Paulo dias comunidades do tambor

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Comunidades do Tambor Paulo Dias, músico e pesquisador Entre os povos bantos da África Central, tambor é ngoma. Não só o instrumento, porém, metonimicamente, a dança e o canto que o tambor põe em ação e, por extensão, toda a comunidade que se reúne em torno do instrumento para a celebração ritual e prazerosa. Ngoma atravessou o Atlântico, junto com seus guardiães tornados escravos, malungos do Congo-Angola e das terras de Nagô. “Chora ingoma, ê Angola”, canta hoje o capitão de moçambique numa festa do Rosário em Minas, lembrando a dura travessia do Atlântico. "Cheguei na ingoma pra saravar", louva o jongueiro que vai entrar na roda. No Brasil a Ingoma, Comunidade do Tambor, vai criando elos firmes entre o passado e o presente da gente afro-brasileira, os viventes e os antepassados, a Senhora do Rosário e Mãe Iemanjá... Ingoma aqui reinventada de corpo, alma, beleza e mistérios. Desde os tempos da Colônia, o som vibrante dos tambores afro-brasileiros ecoa por aqui, em terreiros de fazendas, pelas ruas das cidades ou nos adros de igrejas, com seu poder de arrancar os homens à dispersão forçada em que vivem. Noticiados por cronistas e viajantes a partir do século XVI, as festas e rituais dos africanos são quase sempre objetos de descrições levianas e preconceituosas. Sons “monótonos”, danças “lascivas”, ritos “bárbaros” eram alguns dos qualificativos utilizados por esses escritores e moralistas, sem dúvida um tanto assustados com as multidões de negros escravizados que as festas mobilizavam – multidões que sempre podiam rebelar-se contra a minoria branca. Paradoxalmente, a festa negra também constituía uma atraente opção de lazer para muitos brancos proprietários de escravos, como acontecia nas fazendas e engenhos isolados. “As senhoras chegavam muitas vezes para a roda, assim como os homens, e assistiam com prazer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos negros”, escreve Freire Alemão, em 1859, sobre um batuque que presenciara em Pacatuba, Ceará. Os desdobramentos das celebrações dos negros na Colônia e no Império vieram a configurar um grande leque de formas poéticas, dramáticas, musicais e coreográficas que atualmente presenciamos por todo o Brasil, entre o sábado de Aleluia e o Carnaval.

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Na África, o tambor é venerado como ser de energia plena, soma das forças vitais que emanam de seus elementos constitutivos: o tronco da árvore, a pele do animal, os cravos e aros metálicos que a fixam, originários dos três reinos da natureza. Entre povos desse continente o tambor personifica a comunidade, os ancestrais e o próprio Estado, media a comunicação entre os viventes e destes com o mundo espiritual. Tem poder de fala. A centralidade da ingoma nas comunidades negras brasileiras liga-se, portanto, a um princípio de africanidade que se perpetua com vigor na diáspora, e se manifesta cada vez que os atabaques chamam os deuses e as baterias do samba mobilizam multidões. Parte essencial do legado da África no Brasil é de natureza rítmica. Os toques dos instrumentos de percussão são verdadeiros emblemas sonoros ancestrais associados à etnia: congo de ouro, ijexá, angola... Pelas mãos dos mestres-tocadores, esses ritmos inscrevem em nosso quotidiano a presença espiritual daqueles povos, pulsados em variados conjuntos de tambores que interagem em tramas musicais complexas, moldando o tempo de cantos e danças coletivos. Ingoma, tambor-comunidade, também esculpe no tempo macro o ritmo das celebrações, vivenciadas com prazer e alegria. Sacraliza o território da festa ao convocar as energias da natureza e dos antepassados, criando e recriando laços com as fontes de Ilu Ayiê, a Terra dos Tambores, do outro lado da Calunga Grande. Se atentarmos bem para o grande leque de formas de expressão das Comunidades do Tambor, poderemos detectar, para além de sua variedade, algumas similaridades, alguns pontos em comum que aparecem em danças e folguedos de áreas geograficamente distantes. Personagens como o Reis de Congo fazem-se presentes, governando Congadas e Maracatus, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul; danças circulares de umbigada ao som de tambores de tronco afinados a fogo são celebradas em diferentes estados, do Amapá a São Paulo. Entendemos melhor por que essas características comuns se manifestam em distintas regiões do território, quando situamos as músicas, danças e celebrações populares nos processos de formação histórica e social do povo brasileiro, conforme indicaram pensadores da nossa cultura, como Mário de Andrade e Edison Carneiro. Ao abrirmos os livros desses autores, lá reencontraremos os Reis Congos do norte e do sul sendo eleitos por membros das mesmas instituições, as Irmandades de Homens Pretos de Nossa Senhora do Rosário, e também poderemos compreender que as danças noturnas de umbigada descendem das rodas que os escravizados de origem banto organizavam nas zonas rurais. A partir dessas linhas de parentesco, podemos imaginar as

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Comunidades do Tambor divididas em grandes grupos, entre os quais se destacam quatro diferentes configurações, pela importância de sua difusão em todo o Brasil: . os Batuques de Terreiro, rodas que celebram a memória das comunidades em terreiros e quintais através do canto, da dança, do jogo; . as Congadas, cortejos musicais de rua historicamente ligados às Irmandades Negras, com seu catolicismo diferenciado; . os Candomblés, templos onde se rearticula a religião tradicional africana do transe místico; . as Escolas de Samba, cortejos carnavalescos urbanos e (aparentemente) laicos, congregando diferentes formas de expressão artística negra. Cada uma dessas categorias de Comunidades do Tambor está ligada a uma face/fase singular dentro do difícil processo de assimilação das populações afrodescendentes à sociedade brasileira, caracterizado pela tensão constante entre a tomada de posse de elementos da cultura branca, selecionados e retrabalhados pelo modo de pensar africano, e a atitude deliberada de resistência cultural, tendendo à manutenção de conjuntos de valores civilizatórios africanos em terras da diáspora. Embora diferenciados, os quatro grandes grupos de Comunidades do Tambor compartilham atores sociais. Na periferia de Belo Horizonte, um devoto de Nossa Senhora do Rosário expressa sua fé na santa e na ancestralidade africana, dançando o batuque do candombe dentro de sua Irmandade e atuando numa Congada nas grandes festas públicas de Reinado. Esse mesmo congadeiro pode frequentar as giras de um centro de Umbanda e participar de uma Escola de Samba. Na vida real, essas instituições comunitárias se comunicam e se complementam, fundamentadas que são num universo artístico-espiritual comum de matriz africana, que tem como um de seus valores maiores a atitude respeitosa para com a ancestralidade. Batuques de Terreiro Os Batuques de Terreiro têm suas matrizes nos eventos com tambores, dança, canto e poesia que promoviam os escravizados fixados nas zonas rurais principalmente – fazendas, engenhos, garimpos – mas também em áreas urbanas, conforme noticiam cronistas. Eram realizados preferencialmente à noite e em momentos de ociosidade dos cativos, como após as colheitas ou nos dias feriados. A partir de características comuns, o antropólogo Edison Carneiro listou, nos anos 1960, um conjunto de formas

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de expressão que ocorrem de Norte a Sul do Brasil, a que chamou "Sambas de Umbigada", associando-as à cultura banto disseminada por pessoas pertencentes a diferentes povos deportados de Angola, do Congo e de Moçambique pelo tráfico escravo. Preferimos a designação Batuques de Terreiro, por indicar a onipresença de pesados tambores ancestrais fixos aos terreiros. São formas vivas dos Batuques a Capoeira Angola e Regional, praticada no país inteiro e no exterior; o Carimbó do Pará; os Batuques e o Marabaixo do Amapá; o Tambor de Crioula do Maranhão; o Zambê e o Bambelô do Rio Grande do Norte; o Samba de Aboio de Sergipe; o complexo dos Cocos em todo o Nordeste; o Samba de Roda e o Samba Chula da Bahia; a Suça de Goiás; o Candombe de Minas Gerais; o Jongo ou Caxambu do Sudeste; o Batuque de Umbigada e o Samba de Bumbo do oeste paulista, entre outras. Sem falar dos parentes estrangeiros, como o Tambor de Yuca cubano, semelhante ao nosso Jongo, ou a Ladja da Martinica, prima-irmã da Capoeira. No isolamento das fazendas dos tempos do cativeiro, as festas de terreiro realizadas nas folgas semanais e dias feriados concentravam a vivência dos escravizados enquanto grupo, já que no dia a dia eles trabalhavam dispersos no eito. Tudo acontecia africanamente através do canto e do corpo em movimento e pelo som dos tambores. Era o momento de louvar os ancestrais, de pôr em dia os assuntos da comunidade, de resolver conflitos, de medir forças e firmar prestígio em desafios poéticos e jogos corporais. Um reflexo dessa pluralidade de situações expressivas reunidas num único evento manifesta-se ainda hoje nas diferentes categorias de pontos (cantigas) do Jongo vale-paraibano: louvação para saudar vivos e mortos, visaria para comentar os acontecimentos do grupo e demanda para travar desafios. Inspirados em provérbios e adivinhas tradicionais banto-africanos, muitos dos versos entoados nessas rodas são construídos com metáforas, cujo significado simbólico é compreendido apenas pelo grupo, enquanto o casca de coco – observador estranho à comunidade – só é capaz de perceber o sentido mais literal, inofensivo. com tanto pau no mato embaúva coroné diz um ponto de jongo dos tempos do cativeiro, significando que, apesar de existir gente íntegra na sociedade, madeira de lei, o senhor de escravos é comparável a uma

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árvore podre por dentro. Em diferentes lugares, foi essa poética da ambiguidade, com "um dizer e dois entender", que permitiu aos escravizados falarem dos patrões, trocarem as novidades do dia e mesmo articular fugas e levantes, sem despertar as suspeitas daqueles que vigiavam a festa. Num sentido semelhante, também se desenvolvem nas rodas de dança e música dos bantos as metáforas corporais, em jogos de combate onde o gesto aparentemente gracioso pode dissimular o golpe mortal. A tradição da Capoeira, que ao mesmo tempo é dança, é jogo e é luta, surge no contexto dos batuques e evolui como importante estratégia de defesa e de resistência ao reaprisionamento, por ocasião das fugas de escravizados. Um fato deixava perplexos os observadores que buscavam um único sentido para esses eventos: tratava-se de diversão, de devoção, de articulação? Muito desse mistério permanece até hoje, tempos, ainda, de forte racismo e exclusão para a população negra... Assim como permanecem os velhos tambores de tronco escavado, afinados a fogo, saudados por todos ao se iniciar e findar a função, e respeitados como insígnias de ancestralidade: zambê, gomá, dambí, dambá, candongueiro, quinjengue... O tambor-mestre é sempre o maior e mais grave, orientando o pé dos dançarinos com suas figurações variadas, por sobre a trama rítmica constante dos tambores menores. Por vezes, a sonoridade dos tambores de tronco e a sua interação rítmica é reinterpretada em tambores de modelo ocidental, como zabumbas e caixas; isso acontece, por exemplo, nos Cocos nordestinos e no Samba de Bumbo paulista. Ao conjunto de tambores podem juntar-se matracas, chocalhos, ganzás, pandeiros, tambores de fricção (cuícas) e até instrumentos de corda e sopro, como no Carimbó. No caso específico da Capoeira, aparece o trio de berimbaus, versões brasileiras do arco musical banto-africano. Tanto a forma dos instrumentos dos Batuques de Terreiro quanto a maneira como interagem ritmicamente mostram grandes semelhanças com a percussão tradicional de países de cultura banto como Congo e Angola. As danças caracterizam-se pela formação em roda, tendo um dançarino ou casal de dançarinos ao centro; mais raramente aparece a formação em fileiras confrontantes, como no Batuque de Umbigada e no Samba de Bumbo paulistas. No meio da roda, o par solista desenvolve uma coreografia, encenando a corte entre homem e mulher, que culmina numa umbigada efetiva ou simulada. Conforme notou Edison Carneiro, esse gesto é característico de diferentes bailados do Congo e de Angola (semba, em

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quimbundo), associado a cerimônias de noivado e fertilidade. Trocada entre mulheres, a umbigada pode servir como convite para entrar na roda. Entre homens, ela dá lugar à pernada, assumindo a dança uma feição de combate. Há também coreografias de mímica ancestral, como é o Candombe das Irmandades Mineiras de Nossa Senhora do Rosário, em que o corpo do candombeiro que baila diante dos tambores assume a postura e o gestual dos Pretos Velhos, entidades espirituais de africanos escravizados no Brasil. Com a vinda das populações negras para as cidades, iniciada após a abolição, essas rodas ancestrais passaram da roça às periferias urbanas, conservando seu caráter intracomunitário e perpetuando uma poética de imagens simbólicas que tematiza a comunidade e sua experiência cotidiana e lembra a história do grupo e seus personagens maiores. Chamados de "diversão desonesta" dos negros nos tempos coloniais, condenados como permissivos e pagãos, e temidos pelos patrões como perturbadores da ordem social, muitos dos Batuques de Terreiro mantiveram-se, até os dias de hoje, como espaços de resistência, mantendo sua independência em relação aos setores hegemônicos da sociedade brasileira. Exceção feita para a Capoeira, que se difundiu por todo o País e para o exterior após conquistar o status de prática esportiva, assemelhada às artes marciais do oriente. A partir do registro de algumas das formas dos Batuques como Bens Culturais Imateriais (Samba de Roda, 2004; Jongo, 2005; Tambor de Crioula, 2007), esse patrimônio brasileiro de alta beleza e profundo refinamento, fonte viva de história, arte e identidade para muitas comunidades afrodescendentes, vem ganhando alguma visibilidade em nível nacional.

Congadas

Desde o início de sua colonização, disseminaram-se pelo Brasil as Irmandades Leigas e Ordens Terceiras, instituições católicas de origem europeia que tiveram papel importantíssimo na condução da vida religiosa das populações no Brasil Colônia, substituindo muitas vezes as ordens regulares da Igreja. Dirigidas por leigos, essas confrarias se dedicavam a atividades de apoio mútuo entre seus membros e eram voltadas à adoração de santos do Catolicismo. Reproduzindo a hierarquia sociorracial da Colônia, havia irmandades separadas para brancos, pardos e negros.

Dedicadas a padroeiros de ascendência africana como São Benedito e Santa Ifigênia, assim como a Nossa Senhora do Rosário, as irmandades de negros escravos ou

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forros foram percebidas estrategicamente como lugares privilegiados de reunião e congraçamento, permitindo o encontro de indivíduos pertencentes a uma mesma "nação" (assim se designava cada uma das divisões étnicas dos africanos na Colônia). A grande maioria das confrarias católicas de negros era frequentada por etnias bantas.

Segundo a documentação disponível, a atividade principal nas "Irmandades dos Homens Pretos" consistia em cotizações visando angariar fundos para comprar a alforria dos irmãos, sobretudo daqueles mais judiados pelos patrões, e também para providenciar um enterro digno aos membros que morriam, visando fazê-los ingressar no mundo dos ancestrais. Foi entre as paredes das Irmandades que os escravizados africanos tiveram seu primeiro contato com a religião e com as formas culturais e políticas dos brancos, e as fizeram conviver com suas próprias tradições religiosas, culturais e políticas. A adoração de deuses estrangeiros, incorporados ao panteão da comunidade na intenção de atrair para si seus poderes protetores, é um traço característico da religiosidade banto, e permitiu o desenvolvimento de formas de interação mística entre divindades africanas e católicas nas irmandades. Os ritos do sistema religioso assim surgido eram vivenciados à maneira africana, com tambores, cantos e danças, mudando para sempre os ares de instituições tipicamente europeias, como eram as irmandades.

Outra ocupação prioritária dos irmãos negros era a participação nas festas públicas. Nas datas festivas católicas ou oficiais, membros das Irmandades negras saíam às ruas em cortejo com grande aparato, escoltando um rei e uma rainha negros, os Reis Congos. Periodicamente, realizavam cerimônias de coroação, momento de máxima sacralidade para os "pretinhos do Rosário": as linhagens de nobreza brutalmente rompidas pela escravização sendo rearticuladas na terra da diáspora. A restauração simbólica dos vínculos com os antepassados, encarnados na figura dos Reis Congos, é de vital importância dentro das concepções religiosas banto-africanas.

Os cortejos reais africanos com música e dança, em que soberanos negros aparecem protegidos por grandes para-sóis, foram documentadas bem cedo no Brasil; expressivas e muito informantes são as cenas de rua retratadas pelo pintor italiano Carlos Julião, no século XVIII, que fazem lembrar as atuais Congadas e Maracatus.

Já em 1711, outro italiano residente no Brasil, o historiador jesuíta João Antonil, coloca-se favorável à realização das festas de Reinado pelos escravizados nos engenhos de cana:

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“Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantos e bailes por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde, depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade...”.

Seguindo os conselhos de Antonil, tornou-se comum "sinhôs" e "sinhás" patrocinarem as festas dos escravizados, inclusive lhes emprestando suas roupas de gala, joias e espadas para compor os paramentos do casal real. Interesses em dupla mão de direção se conjugavam: ao passo que os africanos encontravam meios de render homenagem à sua ancestralidade em uma terra que lhes era estranha e hostil, obtendo, ao mesmo tempo, inclusão nos festejos públicos religiosos e oficiais, a classe proprietária fazia crescer seu prestígio ao apresentar publicamente "seus" escravos devidamente cristianizados, desfilando em séquitos dançantes que rivalizavam em luxo e beleza.

Os cortejos reais negros desfilavam suas coreografias e cantares pelas ruas das cidades ao som de instrumentos de origem diversa, juntando-se a viola europeia às marimbas africanas. Diante das casas de notáveis paravam, e os feitos dos grandes dinastas do Congo e de Angola eram então lembrados, por meio de dramatizações de embaixadas e danças guerreiras conhecidas como "Auto dos Congos". Segundo escritores viajantes, era esse o costume no Mbanza Congo, o antigo Reino do Congo, nas ocasiões em que havia visitas diplomáticas. A primeira notícia da realização do Auto dos Congos no Brasil data de 1760, registrada em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, quando um "Reinado dos Congos com mais de oitenta máscaras" apresentou embaixadas e danças guerreiras em comemoração ao casamento de D. Maria I de Portugal com o Príncipe D. Pedro.

A igreja vigilante tratou de disseminar entre os irmãos negros, como estratégia de catequese, a gesta de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, adaptada como fábula da Cruzada entre Cristãos e Mouros. A lição a ser aprendida é a da inevitabilidade da conversão ao catolicismo, tendo o pagão de optar entre a cruz e a espada. No enredo da Congada de Ilhabela, assim como em outras, quem vence a batalha contra Angola revoltosa é o Rei de Congo, o católico, o qual termina por impor

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o batismo ao embaixador "infiel" e seus vassalos:

"como és santificado põe-te na lei de Cristo que por Deus estás perdoado”.

A identificação do soberano do Congo como católico nas congadas dramáticas brasileiras é provavelmente uma referência histórica ao fato de diferentes manicongos, ou governantes do antigo Reino do Congo, terem adotado o catolicismo ao se aliarem aos portugueses no tráfico escravo. Representações relacionadas ao antigo Auto dos Congos podem ser assistidas até hoje em Ilhabela e São Sebastião-SP (Congadas), Conceição da Barra-ES (Ticumbi), Lapa-PR (Congada).

Tendo evoluído a partir do séquito de acompanhamento dos Reis Congos, a maior parte das Congadas atuais apresenta-se como cortejos com música e dança, muitas delas já sem ligação com as Irmandades Negras e seu calendário de festas. É o caso dos Maracatus de Baque Virado pernambucanos, que passaram a desfilar no Carnaval a partir do declínio das Irmandades de Recife e de suas festas. Além dos maracatus, são formas regionais das congadas de cortejo o Marambiré paraense, os Congos do Rio Grande do Norte, as Cambindas da Paraíba, as Taieiras e Cacumbis sergipanos, as diferentes guardas do congado de Minas Gerais – Vilão, Catopé, Congo, Marujo, Caboclo, Moçambique, Candombe, Cacunda – os Congos de Goiás, as Bandas de Congo do Espírito Santo, os Moçambiques e Congadas paulistas e gaúchos, os Catumbis catarinenses, entre outras.

A atividade ritual em torno da coroação de Reis Congos ainda se mantém em algumas partes do Brasil, e com particular vitalidade no estado de Minas Gerais. Aí as Irmandades negras de Nossa Senhora do Rosário mantêm-se como pilares de um catolicismo afro-brasileiro, constituindo forte matriz identitária para a população afrodescendente. Suas festas de Reinado reúnem milhares de pessoas e dezenas de grupos anualmente.

Entre as Congadas brasileiras há muitas diferenças quanto ao estilo musical, à coreografia, à indumentária etc.; em lugares como Minas e Goiás, tal diversidade pode ser lida como um indício do agrupamento dos africanos por "nação" em épocas passadas, inclusive dentro das irmandades. Por outro lado, detectamos referências comuns, além da presença do rei e da rainha ou da louvação aos santos de devoção

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negra. Uma delas é o uso de vestimentas que interpretam o modo africano de trajar, fixado no imaginário dos dançantes – saia ou saiote, bata, turbante ou capacete adornado por plumas ou flores, junto a paramentos europeus como os mantos e coroas dos reis. Também são comuns adereços como espadas de metal ou madeira ou bastões de entrechoque, utilizados em dramatizações de combate. Os tambores portáteis que têm suas peles retesadas por cordas – caixas, zabumbas, bombos, alfaias –, percutidos com baquetas, também são de uso recorrente nas congadas brasileiras. Apesar de suas variações regionais, esses tambores seguem o modelo da antiga caixa de guerra europeia. Ao conjunto formado por um número variável de tambores desse tipo (exceção feita para grupos como as Bandas de Congo capixabas, que utilizam tambores de mão) podem se juntar, conforme o tipo de agremiação, instrumentos de origem africana como canzás (reco-recos), ganzás (chocalhos), gonguês (agogô de Maracatu), cuícas, marimbas, a instrumentos europeus como caixas claras, sanfonas, violas e violões. A estrutura do tambor militar europeu é africanizada nas mãos dos congueiros, adquirindo outros timbres e sacralizando-se, investidos de forças ancestrais que asseguram a retaguarda espiritual dos cortejos. Segundo uma tradição oral de Minas Gerais, foi o som poderoso dos tambores feitos por velhos africanos escravizados que conseguiu atrair Nossa Senhora do Rosário para fora das águas do mar, onde milagrosamente aparecera, após as infrutíferas tentativas dos brancos. Ao sair da água, a santa descansa sobre um dos tambores, iniciando-se, assim, o festejo à Senhora do Rosário pelos negros com suas ingomas sagradas.

Candomblés Do início do século XVII até a primeira metade do XVIII, e durante o XIX até a Abolição, o tráfico escravo do Atlântico deportou no Brasil sobretudo africanos bantos, originários de diversas etnias embarcadas na região do Congo-Angola e na contracosta, em Moçambique: ambundos, umbundos, quicongos, macuas, angicos. O destino principal desses povos bantos, que constituem a maioria dos africanos escravizados no Brasil, foram os engenhos, garimpos e fazendas, seguindo os ciclos da economia monoprodutora brasileira da Colônia e do Império – cana, mineração, café. Em fins do século XVIII, o tráfico volta-se para a comercialização de

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escravizados dos povos ditos sudaneses, da África Ocidental, particularmente os da região compreendida pela Nigéria e Benin atuais. A Nigéria é terra dos iorubás, aqui chamados nagôs, e dos haussás e tapa-nupês; o Benin, dos ewe-fon, tratados por jejes ou minas no Brasil. Indivíduos pertencentes a grupos nagôs e jejes foram direcionados sobretudo para as metrópoles do Nordeste, e em menor escala para o Rio de Janeiro, Minas Gerais e para cidades produtoras de charque, no Rio Grande do Sul. Em capitais nordestinas como Salvador, Recife e São Luís, enriquecidas com o açúcar e em vias de urbanização, os escravizados sudaneses trabalhavam geralmente como domésticos e ganhadores – realizavam diversos serviços remunerados, devendo entregar parte do ganho para os patrões. Dividiam espaço com os bantos no ambiente das cidades. A escravidão urbana diferia bastante da rural, pois em geral os escravizados não moravam na mesma localidade que os patrões e tinham maior liberdade de locomoção em relação àqueles que serviam nas fazendas: circulavam pelos espaços públicos das cidades, situação propícia a que membros de um mesmo grupo étnico se encontrassem. A associação entre africanos segundo sua procedência engendra formas de organização como grupos profissionais, juntas de alforria (espécie de caixas econômicas destinadas à compra de alforrias) e comunidades religiosas de culto às divindades africanas, além da presença em irmandades católicas separadas. No Nordeste brasileiro, e em particular na Bahia, a forte capacidade associativa dos nagôs os projetou como líderes políticos e religiosos entre os escravizados, sobressaindo-se inclusive na organização de revoltas como foi o Levante dos Malês, ocorrido em 1835 em Salvador. No processo de rearticulação da religião tradicional africana no Brasil, a hegemonia cultural exercida pelos nagôs em relação às demais etnias africanas manifesta-se, no plano da religião, pela adoção generalizada de um conjunto de divindades, os orixás, e de um modelo de organização de culto originários da tradição iorubá (nagô). Em locais afastados das cidades, compatriotas nagôs trazem seus orixás patronos para a adoração coletiva nas primeiras casas de candomblé. Orixás são ancestrais que, pela importância de seus atos no aiyé (existência terrena ou histórica), ascendem para o orun (plano espiritual) na forma de divindades, tendo seus nomes associados miticamente a lugares do país iorubá e seus rios, lagos, montanhas e florestas. O orixá Xangô, por exemplo, vem de Oyó, onde teve existência histórica como o quarto alafin (rei) desse poderoso reino; ao passar para o orun, torna-se ancestral divinizado que

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encarna e governa forças da natureza e também dimensões da vida humana: é o senhor do raio e da justiça, segundo narram seus mitos contados, cantados e dançados. Diferentemente do que acontece na África Ocidental, onde só se venera o protetor ou padroeiro do lugar, nas formas diaspóricas da religião dos orixás como o Candomblé brasileiro e a Santeria cubana, cultua-se um conjunto de deidades. Elas são invocadas em festas públicas, os xirês, segundo uma ordem hierárquica que começa com Exu e termina com Oxalá. Num primeiro momento, as casas ou terreiros de candomblé adquirem um forte componente étnico, já que eram dedicadas à adoração de divindades de um mesmo grupo. Surgem assim os candomblés de nação keto, ijexá, angola, jeje, mina e outras, que com o passar do tempo tornam-se denominações mais culturais que étnicas. O modelo do xirê, ritual de invocação coletiva das divindades, é adotado por diferentes nações africanas nos lugares em que a presença nagô é marcante, como no Nordeste e no Rio Grande do Sul. Tanto os jejes, culturalmente próximos aos nagôs, como também os bantos do Congo e de Angola, cuja religião era bem diferente, percebem e constroem um sistema de correspondências entre os orixás e suas próprias divindades – processo que ficou conhecido como sincretismo, entre estudiosos das Ciências Sociais. Nos candomblés, os voduns dos jejes e os inquices dos congo-angolanos passam a ser louvados de acordo com a sequência e a estrutura ritual do xirê dos nagôs. O sincretismo também ocorre em relação aos santos do catolicismo, em cujas datas de celebração os afrodescendentes estrategicamente realizam os festejos das divindades africanas que lhes são associadas. Os bantos, cuja religiosidade é marcada pelo culto aos antepassados, uma vez transferidos para o Brasil, passam a louvar os espíritos dos índios, ancestrais da terra diaspórica, dando origem aos Candomblés de Caboclo. No início do século XX, desenvolve-se no Sudeste e Sul do país uma nova religião, a Umbanda, a partir de cultos banto-brasileiros como a Macumba carioca e a Cabula do Espírito Santo. Tais cultos, voltados para a cura e aconselhamento pela intermediação de ancestrais brasileiros divinizados, como caboclos e pretos velhos, ao mesmo tempo em que abrem espaço para outras divindades, como os orixás dos candomblés, também se aproximam do espiritismo kardecista europeu. Pontos em comum, como a comunicação com o mundo espiritual e a crença na reencarnação, facilitam essa aproximação, a qual também é buscada no sentido de legitimar as práticas religiosas afro-brasileiras, perante uma sociedade que as rejeita. A Umbanda alcança grande difusão nos meios populares, firmando-se como religião brasileira por excelência.

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As casas de culto a divindades (orixás, inquices, voduns) e encantados (caboclos, pretos velhos, exus, crianças e demais guias espirituais), se estruturam hoje como templos que agregam comunidades organizadas em diferentes funções rituais ou cargos hierárquicos, lideradas por sacerdotes, pais e mães de santo, que zelam pelo culto e pela iniciação de novos adeptos, seus filhos espirituais. Convocadas por meio de toques, cantos, danças e objetos simbólicos, as entidades espirituais presentificam-se entre os mortais, ocupando o corpo dos membros iniciados no culto. Conduzidos pelo espírito, esses iniciados assumem posturas, falas, gestual e movimentação próprios da divindade que incorporam, simbolizando por meio da dança as passagens de seus mitos. O transe místico é um princípio fundante da religião tradicional africana que se mantém com vigor nas religiões afro-brasileiras: o espírito ou divindade vem à terra para trazer seu conselho e redistribuir forças curativas e restauradoras entre as pessoas, sendo o corpo humano o receptáculo sagrado dos deuses. Como a dança é considerada uma forma privilegiada de expressão das divindades nas casas ou terreiros de religião afro-brasileira, um cargo de fundamental importância é o de músico. Os ogãs alabês, como são chamados os percussionistas rituais no Candomblé baiano, detêm o conhecimento de dezenas de toques e da arte de dobrar, isto é, florear e improvisar, no tambor mais grave do conjunto, sobre cada um desses ritmos, e de acordo com os movimentos de dança característicos de cada orixá. Têm na memória centenas de cânticos em línguas africanas (iorubá, fon, quimbundo) e sabem exatamente o momento do ritual em que eles devem ser entoados, e em que sequência. Como objetos consagrados, os tambores são respeitosamente saudados por todos os que adentram as portas dos terreiros. Seu número e forma, assim como a maneira de tocá-los, variam segundo a nação ou denominação regional da religião afro-brasileira: por exemplo, nos Candomblés Ketu da Bahia, os três atabaques rum, rumpi e lé são executados com varinhas (aguidavi), enquanto nas casas Angola são tocados com as mãos. Já nos terreiros maranhenses, os abatás, em número de dois, são percutidos na horizontal. O conjunto de tambores normalmente é orientado pelo som de um sino de ferro denominado agogô ou gã, que reproduz a estrutura básica do toque, modelo de interação musical herdado da África Ocidental.

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A religião afro-brasileira apresenta diferentes modalidades, de acordo com a filiação étnica e a forma que assume regionalmente: Babassuê no Pará, Tambor de Mina e Terecô no Maranhão, Candomblé de nações Ketu, Angola, Jeje e de Caboclo, Omolocô e Jarê na Bahia, Xangô em Pernambuco, Xambá em Alagoas, Batuque no Rio Grande do Sul, Umbanda no Sudeste, Jurema e Catimbó no Nordeste. Os terreiros de Candomblé e de Umbanda difundem-se para além de suas áreas de origem, e hoje estão presentes em todas as regiões brasileiras. Note-se que a palavra candomblé, embora ligada originalmente à forma baiana de culto aos orixás, vem sendo usada, flexionada no plural, para designar as religiões afro-brasileiras em seu conjunto. Resistindo ao preconceito e às constantes perseguições policiais de que foram vítimas nas primeiras décadas do século passado, as comunidades de culto nos terreiros de religião afro-brasileira souberam preservar uma série de práticas culturais africanas: um panteão de divindades com seus mitos e ritos, línguas rituais, instrumentos musicais, ritmos e cancioneiros, danças, culinária, vestimentas e objetos de culto. Traços musicais originários da África Ocidental, como as escalas de cinco notas e os padrões rítmicos oeste-africanos permanecem até hoje praticamente restritos às casas de culto. Num plano mais amplo, perpetua-se, entre os adeptos dos candomblés, toda uma visão de mundo africana fundamentada na noção do axé, força vital que emana de todas as coisas e cujos vetores principais são as divindades e os ancestrais.

Escolas de Samba As grandes cidades brasileiras foram o ponto de encontro de todas as ingomas, Comunidades do Tambor, e o Carnaval, o calendário fundamental para o seu congraçamento. O surgimento das Escolas de Samba representa, por excelência, a confluência dos muitos elementos da fala afro-brasileira e sua reelaboração no ambiente urbano contemporâneo. Criadas e mantidas pela iniciativa popular e comunitária, essas instituições funcionam hoje como centros propagadores de cultura negra nos bairros em que se localizam pelo Brasil afora. Onde pessoas comuns, crianças, adultos e idosos se encontram para a prática prazerosa do samba, dedicando-se à música, à dança, à poesia, às artes visuais... Onde a comunidade contribui durante o ano inteiro com seu suor, na quadra e no barracão, para levar o seu carnaval para a avenida. Cada agremiação do samba é uma escola informal e um celeiro de artistas, mas também de engenheiros, de administradores e demais

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especialistas na produção do grandioso espetáculo carnavalesco, a maior parte deles diplomada nas universidades da vida. Vejamos como tudo começou. Capital do Brasil a partir de 1763, o Rio de Janeiro concentrou ao longo de sua história uma importante população de africanos. Após a Abolição, o contingente de negros aumenta na cidade, com a chegada de milhares de libertos abandonados à própria sorte, sem um lugar na sociedade, atraídos pela esperança de conseguirem trabalho e melhores condições de vida na metrópole. Afrodescendentes migram das fazendas vale-paraibanas, de Minas Gerais, da Bahia, do sertão nordestino, de toda parte. Mestiços e brancos pobres engrossam esse caldo. Fixados inicialmente nas áreas menos valorizadas da cidade e depois nos subúrbios e morros, eles vão acompanhar o processo de expulsão das comunidades negras e pobres do espaço urbano do Rio, promovida pela reforma do prefeito Pereira Passos. Nos territórios negros do Rio ladeiam-se tradições culturais tão diversas, mas ao mesmo tempo tão unas: expressam alegria e devoção, encerram a força do desafio e a reverência aos ancestrais, significadas no corpo, na voz e no tambor. Coisas de negro, herança forte daqueles que, vindos de longe, compartilhavam de um mesmo destino subproletário nas periferias e favelas. Vão-se

agregando

em

mosaico

coletivo

aquelas

lembranças

afetivamente

conservadas nos alforjes da memória de cada um. As formas de expressão brotadas dos contatos entre afrodescendentes de várias procedências e deles com outros povos brasileiros que compõem a sociedade multiétnica do Rio de Janeiro redesenham, no território da cidade grande, a noção de Comunidades do Tambor. Aí, é necessário que as ingomas se multipliquem e se fortaleçam para conquistar espaços, buscando estratégias para driblar as políticas de exclusão dos negros dos mapas centrais da cidade. Nas primeiras décadas do século XX, festejos que ocorrem em lugares públicos firmam-se como pontos de encontro de expressões negras, como a Festa na Igreja da Penha e o Carnaval da Praça Onze. Também nas residências de algumas famílias, como os lares das tias baianas Ciata e Bebiana, na Pequena África, os encontros para lazer e devoção são o ambiente de novas articulações artísticas, frequentado por grandes criadores, como João da Baiana e Pixinguinha. Nos espaços entre a casa e a rua, as ingomas se cruzam e intercambiam suas belezas. Dos quintais vem o batido dos tambores de mão ritmando a cantoria

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improvisada de velhos Caxambus do sul-fluminense e do Samba-de-Roda trazido pelos migrantes baianos, com suas danças de corte e umbigada e a mandinga corporal dos jogos de Pernada e Capoeira. Dos terreiros religiosos da Macumba e dos Candomblés vem a sacralidade de toques e coreografias dos orixás, sacralidade que envolve a vida quotidiana e emana de todo o universo. Do lado das ruas vêm os cortejos que há séculos compartilham suas músicas e danças com os moradores da cidade: os Cucumbis, formas locais da congada a desfilar sua realeza negra, ou folguedos de Natividade como os Ranchos de Reis. Todas aquelas danças de cortejo características das festas e procissões do Catolicismo que recebemos da Península Ibérica barroca, das quais deriva o gosto pelo colorido, pelo espetacular, pelo brilho e pelo luxo... E também uma disposição peculiar dos grupos em alas, a compor o grande desfile processional. Desde o século XIX, estava em curso no Rio a aplicação de políticas visando disciplinar os divertimentos públicos urbanos, com destaque para o controle e redução dos longos e frequentes festejos promovidos pela igreja católica. Lá, como em outras cidades importantes, a igreja vai deixando de ter a primazia detida por séculos na organização do calendário das festas públicas. Com o avanço da urbanização e o desenvolvimento de mentalidades e comportamentos mais laicos, menos voltados à religião, assiste-se na capital brasileira ao declínio de comemorações católicas, como a monumental Festa do Divino Espírito Santo do Campo de Santana. As manifestações culturais negras e mestiças, que antes encontravam nessas celebrações do Catolicismo o seu espaço de realização, vão migrando para novos calendários e locais, até que um deles termina por polarizar a sua atuação, já em pleno século XX: o Carnaval, data maior da profanidade. O Carnaval atrai os Ranchos de Reis trazidos ao Rio pelos baianos, os quais são adaptados ao ambiente momesco por figuras como Hilário Jovino, criador do primeiro Rancho Carnavalesco e considerado o pioneiro entre os grandes mestres-sala. Desfilando com tema único expresso em alegorias e nas alas com fantasia igual, ao som de instrumentos de corda, pandeiros e castanholas e encabeçados por portaestandarte e mestre-sala, os Ranchos são os precursores das Escolas de Samba no carnaval carioca. No ano de 1928, sambistas do morro do Estácio liderados por Ismael Silva criam o “Deixa Falar”, bloco com predomínio de instrumentos de percussão que evolui numa cadência gingada, bem diferente das comportadas marchas-rancho. Um ano depois da

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fundação dessa que é considerada a primeira Escola de Samba, surge a Estação Primeira de Mangueira, seguida de outras. Esse novo tipo de agremiação resulta da combinação da estrutura de desfile dos Ranchos com o conjunto de tambores do Samba suburbano e seu ritmo sincopado, cuja ação sobre os passistas produzia novas respostas corporais: é a vitória do remelexo sobre o passo arrastado. As atividades das agremiações carnavalescas negras eram até então restritas ao “Pequeno Carnaval”, como os cronistas da época se referiam à festa dos blocos e cordões das periferias urbanas pobres, frequentemente tachados de “incivilizados” pela imprensa e autoridades. As Escolas de Samba vão contagiando a sociedade cosmopolita do Rio e, numa luta encarniçada, conquistando os espaços centrais e nobres da metrópole, antes reservados ao "Grande Carnaval" da elite branca. Nas primeiras décadas do século XX, a nova agremiação dos grupos afrodescendentes retrabalha antigas estratégias de inclusão das expressões artísticas negras como "diversão honesta" nas festas públicas – como anteriormente faziam as irmandades católicas com seus cortejos de reis negros –, agora no ambiente marcadamente secular do carnaval urbano. Nesse processo, foi importante a atuação de intelectuais orgânicos como o grande Paulo da Portela, desempenhando a função de chanceleres mediadores entre mundos socioculturais e raciais em busca de apoios para sua comunidade. Em 1932, patrocinado por jornais e estabelecimentos comerciais, acontece na Praça Onze o primeiro dos desfiles de Escolas de Samba do Rio, que se torna oficial quatro anos depois. Atraindo crescentemente as atenções de um público branco ávido de brasilidade, as agremiações negras terminam por arrebatar a sua preferência durante o reinado de Momo, vindo a desbancar divertimentos carnavalescos da elite como os corsos e préstitos das Sociedades Carnavalescas, e mesmo os folguedos das classes intermediárias, como os popularíssimos Ranchos. Ao passo que cresce o número de componentes, de alas e de alegorias nas agremiações, acentua-se cada vez mais a tendência a uma dramaturgia unificada para todo o grupo, segundo um tema pré-definido, o enredo, que passa a ditar as regras do jogo, no plano visual e também no sonoro, com a invenção do samba-enredo. E para incendiar o passo das multidões, a bateria também tem de aumentar, chegando a centenas de ritmistas. Aumenta também a variedade de instrumentos, que vão formar naipes. Instrumentos, baquetas, talabartes passam a ser fabricados em série, por uma indústria que se especializa. Peles de animais vão sendo substituídas por

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peles sintéticas. A bateria das Escolas de Samba, ponto de encontro das ingomas de casa e da rua, agregam

instrumentos

musicais

de

origens

variadas,

porém

organizados

africanamente. O surdo é uma versão do bumbo português, o Zé Pereira, enquanto pandeiros e adufos (precursores dos tamborins) são de origem árabe e nos chegaram pelos portugueses e pelos africanos islamizados. As caixas e taróis derivam dos tambores militares utilizados na Europa desde a Idade Média. Já instrumentos como a cuíca e o agogô, nitidamente africanos, são oriundos respectivamente de culturas bantos e sudanesas. Também é africana a forma de se tocar o repinique, com influências prováveis dos candomblés jeje-nagô, onde o atabaque grave é tocado com uma baqueta e uma mão solta. A organização polifônica desses instrumentos fica a cargo dos mestres de bateria, grandes percussionistas, regentes, arranjadores e ensaiadores da orquestra de percussão. Os mestres ou apitadores antigos receberam influência direta das rodas de Jongo e Pernada, assim como dos terreiros de Candomblé e Umbanda, onde muitas vezes eram ogãs. Outro aspecto importante da bateria das Escolas de Samba é a maneira como ela organiza os ciclos rítmicos (ritmos que se repetem periodicamente) produzidos pelos diferentes instrumentos. Essa organização segue um modelo tipicamente africano ao colocar em relação de simultaneidade as levadas (ciclos rítmicos) de cada instrumento, ou seja, ao fazer soar os instrumentos todos ao mesmo tempo, mas cada qual na sua batida diferenciada, criando uma interação poderosa de ritmos e timbres que faz mexer o corpo e arrasta para o samba. Nessa trama de tambores, reencontramos o ritmo de candongueiros, rumpis e lés nas levadas mais curtas dos repeniques e taróis, ambos fazendo a base do ritmo no registro médio, por sobre o pulsar constante dos chacoalhos de platinela. A eles se juntam os surdos de primeira e segunda marcando o passo do samba no grave. O surdo de corte (ou de terceira) faz o rebolo, o solo em registro grave, trazido do tambor maior dos candomblés e dos batuques e próprio da música percussiva africana. No registro agudo, os tamborins despontam como naipe solista, com longas frases comentando ritmicamente o sambaenredo. Os solos realizados em tambores graves (surdo de terceira) e agudos (tamborins) sugerem a aproximação de princípios organizativos africanos e europeus na música da bateria. Após tomar de assalto o carnaval carioca, o modelo das escolas de samba com diferentes alas, enredo unificado e grandes baterias é introduzido em São Paulo, onde

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também vai ocupando o lugar das agremiações originais do carnaval paulistano, os cordões. Auxiliado pela ampla divulgação nos meios de comunicação de massa, um carnaval de modelo único calcado no desfile das escolas de samba do Rio termina por conquistar todo o território nacional. O próprio sucesso das Escolas de Samba termina por alavancar a sua acomodação ao modo de produção capitalista; o desfile carnavalesco metamorfoseia-se, passando de lazer comunitário a espetáculo de massas mercantilizado e cooptado pela indústria da mídia e do turismo. A antiga rivalidade entre agremiações traduz-se hoje em competitividade, no ambiente restrito e controlado dos sambódromos. A preocupação com a perda do caráter tradicional e afro-brasileiro, com a espetacularização e branqueamento das Escolas de Samba, manifesta-se já nos anos 1970 entre sambistas do Rio de Janeiro quando, sob o impulso de Mestre Candeia, se reúnem para fundar uma agremiação de resistência, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. Mas, se hoje em dia, os desfiles de Escolas de Samba no Rio e em São Paulo trazem as socialites, quase todas brancas, no topo dos carros alegóricos – contrapartida inevitável na negociação pela projeção social das agremiações – o branqueamento passa ao largo das baterias. Pois é lá, no coração pulsante do samba, que a comunidade afrodescendente do tambor segue ofertando ritualmente aos couros seu suor e sangue, no reviver das memórias sonoras de seu povo, somando o seu axé vinculante com a força espiritual das ebômis e mães de santo que desfilam na ala das baianas, fazendo brotar, com a voz potente dos tambores multiplicados em centenas, o movimento de milhares – a dimensão coletiva da ingoma de terreiros e vielas colocada na escala pública das metrópoles. Alvo de todos os olhares, o casal Mestre-Sala e Porta-Bandeira, com suas vestes pesadas de ancestralidade, encarna mais que ninguém a imbricação de diferentes matrizes corporais das Ingomas afro-brasileiras, as quais encontram seu termo final de evolução no carnaval – onde tudo termina e recomeça. Talvez não haja na cultura popular

contemporânea

do

Brasil

síntese

mais

acabada

das

múltiplas

linhagens/linguagens do corpo negro em sua trajetória diaspórica, estilizando ao máximo representações de religiosidade, de nobreza, de elegância, das artes do combate, da ginga, da malícia e da flexibilidade de quem sempre bailou nos desvãos da sociedade e agora tem pela frente o espaço saturado de luz entre a concentração e a dispersão.

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*Paulo Dias, nascido em São Paulo em 1960, é músico e etnomusicólogo. Desde 1988, dedica-se à pesquisa da música tradicional brasileira, sobretudo a de raízes africanas, trabalho que vem sendo divulgado por meio de publicações, videodocumentários, CDs e exposições. Fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera!, voltada à documentação, estudo e divulgação da cultura popular tradicional brasileira. www.cachuera.org.br email: paulodias@cachuera.org.br

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