Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global

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Metas de desenvolvimento sustentável para a saúde global: facilitando a boa governança em contextos complexos Just Haffeld Acadêmico afiliado ao Instituto Jurídico O’Neill para a Saúde Global e Nacional, Centro de Direito da Universidade Georgetown, Washington DC, USA. Correspondência: just.haffeld@medisin.uio.no

Resumo: Os processo de globalização tem produzido contextos crescentemente complexos. Sendo assim, os debates sobre as Metas de Desenvolvimento Sustentável (MDSs) requerem uma nova concepção que parta de uma critica às ferramentas políticas atuais e explore uma abordagem favorável à complexidade. Esse artigo propõe que as potenciais MDSs devem: tratar as partes interessadas, como estados, empresas e atores da sociedade civil, como agentes agregados à diferentes níveis de articulação em redes, incorporar bons processos de governança que facilitem o envolvimento precoce de recursos relevantes e a participação igualitária, processos de consulta e análises regulares sobre a implementação de políticas e programas, a adoção e execução dessas regras em processos democráticos nas instituições responsáveis e a inclusão de sistemas de avaliação abrangentes, incluindo indicadores de processo. Convenções globais podem ser instrumentos adequados para enfrentar alguns dos desafios relacionados à governabilidade em contextos complexos. Podem estruturar e legitimar o envolvimento governamental, engajar os atores globais, promover a deliberação e o processo de tomada de decisões com a devida participação e análise política sistemática, além de definir padrões mínimos para os serviços de saúde. Os processos de monitoramento podem assegurar que os agentes cumpram as metas, considerando os indicadores locais de resultados e de processo, superando o paradoxo entre controle governamental e espaços de política local. Assim, uma convenção pode explorar o dinamismo resultante do encontro entre sociedade civil, organizações internacionais e autoridades nacionais. Palavras-chave: globalização, ciência da complexidade, metas de desenvolvimento sustentável, governança de saúde global, convenção global de saúde “Vamos juntos desenvolver uma nova geração de metas de desenvolvimento sustentável para dar continuidade ao progresso iniciado pelas MDSs. E vamos chegar a um consenso sobre os meios necessários para alcançá-las.” (Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, 2011)1. Apesar da convocação do Secretário Geral da ONU para a elaboração de uma nova geração de metas de desenvolvimento sustentáveis (MDSs), os ODMs (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) não perderam relevância no período pós-2015. Mas os ODMs visavam principalmente os países em desenvolvimento, enquanto as MDSs voltam-se para todos os países e fazem parte de uma agenda que vai além do desenvolvimento para os países pobres, buscando atingir uma meta de sustentabilidade planetária. Assim, as MDSs podem ser vistas como complementares aos ODMs - oferecendo uma oportunidade para se cumprir a Declaração do Milênio. Após a Conferência Rio +20, a comunidade internacional incluiu nos debates sobre as MDSs o desenvolvimento de um conjunto de indiwww.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf

cadores para a avaliação do seu progresso: “O desenvolvimento das MDSs e de seus indicadores podem produzir maior legitimidade e impacto sobre o desenvolvimento se emergirem de um processo consultivo transparente e participativo”2. Como argumentado nesse artigo, tanto o processo de elaboração das MDSs e seus indicadores como as metas e indicadores finais devem ser concebidos de modo a facilitar processos consultivos transparentes e participativos, incluindo a incorporação dos princípios da teoria da complexidade e da governança articulada em rede ou multicêntrica. A abordagem baseada na complexidade funda-se no estudo da evolução e da dinâmica dos sistemas complexos. Em oposição à tradição cartesiana*, que enfatiza o estudo isolado de cada parte de um sistema, a abordagem complexa volta-se para o sistema em sua totalidade. Longe de * René Descartes é associado à lógica analítica reducionista, à

interpretação mecanicista da realidade física e à distinção dualista entre corpo (matéria) e mente (pensamento). Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42734-9

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estudar mecanismos isolados de causa e efeito, os objetos de estudo são padrões (simples e complexos), conexões, comunicação e dependência mútua em redes de atores ou agentes3. Um sistema social é considerado complexo quando existem altos níveis de interação e interdependência entre as ações de diferentes indivíduos e os efeitos por elas produzidos. No caso de um sistema complexo em constante adaptação, como a saúde global, esse é um desafio especialmente difícil, uma vez que a noção newtoniana de causa e efeito deve ser gradualmente quebrada, dando espaço para uma nova lógica, em que causa e efeito são determinados por múltiplos fatores e mecanismos de feedback e emergência e onde o futuro é, por princípio, incerto4. No uso da teoria da complexidade como parte de um novo paradigma cientifico, comportamentos adaptativos complexos podem ser simplificados para dar coerência ao modelo. A convenção global de saúde aqui sugerida como facilitadora de processos de desenvolvimento pode ser uma forma de reconciliar processos de governança participativos (bottom-up) e hierarquizados (top-down)3. Neste aspecto, esse novo regime demandaria uma mudança nas concepções, valores e capacidades do conjunto de atores do campo da saúde global.

Uma crítica ao desenvolvimento orientado por indicadores de resultados O debate sobre a escolha de indicadores das MDSs é problemático porque depende das diferentes concepções a respeito da natureza das MDSs - se devem ser modificadas, por exemplo, na direção do fortalecimento dos sistemas de saúde, como defendido pela OMS a partir do conceito de cobertura universal dos serviços de saúde5, ou as recomendações para uma Parceria Global que viabilize uma agenda de desenvolvimento transformadora, centrada na pessoa e sensível às questões planetárias, tal como previsto no Relatório do Painel de Alto Nível da ONU6, como parte da Cúpula das Nações Unidas para as MDSs7, realizada em 2010. A despeito dessa incerteza, um outro obstáculo recorrente é o fato de que “não há uma definição única ou medidas de avaliação do desenvolvimento sustentável aceitas universalmente … (e) inexistem indicadores de desenvolvimento sustentável aceitos internacionalmente que possam auxiliar a monitorar esse progresso.”2 O debate atual, no entanto, parece assentar-se na crença de que tempo, esforço e dados robustos são suficientes para a criação dessas medidas 30

e indicadores2. Mas existem sólidos motivos para criticar e questionar metodologicamente o desenvolvimento exclusivamente orientado por indicadores de resultado. 0041 lei que ficou conhecida como Goodhart, em homenagem à Charles Goodhart, antigo conselheiro do Banco da Inglaterra, especifica que: “Assim que o governo regula um conjunto qualquer de bens financeiros específicos, ele torna-se pouco confiável como indicador de tendências econômicas.”8 Isso se dá por que os investidores tentam antecipar os efeitos das intervenções de acordo com os indicadores e investem de maneira a beneficiar-se deles - em outras palavras, os indicadores se tornam um mecanismo de autorregulação que distorce a alocação de recursos. Um exemplo famoso são as indústrias soviéticas que quando recompensadas por produzir um alto número de pregos produziam micro pregos e quando recompensadas por produzir pregos por peso produziam pregos gigantes. Embora a lei de Goodhart tenha sido concebida no contexto de respostas de mercado, ela tem implicações profundas para o cumprimento de metas políticas de alto nível, como aquelas propostas nas MDSs. Se os governos aprovarem um conjunto de MDSs que estabelecem resultados específicos (mensurados por indicadores relevantes) - como campanhas nacionais de vacinação ou de reidratação oral remuneradas pelo desempenho – os órgãos executores estarão mais interessados em alcançar essas metas do que em fortalecer o sistema de saúde, de modo que adaptar-se às dinâmicas locais e atender a outras necessidades essenciais de sobrevivência, promovendo o sentimento de apropriação por parte da população. Outro problema é que qualquer parâmetro de nível ótimo de saúde para a população mundial é ambíguo. Quer se trate de analisar as populações individualmente ou apenas grupos populacionais específicos, os indicadores de resultados não irão apontar se os níveis gerais de saúde são bons, ainda que uma determinada população alcance um bom resultado de acordo com esses indicadores. Quanto mais se considera a saúde como resultante da interação contínua e complexa entre indivíduos, sistemas sociais e meio ambiente, menos produtivo é manter o foco em fatores de risco imediatos ou alvos específicos. Pelo contrário, o sistema e seus efeitos sobre a saúde devem ser vistos como um todo. O problema é que avaliações de resultados abrangentes são subutilizadas, devido os limites de capacidade técnica, à ausência de


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conscientização e apreciação sobre a importância dessa abordagem, assim como a visão equivocada sobre seus custos, combinado com o ceticismo dos financiadores de pesquisas, que preferem resultados rápidos e facilmente quantificáveis9.

As MDSs e a complexidade As mudanças sociais são percebidas como desenvolvimentos ascendentes (bottom-up), graças ao grande número de pequenas flutuações na base da sociedade10. Nesse contexto, o valor produzido é fruto das interações individuais entre atores (ou agentes) e redes sociais e, frequentemente, o que emerge dessas interações é maior ou qualitativamente diferente de todas as ações individuais. Ordem, inovação e progresso são desenvolvimentos naturais dessa interação e seguem regras simples dentro do sistema, não requerendo imposições centrais ou externas11. De acordo com o Relatório Flagship da OMS12, o pensamento sistêmico é muito relevante para a gestão mundial da saúde por que:

“...tem um potencial enorme e inexplorado, primeiramente para decifrar a complexidade dos sistemas de saúdes e, posteriormente, para aplicar esse conhecimento na elaboração e avaliação de intervenções capazes de melhorar a saúde e alcançar a igualdade de condições nesse campo. O pensamento sistêmico pode oferecer um caminho para se atuar de maneira mais eficaz e bem sucedida em contextos reais e complexos. Pode abrir caminhos poderosos para identificar e solucionar desafios no sistema de saúde, sendo um ingrediente crucial em qualquer tentativa de fortalecer o sistema de saúde.” Dessa maneira, em um mundo cada vez mais interligado e interdependente, todos os níveis de governança são complexos e a interação entre os diversos sistemas de governança levam a uma complexidade cada vez maior13. Essa conjuntura tem criado desafios em relação à coordenação das diferentes governanças em saúde global que se sobrepõem e concorrem entre si. Isso é especialmente verdadeiro para as MDSs que requerem cooperação entre círculos de governança sobrepostos, que disputam o controle político e, principalmente, recursos. Essa complexidade também influencia no modo como produzimos e nos relacionamos com o “conhecimento”. Uma vez que a incerteza é um elemento crucial dos sistemas complexos, especialmente no que se refere aos efeitos emergentes, é impossível prever ou determinar o que está adiante, assim como identificar e utilizar indicadores de resultados para prever a

condição a ser alcançada por um sistema em uma fase muito posterior. Assim, o conhecimento tradicional é posto em cheque de duas formas: • Em um sistema com múltiplas variáveis, suas qualidades emergentes e os efeitos sistêmicos tardios desafiam os desdobramentos de análises e mapeamentos exaustivo, e • Se os problemas mudam mais rapidamente do que a otimização de novas soluções, estas serão sempre obsoletas antes mesmo de serem aplicadas4. Isso significa que os princípios da governança estão mudando profundamente. Atualmente, a governança é caracterizada por um campo de atuação estável com uma pluralidade de atores formando redes mais ou menos densas, com uma multiplicidade de mecanismos, mudanças aceleradas e incerteza sobre o futuro13. Em relação a essas mudanças, a diplomacia multilateral da saúde global representa tanto uma restrição quanto uma oportunidade. A oportunidade jaz na incorporação dos princípios baseados na complexidade no código de conduta diplomático, isto é, regras básicas de participação, transparência, responsabilização etc. que podem expandir o campo da saúde global e transformar a comunicação entre governos nacionais, organizações internacionais e a sociedade civil. A restrição está nas negociações internacionais, frequentemente centradas nos governos, baseadas em interesses e visões limitadas, como, por exemplo, os fracassos nas negociações entre os governos sobre as questões relativas à saúde, especialmente evidente após o impasse da Cúpula de Copenhague sobre o Protocolo de Kyoto14, em 2009, e o arquivamento do tratado da OMS sobre desenvolvimento e pesquisa medica para apoiar populações pobres, em 201215.

MDSs para a gestão de redes sociais: nova epistemologia, novos indicadores É evidente que os modelos existentes de gestão não funcionam de maneira satisfatória. Do ponto de vista conceitual, a anomalia mais clara é a prevalência do modelo hierárquico de comando e controle (top-down, do topo para a base), identificada mas críticas às iniciativas verticais de saúde global. Apesar do sucesso de algumas intervenções - como vacinação, tratamento do HIV e malária, por exemplo - a atenção restrita a uma doença ou problema específico distorce o uso dos recursos locais, o que tem sido limitado a abordagem mais ampla e sustentável para o fortalecimento dos sistemas de 31


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saúde16. Quando aplicado a redes sociais, o modelo hierárquico leva a resultados não previstos, atrasos, subutilização de recursos e descontentamento generalizado3. Outra anomalia é que os modelos atuais de atribuição causal não levam em consideração a dinâmica das relações sociais, baseada na culturas, nos valores, status, preferências e objetivos dos agentes17. As redes sociais se constituem de agentes interrelacionados e interdependentes e a governança não significa apenas dar e seguir instruções, mas, sobretudo, adaptar-se contínua e estrategicamente a um ambiente complexo, procurando maximizar essa adaptação.3 De modo igualmente importante, agentes e redes diferenciam-se na aptidão e capacidade de atingir metas. Redes poderosas de negócios podem exercer uma influência não democrática para alcançar benefícios econômicos em detrimento de outros. Um exemplo disso foi a negociação do tratado TRIPS, na qual algumas empresas farmacêuticas conseguiram influenciar autoridades para o estabelecimento de um regime jurídico internacional que prioriza os direitos de propriedade intelectual acima dos direitos humanos13. Outras redes podem colaborar para alcançar benefícios sociais ao fortalecer organizações da sociedade civil para educar, solucionar conflitos, ou promover serviços de saúde18. Esse último caso pode ser ilustrado pelas campanhas internacionais de luta contra o HIV/AIDS e pelo fim das minas terrestres19. Outros exemplos históricos são os movimentos norte-americanos pelo fim da guerra do Vietnã e contra a segregação racial na década de 1960 e a revolução pan-europeia pelos direitos dos trabalhadores. As adaptações pelas quais essas redes passam para alcançar seus objetivos podem ser vistas como formas substantivas de regulação que escapam dos procedimentos legislativos formais no nível internacional e nacional. Para os governos, que são os agente centrais da rede global e os principais destinatários de potenciais MDSs, trata-se de afirmar sua soberania e poder formal no plano da governança global, na mesma medida em que buscam a melhoria do sistema de saúde, garantindo espaço para que outros atores da rede também floresçam. Isso pode ser alcançado pela incorporação de metas abrangentes e globalmente consensuadas, que recomendem a participação da sociedade civil desde os primeiros estágios da elaboração de políticas públicas, restituindo à sociedade o espaço para a identificação, avaliação e proposição de soluções para as possíveis barreiras à implementação das MDSs, e, caso 32

desejem, para chegar a acordos sobre indicadores locais de resultados. Nesse caso, a abordagem da complexidade consegue munir os agentes de capacidades adaptativas que lhes habilitam para enfrentar situações inesperadas, possibilitando processos de negociação baseados em princípios, uma perspectiva holística para as políticas e habilidades avançadas de comunicação. Para assegurar uma performance democrática, os processos de governança das redes sociais devem estar ancorados a estruturas governamentais democráticas já existentes, incluindo o controle por parte representantes eleitos, a responsabilização de autoridades nacionais e o cumprimento de regras democráticas20. Em uma revisão das intervenções para o fortalecimento de sistemas de saúde, Adam et al. identificaram que as avaliações mais abrangentes envolveram a análise por meio da abordagem participativa na elaboração, monitoramento e aperfeiçoamento contínuo das intervenções. Isso acontece, sugerem os autores, por que as avaliações participativas ampliam o escopo da avaliação de impacto da intervenção9. Com base nisso e na necessidade de avaliações amplas, os indicadores de processos devem ser incorporados e utilizados de forma mais abrangente. Esses indicadores podem regular, por exemplo, o envolvimento dos sujeitos, cuja representação deve ser justa e imparcial, e a análise sistemática das políticas, com foco sobre o futuro. A divisão equilibrada das responsabilidades entre governos e outros atores pode ser alcançada organizando-se a governança a partir dos “ciclos recorrentes das políticas globais”21, nos quais os atores passam por processos dinâmicos de análise de políticas em que as responsabilidades são alocadas de acordo com as capacidades. Pode-se chegar a isso por meio de reuniões regulares com todos os atores e setores, constituindo-se um processo cíclico de deliberação, que inclua a participação de todos no processo de tomada de decisões. Para a saúde global, os seguintes princípios foram sugeridos para operacionalizar a abordagem da complexidade na governança: • ampliação da participação (governo, sociedade civil, empresários e gestores de saúde) nos processos de tomada de decisão e na elaboração de políticas com foco sobre o futuro; • diversificação das estruturas de governança para ampliar a aproximação com os conhecimentos locais relativos às condições culturais, religiosas, técnicas, financeiras e sociais;


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• definição de bons princípios de governança para

facilitar a auto-organização e surgimento de soluções exequíveis em uma rede dispersa, mas interrelacionada, de atores, com regras claras quanto à responsabilização, transparência, cooperação e alocação de recursos; • elaboração de um modelo de tentativa e erro e seleção de acertos, com aproveitamento das energias e capacidades criativas para a produção de inovação e empoderamento; • coerência entre iniciativas de governança hierárquicas e participativas durante o processo regular de ajuste das políticas, produzindo conhecimento sobre os efeitos das políticas por meio de análises regulares; • definição de um nível mínimo de saúde, facilitando o consenso local sobre o que são necessidades fundamentais de sobrevivência da população (como, por exemplo, água tratada, medicamentos essenciais, saneamento básico e infraestrutura do sistema de saúde) para a utilização dos recursos de acordo com a demanda real3. Tomando esses princípios como base para avanços futuros, a governança pós 2015 deve enfrentar o desafio de administrar o poder fragmentado no interior das redes sociais - nas quais governos e empresas cuidam apenas de seus próprios interesses e as organizações sociais são predominantemente idealistas - e identificar onde há disparidade de poder e carência de conhecimento científico. A governança no pós-2015, portanto, deve influenciar a relação intima entre autoridades e outros atores das redes globais por meio de uma governança interconectada e multidisciplinar22. Os governos existentes são os nós dessa articulação, confrontados com o duplo desafio de adaptar-se a um ambiente cada vez mais complexo e, ao mesmo tempo, “manter a mão no leme”, ou seja, mantendo o comando do navio e delegando a condução para representantes - ao invés de ficar preso aos remos13. Para o Estado moderno, a governança inteligente usa seu status formal de legislador para estabelecer visões ou metas (“comando”), deixando o espaço político para que outros atores com menor poder formal façam o que de melhor sabem fazer, adaptando-se assim a condições em transformação constante. Estruturas internacionais reguladoras, baseadas em concepções e objetivos abrangentes nos níveis global, regionais e nacionais para facilitar a adaptação e as capacidades locais de construção em ambientes em constante mudança, representam o compromisso ideal de governança que recu-

sa estratégias de comando e controle e adapta-se aos contextos complexos e interconectados22. Assim, potenciais MDSs deveriam incluir compromissos específicos quanto à cooperação internacional baseados em concepções e objetivos abrangentes, que abram espaço político para prioridades locais e soluções para problemas complexos, incluindo o consenso sobre indicadores locais de resultados e indicadores amplos de processo ancorados em valores democráticos, participativos e cooperativos. Além disso, dada a falta de indicadores abrangentes, o monitoramento do progresso pode ser feito através de indicadores de processo, que permitem tratar das questões relativas à confiança nos processos políticos. O conceito de espaço político local sob um regime de governança global, porém, demanda maiores reflexões, que podem trazer implicações para os processos políticos associados à governança global de saúde e sobre a organização e administração dos sistemas de saúde no nível local. Na prática, as MDSs sugeridas acima podem ser facilmente alcançadas através da incorporação de um instrumento dinâmico de regulação global, como a Convenção Global de Saúde (FCGH), sugerida pela Ação Conjunta e Iniciativa de Aprendizado das Responsabilidades Globais e Nacionais para Saúde (JALI), com o objetivo de ampliar e avançar a governança de saúde global23. O raciocínio que sustenta a proposta da convenção é a criação de um processo no qual cada estado acataria princípios básicos para a assistência à saúde, com protocolos específicos para alcançar objetivos que dependem de negociação. O foco nos protocolos auxilia a definição de obrigações e níveis mínimos a serem endossados e gradualmente adotados por todos os atores envolvidos. Especificações mínimas, como a definição conjunta de necessidades básicas de sobrevivência, permitem espaços para a inovação e encorajam esforços coletivos, sendo essenciais para a construção de boas relações no futuro24. Essa Convenção pode englobar os propósitos e objetivos necessários para uma cooperação internacional construtiva, as regras para a coordenação de processos, prioridades e atividades, os compromissos e financeiros e os mecanismos específicos de financiamento, as estruturas institucionais, tais como secretariado e consultoria técnica, os sistemas de monitoramento e os mecanismos de execução e de mediação de conflitos23. Finalmente, uma convenção global para a saúde pode ser um instrumento adequado para lidar com alguns dos desafios relacionados à governança em 33


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ambientes complexos. Ela pode estruturar e legitimar o envolvimento governamental, engajar os apoiadores, organizar o processo de deliberação e tomada de decisões com participação e analise política regulares e definir níveis mínimos de qualidade para os serviços de saúde. Seus processos de monitoramento podem garantir que atores ajam de acordo com as metas definidas para o

sistema, com resultados e indicadores de processo definidos localmente, solucionando, assim, o paradoxo entre controle governamental e espaço político local. Uma convenção poderia extrair a energia produzida pelo encontro entre sociedade civil, organizações internacionais e autoridades nacionais, mantendo o governo no leme e os parceiros no remo.

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Résumé La complexité croissante est une conséquence de la mondialisation rampante. La discussion sur les objectifs du développement durable (ODD) exige donc de nouvelles idées qui s’écartent de la critique des outils politiques actuels dans l’exploration d’une approche adaptée à la complexité. Cet article avance que les ODD potentiels devraient : traiter les acteurs, tels que les États, les entreprises et la société civile, comme des agents à différents niveaux intégrés de réseaux ; inclure des procédures de bonne gouvernance qui facilitent la participation précoce de ressources pertinentes, ainsi que la participation équitable, les processus consultatifs et les études régulières de la mise en oeuvre des programmes et des politiques ; ancrer l’adoption et l’application de ces règles sur les procédures démocratiques dans des organisations comptables de leurs actes ; et inclure des évaluations complètes des systèmes, notamment des indicateurs de procédures. Une convention cadre internationale pour la santé pourrait être l’instrument adéquat pour relever certains des défis liés à la gouvernance d’un environnement complexe. Elle pourrait structurer et légitimer la participation gouvernementale, associer les parties prenantes, organiser les processus de délibération et de prise de décision avec une participation appropriée et des analyses régulières des politiques, et définir des normes minimales pour les services de santé. Un plan de suivi pourrait veiller à ce que les agents dans les réseaux agissent conformément à des objectifs systémiques, des indicateurs de résultats définis localement et des indicateurs de processus, ce qui résoudrait le paradoxe du contrôle gouvernemental par opposition à l’espace politique local. Une convention pourrait ainsi exploiter l’énergie créée par la rencontre entre la société civile, les organisations internationales et les autorités nationales.

Resumen Tras una globalización desenfrenada, la situación es cada vez más compleja. Por lo tanto, la discusión sobre los Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) requiere una nueva forma de pensar que se aleje de una crítica de las herramientas actuales de políticas para explorar una estrategia que abrace la complejidad. En este artículo se arguye que los posibles ODS deberían: tratar a las partes interesadas, tales como Estados, empresarios y actores de la sociedad civil, como agentes en diferentes niveles agregados de redes; incorporar procesos de buena gobernanza que faciliten la participación temprana de recursos pertinentes, así como participación equitativa, procesos consultivos y revisiones periódicas de la aplicación de políticas y programas; anclar la adopción de dichas reglas en los procesos democráticos de organizaciones responsables e imponer su cumplimiento; e incluir evaluaciones integrales de sistemas, que incluyan indicadores de procedimientos. Una convención del marco mundial para la salud podría ser un instrumento adecuado para abordar algunos de los retos relacionados con la gobernanza de un ambiente complejo. Podría estructurar y legitimar la participación del gobierno, incluir a las partes interesadas, coordinar procesos de deliberación y de toma de decisiones con la debida participación y revisión periódica de políticas, y definir los niveles mínimos para los servicios de salud. Un esquema de monitoreo podría asegurar que los agentes de las redes cumplan acorde a las metas de sistemas completos, indicadores de resultados definidos a nivel local e indicadores de procesos, y así resolver la paradoja de control gubernamental contra espacio local de políticas. Por lo tanto, una convención podría aprovechar la energía creada en el encuentro entre la sociedad civil, organizaciones internacionales y autoridades nacionales.

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