecanismos nacionales, donantes e instituciones de desarrollo internacional a menudo no abordan estos asuntos totalmente ni confrontan los complejos asuntos políticamente delicados entremezclados con religión, condición socioeconómica y la vida social, cultural y familiar. La creciente dependencia de la inversión privada podría debilitar aún más el enfoque en los derechos de las mujeres. El marco propuesto descrito en el Informe del Grupo de Alto Nivel de Personas Eminentes podría sistematizar aún más este problema, aunque mejora los ODM al ampliar las metas relacionadas con las mujeres. El éxito requerirá apoyo para una mezcla potente de actividades de promoción y defensa, movilización y una serie compleja de estrategias basadas en el terreno que cambien las prácticas culturales, leyes y políticas que perjudican a las mujeres y niñas. Es imperativo financiar las actividades de promoción y defensa y las intervenciones que reafirman los derechos humanos, pero debido al conflicto de lealtades de los gobiernos y alianzas entre los sectores público y privado, la dependencia de cualquiera de los dos sectores podría ser riesgosa. Un análisis del estado del trabajo relacionado con los derechos de las mujeres, la infraestructura y el apoyo de donantes en Bangladesh y Áfricameridionalmuestra la necesidad de vigilancia e inversión a largo plazo en trabajo eficaz.


GIACOMO PIROZZI / PANOS PICTURES

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Estudante do ensino fundamental, aula de inglês, vila de Kigeyo, Província Ocidental, Ruanda, 2007.

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A judicialização como estratégia política: um estudo de caso na defesa dos direitos reprodutivos na Colômbia. Mónica Roaa, Barbara Klugmanb a Vice Presidente de Relações Exteriores e Estratégicas, Women’s Link Worldwide, Bogotá, Colômbia. Contato: m.roa@ womenslinkworldwide.org b Professora adjunta, Faculdade de Saúde Pública, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Witwatersrand, Johannesburgo, África do Sul.

Resumo: Women’s Link Worldwide (WLW) desenvolveu um teste para determinar quando um ambiente é propício a mudanças sociais por meio da judicialização. Inicialmente, apresentamos nossa definição da judicialização estratégica e depois discutimos quatro condições para o seu uso bem-sucedido e sustentável: (1) existência de marco jurídico; (2) sistema judiciário independente e atualizado; (3) organizações da sociedade civil com capacidade de tratar os problemas sociais como violações de direitos e de judicializar; e (4) uma rede capaz de apoiar e alavancar as oportunidades apresentadas pela judicialização. Em seguida, apresentamos exemplos do trabalho na Colômbia que demonstram como a análise dessas condições informou nossa estratégia de judicialização do caso de um poderoso agente público que se opunha aos direitos reprodutivos. Duas estratégias foram adotadas. O primeiro caso não foi bem sucedido nos tribunais, mas permitiu transmitir a mensagem e construir apoio na sociedade civil. O segundo caso se baseou no primeiro, mas resultou em vitória. A judicialização estratégica é uma ferramenta poderosa para avançar nos direitos, para responsabilizar os governos, garantindo o cumprimento de suas obrigações com os direitos humanos. As estratégias desenvolvidas podem ser adaptadas para outros contextos. Esperamos que inspirem mais pessoas a proteger e promover os direitos reprodutivos por meio da judicialização nas situações em que as mulheres não podem usufruir de todos os seus direitos. Palavras-chave: judicialização estratégica, direitos reprodutivos, direitos sexuais, saúde e direitos sexuais e reprodutivos, aborto, ativismo, estratégias, mudança social, interesse público, Colômbia. “O sistema judiciário tem o poder de permitir que a igualdade cresça e prospere para atender às demandas e aspirações legítimas da maioria feminina da população mundial. O sistema judiciário também tem o poder de negar isso tudo.” (Kathleen Mahoney1) Tradicionalmente, a judicialização estratégica tem sido definida como o judicialização de um caso de interesse púbico capaz de produzir um impacto social que vai além dos interesses específicos das partes envolvidas2. A judicialização estratégica serve como uma poderosa e inovadora ferramenta de ativismo ao funcionar como um mecanismo para a responsabilização governamental(3). Os processos nacionais e internacionais de judicialização são instrumentos de valor inestimáveis utilizados globalmente pelo movimento de saúde e direitos sexuais e reprodutivos para gerar consciência de direitos, dar visibilidade às necessidades de acesso a direitos das populações vulneráveis e exigir o cumprimento dos compromissos dos governos com os direitos humanos. 104

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

Como avaliar o potencial para a judicialização estratégica: o teste das quatro condições A organização Women’s Link Worldwide propõe a disseminação do conhecimento sobre a judicialização estratégica para definir padrões legais progressistas e para influenciar a opinião pública e fortalecer os movimentos sociais, criando oportunidades para a organização política em torno de um caso. A judicialização estratégica cria uma oportunidade para que ativistas do campo jurídico e operadores do direito participem de um debate democrático sobre determinado caso, no qual podem pressionar outras áreas do governo, a opinião pública e setores específicos da população a respeito da interpretação e garantia de direitos4*. * Esse entendimento se baseia no marco do ativismo dialógico, que se refere ao debate democrático com as outras áreas do governo e sociedade civil gerado pelo sistema judiciário quando do exame de certos casos3.

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)44804-3


M Roa, B Klugman. / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 104-115

Caso se alcance uma vitória jurídica por meio desse processo, as condições para a implementação serão propícias. Mas mesmo sem uma vitória, pode-se avançar nessas condições por outros meios, uma vez que o movimento estará mais forte e a opinião pública melhor informada5, que são fatores críticos para a promoção da mudança social6,7. A Imagem 1 apresenta os diferentes componentes da definição da judicialização estratégica utilizada por WLW. A judicialização oferece aos juízes a oportunidade de cumprir com sua obrigação de garantir o usufruto de direitos. Mas os ativistas devem encontrar formas (jurídicas ou não) de envolver a sociedade civil no processo de judicialização para produzir empoderamento e criar uma plataforma para a demanda por direitos. Os processos de judicialização, na verdade, são liderados muitas vezes por grupos da sociedade civil. A mobilização social e a forte opinião pública podem facilitar a tomada de decisão dos juízes, ao perceberem que os direitos em questão fazem parte de um debate mais amplo na sociedade civil. Além disso, decisões judiciais que levam ao cumprimento de direitos produzem impactos nos valores, normas e prioridades da sociedade civil8. O primeiro processo de judicialização da WLW na Colômbia aconteceu em 2006 e voltou-se para a garantia do direito ao aborto, em uma época em que poucos casos na região haviam sido judicializados9,10. A abordagem estratégica e abrangente Figura 1: Componentes da judicialização estratégica

Envolvimento

Sociedade Civil

Ativistas

Judicialização

Influência

juízes

direitos Demandas

Aplicação da Lei

da judicialização levou à decisão inovadora do Tribunal Constitucional da Colômbia C-355/06, que garantiu o direito das mulheres ao aborto terapêutico11. Desde então, a WLW tem liderado processos de judicialização em outros países sobre diferentes questões relativas aos direitos das mulheres e oferecido consultoria a outras organizações sobre esse tipo de ativismo†. A análise da viabilidade da judicialização estratégica requer que se faça o mapeamento do contexto político, social e legal. Para avaliar se a mudança social foi alcançada por meio da judicialização e informar o planejamento das estratégias jurídicas, de comunicação e de alianças, a WLW analisa quadro condições, baseadas na teoria de Charles E Epp, apresentada no livro A Revolução dos Direitos12. Se essas quatro condições estiverem presentes, ou puderem ser criadas ou fortalecidas por meio de um processo judicial, a judicialização estratégica pode ser usado como ferramenta para fazer avançar os direitos humanos. Essas condições são: (1) existência de um marco jurídico de direitos; (2) sistema judiciário independente e atualizado; (3) organizações da sociedade civil com capacidade de apresentar problemas sociais como violação de direitos e judicializá-los; e (4) rede de apoio para alavancar as oportunidades criadas pela judicialização. Nesse artigo, avaliamos cada uma dessas condições a partir da perspectiva dos direitos reprodutivos. Primeiro, a mudança social só pode ser alcançada pelos tribunais se os movimentos puderem identificar e apresentar os problemas como violações de direitos. Isso requer um quadro constitucional ou jurídico que reconheça os direitos humanos ou a possibilidade de usar a normativa internacional dos direitos humanos ou o direito comparado. Quando a população compreende que a lei lhes dá garantias que o governo não assegura, os movimentos podem planejar estratégias para exigir que o Judiciário tome medidas para corrigir esse déficit. Não há uma fórmula única para um marco jurídico adequado. Algumas constituições nacionais contêm uma carta de direitos que articula explicitamente os direitos fundamentais. Há países que assinaram acordos regionais ou internacionais de garantia dos direitos humanos. Os fundamentos para os direitos reprodutivos podem † Para mais informações, acesse o projeto de judicialização da WLW: www.womenslinkworldwide.org.

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ser localizados em quase todos os instrumentos de direitos humanos13‡. Em alguns sistemas jurídicos, a jurisprudência é vinculante e pode ser usada como padrão nos casos posteriores. Na realidade, a maioria dos países possui alguma combinação dessas características. Adicionalmente, o sistema jurídico deve permitir a abertura de processos a partir da violação de direitos. Alguns sistemas limitam as ações a instâncias atuais de violação de direitos, enquanto outros permitem a revisão abstrata de leis ou políticas que podem levar a futuras violações. Segundo, o sistema judiciário deve ser independente para garantir os direitos das minorias e das populações marginalizadas. A independência jurídica refere-se à liberdade dos juízes para decidir sobre um caso de acordo com o seu julgamento legal, livre da pressão indevida de outras áreas do governo14. A avaliação da estrutura institucional do sistema judiciário ajuda os movimentos a analisar a sua independência. Entre os fatores que afetam essa independência estão a existência de pessoas com poder de nomear e remover juízes; a exigência de habilidades ou qualificações específicas para o exercício da função ou de nomeações meramente políticas; a duração da carreira de juiz; e instâncias de definição de orçamentos e salários. Em geral, quando esses processos estão concentrados nas mãos de poucos indivíduos, ou se não há transparência, os juízes terão menos independência. Se o sistema judiciário não possui um nível mínimo de independência, é improvável que a judicialização seja a melhor estratégia para tratar de um tema para o qual o Estado ou outros atores influentes apresentam resistência. Por outro lado, juízes que compreendem a dinâmica entre o marco jurídico dos direitos e a justiça social podem desempenhar uma função crucial na promoção da mudança social por meio dos ‡

O Centro de Direitos Reprodutivos lista 12 direitos humanos como indispensáveis para os direitos reprodutivos: (1) o direito à vida; (2) o direito à liberdade e à segurança do indivíduo; (3) o direito à saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva; (4) o direito a decidir o número e a época ideal para ter filhos; (5) o direito ao casamento consentido e à igualdade no casamento; (6) o direito à privacidade; (7) o direito à igualdade e à não discriminação; (8) o direito de ser livre de práticas danosas a mulheres e garotas; (9) o direito a não ser sujeito a tortura ou a outra punição ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes; (10) o direito a não se submeter à violência sexual e de gênero; (11) o direito ao acesso à educação sobre saúde sexual e reprodutiva e a informações sobre planejamento familiar; e (12) o direito de gozar dos benefícios do progresso científico(12).

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tribunais. Esses juízes podem facilitar o papel dos movimentos na judicialização estratégica se entenderem sua função como impulsionadores dos princípios dos direitos humanos. Mas a mudança também pode ser alcançada por meio de juízes que simplesmente acreditam que o seu papel é aplicar o marco jurídico aos casos que lhes competem. Os ativistas devem avaliar o grau de conhecimento e exposição aos direitos humanos por parte dos juízes, particularmente com relação aos direitos das mulheres e aos direitos reprodutivos, durante sua formação universitária ou durante a capacitação específica para o exercício da função. Também é útil, embora nem sempre fácil, avaliar se os juízes consideram a defesa dos direitos humanos como um de seus principais deveres ou se acham que seu único dever é aplicar a lei sem considerar suas consequências finais. Terceiro, as organizações da sociedade civil devem ter a capacidade de judicializar. A judicialização estratégica requer que os movimentos compreendam o papel da Justiça e as oportunidades apresentadas pela judicialização. Apesar de bem informados ou comprometidos, os juízes só podem promover os direitos se lidarem com um caso. Os movimentos devem ser capazes de articular problemas específicos na linguagem jurídica, levando os casos aos tribunais, independentemente do desafio que representam. Além disso, aqueles que lideram o processo de judicialização devem colaborar com outros grupos para criar as condições propícias a uma decisão favorável. As condições propícias existem quando o contexto sociopolítico oferece segurança para que os juízes reconheçam as violações de direitos presentes no caso. De outra maneira, os juízes podem entender que a decisão perderá legitimidade ou relevância. Os defensores da mudança social devem considerar que os juízes são seres humanos e que, tradicionalmente, os tribunais são compostos por membros da elite15. Embora o seu mandato seja administrar a justiça, garantir a igualdade e eliminar a discriminação, as suas crenças pessoais podem facilitar ou interromper a busca pela justiça social nos tribunais. Os juízes podem avaliar seus próprios preconceitos, mas os ativistas devem promover ou facilitar esse processo organizando colóquios, promovendo o instituto do amicus curiae e enviando aos juízes materiais que desmitifiquem os preconceitos que podem afetar o julgamento. Além disso, devem pesquisar os argumentos mais persuasivos para um determinado tribunal ou juiz.


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Quarto, a mudança social alcançada por meio da justiça só é sustentável se houver uma forte rede de apoio da sociedade civil. Como mencionado, diferentes grupos da rede de apoio devem se integrar aos defensores legais nos diferentes estágios do processo. A rede deve incluir movimentos sociais vibrantes que alavanquem as oportunidades apresentadas nos diferentes estágios dos procedimentos judiciais e nos debates que ocorrem em consequência do judicialização. Os indivíduos e organizações que trabalham com a questão em causa devem estar dispostos e aptos a contribuir com o processo de judicialização, oferecendo conhecimento e competência e entendendo que, a depender da questão, podem ser submetidos a retrocessos e estigmas. Durante o processo de judicialização, essa rede deve criar conscientização pública sobre a questão e moldar o debate de maneira favorável. A comunicação efetiva envolve estabelecer uma mensagem chave sobre as razões pelas quais essa questão é importante para o público geral, sobre a natureza precisa do problema e a solução proposta pela judicialização. Assim, ainda que não haja vitória legal, a consciência de direitos sobre a questão terá crescido, estabelecendo as bases para o ativismo futuro por outros meios. De maneira similar, sem uma rede de apoio, uma decisão jurídica favorável pode ter um impacto limitado sobre as populações afetadas e enfrentar sérios obstáculos durante a fase de implementação. Finalmente, a rede de apoio deve também incluir financiadores comprometidos que compreendam as complexidades da judicialização estratégica em termos de tempo, tipo de atividades para além do trabalho jurídico e a infraestrutura necessária para coordenar esse trabalho. Financiamento adequado é essencial para apoiar essa rede. A judicialização estratégica é muitas vezes um processo demorado e as organizações devem se planejar de acordo com esse ritmo. Alguns casos se iniciam nas Cortes locais antes de irem aos tribunais internacionais, um processo que pode levar anos. A judicialização dos direitos reprodutivos requer a análise dessas condições. Esse Estado garante direitos que podem ser aplicados para a saúde reprodutiva? Os juízes são informados sobre os complexos debates técnicos e jurídicos sobre os direitos reprodutivos? Os ativistas são capazes de estruturar um caso com base nesses direitos que sensibilize os juízes? Esses ativistas conseguem enviar uma mensagem clara e envolvente para a

comunidade, criando oportunidades para se conectar com outros movimentos sociais? Há organizações dispostas a se mobilizar para o processo de judicialização? Essas perguntas e a avaliação das quatro condições tem ajudando a WLW a desenvolver suas estratégias de judicialização.

O contexto da Colômbia Apresentamos aqui dois exemplos do próprio trabalho da WLW na Colômbia16§. Iniciamos explorando o contexto dos anos que sucederam o reconhecimento do aborto terapêutico como um direito e o modo como a análise das quatro condições informou a estratégia de judicialização, durante a qual confrontamos a opinião do Procurador Geral da República, contrária aos direitos reprodutivos. A WLW adotou duas estratégias de judicialização. O primeiro caso, uma denúncia disciplinar contra o Procurador, não foi bem sucedido, mas permitiu introduzir nossa mensagem, dar visibilidade à judicialização, educar o público e obter apoio na sociedade civil. O segundo caso, sobre o direito à informação, se baseou nessa mesma dinâmica, resultou em uma vitória jurídica e, mais importante, em uma vitória simbólica. Para compreender esse contexto, é necessário entender a função do Procurador, que é específica da Colômbia. O Procurador é eleito pelo Senado para um mandato de quatro anos que só pode ser renovado uma vez17. A função do Procurador é monitorar a conduta de servidores públicos18. Na teoria, o Procurador é o principal defensor dos direitos humanos da Colômbia. Por essa razão, a Constituição lhe garante um poder significativo. Na realidade, com exceção do Presidente e dos juízes, o Procurador tem discricionariedade ilimitada para disciplinar e remover qualquer servidor público19. A amplitude de sua autoridade torna complicado enfrentar o Procurador, pois os encarregados de limitar o alcance do seu poder são as mesmas pessoas sujeitas a seu controle disciplinar. O potencial de abuso de poder do Procurador ficou claro durante os dois mandatos do Procurador atual, Alejandro Ordoñez, eleito em 2009 e reeleito em 2013, para servir até 2017. Antes de assumir o cargo, Ordoñez publicou diversos livros e em um deles afirma que os servidores públicos têm o direito de desobedecer as leis se §

Veja também o artigo de Alba Ruibal que analisa a história do retrocesso da reforma da legislação sobre o aborto na Colômbia como um processo de movimento e contra movimento.

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acreditam que elas violam leis divinas. Em outro, detalha suas preocupações com a defesa dos direitos humanos. No seu segundo livro, Ordoñez afirma: “Hoje, o objetivo de uma revolução cultural desfaz os princípios e valores que são a base de uma família cristã; sua natureza heterossexual, monogâmica, indissolúvel e fértil; esses são os obstáculos que querem remover a qualquer custo ao permitir o divórcio, o uso de contraceptivos, o aborto e o casamento homossexual, em uma primeira fase que já está quase completa”20. Naquela ano de 2006, uma Corte Constitucional da Colômbia havia considerado o aborto legal sob certas circunstâncias, no julgamento do caso C-355/0621. O caso, de autoria da WLW, reconheceu o aborto como um direito das mulheres e meninas em três circunstâncias: (1) quando a gravidez põe em risco a saúde ou vida da mulher; (2) quando o feto apresenta má formação severa que impedem a vida fora do útero; e (3) quando a gravidez resulta de estupro ou incesto. Ordoñez era o responsável por aplicar uma decisão judicial importante que ia de encontro aos seus valores religiosos e aos valores da família. Em junho de 2008, o Conselho de Estado Colombiano enfrentou os grupos “pró-vida”, ao reconhecer a contracepção de emergência como método contraceptivo e não uma prática abortiva, considerando constitucional o seu uso22. Ao assumir o cargo de Procurador, Ordoñez optou por priorizar suas crenças pessoais sobre o seu dever de agir de acordo com a Constituição e proteger os direitos humanos, incluindo os direitos reprodutivos. Em 10 de maio de 2009, Ordoñez publicou o Memorando 030, requerendo que servidores públicos tomassem medidas para proteger os direitos do nascituro23. O julgamento C-355/06 declarou explicitamente que o nascituro não têm direitos suscetíveis de serem julgados pela Justiça. Em 21 de outubro de 2009, ele publicou um comunicado à imprensa em resposta à decisão judicial que requeria campanhas educativas sobre direitos sexuais e reprodutivos, declarando que iria contestar tal “campanha massiva que promove o aborto”24. Depois, em 7 de dezembro de 2009, a Procuradoria publicou um comunicado à imprensa definindo a contracepção de emergência como uma forma de aborto e declarando que seria proibida25, apesar das conclusões médicas26 e judiciais27 contrárias. Além disso, Ordoñez nomeou Ilva Myriam Hoyos, fundadora da coalizão antiaborto, como Procuradora deputada responsável pela área de 108

crianças, adolescentes e família28. Durante o julgamento C-355/06, como líder do movimento pró-vida, ela declarou publicamente que iria fazer de tudo para anular a decisão, i.e. recriminalizar todos os permissivos para o aborto29. Entre os seus deveres como deputada Procuradora, porém, está o de garantir o direito constitucional das mulheres ao aborto, reforçando a decisão da Corte. Em 2 de maio de 2010, Hozos escreveu ao Diretor do Departamento Nacional de Saúde em resposta ao memorando sobre o cumprimento das decisões do julgamento C-355/06. O Departamento Nacional de Saúde supervisiona todos os profissionais de saúde na Colômbia. Em sua carta, Hoyos argumentou que o aborto não era considerado um direito, contrariando, assim, a jurisprudência constitucional. Declarou ainda que não era função do Departamento de Saúde garantir que o sistema público de saúde oferecessem abortos nos casos previstos pelo julgamento C-355/06, argumentando que o aborto não era parte do mandato do departamento. Além disso, em 2011, o prefeito de Medellín anunciou que iria abrir uma clínica de saúde reprodutiva para mulheres30. Em resposta, o Procurador Ordoñez anunciou que iria investigar o prefeito e a deputada Procuradora Hozos formou um grupo de trabalho para investigar a clínica(31). As ações desses funcionários do alto escalão do governo, responsáveis pela defesa dos direitos humanos, ilustram não apenas sua oposição aos direitos humanos, como também o fato de se utilizarem de suas posições de poder para lutar contra os direitos reprodutivos¶. Por fim, também em 2011, outra funcionária do gabinete do Procurador desafiou a inclusão do misoprostol como medicamento essencial do sistema público de saúde. A Procuradora María Eugenia Carreño escreveu para o Ministério da Proteção Social, declarando que as autoridades reguladoras de medicamentos da Colômbia não haviam aprovado o misoprostol e que a Organização Mundial da Saúde expressava preocupações quanto à sua segurança. Na verdade, a Organização Mundial de Saúde aprovou o misoprostol como medicamento para emergências obstétricas e para o aborto induzido, incluindo-o em sua lista de medicamentos essenciais32. ¶ Assim, no dia 8 de setembro de 2009, anunciaram a formação de grupo especial de trabalho em Medellin, para realizar o “controle preventivo” sobre as agências responsáveis pela clínica de mulheres.


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Com base nesses antecedentes complexos, a WLW avaliou as quatro condições para a judicialização, planejando sua estratégia para proteger e avançar no campo da saúde e dos direitos reprodutivos.

A análise das quatro condições para a Colômbia Primeiro, há um marco jurídico dos direitos na Colômbia. A Constituição de 1991 protege os direitos sociais, econômicos e culturais33. O artigo 49 delega ao Estado o dever de estabelecer e coordenar o sistema de saúde, oferecendo um nível mínimo de assistência gratuita34. A Corte Constitucional também reconheceu explicitamente o direito a serviços gratuitos de aborto pelo julgamento C-355/06. Por fim, a Constituição da Colômbia também incorporou os tratados internacionais de direitos humanos ao seu marco normativo nacional35. Isso significa que os juízes podem aplicar as normas internacionais de direitos humanos em suas decisões. A Constituição de 1991 também estabeleceu o direito à tutela (ordem de proteção)36, para proteger direitos garantidos constitucionalmente de forma mais sensível. Todo cidadão tem o direito de solicitar tutela quando seus direitos fundamentais forem violados e a Justiça deve responder a esse pedido em dez dias. A tutela tem sido usada com frequência desde 1991 para uma grande variedade de direitos37. A população conhece bem o processo, que já se tornou parte da consciência popular de direitos. A tutela também foi usada para exigir o cumprimento das decisões do julgamento C-355/0638. Segundo, a Constituição Colombiana declara que o Sistema Judiciário é independente39 e inclui um plano institucional que apoia essa independência. A Suprema Corte de Justiça é a mais elevada corte para questões cíveis e criminais. A Corte Constitucional foi criada como a instância final de interpretação constitucional. Os juízes da Suprema Corte de Justiça são selecionados a partir de listas criadas pelo Conselho Superior de Justiça40. O Senado elege os membros da Corte Constitucional41. Os juízes devem ser advogados e ter pelo menos dez anos de experiência42. Adicionalmente, são sujeitos a controle disciplinar pelo Conselho Superior de Justiça e não são sujeitos aos poderes disciplinares do Procurador43. Mas, na prática, as Cortes podem ser politicamente influenciadas por meio do processo de

nomeação. Os juízes das Supremas Cortes têm um mandato de oito anos44 e podem ser sujeitos a influências decorrentes de futuras considerações empregatícias. Na época que a WLW estava planejando a judicialização, a avaliação dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e da Corte Constitucional nos levou a acreditar que ainda havia um alto nível de independência. A Suprema Corte de Justiça, por exemplo, confrontou publicamente o Poder Executivo ao descobrir que os telefones dos juízes estavam grampeados de forma ilegal45. A WLW considerou então que a segunda condição havia sido preenchida. Terceiro, a WLW já tinha uma experiência significativa com judicializações de interesse público. Rejeitávamos a possibilidade de denúncias criminais, mas, como nossa equipe tinha experiência em direito constitucional e administrativo, acreditávamos ter as habilidades legais necessárias para assumir uma denúncia disciplinar ou um caso constitucional. Caso tivéssemos considerando outro tipo de ação, talvez não pudéssemos assumi-la. Quarto, a WLW identificou uma forte estrutura de apoio naquela época. Diversas organizações da sociedade civil se mobilizaram contra o Procurador. Algumas dessas organizações atuavam com violações de direitos, mas nenhuma delas estava judicializando as questões. Não havia uma coalizão explícita contra as ações do Procurador, mas a WLW percebeu que havia uma consciência comum demandando medidas concretas. Assim, a WLW considerou que essa condição poderia ser suficientemente fortalecida para apoiar a judicialização estratégica. Depois de avaliar as quatro condições, a WLW concluiu que a judicialização estratégica era viável e prosseguiu com a formulação das estratégicas jurídicas específicas que seriam usadas nesse contexto hostil.

Proteção e defesa da saúde e dos direitos reprodutivos na Justiça Nossa primeira opção foi apresentar uma denúncia disciplinar contra o Procurador. Com isso, iríamos revelar a forma como o Procurador descumpria seus deveres constitucionais. Além disso, a Suprema Corte de Justiça é responsável pelo recebimento das denúncias disciplinares contra o Procurador e a WLW já havia identificado o alto grau de independência e compromisso com os direitos humanos dessa Corte. 109


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Também pensamos que poderíamos desenvolver uma forte estratégia de comunicações e alianças, focada em denunciar o histórico do Procurador ao impor seus valores religiosos sobre os servidores públicos, o que era incompatível com a função de fazer cumprir a constituição. No dia em que a denúncia foi feita, a WLW realizar vigílias com as organizações aliadas em quatro grandes cidades para chamar atenção para a denúncia. Usamos as mídias sociais para publicar os eventos e trabalhamos com colunistas de jornais, outros grupos de direitos das mulheres, grupos LGBTI e com as Católicas pelo Direito de Decidir para sensibilizar a população. Durante os eventos, foram distribuídas caixas de fósforo com a fotografia do Procurador, para transmitir a mensagem de que um extremista religioso representa perigo para os nossos direitos constitucionais. O título da campanha foi Chega de Obscurantismo. Infelizmente, a segunda condição, relacionada à independência do Judiciário, mudou com o desenrolar do processo de judicialização. A Suprema Corte de Justiça levou seis meses para iniciar oficialmente as investigações da denúncia. Durante este período, diversas mudanças ocorreram na composição da Corte. Os mandatos de muitos juízes que eram considerados independentes e comprometidos com os direitos terminaram. O Chefe de Justiça, também considerado uma forte voz independente, renunciou por motivos pessoais. Novos juízes, portanto, assumiram a Corte, muitos dos quais tinham familiares ou amigos que trabalhavam para o Procurador46. Nesse ponto, a WLW percebeu que a Corte não era mais suficientemente independente. Apesar da abertura do procedimento investigativo, a WLW já não acreditava que o judicialização fosse viável. Mas, continuamos com o processo durante os 18 meses seguintes para continuar a gerar conscientização sobre os abusos de poder do Procurador. O caso foi encerrado em novembro de 2012. Nessas circunstâncias, reavaliamos as quatros condições. Dessa vez, focamos na Corte Constitucional, que era o único órgão da Justiça crítico ao Procurador. Por exemplo, a Corte já havia instruído o Procurador para cumprir as ordens relacionadas às campanhas educativas sobre direitos sexuais e reprodutivos47, sob o argumento de que instituições não podem ser objetoras de consciência e a objeção de consciência não pode se sobrepor aos direitos das mulheres. 110

Em seguida, definimos uma estratégia legal adequada para essa Corte. Apesar de suspeitarmos fortemente que as ações do Procurador estavam dissuadindo outras autoridades para restringir os direitos reprodutivos, não tínhamos evidências para provar a causalidade entre suas ações, as ações de outros servidores e a violação de direitos reprodutivos. Além disso, sabemos que a maioria das mulheres que enfrentam dificuldades no acesso do aborto legal não optam pelo judicialização. As poucas mulheres que o fazem são estigmatizadas e pagam um preço injustamente alto por relacionar o seu caso à causa48. Assim, tomamos a iniciativa de construir um caso em que não dependêssemos de casos individuais de mulheres. Construímos o caso usando evidências coletadas ao monitorar as ações da Procuradoria relacionadas aos direitos reprodutivos. Sabíamos que o Procurador e seus deputados haviam distribuído informações errôneas e imprecisas para servidores sob o seu controle disciplinar e para o público em geral. Decidimos então requerer uma tutela baseada na ameaça ou violação de direito fundamental, com base no direito à informação. O direito à informação é protegido pela Constituição Colombiana no artigo 2049 e pelo artigo 131 da Convenção Interamericana50. A aliança com grupos de diferentes regiões da Colômbia, como o Si Mujer de Calí, Mujer y Futuro de Bucamaranga, Red de Desechos Sexuales y Reproductivos de Medellín e Contigo Mujer de Pereira, entre outros, nós levou a 1280 mulheres em idade reprodutiva de todo o país que concordaram apresentar uma queixa coletiva, alegando que as mentiras do Procurador e suas declarações errôneas violavam o seu direito fundamental à informação sobre direitos reprodutivos. A tutela afirma que servidores públicos devem separar suas opiniões pessoais dos padrões jurídicos e da informação fatual no cumprimento de seus deveres. Apresentamos a queixa em outubro de 2011 a uma Corte de primeira instância e ela chegou à Corte Constitucional em janeiro de 2012. Nesse ponto, a WLW solicitou o amicus por parte de outras organizações nacionais e internacionais da sociedade civil. Na Colômbia, um grupo de homens apoiando os direitos reprodutivos, um grupo de jornalistas e diversas organizações da sociedade civil enviaram declarações de apoio ao argumento do direito à informação. Internacionalmente, diversas organizações também enviaram declarações destacando a normativa internacional que apoia o direito à informação no campo dos


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direitos reprodutivos**. Isso ampliou a rede de apoio internacional, o que poderia ter sido importantíssimo se o caso tivesse chegado a um tribunal regional ou internacional. A estratégia de comunicação baseou-se na ideia de que o Procurador e seus deputados usaram de mentiras para sabotar a implementação dos direitos reprodutivos. Pessoalmente, eles poderiam se opor ao reconhecimento de determinados direitos, mas como servidores públicos eram obrigados a divulgar informações precisas e confiáveis. Essa mensagem teve ressonância entre as pessoas que se opõem a alguns dos direitos reprodutivos, mas acreditam que as autoridades devem ser transparentes e confiáveis no cumprimento de seus deveres constitucionais. Em 10 de agosto de 2012, a Corte Constitucional divulgou o julgamento T-627/12, revelando que o Procurador Ordoñez, a Procuradora Hoyos e a Procuradora Carreño haviam divulgado informações falsas relacionadas aos direitos reprodutivos e ameaçado ou violado o direito de acesso a serviços de saúde reprodutiva, incluindo o aborto, e o direito à saúde física e mental. A Corte ordenou que o Procurador e seus deputados corrigissem a informação falsa em 72 horas e se desobedecessem, poderiam ser presos51. A Corte requereu especificamente que o Procurador se retratasse com relação às declarações de que as campanhas de direitos reprodutivos promoviam o aborto, de que a contracepção de emergência era abortiva, que o misoprostol não era seguro, que as autoridades não deveriam garantir o acesso ao aborto porque esse não era um direito das mulheres e de que as instituições poderiam alegar objeção de consciência para não oferecer os serviços. Assim, o Procurador declarou publicamente que a contracepção de emergência estava disponível gratuitamente para as mulheres da Colômbia pelo sistema público de saúde. A Procuradora Hoyos foi forçada a se retratar pela sua carta ao Diretor do Departamento de Saúde Nacional, contrária ao aborto. Além disso, a Corte ordenou que a Comissão de Regulação em Saúde seguisse ** As seguintes declarações de amicus foram enviadas: O direito à informação e à liberdade de expressão (Asociación por los Derechos Civiles, Argentina); Direito à informação (Centro de Investigación y Docencia Economicas, Mexico); Importância da informação para os direitos reprodutivos (Center for Reproductive Rights, Colombia e global); Direitos constitucionais (DeJusticia Colombia); O direito dos homens à informação sobre direitos reprodutivos (pelo advogado colombiano Santiago Pardo); Deveres dos jornalistas (por Catalina Ruiz-Navarro).

com o processo de inclusão do misoprostol nos planos nacionais de saúde. O Procurador e seus deputados foram obrigados a publicizar essas declarações pelos mesmos meios usados para divulgar as declarações falsas anteriores. Essas notícias chamaram bastante a atenção da mídia52. A Revista Semana captou a essência histórica dessa decisão53. O El Tiempo, um dos principais jornais da Colômbia, dedicou uma página inteira para a história com uma foto de um grupo de demandantes45. As organizações que trabalham com direitos reprodutivos na Colômbia se uniram e publicaram um anúncio de página inteira no jornal de domingo, apresentando de maneira clara a falsa informação utilizada pelo Procurador, a informação correta e o impacto produzido pela vitória jurídica na vida das mulheres. Como resultado, a contracepção de emergência continua legal e acessível, o misoprostol está incluído nos programas de saúde, as instituições não estão autorizadas a declarar objeção de consciência e o Departamento Nacional de Saúde divulgou novas diretrizes sobre o aborto legal e seguro, tal como previsto pela jurisprudência constitucional. Na época da redação desse artigo, as campanhas educativas ainda não tinham se iniciado.

Conclusão Esse artigo mostrou como implementar processos de judicialização estratégica, entendendo-os como uma ferramenta de ativismo político que oferecem múltiplas oportunidades para transcender o campo da Justiça e produzir impactos sobre os valores e normas culturais, ainda que a vitória jurídica não seja alcançada. Demonstrou-se, além disso, a importância da análise cuidadosa do contexto antes da decisão pela judicialização. Parece claro que o teste das quatro condições não pode ser completamente cumprido, mas ele é uma chave para se compreender que a mudança social sustentável por meio da judicialização depende da elaboração e adaptação de estratégias para desenvolver ou fortalecer essas quatro condições e, em especial, aquelas identificadas como mais frágeis. Os dois casos apresentados nesse artigo ilustram a interação entre as quatro condições. E demonstram como a judicialização estratégica pode ser usada para promover a mudança social ao permitir que o marco jurídico seja aplicado a um caso específico, criando estratégias integradas nos campos jurídico, político e da comunicação para transcender o campo da Justiça e alcançar a opinião pública e os movimentos sociais, fortalecendo, 111


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assim, as condições gerais para lidar com as violações de direitos. A denúncia disciplinar revelou que a falta de independência e compromisso dos juízes dificulta imensamente a continuidade do processo legal, mesmo quando o marco jurídico é generoso, as violações são claras, o caso tem uma boa base e as organizações de sociedade civil envolveram a opinião pública. Mas também revela a importância de incluir uma estratégia de alianças e comunicação como parte do processo de judicialização. No final, essa denúncia foi dispensada e não se obteve nenhuma vitória legal, mas o caso situou as posições do Procurador como ameaças aos direitos e às liberdades fundamentais, especialmente para as mulheres54. E também criou uma plataforma para mobilizar grupos em todo o país, consolidando um setor da sociedade civil que foi além das pessoas preocupadas com a saúde reprodutiva e que continuaram a examinar criticamente as ações do Procurador e de seus deputados, denunciando aqueles que se opunham aos direitos humanos e ao Estados democrático de direito55,56. A tutela sobre o direito de informação provou que é possível que a sociedade civil responsabilize as autoridades por meio da produção de argumentos criativos sobre violações de direitos e o acesso à Justiça como solução. Ao basear a denúncia no direito à informação, permitiu-se que qualquer mulher em idade reprodutiva a quem foi negada informação pudesse se tornar uma demandante e prosseguir com o caso. A parceria com os movimentos de saúde da mulher e de saúde reprodutiva para as declarações amicus aumentaram significativamente o impacto da decisão.

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Em todo o mundo, é comum a forte oposição à saúde e aos direitos reprodutivos e, de forma crescente, tem se utilizado do marco dos direitos em seu discurso, o que requer dos movimentos de saúde e direitos sexuais e reprodutivos a utilização de novas estratégias, tais como a judicialização. A judicialização estratégica é uma ferramenta bastante poderosa para avançar no campo dos direitos e para responsabilizar os governos pelo cumprimento de suas obrigações de direitos humanos. Essas estratégias podem ser adaptadas para outros contextos e, com elas, esperamos inspirar outros movimentos a proteger e promover os direitos reprodutivos por meio da judicialização, quando as mulheres não podem gozar plenamente de seus direitos.

Agradecimentos Esse artigo é uma versão preliminar de um texto mais abrangente que registra a metodologia da WLW, incluindo seções sobre como as quatro funções e desenhar estratégias baseadas nos resultados desses mapeamentos. A publicação também incluirá um guia sobre definição e planejamento de estratégias jurídicas, de comunicação e parcerias no processo de judicialização. As autoras gostariam de agradecer especialmente a Elsa Meany, cuja contribuição possibilitou esse artigo. Também gostaríamos de agradecer a Viviana Waisman, Ariadna Tovar, Mariana Ardila, Carolina Dueñas, Blakeley Decktor e Rafaela Menezes por suas contribuições valiosas. As ideias para esse artigo foram desenvolvidas como parte do trabalho desenvolvido pela WLW, possibilitado por seus generosos financiadores. As autoras gostariam de agradecer especialmente ao IPPF/WHR por incentivar a sistematização desses processos.


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Résumé Women’s Link Worldwide a conçu un test pour déterminer quand un environnement est propice au changement social par le biais de litiges stratégiques. Nous présentons d’abord notre conception des litiges stratégiques, puis examinons quatre conditions d’un changement réussi et durable avec eux : 1) l’existence d’un cadre de droits ; 2) un système judiciaire indépendant et compétent ; 3) des organisations de la société civile capables de traduire les problèmes sociaux en violations des droits et d’engager une action en justice ; et 4) un réseau capable de soutenir et d’exploiter les possibilités offertes par les litiges. Nous présentons ensuite des exemples de notre travail en Colombie qui montrent comment l’analyse de ces conditions a guidé notre stratégie de litige face à un puissant fonctionnaire opposé aux droits génésiques. Deux stratégies ont été adoptées. La première affaire n’a pas eu gain de cause devant les tribunaux, mais nous a permis de présenter notre message et de mobiliser un soutien parmi la société civile. La deuxième affaire s’est servie de cet élan et a abouti à un succès. Le litige stratégique est un outil puissant pour faire progresser les droits ainsi que pour demander des comptes aux autorités et garantir l’application des obligations relatives aux droits de l’homme. Les stratégies élaborées peuvent être adaptées à d’autres contextes. Nous espérons qu’elles inciteront d’autres personnes à protéger et promouvoir les droits génésiques par les litiges stratégiques, quand les femmes ne peuvent pas jouir pleinement de leurs droits.

Resumen Women’s Link Worldwide creó una prueba para determinar cuándo un ambiente es propicio para el cambio social mediante el litigio estratégico. Primero presentamos nuestro entendimiento del litigio estratégico, y luego explicamos las cuatro condiciones para el cambio exitoso y sostenible utilizando el litigio estratégico: (1) un marco de derechos; (2) una judicatura independiente y bien informada; (3) organizaciones de la sociedad civil con la capacidad para plantear los problemas sociales como violaciones de derechos y para litigar; y (4) una red capaz de apoyar y aprovechar las oportunidades presentadas por el litigio. A continuación, presentamos ejemplos de nuestro trabajo en Colombia, que muestran cómo el análisis de estas condiciones informó nuestra estrategia de litigio para confrontar a un funcionario público influyente que se opone a los derechos reproductivos. Se adoptaron dos estrategias de litigio. El primer caso no fue exitoso en las cortes, pero nos permitió presentar nuestro mensaje y fomentar apoyo en la sociedad civil. El segundo caso se basó en este impulso y fue victorioso. El litigio estratégico es una herramienta poderosa para promover los derechos y para imputarle a los gobiernos la responsabilidad de cumplir con sus obligaciones relacionadas con los derechos humanos. Las estrategias formuladas pueden ser adaptadas para utilizarse en otros contextos. Esperamos que inspiren a otras personas a proteger y promover los derechos reproductivos por medio del litigio estratégico cuando las mujeres no puedan disfrutar al máximo de sus derechos.

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Mobilizando mulheres de movimentos populares para a incidência nas políticas de saúde: um estudo de caso sobre a Campanha Global pelos Microbicidas Anna Forbes Consultora autônoma, Washington DC, EUA. Contato: annaforbes@earthlink.net

Resumo: A disputa pelas agendas de políticas públicas é contínua. Cientistas políticos concordam que, nesse processo, pesquisadores, acadêmicos e gestores (ou “empreendedores de políticas”) funcionam como canais. O ativismo popular é parte do cenário político, porque não profissionais também desempenham funções de pressão para incorporar problemas específicos às agendas das políticas públicas e para que os políticos implementem as medidas necessárias para a sua solução. Mas, em geral, o ativismo popular é subfinanciado por que os seus impactos são difíceis de isolar e quantificar e, muitas vezes, só se tornam evidente retrospectivamente. Esse artigo examina a contribuição da Campanha Global pelos Microbicidas ao movimento para expandir as opções de prevenção ao HIV para mulheres, descrevendo o processo de mobilização de centenas de ativistas populares em todo o mundo para agirem de forma coordenada. O artigo analisa as conquistas da campanha, ressaltando seus pontos fortes e suas fragilidades. Por fim, trata de esforços similares voltados para a negociação das agendas de desenvolvimento pós-CIPD e pós2015. São as decisões tomadas nesse processo quanto ao tipo de ativismo - e por quem e como será feito - que, inevitavelmente, irá informar o conteúdo dos novos marcos referenciais do desenvolvimento. Palavras-chave: planejamento e políticas de saúde, ativismo, prevenção ao HIV, microbicidas, saúde sexual e reprodutiva. Os processos de pressão política tem sido exaustivamente estudados pela Ciência Política com o intuito de identificar qual o momento e a medida suficiente para garantir a atuação dos políticos. Kingdon1 acredita que um tema ganha prioridade quando três linhas distintas de ações convergem: i. o tema deve ser percebido como um problema que requer ação organizada; ii. suas soluções devem ser apresentadas por especialistas; iii. um ou mais eventos precipitadores devem ocorrer no plano político para motivar os responsáveis a tomarem as medidas necessárias. Hafner e Shiffman2 se referem a esse terceiro passo como a abertura da janela política, que oferece a oportunidade para que os gestores (ou “empreendedores de políticas”) conectem as três correntes e atuem. Outros modelos conceituais descrevem esse processo de maneira diferente. O incrementalismo, por exemplo, descreve a mudança política como o ajustamento gradual do status quo pelos responsáveis pela elaboração e execução das políticas3. Baumgartner e Jones4 propõem o “modelo do equilíbrio pontual” em que períodos de pouca ou nenhuma mudança política são ocasionalmente interrompidos por uma repentina explosã 116

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

publicamente visíveis”2. Tal elenco expressa a visão hierárquica implícita sobre as credenciais requeridas para lidar com os problemas e soluções políticas5. Argumentamos nesse artigo que os movimentos populares são ativistas eficazes no campo das políticas públicas - desempenhando um papel comparável ao dos “empreendedores políticos profissionais”. Klugman cunhou o termo “ativistas de políticas” para descrever essa função, reconhecendo que a “mobilização dos mais afetados pode ela mesma modificar o contexto político… para colocar problemas e soluções específicas na agendas pública e de políticas”6. O termo “popular” é utilizado aqui para se referir a pessoas que não fazem parte da elite política ou acadêmica e cuja participação se dá no nível local ou regional. Sua participação no diálogo sobre políticas públicas pode ser canalizada por meio de organizações não governamentais (ONGs) ou podem ser expressas individualmente, de forma direta. Esse artigo foca na primeira cirscunstância, quando ONGS nacionais com ação direcionada ao Estado servem como condutoras para o envolvimento e a vocalização das demandas de Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42735-0


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integrantes de grupos populares nas discussões sobre políticas públicas. A eficácia do ativismo de base no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos é uma questão premente. Os cronogramas de implementação do Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estão ambos chegando ao fim e a nova agenda de desenvolvimento pós-2015 está em pleno processo de debate e formulação. Muitos ativistas criticaram os modelos anteriores pelo fracasso em incluir explicitamente saúde e os direitos sexuais e reprodutivos como parte integral do desenvolvimento sustentável, relegando-os ao segundo plano na elaboração e planejamento de políticas e no financiamento7. Diversos fatores, incluindo subfinanciamento, prioridades concorrentes, oposição política e desajustes entre declarações políticas corajosas e compromissos governamentais reais, têm contribuído fortemente para essa marginalização. Esse artigo sugere que a pressão coordenada de negociadores com poder de definir as novas agendas políticas - e, particularmente, a pressão de eleitores de base para responsabilizar esse negociadores quando da execução da política - pode ajudar a garantir uma atenção mais significativa para as questões da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. Tradicionalmente, gestores e políticos tendem a evitar tópicos sensíveis, como a saúde sexual e reprodutiva, utilizando seu capital político em outras áreas8. Ativistas populares já demonstraram a sua disposição para tratar publicamente dessas questões, mas sua influência é limitada pela insuficiência de recursos e problemas de coordenação9. Ainda que muitas ONGs internacionais participem atuem nesse campo, nem sempre agem de maneira coordenada ou representam um conjunto comum de demandas dos grupos de base. Esse padrão mudaria se mais militantes de base fossem recrutados, capacitados e equipados para agir como ativistas políticos, usando a definição de Klugman? Será que o maior número desses ativistas poderia pressionar suas delegações nacionais para o fortalecimento do compromisso com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos nos próximos marcos referenciais das políticas públicas de saúde? Esse artigo analisa a viabilidade dessa opção, por meio do estudo de caso da Campanha Global pelos Microbicidas (CGM).

Estudo de caso: a Campanha Global pelos Microbicidas De acordo com Du Troit, é necessário que “bons intermediários do conhecimento - tradutores, ativistas e intelectuais orgânicos - atuem estrategicamente na divisa entre a elaboração de políticas públicas e a pesquisa”5. A Campanha Global pelos Microbicidas, constituída por uma pequena equipe de ativistas profissionais, buscou conectar não apenas as políticas e a pesquisa, mas também os gestores de políticas e a militância de base, com o intuito de pressionar financiadores e políticos para a garantia de melhores meios de prevenção do HIV entre as mulheres. Constituída em 1998*, a CGM buscou acelerar o desenvolvimento de insumos de prevenção do HIV que pudessem ser usados sem a cooperação do parceiro masculino. A CGM focou particularmente nos microbicidas, produtos tópicos desenvolvidos para a aplicação vaginal ou retal para reduzir o risco de infecção por HIV resultante da exposição sexual. Com equipe e orçamento relativamente pequenos, a CGM contou com a colaboração de organizações parceiras em saúde da mulher, HIV/AIDS, saúde e direitos sexuais e reprodutivos e outros campos afins para: • gerar pressão política para ampliar os investimentos em pesquisa sobre os microbicida e o acesso a preservativos femininos e outros métodos de barreira cervical; • promover o maior envolvimento da sociedade civil para garantir o respeito e a plena representação dos interesses e direitos de participantes de testes clínicos, de usuários de serviços e das comunidades em todas as fases de pesquisa, desenvolvimento e introdução do produto; e • possibilitar às pesquisas clínicas lidar de forma eficiente com os desafios que emergem de resultados inesperados ou indesejados das pesquisas e das mudanças de cenário político que afetam a ética dos processos de tomada de decisões, a cobertura da mídia e as percepções políticas e da comunidade sobre os testes. * Inicialmente, a CGM foi sediada no Centro para a Saúde e a Equidade de Gênero (CHANGE, sigla em inglês), uma pequena ONG de Washington, DC, EUA. Em 2001, a CGM mudou para o escritório de PATH (Programa pelas Tecnologias Apropriadas na Saúde), se constituindo como um programa desta organização, mas mantendo seu próprio comitê coordenador e sua autonomia com relação a orçamento, financiamento, planejamento etc.

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A CGM não tem qualquer vínculo com desenvolvedores de produtos ou instituição de pesquisa e, ao longo de seus 14 anos, se estruturou como uma plataforma ativista, recrutando 347 organizações parceiras e apoiadores em seis continentes, para a implementação de estratégias adequadas de ativismo local. No seu apogeu, em 2007, a CGM contou com 17 profissionais trabalhando em Washington, DC, Johannesburgo, Nairobi, Bruxelas, Deli e Ottawa. No entanto, seu financiamento foi reduzido no começo da crise econômica mundial e após resultados de testes clínicos terem demonstrado a ineficácia de alguns microbicidas. O entusiasmo voltou em 2012, com o anúncio dos primeiros resultados de testes clínicos que validaram o conceito dos microbicidas (provando que um produto de uso tópico pode reduzir significativamente o risco de transmissão do HIV). Em julho de 2012, no entanto, a PATH, organização que sediava a CGM, anunciou sua decisão de encerrar a CGM10, pelos motivos discutidos abaixo.

Definindo o problema e propondo soluções Em todo o mundo, a grande maioria das mulheres vivendo com HIV adquiriu o vírus por meio do sexo com o marido ou namorado. As mulheres têm o dobro da probabilidade de adquirir o HIV durante o sexo sem proteção com um homem HIV positivo do que a situação contrária11 e muitas mulheres não podem ou não insistem no uso do preservativo - masculino ou feminino. Em 1990, Lori Heise (posteriormente diretora fundadora da CGM) estava em uma mesa em uma conferência de prevenção ao HIV quando uma mulher de Uganda perguntou: “Se já conseguimos mandar o homem à lua, por que não conseguimos encontrar uma maneira de proteger as mulheres (do HIV) e permitir que elas engravidem?”. Intrigada pela questão, Heise contactou cientistas renomados de agências federais dos EUA em busca da resposta. Eles disseram que não era impossível produzir um produto dessa natureza, mas que os testes poderiam não ser viáveis e, provavelmente, não era um produto necessário, porque “as mulheres não correm um risco real de se infectar” com o HIV (L Heise, Diretora, CGM, Comunicação pessoal, 23 de agosto de 2006). Também em 1990, a epidemiologista e ativista Sul Africana Zena Stein publicou um artigo na Revista Americana de Saúde Pública sobre as necessidades de proteção das mulheres contra o HIV. Décadas de experiência em planejamento familiar 118

demonstraram a eficácia superior dos métodos que dão o controle da fecundidade às mulheres, mas essa lição não foi aprendida no que diz respeito à prevenção do HIV12. Em 1991, na 1ª Conferência sobre Mulheres e HIV dos EUA, ativistas de base exigiram insumos de prevenção ao HIV que “fossem controladas pelas mulheres e que pudessem ser usados sem o conhecimento dos parceiros”13. No final dos anos 1980, alguns pesquisadores começaram a investigar o potencial do Nonoxynol-9 (um espermicida amplamente usado) como microbicida, possibilidade que foi rejeitada no ano 200014. A pesquisa para a produção de novos microbicidas começou em laboratórios dos EUA e do Reino Unido em 199215 e os primeiros produtos ficaram prontos para os testes clínicos no final dos anos 1990. Mas dois grandes obstáculos desaceleraram esse processo: falta de financiamento e de cooperação governamental nos países que eram mais adequados para a realização dos testes clínicos. Em 1999, o governo dos EUA investiu US$ 28 milhões16 em pesquisa e desenvolvimento de microbicidas e mais de US$ 200 milhões no desenvolvimento de uma vacina contra o HIV17. Embora não houvesse nenhuma evidência adicional que apoiasse o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra o HIV - em lugar de um microbicida eficaz -, por diversas razões, as vacinas sempre ganham a preferência. Em geral, vacinas preventivas foram (e são) consideradas o “padrão de ouro” dos insumos de prevenção biomédica, embora o conceito de prevenção de doenças com produtos de uso tópico vaginal ou retal seja inédito. As vacinas são controladas pelos fornecedores e não pelos usuários, o que dá maior consistência e previsibilidade ao seu uso correto. Além disso, podem ser debatidas sem que se mencione como, com quem e sob que circunstâncias as pessoas fazem sexo. Assim como em outras áreas da saúde sexual e reprodutiva, financiadores e gestores se inibem com discussões que venham a mencionar os diferenciais de poder no campo do gênero e da sexualidade. Para lidar com esses obstáculos, foi necessária uma dupla abordagem ativista: uma para persuadir os países ricos a investir no microbicida e outra para persuadir os países mais adequados para os testes a permitirem a pesquisa. Esse último ponto foi vital porque o financiamento público foi (e é) imprescindível para o desenvolvimento de microbicidas, já que a indústria farmacêutica que é geralmente o motor do desenvolvimento de


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novas drogas -, não considera os microbicidas lucrativos o suficiente para garantir os investimentos18. Questões relativas à confiabilidade também reduziram o interesse: como não há microbicida 100% eficaz, isso poderia levar a processos judiciais. Em 2004, apenas 3% do financiamento global para pesquisa e desenvolvimento de microbicida veio do setor corporativo, com os restante 97% sendo bancado pelos governos e instituições de cooperação19. Em 2012, essa relação continuava exatamente a mesma17. O reduzido apoio governamental aos testes nos países sede da pesquisa também foi um obstáculo importante. Para a detecção da eficácia potencial, os testes foram realizados em áreas de alta incidência de HIV entre mulheres. Como parte dos protocolos do teste, foram fornecidos preservativos gratuitos para todos os participantes, incentivando-se o seu uso. As taxas de uso de preservativo foram semelhantes no grupo de teste e no grupo de controle (placebo), de modo que qualquer evidência de proteção adicional no grupo de teste pudesse ser atribuída ao uso do produto. Heise et al criaram a CGM em 1998 para visibilizar o interesse público nos microbicidas para possíveis investidores e países sede. Em lugar de começar do zero, a CGM começou com o apoio de parceiros antigos, como ONGs locais e nacionais que trabalhavam com saúde da mulher, planejamento familiar, direitos humanos e/ou HIV/AIDS. Para equipá-las, a CGM desenvolveu materiais educacionais intuitivos sobre a transmissão do HIV, a situação da pesquisa sobre microbicida e os passos necessários para garantir a ética no processo. Essa abordagem foi construtiva e bastante colaborativa, pressuponde desde o princípio que as possíveis ONGs parceiras já estavam sobrecarregadas com outros trabalhos. Em lugar de solicitar às organizações parceiras que executassem tarefas pré-determinadas, a CGM convidou-as para participar da maneira que melhor lhes conviesse: publicando artigos em suas newsletters ou web sites (com conteúdos de relevância local), circulando a Petição pelo Investimento em Microbicidas ou apoiando atividades educativas. Isso permitiu que parceiros e apoiadores participassem da Campanha de forma confortável e ainda lhes ofereceu ferramentas, capacitação, orientações estratégicas e motivação para iniciar o ativismo pelos microbicidas em seus respectivos países. Começando pelos Estados Unidos, a CGM focou nos principais distritos eleitorais, pedindo às ONGs apoiadoras para funcionar como “sedes da cam-

panha”: locais em que coalizões de ONGs de toda a cidade pressionavam coletivamente políticos e gestores para o aumento dos investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento de microbicidas. Em cinco anos, o orçamento dos EUA para microbicidas triplicou, passando de US$ 28 milhões em 1999 para US$ 92 milhões em 200420, e então dobrou novamente entre 2004 e 200921. Essa conquista é resultado da convergência de vários fatores no cenário político. A maior atenção da mídia para a proliferação do HIV entre mulheres, especialmente na África subsaariana, chamou a atenção para a necessidade urgente de mecanismos de prevenção. A estabilidade dos avanços científicos na pesquisa e desenvolvimento de microbicidas entre 1992 e 2002 sustentou a ideia de que esses insumos poderiam ser produzidos. Com esses dois componentes (identificação do problema e proposição da solução) em jogo, a CGM se juntou a muitas outras entidades e a pesquisadores, representantes de governos, de ONGS† e de movimentos sociais, para dar o terceiro passo em direção à ação política necessária para financiar a busca por uma solução.

Ampliando as parcerias A CGM replicou seu modelo organizacional e seus padrões de colaboração com parceiros no Canadá, onde ONGs comunitárias e municipais levaram a questão a seus parlamentares. Os níveis de financiamento ao microbicida subiram de zero, no ano fiscal de 2000, para 4.9 milhões de dólares canadenses em 200919. Assim como nos EUA, o interesse do governo do Reino Unido nos microbicida era anterior à CGM, tendo o Departamento de Desenvolvimento Internacional estabelecido um Programa de Desenvolvimento de Microbicida em 2001. A CG Europa (parte europeia da CGM) foi lançada em Londres em 2002. Em 2004, a CG Europa (contando com dois membros da equipe) se mudou para um escritório em Bruxelas, compartilhado com a Parceria Internacional para os Microbicidas (PIM), a Iniciativa Internacional de Vacina contra a AIDS e a Aliança Pare com a AIDS. Esse local compartilhado facilitou o uso de abordagens “internas e externas” † A CGM trabalhou com um grande número de ONGs que também apoiavam ativamente o desenvolvimento de pesquisas e de microbicidas. Entre elas estava a Aliança para o Desenvolvimento de Microbicidas, Instituto Alan Guttmacher, Centro para Igualdade de Gênero e Saúde, Centro Internacional de Pesquisa sobre Mulheres, Parceria Internacional para Microbicidas, a Rede Nacional de Saúde da Mulher, PATH, Conselho Populacional e muitas outras.

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para influenciar os governos europeus. Enquanto a PIM procurava influenciar funcionários públicos em importantes ministérios, a CGM coordenava o ativismo local das ONGs, voltado para representantes governamentais e, assim, exercia-se pressão para o financiamento em duas direções. Em 2009, a CG Europa contava com locais ativos de campanha em dez países europeus e materiais em inglês, francês, espanhol, holandês e russo. A CG passou a ser parte integral de um conjunto de estratégias ativistas (envolvendo cientistas e gestores importantes) que estimularam onze governos europeus e a Comissão Europeia a financiar a pesquisa sobre microbicidas. O investimento do continente subiu de US$ 0.7 milhão em 2000 para US$ 59.6 milhões em 200719. A explosão de um tema na mídia, como salientado por Baumgartner e Jones5, pode estimular a mudança nas políticas. Por diversas vezes, a mídia voltou sua atenção para os microbicidas - algumas vezes de forma planejada pelos ativistas e outras pelos agentes externos, mas sempre aproveitadas pela CGM. Em 2004, por exemplo, ativistas, cientistas e aliados da Comissão Europeia persuadiram o governo irlandês a convocar a primeira reunião de alto nível da UE sobre novas tecnologias de prevenção ao HIV. Na reunião, representantes da sociedade civil da Índia, Nigéria, Holanda, Reino Unido, África do Sul, Espanha e Bélgica se reuniram e conseguiram um enorme apoio à Petição para um Maior Investimento em Microbicidas, da CGM. Mais de 200,000 assinaturas, algumas das quais eram apenas impressões digitais, foram coletadas em todo o mundo exigindo alternativas ao preservativo. A atenção da mídia a essa intervenção durante a reunião multiplicou os seus impactos. Em 2004, a mídia também focou na pesquisa de prevenção ao HIV quando o governo do Camboja cancelou um grande ensaio clínico de profilaxia pré-exposição (PrEP, outra nova tecnologia de prevenção ao HIV) depois que organizações de profissionais do sexo se opuseram fortemente às condições de participação na pesquisa e ao modo como foram tratadas por alguns pesquisadores22. Em Camarões, outro ensaio de PrEP foi encerrado em 2005, como resultado da oposição da comunidade23. Esses episódios representaram um alto custo para as redes de pesquisa. A cobertura sensacionalista da imprensa deixou muitos governos da Ásia e África com receio de sediar testes de prevenção ao HIV, com medo de serem acusados de conspirar contra seus cidadão. 120

A CGM aproveitou esse momentos para mostrar como a participação proativa das comunidades junto aos pesquisadores poderia prevenir tais fracassos. Outro momento midiático importante ocorreu em 2007, quando integrantes de ONGs africanas que viviam em Londres formaram o Grupo Africano de Trabalho sobre Microbicidas, com o apoio da CGM, para atuar em suas próprias comunidades. Esse grupo abriu diálogo com pesquisadores de microbicidas em Londres, levando-lhes a opinião das comunidades sobre o tema. Essa colaboração foi registrada pela BBC em um documentário televisivo sobre “parceiros improváveis”24. Esses acontecimentos ilustram como ativistas de base recrutados pela CGM - trabalhando em parceria por um ideal comum - deram visibilidade ao tema no cenário das políticas públicas. Em lugar de reduzir a eficácia, a ausência de experiência profissional como “empreendedores políticos” permitiu-lhes desempenhar funções complementares àquelas executadas por outros setores, na posição de mulheres de movimentos populares (a maior parte delas), representando suas comunidades e seus pares.

Produzindo mudanças nas políticas dos países em desenvolvimento Em geral, os ensaios clínicos de larga escala para testar a eficácia (passada e presente) de microbicidas são realizados na África subsaariana, dada a necessidade de um histórico de altas taxas de prevalência de HIV. Em muitos desses países, no entanto, está presente o receio de violações de direitos humanos relacionadas à pesquisa25. A CGM enfrentou esse problema defendendo o envolvimento da comunidade - junto com a necessária transparência - no planejamento e execução dos ensaios como elementos eticamente indispensáveis para se evitar abusos futuros. Esse envolvimento foi essencial para construir o senso de pertencimento e o apoio dos governos africanos e dos participantes dos testes, o que permitiu a realização das pesquisas de forma adequada. Assim como nos países desenvolvidos, a CGM iniciou os seus trabalhos nos países em desenvolvimento a partir do contato com ONGs que já estavam envolvidas com a saúde e os direitos sexuais das mulheres e HIV/AIDS. A Sociedade para Mulheres e AIDS na África, uma rede de ONGs, compartilhou informações com os seus membros em 37 países e, em 1999, co-patrocinou junto com a CGM uma conferência panafricana sobre microbicidas.


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Isso abriu as portas para apresentações colaborativas em conferências regionais e nacionais em vários países africanos, expandindo a credibilidade e o alcance da CGM. De forma sistemática, a CGM buscou a colaboração com redes transnacionais, tais como a Sociedade para Mulheres e AIDS na África, o Conselho Pacífico Asiático de Organizações Assistenciais e a Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV/AIDS, para construir credibilidade e visibilidade, expandindo ainda mais o seu alcance. A CGM partiu da premissa de que as pessoas sabiam como a sua comunidade funcionava e como essas tarefas deveriam ser realizadas nas estruturas políticas já existentes. Por esse motivo, contratou membros locais para as equipes, incentivando-os a trabalhar junto com as ONGs e redes locais parceiras. A equipe da CGM tinha a tarefa de revisar materiais, orçamentos e planos de trabalho, como um modo de gerar e apoiar parceiras autênticas no ativismo. A CGM também trabalhou diretamente nos locais de testagem dos microbicidas e, em 2003, realizou uma consulta de três dias com membros das equipes de oito locais de testes clínicos em quatro países do sul da África. Após diversas consultas, a CGM criou o grupo de “práticas comunitárias”, que se comunicava por meio de teleconferências mensais e de uma reunião presencial anual, para solucionar coletivamente os problemas enfrentados pelos membros das equipes de pesquisa envolvidos com a participação da comunidade26. O envolvimento da CGM com as equipes locais de testes clínicos complementou o seu trabalho junto às organizações comunitárias, sinalizando para o seu forte compromisso com a capacitação dos grupos locais - equipes técnicas dos testes ou ativistas populares - para garantir que os testes fossem benéficos para a população e para os financiadores‡. Em 2007, a CGM decidiu focar o seu trabalho nos ensaios realizados nos países-sede na África, onde o ativismo comunitário era extremamente necessário para garantir o apoio governamental às pesquisas. Na África do Sul, Quênia e Zâmbia, países escolhidos como focos da CGM, foram oferecidas dezenas de Capacitações em Pesquisa em oito línguas africanas e em inglês e francês, para habilitar as ONGs locais na condução de processos educativos na comunidade e na pressão política ‡

Os relatórios dessas ações e outros materiais da CGM estão disponíveis online no endereço http://www.globalcampaign.org/ EngDownload.htm.

sobre o governo. Como resultado, as necessidades de prevenção ao HIV entre mulheres ganhou maior atenção nos planos estratégicos nacionais de enfrentamento ao HIV/AIDS na África do Sul e no Quênia e cresceu o apoio governamental para os ensaios clínicos com os microbicidas nos três países. Entre 1998 e 2012, os microbicidas passaram de um conceito desconhecido para uma nova ferramenta de prevenção ao HIV com boas chances de ser introduzida em algumas partes do mundo na década seguinte. A CGM, que contava principalmente com a parceria de organizações populares, foi essencial para que isso acontecesse e contribuiu de forma significativa para mudanças nas concepções sobre o envolvimento comunitário em ensaios clínicos relacionados ao HIV. A CGM recrutou, capacitou e apoiou pessoas ligadas a centenas de pequenas e grandes ONGs para atuarem como ativistas políticas de base.

Por que a CGM encerrou suas atividades? É muito frequente que ONGS apresentem uma trajetória curta e descendente, particularmente quando são ativistas. Em poucas palavras, os fatores que precipitaram o declínio da CGM envolveram o momento político, financiamento e, parcialmente, o seu estilo operacional. Entre o ápice, em 2007, e a dissolução, em 2012, novos resultados de pesquisas alteraram o contexto no qual a CGM funcionava. Em 2010, os resultados do teste CAPRISA004 indicaram que o uso vaginal do gel tenofovir a 1% poderia garantir proteção moderada contra o HIV sexualmente transmissível27. Essa foi a primeira “validação conceitual”, uma descoberta que demonstrou que um microbicida vaginal, usado corretamente, poderia de fato reduzir o risco de HIV. O teste FACTS 001, um teste confirmatório usando o gel tenofovir a 1%, foi iniciado em 2011. Resultados de pesquisas posteriores sobre a eficácia do produto variaram, mas, se os testes do FACTS demonstrarem eficácia alta o suficiente, a regulamentação do primeiro microbicida vaginal pode se iniciar em 2015. A partir de 2011 também se observa a diversificação das tecnologias eficazes de prevenção, para além da camisinha. Se usada de forma consistente, a profilaxia pré-exposição demonstrou ser eficaz para reduzir o risco de infecção por HIV em 75%28. O uso diário da terapia antirretroviral se mostrou eficaz para reduzir o risco de transmissão do vírus em pessoas HIV positiva em até 96% dos casos29. Ainda não se desenvolveu uma vacina contra o HIV, mas há progressos também nessa área. 121


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A abordagem da vacina é interessante porque sua eficácia preventiva não é prejudicada pelo uso inconsistente, como ocorre com os preservativos, microbicidas e a medicação para o HIV30. O campo do ativismo para a prevenção ao HIV se diversificou em função dos desenvolvimentos observados em 2011, reduzindo o interesse no foco mais “estreito” dos microbicidas. Outros grupos ativistas desenvolveram novas e ousadas alianças, ganhando competitividade diante do limitado número de doadores. O financiamento institucional da CGM foi reduzido com a mudança de prioridades de seus principais financiadores. A equipe de 17 pessoas em 2007 teve que ser reduzida para quatro em meados de 2012. Para Klugman, para alcançarem sucesso, ONGs ativistas deve cultivar e manter sua capacidade organizacional estável ao longo do tempo. É importante manter uma forte “capacidade adaptativa” e a “habilidade de gerar novos líderes” em um cenário de mudanças constantes nas políticas e programas, características “difíceis de mensurar, mas que, sem dúvida, são as características mais importantes” de uma organização forte, sendo até mesmo mais importante do que outras mais valorizadas, como a captação de fundos, gestão fiscal, comunicação, relações públicas etc.6. A saída de integrantes fundadores e a passagem da liderança para a próxima geração testa a capacidade adaptativa dessa geração e é comum que se enfrente muitas dificuldades neste momento, especialmente quando a mudança ocorre num contexto de crise externa, como o mencionado acima. Em 2009, a diretora fundadora da CGM renunciou ao seu posto, após organizar um processo de transição para otimizar a estrutura organizacional e garantir um orçamento de cinco anos adaptado ao novo contexto de financiamento e ao diversificado cenário das parecerias. Assim como as quatro ONGs citadas por Klugman6, depois da sua renúncia as integrantes da CGM expressaram opiniões variadas sobre as razões pelas quais a CGM se desestabilizou entre 2009 e 2012. Alguns atribuíram o seu declínio e encerramento definitivo apenas ao novo contexto de financiamento, enquanto outros viram o seu declínio como resultado de mudanças na visão organizacional da CGM, que afetaram sua capacidade adaptativa. Em 2011, a PATH realizou uma ampla consulta com a comunidade global de saúde sobre o futuro da CGM e sua importância no contexto político do desenvolvimento. Os entrevistados foram consistentes em reconhecer que a CGM cumpriu a fun122

ção de criar um movimento de apoio aos mecanismos de prevenção ao HIV para mulheres, mas também argumentaram que naquele momento outros parceiros estavam em melhor posição para atuar nesse campo. Observou-se, no entanto, que o foco explícito nas necessidades das mulheres estava sendo perdido. De acordo com uma integrante do Conselho da CGM: “se a CGM não tiver um posicionamento forte… as mulheres serão deixadas para trás por que elas não estão no cenário das decisões e, por isso, não serão parte do processo de negociação”31. Embora existam muitas organizações voltadas para a prevenção do HIV no campo que lida com as necessidades das mulheres, apenas algumas dão centralidade às mulheres em seus programas, como fazia a CGM. Mas ainda é cedo para afirmar se o encerramento da CGM representa uma perda nesse contexto. Além de colocar os microbicidas na agenda de pesquisa sobre prevenção ao HIV, a CGM capacitou centenas de voluntários e integrantes de ONGs para atuarem no campo das políticas. Hoje, alguns deles dirigem organizações como a Sociedade de Defesa das Vacinas e dos Microbicidas contra o HIV (antigo Grupo de Defesa das Vacinas e dos Microbicidas contra o HIV da Nigéria), a Sociedade de Microbicidas da Índia, a Coalizão Nacional pelo Preservativo Feminino, dos EUA e os Ativistas Internacionais pelos Microbicidas Retais (AIMR). Convocados por importantes ex-integrantes da CGM, todas essas organizações atuam hoje com ONGs de base popular. Outros ex-líderes da CGM são consultores em importantes redes de pesquisa e painéis de avaliação e também atuam em organizações ativistas.

Levando a saúde sexual e reprodutiva para as agendas de saúde e desenvolvimento Há um imperativo ético para se ampliar a escuta dos movimentos populares sobre questões globais e nacionais relativas às políticas públicas, de uma forma sustentável – e não meramente simbólica - para permitir que as comunidades definam as políticas que lhes afetam diretamente32. E, claro, também há um valor pragmático nessa tarefa. Para os que pretendem utilizar uma abordagem similar à da CGM em campanhas de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, há três lições que podem ser extraídas da experiência da CGM e que podem ser úteis: • Expresse claramente sua posição e convide as pessoas para participar. Em geral, agendas de coalizões ativistas são negociadas pelos fundadores, que representam um


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conjunto de organizações. A CGM inverteu esse processo ao articular uma posição firme e simples e só depois convidar outros - que compartilhavam e apoiavam essa posição - para participar dessa empreitada. A tarefa de manter a agenda original, especialmente quando parceiros influentes queriam expandi-la ou revisá-la, exigiu disciplina e diplomacia. Mas essa adesão preservou a clareza e a energia próprias da ideia inicial, garantindo aos apoiadores que os objetivos comuns não seriam alterados. • Trabalho de base e visibilidade global exigem equilíbrio. As ONGs que atuam de forma profissional conseguem uma forte visibilidade por meio de grande agências financiadoras. A CGM optou por uma “liderança de retaguarda”, compartilhando o crédito público com parceiros de base, mesmo quando isso implicou reduzir sua visibilidade organizacional. Essas estratégias produzem capacidades coletivas de forma eficaz e incentivam o envolvimento das pessoas, mas não oferecem grande visibilidade para a produtividade específica da organização – aspectos muito valorizados pelos financiadores. As ONGs que atuam na base devem equilibrar a necessidade de credibilidade diante dos financiadores – e que visibilizam e promovem suas conquistas - e a necessidade de cultivar e fortalecer o trabalho vital de seus parceiros de base. • Formule a mensagem de maneira universal O tema dos microbicidas chamou a atenção e ganhou apoio público porque toca na resistência comum de homens e mulheres ao uso de preservativos. A repercussão universal desse problema possibilitou que a CGM atuasse de maneira eficaz em todo o mundo. Um bottom popular da CGM dizia: “Com a camisinha, o sexo seguro é uma decisão. Nós queremos fazer com que essa decisão seja sua”31. A história desse caso demonstra, simultaneamente, a viabilidade e as dificuldades de se trabalhar com o ativistas populares. Klugman identifica alguns indicadores de progresso que são importantes para organizações ativistas: • o surgimento de um consenso amplo entre uma determinada população sobre a definição de um problema e suas possíveis soluções, • por meio da capacitação contínua e do desenvolvimento de prontidão para a atuação informada e eficaz junto aos gestores das políticas, • a atuação “que resulta na maior visibilidade da

questão nas políticas públicas, levando a resultados positivos” e a “mudanças no entendimento público e na visibilidade dessas questões, quando, com o passar do tempo, a definição do problema e suas possíveis soluções ganham aceitação social». Como mencionado, a CGM avançou de forma visível em cada um desse pontos, desempenhando o importante papel tirar os microbicidas do anonimato em 1998, impulsionando-os como objetos de pesquisa no campo das políticas de HIV/AIDS em praticamente todos os países e como tema de todas as conferências de prevenção do HIV. A elevação dos investimentos públicos, também já mencionados, é uma medida concreta da prioridade dada ao tema nos processos das políticas públicas – e os ativistas capacitados pela CGM contribuíram para isso. Não se pode dizer com certeza se a CGM finalizou sua missão ou se fechou suas portas por outras razões. De qualquer maneira, o trabalho da CGM foi muito bem-sucedido nos termos dos indicadores de Klugman. As ONGs que trabalham para garantir compromissos governamentais mais fortes e mais explícitos para com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos nas políticas internacionais de desenvolvimento agora têm a oportunidade de avaliar e utilizar o modelo da CGM em outras áreas de ativismo. Sua evidente funcionalidade pode ser usada para convencer financiadores a ampliarem o seu apoio a iniciativas dessa natureza. Quando mobilizadas junto a ONGs parceiras locais, de forma bem planejada, culturamente relevante e competente, as opiniões dos grupos populares podem alcançar um volume e uma influência substanciais. Essas parcerias são ágeis quando se reconhece que os objetivos da campanha são potentes e centrais para os valores, prioridades e missão dos grupos locais. Se a meta é influenciar as delegações nacionais para participar de processos globais, esse tipo de ativismo coordenado pode produzir um impacto concentrado importante. Uma frente unida como essa pode levar a novas ideias sobre o que se pode alcançar e como se pode alcançar, tanto nos processos de demanda quanto nos de colaboração efetiva que a mudança aconteça.

Nota Eu trabalhei na Campanha Global pelos Microbicidas de 1998 a 2010, assumindo o cargo de Diretora Assistente de 2006 a 2010. 123


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Résumé La concurrence pour faire progresser les questions à l’ordre du jour des politiques publiques est constante. Les spécialistes des sciences sociales conviennent que les « entrepreneurs politiques » professionnels (chercheurs, universitaires et bureaucrates) servent de véhicules dans ce processus. Le plaidoyer au niveau local a toujours fait partie du paysage politique car des nonprofessionnels assument aussi le rôle d’avocats ou de militants, pour inclure des problèmes précis et des solutions préférées dans les programmes politiques et publics, et pour inciter les décideurs à agir. L’apport du plaidoyer de base à d’importants changements politiques est souvent sous-financée car ses résultats sont difficiles à isoler et à quantifier, et sont souvent le plus manifestes rétrospectivement. Cet article examine la contribution de la Campagne mondiale pour les microbicides au mouvement en vue d’élargir l’éventail des options de prévention du VIH pour les femmes. Il décrit comment elle a mobilisé des centaines d’activistes politiques locaux dans le monde pour agir de manière coordonnée dans ce domaine. L’article examine les succès de la Campagne et met en évidence certaines de ses forces et de ses faiblesses. Enfin, il envisage l’utilité d’activités similaires de la part de défenseurs locaux cherchant à influencer les agendas du développement après la CIPD et 2015 alors qu’ils sont en cours de négociation. Les décisions concernant le type de travail de plaidoyer mené pendant ce processus, par qui et comment, façonneront inévitablement le contenu de ces nouveaux cadres de travail.

Resumen La competencia por promover los asuntos en las agendas de políticas públicas es constante. Los científicos políticos coinciden en que “empresarios políticos” profesionales (investigadores, eruditos y burócratas) sirven como conductos en este proceso. La promoción y defensa (advocacy) a nivel de las bases siempre ha sido parte del panorama político, ya que las personas no profesionales también asumen el papel de promotores de políticas o activistas, con el fin de incluir problemas específicos y soluciones preferidas en las agendas públicas y políticas y motivar a los formuladores de políticas para que tomen medidas al respecto. La contribución de las bases al abogar por cambios significativos a las políticas a menudo es subfinanciada porque resulta difícil aislar y cuantificar su impacto, el cual suele ser más evidente en retrospectiva. En este artículo se examinan los aportes de la Campaña Mundial a favor de los Microbicidas al movimiento para ampliar las opciones de las mujeres para la prevención del VIH y se describe cómo ésta movilizó a cientos de activistas de base mundialmente para que actuaran de manera coordinada al respecto. Se revisan los logros de la Campaña y se destacan algunas de sus fortalezas y debilidades. Por último, se considera el valor de similares esfuerzos por parte de promotores de base que buscan influir en las agendas de desarrollo post-CIPD y post-2015 durante las negociaciones. Las decisiones respecto al tipo de actividades de promoción y defensa que se llevarán a cabo durante este proceso, por quién y cómo, inevitablemente definirán el contenido de estos nuevos marcos conceptuales

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O envolvimento da Santa Sé nas questões relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos: conservadora no posicionamento, dinâmica nas respostas. Amy L. Coatesa, Peter S. Hillb, Simon Rushtonc, Julie Balend a Doutoranda, Escola de População e Saúde, Universidade de Queensland, Brisbane, Austrália. Contato: amy.coates1@uq.net.au b Professor associado, Escola de População e Saúde, Universidade de Queensland, Brisbane, Austrália. c Pesquisador colaborador, Departamento de Política, Universidade de Sheffield, Sheffield, UK. d Professor de Saúde Pública, Escola de Saúde e Pesquisa, Universidade de Sheffield, Sheffield, UK.

Resumo: Nas duas últimas décadas, à medida que a saúde e os direitos reprodutivos ganharam espaço na agenda global, a Santa Sé tem se envolvido intensamente nas negociações das Nações Unidas sobre esses temas. Conduziu-se uma análise metanarrativa sobre as declarações oficiais da Missão a fim de examinar posicionamentos, discursos e atritos no conjunto das agendas. A Santa Sé representa um posicionamento fundamentalmente conservador e mantém uma posição estável sobre diversas questões ligadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Entretanto, a Missão tem sido dinâmica na maneira de transmitir seus argumentos, respaldando-se gradativamente em reivindicações laicas e em evidências empíricas; interpretando estrategicamente as normas de direitos humanos e de maneira consistente com a sua própria posição; e enquadrando a sexualidade e a reprodução no contexto “da família”. Examinada no contexto amplo de um “renascimento religioso” nas relações internacionais, e em face do fato das alianças da Santa Sé com Estados e atores não estatais conservadoras, esses resultados contribuem de maneira significativa para entender o lento progresso alcançado, assim como os potenciais obstáculos a serem enfrentados no futuro na luta pela concretização da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em um contexto político em constante mudança. Palavras-chave: Santa Sé, Nações Unidas, saúde sexual, direitos sexuais, saúde reprodutiva, direitos reprodutivos A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos abrangem o direito à informação, serviços, educação, liberdade de expressão e libertação da discriminação e da violência. Com base nos acordos históricos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, e da IV Conferência Mundial das Mulheres (CMM), que aconteceu em Pequim em 1995, ativistas tem trabalhado para concretizar e expandir o comprometimento internacional com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Porém, a ausência de um objetivo explicito voltado para a saúde reprodutiva na versão original dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio provocou uma defesa sem precedentes dos direitos sexuais e reprodutivos, particularmente durante a celebração dos 20 anos da CIPD e no decorrer da finalização dos Objetivos de Desenvolvimento pós-2015. Entretanto, apesar dos vinte anos de ativismo e de uma sucessão de acordos e comprometimentos, persiste a preocupação com a inexistência de uma articulação ligada à saúde e aos direitos sexuais e

reprodutivos reconhecida globalmente*. Essa estagnação da concretização e articulação dos direitos sexuais e reprodutivos nas leis internacionais é produto da complexidade do campo e da divergência entre as ideologias opostas defendidas pelos principais atores envolvidos no processo das políticas públicas globais. Um desses atores é a Santa Sé, amplamente conhecida como a entidade soberana à frente da Igreja Católica e do Estado do Vaticano e que, de acordo com o Direito Canônico, “engloba não apenas o Pontífice Romano, mas também a Secretaria do Estado, o Conselho de Relações Públicas da Igreja, e outras instituições da Cúria Romana”1. Fazendo uso dos privilégios assegurados pelo seu

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)44815-8

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

* Em 1979, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (CEDAW), destacou a necessidade de igualdade entre homens e mulheres no acesso à informação e aconselhamento sobre planejamento familiar (Art. 10,h) e no acesso a serviços de saúde, inclusive ao planejamento familiar (Art. 12,1). Apesar da sua importância fundamental, os autores consideram que a CEDAW não representa uma articulação explicita da saúde e direitos sexuais e reprodutivos como parte dos direitos humanos.


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status de Observador Permanente Não-Membro, a Santa Sé tem emergido como um ator engajado, influente e estratégico dentro da historicamente laica Organização das Nações Unidas (ONU). Isso tem acontecido dentro do contexto mais amplo denominado por Haynes e outros de “ressurgimento religioso” pós Guerra Fria, caracterizado pela proliferação de atores “da fé” nas relações internacionais, criando assim uma vasta plataforma para visões sociais conservadoras dentro do contexto das políticas públicas globais2,3. Esse artigo examina os posicionamentos da Santa Sé, os discursos e tensões das várias agendas ligadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, evidenciados nos pronunciamentos oficiais da Missão feitos durante fóruns importantes (e documentados) da OONU - desde a CIPD, em 1994, até pronunciamentos recentes, de abril de 2014 (Tabela 1). Essa pesquisa baseia-se diretamente nas evidências extraídas dos

pronunciamentos dos Observadores Permanentes da Santa Sé na OONU. Uma das restrições desse tipo de pesquisa é a natureza desses pronunciamentos elaborados cuidadosamente, propositalmente ajustados à retórica diplomática da OONU e frequentemente baseados nos precedentes da OONU para justificar suas perspectivas. Não apresentam a naturalidade de discursos menos formais (e previsíveis) feitos em outros contextos, porém a possibilidade de que venham a moldar o futuro da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos é profunda e, por isso, justifica a análise minuciosa aqui empreendida.

A diplomacia da Santa Sé e os direitos humanos nas Nações Unidas A diplomacia formal da Santa Sé como Observadora Permanente Não-Membro das Nações Unidas teve inicio em 1964 e foi reafirmada por

TABELA 1. Agrupamento temático dos principais processos e órgãos das Nações Unidas envolvidos com a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos Principais ONU processos

Órgãos das Nações Unidas

1) • • • • • •

1) Comissão de Desenvolvimento Social • Assembleia Geral • Painel de Alto Nível sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio • Painel de Alto Nível sobre os Objetivos Pós-2015

Desenvolvimento social e erradicação da pobreza Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995) Programa Mundial de Ação para a Juventude (1995) Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000-2015), Revisão, implementação e reuniões internacionais (Cúpula Social Mundial, 2005) Declaração Política de Compromissos contra o HIV Objetivos Pós-2015 (em andamento)

2) Desenvolvimento Sustentável • Conferências de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio, 1992; Joanesburgo, Rio, 2012) • Objetivos Pós-2015 (em andamento)

2) Comissão de Desenvolvimento Sustentável • Assembleia Geral • Grupos Abertos de Trabalho sobre Desenvolvimento Sustentável

3) População e desenvolvimento • CIPD (Cairo, 1994) • Revisão e implementação da CIPD

3) Comissão de População e Desenvolvimento • Assembleia Geral

4) • • •

4) Comissão do Status das Mulheres • Assembleia Geral

Direitos das mulheres IV Conferência da Mulher (Beijing, 1995) Revisão e implementação da IV Conferência da Mulher Resoluções sobre as iniciativas para o fim da fístula obstétrica

5) Direitos humanos • Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); Revisão e implementação • Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) • Relatórios especiais: –– Violência contra as mulheres –– Direito ao mais alto padrão de saúde física e mental –– Direito à educação

5) Conselho de Direitos Humanos • Comitê da Convenção dos Direitos das Crianças • Relatores Especiais

6) Segurança • Resolução sobre Violência Sexual em Conflitos

6) Conselho de Segurança

127


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Tabela 2. Fontes identificadas e examinadas (n=61), categorizadas de acordo com o agrupamento temático dos principais processos e órgãos das Nações Unidas envolvidos com direitos sexuais e reprodutivos Processos temáticos

Período

Fontes identificadas

Excluídas

Incluídas

Desenvolvimento Social e Erradicação da Pobreza

1995-2013

17

3

14

Desenvolvimento Sustentável

2012-2014

6

2

4

População e Desenvolvimento

1994-2014

12

0

12

Status das Mulheres

1995-2013

15

0

15

Direitos Humanos

2006-2013

14

0

14

2013

2

0

2

Segurança

uma resolução da Assembleia Geral, em 2004, adotada sem votação prévia4. Fazendo uso de seus privilégios oficiais, a Santa Sé envolveu-se ativamente em negociações em conferência internacionais e nas sessões da Assembleia Geral, do Conselho de Direitos Humanos, do Conselho de Segurança e de várias comissões do Conselho Social e Econômico. A Santa Sé também desfruta de competência jurídica, no mesmo patamar dos Estados Membros, para negociar, assinar e ratificar tratados normativos internacionais promovidos pela OONU4. Vários atores do campo liberal - laicos e religiosos - assumiram uma posição critica aos posicionamentos da Santa Sé sobre questões sensíveis, como aquelas ligadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e expressam preocupação quanto à influência da Missão por meio das alianças com outros atores conservadores com o intuito de incidir sobre as políticas globais. As críticas mais vocais e persistentes contra a Santa Sé vem da ONG reconhecida pela OONU, Católicas pelo Direito de Decidir que, desde 1999, está à frente da campanha “Sé Mudança”, demandando a remoção do status de Observador Permanente da Santa Sé, alegando que a Missão não atende aos critérios legais como Estado e que nenhuma outra religião goza do mesmo grau de importância5.

Métodos Para analisar o posicionamento e o discurso da Santa Sé sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, conduzimos uma análise metanarrativa dos posicionamentos oficiais relativos aos processos da OONU identificados na Tabela 1. O conjunto completo dos pronunciamentos foi lo128

calizado nos documentos dos arquivos† da OONU e nos três sites oficiais da Missão diplomática da Santa Sé‡. Foram identificadas um grande número de fontes (n= 66) para os anos 1994-2014 (Tabela 2)§. Cinco fontes que não continham material significativo ligado à questões sexuais e reprodutivas foram excluídos da análise. A análise desses posicionamentos demandou uma imersão sucessiva nos discursos a fim de extrair, explicar, comparar e contrapor as várias bases ideológicas, posições e argumentos, à medida que apareciam e evoluíam para posicionamentos, tanto historicamente quanto entre as diferentes agendas. Ao reconhecer a CIPD e a CMM como processos fundamentais em relação à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, os posicionamentos feitos nas conferências iniciais e suas subsequentes reuniões de avaliação (n=27) foram usados para estabelecer uma base de referência para a caracterização da posição da Santa Sé em relação a esses temas. Isso demandou uma análise da função retórica estratégica dos posicionamentos em determinar: a) a suposta significância global da Missão para o desenvolvimento e os direitos humanos; b) a compreensão ideológica e o enquadramento dado pela Missão às questões envolvendo sexualidade e reprodução; c) a interpretação conceitual da terminologia comumente usada em referência à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos; d) as posições declaradas, favoráveis ou contrárias, os †

www.un.org www.vatican.va/roman_curia, www.holyseemission.org e www. holyseemissiongeneva.org. § A lista completa de pronunciamentos está disponível online em: https://www.researchgate.net/publication/265251001_The_ Holy_See_and_Sexual_and_Reproductive_Health_and_Rights_ APPENDIX_I?ev=prf_pub. ‡


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diversos elementos dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva; e e) os argumentos usados para negociar e influenciar debates e resultados a fim de alcançar as metas ideológicas da Missão. As principais interpretações provenientes da análise dessa base de referência foram testadas e apuradas por meio da análise e síntese dos demais posicionamentos referentes às agendas mais amplas do desenvolvimento e dos direitos humanos (n = 34).

Resultados A Missão da Santa Sé dissemina constantes posicionamentos conservadores em todos os fóruns das Nações Unidades e nas várias agendas relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Com o tempo, porém, a linguagem utilizada pela Santa Sé tem evoluído, deixando de lado os argumentos doutrinários e usando a retórica laica junto evidências tecnicamente sofisticadas e interpretações estratégicas da normativa internacional dos direitos humanos. Entretanto, a fundamentação doutrinária da posição da Santa Sé não foi abandonada; mais do que isso, a Santa Sé tem acolhido, de maneira apropriada e seletiva, a linguagem da OONU para reforçar seus argumentos e ganhar influência nos debates referentes à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. É também claro que o engajamento diplomático da Missão nos debates sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos cresceu de uma média de dois (2.3) posicionamentos por ano entre 2003 e 2009 para cerca de nove (8.75) posicionamentos anuais entre 2010 e 2013¶. Isso também está associado ao aumento da participação nas reuniões da OONU referentes à saúde sexual e reprodutiva e à nomeação de um novo Observador Permanente, o Arcebispo Chullikatt, em julho de 2010.

Contribuição espiritual e pragmática A Santa Sé também tem expressado a obrigação de “estar presente na vida das nações”, já que a sua Missão primordial é, acima de tudo, espiritual e voltada para o bem de toda a humanidade6. Assim, os posicionamentos frequentemente enfatizam a importância do direito à liberdade religiosa como o mais essencial dos direitos humanos. Em ¶ Os posicionamentos que fornecem evidências retóricas para esses resultados foram citados de acordo com os seus subtítulos no Anexo II, que pode ser acessado online pelo link: https:// www.researchgate.net/publication/265250910_The_Holy_See_ and_Sexual_and_Reproductive_Health_and_Rights_APPENDIX_ II?ev=prf_pub

várias declarações, a Santa Sé também enfatiza sua contribuição prática à erradicação da pobreza, destacando a compreensão singular da Missão sobre as necessidades de comunidades e respaldando-se na inigualável rede global de instituições da Igreja Católica, que inclui “mais de 5.000 hospitais, 18.000 clínicas e 15.000 casas para os idosos e deficientes”7 e a prestação de assistência e tratamento para 25% de toda a população mundial que vive com o HIV e AIDS8. A Missão também evidenciou a considerável contribuição financeira feita pela Conferência dos Bispos dos EUA ao tratamento do HIV/AIDS9. Ao promover seus pontos fortes, entretanto, a Santa Sé não diferencia o trabalho da Missão do trabalho realizado por outras instituições católicas e ONGS - um grupo que, na prática, é ideologicamente heterogêneo.

A família: contextualizando e regulando o sexo A Santa Sé tende a expressar suas posições morais em relação à sexualidade e à reprodução dentro do contexto “da família” – que teria função e estrutura rigorosamente definidas. Nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), nem qualquer outro instrumento jurídico internacional que lida com os direitos da família, oferecem uma definição de família, mas a Santa Sé apropriou-se do precedente concedido pela OONU para formular sua própria definição referindo-se aos direitos da família, tal como previstos na DUDH: “sabemos que um homem e uma mulher unidos em matrimônio, assim como seus filhos, formam uma família, essa que representa a unidade natural e fundamental da sociedade” (DUDH, Art. 16,3)10. Com base nesse precedente, a Santa Sé alertou, em um posicionamento em 2013, que “a família não pode ser redefinida ao capricho das rápidas evoluções sociológicas”11. As declarações anteriores da Santa Sé definem a família como “uma instituição cuidadora, responsável pela transmissão e cultivo da nova vida”12. Durante as negociações da CIPD, a Missão destacou sua posição moral, limitando os atos sexuais à função de procriação entre um homem e uma mulher casados e categorizando-os como parte da esfera das “responsabilidades” (citada 27 vezes) pessoais. “Responsabilidade parental” é tomada como uma responsabilidade do casal “...não para satisfação pessoal, mas como parte das suas responsabilidades para com Deus, com a nova vida que eles irão mutuamente trazer ao mundo, para com os filhos que já existem e sua família, assim como para com a sociedade, em uma hierarquia correta de valores 129


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morais. Responsabilidade traz consigo fardos (e) demanda disciplina e alto controle”12. Durante a Conferência de Beijing, em resposta aos debates e à articulação do emergente movimento pelos direitos sexuais, a Santa Sé defendeu a posição de que os direitos sexuais pertencem unicamente ao uso responsável da sexualidade dentro do casamento, alertando contra qualquer outro uso que possa ser interpretado como difusor do “sexo fora do casamento”, do “controle absoluto sobre a sexualidade e a fecundidade” ou da “aprovação social do aborto e da homossexualidade”. Nas duas últimas décadas, os pronunciamentos da Santa Sé sobre sexualidade consistentemente “reafirmaram as ressalvas” do Cairo e Pequim, mas tornaram-se menos prescritivos no que se refere às responsabilidades morais pessoais e estão mais focados em influenciar estrategicamente a política global como um todo, incluindo os avanços dos direitos sexuais e reprodutivos. Com essa finalidade, a Missão reivindica de forma sistemática o amplo reconhecimento da família na política e nas políticas culturais, fiscais e sociais. Recentemente, durante uma sessão do Grupo Aberto de Trabalho sobre os Objetivos de Desenvolvimento pós-2015, o apelo do Observador Permanente para que os Estados reconheçam a família como uma “prioridade fundamental” da agenda14 deixou de lado definições restritas, citando sete relatórios, resoluções e acordos prévios da OONU, nos quais se defende uma noção ampla e laica de família.

Educação sexual abrangente Essa transição na linguagem da Santa Sé em direção ao uso crescente da retórica da ONU para embasar seus argumentos, está evidente em um bom número de questões. Com uma visão fundamentalmente conservadora sobre sexualidade, família e responsabilidade parental, a Santa Sé envolve-se energeticamente em discussões sobre educação sexual argumentando que os pais, e não o Estado, tem o direito de educar crianças e adolescentes em questões ligadas à sexualidade. Desde 2010, quando o Relator Especial da ONU para Educação defendeu uma abordagem baseada em direitos para uma educação sexual abrangente15, a Santa Sé passou a usar referências amplas aos direitos parentais presentes em vários instrumentos de direitos humanos para influenciar as negociações e consolidar sua posição sobre essa questão. De maneira específica, a Missão citou a Convenção sobre os Direitos da Criança (Art. 130

18,1), que declara que cabe aos pais a responsabilidade primária de criação e desenvolvimento da criança (16), assim como o Pacto Internacional para os Direitos Civis e Políticos (Art. 18,4) e o Pacto Internacional para os Direitos Econômicos, Culturais e Sociais (Art. 13,3), nos quais os Estados Membros obrigam-se a respeitar a liberdade dos pais de assegurar que seus filhos recebam uma educação moral e religiosa em conformidade com suas próprias convicções17,18. Porém, ao basear seus argumentos nessa interpretação, a Santa Sé parece omitir estrategicamente partes da Convenção sobre os Direitos da Criança (sobre a qual a Missão apresenta ressalvas), incluindo o Artigo 23, que destaca o “direito da criança de buscar, receber e transmitir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de fronteiras, oralmente, por escrito ou por meio impresso”, e o Artigo 28, que enfatiza o papel dos Estados Membros em “reconhecer o direito da criança à educação, visando atingir esse direito de maneira progressiva e com base na igualdade de oportunidades”16.

Planejamento familiar e políticas de população Ao estabelecer um contexto moral absoluto e uma função para o sexo, a visão da Santa Sé restringe-se ao controle da fecundidade como uma questão pessoal e relevante apenas para o homem e a mulher tradicionalmente casados - ou seja, apenas como uma obrigação pura e mútua, que exige restrição e controle da libido e não como uma questão de política pública. O posicionamento da Santa Sé sobre o planejamento familiar, como destacado pelas ressalvas ao Programa de Ação do Cairo, faz referência à “posição já conhecida da Igreja Católica sobre métodos de planejamento familiar considerados moralmente inaceitáveis e sobre serviços de planejamento familiar que não respeitam a liberdade dos cônjuges”19. De maneira mais instrutiva, a Missão tem assumido consistentemente uma posição contrária à esterilização, anticoncepcionais e camisinhas como métodos de prevenção da gravidez e do HIV. De maneira similar ao discurso sobre o planejamento familiar no posicionamento para a CIPD, a Santa Sé tem assumido menos o papel de definir comportamentos moralmente aceitáveis e mais o papel de responsável por criar boas políticas, que preservem a “dignidade” e os “direitos” do casal20, “assegurem um tipo de liberdade pessoal responsável” e “criem as condições sociais que irão permitir que tomem decisões apropriadas e que levem em consideração suas responsabilidades”21,22.


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De forma gradual, a Santa Sé também tem dado preferência a argumentos técnico-científicos sobre as dinâmicas populacionais, tais como as taxas de fecundidade abaixo da taxa de reposição e o fardo fiscal que a manutenção da população mais idosa representa para Estados, a fim de justificar seu posicionamento sobre métodos contraceptivos e planejamento familiar23. Apesar dessas observações e receios quanto às tendências demográficas serem validos, a resistência por parte da Santa Sé às políticas públicas não faz distinção entre o controle da natalidade por meio de políticas jurídica ou socialmente coercitivas (como esterilização forçada, por exemplo) e o declínio de taxas de fecundidade provenientes de políticas que ampliam a escolha e o acesso a métodos de planejamento familiar.

Desenvolvimento e direitos reprodutivos A CIPD representa um marco para a mudança ideológica na concepção das pessoas como sujeitos de “direitos reprodutivos” e não apenas como objetos cuja fecundidade deve ser controlada pelo Estado. Mas Santa Sé assegura que suas únicas definições de “direitos reprodutivos” e de “saúde reprodutiva” foram delineadas a partir das ressalvas ao Programa de Ação da CIPD e, desde então, tem mantido essa posição de forma sistemática, como: “o(s) conceito(s) holístico(s) da saúde, que, a seu modo, engloba a pessoa e sua personalidade, mente e corpo como um todo e proporciona o alcance de uma maturidade pessoal sobre a sexualidade e o amor mútuo e da tomada de decisões que corresponda às normas morais”19. As tensões entre a Santa Sé e os movimentos pela saúde e pelos direitos sexuais e reprodutivos foram particularmente evidenciadas, em 2007, durante as negociações que garantiram o ODM 5b: “garantir o acesso universal à saúde reprodutiva até 2015”24. Durante as negociações da Assembleia Geral anterior, a Santa Sé alertou a comunidade internacional que “o debate e a criação de novas metas, como as referentes à saúde sexual e reprodutiva, trazem consigo o risco de introduzir práticas e políticas danosas à dignidade humana e ao desenvolvimento, enfraquecendo nossos objetivos originais e desviando os recursos necessários para atender as necessidades mais básicas e urgentes”25. Essa resistência ao desenvolvimento de novos objetivos ligados à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos estendeu-se também aos debates pós-2015.

Em 2009, depois da inclusão de um novo Objetivo, a Missão declarou que as iniciativas para reduzir a mortalidade materna estavam sendo “prejudicadas por medidas sanitárias que desconsideram o direito à vida da criança ainda no ventre da mãe e promovem o controle de natalidade disfarçado de política de desenvolvimento e serviços de saúde”7. Durante o Conselho de Direitos Humanos, a Santa Sé, apesar de defensora ativa da redução da morbimortalidade materna, não hesitou em se opor à abordagem dos direitos reprodutivos e, particularmente, às metas para aumentar as opções e o acesso a métodos de planejamento familiar e ao aborto seguro. A Missão citou evidencias empíricas da OMS sobre as causas da mortalidade materna22,26 para afirmar que a solução para reduzir a morbimortalidade materna não será alcançada por meio da prevenção da gravidez indesejadas nem da eliminação das suas consequências, mas, sim, através de “intervenções reconhecidas por lidar com situações de emergência médica (que) incluem treinamento e contratação de parteiras competentes, o fornecimento de antibióticos e agentes uterotônicos e a melhoria dos bancos de sangue”22. Os argumentos da Missão fazem parecer que essas intervenções são mutuamente excludentes e não parte de uma abordagem integrada. Além disso, a Missão acusa o Conselho de “tentativas de desviar os recursos financeiros, extremamente necessários, dessas intervenções efetivas e capazes de salvar vidas, para expandir programas de contracepção e aborto, que visam apenas limitar a procriação de novas vidas e destruir a vida de uma criança”22.

Aborto A Santa Sé também se opõe a políticas e à linguagem relacionada à saúde e aos direitos reprodutivos que legitimem o aborto, de forma implícita ou explícita. Assim, a Missão conecta o “direito à vida” previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos com a sua própria advertência doutrinária de que a vida humana se inicia no momento da concepção. A Missão também sustenta que “nenhum tipo de concessão pode ser feita ao direito da pessoa à vida propriamente dita, entendendo-se esta desde a concepção até a morte natural”27 e que esses valores éticos fundamentais são o “patrimônio comum da moralidade universal”28. A posição mais recente, feita durante a análise da CIPD, citou o Papa Francisco, em declaração sobre o aborto, feita durante sua recente Exortação Apostólica29: “Não se pode esperas que a Igreja mude a sua posição sobre essa questão”30. 131


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Em todas as agendas, diversos posicionamentos evidenciaram a vigilância exercida pela Missão e a reprovação às tentativas de abordar as questões relacionadas à saúde materna e ao estupro como um modo de expandir o espectro jurídico do aborto e o acesso a serviços, concretizando assim o direito ao aborto. Em 2013, durante o debate a respeito do Relatório do Secretário Geral da ONU sobre o Conselho de Segurança, que estabeleceu que as vítimas de estupro em áreas de conflito devem ter acesso a contraceptivos de emergência e a serviços de interrupção da gravidez31, a Santa Sé protestou afirmando que “(o aborto) impõe mais violência a uma mulher que já está fragilizada”32. Como decorrência dos protestos da Santa Sé e de outros atores conservadores, a referência direta ao aborto foi retirada da resolução final e deu lugar a um posicionamento que se refere apenas à “saúde sexual e reprodutiva” de vítimas de estupro em áreas em conflito (para. 19)33. Em seu posicionamento final, evidentemente insatisfeito e desconfiado, a Santa Sé censurou a ONU por “promover uma noção potencialmente destrutiva de assistência à saúde, inclusive da saúde sexual e reprodutiva, que é frequentemente usada como justificativa para acabar com a vida, ao invés de protegê-la”34. Críticas similares foram feitas em um posicionamento durante a sessão do Grupo Aberto de Trabalho sobre os Objetivos pós-2015, no qual a Santa Sé declarou que a saúde sexual e reprodutiva “mascara um derrotismo niilista, posando como ‘serviço’ de saúde para, deliberadamente, destruir de maneira sistemática a procriação da vida humana”35. Talvez a demonstração mais óbvia da posição radical da Santa Sé sobre o aborto se manifeste através da sua postura em relação aos serviços de emergência obstétrica, sobre os quais a Missão “tem fé que as referências feita aos serviços de emergência obstétrica não sejam interpretadas de maneira errônea para justificar a interrupção forçada da vida humana antes do nascimento”28. Mas, considerando-se que a continuidade da gravidez muitas vezes coloca a vida da mãe em risco, fica difícil conciliar essa posição com o ativismo da Santa Sé em defesa do “direito à vida”.

Gênero, igualdade e direitos das mulheres A base da posição conservadora da Santa Sé sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos está nas crenças fundamentais da Missão sobre gênero, igualdade e os direitos das mulheres. Oficialmente, a Santa Sé estabeleceu sua posição sobre “gê132

nero” durante a IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em 1995, em Pequim, ao afirmar que o termo é “proveniente da identidade sexual biológica, isto é, feminina ou masculina” e que necessariamente “exclui qualquer interpretação dúbia que defenda que a identidade sexual possa ser adaptada indefinidamente para servir a novos e diferentes propósitos”13. Em relação às novas organizações de defesa dos direitos LGTB, a Santa Sé afirma que “qualquer sinal de discriminação contra pessoas homossexuais deve ser evitado e apelamos aos Estados para que tomem medidas criminais contra essas injustiças”; por outro lado, ela tem criticado o uso dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos debates, alegando que são muito ambíguos para a interpretação jurídica e por “desafiarem as normas existentes acerca dos direitos humanos”36. A Santa Sé compreende a igualdade de gênero como “relação complementar” entre mulheres e homens e como igualdade na dignidade, em lugar de liberdades concretas, justificando essa distinção pelas diferenças biológicas e pelos papéis sociais tradicionais adscritos para homens e mulheres13,37. Desde a Conferência de Beijing e em vários posicionamentos feitos durante as sessões da Comissão sobre o Status das Mulheres, a Santa Sé tem se empenhado em distinguir a agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos do progresso autêntico e verdadeiro das mulheres. Tal progresso, de acordo com a Missão, só pode ser alcançado por meio do reconhecimento de profundas verdades antropológicas sobre o homem e a mulher e não através do “individualismo exacerbado”, defendido pelos movimentos de direitos sexuais e reprodutivos13. Em um posicionamento recente durante o Grupo Aberto de Trabalho sobre os Objetivos pós-2015, a Santa Sé defendeu uma visão das mulheres definida exclusivamente pelo seu papel de esposa e/ ou mãe. Para a Missão, os novos objetivos devem “reconhecer e possibilitar que mulheres superem as barreiras para alcançar a igualdade sem forçá-las a abandonar aquilo que lhes é essencial. (As mulheres) existem dentro do contexto dos relacionamentos, que lhes confere significado, abundância, identidade e amor humano. Seus relacionamentos, especialmente o seu papel dentro da família - seja como mães, esposas e cuidadoras - exercem efeitos profundos nas suas escolhas e na sua própria percepção sobre a prioridade dos direitos que exercem em sua vida”38.


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Discussão A posição da Santa Sé sobre várias questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva continua fundamentalmente inalterada, mas é cada vez mais claro que a Missão adotou a postura de Estado Membro e as normas e processos laicos das ONU com a finalidade de influenciar as negociações e políticas globais. É particularmente interessante observar que a Santa Sé está disposta a sacrificar sua linguagem e adotar uma retórica laica, isto é, uma linguagem “religiosamente neutra”2, a fim de sustentar sua posição. Ao basear sua definição da estrutura e da função da «família” no precedente criado pela ONU, a Santa Sé criou uma construção social que exclui logicamente a possibilidade de relações sexuais que não tenham como intuito consciente a procriação e suas consequências: sexo fora do casamento, sexo homossexual, gravidez não desejada, estupro e a transmissão do HIV. Consequentemente, os membros de uma família não precisam de métodos contraceptivos, aborto, prevenção contra o HIV e nem de uma educação sexual ampla. Apesar dos aparentes precedentes, porém, e da delimitação lógica desse conceito, as premissas que suportam essa representação da família estão em tensão com as diversas realidades experimentadas globalmente pelas pessoas. Quando indefinida, “a família” é uma noção central e universalmente aceita, mas na concepção da Santa Sé, ela se torna um conceito que refuta simultaneamente a própria existência e as condições de realização dos direitos sexuais e reprodutivos. Sendo assim, a Missão coloca a dignidade e os direitos “da família” no centro da maioria dos argumentos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, insistindo na ampla incorporação da “família” em todas as agendas. Argumentos laicos também tem sido empregados em debates sobre os direitos reprodutivos referentes ao planejamento familiar e contracepção nas políticas de população e desenvolvimento, nos quais a Santa Sé se utiliza de argumentos técnicos sobre as dinâmicas populacionais e as causas obstétricas da mortalidade materna para insinuar que as políticas que permitem que as mulheres controlem sua própria fecundidade são não apenas inúteis, mas também prejudiciais. Mas falta a esses argumentos a complexidade necessária para compreender as nuances desses problemas e, na prática, ocultam a posição da Missão absolutamente contrária ao uso de métodos contraceptivos e às políticas que asseguram o planejamento

familiar independentemente de suas motivações controle consciente do crescimento populacional, prevenção da mortalidade materna ou concretização “de necessidades não satisfeitas de contracepção”, de acordo com o ODG 524. A Santa Sé também tem assumido uma posição cada vez mais estratégica ao interpretar e citar instrumentos internacionais de direitos humanos, desencadeando assim uma “batalha de direitos”. Habilidosamente, saúde e direitos sexuais e reprodutivos foram colocados contra os direitos da família, o direito ao aborto contra o direito à vida e o direito à educação sexual ampla contra os direitos parentais. Uma das tensões mais graves está na posição da Santa Sé de negar as mulheres como sujeitos que podem e devem ter direitos específicos e a tentativa de atenuar essa tensão com o uso de termos como “complementaridade” e “igualdade de dignidade” em lugar de “direitos iguais”. As mulheres são tratadas de acordo com sua função e contribuição para a sociedade no papel de esposa e mãe, limitando seus direitos individuais à “atribuição correta de prioridades” de suas obrigações familiares. Mas essa visão utópica de família, na qual toda mulher é tratada igualmente com dignidade, nunca existiu na história da humanidade. Logo, é extremamente discriminatório que a Santa Sé exija que as mulheres carreguem em seus corpos o fardo desigual proveniente dos problemas sociais, como, por exemplo, as consequências de um casamento prematuro e da violência de gênero. A Santa Sé também discrimina as mulheres ao condenar de maneira absoluta a interrupção da gravidez até como medida obstétrica de emergência. Apesar de alegar o contrário, isso cria uma hierarquia no argumento chave da Santa Sé sobre o “direito à vida”, ao colocar a vida da criança acima da vida da mãe e não em patamar de igualdade39. Ao adaptar-se à linguagem “aceita” e às convenções existentes para demarcar seu território contra seus opositores na ONU, a Santa Sé tenta controlar as agendas de desenvolvimento ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos. Ela ratificou apenas três dos sete principais instrumentos de direitos humanos40: discriminação racial (1969), direitos da criança (com ressalvas, em 1990) e contra a tortura (2012). Entretanto, a Santa Sé faz uso frequente de outras normas e convenções que não assinou nem concordou como, por exemplo, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Culturais e Econômicos, para legitimar sua posição e evitar inovações. Utiliza-se da própria autoridade processual 133


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da ONU - essencialmente repassando a responsabilidade de volta para seus críticos, retratando-os como resistentes em aceitar decisões já acordadas e, implicitamente, ameaçando-os com a perda de posições caso tentem reabrir os debates. Apesar do status de Observador Permanente, o papel da Santa Sé e sua representação na ONU continuam ambíguos. A Missão comporta-se como um Estado no seu envolvimento com os processos da ONU, mas sua contribuição é essencialmente espiritual, na qualidade de governo da Igreja Católica Universal. Essa ambiguidade vem sendo contestada por dois órgãos de direitos humanos dentro da ONU. No inicio deste ano, o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê contra Tortura criticaram a Santa Sé por não cumprir com suas obrigações como Estado signatário das Convenções e por não prevenir e abordar de maneira adequada o abuso sexual de crianças por alguns membros da Igreja. O Comitê sobre os Direitos da Criança advertiu a Santa Sé que “ao ratificar a Convenção, ela comprometeu-se a implementar a Convenção não apenas no território da Cidade Estado do Vaticano, mas também a alcançar, através do poder supremo da Igreja Católica, todos os indivíduos e membros que estão sob a sua autoridade”41. O Comitê apontou ainda que partes do quadro normativo da Santa Sé, o Direito Canônico, estão em conflito com a Convenção sobre os Direitos da Criança e que, como signatária

dessa Convenção, a Santa Sé deve revisar suas leis eclesiásticas de acordo com a mesma. Em resposta a essa critica, a Santa Sé enfatizou junto aos Comitês a distinção entre sua personalidade simbólica no âmbito internacional e a soberania exercida sobre a Cidade do Vaticano, argumentando que sua jurisdição legal para impor as convenções de direitos humanos não se estende para além do território do Vaticano42. O impacto da Santa Sé, contudo, se estende muito além da Cidade do Vaticano e da sua representação diplomática como Observador Permanente da ONU, através do Catolicismo global e de suas alianças com outros Estados conservadores e outro atores não estatais. Suas posições permanecem em grande parte inalteradas, mas sua capacidade de reinterpretá-las por meio da retórica laica e de explorar a linguagem e a diplomacia da ONU, representa uma transformação dinâmica e significativa. Entender essa mudança é um passo importante para identificar obstáculos que nos esperam no futuro da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos.

Agradecimentos Ao Prof. Jeffrez Haynes por seus insights sobre religião nas relações internacionais e ao Senhor Rajat Khosla pelas informações sobre a evolução da saúde e direitos sexuais e reprodutivos.

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Résumé Le Saint-Siège s’est engagé largement dans des négociations aux Nations Unies sur les questions concernant les droits à la santé sexuelle et génésique à mesure qu’elles ont émergé et évolué dans un ordre du jour mondial dynamique ces vingt dernières années. Une étude des déclarations officielles de la mission a examiné sous forme de métanarration les positions, les discours et les tensions à travers un vaste éventail de préoccupations. Le Saint-Siège représente une position stable et fondamentalement conservatrice sur une palette de thèmes relatifs aux droits à la santé sexuelle et génésique. Néanmoins, la mission a fait preuve de dynamisme dans les moyens choisis pour avancer ses arguments, se fondant de plus en plus sur des revendications techniques sécularisées et des données empiriques ; en interprétant stratégiquement les normes des droits de l’homme conformément à sa propre position ; et en encadrant la sexualité et la procréation dans le contexte de « la famille ». Vues dans le contexte plus large d’une « résurgence religieuse » dans les relations internationales et à la lumière des alliances que le Saint-Siège a fréquemment cherché à nouer avec des acteurs étatiques et non étatiques conservateurs, ces conclusions sont fort utiles pour comprendre la lenteur des progrès ainsi que les obstacles potentiels qui attendent la lutte pour réaliser les droits à la santé sexuelle et génésique dans un environnement politique mondial en évolution.

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Resumen La Santa Sede ha participado extensamente en negociaciones con las Naciones Unidas sobre asuntos relacionados con salud y derechos sexuales y reproductivos según han ido surgiendo y evolucionando en una agenda mundial dinámica en las últimas dos décadas. Se realizó una revisión meta-narrativa de las declaraciones oficiales de la misión para examinar las posturas, discursos y tensiones en una amplia gama de agendas. La Santa Sede representa una postura fundamentalmente conservadora y estable frente a una variedad de asuntos inquietantes de salud y derechos sexuales y reproductivos. Sin embargo, la misión ha sido dinámica en las maneras en que ha presentado sus argumentos, dependiendo cada vez más de afirmaciones técnicas secularizadas y evidencia empírica; interpretando estratégicamente las normas de los derechos humanos en maneras que concuerdan con su postura; y definiendo la sexualiad y reproducción en el contexto de “la familia”. En un contexto más amplio de “resurgimiento religioso” en las relaciones internacionales, y en vista del hecho de que la Santa Sede frecuentemente ha procurado formar alianzas con actores conservadores Estatales y no Estatales, estos hallazgos nos permiten entender el lento progreso así como los posibles obstáculos en la batalla para hacer realidad la salud y los derechos sexuales y reproductivos en un ambiente político mundial que está cambiando.


Brasileiros têm opiniões divergentes sobre a legalização do aborto, mas a maioria discorda que as mulheres sejam presas por abortarem Aníbal Faúndesa, Graciana Alves Duarteb, Maria Helena de Sousac, Rodrigo Paupério Soares Camargod, Rodolfo Carvalho Pacagnellad a Pesquisador sênior, Cemicamp (Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas) e Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina, UNICAMP, São Paulo, Brasil. Contato: afaundes@uol.com.br b Pesquisadora, Cemicamp (Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas), São Paulo, Brasil c Estatística, Cemicamp, São Paulo, Brasil d Professor, Universidade de Medicina de Jundiaí, São Paulo, Brasil e Professor, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina, UNICAMP, São Paulo, Brasil

Resumo: Práticas inseguras ainda são um grande problema de saúde pública em países com leis restritivas sobre o aborto. No Brasil, parlamentares - que possuem o poder de mudar as leis - são influenciados pela “opinião pública”, frequentemente obtida através de questionários e pesquisas de opinião. Esse artigo apresenta os resultados de dois estudos. O primeiro foi conduzido de fevereiro a dezembro de 2010, junto a 1,660 funcionários públicos, e o segundo, de fevereiro a julho de 2011, com 874 estudantes de medicina de três universidades diferentes. Ambos os estudos foram realizados no estado de São Paulo, Brasil. Os dois grupos de participantes responderam o seguinte conjunto de perguntas sobre sua opinião sobre o aborto: 1) em quais circunstâncias o aborto deve ser permitido por lei, e 2) se as mulheres em geral e as mulheres que, de acordo com seu conhecimento, já haviam realizado um aborto, deveriam ser aprisionadas, de acordo com a lei brasileira vigente. As diferenças nas respostas obtidas foram enormes: a maioria dos participantes posicionou-se contra a prisão de mulheres que já abortaram. Quase 60% dos servidores públicos e 25% dos estudantes de medicina declararam conhecer pelo menos uma mulher que abortou ilegalmente; 85% dos estudantes de medicina e 83% dos servidores públicos declaram acreditar que essa pessoa não deveria ser presa. É imprescindível que os parlamentares brasileiros que estudam atualmente a reforma do Código Penal tenham acesso urgente a esses resultados. Palavras-chave: leis e políticas sobre o aborto, prisão, criminalização, pesquisas de opinião pública, opinião pública, Brasil De acordo com estimativas globais recentes, enquanto o número total de abortos induzidos caiu entre 2003 e 2008, o número de abortos inseguros aumentou de forma proporcional1. Práticas inseguras de aborto continuarão sendo um fardo para a saúde e o bem-estar das mulheres nos países onde as leis restritivas criminalizam o aborto2. Felizmente, a mortalidade materna causada pelo aborto inseguro demonstra sinais de queda, provavelmente em decorrência do uso clandestino de métodos menos arriscados para interromper a gravidez3. Em muitas partes do mundo, as leis atuais sobre o aborto foram concebidas durante o período colonial e são herança das leis europeias do século 19 – esse é o caso da maior parte da África. Na América Latina, elas foram usadas como modelo para os Códigos Penais na primeira metade do século 20 (como no Brasil, por exemplo)4. O tratamento destinado ao aborto nesses Códigos Penais

continua praticamente intacto (com pequenas exceções), principalmente sob a pressão de grupos religiosos que tradicionalmente opõem-se ao aborto, especialmente a Igreja Católica e outras religiões cristãs. Um dos pressupostos dessas leis é de que a criminalização do aborto previne a sua ocorrência, o que não aconteceria em um cenário com leis liberais e com fácil acesso a praticas seguras de aborto5. Entretanto, a experiência demonstra que essa não é uma visão realista; de fato, nos países onde o aborto é legalmente restrito, as mulheres abortam com mais frequência do que aquelas vivendo sob leis mais liberais6. Sendo assim, ao que tudo indica as taxas de aborto estão relacionadas ao acesso e uso de métodos contraceptivos efetivos e não à restrição legislativa. Entretanto, a não disseminação dessa informação critica e a forte e contínua oposição de lideres religiosos contribuem significativamente para a manutenção de

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42726-X

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leis restritivas sobre o aborto em muitos países em desenvolvimento. No Brasil, o Código Penal nasceu em 1940 e estabelece o aborto como crime, exceto em três situações: se a vida da mulher estiver em risco, se a gravidez foi resultado de um estupro e, mais recentemente (desde um julgamento de 2012), nos caso de anencefalia fetal7. Abortar em qualquer outra situação não prevista pela lei leva à pena de reclusão de 1 a 10 anos para a mulher e para a pessoa que realizou o aborto4-8. A pena dobra caso o aborto resulte na morte da mulher9-10 Ao longo dos anos, muitos projetos de leis acumularam-se no Congresso Brasileiro tanto para aumentar as restrições quanto para legalizar o aborto. Atualmente, o Código Penal está sendo revisado pelo Congresso, resultando em um debate acalorado entre os representantes das igrejas católicas e protestantes e aqueles que defendem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres11. Congressistas, que detém o poder de mudar a lei, são fortemente influenciados pela “opinião pública”, como se viu durante as eleições presidenciais de 2010. Os jornais mais importantes do país cobriram amplamente a questão do aborto, com direito à publicação de quase quatro artigos por dia sobre o tema12. O debate, no entanto, limitou-se ao contexto moral, religioso e partidário. Colunas descreveram a cautela dos candidatos para evitar serem vistos como favoráveis à legislação mais liberal, por receio de perder votos durante a eleição. Mesmo fora dos períodos eletivos, a questão do aborto é abordada pela mídia como uma questão moral/religiosa ou como parte de notícias policiais, particularmente quando se trata da prisão de profissionais da saúde acusados de praticar abortos ou de mulheres que supostamente fizeram um aborto ilegal. Aparentemente, o medo disseminado entre políticos de serem vistos como favoráveis a leis mais liberais contradiz os dados obtidos em pesquisas com médicos, juízes e promotores, nas quais a maioria se posiciona favoravelmente à ampliação das circunstâncias que permitem o aborto no Brasil13-14. Por outro lado, os resultados das pesquisas de opinião pública sobre o aborto no Brasil, como aquelas publicadas por diferentes institutos de pesquisa, são de difícil comparação, devido à forma como as perguntas são formuladas. A maioria delas não faz referência alguma à opinião sobre a prisão das mulheres. O Senado Brasileiro, por exemplo, realizou uma pesquisa sobre a lei do 138

aborto, onde a pergunta principal era “Você acredita que a lei deveria permitir a interrupção da gravidez quando a mulher não deseja ter o bebê?”. A grande maioria dos perguntados (82%) respondeu “Não”. Porém, quando perguntados sobre circunstâncias concretas, nas quais a saúde da mulher estava comprometida, a maioria posicionou-se a favor da permissão do aborto11. No momento atual, com a revisão do Código Penal, é crucial que os parlamentares tenham acesso ao maior volume possível de informações confiáveis. Considerando que as respostas coletadas em pesquisas são em grande parte influenciadas pela formulação das perguntas, o objetivo desse estudo é comparar respostas a perguntas gerais sobre as circunstâncias sob as quais os participantes acreditam que o aborto deve ser permitido, com as respostas dos mesmos participantes sobre a prisão de uma mulher que fez um aborto ilegal, como previsto pela lei.

Participantes e Métodos Conduzimos duas pesquisas transversais e descritivas, uma com funcionários públicos de uma instituição em São Paulo e a outra com estudantes de medicina de três universidades diferentes, também no estado de São Paulo. Dois questionários diferentes foram aplicados aos funcionários públicos e aos estudantes de medicina (Box 1), compostos por questões com categorias pré definidas de autopreenchimento. Os questionários continham informações sobre idade, sexo, estado civil, religião e a importância da religião em suas vidas, entre outras questões. A respeito da lei brasileira sobre o aborto, os participantes tiveram que responder perguntas relacionadas à sua posição favorável ao aborto em uma lista de circunstancias especificas. Foram perguntados, então, se concordavam ou não com a punição de mulheres que fizeram um aborto. A pesquisa com os funcionários públicos foi conduzida entre fevereiro e dezembro de 2010. O questionário e uma carta anexa, bem como um envelope com o selo pago, foram enviados para 15,800 servidores, juntamente com o contracheque do mês de janeiro. A taxa de resposta foi de 11%, 72 envelopes foram enviados em branco e um participante enviou dois questionários no mesmo envelope; apenas um foi considerado. Portanto, o número de questionários incluídos no estudo foi 1,660. De fevereiro a julho de 2011, todos os estudantes do primeiro ao sexto ano das três universidades


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de medicina foram (tabela) convidados a participar em um estudo. O convite foi8 feito por pesquisadores de campo experientes, que foram responsáveis por recrutar os participantes, explicar os objetivos do estudo e coletar os questionários pre-

enchidos em uma urna lacrada. Se todos os questionários tivessem sido preenchidos, o total de estudantes que teriam participado seria de 1,260. Na prática, 874 completaram o questionário (taxa de resposta: 69%).

Box 1: Questões respondidas pelos participantes: estudantes de medicina e servidores públicos Questões abstratas sobre permissivos legais ao aborto Estudantes de medicina Você acha que o aborto deve ser permitido se: (para cada situação, por favor, marque (1) concordo fortemente (2) concordo (3) discordo (4) discordo fortemente (5) não tenho opinião) Circunstâncias: 1. Má formação fetal incompatível com a vida fora do útero 2. Mulher HIV-positiva 3. Falha de contracepção 4. Mulher solteira e o parceiro rejeita a gravidez 5. Gravidez resultante de estupro 6. Mulher sem condições financeiras para criar o bebê 7. A gravidez pode afetar seriamente a saúde física da mulher. Ou: risco à saúde física da mulher

Servidores públicos Você acha que o aborto deve ser permitido se: (para cada situação, por favor, marque (1) sim, se você concorda (2) não, se você discorda)

8. A gravidez pode afetar seriamente a saúde mental da mulher. Ou: risco à saúde mental da mulher 9. Risco de morte para a mulher 10. Anencefalia fetal 11. Em qualquer circunstância 12. Nunca 13. Outra

Questões sobre a pena de prisão para mulheres (conhecidas e desconhecidas) que realizaram aborto Estudantes de medicina

Servidores públicos

No geral, você acha que uma mulher que fez um aborto ilegal (se a gravidez não resultou de estupro nem coloca em risco a vida da mulher) deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Depende dos motivos que ele teve para abortar 4. Outro 5. Não tenho opinião

No geral, você acha que qualquer mulher que fez um aborto deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Depende dos motivos que ele teve para abortar 4. Outro 5. Não tenho opinião

Você conhece alguma mulher que fez um aborto ilegal? 1. Sim 2. Não

Você conhece alguma mulher que fez um aborto ilegal? 1. Sim 2. Não

Você acha que essa mulher deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Outro 4. Não tenho opinião

Você acha que essa mulher deve ser presa? 1. Sim 2. Não 3. Outro 4. Não tenho opinião

As respostas aos dois conjuntos de questionários foram revisadas, numeradas e digitadas em dupla entrada. As variáveis dependentes analisadas nesse estudo foram: a opinião dos participantes sobre em quais circunstâncias o aborto deveria ser permitido e a opinião dos participantes sobre a punição de uma mulher que fez um aborto e de uma mulher conhecida por eles que fez um aborto. Três variáveis dependentes foram coletadas: (1) se aborto deveria ser permitido em todas as cir-

cunstâncias; (2) se uma mulher que realizou um aborto deveria ou não ser presa, e (3) se a mulher conhecida pelos participantes deveria ou não ser presa. As variáveis preditoras investigadas em todos os modelos foram as seguintes: idade (em anos), sexo (feminino|masculino), estado civil (casado|união estável) e importância da religião na vida do participante (muito importante|menos importante|sem importância|não religioso). Os servidores públicos também foram perguntados 139


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sobre o nível de escolaridade (nível superior, ensino médio ou menos). Todas as variáveis preditoras foram incialmente incluídas em todos os modelos e critérios de exclusão foram usados para selecionar apenas as mais significantes. Variáveis não significantes foram então excluídas e um novo modelo foi calculado sem as mesmas. Realizou-se análise de regressão múltipla para estabelecer a relação entre as variáveis dependentes e preditoras, controlando os outros preditores simultaneamente. As taxas de prevalência são apresentadas para os preditores estatisticamente significantes. Os estudos foram conduzidos de acordo com as normas brasileiras para pesquisas com seres humanos. Os protocolos foram avaliados e aprovados pela Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina na Universidade de Campinas, SP, Brasil. A pesquisa realizada com os alunos de medicina também foi avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da OMS.

Resultados Foram constatadas diversas diferenças entre os dois grupos. A idade média dos estudantes de medicina foi bem mais baixa, com 82,1% abaixo de 24 anos, enquanto 80,4% dos servidores públicos tinham mais de 35 anos. A maioria das mulheres que participaram da pesquisa são servidoras públicas (73,1%); entre os estudantes de medicina foram 59,9%. As diferenças na escolaridade foram menores do que o esperado; todos os estudantes de medicina tinha alguma formação universitária, assim como aproximadamente 79% dos servidores públicos. Menos de 4% dos estudantes de medicina declararam ser casados, em comparação com 62% dos servidores públicos; 11% dos servidores públicos declararam não ter uma religião, em comparação com aproximadamente 30% dos estudantes de medicina. Da mesma forma, um pouco mais da metade dos servidores públicos declarou que a religião é muito importante em suas vidas, enquanto 25% dos estudantes responderam da mesma maneira (Tabela 1). A proporção de estudantes de medicina que afirmou que o aborto deveria ser legalizado foi maior do que a proporção dos servidores públicos que responderam da mesma maneira. A diferença entre os dois grupos foi de aproximadamente 10% nas respostas sobre as atuais circunstancias legais: aproximadamente 85% dos estudantes de medicina e quase 75% dos servidores públicos considerou que essas circunstâncias devem permanecer legais. Essa 140

Tabela 1. Características sociodemográficas dos participantes Estudantes de medicinaa n=874 (%)

Servidores públicosb n=1,660 (%)

Idade <24 25–34 >35

711 (82.1) 148 (17.1) 7 (0.8)

51 (3.1) 270 (16.5) 1,315 (80.4)

Sexo masculino feminino

516 (59.0) 358 (41.0)

1204 (73.1) 444 (26.9)

Escolaridade nenhuma/fundamental média superior

874 (100)

106 (6.4) 389 (23.7) 1,149 (69.9)

Situação conjugal Casado/unido solteiro

32 (3.7) 833 (96.3)

1,030 (62.4) 620 (37.6)

Religião alguma nenhuma

615 (71.8) 242 (28.2)

1418 (89.0) 175 (11.0)

Importância da religião muito importante importante não é importante não tem religião

216 (25.3) 386 (45.1) 11 (1.3) 242 (28.3)

767 (50.2) 313 (20.5) 274 (17.9) 175 (11.4)

a. Informações ausentes (missing) para idade (8), situação conjugal (9), religião (17), importância da religião (13). Seis participantes escreveram ‘outra’ na questão sobre a importância da religião b. Informações ausentes (missing) para idade (24), sex (12), escolaridade (16), situação conjugal (10), religião (67), importância da religião (102). 29 participantes escreveram ‘outra’ na questão sobre a importância da religião.

diferença foi maior do que 20% para as circunstancias atualmente não incluídas pela lei, como a existência de risco para a saúde física e mental da mãe. Aproximadamente 80% dos estudantes de medicina e 57% dos servidores públicos concordaram que o aborto deveria ser permitido se a gravidez representasse um grave risco para a saúde física da mulher. Caso a saúde mental da mulher estivesse em risco, mais da metade dos estudantes de medicina declararam concordar com o aborto, enquanto apenas um quarto dos servidores púbicos responderam da mesma maneira. Nos dois grupos, menos de 50% dos participantes concordaram que o aborto deveria ser legalizado em outras circunstâncias sociais e econômicas. Uma pequena porcentagem dos participantes declarou que o aborto deveria ser


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Tabela 2. Circunstâncias nas quais o aborto deve ser permitido (%) Circunstâncias

Má formação fetal severa

Tabela 3. Opinião sobre a prisão de mulheres que fazem aborto (%)

Estudantes de medicinaa n=874 (%)

Servidores públicosb n=1,660 (%)

Nº de respostas %

Nº de respostas %

863

1,487

90.6

75.2

Anencefalia

862

88.9

1,542

80.1

Estupro

863

85.5

1,496

78.3

Risco de morte para a mulher

864

85.6

1,441

75.9

Risco à saúde física da mulher

860

78.4

1,325

56.9

Risco à saúde mental da mulher

864

51.0

1,123

27.5

Problemas financeiros

865

27.9

1,157

14.0

Falha de contracepção

866

24.5

1,161

13.1

Mulher solteira sem apoio do parceiro

860

18.6

1,168

12.4

Mulher HIV-positiva

864

19.7

1,204

18.6

Qualquer circunstância

854

15.7

1,621

5.4

Nunca

852

11.4

1,618

11.7

legalizado em todas as circunstâncias, mas foi três vezes maior entre os estudantes de medicina (16%) do que entre os servidores públicos (5%). A proporção dos que declararam que o aborto deveria ser proibido em qualquer circunstância foi de 11% em ambos os grupos (Tabela 2). A diferença entre os dois grupos foi bem menor quanto à questão da prisão por aborto (tal como estipulado pela lei). Menos de 10% dos participantes de ambos os grupos declararam que “sim”, enquanto 56% dos estudantes de medicina e 59% dos servidores públicos responderam “não”. Outros 26,5% dos estudantes de medicina e 29,7% dos servidores públicos responderam que dependeria das circunstâncias, enquanto 7% e menos de 5%, respectivamente, responderam que não tinham uma opinião definida. Aproximadamente 60% dos servidores públicos e 25% dos estudantes de medicina declararam conhecer pelo menos uma mulher que realizou um aborto. A porcentagem daqueles que julgaram que esta pessoa deveria ser presa foi de 10%, mas o número daqueles que declararam que ela não deveria ser presa saltou para 85% entre os estudantes de medicina e 83%

Estudantes de medicinaa n=874

Servidores públicosb n=1,660

A mulher que faz um aborto deve ser presa Sim Não Depende do motivo Sem opinião

9.9 56.4 26.5 7.2

Conhece mulher que já fez aborto Sim Não

25.3 74.7

64.1 35.9

(n=212)

(n=968) 10.5 82.9 6.6

Essa mulher que você conhece deve ser presa Sim Não

8.0 84.9 7.1

6.8 58.8 29.7 4.6

a. Informação ausente: punição à mulher que aborta (6), mulher conhecida que aborta (5), outras respostas para a punição (11) b. Informação ausente: punição à mulher que aborta (27), mulher conhecida que aborta (9), outras respostas para a punição (25), se recusa a julgar (3)

entre os servidores públicos (Tabela 3). Entre os estudantes, o fato de não ter religião ou não considerar religião importante está associado à posição favorável ao aborto em qualquer circunstância e contra a prisão de mulheres que já passaram por um aborto (p<.001). Viver em uma união estável também se mostrou associado a ser favorável ao aborto em qualquer circunstância (p=.013), assim como ser mais velhos associa-se à opinião de que uma mulher que já fez um aborto não deveria ir para a prisão (p=.011). Nos casos em que os participantes declaram conhecer pessoalmente alguém que já havia realizado um aborto ilegalmente, não houve associação entre as variáveis preditoras e a opinião de que essa mulher deveria ir para prisão (dados não descritos na tabela). A importância da religião e da escolaridade associam-se à crença de que o aborto deve ser permitido em qualquer circunstância assim como com a opinião de que nenhuma mulher, conhecida ou não, deveria ir para prisão por ter feito um aborto (p<.001). Servidores públicos que declararam não considerar a religião importante ou que declararam não possuir uma religião definida e com algum 141


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nível de escolaridade superior mostraram-se mais favoráveis ao aborto ser permitido em qualquer circunstância e declararam acreditar que a mulher não deveria ser presa (p<.001) e também que a mulher que declararam conhecer não deveria ser presa (p=.032). Participantes mais velhos foram associados à oposição à prisão de qualquer mulher (p=.032) ou de mulheres que conheciam pessoalmente e que realizaram um aborto (p=.049) e ser do sexo feminino também se associa com opor-se à prisão de mulheres que já fizeram um aborto (p=.045) (dados não presentes na tabela).

Debate Os dois grupos considerados nesse estudo mostraram-se diferentes em muitos aspectos. Os servidores públicos são muito mais velhos que os estudantes e uma grande parcela deles declarou estar vivendo em uma união estável. Mais importante, uma proporção muito maior dos servidores declarou ter uma religião definida, de grande importância em suas vidas. Isso explica grande parte das diferenças quanto à aceitação da legalidade do aborto nas diferentes circunstancia apresentadas, particularmente quanto à permissão do aborto em qualquer circunstancia. Esses resultados alinham-se com resultados de vários estudos publicados nos últimos 20 anos11,13,16-22. Similarmente, a maior adesão a uma religião foi o fator mais importante associado à opinião mais restritiva em relação à lei sobre o aborto, como descrito em uma publicação recente13. Também encontramos uma importante associação escolaridade superior e opinião favorável a uma lei mais liberal sobre o aborto, o que também é consistente com resultados de outros estudos11,16,19. Nosso estudo diferencia-se dos anteriores, entretanto, por afastar-se da questão teórica sobre o que a lei deveria permitir e perguntar diretamente sobre as consequências práticas da aplicação da lei, isto é, sobre a possibilidade de mandar uma mulher para a prisão por ter realizado um aborto. Essa abordagem à opinião pública nos permitiu observar que a proporção dos participantes que discordam da implementação de mandatos punitivos na lei atual é muito maior que a proporção daqueles a favor da liberação do aborto em qualquer circunstância. Mesmo que ainda exista uma diferença entre os dois grupos quando se trata de qualquer mulher que tenha realizado um aborto, a proporção daqueles favoráveis a não punição (com prisão) de uma mulher conhecida que havia feito um aborto foi praticamente idêntica em ambos os grupos. 142

Qual dessas duas questões - uma sobre como a lei deveria ser formulada e a outra se mulheres devem ser punidas com prisão – revela um cenário mais realista quanto à posição das pessoas sobre o aborto no Brasil ? No contexto brasileiro, onde a palavra aborto possui uma conotação cultural negativa, sendo evitada pela maioria das pessoas, e onde o debate público é limitado aos pontos de vistas morais e religiosos, a situação e os direitos das mulheres raramente são levados em consideração12. Sendo assim, é esperado que a maioria das pessoas responda a questões relacionadas à lei sobre o aborto sem considerar as consequências da mesma para as mulheres, especialmente quando são desconhecidas. Ao perguntar diretamente sobre a punição, o entrevistado não pode mais ignorar as consequências previstas pela lei atual e é obrigado a considerar a situação e os direitos da mulher. Além disso, quando convidados a refletir sobre uma mulher conhecida, a situação e os direitos tornam-se ainda mais evidentes, o que acaba refletindo em suas respostas - isto é, eles declaram-se massivamente contra a prisão. Já em um estudo anterior, identificamos que quanto mais próxima à pessoa está à situação do aborto, mais provável é que essa pessoa veja o aborto como uma solução aceitável23. A nossa amostra não é representativa de todos os brasileiros, mas as similaridades na proporção de pessoas nos dois grupos que declararam ser contra a punição de mulheres com a prisão sugere que os resultados não se diferenciam dos resultados de outras amostras da população brasileira. Nossa hipótese é de que nossos resultados refletem a opinião atual no Brasil, o que é reforçado pelos resultados de outro estudo, conduzido pela Comissão de Cidadania e Reprodução, com alunos de medicina de seis universidade públicas no Brasil. Requisitados a expressar sua opinião sobre a lei, 47% dos participantes declararam serem favoráveis à lei vigente, mas 79% também declararam que uma mulher que fez um aborto não deveria ser presa e, entre os estudantes que declararam não ter uma religião especifica, a proporção foi de 84%. Logo, a maioria dos participantes nessa pesquisa - assim como nas nossas duas amostras - mostraram-se claramente contrários à manutenção da lei que pune com a prisão as mulheres que realizam um aborto ilegal. Para testar essa hipótese, é necessário realizar estudos similares com pessoas com níveis mais baixos de escolaridade em São Paulo e outras regiões do Brasil, um desafio que a


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nossa e outras pesquisas devem considerar encarar em breve. As opiniões sobre as mulheres que já fizeram um aborto refletem-se no baixo número de queixas à policia, processos e punição de mulheres no Brasil, que representam apenas 100 processos para cada milhão de abortos estimados anualmente25. Em 200727, o caso notório de denúncia contra uma clinica de aborto no estado do Mato Grosso do Sul foi concluído sem que nenhuma mulher fosse presa. Não se perguntou aos participantes se seriam favoráveis a outro tipo de punição, e qual seria, mas apenas se eram favoráveis à lei atual e às punições por ela previstas. Mas a opinião sobre esse tema específico e sobre o acesso a métodos seguros de aborto devem ser objetivo de pesquisas futuras. Finalmente, consideramos nossa responsabilidade disseminar o conhecimento de que quando convidadas a refletir sobre mulheres que já fizeram abortos, a maioria das pessoas mostraram-se contra a atual punição de um a dez anos de re-

clusão. Essa informação tem importantes implicações politicas. A crença atual entre os políticos é de que a defesa da mudança legislativa é pouco conveniente e, por isso, preferem a manutenção da situação atual. Mas é preciso mostrar que, ao considerar a situação das mulheres, a opinião da população é completamente diferente e isso é um importante argumento a favor da reforma do Código Penal, que viria a ampliar as situações nas quais o aborto é legal em nosso país. Esse é o nosso objetivo com a publicação dessas informações.

Agradecimentos O apoio financeiro para a pesquisa realizada junto aos estudantes de medicina foi oferecido pelo Programa Especial de Treinamento, Desenvolvimento e Pesquisa em Reprodução Humana e pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP 11/50203-0). O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital MCT/CNPq/ MS-SCTIE-DECIT/CT – Saúde nº 022/2007) apoio a pesquisa com os servidores públicos.

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Résumé L’avortement à risque demeure un problème de santé publique majeur dans les pays avec des législations très restrictives. Au Brésil, les parlementaires, qui ont le pouvoir de changer la loi, sont influencés par « l’opinion publique », souvent obtenue avec des enquêtes et des sondages. Cet article présente les conclusions de deux enquêtes réalisées dans l’État de São Paulo, Brésil. L’une a été menée en fevrier-decembre 010 auprès de 1660 fonctionnaires, l’autre en fevrierjuillet 2011 auprès de 874 étudiants en médecine de trois écoles de médecine. On a posé deux ensembles de questions aux deux groupes de répondants pour obtenir leur avis sur l’avortement : 1) dans quelles circonstances l’avortement devrait-il être autorisé par la loi, et 2) les femmes en général et les femmes dont ils savaient qu’elles avaient avorté devraient-elles ou non être punies ’une peine de prison, comme la loi brésilienne le prévoit. Les différences dans leurs réponses étaient énormes : la majorité des répondants étaient contre l’emprisonnement des femmes ayant avorté. Près de 60% des fonctionnaires et 25% des étudiants en médecine connaissaient au moins une femme qui avait avorté illégalement ; 85% des étudiants en médecine et 83% des fonctionnaires pensaient que ces personnes ne devaient pas être incarcérées. Les parlementaires brésiliens qui examinent actuellement une réforme du code pénal doivent prendre connaissance de ces informations de toute urgence.

Resumen El aborto inseguro continúa siendo un grave problema de salud pública en países con leyes de aborto muy restrictivas. En Brasil, los parlamentarios – que tienen el poder de cambiar la ley − son influenciados por la “opinión pública”, a menudo obtenida por medio de encuestas y sondeos de opinión. En este artículo se presentan los hallazgos de dos estudios: uno realizado entre febrero y diciembre de 2010 con 1660 funcionarios públicos; el otro, entre febrero y julio de 2011 con 874 estudiantes de tres facultades de medicina, ambos en el estado de São Paulo. A ambos grupos de personas encuestadas se les hicieron dos preguntas para obtener su opinión respecto al aborto: 1) bajo qué circunstancias debería estar permitido por la ley el aborto y 2) si se debe o no castigar a las mujeres en general y a las mujeres que sabían que habían tenido un aborto con pena de prisión, según estipula la ley brasileña. Hubo enormes diferencias en sus repuestas: la mayoría de las personas encuestadas estaban en contra de encarcelar a mujeres que han tenido abortos. Casi el 60% de los funcionarios públicos y el 25% de los estudiantes de medicina conocían por lo menos a una mujer que había tenido un aborto ilegal; el 85% de los estudiantes y el 83% de los funcionarios públicos creían que esa(s) persona(s) no debebería(n) ser encarcelada(s). Esta información debe difundirse con urgencia a los parlamentarios brasileños que están revisando la reforma del Código Penal.

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JEREMY HORNER / PANOS PICTURES

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Estátua da "Justiça" na área externa do Ministério da Justiça, Brasil

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Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso: desafios e oportunidades Bela Ganatra,a Philip Gues,b Marge Bererc a Cientista, PNUD/UNFPA/UNICEF/OMS, Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Capacitação em Reprodução Humana do Banco Mundial, Genebra, Suiça. Contato: ganatrab@who.int b Consultor Independente, Bangkok, Tailândia c Editora, Reproductive Health Matters, Londres, Reino Unido

O aborto medicamentoso com mifepristona e misoprostol (ou apenas com o misopostrol, em lugares onde o mifepristona ainda não foi aprovado ou não está disponível) é um método seguro e eficaz de interrupção da gestação tanto na fase inicial quanto nas mais avançadas. O misoprostol também pode ser usados para o manejo de abortos incompletos e abortos espontâneos. Quando utilizado na fase inicial da gravidez, o aborto medicamentoso pode ser feito em unidades básicas de saúde e por profissionais não médicos.1 A experiência de mais de três décadas com esses medicamentos também demonstra que, nas primeiras semanas de gestação, parte do processo pode ser feita de maneira segura fora de unidades de saúde, iniciando-se a administração do mifepristone nos serviços e administrando-se o misoprostol e a segunda dose do mifepristone em casa, pelas próprias mulheres. Atualmente, há tentativas para auxiliar as mulheres a checar em casa se o processo de expulsão se completou, como demonstram algumas fontes utilizadas nesse artigo. O acúmulo de evidências está transformando a compreensão e interpretação da definição de aborto inseguro da Organização Mundial de Saúde (OMS), para levar em consideração o fato de que “as pessoas, as habilidades e os padrões assistenciais considerados seguros na oferta do aborto diferem de acordo com o procedimento medicamentoso ou cirúrgico”.2 Mas segue sendo um desafio a transformação de evidências globais em realidades locais. Muitos dos artigos do Suplemento Especial da RHM* examinam essas barreiras ao estudar o conhecimento e as perspectivas de profissionais de saúde e das mulheres – tanto nos contextos em que o aborto legal é restrito a apenas algumas indicações (como na Argentina e no Zimbabué) como naqueles em

que o aborto é permitido em um conjunto maior de situações (como no Camboja, Índia, Nepal e Turquia). O ponto comum entre esses diferentes contextos é a falta de conhecimento preciso sobre o problema. No conjunto, os resultados de pesquisa indicam que ainda é pouco difundido o conhecimento cientificamente preciso sobre o aborto medicamentoso, as dosagens e associações adequadas e o manejo do processo – mesmo em contextos onde o aborto medicamentoso é legal e entre profissionais que já oferecem o procedimento. Os currículos dos cursos de medicina, incluindo as áreas de ginecologia e obstetricía, nem sempre incluem o aborto medicamentoso como parte da formação. De forma geral, continuam limitadas as fontes confiáveis de informação para profissionais, especialmente para aqueles que não trabalham em grande hospitais urbanos, e, assim, o conhecimento – mesmo diretrizes nacionais baseadas em evidências – não é repassado e não influencia as práticas dos profissionais que estão na base do sistema de saúde. Persiste, portanto, o uso de métodos obsoletos, como a curetagem na Colômbia (Rodriguez et al) e no Zimbabué (Maternowska et al). De maneira similar, independentemente do contexto jurídico, as mulheres não tem informação adequada sobre a legislação nacional nem sobre onde e como ter acesso a serviços legais e seguros ou mesmo onde obter acesso à assistência segura pós-aborto se sofrerem complicações de um aborto

146 www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf Contents online: www.rhm-elsevier.com

Doi: artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)43793-5 Doi:(do 10.1016/S0968-8080(14)43793-5

*Todos os artigos citados neste texto estão disponíveis em inglês no link do suplemento: RHM 44. Suplement Expanding Access to Medical Abortion. February 2015. Volume 22, Issue 44, Supplement 1, p1-143. Disponível em http://www.rhm-elsevier.com/issue/S09688080(15)X0002-4.

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inseguro. Fontes de informação precisas são ainda mais limitadas para mulheres que vivem em áreas rurais e que tem menores níveis de escolaridade. Farmácias, trabalhadores informais na comunidade, internet e serviços de apoio ao consumidor, são muitas vezes as únicas fontes de informação em lugares onde as leis são restritivas e, como Ramos et al identificou na Argentina, essas fontes nem sempre são precisas ou adequadas ao aconõselhamento e apoio que as mulheres necessitam. A resistência ou relutância dos profissionais (e futuros profissionais) para oferecer assistência também é um desafio que persiste. No estudo de Mihciokur`s, por exemplo, apenas 15% dos estudantes de medicina afirmaram que fariam um aborto medicamentoso depois de formados. Por outro lado, também é forte a a resistência dos médicos para incluir outros tipos de profissionais de saúde nessa área, como se vê no estudo de Acharya e Kalyanwalla, realizado na Índia. Em parte, essa resistência relaciona-se ao corporativismo, mas os equívocos e o conhecimento impreciso sobre a segurança do aborto medicamentoso também cumprem um papel importante aqui. Mas nem todas as atitudes são negativas: há profissionais bem informados e preocupados em oferecer informação precisa, como Petitet et al verificaram no Camboja. E como demonstram outros artigos desse suplemento, apesar dos desafios, é possível explorar abordagens inovadoras para facilitar o acesso à informação, descentralizar a assistência e facilitar o acesso ao aborto medicamentoso para as mulheres. Em situações em que o aborto cirúrgico é o único método de aborto seguro, a introdução do aborto medicamentoso como opção aumenta o potencial para a expansão do acesso à assistência segura. Em seu estudo na Armênia, Louie et al demonstraram que isso é viável e aceitável. Rob et al exploraram de maneira semelhante a viabilidade da introdução do aborto medicamentoso como parte do programa de Regulação Menstrual (RM) de longo prazo em Bangladesh. Em parceria com o governo, os programas de regulação menstrual vem sendo desenvolvidos de forma bem sucedida em unidades básicas de saúde em áreas rurais e urbanas. A maior parte das mulheres conseguiu regular a menstruação sem intervenção cirúrgica e essa opção tem sido bem aceita tanto pelas mulheres quanto pelos profissionais de saúde. Sanhueza e colegas demonstraram que é possível se utilizar o aborto medicamentoso no 6

atendimento ambulatorial mesmo em gestações com mais de nove semanas. Esse estudo, realizado no âmbito do programa de aborto legal da Cidade do México, obteve sucesso no uso procedimento em gestações de até dez semanas (70 dias). Tanto no estudo de Bangladesh quanto no do México, a maioria das mulheres retornou às unidades de saúde para uma consulta de avaliação do processo de interrupção da gravidez, mas essas consultas não são mais consideradas obrigatórias. Diversos métodos vem sendo pesquisados para auxiliar as mulheres a avaliar a finalização do aborto e a identificar a necessidade de acompanhamento médico. Entre os métodos estão os testes de gravidez de farmácia e o uso de listas de controle para a triagem de sintomas de alerta. Constant e colegas deram um passo além, analisando essas possibilidades por meio do uso da telefonia móvel. No contexto da África do Sul urbana, onde é alto o uso de telefones celulares e as mulheres tem acesso privado aos mesmos, elas demonstraram que as formas móveis e interativas de consulta são possibilidades que merecem ser estudadas mais a fundo. E pode-se ampliar ainda mais o acesso se profissionais não médicos puderem realizar o aborto medicamentoso. No estudo de Bangladesh mencionado acima, a maioria dos profissionais dos serviços públicos eram não médicos. No Nepal, Puri et al demonstraram que parteiras podem realizar o aborto medicamentoso de maneira independente e bem sucedida, em contextos com baixa cobertura de serviços de saúde e onde não há médicos disponíveis. Outros profissionais da comunidade podem desempenhar funções de apoio, garantindo o acesso das mulheres a profissionais devidamente capacitados no tempo adequado ou facilitando o encaminhamento para os serviços, como foi demonstrado também por Puri et al em seu estudo no Nepal. Para muitas mulheres, as farmácias ainda são o primeiro ponto de contato em busca de um método de interrupção de gravidez em locais em que o acesso aos serviços é limitado. As informações recebidas nas farmácias, porém, nem sempre são precisas e, muitas vezes, os medicamentos recebidos são inadequados ou ineficazes. As intervenções direcionadas para ampliar o conhecimento ou alterar essas práticas apresentaram resultados variados, como relatado por Tamang et al no Nepal e Fetters et al na Zâmbia. É difícil transformar as práticas reais em uma única e curta capacitação e, devido à alta taxa de 147


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rotatividade e à heterogeneidade dos profissionais que trabalham nas fármacias, é preciso oferecer capacitação contínua para sustentar uma mudança positiva. Embora sejam as mulheres as principais beneficiárias, o aborto medicamentoso também beneficia os serviços de saúde, ao reduzir seus custos. Em estudo de caso da Colômbia, Rodriguez e colegas utilizaram a análise de árvore de decisões para demonstrar que o sistema de saúde pode reduzir os custos ao substituir a curetagem uterina pelo aborto medicamentoso. Sanhueza et al também demonstram que a extensão do aborto medicamentoso realizado em ambulatório para gestrações de até dez semanas também pode reduzir os custos para os serviços de saúde. Todas essas abordagens podem tornar os serviços de saúde mais próximos das mulheres, mas, como Subha Sri e Ravindran advertem, não se pode pensar que, por si só, o acesso a medicamentos corrigirá as desigualdades estruturais de gênero ou a falta de autonomia das mulheres para tomar decisões sobre gravidez e saúde reprodutiva. Essas são questões centrais, que precisam ser ativamente tratadas junto com os esforços para ampliar o acesso ao aborto seguro. A maioria dos estudos contidos nesse suplemento são parte de uma iniciativa de pesquisas sociais e aplicadas para expandir o acesso ao aborto medicamentoso, apoiada pelo Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Capacitação em Pesquisa (PEDCP) do PNUD/UNFPA/ UNICEF/OMS/Banco Mundial entre 2009 a 2014, por meio do financiamento de um doador anônimo. Os estudos foram selecionados a partir da análise de diversas propostas de pesquisa, todas com o objetivo de contribuir para superar as lacunas de conhecimento sobre os contextos locais e com o potencial de resultar em mudança nos programas e políticas públicas. Os resultados desses estudos foram publicados em várias outras publicações. Não se pode, porém, superestimar a necessidade de pesquisas aplicadas ou de implementação para acompanhar o ritmo cada vez mais acelerado da base de evidências clínicas sobre o aborto medicamentoso precoce. Pesquisas clínicas demonstraram a segurança e a eficácia do aborto medicamentoso até o terceiro trimestre em ambulatórios da rede básica de saúde, mesmo se realizado por profissionais não médicos, mas ainda há muito a ser compreendido sobre como garantir ambientes assistenciais que possibilitem o 148

compartilhamento de tarefas entre os profissionais no contexto dos programas de saúde. De maneira similar, requerem estudos mais profundos a determinação da eficácia ou da aceitação do apoio dos profissionais de comunidade na oferta de informação e de triagem para os serviços, quando necessário, no auxílio às mulheres durante e após o processo de abortamento e na orientação sobre a contracepção pós-aborto. Intervenções com profissionais das farmácias podem ser desafiadoras, mas é importante identificar estratégias eficazes para qualificar o conhecimento, ampliar a oferta de informações e a capacidade de referenciar para os serviços de saúde como prevenção do aborto inseguro. Uma vez que já se sabe que as consultas de avaliação nem sempre são necessárias, é preciso desenvolver ferramentas simples e acessíveis para que as próprias mulheres avaliem a finalização do processo de abortamento. Igualmente importante é encontrar maneiras viáveis para garantir contracepção pós-aborto eficaz para as mulheres que assim desejarem. Aconselhamento e informação são essenciais para o sucesso do aborto medicamentoso no primeiro trimestre. Sendo um processo que ocorre no corpo da mulher, e não um procedimento realizado por terceiros, a necessidade de informação é uma peça chave tanto para o profissional quanto para a mulher. A telemedicina, a medicina móvel e as mídias alternativas são meios importantes a serem explorados, assim como as abordagens inovadoras na formação de profissionais tanto nos curriculos acadêmicos quanto nas capacitações realizadas nos serviços de saúde. É necessário também desenvolver estratégias de retenção de profissionais capacitados, que desejam e estão aptos a oferecer assistência para mulheres rurais, marginalizadas, jovens e solteiras. Todos esses esforços – independentemente de seu grau de sucesso – devem ser rigorosamente documentados, pois a escassez de monitoramento e de dados de avaliação são barreiras que impedem a mudança e a transferência das lições aprendidas de um contexto para o outro. Achados de pesquisas são apenas o primeiro passo para mudanças em programas e políticas públicas. Atribuir o impacto dos resultados apenas a estudos é tarefa difícil, pois a maioria das mudanças resulta de múltiplos fatores. A disseminação dos resultados dos estudos deve ser seguida de estratégias e ações específicas para transformar conhecimento em implementação e 7


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ativismo para a mudança. A maioria dos pesquisadores que publicaram nesse suplemento segue trabalhando com os resultados de seus estudos para produzir mudanças em seus países. O trabalho relatado por Louie et al é um bom exemplo de como a pesquisa apoiou a inclusão do aborto medicamentoso no primeiro trimestre nos serviços de saúde reprodutiva na Armênia e levou à formação de um grupo de trabalho para desenvolver diretrizes nacionais para a oferta do procedimento. Concluindo, diante de uma gravidez indesejada ou não planejada, as mulheres irão procurar meios – seguros ou não – de interrompê-la. É válido o debate sobre o uso não regulamentado desses medicamentos, mas a ampliação de sua disponibilidade por meio da racionalização de procedimentos e serviços, atendendo às necessidades das mulheres é a maneira mais certa de aumentar a segurança e a proteção contra o uso desregulado. As evidências sobre a simplicidade, segurança e eficácia do aborto medicamentoso, faz dele o método mais adequado para expandir o acesso à assistência ao aborto e às complicações pós-aborto.

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Referências 1. World Health Organization. Safe Abortion: Technical and Policy Guidance for Health Systems. 2nd ed. Geneva WHO, 2012. 2. Ganatra B, Tuncalp O, Johnston HB, et al. From concept to measurement: operationalizing WHO’s definition of unsafe abortion. Bulletin of World Health Organization 2014;92(3):155. Doi: 10.2471/BLT.14.136333.

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Experiências de mulheres com o uso do aborto medicamentoso em contextos de restrição legal: o caso da Argentina Silvina Ramosa, Mariana Romerob, Lila Aizenbergc a Pesquisadora Sênior, Centro de Estudos sobre Estado e Sociedade (CEES), Buenos Aires, Argentina. Contato: silvinaramosarcoiris@gmail.com b Pesquisadora Sênior, CEES e Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CNPCT), Buenos Aires, Argentina c Pesquisadora Externa, CEES, Buenos Aires Argentina

Resumo: Esse artigo apresenta os resultados de um estudo qualitativo sobre experiências de mulheres com o uso do misoprostol para induzir o aborto, na área metropolitana de Buenos Aires, Argentina. As mulheres foram perguntadas sobre o processo de tomada de decisão relativo ao aborto clandestino, envolvendo a experiência física e emocional, as estratégias utilizadas, a busca por orientação e sua avaliação geral da experiência. Para isso, foram utilizadas entrevistas em profundidade. Uma parte das mulheres (n=24) tomou o misoprostol e buscou assistência em um hospital público e outra parte (n=21) seguiu as orientações de um serviço telefônico local, da internet ou de outras mulheres. Foram identificados quatro estágios nas experiências das mulheres: a tomada de decisão, a obtenção do medicamento, a forma de uso dos comprimidos e as reflexões das mulheres sobre o desfecho, incluindo a busca (ou não) de assistência médica. Segurança e privacidade foram fatores-chave na decisão de realizar um aborto medicamentoso. O acesso ao medicamento foi o principal obstáculo, já que requer prescrição médica ou farmácia especializada. A informação correta sobre o número de comprimidos a usar e os intervalos entre as dosagens foi a informação mais difícil de obter, causando preocupações às mulheres. A possibilidade de escolher um momento de privacidade e ter a companhia de alguém próximo se destacou como uma vantagem exclusiva do aborto medicamentoso. Deve-se, assim, redobrar os esforços para a melhoria da legislação, das políticas e dos serviços de assistência ao aborto na Argentina, de modo a se garantir as melhores condições possíveis para a realização do aborto medicamentoso. Palavras-chave: legislação e políticas de aborto, aborto medicamentoso, perspectivas das mulheres, misoprostol, serviços de informação sobre aborto, Argentina. Tanto o aborto inseguro quanto a mortalidade a ele relacionada apresentam taxas mais altas nos países de legislação mais rígida1. Em 2011, 46% dos países no mundo (91 de 192) permitiam o aborto apenas nos casos de risco para a saúde ou vida da mulher, 29% permitiam o aborto a pedido da mulher (pelo menos durante o primeiro trimestre da gravidez), enquanto cinco países (Chile, El Salvador, Nicarágua, Malta e a República Dominicana) não permitiam o aborto sob nenhuma circunstância2. Em 2006, estima-se que cerca de um milhão de mulheres foram hospitalizadas para tratar complicações do aborto inseguro na América Latina3. Em 2008, de acordo com estimativas da OMS, 95% dos 4.23 milhões de abortos que foram realizados na região foram inseguros1. Mais recentemente, estima-se que 12% de todas as mortes maternas da América Latina ocorreram devido a complicações de um aborto inseguro4. Na

maioria dos países, a legislação sobre o aborto é restritiva5 mas, como demonstram as evidências em todo o redor mundo, a proibição não impede que as mulheres continuem a realizar abortos. Quando confrontadas com uma gravidez indesejada, muitas mulheres irão em busca de um aborto, apesar da condenação e das barreiras que dificultam ou impossibilitam a realização de um aborto seguro6. O desenvolvimento da tecnologia médica tornou possível a interrupção de uma gravidez de maneira segura. Nos contextos de legislação restrita, tem sido considerável a expansão do acesso ao uso dos medicamentos indutores do aborto(7-10), graças à disponibilidade do misoprostol nas farmácias ou no mercado negro. Nesses contextos, diferentes estratégias, tais como serviços telefônicos de informação ou referência, compra pela internet e aconselhamento antes e depois do aborto, vem sendo cada vez mais utilizadas,

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)43786-8

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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principalmente por organizações da sociedade civil e grupos de mulheres, para ampliar o acesso seguro das mulheres ao aborto medicamentoso11,12. O aborto medicamentoso oferece às mulheres a opção de um aborto precoce seguro, de fácil acesso, não invasivo e que permite a assistência ambulatorial. Estudos demonstram que as mulheres preferem o aborto medicamentoso por várias razões: é mais natural, não envolve cirurgia ou anestesia, permite o aborto precoce, preserva a privacidade e dá às mulheres o controle do processo pelo fato de, entre outras razões, poder se encaixar na sua rotina diária. Por isso, quase todas as mulheres entrevistadas em estudos de aceitabilidade do aborto medicamentoso afirmaram que utilizariam novamente o método e o recomendam para outras mulheres8,13-16. Na América Latina, as mulheres usam o aborto medicamentoso doméstico há muitas décadas. (17,18) A mifepristona, um dos medicamentos indutores do aborto recomendados pela Organização Mundial de Saúde, ainda não está disponível em quase nenhum país da região, mas o misoprostol é vendido nas farmácias desde 198019,20. Na maioria dos países, o misoprostol é aprovado para a prevenção de úlceras gástricas mas não para indicações ginecológicas e obstétricas. Em seis países* o misoprostol foi registrado para algumas destas indicações, mas não para o aborto21. Apesar das restrições legais e na ausência da aplicação da legislação criminal sobre o aborto, o uso dos medicamentos indutores de aborto está reduzindo os riscos do aborto inseguro e, com isso, tem contribuído para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 5a e 5b22. Uma análise recente da literatura com foco na América Latina identificou que, apesar da longa tradição de pesquisa acadêmica e social sobre saúde sexual e reprodutiva e do forte movimento de mulheres em torno da questão do aborto23,24, poucos estudos focaram especialmente a experiência de aborto medicamentoso a partir da perspectiva das mulheres. Essa análise também mostrou que as restrições legislativas e regulatórias do acesso ao aborto e ao misoprostol e mifepristone resultaram em informações inadequadas sobre dosagens, sintomas e eficácia do aborto medicamentoso para as mulheres. A falta de aconselhamento e apoio antes, durante e após o processo de aborto também resulta no uso do medicamento pelas mulheres em condições longe do ideal18.

Na Argentina, o Código Penal só permite o aborto em casos de risco à vida ou à saúde da mulher ou se a gravidez for resultado de estupro, incluindo o abuso sexual de mulheres com algum tipo de deficiência mental. Mas mesmo nesses casos o aborto não é oferecido pelo sistema de saúde25. Apesar dessas restrições, estima-se que quase 400.000 abortos são realizados anualmente na Argentina e as complicações do aborto inseguro foram a principal causa de mortalidade materna nas últimas duas décadas26,27. As restrições legais e a ausência de uma cultura de oferta de serviços públicos de assistência ao aborto - ainda que limitado aos permissivos legais - são as principais barreiras para o acesso ao aborto seguro. A proibição do misoprostol para a interrupção da gravidez é uma barreira adicional à segurança das mulheres. Assim, as mulheres enfrentam obstáculos para obter o misoprostol e, uma vez que o medicamento não registrado, os profissionais de saúde incorrem em prática irregular. Assim, a clandestinidade do aborto medicamentoso realizado fora das unidades de saúde se dá a despeito e por causa das restrições legais. O aborto medicamentoso é especialmente importante para se ressignificar a própria natureza do aborto e, por isso, compreender as experiências das mulheres em contextos juridicamente restritos adquire maior relevância28. Esse artigo apresenta os resultados de um estudo qualitativo sobre as experiências de mulheres com o uso do misoprostol para a indução do aborto na região metropolitana de Buenos Aires, na Argentina.

* Argentina, Brasil, Colômbia, México, Peru e Uruguai.

Metodologia Esse foi um estudo descritivo e exploratório, cuja amostra foi composta por mulheres com diferentes experiências de aborto medicamentoso em termos das fontes de informação e aconselhamento a que recorreram. Algumas (n=24) usaram o misoprostol e buscaram aconselhamento ou, na presença de sintomas de aborto incompleto, buscaram assistência em um hospital público de Buenos Aires†. As outras (n=21) usaram o misoprostol seguindo as orientações de um serviço telefônico de informações, da internet ou de outras mulheres. Todas elas realizaram o aborto em casa. As mulheres foram recrutadas de duas maneiras. Aquelas que procuraram um hospital foram abordadas por um profissional de saúde antes de O nome do hospital não foi divulgado por motivos de privacidade.

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receberem alta, que lhes convidou para a entrevista de pesquisa. As entrevistas aconteceram no hospital. Para chegar às mulheres que não procuraram hospitais utilizou-se a técnica da bola-de-neve. Por meio de organizações de mulheres na comunidade e de redes pessoais, foram identificadas mulheres que induziram um aborto medicamentoso nos 12 meses anteriores à pesquisa. Em alguns casos, a pessoa contactada nos passou o contato de mais de uma mulher. Em todos os casos as mulheres foram consultadas sobre o interesse em participar da pesquisa. Foram realizadas entrevistas em profundidade para se obter informações sobre o processo de tomada de decisão sobre o aborto e sobre o uso dos medicamentos indutores; a forma de obtenção do medicamento; crenças sobre o modo de funcionamento do medicamento; percepções sobre segurança e eficácia; experiência física e subjetiva do processo de aborto; percepções de privacidade; custos pessoais e familiares e, quando foi o caso, o papel dos serviços de saúde. O protocolo de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da OMS e do CEMPC (Centro de Educação Médica e Pesquisas Clínicas Roberto Quirno, Buenos Aires, Argentina). Obteve-se consentimento informado de todas as mulheres. O trabalho de campo foi conduzido entre outubro de 2011 e julho de 2012. As entrevistas foram realizadas em espanhol e a análise foi feita a partir do texto original em espanhol. A codificação das entrevistas foi conduzida de forma independente por dois membros da equipe de pesquisa e as discrepâncias encontradas foram discutidas e resolvidas por toda a equipe. As falas aqui utilizadas foram traduzidas para o inglês‡. Todos os nomes são fictícios para proteger o anonimato das participantes. Nosso objetivo, como já mencionado, foi explorar a diversidade das experiências das mulheres com o aborto clandestino - o leque de decisões, estratégias e desfechos físicos e emocionais, incluindo a busca por assistência e a avaliação geral da experiência. Também queríamos descobrir se e como orientações e assistência médica recebidas antes e depois do aborto afetaram a experiência das mulheres. Os resultados foram analisados em termos de suas implicações para a saúde e o bem-estar das mulheres e do seu uso para influenciar futuras es‡

Nota da Editora Brasileira: as autoras se referem ao texto publicado originalmente na Reproductive Health Matters e que serviu de base para esta tradução para o português.

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tratégias para qualificar o acesso ao aborto medicamentoso seguro em contextos legalmente restritos.

Resultados As 45 mulheres entrevistadas tinham de 18 a 40 anos; 60% tinham o primeiro grau completo (sete ou mais anos de estudo). Um terço vivia com seus parceiros na época da entrevista e 66% tinham filhos, de um a nove anos de idade. Foram identificados quatro estágios nas experiências das mulheres. Primeiro, o modo como se deu a decisão de interromper a gravidez, incluindo a busca por informação e os motivos para optar pelo aborto medicamentoso. Segundo, a forma de obtenção do medicamento, incluindo o acesso à receita e a compra dos comprimidos. Terceiro, o modo de uso dos comprimidos, incluindo a busca de informações sobre o procedimento (dosagem, intervalo, efeitos colaterais e sinais de alerta). Finalmente, o estágio pós-aborto, se após o término do processo a mulher buscou ajuda médica e suas reflexões sobre o ocorrido. A decisão de interromper a gravidez usando misoprostol A escolha pelo aborto medicamentoso foi resultado de um processo de comparação entre diferentes opções de interrupção da gravidez. As vantagens do uso comprimidos foram um fator chave: os comprimidos são mais confortáveis porque podem ser administrados em casa e acompanhados por pessoas próximas da mulher, são menos arriscados, mais seguros e eficazes e evitam uma cirurgia. O custo dos comprimidos quando comparado aos custos do aborto cirúrgico não apareceu como um obstáculo importante ou como uma desvantagem. “Me parece menos arriscado. Sim, parece ser seguro e menos… Eu não sei, eu sinto que talvez [o aborto cirúrgico] seja uma intervenção muito forte no meu corpo. Ao invés disso eu tomei os comprimidos, tomei em casa, com as pessoas que amo e isso talvez seja menos difícil do que a curetagem (Laura, 25) “Eu me imagino em um lugar qualquer, com um médico qualquer, sem saber se é ou não um médico de verdade e pra mim isso parece com um açougue. Eu tenho uma amiga que fez isso e saiu de lá completamente drogada de anestesia, engatinhando pelo corredor de um apartamento vazio, tá vendo, isso aí não é bom mesmo, não há apoio nenhum, você nem sabe quem fez o aborto…” (Lucia, 28)


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Para a maioria das mulheres entrevistadas, a informação necessária para decidir pelo misoprostol foi obtida em diferentes fontes, mas principalmente com amigas e parentes. A informação obtida, porém, muitas vezes era incompleta, não satisfazendo plenamente as expectativas e levando as mulheres a procurarem outra fonte até sentirem que estavam suficientemente informadas para continuar. Para 18 das 45 mulheres, a confiança no método, disseminada pelas fontes consultadas, foi o fator determinante para a decisão de tomar o misoprostol. As mulheres que conseguiram consultar os serviços de saúde reconhecidamente comprometidos com as mulheres e com qualidade da assistência, se sentiram particularmente confortáveis com o processo do aborto. Além disso, a interação com profissionais atenciosos, que não apenas deram a informação adequada, mas também as escutaram e prestaram atenção em suas preocupações de maneira respeitosa, influenciou de maneira positiva nas suas decisões. Para muitas mulheres, a internet desempenhou uma função importante, principalmente para as que tiveram acesso a serviços de informações por telefone e a publicações específicas§, cujo conteúdo era uma espécie de “loja de conveniência”. Para as mulheres, essa foi uma fonte acessível, abrangente e precisa. “Quando eu percebi que estava grávida, comecei a perguntar a amigas mais velhas se elas sabiam como eu podia abortar… elas me falaram dos comprimidos e de outros métodos, mas disseram: ‘Se você vai fazer isso, faça de maneira segura!’ Então eu não pensei em outra alternativa, eu confiei nelas porque elas sabiam do que estavam falando.” (Claudia, 21) “Eu consultei uma amiga que disse que o hospital X era legal, que ela recomendou umas meninas para lá… e também tem uns livros, aqueles de lésbicas e feministas que apoiam o aborto legal e seguro, e eu peguei emprestado uns livros assim. Li e achei que seria seguro. Eu já tinha informação das minhas amigas do Chile que tinham feito. E por isso eu tomei minha decisão.” (Taira, 31) §

Estamos nos referindo ao material “Tudo o que você quer saber sobre como realizar um aborto com medicamentos”, Lésbicas e Feministas pela Descriminalização do Aborto”. Disponível em: http://www.editorialelcolectivo.org/ed/index.php?option=com_ content&view=article&id=176:todo-lo-que-queres-saber-sobrecomo-hacerse-un-aborto-conpasillas&Itemid=1.

Obtendo acesso ao medicamento Em média, as mulheres levaram de uma a duas semanas para ter acesso aos comprimidos. A complexidade dessa etapa esteve relacionada ao acesso à prescrição necessária para a compra do medicamento, aos contatos que poderiam identificar a farmácia a que se deveria ir, à localização da farmácia que poderia vender o misoprostol, a ter dinheiro suficiente e a conseguir o apoio de amigos e/ou família. Na Argentina, para se obter o misoprostol é necessária uma receita escrita à mão e datada por um profissional de saúde. Contatos pessoais e informação passada boca a boca foram particularmente importantes nessa etapa. Em função das dificuldades de se obter a receita, muitas mulheres tentaram diferentes estratégias para obter o medicamento sem apresentar a prescrição. No final, 21 mulheres conseguiram uma receita de uma unidade pública de saúde conhecida por oferecer um serviço de orientação e 11 mulheres compraram o medicamento na farmácia sem receita. Seis conseguiram a receita com algum amigo ou parente médico, cinco conseguiram os comprimidos diretamente de amigos ou familiares e duas mulheres compraram pela internet. “Eu fui a diversas farmácias, junto com uma amiga minha. Fomos de farmácia em farmácia dizendo ao farmacêutico: ‘Olhe, eu tenho um problema e preciso da sua ajuda, mas eu não tenho receita.” (Yamila, 18) “A parte mais difícil foi conseguir a receita… no final, eu consegui com um amigo de um amigo que era médico… mas antes disso eu tinha marcado várias consultas com ginecologistas tentando achar um médica que me ajudasse a conseguir uma receita.” (Gabriela, 25) Como o misoprostol não é registrado para o uso como abortivo, a compra para esse fim requer que um ato ilegal apareça como legal. Para as mulheres aqui estudadas, isso levou ao uso de estratégias para evitar perguntas que questionassem a finalidade do medicamento por parte dos farmacêuticos. Algumas das mulheres, por exemplo, pediram para pessoas mais velhas comprarem o medicamento, como se fosse para tratar úlcera gástrica. Outras pediram para que a receita fosse escrita para um homem.

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GUSTAVO CARDON

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Panfletos, brochuras e publicações sobre o aborto induzido por medicamentos, Argentina, 2014. “Um fisioterapeuta passou a receita para o meu parceiro ao invés de pra mim. Ele disse: ‘Bem, eu vou lá e compro com cara de quem não quer nada. Eu posso sempre dizer que eu tenho tendinite ou sei lá o quê…” (Victoria, 33) Embora quase todas as mulheres tivessem limitações financeiras, aparentemente, o custo do medicamento não foi um problema insolúvel, particularmente quando comparado ao custo de um aborto cirúrgico. Vale mencionar que, ao optar pelo aborto medicamentoso, as mulheres levaram em conta simultaneamente o custo e segurança do procedimento. “O motivo pelo qual eu recomendaria é por causa do baixo custo comparado ao aborto cirúrgico. Você pode optar entre ele [o aborto medicamentoso] e outros tipos de aborto clandestino, que são mais arriscados. Isso faz a diferença. Eu posso lhe dizer que no nível da classe média baixa, ou o que quer que a gente seja, nós sabemos que, no momento, os abortos cirúrgicos são mais arriscados por causa das condições em que são realizados. Essa é uma possibilidade mais barata e segura.” (Yamila, 21) 154

No final, metade das mulheres teve que confiar nos contatos de suas redes pessoais para conseguir o medicamento. “Minha irmã conseguiu os comprimidos. Ela trabalha em uma organização social que oferece os comprimidos para mulheres que querem realizar um aborto. A organização obtém os comprimidos por meio de outra organização que, pelo que eu saiba, tem um contato com alguém que trabalha no laboratório.” (Camila, 22) “Uma amiga minha sabe por que uma amiga dela sabe. Eu disse a ela: ‘Por favor, quando você falar com ela, pergunta a ela onde ela comprou.’ Ela me fez esse favor, perguntou à outra e ela disse que tinha comprado os comprimidos de uma senhora. E aí a gente foi lá, ela só entrou, comprou e passou eles pra mim.” (Norma, 30) Tomando o medicamento As restrições legais influenciam o tipo e a qualidade da informação disponível para a realização do aborto medicamentoso18. Metade das mulheres se sentiu segura sobre a forma de administração dos comprimidos, principalmente aquelas que


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receberam aconselhamento de um profissional de saúde antes do aborto ou obteve informação online ou telefônica. No entanto, as entrevistas mostraram que o conhecimento das mulheres sobre o que esperar e sobre o modo de funcionamento do medicamento, foi incompleto e fragmentado e mesmo os médicos nem sempre pareciam ser fontes confiáveis. “Os próprios médicos davam informações diferentes. Eu recebi informações muito diferentes. Um disse que eu tinha que tomar apenas 4 comprimidos e que isso causaria o aborto, outro disse que eu deveria tomar 12 comprimidos; outro disse que eu deveria tomar 4 comprimidos e talvez 24 horas depois mais 4. E isso me deixou preocupada.” (Norma, 30) “Uma amiga minha consultou diferentes organizações feministas e ela consegui informação, mas foi fragmentada… As pessoas tinham medo de dar informação a ela diretamente e demoraram a dar um número de telefone. E eles disseram a ela que tinha um medicamento e que não era ilegal. Toda a informação que nos deram estava errada. Então eu achei um site com um livro muito útil sobre o aborto com comprimidos, onde conseguir e quais passos seguir.” (Gabriela, 25) As vias de administração foram vaginal, oral ou uma combinação dessas duas. Os médicos algumas vezes recomendaram não usar a via vaginal para evitar resquícios do medicamento em exames posteriores, caso ela viesse a ter algum tipo de complicação. As mulheres relataram diferentes tipos de esquema prescritivo, mas o mais frequente foi o de 4 comprimidos a cada 3 horas. As mulheres se preocuparam particularmente com o número de comprimidos e o intervalo entre as doses, que foi o tipo de informação mais difícil de conseguir. “A minha principal dúvida foi sobre quando eu deveria repetir a dose… se eu estava perdendo ou não, porque a informação que eu tinha era de que se você perdesse muito sangue e tivesse que trocar de absorvente a cada meia hora, você deveria ir pro hospital. Mas eu tive a minha menstruação normal e por isso eu não sabia. Então, eu sangrei por 15 dias e fui a uma clínica e o ultrassom mostrou que eu ainda tinha resquícios lá dentro, então eu repeti a dose, com quatro comprimidos.” (Andrea, 33) Todas as mulheres tomaram o medicamento em casa, em dia e hora de sua escolha, o que lhes trouxe mais conforto. Elas optaram pelo horário

da noite, quando as crianças estavam dormindo, ou nos finais de semana, quando tinham tempo para descansar e as interferências e demandas eram menores. “Eu tomei no final de semana, por que [o médico] me disse que em dois dias, três no máximo, dava pra fazer isso. Então, eu disse, no terceiro dia vou estar pronta pra voltar a trabalhar.” (Gabriela, 43) Dois terços das mulheres passou pelo processo de aborto na companhia de uma pessoa próxima (parceiro, amiga ou parente), em quem elas confiavam. Isso foi especialmente destacado por elas como uma vantagem exclusiva do aborto medicamentoso. “Você pode fazer em casa, isso permite ter do lado alguém que você confie e que pode lhe apoiar.” (Lucia, 28) A experiência física Para a maior parte das mulheres o aborto foi vivido como uma menstruação normal ou com mais intensidade. Isso gerou a percepção de que o aborto era próximo de um “processo natural”, tranquilizando seus anseios e medos. “Foi como uma menstruação normal. Você pensa que vai ser um sangramento pesado ou algo assim, mas foi bem suave e aí parou… eu estava preocupada se tudo iria voltar ao normal, eu não sabia como meu corpo ia lidar com isso… mas não, no final foi ótimo.” (Karina, 36) O sangramento e a expulsão foram percebidos como os sinais cruciais do processo. Na verdade, 16 mulheres disseram que foi por meio do sangramento que puderam confirmar que o aborto tinha começado e estava acontecendo. As mulheres também relataram outros sintomas físicos, como dor (24), expulsão de coágulos (9), contrações (5), calafrios (3), vômitos (3), zumbido nos ouvidos (1) e diarreia (1). Apesar de terem sentido menos dor do que esperavam, a forma de lidar com a dor dependeu das informações prévias sobre os efeitos colaterais e da presença de acompanhante no processo. “Eu estava com meu parceiro, ele estava comigo por que pelo que eu entendi, você não pode usar o medicamento se estiver sozinha, vai que dá errado, né?! Isso foi o que o meu médico me disse… foi diferente do que eu esperei, menos trágico… eu pensei que a dor seria mais forte e que eu ficaria bem mais preocupada.” (Lucia, 25) 155


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Apenas 12 das 45 mulheres tomaram analgésicos, especialmente aquelas que foram aconselhadas a tomar por um profissional de saúde. O receio de interromper o processo de aborto e a crença de que havia componentes analgésicos nos comprimidos foram as principais razões pelas quais as mulheres rejeitaram o uso de analgésicos. Apesar de terem alguma noção sobre os sintomas que deveriam esperar depois de tomar os comprimidos, e sobre como prosseguir na sequência, muitas mulheres não tinham informações sobre o modo de ação do medicamento e seus efeitos sobre o corpo. Essas ideias foram assim expressadas: “O que quer que esteja lá, é dissolvido/diluído.” “Tem uns pedacinhos de tecido.” “Tem alguma coisa a ver com reações químicas que fazem o corpo expulsar o embrião.” “Ele gera contrações.” “Ele dilata o útero.” “Ele altera os seus hormônios.” “Os comprimidos entram e explodem.” “Aconteceu uma revolução na minha barriga.” “Os comprimidos cortam o oxigênio.” A experiência emocional Embora todas as mulheres tenha decidido fazer um aborto, todas referiram ter sentido emoções negativas ao longo do processo, mesmo aquelas que confiavam no medicamento. Medo de sangramento intenso (8), culpa e remorso (8), incerteza quanto ao uso correto do medicamento (6), receio de infertilidade (6), preocupações sobre a gravidez (6), tristeza (5), irritação por ter que lidar com profissionais de saúde, revelando que fez o aborto (4), medo de morrer (3), preocupações com a rotina diária (2), vergonha e culpa por matar um bebê e negligenciar os filhos (3): tudo isso fez parte das percepções das mulheres a respeito da experiência com o aborto medicamentoso. Por outro lado, para algumas mulheres, o alívio e a satisfação por ter resolvido o problema, assim como sentimentos de autoconfiança sobre a decisão tomada, foram as emoções positivas associadas à experiência. Para essas mulheres, a informação sobre o desenvolvimento do feto e o senso prático associado à resolução de um problema vital compensaram a culpa e o remorso, emoções que estiveram presentes para quase todas as mulheres entrevistadas. “O primeiro medo, talvez o mais forte, é a culpa. Essa ideia de estar matando uma vida, digamos 156

assim, essa coisa que é resultado de uma formação cristã, que na verdade eu nem tive. Mas também, eu também tive um sentimento de alívio, de estar preparada para fazer. Não dá pra dizer que é uma alegria, não dá pra dizer que você tá feliz ao fazer isso que você deve fazer, mas há uma ideia de que eu queria fazer, que eu queria fazer isso.” (Natalia, 33) Medos e angústias foram também mais facilmente enfrentados quando as mulheres tinham uma rede de apoio, ou de profissionais de saúde capazes de esclarecer suas dúvidas ou de pessoas próximas que poderiam acompanhá-las durante o processo de aborto. “O que eu me lembro é da companhia do meu parceiro, nós morávamos juntos e minha casa foi o lugar que a gente escolheu para fazer o aborto. Ele tava presente, cuidou de mim e também cuidou da minha dor… em hora nenhuma eu tive a sensação de que as coisas saíram de controle.” (Natalia, 33) A experiência com os serviços de saúde A consulta no hospital moldou as expectativas das mulheres sobre o aborto. Aquelas que receberam aconselhamento ficaram satisfeitas e muito surpresas com o fato de uma unidade pública de saúde orientá-las durante o processo, oferecendo conforto e informações relevantes, sem questionamentos, tranquilizando-as quanto à segurança do método e apoiando a sua decisão. Todos esses aspectos foram muito valorizados pelas mulheres, por que lhes confortou quanto à decisão e ao processo do aborto. “Se sentir confortada, orientada sobre o que fazer a seguir, sobre onde conseguir o medicamento, resolver o problema da receita, receber informação sobre o preço, todas essas questões… e não ser condenada, procurada… isso realmente foi importante para mim.” (Laura, 25) “Primeiro eu estava com medo de ir para o hospital… eu já tinha ido a um hospital público pedir a pílula do dia seguinte ou camisinha e fui tratada como uma assassina… mas depois que eu cheguei lá, foi facílimo falar com as médicas. Elas são bem atenciosas; foi fácil falar com elas. Eu pensei que seria mais difícil. As moças lá são bem legais e dá pra confiar nelas e falar tudo pra elas, porque elas não vão fazer escândalo nenhum disso. E pra mim isso foi essencial de verdade.” (Lucia, 23) “Elas abriram a porta pra mim. Eu estava muito nervosa, tinha levado o resultado de um ultrassom,


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me disseram quanto tempo eu tinha de gravidez… que eu tinha tempo pra pensar mais, me acalmaram e me garantiram que tudo ia correr bem, que o método era eficaz e que o risco de morrer era bem, bem baixo. Elas me aconselharam a voltar, pois elas estariam lá, esperando por mim.” (Débora, 23) Três das mulheres que não receberam aconselhamento de profissionais de saúde tiveram sintomas que consideraram preocupantes - febre, sangramento pesado ou prolongado, dor insuportável, falta de sangramento - e que as levou a procurar um hospital. Todas esperavam receber uma resposta negativa do hospital, baseadas nas suas próprias experiências e nas de outras mulheres. Elas imaginaram que a unidade de saúde não seria receptiva às suas necessidades pelo fato de terem tentado abortar. Mas o medo de ser maltratada ou denunciada à polícia foi superado pelo medo de morrer. Ao serem recebidas pelo hospital, suas expectativas deram lugar à realidade angustiante de serem deixadas sozinhas num quarto ou de ficarem junto com mulheres em trabalho de parto ou com bebês recém-nascidos, porque os hospitais não têm um espaço específico para mulheres com complicações do aborto. “O medo que eu senti era porque eu estava em uma sala sozinha e na outra tinha mulheres parindo. Tinha uma menina que estava parindo e eu escutei tudo. Eu disse a mim mesma: ‘Eu quero morrer.’ Tinha um relógio lá, eu não parava de olhar pra ele, minha irmã me ligava a cada 50 segundos porque eles só deixam acompanhantes entrarem por um segundo. Eles não tinham permissão para me visitar.” (Lucia, 28) “Você está na mesma sala com todas as mães. Eles não param de falar dos seus bebês, sobre a barriga, blá blá blá… Eu estava até bem, mas era impossível não se sentir aflita.” (Andrea, 21) “O aborto acabou”: avaliação da experiência No final da entrevista, pediu-se que as mulheres avaliassem suas experiências, no geral, quanto aos aspectos positivos e negativos, o impacto produzido pela experiência e se recomendariam o procedimento para outras mulheres. Algumas falaram sobre o método em si, o que permitia e as circunstâncias em que a experiência aborto aconteceu, que, segundo elas, deveriam ser compreendidas em seu conjunto. Muitas mencionaram aspectos positivos e negativos, reconhecendo a ambivalência da situação e da experiência.

“Se você conhece os riscos, se você consegue boas informações e se tiver alguém do seu lado, os comprimidos lhe permitem viver a experiência com privacidade. Essa decisão é sempre íntima e os comprimidos permitem passar pelo processo à sua maneira, quando você quiser, com quem você quiser e isso não tem preço. Mas nem todas as mulheres têm acesso a essas condições… e algumas vezes elas optam por outros métodos - porque cada mulher tem uma vida diferente.” (Ana, 29) “O método não importa, contanto que seja seguro e se tenha o apoio de alguém, de um profissional. O método não importa; o que importa é como você pode ter acesso a ele, o que importa é saber o que esperar e ter informação…” (Claudia, 24) “Com (os comprimidos) você não corre riscos, como acontece quando você está nas mãos de alguém que não conhece, que vai lhe cobrar muito dinheiro porque não se importa... essa pessoa não liga pra você e você pode até pegar alguma coisa.” (Lucia, 28) “Quando eu decidi fazer, eu pensei: ‘É relativamente barato, você está em casa, você pode estar com alguém e você não está em um lugar clandestino. Depois disso, demorou tanto que eu achava que eu devia ter escolhido outra opção. Porque do outro jeito, você acaba em um dia, você sai e acabou. Começa e acaba no mesmo dia que você foi examinada, mas quando aquele momento de merda passa, acabou. Mas com o comprimido, continua indo e você não sabe se deve tomar outra dose ou não.” (Andrea, 21) As circunstâncias em que o aborto acontece, a clandestinidade, os riscos dela decorrentes e a qualidade da informação que as mulheres podem obter foram particularmente significativas para algumas das mulheres. “Outras opções são mais complicadas porque você precisa da intervenção de um médico, um médico que esteja cometendo um crime; você entra em uma relação perversa porque você está subornando o profissional para que ele arrisque sua licença… então, neste sentido, os comprimidos são um milhão de vezes melhor.” (Victoria, 33) “Eu conheço mulheres pra quem os comprimidos não funcionaram. Para mim, isso depende de como você toma e do que você sabe antes… eu conheço pessoas que tomaram os comprimidos várias vezes e nada aconteceu. Por sorte, os bebês não foram afetados porque tinha uma chance de algo acontecer. A informação realmente conta. (Claudia, 24) 157


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Por fim, as mulheres falaram sobre escolha e autonomia na tomada de decisões, valorizando especialmente a opção pela privacidade do processo de interrupção da gravidez, sem a interferência de estranhos. “Os comprimidos podem mudar a sua vida, ter a opção de decidir o que você quer fazer com o seu corpo… Eu vejo como pílulas de controle de natalidade, você toma e não precisa explicar por que tomou, elas lhe dão autonomia e uma privacidade em que até a mulher mais solitária do mundo, que não tem ninguém para confiar, pode tomá-los. Então eu acho que esse aspecto, a autonomia, é essencial, por que apesar de tudo, é o seu corpo. Eu acho que as outras opções sempre incluem uma terceira pessoa com quem você tem que negociar e sempre que você tem que negociar, há algo a perder… quando você tem os comprimidos na sua mão você pode fazer o que você quiser.” (Victoria, 33)

Conclusões Esse estudo explorou a experiência das mulheres com o aborto medicamentoso em um contexto legalmente restrito. Assim como em vários outros países da América Latina, a situação do aborto na Argentina vem mudando nos últimos anos devido a decisões judiciais a favor do acesso das mulheres ao aborto legal e à introdução de mudanças nas políticas públicas, particularmente no que se refere às normas que regulam o acesso ao aborto legal23,29,30. Ao mesmo tempo, o uso doméstico do misoprostol tem sido uma alternativa proposta por grupos de mulheres, organizações sociais e equipes de saúde em algumas unidades públicas de saúde para mulheres que lidam com a gravidez indesejada. A informação transmitida boca a boca foi o meio mais comum para as mulheres identificarem os serviços de orientação telefônica, os sites com informações e orientações corretas e sensíveis às questões de gênero, as unidades de saúde acessíveis e amigáveis31, organizações comunitárias que realizam atividades educativas e oferecem materiais informativos para apoiar as mulheres32, serviços públicos de saúde que trabalham com a abordagem da redução de danos33, um ambiente cultural aberto ao debate sobre aborto34-36 e o uso extensivo de misoprostol para a interrupção da gravidez33,36. Os resultados relatados aqui devem, assim, ser interpretados levando-se em consideração esse contexto em transformação. A janela de oportunidades sem precedentes criada pelo uso do misoprostol fica lado a lado das barreiras históricas 158

- legais e ilegais - ao acesso ao aborto seguro. As mulheres que se beneficiam desse novo cenário ainda vivem no contexto cultural em que a ilegalidade está profundamente enraizada, que produz estigma social e barreiras emocionais que limitam a aceitação da decisão de realizar um aborto. Os resultados mostram que as mulheres identificam muitas vantagens no aborto medicamentoso. Assim como em outros estudos realizados na região, aqui as mulheres também valorizaram bastante a possibilidade de manter a privacidade do processo de abortamento, a possibilidade de escolher dia, lugar e hora para tomar os comprimidos, a segurança de vivenciar processo fisiológico sem intervenção de pessoas desconhecidas e a possibilidade de ter alguém próximo para cuidar delas. O fato de que as mulheres vivem no contexto da clandestinidade aponta para a importância da informação e do aconselhamento16, 26. As mulheres acessaram as informações a partir de diferentes fontes e ficaram particularmente preocupadas com a inconsistência, a fragmentação e imprecisão das mesmas. A informação obtida foi suficiente para confiar no método e prosseguir, mas, muitas vezes elas sentiram que o conhecimento que tinham não era suficiente, o que lhes causou angústia e insegurança. Hoje, há mais informação disponível do que no passado16, mas, aparentemente, ainda há muito menos do que o que as mulheres precisam. Além disso, essas informações não dão conta da grande variedade de aspectos do processo de aborto que preocupam as mulheres: intensidade do sangramento, se e quando se deve repetir a dose, como avaliar os coágulos, como lidar com medo, ansiedade, dor e culpa, entre outros. As mulheres procuraram ativamente orientações que lhe ajudassem a tomar uma decisão e/ou realizar o aborto, obtendo-as em diferentes fontes: serviços telefônicos de informação, parentes e amigos, material impresso e profissionais de saúde8. As particularidades do método, combinadas às restrições legais para o envolvimento de profissionais de saúde, deixa o aborto nas mãos das mulheres. Mas, atualmente, os grupos e indivíduos comprometidos a apoiar o aborto legal tornam o aconselhamento mais disponível. Ao mesmo tempo, o serviço telefônico e os seus materiais informativos foram recursos de muito valor, particularmente para aquelas mulheres mais assertivas e que tinham maior facilidade para usar a internet e lidar com impressos. Para as mulheres que se sentiam mais vulneráveis, o


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contato face a face e o apoio de uma unidade de saúde acolhedora foram mais adequados às suas necessidades. Além disso, a “autoridade moral” dos profissionais de saúde ajudou a dissipar suas angústias e a lhes dar mais legitimidade para lidar com a situação e com as decisões. Nossos achados revelam que as mulheres envolveram e confiaram nos seus parceiros, na família e/ou nos amigos durante o processo do aborto. A “natureza” do aborto medicamentoso e o desejo das mulheres de ter alguém ao seu lado foi essencial para elas8,26,37. Embora estudos recentes na América Latina demonstrem que as mulheres usam o aborto medicamentoso por que não têm outra alternativa, as mulheres nesse estudo optaram pelo aborto medicamentoso depois de um processo cuidadoso de tomada de decisões8,37,38. A decisão final só foi tomada quando as vantagens e a segurança dos comprimidos se tornaram claras. Embora pequeno e não representativo, os resultados desse estudo demonstram que apesar do ambiente legalmente restritivo, as mulheres tiveram acesso a informações, a aconselhamento e ao misoprostol e, no final, puderam decidir se realizariam um aborto e se estavam aptas a agir para isso, tendo ou não o apoio de um profissional de saúde. Para as mulheres, esse é um método desafiador mas aceitável e econômico. No entanto, também expressaram muitas dúvidas e incertezas, nem todas explicáveis pelo ambiente de clandesti-

nidade. Nesse contexto, o aborto medicamentoso fica inteiramente nas mãos das mulheres, o que representou um fardo pesado para algumas delas. É necessário muita autoconfiança para passar por esse processo sem hesitação. Na Argentina, deve-se redobrar os esforços para a melhoria das leis, políticas e serviços de modo a se garantir as melhores condições possíveis para o uso do aborto medicamentoso. Deve-se disponibilizar a mifepristona e o misoprostol para se criar um ambiente permissivo. Ao mesmo tempo, dada a heterogeneidade das mulheres e de suas experiências e circunstâncias de vida, deve-se diversificar a oferta de fontes de informação e métodos de aborto.

Agradecimentos As autoras agradecem o apoio técnico e financeiro da HRP (PNUD/UNFP/UNICEF/OMS/Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Treinamento em Pesquisa em Reprodução Humana do Banco Mundial). Agradecemos às mulheres que compartilharam suas experiências e confiaram em nossa equipe para falar sobre um momento tão significativo de suas vidas. Gostaríamos de agradecer à direção e à equipe do hospital que nos apresentou às mulheres. Sem sua ajuda o estudo não seria possível. Gostaríamos de agradecer imensamente ao compromisso e sensibilidade de Ana Aguilera, Sonia Ariza, Paula Bilder e Tamar Finzi na condução das entrevistas.

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Résumé Cet article présente les conclusions d’une étude qualitative de l’expérience d’habitantes de l’Aire métropolitaine de Buenos Aires, Argentine, qui ont utilisé le misoprostol pour provoquer un avortement. Nous avons demandé aux femmes la portée des décisions qu’elles ont dû prendre, leurs émotions, l’expérience physique, les stratégies auxquelles elles ont eu recours, notamment demander des conseils de santé et gérer un avortement médicamenteux clandestin, et leur évaluation globale de l’expérience. Un plan d’entretien approfondi a été utilisé. Les femmes avaient utilisé le misoprostol et demandé des conseils ou des soins dans un hôpital public (n=24) ou bien elles avaient utilisé le misoprostol selon les conseils d’une ligne d’assistance, les informations sur Internet ou les conseils d’autres femmes (n=21). Quatre étapes ont été identifiées dans l’expérience des femmes : comment elles ont décidé d’interrompre la grossesse, comment elles ont obtenu le médicament, comment elles ont pris les comprimés et des réflexions sur l’issue, qu’elles aient ou non demandé des conseils médicaux. La sécurité et la confidentialité sont des facteurs déterminants de la décision de pratiquer un avortement médicamenteux. L’accès aux médicaments était le principal obstacle, nécessitant une ordonnance ou une pharmacie compréhensive. Les informations correctes sur le nombre de comprimés à utiliser et les intervalles de dosage étaient les moins faciles à obtenir et ont suscité des inquiétudes. La possibilité de choisir un moment d’intimité et d’être accompagnée par un proche a été soulignée comme un avantage unique de l’avortement médicamenteux. Il faudrait redoubler d’efforts pour améliorer les lois, les politiques et la prestation de services d’avortement en Argentine afin de garantir les meilleures conditions possibles pour l’utilisation de l’avortement médicamenteux par les femmes.

Resumen Este artículo presenta los hallazgos de un estudio cualitativo que explora las experiencias de las mujeres que viven en el Área Metropolitana de Buenos Aires, en Argentina, con el uso de misoprostol para inducir un aborto. Les preguntamos a las mujeres acerca de una variedad de decisiones que tuvieron que tomar, sus emociones, la experiencia física, las estrategias que necesitan utilizar, tal como buscar consejos sobre servicios de salud y para lidiar con un aborto con medicamentos clandestino, así como sobre su evaluación general de la experiencia. Se utilizó un programa para entrevistas a profundidad. Las mujeres habían usado misoprostol y buscado consejería o atención en un hospital público (n=24), o habían usado misoprostol basándose en los consejos de una línea local de atención telefónica, información del internet o de otras mujeres (n=21). Se identificaron cuatro etapas en las experiencias de las mujeres: cómo tomaron la decisión de interrumpir el embarazo, cómo obtuvieron el medicamento, cómo usaron las tabletas, y sus reflexiones sobre el resultado independientemente de que hayan o no hayan buscado consejos médicos. La seguridad y privacidad fueron clave para decidir usar el método de aborto con medicamentos. El acceso al medicamento fue el principal obstáculo, que requirió una receta o una farmacia con personal amigable. La información correcta sobre el número de tabletas a usar y los intervalos de dosis fue la manera menos fácil de obtener y causó inquietudes. La posibilidad de escoger un momento de privacidad y estar acompañada de una persona cercana se destacó como una ventaja única del aborto con medicamentos. Es imperativo reduplicar los esfuerzos por mejorar la ley, política y prestación de servicios referentes al aborto en Argentina a fin de asegurar las mejores condiciones posibles para el uso del aborto con medicamentos por parte de las mujeres.

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Segurança, eficácia e aceitação do aborto medicamentoso com mifepristone e misoprostol no primeiro trimestre de gestação, em ambulatórios de unidades básicas de saúde na Cidade do México* Patricio Sanhueza Smith,a Melanie Peña,b Ilana G Dzuba,c María Laura García Martinez,d Ana Gabriela Aranguré Peraza,e Manuel Bousiéguez,f Tara Shochet,g Beverly Winikoffh a Coordenador de Saúde Reprodutiva, Secretaria de Saúde da Cidade do México b Diretora, Projetos de Saúde Gynuity, Nova York, EUA c Associada Sênior de Programa, Projetos de Saúde Gynuity, Nova York, EUA. Contato: idyuba@gynuity.org d Diretora do Programa de Aborto Legal, Hospital Materno Infantil Inguarán, Cidade do México e Diretora da Clínica de Saúde Reprodutiva, Centro de Saúde Beatriz Velasco de Alemán, Cidade do México f Consultora independente, Cidade do México g Associada de Programa, Projetos de Saúde Gynuity, Nova York, EUA h Presidente, Projetos de Saúde Gynuity, Nova York, EUA

Resumo: São extensas as evidências relacionadas à eficácia e aceitabilidade do aborto medicamentoso no período de 63 dias desde o último ciclo menstrual (DUCM). Nos ambulatórios da Secretaria de Saúde da Cidade do México (SSCM), o uso de mifepristone e misoprostol para o aborto medicamentoso é a abordagem de escolha para a assistência ao aborto nessa fase da gravidez. Estudos recentes demonstram a permanência de altas taxas de aborto até os 70 dias DUCM. Com o objetivo de expandir o acesso a serviços de aborto previsto em lei na Cidade do México (onde o aborto é legal até 12 semanas DUCM), esse estudo procurou analisar a eficácia e a aceitabilidade da abordagem ambulatorial padrão para o aborto nesse período em duas unidades da SSCM. Participaram do estudo 1001 mulheres que tentaram interromper a gravidez e que receberam 200mg de mifepristona, seguidas de 800 ug de misoprostol 24 a 48 horas depois. Pediu-se às mulheres que retornassem à clínica uma semana depois para avaliação. A grande maioria das mulheres (93.3% versus 95% IC 91.6-94.8) conseguiu completar o processo. As mulheres com gestações de menos de oito semanas DUCM obtiveram taxas de sucesso significativamente mais altas do que mulheres na nona e décima semana (94.9% versus 90.5%; p=0.01). A diferença nas taxas de sucesso entre a nona e décima semana não foi significativa (90% versus 91.2%; p = 0.71). A maioria das mulheres achou os efeitos colaterais (82.9%) e o uso do misoprostol (84.4%) bastante aceitável ou aceitável. Esse estudo oferece evidência adicional para a defesa do uso ambulatorial do aborto medicamentoso em gestações de até 10 semanas DUCM. Palavras-chave: aborto medicamentoso, mifepristona, misoprostol, México O aborto medicamentoso com a combinação de mifepristona e misoprostol é um método seguro e eficaz de interrupção de gravidez que vêm sendo usado por milhões de mulheres em todo o mundo nos últimos 25 anos. Há extensa evidência relacionada à eficácia e aceitabilidade que apoia o uso ambulatorial desse procedimento no período de até 63 dias depois do último ciclo 162 www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf Journal contents online: www.rhm-elsevier.com

menstrual (DUCM). 1–6 Durante essa fase da gravidez, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a administração de 200 mg de mifepristona, seguida de 800 ug de misoprostol por via oral.7 Esse protocolo é utilizado como rotina para o aborto medicamentoso em unidades * Até 70 dias desde a última menstruação. Doi: (do10.1016/S0968-8080(15)43825-X artigo original) 10.1016/S0968-8080(15)43825-X Doi:

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P Sanhueza Smith, et al. Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 19–26 P Sanhueza Smith, et al. Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 162-169

ambulatoriais da Secretaria de Saúde da Cidade do México (SSCM),6,8 onde aproximadamente 71% das mulheres que chegam aos serviços realiza um aborto medicamentoso.9 No México, o aborto é permitido no primeiro trimestre da gravidez e o primeiro registro de mifepristona é de 2011. Mais ou menos na mesma época, um estudo sobre aborto medicamentoso até 63 DUCM foi conduzido entre 1000 mulheres que buscaram serviços em diferentes unidades ambulatoriais da SSCM, confirmando a alta eficácia e aceitabilidade do esquema mifepristona-misopostol.6 Esses achados auxiliaram a SSCM a definir o aborto medicamentoso com mifepristona e misoprostol como o procedimento de rotina para a assistência ao aborto. Devido à alta demanda pelo aborto medicamentoso e as vantagens que oferece quando comparado à sucção (incluindo redução de custos e tempo de internação), a Secretaria procura oferecer o aborto medicamentoso em ambulatório para o máximo possível de mulheres que procura por este tipo de assistência no primeiro trimestre de gestação. Um estudo anterior sobre as características das mulheres que demandam aborto legal nas unidades da SSCM identificou que são de diferentes grupos etários, status conjugal e paridade e que uma grande parte delas é católica.10 Em 2012, um estudo realizado nos Estados Unidos usando 200 mg de mifepristona + 800 ug de misoprostol oral demonstrou que esse esquema pode ser utilizado até 64–70 dias e 57–63 dias DUCM, com eficácia (92.8% e 93.5%, respectivamente) e satisfação (88.3% e 87.4% satisfeitas ou muito satisfeitas) comparáveis.11 Além disso, as diretrizes da Federação Nacional de Aborto dos EUA agora incluem o aborto ambulatorial medicamentoso com mifepristona e misoprostol até 70 dias DUCM.12 Esse estudo pretende colaborar com o processo de extensão do protocolo clínico para o aborto legal como parte da rotina de unidades da SSCM, analisando a eficácia e aceitabilidade do aborto medicamentoso até a décima semana de gestação.

Metodologia Esse estudo foi um ensaio clínico aberto (tanto os profissionais quanto as participantes sabiam que o procedimento estava sendo oferecido). As mulheres que solicitaram a interrupção da gravidez eram pacientes do ambulatório do 20

Hospital Materno Infantil Inguarán e da clínica de saúde reprodutiva do Centro de Saúde Beatriz Velasco de Alemán. Foram convidadas a participar do estudo as mulheres elegíveis para o uso dos medicamentos abortivos e que estivessem grávidas de até 70 dias DCUM. Aquelas interessadas em participar aceitaram as seguintes condições: se submeter à intervenção cirúrgica (sucção) se necessário, deixar seus dados para acompanhamento, ter acesso fácil a telefone e transporte de emergência e cumprir o protocolo do estudo. O consentimento foi dado por escrito e o estudo foi aprovado pela Comissão de Ética, Biosegurança e Pesquisa da Secretaria de Saúde da Cidade do México. Todas as participantes receberam a mesma dosagem de 200mg de mifepristona (Zacafemyl, Rede Farmacêutica Inteligente) por via oral ná clínica, seguido por 800 ug de misoprostol (4 x 200 ug; ou Cytotec [Pfizer] ou Cyrux [Llama Serral]) para serem tomados em casa 24 a 48 horas depois da dose tomada na unidade de saúde. As mulheres foram instruídas a colocar o misoprostol na cavidade bucal, entre a gengiva e a bochecha (dois comprimidos por bochecha), mantendo-os ali por 30 minutos, antes de engolir os resquícios. Analgésicos foram prescritos de acordo com o padrão assistencial de cada unidade de saúde e pediu-se às participantes que ligassem para os serviços caso tivessem dúvidas ou preocupações. Cada unidade de saúde recebeu um telefone celular para facilitar a comunicação com as participantes do estudo. Foi pedido às participantes que retornassem à clínica sete dias após tomarem o mifepristona para a avaliação de sua situação. Às mulheres que continuaram grávidas, recomendou-se a sucção. Mulheres com gestações inviáveis, incluindo a gestação anembrionária (saco gestacional vazio), com retenção de produtos da concepção ou sangramento foram dadas as opções de tomar uma dose adicional de 800 ug de misoprostol por via oral, de aguardar o processo fisiológico ou de realizar a sucção. Às que optaram pelas duas primeiras opções pediu-se que retornassem uma semana depois para uma nova avaliação. Na persistência de uma gravidez inviável ou de resquícios embrionários significativos, a indicação foi a sucção. Antes de deixar o estudo, as mulheres responderam a uma série de perguntas sobre a experiência com o aborto medicamentoso. O resultado principal do estudo foi a eficácia do método, definida como um aborto completo 163


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sem necessidade de sucção em nenhum momento. Resultados adicionais incluíram o grau de sangramento, de dor e de outros efeitos colaterais, o número de casos que precisaram de assistência adicional e a aceitabilidade das mulheres. Com base nas taxas de sucesso dos estudos de Winikoff de 2008 (< 63 dias DCUM: 96.2%)2 e de 2012 (57–63 dias DCUM: 93.5%; 64–70 dias DCUM: 92.8%),11 considerou-se que uma amostra de 456 mulheres seria suficiente para se se chegar a uma taxa de sucesso de 95% +/– 2%. A amostra foi extendida para 1000 mulheres para incorporar as altas taxas de perdas esperadas no período de acompanhamento e a homogeneidade entre as unidades médicas. Os dados foram analisados com a versão 19 do SPSS (IBM, Armonk, NY, EUA) e versão 11 do STATA (StataCorp, College Station, Texas, EUA).

Resultados Participaram do estudo, 1001 mulheres entre janeiro e março de 2012. Dessas, quarenta e uma não participaram do acompanhamento ou não pudemos coletar dados de acompanhamento; assim, elas só foram incluídas na análise do perfil das participantes, sendo excluídas das análises adicionais. Uma mulher com gestação de 73 dias foi selecionada erroneamente para o estudo, mas seus dados foram incluídos na análise. As características das participantes podem ser vistas na tabela 1. Cerca de dois terços (65.3%) das

Tabela 1. Característica das Participantes (N=1.001) Idade em anos: média (mín-máx)

24 (13–45)

Paridade: média (min-máx)

2 (1–8)

Abortos anteriores: nº (%)

181 (18.1%)

Abortos medicamentosos anteriores: nº (%)

124/181 (68.5%)

Duração da gestação DCUM, em dias: média (min-máx)

52 (25–73)

Dias desde o último ciclo menstrual (DCUM) : n (%) ≤56 dias 654 (65.3%) 57–63 dias 196 (19.6%) 151 (15.1%) 64–70 diasa tinha 73 dias DCUM. a Uma mulher mulheres tinha 73 dias DCUM.

mulheres estavam com ≤56 dias DCUM, um quinto (19.6%) com 57–63 dias DCUM e 15.1% com 64-70 dias DCUM. Apenas uma participante do estudo relatou ter tomado mifepristona e misoprostol de maneira diferente à instruída, usando o misoprostol cinco dias após o mifepristona. A grande maioria das mulheres (93.3%; 95% IC: 91.6–94.8) completou o processo de aborto sem necessidade de sucção (Tabela 2). Os motivos para as 64 sucções realizadas foram: gravidez em curso (n = 15), complicações de sangramento (n = 17), gestação anembrionária (n = 14), aborto incompleto ao fim

Tabela 2. Resultados do aborto medicamentoso: nº (%) (N=960)

Aborto completo

≤56 dias (n=622)

57−63 dias (n=190)

64−70 diasa (n=148)

Total (n=960)b

590 (94.9)

171 (90.0)

135 (91.2)

896 (93.3)

Intervenção cirúrgica Gravidez persistente Sangramento Gestação anembrionária Processo incompleto ao fim do estudo Indicação clínicac Motivo psicológico

32 4 7 11 10 0 0

(5.1) (0.6) (1.1) (1.8) (1.6) (0.0) (0.0)

19 (10.0) 6 (3.2) 8 (4.2) 3 (1.6) 2 (1.1) 0 (0.0) 0 (0.0)

13 5 2 0 3 2 1

(8.8) (3.4) (1.4) (0.0) (2.0) (1.4) (0.7)

Retornou para consulta de acompanhamento

26 (4.2)

11 (5.8)

11 (7.4)

64 15 17 14 15 2 1

(6.7) (1.6) (1.8) (1.5) (1.6) (0.2) (0.1)

48 (5.0)

a Uma mulher tinha 73 dias DCUM. b Excluindo-se 41 mulheres que não retornaram para o acompanhamento. c Outras razões médicas para intervenção, tais como suspeita de infecção/doença.

164

21


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Tabela 3. Efeitos colaterais nº (%) ≤56 dias (n=622) Efeito colateral Febre/Calafrio Diarréia Náusea Vômito Dores de cabeça Fraqueza/Indisposiçã Tontura

270 (43.4) 277 (44.5) 166 (26.7) 131 (21.1) 84 (13.5) 81 (13.0) 62 (10.0)

Nível de dor (utilizando uma escala de 1 a 7)

57−63 dias (n=190) 91 73 54 51 26 25 20

64−70 diasa (n=148)

Total (n=960)

81(54.7) 78(52.7) 39(26.4) 39(26.4) 27(18.2) 31(20.9) 11 (7.4)

442 (46.0) 428 (44.6) 259 (27.0) 221 (23.0) 137 (14.3) 137 (14.3) 93 (9.7)

(47.9) (38.4) (28.4) (26.8) (13.7) (13.2) (10.5)

5.26

5.55

5.59

5.37

Dor durante o tratamento Menor do que o esperado Como esperado Maior que o esperado

(n=603) 167 (27.7) 182 (30.2) 254 (42.1)

(n=182) 40 (22.2) 55 (30.2) 87 (47.8)

(n=144) 27 (18.8) 51 (35.4) 66 (45.8)

(n =929) 234 (25.2) 288 (31.0) 407 (43.8)

Sangramento durante o tratamento Menor do que o esperado Como esperado Maior que o esperado

(n=609) 195 (32.0) 275 (45.2) 139 (22.8)

(n=183) 45 (24.6) 84 (45.9) 54 (29.5)

(n=144) 32 (22.2) 67 (46.5) 45 (31.3)

(n=936) 272 (29.1) 426 (45.5) 238 (25.4)

a Uma mulher tinha 73 dias DCUM.

do estudo (n = 15), intervenção por recomendação clínica (n = 2) e por motivos emocionais (n = 1). A taxa de aborto completo variou de acordo com o local de estudo: 98.5% vs. 92.0%.

As mulheres com ≤8 semanas DCUM (≤56 dias) obtiveram taxas de sucesso de aborto com maior nível de significância do que as mulheres na nona semana (94.9% vs. 90%, p = 0.02), mas a signifi-

Figura 1. Gravidade dos efeitos colaterais

Grave 6.9

Médio/Moderado

12.5

Nenhum 3.8 3.8

37.7

33.5

23.2

19.2

3.5

4

1.1

10.7

10.3

8.5

3.5

13.2

2.4

Diarréia

22

Febre/ Calafrio

Náusea

Vômito

Fraqueza/ Dores de Indisposiçã cabeça

Tontura

Outro

Sem efeito colateral

165


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cância estatística não se manteve quando se comparou as mulheres com ≤8 semanas DCUM àqueles na décima semana (94.9% vs. 91.2%, p = 0.12). As taxas de sucesso entre a nona e décima semana não apresentaram diferenças significantes (90.0% vs. 91.2%; p = 0.85). Vinte mulheres (2.1%) foram atendidas em uma outra unidade de saúde (não incluída no estudo) em busca de assistência relacionada ao aborto depois de terem recebido os dois medicamentos; essas mulheres apresentaram maior chance de serem submetidas à intervenção cirúrgica do que as mulheres que foram assistidas nas clínicas incluídas nos estudos (70.0% vs. 5.3%; p < 0.001). Setenta participantes (7.0%) ligaram para a clínica para se consultar sobre o processo de aborto; não houve diferença quanto a esse aspecto entre as mulheres com dez e nove semanas DCUM (8.6% vs. 11.2%; p = 0.48; dados não mostrados). Os efeitos colaterais mais comuns identificados durante o processo de aborto foram febre/ calafrios (46%), diarréia (44.6%), náusea (27%) e vômito (23%) (tabela 3). A gravidade dos efeitos colaterais é apresentada na Figura 1. Pouco mais da metade das mulheres (56.2%) relatou que a dor sentida foi menor ou igual ao que esperavam e três quartos (74.6%) das acharam que o sangramento foi menor ou igual ao esperado. Aproximadamente a mesma proporção de mulheres na décima e nona semana relatou ter sentido mais dor do que o esperado (45.8% vs. 47.8%, p = 0.74). O principal nível de dor relatado (em uma escala de 1 a 7) não apresentou diferenças entre mulheres na nona e décima semana (5.59 vs 5.55. p = 0.79), mas foi mais alto e estatisticamente significante quando mulheres com 9 e 10 semanas DCUM foram comparadas àquelas com ≤56 dias DCUM (5.57 vs. 5.26; p = 0.003; dados não mostrados). Três quartos das mulheres (76.6%) consideraram que o processo de aborto medicamentoso não foi difícil ou foi apenas um pouco difícil, enquanto 9.5% achou que foi muito difícil (Tabela 4). A maioria das mulheres (86.9%) considerou os efeitos colaterais bastante aceitáveis ou aceitáveis; apenas 2.4% considerou-os inaceitáveis ou bastante inaceitáveis. A maior parte das participantes (84.4%) também considerou o modo como o misoprostol foi administrado bastante aceitável ou aceitável, com apenas 1.2% considerando o modo de uso inaceitável ou bastante inaceitável. Se outro aborto fosse necessário no futuro, 77.8% das mulheres optaria novamente 166

pelo aborto medicamentoso; apenas 2.9% optaria pela sucção e 19.3% não tinham nenhuma preferência. Para as mulheres, os melhores aspectos do aborto medicamentoso foram a facilidade ou conveniência (26%), a eficácia (24.4%), a qualidade da assistência recebida (11.7%), e a privacidade (8.5%). Para 16.3% não houve um nenhum aspecto positivo que merecesse ser destacado. Cãimbras e dores foram as características negativas relatadas com mais frequência (28.8%). Mais da metade (52.7%) das mulheres relataram que não houve aspectos negativos (dados não mostrados).

Discussão Esse estudo demonstrou que os protocolos ambulatoriais para o aborto medicamentoso podem ser extendidos até 70 dias DCUM com taxas de eficácia e aceitabilidade similares ao relatado em outros estudos com protocolos similares.11,13,14 Nesse estudo, a taxa total de persistência da gestação (1.6%) foi um pouco mais alta do que os 0.5% tipicamente relatados em estudos com mulheres com ≤63 dias.2,6 Eram esperadas, porém, maiores taxas de persistência da gestação na nona (3.2%) e décima (3.4%) semanas, o que é consistente com o estudo de Winikoff et al (2012), que encontrou taxas de 3.1% e 3.0%, respectivamente.11 Comparado a mulheres com até oito semanas de gestação, a chance de persistência de uma gravidez depois do aborto medicamentoso entre mulheres na nona e décima semanas aumenta de menos de uma mulher a cada 100 mulheres para menos de 4 mulheres a cada 100 mulheres. Essa taxa um pouco mais alta pode desestimular algumas mulheres quanto ao uso desse método de aborto, mas não se constitui necessariamente em um fator limitante para todas as mulheres. O aborto medicamentoso ambulatorial para mulheres com nove semanas DCUM é recomendado como procedimento de rotina pela Organização Mundial da Saúde. A inexistência de diferenças adicionais na taxa de gestação persistente quando usado por mulheres com dez semanas DCUM é uma evidência favorável à expansão do procedimento para mulheres nesse período gestacional. Mas cada mulher deve estar apta a decidir de modo informado sobre os procedimentos que considere melhor para ela. Nesse estudo, a taxa total de sucesso foi menor do que a encontrada em estudos anteriores na 23


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Tabela 4. Aceitabilidade do aborto medicamentoso como método ambulatorial: nº (%) ≤56 dias (n=622)

57−63 dias (n=190)

64−70 diasa (n=148)

Total (n=960)

Experiência com o aborto medicamentoso Nenhuma/pouca dificuldade Moderadamente difícil Bastante difícil

(n=616) 479 (77.8) 86 (14.0) 51 (8.3)

(n=189) 140 (74.1) 24 (12.7) 25 (13.2)

(n=147) 110 (74.8) 23 (15.6) 14 (9.5)

(n=952) 729 (76.6) 133 (14.0) 90 (9.5)

Aceitabilidade dos efeitos colaterais Bastante aceitáveis/aceitáveis Neutra Inaceitável/Bastante inaceitável

(n=594) 521 (87.7) 56 (9.4) 17 (2.9)

(n=181) 152 (84.0) 28 (15.5) 1 (0.6)

(n=141) 123 (87.2) 14 (9.9) 4 (2.8)

(n=916) 796 (86.9) 98 (10.7) 22 (2.4)

Aceitabilidade do misoprostol Bastante aceitável/aceitável Neutra Inaceitável/Bastante inaceitável

(n=592) 523 (88.3) 60 (10.1) 9 (1.5)

(n=180) 160 (88.9) 19 (10.6) 1 (0.6)

(n=144) 127 (88.2) 16 (11.1) 1 (0.7)

(n=916) 810 (88.4) 95 (10.4) 11 (1.2)

Preferred method for future abortion if needed Sucção Aborto medicamentoso Sem preferência

(n=622) 17 (2.7) 491 (78.9) 114 (18.3)

(n=190) 7 (3.7) 143 (75.3) 40 (21.1)

(n=148) 4 (2.7) 113 (76.4) 31 (20.9)

(n=960) 28 (2.9) 747 (77.8) 185 (19.3)

a Uma mulher tinha 73 dias DCUM.

Cidade do México(6) mas, aparentemente, isso não se deveu à inclusão de mulheres com gestações de 64–70 dias DCUM, uma vez que a taxa caiu bruscamente na nona semana. Isso pode ter ocorrido devido ao acaso ou em parte por causa da conduta de profissionais em outras unidades de saúde, que não integraram o universo de pesquisa. No México, as clínicas que não oferecem o aborto medicamentoso utilizam o procedimento-padrão para o aborto incompleto sem complicação, ou seja, mesmo sem indicação clínica as mulheres são hospitalizadas e tratadas com dilatação e curetagem. Não podemos descartar a presença de viés comportamental entre os profissionais que participaram do estudo, uma vez que eles sabiam da duração da gravidez. A heterogeneidade entre os profissionais, isso é, as diferenças na maneira como lidam clinicamente com os casos, pode também ter contribuído para as diferenças nas taxas de sucesso de cada unidade de saúde. O escore médio de dor foi mais alto entre as mulheres com gestações na nona e décima semana do que entre as outras participantes do estudo e esse diferença apresentou significância estatística. No entanto, os resultados foram tão similares que podem ser pouco relevantes do 24

ponto de vista clínico, ou seja, não apontam para a necessidade de estratégias diferentes para o manejo da dor. Mais importante, o escore médio de dor para as mulheres na décima semana foi quase idêntico ao das mulheres na nona semana, o que reforça a recomendação do aborto medicamentoso como rotina ambulatorial para mulheres com gestações de 64–70 dias. Esse estudo oferece evidências adicionais à literatura que recomenda o aborto medicamentoso ambulatorial para gestações de 70 dias (décima semana). Com base nestes resultados e na experiência obtida ao participar do estudo, a SSCM expandiu a assistência ambulatorial até a décima semana de gestação como parte da rotina. Oferecer o aborto medicamentoso como opção de tratamento para essa população expande o acesso das mulheres ao aborto e, tomando a participação nesse estudo como indicador, as mulheres com gestações de 64 a 70 dias DCUM podem representar 15% das usuárias do aborto medicamentoso. Com isso, pode-se economizar tempo e recursos dos profissionais e dos serviços de saúde. É possível que o aborto medicamentoso também seja uma opção para mulheres com gestações de mais de 70 dias DCUM, pois é pouco provável que a taxa de sucesso caia bruscamente aos 71 dias 167


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DCUM. Novas pesquisas são necessárias para explorar a eficácia após o primeiro trimestre. Além disso, à medida que a gravidez se desenvolve, tornando-se mais evidente na 11ª e 12ª semanas, é importante avaliar a aceitabilidade do aborto medicamentoso para as mulheres e para os profissionais, de modo a se determinar a viabilidade dessas opções nos serviços.

Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer a C.S Beatriz Velasco Alemán e H.M.I. Inguarán pelo importante trabalho nesse estudo, assim como às participantes, que tornaram essa análise possível. Também gostaríamos de agradecer a Jennifer Britton pelo auxílio inestimável no manejo e análise de dados.

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P Sanhueza Smith, et al. Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 18–26 P Sanhueza Smith, et al. Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 162-169

Résumé De nombreuses données existent sur l’efficacité et l’acceptabilité de l’avortement médicamenteux jusqu’à 63 jours depuis la date des dernières règles (DDR). Dans les centres ambulatoires du Secrétariat de la santé de Mexico (SSDF), l’avortement médicamenteux sous mifépristone et misoprostol est la méthode de première intention pour l’interruption de grossesses de cet âge gestationnel. Des recherches récentes montrent des taux élevés d’avortement complet jusqu’à 70 jours après la DDR. Pour élargir l’accès à des services d’avortement légal à Mexico (où l’avortement est autorisé jusqu’à 12 semaines après la DDR), cette étude a tenté d’évaluer l’efficacité et l’acceptabilité de la méthode ambulatoire standard jusqu’à 70 jours dans deux centres du SSDF. Mille et une femmes souhaitant avorter ont été recrutées et ont reçu 200 mg de mifépristone suivis de 800 g de misoprostol 24– 48 heures plus tard. Elles ont été invitées à revenir au centre une semaine après pour évaluation. Chez la grande majorité des patientes (93,3% ; IC 95% : 91,6–94,8), l’avortement était complet. Les femmes enceintes ≤8 semaines après la DDR avait des taux de réussite sensiblement plus élevés que les femmes à 9 ou 10 semaines (94,9% contre 90,5% ; p = 0,01). La différence dans les taux de réussite entre la 9e et la 10e semaine était non significative (90,0% contre 91,2% ; p = 0,71). La majorité des femmes ont jugé les effets secondaires (82,9%) et l’utilisation du misoprostol (84,4%) très acceptables ou acceptables. Cette étude fournit des données supplémentaires soutenant un régime étendu d’avortement médicamenteux en ambulatoire jusqu’à 10 semaines après la DDR.

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Resumen Existe extensa evidencia respecto a la eficacia y aceptabilidad del aborto con medicamentos hasta los 63 días desde la fecha de la última menstruación (FUM). En las unidades de salud ambulatorias de la Secretaría de Salud del Distrito Federal de México (SSDF), el aborto con medicamentos inducido con mifepristonamisoprostol es el enfoque de primera línea en los servicios de aborto para esta etapa de la edad gestacional. Recientes investigaciones demuestran continuas altas tasas de aborto completo hasta concluidos los 70 días desde la FUM. Con el fin de ampliar el acceso a los servicios de interrupción legal del embarazo en el Distrito Federal (donde el aborto es legal hasta las 12 semanas desde la FUM), este estudio buscó evaluar la eficacia y aceptabilidad del enfoque ambulatorio estándar hasta los 70 días en dos puntos de entrega de servicios de la SSDF. Mil y una mujeres que buscaban interrumpir su embarazo fueron inscritas y administradas una dosis de 200 mg de mifepristona seguida de 800 µg de misoprostol, 24 a 48 horas después. Se les pidió a las mujeres que regresaran a la clínica una semana después para la evaluación. La gran mayoría de las mujeres (93.3%; 95% IC: 91.6–94.8) tuvo un aborto completo. Las mujeres con embarazos ≤8 semanas desde la FUM tuvieron tasas de eficacia significantemente más altas que las mujeres en la novena o décima semanas (94.9% vs. 90.5%; p = 0.01). La diferencia en las tasas de eficacia entre la novena y décima semanas no fue significante (90.0% vs. 91.2%; p = 0.71). La mayoría de las mujeres encontraron que los efectos secundarios (82.9%) y el uso de misoprostol (84.4%) eran muy aceptables o aceptables. Este estudio ofrece evidencia adicional que respalda un régimen de aborto conmedicamentos extendido hasta concluidas las 10 semanas desde la FUM para usuarias ambulatorias.

169


Aborto medicamentoso e aspiração manual intrauterina (AMIU) como procedimentos para o aborto previsto em lei protegem a saúde da mulher e reduzem os custos do sistema de saúde: resultados da Colômbia. Maria Isabel Rodrigueza, Willis Simancas Mendozab, Camilo Guerra-Palacioc, Nelson Alvis Guzmand, Jorge E Tolosae a Professora adjunta, Universidade de Ciências & Saúde de Oregon, Portland, Oregon, EUA. Contato: rodrigmaohsu.edu b Gerente e diretor, Clínica Maternidade Rafael Calvo, Cartagena, Colômbia c Médico Gineco-obstetra, Hospital Geral de Medellín e Profamília, Medellín, Colômbia d Diretor, Grupo de Pesquisa e Docência, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade de Cartagena, Cartagena, Colômbia e Professor associado, Universidade de Ciências & Saúde de Oregon, fundador da Rede Global de Saúde Perinatal e Reprodutiva, Portland, Oregon, EUA; coordenador da FUNDARED-MATERNA, Bogotá, Colômbia

Resumo: A maioria dos abortos na Colômbia continua sendo realizada fora do sistema de saúde em uma grande diversidade de condições, nas quais a maior parte das mulheres se automedicam com misoprostol obtido em um próspero mercado negro. Conduzimos uma análise comparativa dos custos para o sistema de saúde de três abordagens para a assistência ao aborto na Colômbia: a assistência a complicações do aborto inseguro e do aborto previsto em lei, o aborto provocado por misoprostol e o aborto provocado por AMIU. Foram analisadas as despesas hospitalares de três instituições: duas grandes maternidades e uma clínica especializada em saúde reprodutiva, incluindo taxas de procedimento e complicações e custos de diagnóstico. A maioria dos atendimentos (94%) foi para a assistência pós-aborto nos hospitais; os outros 6% foram para abortos legais. Entre as mulheres que realizaram o aborto legal só ocorreu uma pequena complicação, que representa uma taxa de menos de 1%. Entre as mulheres que necessitaram da assistência pós-aborto, 5% teve complicações durante o tratamento, principalmente infecções ou hemorragias. Os abortos previstos em lei estiveram associados a menos complicações para as mulheres e a custos mais baixos para o sistema de saúde, quando comparados à assistência pós-aborto. Com base nos nossos resultados, para cada 1000 mulheres recebendo assistência pós-aborto - ao invés de realizar um aborto legal no sistema de saúde - 16 sofreram complicações que poderiam ter sido evitadas e o sistema de saúde gastou US $48,000 com seu tratamento. A ampliação do acesso das mulheres ao aborto seguro apenas reduziria as complicações e seria uma estratégia para reduzir custos para o sistema de saúde. Palavras-chave: aborto medicamentoso, aborto por AMIU, dilatação & curetagem (D&C), aborto inseguro, assistência pós-aborto, custos de assistência à saúde, análise de decisões, Colômbia. O aborto inseguro tem custos sociais, econômicos e pessoais significativos1. Também contribui imensamente para o aumento das taxas de morbimortalidade materna, especialmente em países com legislação restritiva2,3. Há uma evidência clara de que a restrição do acesso ao aborto legal está associada a taxas mais altas de aborto inseguro e danos à saúde das mulheres. Na América Latina, onde a legislação é bastante restrita, o aborto inseguro é responsável por 12% das mortes maternas3. Na Colômbia, estima-se que o aborto inseguro é a quinta maior causa de mortalidade materna4,5. Nesse artigo, discutimos as consequências das restrições do acesso ao aborto seguro e os seus custos para o

sistema de saúde na Colômbia. Até 2006, o aborto era ilegal na Colômbia em todas as situações e apenas a assistência pós-aborto (APA) era oferecida pelo sistema de saúde6. A APA é uma forma de emergência obstétrica essencial para lidar com complicações de aborto, incluindo abortos incompletos. As intervenções utilizadas para a APA variam amplamente, dependendo do sistema de saúde. Tradicionalmente, são utilizadas intervenções de alto custo, sendo a mais comum a dilatação e curetagem (D&C). No entanto, as evidências apontam para a maior segurança e eficácia dos métodos medicamentosos ou de sucção quando comparados à D&C. A

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Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(14)43788-1

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


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Organização Mundial da Saúde recomenda o uso da sucção manual (AMIU) ou elétrica (AEIU) no lugar da D&C, uma vez que a D&C está associada a uma maior taxa de complicações7. Na Colômbia, no entanto, a maioria da APA ainda é realizada utilizando-se D&C sob anestesia geral9. Assim como em outros países, a criminalização do aborto na Colômbia estimula uma próspera indústria clandestina, onde as mulheres conseguem misoprostol no mercado negro e se automedicam ou são assistidas em clínicas clandestinas que não oferecem segurança6,8. Estima-se que antes da mudança da lei, em 2006, 58 mil mulheres eram admitidas anualmente nos hospitais que realizam a APA na Colômbia1,9. Em maio de 2006, a pressão de ativistas levou à descriminalização parcial do aborto na Colômbia10, que deixou de ser crime em três situações: quando a gravidez representa risco para a saúde ou para a vida da mulher, quando o feto apresenta anomalias incompatíveis com a vida e quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto8. Essas condições precisam ser comprovadas por um laudo médico e, em caso de estupro, um laudo jurídico também é necessário. Para a realização do aborto, a lei não especifica um limite de tempo de gestação nem requer a assinatura de especialistas11. Nos meses que se seguiram à mudança na lei, o Ministério da Saúde e Proteção Social da Colômbia aprovou as normas técnicas para a realização do aborto seguro e aprovou o uso do misoprostol como procedimento abortivo. Embora a reforma da lei de aborto seja uma pré-condição necessária para melhorar a segurança e a assistência às mulheres, ela não é suficiente para garantir o acesso ao aborto seguro. São limitadas as informações sobre o modo como essas mudanças nas políticas afetaram o acesso das mulheres ao aborto seguro na Colômbia. Relatos iniciais indicam que persistem desafios nesse campo5,8. A falta de conhecimento sobre os requisitos para o acesso legal aos serviços de aborto, assim como a pouca disponibilidade de médicos e instituições para oferecer o procedimento, restringiu a possibilidade das mulheres exercerem seus direitos sob a nova legislação8,12. Um estudo publicado em 2011, baseado em pesquisa com profissionais de saúde e em dados secundários nacionais, estimou que, apesar da reforma da lei, 99% dos abortos ainda eram realizados fora dos serviços de saúde, havendo uma chance maior de estarem associados a complicações agudas e de longo prazo, impondo maiores custos para os serviços1,7. A taxa de complicação encontra-

da foi de 56 a 65% para os abortos autoinduzidos ou realizados por parteiras tradicionais9. Também se estimou que apenas um terço das mulheres que sofreram complicações do aborto inseguro tiveram acesso ao sistema de saúde para tratamento9. Isso contrasta fortemente com a taxa de 0.3 a 1.8% de complicações menores encontrada em países em que não há restrições ao aborto seguro7,13. Na Colômbia, há barreiras de diferentes níveis para se obter um aborto seguro. O aborto continua sendo estigmatizado, o processo para realizar o aborto previsto em lei é complicado8 e apenas algumas unidades de saúde estão equipadas de forma adequada ou pretendem oferecer serviços de aborto. Atualmente, apenas 11% das unidades de saúde qualificadas para realizar o aborto legal realmente o fazem. Entre os motivos mencionados para não oferecer o aborto seguro, estão a falta de equipamentos, infraestrutura e profissionais capacitados. A D&C ainda é comumente utilizada tanto para o aborto previsto em lei quanto para a APA, provavelmente pelas dificuldades de acesso ao equipamento e à capacitação em AMIU9 e ao custo para obtê-lo. Dados sobre custos são úteis por que ajudam a determinar quais serviços devem ser implementados quando há escassez de recursos14,15. Nossa hipótese é que os custos atuais dos serviços de saúde com a assistência pós-aborto é maior do que o custo do aborto seguro. Mais especificamente, a adoção do aborto medicamentoso traria uma grande economia quando comparado aos custos do aborto por sucção. Para testar essa hipótese, esse estudo compara os custos de quatro procedimentos de assistência ao aborto: APA, aborto medicamentoso apenas com o misoprostol (AM), AMIU e D&C.

Métodos Utilizou-se o modelo de análise de decisões com o programa TreeAge (Williamstown, Massachusetts, EUA). A análise de decisão é uma ferramenta que permite a comparação passo-a-passo das probabilidades e resultados de diferentes opções, tais como a escolha entre métodos de aborto medicamentoso ou por sucção. Nesse estudo, construímos um modelo para facilitar a comparação entre diferentes estratégias para realizar o aborto no primeiro trimestre (Figura 1). Comparamos custos e complicações de todas as estratégias utilizadas atualmente na Colômbia: APA, AM apenas com misoprostol, AMIU ou D&C. O uso da análise de decisão permitiu examinar sistematicamente cada variável e os resultados de modelo sob diferentes circunstâncias. 171


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Figura 1. Modelo de análise de decisão Morte Complicação grave Hemorragia Complicações Aborto incompleto Dilatação & Curetagem

Complicação leve Infecção

Manejo cirúrgico

Assistência pós-aborto

Sem complicações

AMIU

Manejo clínico Aborto legal

O modelo foi reduzido para melhor compreensão - o mesmo percurso é seguido por mulheres que fazem o aborto legal. Todos as ramificações chegam aos mesmos resultados.

Essa metodologia também permitiu observar como os resultados podem ser generalizados para outras populações. O resultado principal foi o custo para cada tipo de procedimento de aborto. Os resultados secundários foram as complicações para a saúde. A perspectiva adotada foi a do sistema de saúde. Como foram removidas todas as informações de identificação de sujeitos e serviços antes de serem submetidas à análise, o Comitê de Ética da OMS e os conselhos institucionais de revisão por pares das unidades de pesquisa aprovaram a realização do estudo. O modelo foi construído com dados referentes a todas as pacientes de aborto atendidas durante o ano de 2012 em três unidades de saúde, selecionados por serem instituições com um alto volume de casos de aborto previsto em lei e APA, além de atenderem mulheres com aborto espontâneo**. Os dados sobre custos e desfechos do aborto foram obtidos a partir de uma amostra de conveniência dos prontuários médicos das três instituições, referentes ao período de um ano. Duas das três unidades eram maternidades públicas (Maternidade Rafael Calvo, em Cartagena, * Uma pequena proporção de mulheres teve aborto espontâneo. Elas foram incluídas na análise por que o manejo desse tipo de aborto também é afetado pelo uso de métodos ultrapassados (especialmente a D&C) e os serviços arcam com esses custos quando as mulheres procuram a APA. Não foi feita distinção entre as taxas de aborto espontâneo e provocado na base de dados, mas a taxa de aborto espontâneo foi explorada na análise de sensibilidade.

172

e Hospital Geral de Medellín). Propositalmente, foram selecionadas unidades fora de Bogotá para examinar a experiência de mulheres que não vivem na capital. Todas as instituições enviaram descrições dos protocolos utilizados para a realização do aborto previsto em lei e da APA. Os dois hospitais são unidades de saúde de grande porte, de nível secundário, com capacidade para atender mais de 8000 mulheres por ano, sendo locais preferenciais para a APA. Os atendimentos são feitos na sala de emergência e na ala ginecológica, utilizando-se D&C e AMIU. A escolha do procedimento dependia da presença de um profissional capacitado e do período do dia. Só havia profissionais capacitados em AMIU durante a semana e em horários específicos. O internamento noturno não era obrigatório em nenhuma das unidades. A terceira unidade de saúde foi uma clínica especializada em saúde reprodutiva, a Profamília Medellín, que é privada, sem fins lucrativos e integra uma rede nacional que oferece ampla assistência em saúde reprodutiva para mulheres e adolescentes, incluindo o aborto previsto em lei, utilizando AMIU ou misoprostol. A organização dos serviços prevê uma consulta, exame de ultrassom e auxílio para a obtenção do aborto previsto em lei, que inclui o preenchimento dos formulários administrativos para as diferentes isenções. As adolescentes recebem descontos nas taxas. A tabela 1 resume as características dos serviços oferecidos em cada lugar.


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Tabela 1. Características das três unidades de saúde, Colômbia, 2012 Maternidade Rafael Calvo, Cartagena

Hospital Geral de Medellín

Profamília Medellín

Hospital Público

Hospital Público

Clínica especializada privada

Secundário

Secundário

Aborto legal

Serviços de aborto

Aborto legal; APA

Aborto legal; APA

Aborto legal

Método de aborto

AMIU; D&C

AMIU; D&C

AMIU; Aborto medicamentoso

Consultório (AMIU); Sala de cirurgia (D&C)

Consultório (AMIU); Sala de cirurgia (D&C)

Consultório (AMIU)

Médico

Médico

Médico

Local; geral

Local; geral

Local

Tipo de unidade Nível

Local de procedimento Profissional Anestesia

A sequência do modelo começa com o aborto, iniciado nos serviços de saúde (aborto previsto em lei) ou fora dos serviços (figura 1). O modelo foi reduzido para facilitar a compreensão, mas tanto as mulheres que realizam o aborto legal quanto as são submetidas à APA podem ser tratadas de maneira medicamentosa ou cirúrgica (AMIU ou D&C). A probabilidade de complicações foi levada em consideração nos dois percursos do modelo e todos os ‘ramos’ do gráfico possibilitam os mesmos desfechos. Um aborto, seja espontâneo ou induzido, seja oferecido em condições seguras ou inseguras, pode ser completo ou incompleto e resultar ou não em complicações. Como demonstrado na tabela 1, a clínica Profamília utiliza a AMIU ou o misoprostol para realizar abortos previstos em lei. Para a APA, os dois maiores hospitais utilizam a AMIU ou D&C, ambas para a assistência ao aborto incompleto e a complicações mais sérias. Definimos a APA como qualquer assistência oferecida (medicamentosa, sucção ou cirúrgica) para mulheres que iniciaram um aborto fora do sistema de saúde. Consideramos um aborto como complicado quando o processo não se completou e uma intervenção foi necessária ou associada a qualquer dos seguintes itens: cirurgia, perfuração uterina, infecção, transferência para outro local, hemorragia ou morte. O modelo só levou em consideração as complicações imediatas. As probabilidades foram obtidas para cada tipo de procedimento (aborto legal ou APA e estratégias de intervenção: cirúrgicas ou medicamentosas) e as complicações foram registradas nos ban-

cos de dados produzidos a partir das visitas aos hospitais. Os custos hospitalares para cada tipo de procedimento foram determinados a partir dos códigos de diagnósticos dos hospitais e das prestações de contas do ano fiscal de 2012. Para incluir estimativas dos custos diretos e indiretos da assistência à saúde, os valores foram calculados a partir do total das cobranças. O valor total por tipo de procedimento foi obtido a partir dos registros de pagamento e os custos foram estimados por meio da taxa ao usar a razão custo-preço. Os tipos de custos considerados estão listados na tabela 2. Os principais custos foram ordenados por código de procedimento e estratificados de acordo com a ocorrência ou não de complicações. Foram considerados apenas os custos relativos a um único episódio de atendimento; os custos futuros não foram projetados. Os pagamentos feitos por fora, pelas próprias das mulheres, não foram incluídos. A análise de sensibilidade é uma ferramenta estatística utilizada para analisar como a variação de um ou mais parâmetros pode alterar os resultados do modelo. Realizou-se a análise de sensibilidade univariada e multivariada para testar as hipóteses do modelo e determinar a robustez dos resultados. A análise univariada foi realizada com todos os dados, aplicando-se uma variação de 50% a 200% com relação às estimativas de base para identificar a presença de algum limiar. Isso permitiu analisar como as alterações nesses dados ou nas hipóteses do modelo puderam alterar os resultados do estudo. Sabe-se, por exemplo, que os custos da assistência à saúde variam amplamente. Assim, 173


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Tabela 2. Categorias de custos diretos e indiretos para os serviços de saúde Custos de assistência pós-aborto: • Exames • Testes de laboratório • Tratamento para complicações (todos os casos) • Fluídos intravenosos • Antibióticos • Esvaziamento uterino • Sutura de lacerações • Histerectomias • Transfusões • Hora de trabalho dos profissionais • Custos de ambulatório (quando aplicável) Custos do aborto legal: Aborto medicamentoso apenas com misoprostol

• Exames • Testes de laboratório • Antibióticos profiláticos • Comprimidos de misoprostol • Hora de trabalho dos profissionais • Tratamento para complicações leves (menos de 1% dos casos) Aborto cirúrgico: Sucção Manual e D&C

• Exames • Testes de laboratório • Antibióticos profiláticos • Anestesia (Anestesia geral para D&C, anestesia local para AMIU) • Instrumentos cirúrgicos • Hora de trabalho dos profissionais • Tempo de uso de sala de cirurgia (apenas para D&C)

a estimativa de base para o custo de cada procedimento foi o custo médio calculado a partir do banco de dados do estudo. Para cada variável, aplicamos uma variação que partia da metade e ia até duas vezes o valor da estimativa de base, observando as mudanças nos resultados do modelo. Isso permitiu identificar os resultados produzidos pela variação das estimativas de base, ampliando a capacidade de generalização dos achados.

Complicações Resultados Prontuários das unidades de saúde Em 2012, 1,411 mulheres procuraram assistência ao aborto nas três unidades aqui investigadas. A grande maioria (94%), buscou os serviços para APA 174

(Tabela 3). Em cada unidade realizou-se apenas um pequeno número de abortos (entre 10 e 58 casos). O tipo de procedimento utilizado variou consideravelmente de acordo com a instituição. Na clínica Profamília, utilizou-se apenas o aborto medicamentoso e a AMIU. Nesta clínica, em 37% dos casos de aborto previsto em lei utilizou-se o misoprostol e nos demais, a AMIU. Não houve casos de APA e nenhuma D&C foi utilizada. Nos dois grandes hospitais, tanto a AMIU quanto a D&C foram utilizadas para o aborto legal e para a APA. Entre as mulheres que buscaram aborto legal nos hospitais, 74% passou por D&C e o restante por AMIU. No que diz respeito à APA nos hospitais, em 67% dos casos utilizou-se D&C e nos demais, AMIU. O misoprostol não foi utilizado nem para o aborto legal nem para a APA em nenhum dos dois hospitais. A grande maioria das mulheres procurou assistência para APA nas três unidades de saúde e foi atendida em um dos dois hospitais. Apenas 6% das consultas se referiram a abortos previstos em lei (96 de 1,411; p<.05). As taxas de complicações foram, no geral, baixas e consistentes com a literatura16. Uma única complicação, de pouca gravidade, foi observada entre as mulheres que realizaram o aborto legal, ou seja, uma taxa de 1%. Entre as 1,315 mulheres buscando APA, 76 casos (5%) foram complicados, requerendo tratamento cirúrgico ou medicamentoso adicional, principalmente devido a infecções ou hemorragia (dados não mostrados, p<.05).

Resultados do modelo Foram examinadas, então, como as probabilidades dos procedimentos, custos e complicações afetaram os custos gerais, analisando os seus efeitos para o sistema de saúde por meio do modelo econômico (Figura 1). Os resultados do modelo foram aplicados a uma coorte hipotética de 1,000 mulheres na Colômbia. Comparados à APA, os abortos legais por AMIU e misoprostol associaram-se a menos complicações de saúde para as mulheres e levaram a uma redução de custos nas três unidades de saúde. Para cada 1,000 mulheres recebendo a APA ao invés do aborto legal, 16 mulheres sofreram complicações desnecessárias, a um custo de US$ 48,000. Para o aborto legal, o misoprostol e a SM foram menos custosos do que a D&C, tanto para casos complicados quanto para os que não apresentaram intercorrências (tabela 4). Os custos do aborto legal variaram de acordo com a unidade de saúde. A média de custo de uma AMIU sem complicações


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Tabela 3. Distribuição de tipos de procedimento e indicação legal por unidade de saúde, 2012 Local

Aborto legal (Número)

Indicação/ (Número)

Tipo de procedimento (Número)

Assistência pós-aborto (Número)

Tipo de procedimento (Número)

Hospital Geral de Medellín

28

Saúde Estupro Anomalia fetal

5 7 16

D&C SM AM

28 0 0

339

D&C SM AM

309 30 0

ESE Clínica de Maternidade Rafael Calvo

10

Saúde Estupro Anomalia fetal

0 8 2

D&C SM AM

0 10 0

976

D&C SM AM

567 409 0

Profamília Medellín

58

Saúde Estupro Anomalia fetal

57 1 0

D&C SM AM

0 23 35

0

Total/Totais(?)

96

Saúde Estupro Anomalia fetal

62 16 18

D&C SM AM

28 33 35

1,315

D&C SM AM

876 439 0

D&C = Dilatação & Curetagem SM = Sucção Manual AM = Aborto Medicamentoso apenas com misoprostol

em uma clínica foi de quase metade do custo do mesmo procedimento no dois hospitais ($197 versus $374). O custo de uma AMIU sem complicações em uma clínica foi de quase um terço do custo de uma D&C em um hospital ($197 versus $657). Casos complicados foram ainda mais caros, independentemente do tipo de procedimento, o que traz implicações para a qualidade da assistência e para o orçamento do setor saúde. Para a APA sem complicações, a média de custo da AMIU foi de quase metade do custo de da D&C no mesmo tipo de unidade de saúde ($231 versus $458). Não foi observado o uso de misoprostol em casos de complicações na APA, mas, independentemente do tipo de procedimento, os casos de APA com intercorrências foram mais caros. No conjun-

to, os abortos realizados em hospitais foram mais caros do que aqueles realizados na clínica. Assim, a APA esteve associada a custos mais altos e à ocorrência de mais complicações. Isso foi confirmado pela análise de sensibilidade, que demonstrou que cada aborto legal teria que custar mais de $734 para que a APA se tornasse uma estratégia mais econômica. Supondo uma taxa de 9% de aborto espontâneo (com base em estimativas populacionais) e se o restante dos casos de APA observados atualmente fossem substituídos por abortos legais (realizados com misoprostol ou por SM), o sistema de saúde poderia economizar até $163,000 e prevenir 16 complicações a cada 1,000 abortos. Também se avaliou como a eliminação da curetagem afetaria os desfechos e os custos

Tabela 4. Custo principal por tipo de procedimento (US$)

Aborto legal Clínica Hospitais Assistência pós-aborto Hospitais

Aborto medicamentoso

SM

D&C

Complicações

Complicações

Complicações

Sim

Não

Sim

Não

Sim

Não

$165 ­–

$132 –

$223 $467

$197 $374

­– $821

– $657

­–

$563

$231

$2,301

$458

175


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dos casos. No modelo, a D&C foi substituída pelo aborto medicamentoso ou pela SM, estimando-se os resultados para uma população de 1,000 mulheres: com isso, o sistema de saúde poderia economizar até $177,000 (a cada 1,000 mulheres).

Discussão

JON SPAULL / PANOS PICTURES

Esse estudo demonstrou os danos produzidos pelo acesso restrito ao aborto, tanto no que se refere às complicações para a saúde das mulheres, como no que toca aos custos para o sistema de saúde. Isoladamente, a reforma parcial da legislação colombiana foi pouco adequada para garantir o direito das mulheres a serviços de aborto legal e seguro. Em nosso estudo, a grande maioria das mulheres (94%) ainda segue procurando assistência ao aborto fora do sistema hospitalar. Além de serem seguros e associados a uma taxa baixa de complicações, os dois métodos aprovados pela OMS para o aborto legal poderiam levar à redução de custos para o sistema de saúde se fossem amplamente adotados. A curetagem é desaprovada pela OMS já há muitos anos, pois custa em média o dobro do aborto medicamentoso ou da AMIU e associa-se a maiores taxas de complica-

ção16. O sistema de saúde poderia economizar recursos e reduzir complicações ao substituir a D&C pelo aborto medicamentoso ou pela AMIU. São limitados os dados de serviços sobre a oferta do aborto legal e da APA em contextos de restrição jurídica como a Colômbia. O nosso estudo oferece uma análise da assistência ao aborto em três localidades do país. Apenas uma clínica especializada em saúde reprodutiva foi incluída na nossa amostra, o que limita a generalização dos resultados. E assim como em todos os modelos de tomada de decisão, os resultados dependem da precisão e da disponibilidade dos dados de origem. Para superar essa limitação, realizou-se a análise de sensibilidade com todas as variáveis. Nossos dados se restringem à experiência de mulheres no sistema de saúde. Não foi possível incluir informação sobre a experiência das mulheres que procuraram a APA antes de chegarem aos serviços. Apesar dessas limitações, os resultados foram claros, significantes e consistentes com resultados encontrados na Cidade do México após a revisão da legislação de aborto19. Nossos resultados indicam que o aborto medicamentoso é uma opção subutilizada nos serviços de aborto legal e não é usada para a APA.

Foto: Clínica móvel da Profamília oferecendo consultas/serviços de planejamento familiar em Bogotá, 2006. 176


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O aborto medicamentoso é uma opção válida para muitas mulheres e é econômica para os serviços de saúde17,18. Não foi possível avaliar o uso de mifepristona associada ao misoprostol, por que a mifepristona não está disponível na Colômbia, o que subestimou a economia e a eficácia do aborto medicamentoso quando se utiliza ambos os medicamentos. A prevalência continuada do uso de D&C para a assistência pós-aborto e a assistência ao aborto legal é preocupante. Não se sabe exatamente por que persiste. A disponibilidade limitada de equipamento e de capacitação em AMIU certamente contribui para isso, mas suspeitamos que um maior esforço para introduzir a AMIU e o aborto medicamentoso, uma melhor capacitação e sensibilização das pessoas sobre os malefícios da D&C também são ações necessárias e urgentes para mudar essa prática tão enraizada. Ampliar o acesso ao aborto medicamentoso irá melhorar os resultados de saúde e reduzir os custos para os serviços. A aprovação do uso de

mifepristona para o aborto medicamentoso combinado, que é um regime mais eficaz, irá melhorar mais ainda os resultados em saúde e reduzir os custos. A reforma da legislação foi um passo à frente para garantir o acesso ao aborto seguro na Colômbia, mas ainda não trouxe benefícios para a maioria das mulheres. Os esforços para remover as barreiras aos serviços de aborto seguro devem ser fortalecidos. Agradecimentos Agradecemos o apoio técnico e financeiro da HRP (PNUD/UNFPA/UNICEF/OMS/Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Capacitação em Pesquisa em Reprodução Humana do Banco Mundial). Gostaríamos de agradecer às contribuições de Alison Edelman, Leandro Chavez, Laura Margarita Bello-Alvarez, Joaquin Guillermo Gomez-Davila, Juan Guillermo Londoño, Bernardo Agudelo e Andres Macias no desenvolvimento do protocolo de pesquisa e na coleta de dados.

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MI Rodriguez et al. / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8:170-178

Résumé La majorité des avortements en Colombie se déroulent encore hors du système de santé formel, dans différentes circonstances. La plupart des femmes obtiennent le misoprostol sur un marché noir florissant et s’auto-administrent la médication. Nous avons comparé les coûts pour le système de santé de trois approches de la prestation de soins en matière d’avortement en Colombie : soins post-avortement pour les complications des avortements à risque, et pour les avortements légaux dans un centre de santé, avortement médicamenteux uniquement avec le misoprostol et avortement par aspiration. Les dossiers de facturation des soins hospitaliers de trois institutions, deux grandes maternités et un dispensaire spécialisé en santé génésique, ont été analysés pour les procédures et taux de complications, et les coûts par diagnostic. La majorité des visites (94%) concernaient les deux hôpitaux pour des soins post-avortement ; les 6% restants se rapportaient à des avortements légaux. Seule une complication mineure a été observée parmi les femmes ayant subi un avortement légal, soit un taux de complication de moins de 1%. Parmi les femmes s’étant présentées pour des soins postavortement, 5% avaient eu des complications pendant leur traitement, principalement dues à une infection ou une hémorragie. Les avortements légaux étaient associés avec un taux nettement inférieur de complications pour les femmes, mais aussi avec des coûts plus modiques pour le système de santé que les soins post-avortement. Sur la base de nos conclusions, nous avons calculé que sur 1000 femmes recevant des soins post-avortement au lieu d’un avortement légal au sein du système de santé, 16 présentaient des complications évitables et le système de santé dépensait $US 48 000 pour les prendre en charge. Élargir l’accès des femmes à des services d’avortement sûr réduirait les complications pour les femmes, mais serait aussi une stratégie de réduction des coûts pour le système de santé.

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Resumen La mayoría de los abortos en Colombia continúan ocurriendo fuera del sistema formal de salud bajo una variedad de condiciones, y la mayoría de las mujeres obtienen misoprostol de un floreciente mercado negro para el medicamento y se lo autoadministran. Realizamos un análisis de costos para comparar los costos del sistema de salud en tres estrategias para la prestación de servicios de aborto en Colombia: atención postaborto para las complicaciones de abortos inseguros; y para la interrupción legal del embarazo (ILE) en una unidad de salud, aborto con medicamentos inducido con misoprostol solo y aborto con aspiración por vacío. Se analizaron los registros hospitalarios de facturación de tres instituciones, dos maternidades importantes y una clínica especializada en salud reproductiva, con relación a los procedimientos y tasas de complicaciones, y costos por diagnóstico. La mayoría de las mujeres (el 94%) acudieron a los dos hospitales para recibir atención postaborto; el 6% fue para una ILE. Se encontró una sola complicación menor entre las mujeres que tuvieron una ILE, una tasa de complicaciones de menos del 1%. Entre las mujeres que acudieron en busca de atención postaborto, el 5% presentó complicaciones durante el tratamiento, principalmente infección o hemorragia. La ILE estaba asociada no solo con mucho menos complicaciones para las mujeres, sino también con menores costos para el sistema de salud, en comparación con la atención postaborto. Basándonos en nuestros hallazgos, calculamos que por cada 1000 mujeres que recibieron atención postaborto en vez de una ILE en el sistema de salud, 16 mujeres presentaron complicaciones evitables, y el sistema de salud gastó US $48,000 manejándolas. Ampliar el acceso de las mujeres a los servicios de aborto seguro no solo reduciría las complicaciones para las mujeres, sino que también sería una estrategia de reducción de costos para el sistema de salud.



Instruções aos autores Apresentação dos originais São bem-vindas as submissões de manuscritos sobre os temas principais das futuras edições da revista e sobre todos os outros assuntos relativos à saúde reprodutiva, incluindo sexualidade, HIV / Aids, políticas de população, escritos num estilo reexivo e instigante para um público bem informado, multidisciplinar e iternacional, e levando em conta a políti- ca edtorial de revista. As submissões devem, idealmente, ser enviadas até: • 1o de setembro, para publicação em Maio; • 1o de março, para publicação em Novembro. As submissões são analisadas duas vezes ao ano, em datas próximas de cada edição. Autoria São bem-vindas as contribuições vindas de países de- senvolvidos e em desenvolvimento. Para artigos de países em desenvolvimento é dada preferência àqueles cujos autores são naturais dos países, ou que foram escritos em parceria com pesquisadores nativos. Cada autor deve ter participado sucientemente da elaboração do trabalho para ter responsa- bilidade sobre seu conteúdo, considerando: • atuação substancial na concepção, desenho, análise e interpretação dos dados; • redação ou revisão do artigo; • aprovação final da versão a ser publicada. Um único autor, escolhido pelos demais, deve ficar responsável frente à RHM pela correspondência e pela comunicação com a editora e os outros co-autores a res- peito das revisões e todos os estágios da edição, aprova- ção nal do texto e das provas e assinatura dos direitos autorais. Tamanho máximo sugerido para os artigos: 5.000 palavras.

Aceitação e edição dos artigos A submissões serão inicialmente avaliadas pela editora. Todo texto admitido para publicação nesta primeira fase será submetido a dois revisores antes da sua aceitação. Se a editora considerar que o artigo necessita de uma reelaboração substantiva antes de ser enviado para os revisores, as sugestões serão enviadas aos autores após a sua conrmação de que a revisão sugerida será realizada e o artigo reapresentado. Quase sempre são necessárias uma ou mais rodadas de revisão. Adequações de texto e de linguagem poderão ser feitas pela editora, com aprovação dos autores. No momento da publicação, alguns cortes poderão ser necessários, em função do tamanho ou de repetição de pontos abordados em outros artigos no mesmo exemplar. Todos os co-autores devem conferir, corrigir e aprovar a versão nal. O autor principal receberá via e-mail uma cópia em PDF do texto já diagramado para a última correção. A editora se reserva o direito de fazer mais alguma correção que seja necessária antes da revista ser impressa. Revisão A RHM opera com um sistema de revisão aberta, na qual os autores e revisores conhecem seus respectivos nomes. Entretanto, eventualmente existem razões legítimas pelas quais é melhor que a revisão seja feita anonimamente; nestes casos, a editora poderá aceitar a solicitação. Direitos autorais Os direitos autorais dos artigos deverão ser cedidos à RHM. Cópias dos artigos publicados A todos os co-autores será enviada por e-mail uma cópia em PDF do artigo publicado. Desta forma será possível imprimir quantas cópias forem necessárias para seu uso. Todos os co-autores também receberão um ano de subscrição gratuita da revista, que inclui o exemplar onde seu artigo foi publicado. Os autores poderão postar cópias das versões em pdf dos seus artigos em paginas pessoais ou intitucionais, com os devidos créditos para RHM.

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Um novo paradigma de desenvolvimento pós-2015, com metas abrangentes para a igualdade de gênero e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos.

A judicialização como estratégia política: um estudo de caso na defesa dos direitos reprodutivos na Colômbia

Marge Berer

Mónica Roa, Barbara Klugman

Dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ao Desenvolvimento Sustentável pós-2015: saúde e direitos sexuais e reprodutivos no contexto das mudanças na cooperação internacional

Mobilizando mulheres de movimentos populares para a incidência nas políticas de saúde: um estudo de caso sobre a Campanha Global pelos Microbicidas

Peter S Hill, Dale Huntington, Rebecca Dodd, Michael Buttsworthd

Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global: facilitando a boa governança em contextos complexos Just Haffeld

Pensando globalmente, agindo localmente: a responsabilização na linha de frente Lynn P. Freedmana, Marta Schaafb

Incorporando a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos a uma perspectiva transformadora de desenvolvimento: lições extraídas das metas e indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) Alicia Ely Yamin, Vanessa M Boulanger

Saúde e direitos sexuais e reprodutivos: os próximos 20 anos - Discurso durante a Conferência Internacional de Direitos Humanos - Holanda, 7 a 10 de julho de 2013 Nafis Sadik

Garantindo a inclusão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para a Saúde Marianne Halesgrave

Cobertura universal de saúde: necessária, mas insuficiente Susana T Fried, Atif Khurshid, Dudley Tarlton, Douglas Webb, Sonia GlosS, Claudia Paz, Tamara Stanley

Não há bônus sem ônus: investindo em meninas e mulheres por meio do financiamento ao ativismo, organização, judicialização e ações para a mudança cultural

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O envolvimento da Santa Sé nas questões relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos: conservadora no posicionamento, dinâmica nas respostas Amy L. Coates, Peter S. Hill, Simon Rushton, Julie Balen

Brasileiros têm opiniões divergentes sobre a legalização do aborto, mas a maioria discorda que as mulheres sejam presas por abortarem Aníbal Faúndes, Graciana Alves Duarte, Maria Helena de Sousa, Rodrigo Paupério Soares Camargo, Rodolfo Carvalho Pacagnella

Expandindo o acesso ao aborto medicamentoso: desafios e oportunidades Bela Ganatra, Philip Gues, Marge Berer

Experiências de mulheres com o uso do aborto medicamentoso em contextos de restrição legal: o caso da Argentina Silvina Ramos, Mariana Romero, Lila Aizenberg

Segurança, eficácia e aceitação do aborto medicamentoso com mifepristone e misoprostol no primeiro trimestre de gestação, em ambulatórios de unidades básicas de saúde na Cidade do México Particio Sanhueza Smith, Melanie Peña, Ilana G Dzuba, María Laura Garcia Martinez, Ana Gabriela Aranguré Peraza, Manuel Bousiéguez, Tara Shochet, Beverly Winikoff

Aborto medicamentoso e aspiração manual intrauterina (AMIU) como procedimentos para o aborto previsto em lei protegem a saúde da mulher e reduzem os custos do sistema de saúde: resultados da Colômbia Maria Isabel Rodriguez, Willis Simancas Mendoza, Camilo Guerra-Palacio, Nelson Alvis Guzman, Jorge E Tolosa

Theresa McGovern

ano 9 - número 8 - dezembro de 2015


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