Fabulas e Gravuras

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FÁBULAS & GRAVURAS Ricardo Vieira Baptista




O Homem e a Onça U

m homem caminhava por uma estrada, que beirava uma mata bem grande, lá pelos lados do Pantanal mato-grossense;

quando à sua frente, avistou uma onça vindo em sua direção, caminhando lenta e despreocupadamente. A onça o vê também e rosna para ele. Um sente ao outro... Então ele diz a ela: – Porque me temes? Sou teu irmão nesta vida, nesta terra, e não posso ser seu alimento agora. Ainda tenho muito que fazer. O homem estava impassível. Não teve medo sequer por um instante. A confiança era tão grande, que não poderia ser de outra forma. A onça, então, imediatamente se acalma. Uma sensação de paz lhe envolve. Lentamente a onça continua seu caminho em direção ao homem, passando ao seu lado sem lhe atacar. Com semblante sereno a onça dirige seu olhar ao homem. O homem enxerga a majestade daquele olhar selvagem. Se tocam e se unem na paz daquele encontro... E a onça seguiu seu caminho, assim como o homem também seguiu o dele.



O Cão e o Homem U

m cachorro, tipo vira-lata, caminhava pela calçada, na bei-

de tanta fome que ele estava. E ficou pedindo mais. Agora ele

ra de uma bela praia, quando chegou num restaurante. Viu

se excitou de novo. Ele estava radiante de alegria, tanto que

várias pessoas sentadas. Ele com fome, muita fome. Foi até

chamara a atenção de outras pessoas no restaurante. O homem

um homem, que por algum motivo lhe atraiu. Olhou para ele

cortou um pedaço de pão e deu para ele. Outro homem, noutra

como quem pede com o olhar. Fez cara de feliz, ficou esperan-

cadeira, assistiu a cena e jogou-lhe um pedaço de frango.

do..., a língua pra fora, ofegante, agitado. Ele se sentia can-

A alegria do cachorro não tinha tamanho. Não apenas ele

sado, então se acalmou e esperou... Finalmente o homem lhe

estava recebendo mais alimento, mas também estava receben-

deu atenção: – Agora não! Vem mais tarde. Estou começando

do mais atenção, mais respeito, mais amor. E, quando se viu,

a comer agora.

várias pessoas no entorno dele estavam lhe dando comida. Teve

E o cachorro ouvindo aquelas palavras, olhou para um lado, olhou para o outro. Não sabia se ia, não sabia se ficava. Estava muito cansado. Então resolveu deitar ali mesmo, ao lado da cadeira daquele homem.

gente até que se levantou de sua mesa, pois era distante, e foi levar mais alimento para o cachorro. E aquela noite foi farta, nem precisava tanto, além do necessário, mas foi assim que aconteceu. Com fartura, para aquele

O jantar transcorreu lentamente, até que chegou o momen-

que soube esperar pacientemente, sem esboçar nenhum abor-

to em que o homem já estava satisfeito e viu que ainda lhe so-

recimento, sem reclamar, sem se entristecer, sem se enraivecer.

brava algo no prato. Lembrou do cachorro, viu ele ali deitado

Simplesmente o cachorro aceitou o que estava lhe acontecendo.

ao seu lado, pacientemente esperando. Chamou a atenção do

Assim, o cachorro retornou para casa, que naquela noite

cachorro, mostrou um pedaço de carne e jogou para ele. O cachorro comeu aquele pedaço de carne muito rapidamente, pois ele estava com muita fome. Quase nem mastigou

ele não sabia ao certo se seria debaixo de uma ponte, no jardim de uma casa, ou em algum canto na praia ou no bosque. Onde quer que fosse ele estava feliz com a vida que ele tinha.



O Homem e a Cobra U

m homem caminhava nos arredores de sua fazenda, a procura

ele; e normalmente ele a matava nessas circunstâncias.

de uma ovelha que desaparecera. O dia amanhecera há pouco.

O homem exita por um instante. Lembra da ovelha que es-

Enquanto caminhava cruzou com uma cobra. O homem se

tava a procurar e vê uma cobra a sua frente, na posição de um

assusta com a cobra. A cobra estava atravessando a trilha e parou quando viu o homem. A cobra se assusta com o homem. Um pensamento vem à mente do homem: – Por favor, não me mate! Só estou de passagem! O homem fica intrigado com esse pensamento, pois sempre que via uma cobra, a matava. Seu coração foi tomado por uma compaixão nunca antes sentida por uma cobra. A cobra realmente não estava fazendo nada de mal para

cordeiro a ser abatido. O pensamento vem à mente do homem novamente: – Por favor, não me mate! Só estou de passagem! Uma sensação de paz envolve o homem nesse momento. O medo e a raiva desaparecem. Então, a cobra, lentamente segue em frente, desaparecendo na mata fechada. Desde esse dia, o homem não matou nenhuma cobra ou qualquer outro animal indefeso. Assim como parou de temer as cobras e nunca mais teve medo ou raiva de qualquer coisa.



O Homem e o Mar U

m homem estava à beira mar numa praia de indescritível be-

até dez. Pois somente na décima vez é que consegue rezar o Pai

leza. Ele mirava o horizonte do mar. Tinha a sensação de que

Nosso sem nenhuma distração, orando de coração para o Pai.

o mar o chamava.

Grande energia lhe envolve. A confiança é total. O corpo se une

Ele se alonga, se concentra e caminha em direção à água,

ao mar confiante e o espírito se eleva, bebendo da Fonte Divina.

não se detendo no seu ritmo, mesmo quando chega à água.

Depois de um bom tempo e repentinamente, ele recobra

Logo dá um mergulho e sente o mar a lhe tocar por inteiro. Então, começa a nadar efetivamente, em direção ao fundo. Após nadar bastante, de repente resolve parar e pensa:

a consciência material. Chegou a hora de retornar então. Ele se sente revigorado e nada tranquilamente até a praia. Lá encontra seus amigos, que estavam preocupados pela sua demora no

– Será que paro ou continuo?

mar. Ele avista a ponta da bandeira ao longe e comenta que

Havia uma ilha ao lado dele e no topo desta, imediatamen-

ficara boiando exatamente lá. Um pescador que estava ao lado,

te após ter pensado, vê uma pessoa acenar, sinalizando para ir em frente. Na verdade, sinalizava para outra pessoa. O homem reinicia seu nado. Vai mais além e resolve parar próximo a uma bandeira presa a uma boia. Aquele foi o local es-

acompanhando a conversa, comenta: – Aquela é uma bandeira de sinalização. Se você tivesse parado depois dela, teria pegado uma corrente marinha que te levaria para bem longe.

colhido para fazer sua meditação. Ele começa a boiar de braços

Um pensamento vem então para o homem: – Mais uma

abertos. Sente os pés e os ouvidos submersos e as mãos e nari-

prova de que, quando não temos medo, nada de ruim nos acon-

nas para fora. Ele respira calmamente, descansando. Felizmente

tece. Confiança Total!

o mar estava calmo, pois assim ficava mais fácil de se entregar. De olhos fechados ele reza um Pai Nosso. Depois outro, e outro,

A noite chegou e ele pouco dormiu, pois estava com muita energia vital.



O Homem e o Gavião T

odo final de tarde um homem saía para caminhar para ver

Durante a noite, enquanto dormia, teve um sonho espe-

o por do sol perto de sua casa. Sempre levava sua máquina

cial. Parecia estar vivenciando realmente e não apenas assistin-

fotográfica e um tripé, assim como um tapetinho para sentar e

do acontecer. No sonho ele estava sentado no mesmo lugar de

melhor se acomodar. Costumava ficar na encosta de um morro,

sempre, quando ouve o chamado do gavião. Imediatamente ele

donde tinha um excelente visual de uma montanha.

levanta o braço e o gavião vem em sua direção e pousa no seu

Aquele momento era sagrado para ele. Ficava admirado com as formas das nuvens, que por vezes formavam lindas aquarelas com várias nuances de cores. Sem falar quando os raios do sol apareciam, sentia como se uma Luz Divina estivesse chegando a Terra. O formato das montanhas e seus picos então, já sabia de cor. Outra coisa que lhe encantava eram os sons da natureza,

braço, sem lhe machucar. Então o gavião começou a falar com ele, mas era como se falassem através do pensamento: – Que bom te ver novamente meu amigo, meu irmão. Vamos dar uma volta? – Mas como? Não sei voar? – Feche os olhos e venha comigo.

especialmente dos pássaros. Conhecia alguns, mas não todos.

E foi como se o homem se unisse ao gavião, pois ele pas-

E pensou: – Um dia, quem sabe, consiga aprender a reconhecer

sou a enxergar através dele, assim como a sentir o vento e suas

todos esses cantos.

correntes. A vista lá de cima era linda e dava para ver tudo. Nou-

Mas tinha um canto que o atraia mais que os outros. Era o

tro momento começou a planar e uma sensação indescritível de

som do gavião com seu voo majestoso. Ao vê-lo sempre imagi-

paz o envolveu, tanto que fechou os olhos e ficou só sentindo,

nava como seria voar e ter a visão do gavião lá de cima, enxer-

tamanha a plenitude daquele instante...

gando tudo nitidamente. Seria um sonho!

Quando abre os olhos vê que está em sua cama, mas com

Este homem era um amante da natureza. Sempre lembrava

a mesma paz a invadir-lhe o ser. O sonho foi tão vivo que tem a

nesses momentos de comunhão, da figura de São Francisco de

certeza de que aconteceu, pois ainda estava sentindo e tendo

Assis, que de tão pacífica, não assustava as aves nem os bichos.

tudo vivo na sua memória. Ele se lembra que durante a tarde

Seria um sonho conseguir tal façanha. Mas era muito difícil, prin-

pensou nisso e então agradeceu olhando para cima:

cipalmente com os pássaros por serem muito ariscos. De qual-

– Obrigado Senhor por mais essa dádiva em minha Vida.

quer forma ele se sentia realizado por poder desfrutar daquele

E toda vez que esse homem via um gavião ele se lembrava

contato íntimo quase todo dia. Assim, mais uma vez retornou

desse sonho, e sentia novamente a mesma paz. E sempre olha-

para sua casa feliz e renovado.

va para o céu e agradecia a Deus.



O Homem e a Floresta U

m homem se mudara há pouco tempo para uma nova cidade. Ele queria estar mais perto da natureza. Ele preci-

– Ontem te recebi como filho e irmão e hoje você vem com esse facão?

sava pensar na vida que levava e se refugiou numa cabana,

O homem se surpreendeu com o que ouviu, olhou para

próxima de um rio, com suas belíssimas cachoeiras. Apesar

todos os lados e não viu ninguém. Percebeu que a voz vinha de

de estar só, tinha como vizinhos os pássaros, os animais e a

dentro dele, mas mesmo assim respondeu:

floresta. Numa das caminhadas que fez até o rio, encontrou uma trilha que entrava na mata e ia beirando o rio. Há muito tempo

– Sinto muito também, mas o que posso fazer? Preciso limpar a trilha, para que as pessoas passem e admirem aquela belíssima cachoeira. E esse é o único caminho até ela.

que alguém não passava por ali, pois a trilha estava quase fe-

E o Senhor da Floresta respondeu:

chada. Caminhou até onde foi possível e ficou encantado com

– Nós, seres da floresta, entendemos a situação e queremos

a beleza do lugar. Estava num trecho de Mata Atlântica com

que venha estar conosco, pois sentimos o seu amor por nós. Faça

certeza, pois a variedade de árvores, plantas e flores era muito

o seu melhor.

grande em todos os lugares. Eram vários seres diferentes, mas

Um novo pesar invadiu o seu ser, porém não havia outro

vivendo em harmonia e paz com suas diferenças. Sentiu a mes-

jeito. Além de ter de cortar pequenas plantas que nasciam no

ma coisa, como se a floresta o tivesse abraçado. Sentiu-se parte

caminho, outras maiores podou apenas e muitas outras, já caí-

da natureza. Pouco depois a trilha se fechou.

das, quebradas ou em decomposição, retirou e jogou-as noutro

Mais tarde, já na sua casa, pensou em retornar com seu fa-

lugar. Foi abrindo passagem até se cansar, mas não conseguiu

cão, para poder abrir a trilha e conseguir chegar à base de uma

chegar na cachoeira. Agradeceu em pensamento à floresta, que

grande cachoeira. E assim o fez no dia seguinte. Tão logo a trilha

mesmo assim o estava aceitando, e retornou para sua cabana.

começava a fechar, ele iniciou a abertura dela, pois não tinha outra forma de passar e pensou: – Ontem estive aqui e me senti recebido de braços abertos pela floresta e hoje venho até ela com esse facão? Um pesar invadiu o seu ser... Foi quando o Espírito e Senhor da Floresta lhe falou:

Muitos dias se passaram, pois o homem andou por outros caminhos, conhecendo o lugar: outros rios, outras cachoeiras, outras florestas. Havia se esquecido daquela floresta, tamanha a exuberância da redondeza. Apenas 20 dias depois de abrir aquela trilha, ele resolveu caminhar por ela, desta vez sem o facão. Em pouco tempo notou que a


trilha se fechara novamente. Lembrou que nesse período ocorreram

rando, pois assim sempre fazemos.

chuvas com fortes ventos, por isso a grande quantidade de galhos e

– Entendo e agradeço mesmo assim – respondeu o homem.

árvores caídas. Notou também que novas plantinhas já estavam nas-

Ele olhou para o céu e pensou então:

cendo e crescendo novamente na trilha.

– Quando o homem interage com a natureza de forma equilibra-

Então o Senhor da Floresta lhe falou novamente em pensamento:

da, os dois conseguem viver em harmonia. Apesar do seu trabalho de ter limpado a trilha ter sido em vão,

– Quando você limpou a trilha, você o fez de forma que não

ele ficou contente, pois em pouco tempo ele viu o quanto a floresta

nos prejudicara tanto. Foi bom para você e para nós. E como você

era viva e forte. E dessa forma, a floresta sempre estaria ali para

não apareceu mais, nós continuamos a nossa Vida, crescendo e ge-

recebê-lo.


R

icardo Vieira Baptista é natural de São Paulo. É formado em Administração de Empresas pela FGV, atividade na qual atuou

por mais de 20 anos. Em 2012 abandonou a vida corporativa, separou-se e partiu para um retiro. Em junho de 2013, mudou-se para Cachoeira, Bahia, onde vive atualmente e cursa Artes Visuais, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. “Resolvi mudar de vida e focar em tudo o que gosto, me dá prazer, alegria e vitalidade”. Além de escrever, fotografa, medita e é amante da natureza e de esportes de aventura. Desde que encontrou a gravura em 2013, não parou mais de produzir, principalmente no Neolite, como opção ao Linóleo. Neste livro faz sua primeira incursão em ficção, tendo sempre como foco compartilhar uma mensagem.


“Sempre tive como inspiração, preocupação ou enfoque maior uma mensagem. Encontrei no fazer artístico seu ornamento, uma vez que na visão enriquecemos toda e qualquer assimilação.Encontrei uma semelhança natural entre minhas gravuras e meus escritos, cuja temática é naturalmente voltada ao auto-conhecimento. No meu traço tenho uma predileção pela curva. Ela me remete ao movimento. Constante, como o fluir da vida, que se renova a todo instante. Curvas que também remetem a formas, denotando sua beleza e leveza, bem como a uma simplicidade sensual e pura. Curvas que emitem energia, que, como ondas, pulsam e vibram”. Ricardo Vieira Baptista


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