Um novo paradigma de desenvolvimento pós-2015

Page 1

Um novo paradigma de desenvolvimento pós-2015, com metas abrangentes para a igualdade de gênero e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Marge Berer Editora, Questões de Saúde Reprodutiva, Reino Unido.

“Essas são as nossas conclusões… Contamos com a coragem de todos os governos para defender questões controversas quando lidam com realidades complexas, muitas das quais relacionadas às causas mais profundas das desigualdades… 1. Mantenham suas promessas; 2. Defendam nossos direitos sexuais; 3. Exigimos justiça econômica; 4. Deixem-nos um planeta saudável; 5. Somos colaboradores e não público-alvo.” (Declaração do Encontro da Juventude pós-2015, Outubro 2013).* Que tempestade de palavras nos legaram a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) - Para Além de 2014 e as agendas de Desenvolvimento Sustentável Pós-2015! São tsunamis de discussões, reuniões, relatos, declarações, listas de demandas e revindicações e expectativas diversas oriundas de todas as partes do mundo! Eu não sei como o Secretário-Geral da ONU consegue lidar com tudo isso, mas a minha caixa de entrada de emails já está quase cheia. Mas essa tempestade também trouxe um conjunto valioso de comentários, críticas e análises políticas, que eu gostaria de compartilhar com vocês. E o mesmo se aplica aos excelentes artigos dessa edição da revista. Nesse editorial eu gostaria de dar destaque a duas questões que, juntas, expressam o cerne dessa edição da revista e do que eu acho que está acontecendo no mundo para além dessa explosão verbal:

• Neste momento, temos a oportunidade de esta-

belecer metas de desenvolvimento sustentável que podem superar diversas limitações dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), expandindo o grau de responsabilização e compromisso para melhorar a saúde global e os direitos humanos. Essas metas devem incluir a igualdade de gênero e a saúde e direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, há fortes evidências de que os es-

forços para se alcançar a igualdade de gênero tem obtido pouco sucesso e a área da saúde tem sido subfinanciada por muitos governos, a despeito de compromissos já assumidos, especialmente na África†, mas não apenas lá. Novas metas precisam ser configuradas de maneira a levar em conta a interdepêndencia dos direitos humanos, o que significa que nenhum ser humano deve ser delas excluído. A princípio, até que esse compromisso seja alcançado, um novo paradigma e novas metas de desenvolvimento não passam de aspirações sem esperanças de sucesso. Os ODMs da área da saúde desviaram o foco da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos (SDSR), articulados ofi mente pela primeira vez no Programa de Ação do Cairo, limitando-se à redução da mortalidade materna no ODM5, em detrimento de quase todas as outras questões da SDSR. A mortalidade materna foi reduzida, mas não o suficiente, e não diminuiu nada nos países mais pobres, enquanto a assistência ao parto não foi ampliada de forma concomitante no mesmo período. Nós, ativistas da SDSR, enfrentamos problemas urgentes. Alguns aspectos específicos da saúde não se tornarão metas e, certamente, a SDSR também não. Assim, como podemos garantir desta vez que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos serão inteiramente incluídos nas metas de desenvolvimento sustentável para a saúde pós-2015, junto com todas as outras questões urgentes de saúde e desenvolvimento que vêm sendo defendidas por outros grupos sociais?

Texto completo em: https://docs.google.com/file/ d/0B2zDeXV8KPlrdkhEQ1VUYm9YeHc/edit?usp=sharing&pli=1.

† “Doze anos depois da Declaração de Abuja, quando os governos africanos se comprometerem a alocar pelo menos 15% dos seus orçamentos anuais para a saúde, apenas seis países alcançaram essa meta. Mais importante, cerca de um quarto dos países membros da União Africana retrocederam e agora gastam menos em saúde do que em 2001." Governos africanos continuam subfinanciando a saúde. Irin News. 23 July 2013. http://www.irinnews.org/report/98459/african-governments-stillunderfunding-health.

8

Doi: (do artigo original) 10.1016/S0968-8080(13)42750-7

*

www.grupocurumim.org.br/site/revista/qrs8.pdf


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

Quem está na liderança de nosso movimento atualmente? Nós temos um plano? Uma estratégia? Algumas dessas questões exigem uma abordagem voltada para o exterior. Elas requerem ações nos níveis global, nacional e local, envolvendo os sistemas de cooperação intergovernamentais, governos, financiadores, comunidades ligadas aos sistemas e políticas de saúde e a sociedade civil, que atuam no nível nacional. Outras questões demandam inicialmente um olhar mais interno. Nós, ativistas de SDSR, conseguimos articular brilhantemente nossas questões mas, por vezes, empacamos no ponto em que é necessário indicar os meios de resolvê-las. A oposição à nossa agenda não está se enfraquecendo. Neste momento, o conteúdo das metas de desenvolvimento está sendo debatido e negociado em todos os níveis, envolvendo uma complexa rede de atores e aqueles entre nós que são especialistas no assunto precisam auxiliar na formulação, negociação e renegociação dessas metas, até 15 de setembro de 2015. Um grupo maior ainda deveria negociar com as lideranças no nível nacional. Há gente suficiente do nosso lado fazendo isso agora? Como chegar a um consenso entre nós sobre o que apoiamos e pelo que lutamos no cenário mais amplo, para além dos SDSR e da igualdade de gênero? A CIPD não foi um jogo fácil, mas comparado com o que vivemos agora até parece brincadeira de criança.

Um novo paradigma de desenvolvimento em saúde Qual é o novo modelo de desenvolvimento demandado por nós? Como deve ser a meta em saúde para que não restrinja e promova o ideal de “saúde para todos”? Qual a meta em saúde mais adequada para abrigar nossas pautas? O Banco Mundial apoia a “cobertura universal” como meta em saúde. Até recentementre, a Organização Mundial de Saúde também apoiou a universalidade, mas há relatos de que começam a considerar a cobertura universal mais como um meio do que como uma meta. Espero que essa posição se sustente e que o Banco Mundial também mude sua percepção do problema. Uma rede do Reino Unido considera que os componentes centrais da universalidade são o “acesso universal a serviços de saúde de qualidade que atendam às necessidades da população e correspondam à carga de doenças nos contextos nacionais e a proteção também universal contra o risco de que os custos dos serviços se tornem uma barreira para a assistência à saúde”.

E incluem ainda “o apoio internacional para superar as barreiras legais e políticas no acesso à saúde para as populações mais vulneráveis e marginalizadas”‡. De fato, essa definição parece ter muito potencial. Mas o real sentido da cobertura universal em saúde não é a parte da “cobertura”, ou seja, a forma de financiamento da assistência? Essa não seria uma outra forma de restringir a agenda? E qual(is) é(são) o(s) modelo(s) que garantem a cobertura? Levemos em consideração, por exemplo, os resultados de um estudo de caso publicado esse ano sobre os esforços consideráveis do México para implementar a universalidade: “no que se relaciona à assistência à saúde no México, o conceito “universal” nunca significou igualdade, particularmente no que diz respeito à assistência adequada para as 52 milhões de pessoas que não possuem seguro privado”§. A conclusão de que os mais vulneráveis são os menos atendidos pode ser um resultado inesperado da “hipótese da equidade inversa”¶, segundo a qual, a menos que medidas específicas de prevenção sejam tomadas, os ricos são os primeiros a se beneficiarem da implementação de novos programas, o que aumenta a desigualdade. A cobertura universal tem o propósito de impedir que a equidade inversa ocorra, mas de acordo com Gita Sen, citando Davidson Gwatkin, ainda não há evidências de que a universalidade possa de fato evitar esse problema (Gita Sen, apresentação, consultoria do UNFPA, Cidade do México, Outubro de 2013). Além disso, pelo menos até o momento atual, a noção de universalidade da cobertura não incorpora nem a abordagem baseada em direitos nem o foco nos demais determinantes da saúde, para além dos serviços. Pode parecer, portanto, que a cobertura universal de saúde não seja a solução mais adequada. No entanto, preocupa-me a ausência de opiniões sobre o tema por parte de colegas da área de SDSR, embora muitos de nós tenhamos concordado na Cidade do México que essa era uma questão a ser tratada com urgência. Por isso, estou muito con‡

Base britânica da Rede Global de Saúde. Minutas de Políticas para a Saúde Global em Manifestos Partidários, fonte desconhecida. § Ocejo A. Health, Citizenship, and Human Rights Advocacy Initiative: Improving Access To Health Services in Mexico. International Budget Partnership Impact Case Study No. 15, July 2013. http:// papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2326607. ¶ Victora CG, Vaughan P, Barros FC, et al. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet2000;356(9235):1093–98.

9


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

tente em publicar um artigo sobre o tema, a partir da perspectiva da SDSR, nessa edição da revista. Antes de prosseguir, cabe mencionar outra questão preocupante, que é o baixo grau de contestação de alguns pressupostos relacionados aos modelos público e privado de gestão e financiamento dos sistemas saúde, que subjazem à noção de universalidade. O problema de quem financia a assistência, assim como quem oferece os serviços, é, na minha avaliação, a questão que todos querem ignorar. Qual a posição do movimento de SDSR a esse respeito, considerando o grau de privatização dos serviços de SDSR, ou seja, a oferta por fora do sistema público de saúde na maior parte dos países? São inegáveis as fragilidades e capacidade limitada dos governos para desenvolver, administrar e implementar sistemas de saúde de qualidade, sem falar das outras responsabilidades relativas à assistência social, educação e economia. Mas isso é uma consequência direta e intencional de políticas nacionais e internacionais e não um fato imutável da vida, não é? Em um artigo de 2012, London e Schneider** argumentam que “embora a globalização neoliberal seja associada ao aumento de desigualdades, a integração global também fortalece a disseminação do discurso dos direitos humanos em todo o mundo”. Os autores examinam a “aparente contradição” entre a concepção de “globalização como um fenômeno que enfraquece a capacidade dos Estados-Nação de agir em prol dos interesses de suas populações e o fato de a implementação dos compromissos de direitos humanos demandarem do Estado a capacidade de criar políticas públicas eficazes que concedam direitos socioeconômicos, como a saúde. A noção de responsabilização é central para as demandas feitas ao Estado para a implementação de sistemas de saúde baseados na perspectiva dos direitos humanos”. Assim, antes de se definir a meta em saúde deve-se discutir sobre a eficácia dos Estados para a concessão de direitos, incluindo o direito à saúde. London e Schneider chamam a atenção para a necessidade de se fortalecer o controle parlamentar no nível nacional, de modo a se priorizar a proteção às populações pobres e aumentar o financiamento do setor saúde, e alertam para a importância da ação da sociedade civíl na responsabilização da gestão e na mobilização social. Chamam a atenção, ainda, para a importância de se analisar ** London L, Schneider H. Globalisation and health inequalities: can a human rights paradigm create space for civil society action? Social Science & Medicine 2012;74(1):6–13.

10

críticamente a incapacidade do Estado em implementar o direito à saúde, o que levanta questões quanto à “difusão generalizada da responsabilização no moderno sistema de cooperação internacional”6. A função da cooperação internacional, portanto, também deve ser minuciosamente analisada. Se nossa intenção é criar novos modelos, ainda há muito trabalho a ser feito. Uma terceira questão diz respeito ao poder e à articulação da sociedade civíl, incluindo ativistas de SDSR, para responsabilizar as agências internacionais e os governos. Como demonstra a AWID-Association for Women’s Righst in Development, em um estudo realizado em 2010 com mais de 1100 organizações de mulheres de todo o mundo, não há financiamento suficiente para isso. O estudo concluiu que “há vastos recursos para o campo do desenvolvimento” mas, embora haja interesse em se investir em ações específicas para mulheres e meninas, o financiamento para organizações de mulheres é desprezível. Em 2010, a receita média anual de mais de 740 organizações de mulheres de vários países do mundo foi de apenas 20.000 dólares. A AWID também salienta que embora “os mecanismos e as fontes da cooperação internacional e da filantropia estejam se tornando cada vez mais diversificados, a prioridade tem sido o crescimento econômico e o retorno do investimento, em lugar dos direitos humanos e do bem-estar social”, verificando-se, assim, a influência dos “interesses e das abordagens do setor privado no campo tradicional da cooperação e do desenvolvimento††. O que pensam os movimentos de SDSR sobre essas mudanças? Que recursos - humanos e outros - são necessários para responsabilizar de fato governos e financiadores? Somos fortes o suficiente, especialmente no nível nacional, para realizar essa tarefa? De forma mais ampla, como as políticas de saúde e os movimentos de SDSR tem respondido a isso? Quando vamos começar a trabalhar em conjunto? Assim como a AWID, preocupa-nos que os direitos humanos tenham se transformado em uma “controvérsia” e, por isso, estejam sendo negligenciados. Mas se o mundo pretende falar sério sobre desenvolvimento não pode abandonar os direitos humanos. Tampouco pode depender ††

Arutyunova A, Clark C. Watering the Leaves, Starving the Roots: The Status of Financing for Women's Rights Organizing and Gender Equality. Association for Women’s Rights in Development. 2013. http://www.awid.org/Library/Wateringthe-Leaves-Starving-theRoots.


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

de empresas como a Coca-Cola para apoiar o Ministério da Saúde da Tanzânia e o Fundo Mundial de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária com a rede distribuição de medicamentos essenciais para áreas remotas do país‡‡, provavelmente acompanhados de grandes quantidades de um refrigerante nada saudável. A despeito das frustrações com as fragilidades dos sistemas nacionais de saúde, esse exemplo de parceria público-privada, supostamente financiada pelos lucros do refrigerante nada saudável, é um esforço antiético. Mas parcerias como essa estão em crescimento nos campos do desenvolvimento e da ajuda humanitária, pois cada vez mais empresas buscam novas fontes de influência, lucro e poder disfarçadas sob a credibilidade da “filantropia”. Apesar da alta rentabilidade dos alimentos nocivos à saúde, a nutrição ainda é um problema global fundamental que se manifesta tanto na desnutrição quanto na obesidade, que trazem consequências graves para a saúde, como diabetes e hipertensão. A grande indústria alimentícia é tão relevante para as questões globais de saúde quanto a grande indústria farmacêutica. A desnutrição é resultado da pobreza, do desemprego e de políticas agrícolas deficientes. Uma colaboração interssetorial voltada para populações pobres pode melhorar alguns dos resultados negativos em saúde que, atualmente, precisam ser resolvidos pelo setor de saúde. E por falar em novos paradigmas, o que dizer da meta aparentemente impossível de eliminar a pobreza, o ODM que apresenta a pior performance, mas que ainda é uma meta abrangente para o desenvolvimento sustentável? O relatório da Comissão de Determinantes Sociais da OMS (2008)§§ afirma que a “injustiça social está matando em grande escala por meio da combinação tóxica entre “programas sociais e políticas públicas frágeis, arranjos econômicos injustos e má política”, produzindo e reforçando as desigualdades em saúde. O relatório apresenta um quadro abrangente e bem fundamentado sobre as desigualdades em saúde em diversos países, no qual se observa um gradiente social em que os resultados de saúde es-

tão associados à distribuição injusta dos seus determinantes sociais”¶¶. Dito de outro modo, os 20% mais ricos não querem que os 40% mais pobres tenham o que eles têm, não é? Qual a estratégia para lidar com essa barreira? Os governos nacionais e as lideranças globais da ONU têm uma estratégia para lidar com isso? Aqui retorno ao cerne da questão: a necessidade de destacar as responsabilidades da ONU e de seus Estados-Membros com a melhoria da situação de saúde de suas populações e com o respeito, proteção e cumprimento do direito de acesso ao mais alto padrão possível de saúde. Os Estados não podem fazer isso sozinhos, especialmente aqueles que lidam com baixos padrões de rendimento e tributação, infraestrutura precária, gestão financeira deficiente e políticos corruptos no poder, que não valorizam nem apoiam metas acordadas internacionalmente. Os governos também não podem esperar que a ajuda venha de fontes externas de financiamento que tem suas próprias agendas (como, por exemplo, evasão fiscal, vantagens comerciais, influência política e questões de segurança) e que, na realidade, operam uma versão contemporânea do neocolonialismo, tratando os países como dependentes. Assim, falando como ativista de saúde pública e direitos humanos, minha resposta à pergunta sobre qual meta de desenvolvimento sustentável devemos escolher, é a seguinte: primeiro, precisamos de um paradigma de desenvolvimento transformador, ancorado nos direitos humanos, e de uma nova ordem econômica global e nacional, baseada no reconhecimento de questões ambientais urgentes, que também requerem ação global urgente por parte de todos os países, especialmente daqueles que mais poluem o nosso planeta. Então, a partir de uma ampla abordagem de direitos humanos para as metas de desenvolvimento sustentável, estão sobre a mesa as seguintes as opções relativas às metas para a saúde:

‡‡

• O direito ao mais alto padrão de saúde possível

Irin. Global Analysis: What future for private sector involvementin humanitarianism? 26 August 2013. http://www:irinnews.org/ report/98641/analysis-what-future-for-privatesector-involvementin-humanitarianism. §§ World Health Organization. Closing the Gap in a Generation: Health Equity through Action on the Social Determinants of Health. Geneva: WHO; 2008. www.who.int/social_determinants/ final_report/.

• Universalidade da cobertura • Saúde para todos até... (definir prazo) • Algumas ideias frágeis sobre a melhoria do bem estar humano ou

(“direito à saúde”)

¶¶

Marmot M, Bell R. Fair society, healthy lives. Public Health 2012;126(Suppl. 1):S4–10.

11


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

A escolha parece bem clara. Ao rejeitar a cobertura universal, o direito à saúde é o único nessa lista que faz algum sentido. Saúde para todos é uma meta otimista, inclusiva e ambiciosa, assim como o foi na época que Hafdan Mahler criou o slogan para a OMS, com o objetivo de se alcançar a saúde para todos por volta do ano 2000. Essa meta me agradava antes e continua me agradando, mas é um slogan e não é forte o suficiente como meta de desenvolvimento sustentável, que deve ser complexa, claramente delimitada e baseada nos direitos humanos. Sem pensar duas vezes, o meu voto vai para o “direito à saúde”. E para reforçar isso, evitando tratá-lo como algo ambicioso, acho que se deve explorar as propostas da Iniciativa Conjunta para o Estudo e Ação para a Construção de uma Convenção sobre Saúde. O “direito à saúde” está presente em diversos documentos de direitos humanos da ONU, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Hoje, por ter se mostrado de difícil realização, acho que o “direito à saúde” merece sua própria convenção e mecanismos de responsabilização dos Estados com a sua implementação. Além disso, há um grande número de pactos e convenções com efeito vinculante***, assim como há muitos compromissos não-vinculantes†††, todos ratificados pela grande maioria dos Estados. Há muito trabalho a ser feito para operacionalizá-los no nível dos países. Por que não são utilizados como fontes para a defuição de metas, já que boa parte do mundo concordou em cumprí-los? Por fim, há a Revisão Períódica Universal do Conselho de Direitos Humanos, que envolve avaliações nacionais por parte dos Estados-Membro sobre os avanços quanto aos compromissos assumidos com a situação dos direitos humanos‡‡‡. Isso certamente deveria ser incluído como parte do processo de ***

Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966; Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966; Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, 1979; Convenção Internacional contra a Tortura e Todas as Formas de Punição Cruéis, Degradantes e Desumanas, 1984; Convenção sobre os Direitos das Crianças, 1989; Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, 1990; Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2008. ††† Por exemplo, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), o Programa de Ação da CIPD (1994), a Plataforma de Ação de Beijing (1995) e do Rio+20, o Futuro que Queremos. ‡‡‡ UN Human Rights, Office of the UN High Commissioner for Human Rights. Universal Periodic review. http://www.ohchr.org/EN/ HRBodies/Upr/Pages/UPRMain.aspx.

12

reponsabilização a nível global. Ademais, é importante ampliar a visibilidade e a responsabilidade dos órgãos da ONU que tem como tarefa garantir que os entes responsáveis implementem os compromissos nos níveis global e regional§§§. Assim como para o nosso movimento, a garantia de que os SDSRs sejam incluídos como parte integral da meta de saúde passa pelo óbvio: é preciso ativismo, negociação e envolvimento com a agenda global da saúde, com as políticas públicas de saúde, com os movimentos pelo direito à saúde e desenvolvimento, assim como nas redes e movimentos pela igualdade de gênero e pela SDSR. É desnecessário relembrar que a construção de redes nacionais, articuladas a gestores, parlamentares e líderanças políticas envolvidas com a agenda global é pelo menos tão importante quanto a pressão permanente sobre a ONU. Outra tarefa crucial é identificar políticos e líderes religiosos com posturas nocivas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Além disso, ainda permanece a grande tarefa de convencer e conquistar o apoio daqueles que afirmam apoiar mulheres e meninas, ou acreditam em (alguns) direitos, mas que produzem políticas que geram manchetes como essa: “Estupros em guerra são inadmissíveis para o Canadá; Postura sobre o aborto continua obscura”¶¶¶.

Artigos na edição britânica nº 21 Os artigos dessa revista começam com a história do consenso global alcançado com o Programa de Ação da CIPD em 1994, apresentada em uma consulta internacional de direitos humanos em julho de 2013 por Nafis Sadik. Outros artigos descrevem o caminho que levou aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) em 2000, apontando de forma crítica os pontos fortes e as deficiências dos indicadores e metas de desenvolvimento, suas consequências desejadas e indesejadas e os limites dos meios de mensuração utilizados, tais como a noção de responsabilização, §§§ Três instâncias regionais de direitos humanos (Europa, InterAmérica e Áfrtica), duas cortes regionais de direitos humanos (InterAmérica, Europa), instâncias de monitoramento de tratados (Cedaw, por exemplo), relatórios especiais (incluindo sobre o direito à saúde), agências especializadas de monitoramento (como UNFPA, UNAIDS e OMS), instâncias de elaboração de políticas como as Comissões de População e Desenvolvimento e do Status das Mulheres, o Conselho e o Alto Comissariado de Direitos Humanos - e, sem dúvida, deixei outros exemplos de fora. ¶¶¶ Ditchburn J. Canada slams war rape, abortion stance murky. Canadian Press, 27 September 2013. http://globalnews.ca/ news/869355/canada-slams-war-rape-abortion-stance-murky/.


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

“É grande a probabilidade de que haja uma forte ênfase em questões ambientais e de desenvolvimento sustentável, os primeiros dois pilares da Rio+20, em detrimento do desenvolvimento social, tal como aconteceu no Rio... quando as negociações se tornaram difíceis. As questões relativas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, à governança (accountability) e às modalidades de responsabilização foram todas deixadas de lado. Outro aspecto que reduz o otimismo em torno do novo paradigma do UNFPA-Fundo de População das Nações Unidas é a abordagem “cautelosa” à linguagem da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos presente em vários relatórios recentes, que não vai além da linguagem da CIPD. O palco, portanto, está montado para futuras negociações. O processo que vai levar à agenda de desenvolvimento pós2015 é complexo, mas muitas… pessoas demandam que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos sejam prioritários nos novos objetivos do desenvolvimento sustentável. Não há outra opção senão continuar o trabalho em direção aos níveis mais altos de decisão. O que não podemos deixar acontecer novamente é o que aconteceu com as ODMs em 2000. Dessa vez não podemos sair de mãos vazias.” (Haslegrave, M.).

DIETER TELEMANS / PANOS PICTURES

para fazer avançar a agenda do desenvolvimento. Outros artigos trazem estudos de caso, analisando pesquisas nacionais e políticas públicas específicas e expondo de forma crítica as fragilidades das fontes de financiamento, orçamentos e despesas. Os artigos apresentam a falta de conexão entre os acordos internacionais e as realidades nacionais. Um dos artigos demonstra que, independentemente dos ODMs, a mudança do parto realizado nas florestas para o parto domiciliar foi um importante avanço para as mulheres. São artigos profundos e complexos, cujas mensagens provocam reflexão e debate. Além disso, outros artigos colocam o foco sobre parâmetros utilizados para determinar os objetivos de desenvolvimento do milênio e para pensar o futuro. Esses artigos discutem os conteúdos de um novo paradigma de desenvolvimento e, ao utilizar termos como “transformador”, demandam um mundo melhor. Para os ativistas do campo da SDSR, talvez a mais importante mensagem contida nessa edição da revista seja a seguinte:

Foto: Professora lê para crianças no Los Amiguitos de Membol, uma pré-escola em um bairro pobre de Guayaquil, Ecuador, 2009 13


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

Principais mensagens nessa edição da revista Direitos humanos

à justiça de gênero (Yamin, A. E. e Boulanger, V. M.).

• “Os direitos humanos para as mulheres são direitos humanos para todos.” “Hoje, esse consenso está mais forte do que nunca.” (Sadik, N.)

• O novo paradigma de desenvolvimento associa expectativas de longo prazo quanto à sustentabilidade ambiental, política e financeira a metas internacionais de erradicação da pobreza. Mas os financiadores, as agências internacionais de desenvolvimento e as instituições nacionais raramente conseguem articular esses planos ou lidar com questões políticamente sensíveis e complexas que entrelaçam religião, status socioeconômico, vida social, cultural e familiar (McGovern, T.).

Crítica ao paradigma ODM • Nas últimas décadas muito se fez pela adoção de uma abordagem multidimensional para o desenvolvimento definida pelos direitos humanos, liberdade e empoderamento. A questão é avaliar se o alcance e a profundidade desses esforços foram suficientes. A sociedade civil desafiou a abordagem direcionada e tecnocrata implícita nos ODMs, alertando para o surgimento de “nichos” de desenvolvimento. De acordo com a definição dos ODM, a igualdade de gênero se restringe a uma meta e indicadores voltados para a representação política das mulheres, educação e trabalho, desconectada da necessidade de cumprimento dos outros ODMs (Reddzy, B. e Sen, G.).

A meta da saúde e o direito à saúde • Com base na abordagem de direitos humanos para o desenvolvimento, 17 Relatores Especiais da ONU identificaram três áreas prioritárias que devem informar esta agenda, todas relevantes para a realização do direito à saúde: redução de desigualdades, proteção social básica nacional e dupla responsabilização (Grover, A.). • Tal como compreendida atualmente, a cobertura universal do sistema de saúde por si só não resultará no acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e, certamente, também não levará aos direitos sexuais e reprodutivos. (Fried, S. et al). • Uma convenção internacional para a saúde pode ser um instrumento apropriado para lidar com alguns dos desafios relacionados à governança em um ambiente complexo. (Haffeld, J.).

Garantindo a inclusão da igualdade de gênero e dos SDSRs no novo paradigma de desenvolvimento • O novo paradigma de desenvolvimento deve incluir uma forte perspectiva de transformação social com objetivos e indicadores adequados, mas que não devem substituir ou restringir os objetivos mais amplos ligados aos avanços sociais, políticos e

14

• Há distinções preocupantes entre a maneira como os problemas e soluções no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos são tratados no plano global e a realidade cotidiana complexa que as pessoas enfrentam nos serviços de saúde. Qualquer abordagem que pretenda renovar o campo da responsabilização deve começar com as dinâmicas de poder nas linhas de frente, lá onde as pessoas se relacionam diretamente com profissionais e instituições de saúde (Freedman, L. P. e Schaaf, M.).

Ajuda ao desenvolvimento • Entre 2005 e 2011, observa-se importantes mudanças institucionais e estruturais no campo da ajuda ao desenvolvimento, que produziram impactos sobre a inclusão da agenda da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos no planejamento de políticas públicas no nível nacional. Se a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos requerem uma perspectiva abrangente e multissetorial, é necessário fazer a conexão com os temas-chave do desenvolvimento sustentável: desigualdades de gênero, educação, crescimento e população, mas também urbanização, migração, empregabilidade de mulheres e mudanças climáticas (Hill, P. S. et al) OK • No Haiti, os mecanismos de cooperação internacional tem assumido diversas funções do Estado: alocam recursos, definem prioridades, implementam programas e, em conjunto com as forças de pacificação, partilham o monopólio da violência legítima. Mas as organizações de ajuda, assim como as forças de pacificação, não assumem a responsabilidade direta pelos haitianos em casos de negligências graves ou mesmo em situações simples como, por exemplo, a forma de utilização dos recursos (Bhatia, P.).


M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

Abordando os contextos nacionais • A perspectiva transformadora dos direitos humanos voltada para o acesso à saúde sexual e reprodutiva, fortemente defendida no plano internacional pelo movimento feminista global e por atores governamentais e intergovernamentais progressistas, não tem sido tão bem-sucedido ou influente no nível nacional (Oronje, R. N.). • O relatório do Cabo Oriental, na África do Sul, é um testemunho analítico do colapso de um sistema público municipal de saúde, do qual dependem mais de seis milhões de pessoas. Durante décadas, esse colapso foi negligenciado ou mesmo permitido. (Campanha de Ação de Tratamento e Seção 27). • É essencial compreender o fluxo nacional dos recursos para a saúde reprodutiva, de modo a garantir o financiamento efetivo desse componente crucial da saúde, mas, mesmo assim, desafios importantes permanecem (Sidze, E. M. et al). • Os avanços na redução da morte materna foram consideráveis, mas o ritmo da redução ainda é muito lento para que a meta seja integralmente cumprida até 2015, especialmente na África Subsaariana. Isso demonstra que tanto os governos nacionais quanto a comunidade internacional estão deixando a desejar no cumprimento das obrigações relacionadas ao direito à saúde para as populações desses países (Ooms, G. et al).

O papel do ativismo • A disputa em torno dos avanços na agenda das políticas públicas é constante. O ativismo de base sempre esteve na cena política pautando problemas específicos, apresentando soluções para as agendas políticas e pressionando os responsáveis políticos para a ação. As decisões sobre o tipo de ativismo exigido pelo processo pós-CIPD e pós2015, assim como seus sujeitos, temas e métodos, é o que irá definir o conteúdo desse novo momento (Forbes, A.). • No Brasil, embora haja previsão legal para a prisão de mulheres que abortam de maneira ilegal, dois estudos demonstram que 85% dos estudantes e 83% dos servidores públicos entrevistados acham que essas mulheres não devem ser presas. Esse fato deve ser considerado por parlamentares que agem de acordo com a opinião pública (Faundes, A. et al). • O trabalho com diversos parceiros, incluíndo o Programa Conjunto da UNFPA-UNICEF sobre Muti-

lação Genital Feminina: Acelerando a Mudança, nos fez perceber como alavancar determinadas dinâmicas de apoio às comunidades para a proteção das meninas. Testemunhamos o modo como a informação sobre os perigos dessa prática e as evidências de que outras comunidades estão questionando ou abandonando a MGF podem provocar ou revigorar um processo positivo de mudança (UNICEF).

Morte materna ou saúde materna • Conhecer a taxa de mortalidade materna é o ponto de partida necessário para se trabalhar pela sua redução (Mola, G. e Kirby, B.). • No período de 30 anos houve mudanças intergeracionais importantes nas práticas de gestação e parto em áreas remotas da República Popular e Democrática do Laos. Compreender como jovens mulheres interpretam suas escolhas e incorporar esse conhecimento e a experiência bem sucedida de programas locais no sistema público de saúde e na assistência obstétrica pode contribuir para a melhoria das taxas de mortalidade materna e neonatal e para a redução das desigualdades em saúde (Alvesson, H. M. et al). • Embora tenha sido pensada para melhorar a saúde materna, a pressão para o alcance de metas traz implicações negativas indesejáveis para o relacionamento entre mulheres, agentes comunitários de saúde e os serviços de saúde, como demonstrado na Nicarágua, e isso precisa ser devidamente debatido (Kvernflaten, B.). • Boa parte do debate sobre os serviços de assistência obstétrica, inclusive nos países ricos, está focado na necessidade de se alcançar um padrão de excelência nos serviços. No entanto, há grupos de mulheres - incluindo refugiadas - recebendo assistência bem abaixo dos padrões mínimos desejáveis. A assistência obstétrica de alta qualidade é muito mais do que apenas o reconhecimento das complicações graves da gravidez. As mulheres precisam de apoio durante a gravidez. Precisam estar cercadas por uma rede de amigos e pela família. Precisam estar devidamente abrigadas. Devem estar bem nutridas, descansar e praticar exercícios. O stress e isolamento impactam negativamente tanto a mãe quanto o bebê. Dispersar as mulheres que procuram por asilo não apenas lhes separa de suas redes sociais, como também lhes deixa distantes das parteiras com quem precisam construir um elo de confiança e uma relação compassiva (Feldman, R.).

15


ANDREW AITCHISON / STARS FOUNDATION

M Berer / Questões de Saúde Reprodutiva 2015; 8: 8-16

Foto: Uma garotinha que acabou de receber a sua certidão de nascimento do Centro de Legislação Urbana,administrado pelo Comitê para a Assistência Legal aos Pobres, distrito de Orissa, Índia. 16


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.